Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
2009
Wellington Trotta
RESUMO
O objetivo deste trabalho é analisar o pensamento político de Hegel a partir de sua “Filosofia do Direito”,
apresentando uma exposição sistemática daquilo que o autor compreendeu por filosofia, na qual a política
é uma conseqüência inevitável, já que o seu sistema teórico privilegia a unidade lógica. Utilizei, na elaboração
do presente texto, um critério muito simples: apresentar o pensamento político hegeliano à luz do seu
próprio tempo, levando em consideração as dificuldades normais que todos sentem na expressão de idéias
universais a partir de experiências singulares. Com isso, desejo assinalar que, embora Hegel tenha pensado
o Estado dentro da perspectiva do universal concreto, seu olhar é prussiano e voltado aos problemas da
unidade alemã. O artigo está dividido em duas partes. A primeira é uma exposição do conteúdo filosófico do
autor, ao passo que a segunda parte procura fazer um estudo sistemático do seu pensamento político, tendo
por limite sua “Filosofia do Direito”. Essa sistematização é compreensível, já que, originalmente, o presente
texto fazia parte de minha Dissertação de Mestrado, em que pude fazer uma relação entre Hegel e o pensamento
de Marx em 1843, tal como expresso em “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”. Ao final, como conclusão,
argumento que, mesmo sendo relevante o conjunto das críticas de Marx, o pensamento hegeliano parece
retratar não só o Estado moderno, mas também o contemporâneo, sobretudo o dos últimos trinta anos, em
que cada vez mais o poder Legislativo perde, por motivos diversos, o seu papel de legislar, sendo substituído
pelo poder Executivo, ao qual cabe o incremento do universal no seio das particularidades.
PALAVRAS-CHAVE: Hegel; Filosofia do Direito; Marx; Estado moderno; filosofia alemã.
Recebido em 26 de outubro de 2006. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 17, n. 32, p. 9-31, fev. 2009
Aprovado em 3 de setembro de 2008.
9
O PENSAMENTO POLÍTICO DE HEGEL À LUZ DE SUA FILOSOFIA DO DIREITO
10
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 9-31 FEV. 2009
Filosofia da Natureza; no terceiro e último, estuda que todos sentem na expressão de idéias universais
a Filosofia do Espírito. Em Berlim, por volta de a partir de experiências singulares ou culturais.
1827, Hegel retoma a Enciclopédia e promove Com isso, desejo assinalar que, embora Hegel tenha
algumas modificações com o escopo de atender pensado o Estado dentro da perspectiva do
as premissas do seu sistema, sem com isso alterar universal concreto, seu olhar é prussiano e voltado
o sentido originário que lhe dera na edição anterior, aos problemas da unidade alemã, logo suas
publicando o texto pela última vez em 1831. reflexões por vezes são ideais e por outras realistas,
dependendo de como Hegel entra e sai do
No terceiro volume da Enciclopédia das
problema, ou seja, o filósofo alemão procura, no
Ciências Filosóficas, Hegel ensaia o que mais tarde
interior do seu sistema, contemplar a relação
aprofundará com a publicação de sua Filosofia
particular-universal.
do Direito, em 1821, ou seja, o estudo do Estado
(eticidade): as relações entre universal-particular; O artigo está dividido em duas partes. A primeira
como são possíveis suas possibilidades no plano é uma exposição sumária do conteúdo filosófico
político e em que medida o Direito efetivaria a do nosso autor, ao passo que a segunda, mais
liberdade ao mesmo tempo em que a norma- extensa, procura fazer um estudo sistemático do
tividade, como dimensão pública, resguardaria os seu pensamento político, tendo por limite sua
homens nas suas relações sociais necessárias. Filosofia do Direito. Essa sistematização é
explicável, porque, originalmente, o presente texto
Aos 61 anos de idade, Hegel morre em 13 de
fazia parte de minha Dissertação de Mestrado, em
novembro de 1831, vítima de cólera, passando à
que pude fazer uma relação entre o velho filósofo
posteridade como um dos poucos filósofos a
de Berlim e o pensamento do Marx de 1843, ou
alcançar, em vida, grande notoriedade pública,
seja, o da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.
tanto no mundo acadêmico como no mundo
A conclusão ficou restrita a algumas considerações
político, deixando em toda a Alemanha uma herança
que tomei por empréstimo do próprio Marx, que,
intelectual sem precedentes na história do
ao criticar Hegel, toma novo rumo político-
pensamento ocidental. De seus escritos serão
epistemológico ao romper com a perspectiva
construídas diversas escolas filosóficas impor-
idealista. Entretanto, isso seria assunto para outro
tantes e de grande conseqüência política.
artigo.
Depois desse breve histórico, cumpre-se
II. PRINCIPAIS ELEMENTOS DA FILOSOFIA
destacar que o objetivo deste trabalho é analisar o
HEGELIANA
pensamento político de Hegel a partir de sua
Filosofia do Direito, apresentando uma exposição A lógica hegeliana, ao contrário de ser uma
sistemática daquilo que o autor compreende por teoria do conhecimento, é em verdade uma
Filosofia, tomando a política como conseqüência ontologia, isso porque o Ser, compreendido pela
inevitável, isso porque o seu sistema teórico dimensão do pensamento, identidade absoluta,
privilegia a unidade lógica. Nesse sentido, optei busca a superação do objeto-sujeito, ser-pensar4.
por restringir-me à obra citada na intenção de Assim, a categoria lógica assume a perspectiva
buscar o substantivo conceitual de política em sistemática de explicitação de se conhecer o
Hegel, sem com isso discutir outros textos da concreto pelo conceito como identidade da
mesma natureza de sua autoria, anteriores ou identidade da diferença. O conceito é o idêntico
posteriores à sua obra política por excelência. É que se diferencia a si mesmo no processo lógico
preciso esclarecer, ainda, que o estudo direto do da dialética como superação. Nessa relação, o
pensamento político de Hegel está circunscrito à sistema identifica-se na premissa de que o Ser é o
análise do Estado, portanto, à terceira seção da pensamento pensando a si mesmo como idéia
terceira parte, “A moralidade subjetiva”, absoluta. Todos os entes são idéias que existem
especificamente dos parágrafos 261 a 313, embora em razão da representação do Espírito Absoluto,
faça incursões em outros parágrafos quando
necessário.
Utilizei na elaboração do presente texto um 4 “Ser e pensar são para Hegel o mesmo, e, na verdade, no
critério muito simples: apresentar o pensamento sentido de que tudo é recebido de volta ao pensamento e
político hegeliano à luz do seu próprio tempo, determinado a ser o que Hegel simplesmente designa o
levando em consideração as dificuldades normais pensamento pensado” (HEIDEGGER, 1973, p. 404).
11
O PENSAMENTO POLÍTICO DE HEGEL À LUZ DE SUA FILOSOFIA DO DIREITO
no qual se identificam pensar e ser, conceito e se pode determinar o dado da experiência sensível
realidade. O absoluto é, por fim, o conceito, e o como real, contrapondo-o ao pensamento como
conceito, a própria identidade (LEÃO, 1977, p. se o pensamento não fosse real. Abandonar o
254). pressuposto absurdo de que o sensível é o ser e o
pensamento é o nada constitui a primeira condição
Na concepção de Hegel, a Filosofia define-se
para se pensar logicamente qualquer coisa [...]. A
como o conhecimento necessário ao conteúdo da
essência da abstração não está em se prescindir
representação do absoluto5, por isso o absoluto
da matéria sensível, mas na elevação do sensível
confundir-se-ia com o objeto da própria Filosofia,
à estrutura universal do conceito” (LEÃO, 1997,
contrariando um postulado fundamental da
p. 258).
filosofia kantiana expressa na Crítica da razão
pura, que consiste na impossibilidade de se Pondera-se que o pensamento para Hegel seria
conhecer o objeto em si mesmo, o que reduz o a estrutura universal como condição necessária
conhecimento da coisa pelo fenômeno, pela para o conhecimento do objeto. O pensamento
manifestação exterior do objeto. Ao contrário, para não se configura como algo nadificado, ou melhor,
Hegel, a lógica teria o papel de compreender o ser e pensamento não se opõem como sentidos
objeto pelo conceito: as condições do opostos em que este se constitui em abstração
conhecimento nem estão arbitrariamente no daquele. Muito pelo contrário, é no pensamento
sujeito, muito menos no objeto, mas sim numa que o objeto encontra a sua dimensão universal,
estrutura lógica, na idéia, no conceito, por isso sendo, portanto, concreto, enquanto o sensível
“filosofia é um conhecimento conceituante” apenas revela sua exteriorização como percepção
(HEGEL, 1995a, p. 39-59). da realidade pensada, porém, particularizada. A
filosofia hegeliana é, antes de tudo, um sistema
Ressalte-se a importante diferença entre a lógica
fundado sobre o Espírito Absoluto (HARTMANN,
dialética e a lógica formal: esta se baseia na lógica
1983, p. 326), que, por sua vez, é a síntese da
de Aristóteles, que tem por fundamento os
relação dos espíritos subjetivo e objetivo. Toda
princípios da identidade e o da não-contradição,
filosofia hegeliana é filosofia da identidade, uma
ao passo que na lógica dialética a contradição não
vez que este fundamento expressa-se na arte, na
é apenas aceita como também inerente ao próprio
religião, na história e, por fim, no mundo ético,
movimento do pensamento. A intenção de Hegel é
no Direito como conceito de Estado: “Além do
justamente provar que a razão necessariamente
que, por residir a filosofia essencialmente no
efetiva-se no mundo e não é apenas uma idéia
elemento da universalidade – que em si inclui o
abstrata 6 . Nesse caso, sua concepção de
particular –, isso suscita nela, mais que em outras
“conceito” difere da tradição filosófica. O conceito
ciências, a aparência de que no fim e nos resultados
que Hegel descreve e concebe está em movimento,
últimos que se expressa a Coisa mesma, e inclusive
logo é dialético, porque o seu motor é a
sua essência consumada” (HEGEL, 1999a, p. 21).
contradição. Por isso, o absoluto é percebido no
pensamento pela lógica, e não, como postulava Percebe-se, mediante leitura da passagem
Schelling, por meio da intuição e fundido no citada, que, para Hegel, o sentido da Filosofia está
absoluto (HEGEL, 1999a, p. 29). na perspectiva do universal, assim como também
é ela a expressão do universal pelo fato de buscar
Segundo o entendimento de Carneiro Leão:
a coisa mesma, o “em si”, por isso a noção de
“Ser e pensar não se opõem como realidade. Não
unidade domina, de certa forma, o seu pensa-
mento, isto é, o universal em si representa a própria
5 “Hegel determina como ‘meta’ da filosofia: ‘a verdade’.
totalidade e, como tal, aquilo que é particular
Esta somente é atingida no movimento da plenitude [...] encontra-se como elemento dentro do sistema,
Verdade é para Hegel a evidência do saber que se sabe a si
necessariamente. Hegel considera o seu sistema
mesmo” (idem, p. 409).
como uma alternativa ao particularismo filosófico
6 “O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia
de seu tempo e pretende que o mesmo inaugure
dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz
uma forma de pensar que leve em conta a cultura
com a flor parecer um falso ser-aí da planta, pondo-se
como sua verdade em lugar da flor [...] Sua natureza fluida e sua subordinação ao plano ideal como fio
faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de condutor histórico. Nesse sentido, assevera Hegel
se contradizerem, todos são igualmente necessários” que “colaborar para que a filosofia se aproxime
(HEGEL, 1999a, p. 22). da forma da ciência – da meta em que deixe de
12
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 9-31 FEV. 2009
chamar-se amor ao saber para ser saber efetivo – pensamento conceituante por meio de uma
é isto o que me proponho” (idem, p. 23). linguagem especificamente precisa.
Assim, a filosofia hegeliana apresenta-se como A maneira pela qual Hegel pensa é dialética e
aquela que tem por responsabilidade a construção consiste na relação inseparável dos contraditórios
de um sistema capaz de dar conta da totalidade, com o fim de apreender uma etapa superior que
visando colocar a Filosofia como expressão da possa daí estabelecer uma síntese. Por isso, a
verdade, e não se contentar com o papel de mera Filosofia em Hegel é um plano lógico: “A lógica
espectadora, já que sua importância está tem, segundo a forma, três lados: a) o lado abstrato
determinada pela coisa mesma, o absoluto em si, ou do entendimento; b) o dialético ou
pelo saber efetivo. Esse saber realiza-se não só negativamente-racional; c) o especulativo ou
para conhecer o centro como para ser o próprio positivamente racional” (HEGEL, 1995a, p. 159).
centro: a visão do conjunto, a partir do e dentro Esses três lados afirmados por Hegel não são
do conjunto. Portanto, “a filosofia é um modo partes da Lógica, e sim momentos do todo lógico-
peculiar de pensar, uma maneira pela qual o pensar real, o que ele chama de todo conceito ou de todo
se torna conhecer e conhecer conceituante” verdadeiro geral. Dessa forma, a dialética de Hegel
(HEGEL, 1995a, p. 40); nesse caso, o seu envolve, no primeiro momento, um ou diversos
conteúdo é o efetivo, e não o abstrato. Por isso, a conceitos fixos – a tese. Pensados esses mesmos
Filosofia é objetiva, ao passo que “uma opinião é conceitos, ensejam contradições no seio de suas
uma representação subjectiva, um pensamento relações, implicando a fase verdadeiramente
qualquer, uma fantasia que eu posso ter dum modo dialética ou razão dialética (negativa) que
e outros de outro modo; uma opinião é coisa necessariamente nega a anterioridade como
minha, nunca é uma idéia universal que existia em movimento de superação – a antítese: “O resultado
si para si. Mas na filosofia não contém nenhuma dessa dialética é uma nova categoria, superior, que
opinião, porque não existem opiniões filosóficas engloba as categorias anteriores e resolve as
[...]. A filosofia é a ciência objetiva da verdade, é contradições nelas envolvidas” (INWOOD, 1997,
a ciência da sua necessidade: é o conceito por p. 100). Essa fase é denominada de especulação,
conceitos, não é opinar nem deduzir uma opinião positiva (síntese) ou, como sugere Hegel, unidades
de outra” (HEGEL, 1974, p. 51). dos opostos, isto é, a negação da negação anterior
que retoma a afirmação negada na totalização de
Segundo Hegel, as opiniões não são
“supressão e conservação das duas posições
considerações filosóficas, e nesse particular
anteriores”7.
inspira-se no postulado platônico da distinção entre
doxa e episteme, opinião e ciência. Desse modo, O pensamento filosófico de Hegel é um sistema
o trecho acima assinala a concepção hegeliana de complexo de unidades no qual a mesma estrutura
Filosofia: a linguagem pela qual a verdade processa-se em áreas diferentes do conhecimento.
apresenta-se como um lógico conceituante, Hegel, como um grande filósofo sistemático, aplica
procedimento que se refere a uma nova e as mesmas categorias aos mais variados
específica forma de pensar, que não opera de uma problemas. Sua dialética tríade domina sua forma
dedução à outra necessariamente, mas por de apresentar e superar os mesmos. Pensa sempre
contradição de uma relação à outra. A linguagem no sentido de que o pensamento deve percorrer
hegeliana estabelece-se por qualificar o que se caminhos cíclicos, ou seja, sempre se realizando
pensa por meio de uma forma peculiar de desenhar em si mesmo, na saturação de um conceito que
conceitos, utilizando expressões consideradas por
ele científicas, precisas no sentido de relacionar
adequadamente pensamento e objeto pensado, ou 7 “Nesta configuração, destacamos um primeiro ciclo no
seja, pela reflexão do “em si” como algo essencial. qual partimos de uma posição afirmativa ou identitária – o
Daí vem seu rigor extremo na exposição de um momento da tese – suscetível de gerar sua própria negação
sistema que busca a natureza do conceito posto que, amadurecida, irá constituir uma segunda posição – o
momento diferencial da antítese. A tensão entre tese e
pelo conceito. E o conceito posto pelo conceito é
antítese vai provocar a emergência de uma terceira posição,
um resultado filológico-filosófico que, longe de ou seja, de um momento da síntese, que é,
ser uma armadilha de opiniões, significa a própria concomitantemente, negação e afirmação, supressão e
verdade por meio de exposições conceituantes. A conservação das duas posições anteriores” (SAMPAIO,
filosofia não é um jogo de opiniões, mas 2000, p. 36).
13
O PENSAMENTO POLÍTICO DE HEGEL À LUZ DE SUA FILOSOFIA DO DIREITO
impõe a busca de um outro, necessariamente mais consigo mesma como um todo que retorna a si
completo, não por decorrência, mas como como um mundo da verdade” (HEGEL, 2001, p.
superação das contradições. E tais contradições 47).
são superadas logicamente pelas sínteses
Por isso, a filosofia não pode ser uma opinião,
promovidas na tensão dos opostos, gerando novas
assim como também não pode ser um primeiro
oposições.
resultado da sensação. Hegel com isso pretende
Hegel traça um panorama filosófico que tem que o seu sistema anuncie uma visão que só pelo
por fim ser o limite da própria filosofia, fim de conjunto é possível conhecer o elemento. É como
uma jornada que encontra em si o fechamento do se o elemento em si não pudesse ter sua existência
grande ciclo, fim da história da filosofia, sistema determinada, pois só é reconhecido na
que pretende ser o último capaz de dar conta da representação do todo como realidade primeira.
realidade8. Assim, “essa ciência é a unidade da Essa realidade primeira é, com certeza, o princípio
arte e da religião. Por conseguinte, a filosofia se norteador das difíceis elaborações hegelianas, que,
determina de modo a ser um conhecimento da por determinação do seu conceito, não pode buscar
necessidade do conteúdo da representação o exterior para manifestar o que ocorre no interior,
absoluta” (HEGEL, 1995b, p. 351). Essa mas o exterior é, ao seu turno, uma determinação
passagem é esclarecedora por tratar das formas do interior. Assim, como os conceitos do “belo” e
absolutas, arte e religião, totalizando a unidade na da “arte” são pressupostos necessários do sistema
representação do espírito absoluto que só pode da Filosofia, a família, a sociedade civil e o Estado
ser definido pela Filosofia, que em si é a unidade também são, portanto, pensados pelo espírito
do saber. A Filosofia é uma ciência pelo objeto e como realidades em si.
pelo procedimento específicos: o absoluto e a
Se a Filosofia é ciência do absoluto, linguagem
dialética no desdobramento do pensamento. Pode-
do absoluto que se pensa e mostra-se
se ponderar que, para Hegel, a Filosofia representa
exteriormente aos homens pela consciência, ela
a verdade no mundo dos homens, por isso que no
só pode ser realização do absoluto, por isso não
seu sistema as opiniões constituem um obstáculo
se pode olvidar que na sua tarefa esclarecedora
ao conhecimento do absoluto. “A filosofia se
tenha por missão precípua apresentar o absoluto
determina de modo a ser um conhecimento da
como determinação na história, encontrando no
necessidade do conteúdo da representação
Estado sua relação de efetivação. Esse papel que a
absoluta”, implicando que a Filosofia seria aquele
Filosofia desempenha, segundo o idealismo
saber que explicaria o absoluto na condição de
alemão9, é a de identidade cultural, portanto,
revelar sua dimensão de forma racional e dentro
nacional, não tendo nenhum paralelo na história
das estruturas da lógica, que, pesquisando o Ser
da Filosofia moderna, a não ser que se recue ao
atrelado ao pensamento, não como oposição,
mundo grego, em que, sem sombra de dúvida, ela
anunciaria sua identidade necessitante.
tem um papel relevante, na medida em que se cria
Completando essa linha de raciocínio, em uma uma linguagem específica a partir de problemas
passagem, nos seus Cursos de Estética, que amplia políticos e, como atesta Jean-Pierre Vernant
consideravelmente o que concebe por Filosofia, (1992), o vocabulário filosófico tem origem na
Hegel, mais uma vez, relaciona-a com a
representação da verdade: “Pois somente a filosofia
em seu conjunto é o conhecimento do universo 9 Os termos “idealista” e “idealismo” surgem pela primeira
como uma necessidade orgânica em si mesma, vez com o filósofo alemão Gottfried W. Leibniz (1646-
que se desenvolve a partir de seu próprio conceito 1716), mas é com George Berkeley (1685-1753), filósofo
e, em sua própria necessidade de se relacionar inglês, que adquirem o sentido que nós conhecemos, ou
seja, como uma corrente filosófica que reduz toda a
existência ao plano do pensamento, isso quando
consideramos o pensamento segundo René Descartes
8 “Agora torna-se claro em que medida a história da filosofia (1596-1650). Já o idealismo alemão é uma corrente filosófica
é o mais íntimo movimento na marcha do espírito, quer que surge no final do século XVIII, sob forte influência da
dizer, da subjetividade absoluta em direção a si mesma. filosofia kantiana. Sua premissa básica consiste na não-
Ponto de partida, avanço, passagem, retorno desta marcha, existência de coisas reais independentes da consciência (eu).
tudo é determinado especulativo-dialeticamente” O que pensamos representa-se expressamente ao plano do
(HEIDEGGER, 1973, p. 406). real.
14
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 9-31 FEV. 2009
temática política, na vida citadina dos homens. história, no mundo, por isso precisa dos
instrumentos do mundo para a sua realização
O idealismo alemão surge, então, como uma
enquanto determinação da vontade.
corrente filosófica impregnada do espírito
germânico: a introspecção, o retorno aos valores O princípio da liberdade como valor, segundo
esquecidos como sentido de afirmação política, a Hegel, é de natureza germânica e, como tal, significa
disciplina viva no intuito do objetivo determinado, que o povo alemão deve realizar tal idéia, cumprir
a superioridade do sistema cultural como um valor o fim para o qual está determinado ou mesmo para
sobre o resto da Europa. O idealismo alemão, como o qual se determinou como uma imposição a partir
assinala Nicolai Hartmann, é expressão criativa de da consciência de si, da autoconsciência enquanto
um sistema filosófico em que os fundamentos são determinação de sua unidade cultural. Talvez esteja
últimos e irrefutáveis, totalização que se efetiva aqui a chave para compreender o entusiasmo que
como reflexão profunda pela razão interiorizada, a filosofia hegeliana exerceu sobre boa parte da
caracterizando-se como um sentimento de inteligência alemã, sobretudo naqueles jovens, por
otimismo juvenil (HARTMANN, 1983, p. 9). O realizar seu papel dentro da história, da luta política
idealismo alemão procura sintetizar o espírito por uma Alemanha conforme os novos tempos.
germânico diante da história, e com isso objetiva Desse modo, Hegel, na Introdução da Filosofia
promover, face à Revolução Francesa, uma da História, monta um quadro dividindo a história
perspectiva de auto-reconhecimento. universal em quatro momentos, começando pelo
Oriente, pela Ásia, passando pelo mundo greco-
A filosofia hegeliana representa a apoteose
romano e terminando a caminhada do espírito no
germânica, missão que o povo alemão traz consigo
mundo germânico: “A história universal vai do leste
a fim de efetivar a realização da maturidade da
para oeste, pois a Europa é o fim da história
Europa que soube ser história e consciência de
universal, e a Ásia é o seu começo. [...] O oriente
si10. A Alemanha tem um projeto, e esse projeto
sabia – e até hoje sabe – apenas que um é livre; o
só pode ser de natureza universal, a materialização
mundo grego e o romano que alguns são livres; o
do espírito objetivo, a concretização do espírito
mundo germânico sabe que todos são livres”
como referência, como principio de identidade.
(HEGEL, 1999b, p. 93).
Nesse sentido, nenhuma outra corrente filosófica
foi tão eloqüente quanto a hegeliana, nenhum outro Essa divisão tem por fim assinalar que o
filósofo alemão representou tão bem esse espírito conceito de Estado foi uma longa maturação na
de se pretender universal a mente filosófica dentro qual o seu elemento formal é a monarquia em que
de um mundo comandado pelos mais ingênuos a liberdade materializa-se: “Em conseqüência, a
sentimentos. A síntese absoluta da Filosofia, primeira forma de governo que tivemos na história
construída por Hegel, reproduz os interesses de universal foi o despotismo; depois vieram a
uma síntese germânica que não somente busca democracia e a aristocracia, e, em terceiro lugar,
sua unidade, mas também o comando da Europa a monarquia” (ibidem). Hegel evidencia a realização
cristã. Assim como os antigos germânicos uniam- do Estado como reino da liberdade pela
se em torno do chefe para a superação dos grandes determinação político-administrativa enquanto
confrontos bélicos, nos tempos idos monarquia, instância do universal pela qual a idéia
(ANDERSON, 1980, p. 117), os alemães do concretiza-se por meio do espírito tomando
século XIX, especialmente os nacionalistas como consciência de si na história.
Hegel, elegem o Império prussiano como a liderança
Nessa perspectiva político-filosófica, o mundo
racional para comandar a unificação política alemã.
constituído pelo espírito germânico tem a tarefa
A síntese de Hegel é a síntese do espírito na
de realizar o reino da razão quando efetiva a
realização da vontade que, não sendo particular,
10 “Na história da filosofia, veremos que, para outras re- mas universal, desdobra-se na realidade histórica,
giões da Europa em que as ciências e a cultura do na concretização do mundo político. Esse mundo
entendimento se fomentaram com zelo e êxito, a filosofia, político é dominado pela vontade do conceito de
com excepção do nome , desvaneceu até da memória e da Direito, que se expressa na figura do Estado como
noção e acabou por morrer que ela se conservou na nação reino ético, reino da liberdade, não de um ou de
alemã como uma característica peculiar. Recebemos da
poucos, mas de todos. O espírito germânico seria
natureza a sublime vocação de ser os guardas deste fogo
sagrado” (HEGEL, 1991, p. 12). então a liberdade como uma dimensão espiritual;
15
O PENSAMENTO POLÍTICO DE HEGEL À LUZ DE SUA FILOSOFIA DO DIREITO
nesse caso, realidade que se concluiu no momento por exemplo, o Estado, que, como universal
em que o espírito determinou-se comunitaria- abstrato, existe na idéia, torna-se universal
mente. Hegel inverte as determinações do real concreto por meio dos cidadãos em que suas
porque a natureza do seu pensamento é lógico- vontades efetivam-se historicamente, e a
idealista, isto é, o objeto é uma realização do universalidade é tomada como algo “em si” que
conceito como lógico-ideal, logo o pensamento se torna “para si” no plano das relações objetivas.
dá as condições de todo o conhecimento. Não é o
Ao contrário do empirismo, que toma o real
sujeito e muito menos o objeto que se pronunciam
pelas impressões das sensações, o idealismo
na qualidade de se apreender o conhecimento. Este
compreende o real pela unidade do objeto pensado,
último realiza-se como categoria lógica, por isso
o que quer dizer que o Ser é uma apreensão do
é sempre um conceito, uma idéia11.
pensamento. O idealismo alemão afigura-se,
Esse conceito só pode ser compreendido como portanto, como uma solução ao problema posto
determinação pela leitura do idealismo, que, pela lógica empirista, que insiste ser o real uma
segundo Hegel, é a expressão histórica da Filosofia. determinação dos sentidos, em que o que se
Assim, “La proposición que lo finito es ideal, conhece está relacionado pela relação sujeito-
constituye el idealismo. El idealismo de la filosofía objeto externamente. Nesse caso, a lógica
no consiste en nada más que en esto: no reconocer hegeliana apresenta o objeto como uma
lo finito como un verdadero existente. Cada determinação da idéia, necessariamente.
filosofia es esencialmente un idealismo, o por lo
III. FILOSOFIA DO DIREITO: O POLÍTICO
menos lo tiene como su principio, y el problema
NO SISTEMA HEGELIANO
entonces consiste sólo [en reconocer] en qué
medida ese principio se halla efectivamente A Filosofia do Direito, de Hegel, mais do que
realizado. La filosofía es [idealismo] tanto como um tratado jurídico-político é, teoricamente, um
la religión; porque tampoco la religión reconoce la tratado ético-político, estando na mesma tradição
finitud como un ser verdadero, como un último, de A república, de Platão, Política, de Aristóteles,
un absoluto, o bien como un no-puesto, eterno” O príncipe, de Maquiavel, Leviatã, de Thomas
(HEGEL, 1968, p. 136). Hobbes (1588-1679), O segundo tratado sobre o
governo civil, de John Locke (1632-1704) e O
O verdadeiro ser não é aquele que se apresenta
contrato social, de Jean-Jacques Rousseau (1712-
aos sentidos, mas aquele que é compreendido no
1778); enfim, constitui um clássico do pensamento
pensamento como determinação última, isto é, as
político ocidental. Seja como for, independen-
coisas são representadas pelo conceito; em última
temente do ponto de vista de cada perspectiva, a
instância, é o pensamento – como ato – que
obra política de Hegel é um marco dentro do
determina a existência da realidade. Isso não quer
pensamento político moderno uma vez que elabora
dizer que os objetos não existam ou não tenham
uma crítica ao Estado e ao próprio liberalismo
realidade; essa realidade, por fim, primeiro afigura-
enquanto fundamento teórico dos homens públicos
se no pensamento como a que possibilita o
nos negócios públicos, a partir da ascensão da
conhecimento. Este não é um atributo do objeto,
burguesia como classe hegemônica no século
mas sim do sujeito que pensa conceituando. É
XIX.
preciso assinalar que no idealismo o objeto existe
na idéia, na consciência, isto é, “não há coisas O tema central dessa obra, sem prejuízo para
reais, independentes da consciência” (HESSEN, os demais enfoques, está relacionado à efetivação
1987, p. 102). Assim, conclui-se que o objeto, do plano da liberdade como dimensão do Direito,
no sentido da eticidade, em que o Estado assume
a instância universal de superação de todas as
11 “Para o idealista lógico o objecto gesso não existe nem particularidades (HARTMANN, 1983, p. 598).
em nós nem fora de nós; não existe pura e simplesmente, Sendo assim, o Estado, na concepção de Hegel,
necessita de ser concebido. Mas isto tem lugar devido ao tem em si a idéia de representar a totalidade
nosso pensamento. Formando o conceito de gesso, o nosso
pensamento concebe o objeto gesso. Para o idealista lógico
político-social, de encerrar em si o mundo público
o gesso não é, portanto, nem uma coisa real nem um conteúdo e o mundo privado, a restauração da vida ética a
da consciência; é um conceito. O ser do gesso não é, segundo partir da representação grega. Hegel pensa a
ele, nem um ser real nem um ser consciente, mas um ser comunidade no sentido politicamente estatal, ou
lógico-ideal” (HESSEN, 1987, p. 105). seja, por meio da norma jurídica como instrumento
16
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 9-31 FEV. 2009
político a resguardar a liberdade, atingindo sua tratado político submetido aos princípios do
realização num elo comum a todos. O Estado é idealismo. Por outro lado, Bobbio acerta quando
para Hegel, ao mesmo tempo, tanto poder como assinala que Hegel rompe com a construção
função, por sinal uma função política cujo escopo sistêmica do Direito, legada pela escolástica do
é o trato da coisa pública enquanto devidamente Direito Natural, e isso é bastante razoável, pois na
pública, isso para a satisfação do indivíduo, Filosofia do Direito, Hegel procura novos
socialmente. O pensamento de Hegel é herdeiro fundamentos como pressupostos de condição
da Revolução Francesa de 1789 e, como tal, tem realizável e condensa ética e política na perspectiva
na lei, portanto na legalidade, o fundamento da que alenta por muitos anos: o ideal do mundo grego
nação enquanto sociedade organizada, cujo fim é como resgate da síntese do cidadão e do indivíduo
a liberdade como valor máximo de integralidade na retomada histórica, a ingenuidade germânica
humana. não afetada pela abstrata propriedade romana.
Na Filosofia do Direito, Hegel pensa uma Instigante e ao mesmo tempo polêmica, a
ordem de instituições políticas que deveriam posição do pensador húngaro István Mészáros,
funcionar na devida medida em que os interesses ao defender a tese de que o pensamento político
universais sejam garantidos dentro dos hegeliano, em sua formulação, optou pelo capital,
particulares, delegando aos órgãos públicos a tarefa muito embora apresentasse, naquele momento, as
de, em si, resolver o social por meio do político. contradições da sociedade civil burguesa. Para o
Hegel, que para muitos é considerado o “grande discípulo de Lukács, Hegel elaborou sua
aristotélico moderno”, pensa o homem a partir de concepção política em tempos extremamente
uma ordem necessária que o antecede, ou seja, complexos, levando em consideração o seu mo-
sua possibilidade enquanto homem só é possível mento decisivo que foi a Revolução Francesa de
dentro do Estado, a pólis moderna, cuja finalidade 1789. Segundo Mészáros, “o que deve ser
consiste numa eticidade pelo Direito, pelo plano enfatizado aqui é a importância do simples fato de
da normatividade12. que uma filosofia concebida do ponto de vista do
capital, em determinado estágio do desenvol-
Segundo Norberto Bobbio (1908-2004), a
vimento histórico, tenha reconhecido os antago-
posição de Hegel diante do Direito é ambígua, uma
nismos históricos objetivos” (MÉSZÁROS, 2002,
vez que ora é parte do sistema (o Direito abstrato,
p. 55). Isso quer dizer que Hegel tornou-se um
como pensam os juristas), ora é o Direito como
pensador difícil de ser rotulado, pois ao mesmo
sistema, seja no sentido estrito ou na condição de
passo que é temeroso tê-lo por conservador, outra
uma filosofia prática – ordens econômica, política
dificuldade é apresentá-lo como genuíno pensador
e moral (BOBBIO, 1995, p. 57-58). Ainda,
liberal, mesmo Mészáros associando a filosofia
conforme o pensador italiano, a matéria jurídica
hegeliana à burguesia enquanto classe que se
não está constituída organicamente, encontra-se
constituía controladora do Estado moderno.
desmembrada e desarticulada; observa-se o Direito
Todavia, o que importa, decisivamente, é pensar
Privado separado do Direito Público no sentido
Hegel como grande teórico: sempre predisposto a
constitucional. Entretanto, ousando discordar de
acertos, equívocos e contradições, peculiaridades
Bobbio, entendo que essa tal desarticulação é
de quem simplesmente pensa.
proposital, porque Hegel não elabora um tratado
jurídico à guisa de manual didático, mas sim um III.1. Família, sociedade civil e Estado
A Filosofia do Direito, de Hegel, pode ser
tomada como uma tentativa de firmar o princípio
12 “Na ordem natural a cidade tem precedência sobre a
racional como real, na medida em que a sociedade
família e sobre cada um de nós individualmente, pois o
civil é apenas uma etapa que o espírito objetivo
todo deve necessariamente ter precedência sobre cada um
de nós individualmente” (ARISTÓTELES, 1997, p. 15). cumpre até se realizar como Estado: a verdade
Ao chamar Hegel de “aristotélico moderno”, tomo por base que se volta a si mesma, preocupada em ir ao
os seguintes autores: Marcuse (1984, p. 51): “A filosofia encontro da história e dela resgatar a dimensão do
de Hegel é em amplo sentido a reinterpretação da ontologia homem. No seu entendimento, tanto a família
de Aristóteles, liberada esta das distorções do dogma quanto a sociedade civil são dois momentos que
metafísico”; Ramos (1993): “A crítica ao modelo
antecedem o Estado, mas que, na verdade,
aristotélico-hegeliano, exposta por Marx, retrata uma outra
posição teórica em relação ao Estado”. traduzem a idéia de Estado. Etapas as quais o
17
O PENSAMENTO POLÍTICO DE HEGEL À LUZ DE SUA FILOSOFIA DO DIREITO
18
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 9-31 FEV. 2009
fim, o sentido de um grande contrato social, em Estado, o momento em que são superadas as
que a soberania passa a ser exercida pelo poder particularidades da sociedade civil, organizando-
estatal, sem implicações pessoais. Todavia, essa se num organismo vivo e necessariamente lógico-
explicação não é suficiente para dar conta do racional em que o Estado, na perspectiva de
imenso problema que a produção de bens atingiu totalidade, é o universal concreto, centro de uma
depois da Revolução Industrial e da consolidação vida ética tendo o público e o privado como
da burguesia como nova classe que reorganiza os dimensões continuadas pela liberdade de todos:
Estados nacionais e consolida o capitalismo como “A constituição política é, em primeiro lugar, a
modo de produção de bens. A legislação desponta, organização do Estado e o processo da sua vida
por meio das constituições orgânicas e dos orgânica em relação consigo mesmo. Neste
códigos, como novo instrumento para resguardar processo distingue o Estado os seus elementos
novos e velhos interesses, firmando e definindo o no interior de si mesmo e desenvolve-os em
conceito de propriedade privada para proteger a existência fixa” (HEGEL, 1990, p. 250).
circulação de riquezas.
No pensamento de Hegel, a Constituição é a
Com a Revolução Francesa, o corolário de que materialização racional do Estado, o momento em
a nação tem na lei o seu fundamento, ganha que o próprio Estado, em si, torna-se efetivamente
proporção não só de necessidade jurídica como universal concreto dentro de uma dada organização
político-econômica, visto que desse debate está social. A Constituição assume o sentido de
construindo-se aquilo que hoje se costuma chamar determinação do Estado moderno pela plena
Estado de Direito, tendo a norma jurídica configuração de sua legítima existência no limite
dimensão de autoridade suficiente para sobrepor- das relações entre os homens: “a Constituição é
se aos governantes em favor de uma ordem pública racional quando o Estado determina e em si mesmo
voltada aos interesses coletivos. distribui a sua actividade em conformidade com o
conceito, isto é, de tal modo que cada um dos
As novas relações de produção, a expansão da
poderes seja em si mesmo a totalidade” (idem, p.
indústria e do comércio e as garantias essenciais
251). Tinha Hegel entendido que a Constituição
à realização dos negócios burgueses aceleram o
seria um elemento essencial do Estado moderno,
sentido da lei como algo imprescindível no mundo
o que o diferenciaria dos outros momentos desse
moderno. Dentro desta modernidade, ao lado da
conceito ao longo da história, e por isso, no seu
construção do capitalismo, surge, relacionada a
sistema, a Constituição marca o Estado como
tudo isso, a Constituição como elemento
organismo funcionando biologicamente, sendo as
fundamental de personalização política do Estado.
partes naturais subordinadas ao todo em si,
A partir do conceito de Constituição como lei
enquanto os seus supostos poderes são apenas
máxima do Estado, submetendo à sua autoridade,
funções específicas.
surge a tese de que a lei é uma determinação de
ordem jurídico-político-administativa, ora Tanto assim, que Hegel não admite a clássica
comandada pelo espírito burguês. A Constituição separação entre os poderes interpretada, segundo
não é, portanto, um puro princípio da razão alguns, por Montesquieu (1689-1755), pois
jurídica, mas o resultado de interesses político- entende que tal concepção não só dificultaria a
econômicos. unidade do Estado como o fragmentaria. Esse
organismo hegeliano é uma determinação lógica
No entendimento de Hegel, a Constituição
representada pela concretização da idéia, e, nesse
marca um momento de pura racionalidade jurídico-
caso, a concepção de poder de Estado difere
política, o momento em que a liberdade está posta
substancialmente da dos seus contemporâneos,
pela garantia da determinação da idéia até chegar
que pensam de alguma forma na construção de
ao concreto de si, ou seja, pelos instrumentos
um Estado racional e efetivamente comprometido
efetivos da normatividade; por isso afirma que “por
com a nova realidade burguesa: o plano da liberdade
Constituição deve-se entender a determinação dos
atomizante dentro de uma ordem política. Hegel,
direitos, isto é, das liberdades em geral, e a
na percepção dessa nova realidade, parte do
organização de sua efetivação; e que a liberdade
conceito de unidade do Estado e, para tanto, não
política só pode, em todo caso, formar uma parte
confere à clássica separação dos poderes a
dela” (HEGEL, 1995b, p. 311). Segundo Hegel, a
importância que tem dentro do pensamento liberal
Constituição determinaria a racionalidade do
contra o pensamento absolutista.
19
O PENSAMENTO POLÍTICO DE HEGEL À LUZ DE SUA FILOSOFIA DO DIREITO
Conforme Hegel, o Estado não poderia deles, na medida do possível, procurará mostrar-
constituir-se em diversos outros poderes que não se tão independente que, de alguma forma,
fossem o próprio Estado, um poder em si mesmo, redundará na dissolução do Estado como unidade
visto que qualquer unidade em si e para si além do orgânica. Embora guarde racionalidade, a
conceito de Estado levaria sua unidade de soberano concepção da independência dos poderes em si
a diluir-se e não efetivar o seu próprio conceito mesma não garante a harmonia dentro do Estado
que é a concretização da liberdade. Os poderes como também não garante a liberdade como algo
não constituíam nenhuma determinação fora necessário e vital para o indivíduo. Sendo assim,
daquilo que o próprio espírito do Estado atingiu para Hegel, os poderes são, na verdade, diferenças
na história. A divisão dos poderes significaria a substanciais, funções exercidas na lógica do todo
cisão do Estado como elemento histórico, não precedendo às partes.
possibilitando que todos os indivíduos fossem
III.3. Poderes estatais
livres. O Estado moderno é a maturidade histórica
sob a qual os homens organizam-se e superam as A maneira como Hegel constrói a relação entre
particularidades, a fim de nele buscar o universal. as diversas funções de poder de Estado passa,
Logo, o Estado só existe na medida de sua unidade, forçosamente, pela sua lógica política na defesa
de sua universalidade. Pensá-lo dividido em da monarquia constitucional, tendo, no monarca,
poderes é pensá-lo dominado pelas esferas das o instituto da soberania como a própria
particularidades, diluído privadamente. personificação do Estado, a unidade político-
cultural da Alemanha, tendo à frente a liderança
Para Hegel, a concepção da separação dos
prussiana. A argumentação hegeliana tem o sentido
poderes tem em si algo que, devidamente
de validar sua construção lógica, ou seja, ao rejeitar
entendida, é importante no sentido da determinação
a tese da independência entre os poderes, Hegel
da liberdade pública, mas que, para isso, é preciso,
rejeita a ilogicidade de como ela é apresentada,
sobretudo, compreender que tal separação não
visto que o seu pensamento político em si sustenta-
pode passar de um princípio de distribuição de
se na sua lógica como um corolário da razão:
funções, não comprometendo a unidade soberana
“Divide-se o Estado político nas seguintes
do Estado. Embora admirador de Montesquieu, a
diferenças substanciais: a - Capacidade para definir
quem confere importância capital quanto à
e estabelecer o universal – poder legislativo; b -
pesquisa das constituições, Hegel entende divisão
Integração no geral dos domínios particulares e
de poderes como desconcentração de funções
dos casos individuais – poder de governo; c - A
estatais: “Entre as concepções correntes, dever-
subjectividade como decisão suprema da vontade
se-á mencionar a da necessária separação dos
– poder do príncipe. Neste se reúnem os poderes
poderes. Poderia ser ela uma concepção muito
separados numa unidade individual que é a cúpula
importante, pelo que representa de garantia da
e o começo do todo que constitui a monarquia
liberdade pública, se fosse tomada no seu
constitucional” (idem, p. 253).
verdadeiro sentido [...]. É nela que se encontra o
elemento da determinação racional. O princípio A pretensão de Hegel funda-se na perspectiva
da separação contém, com efeito, como elemento de que o Estado consiga manter-se na sua
essencial, a diferenciação, a razão na realidade” unicidade, tanto assim que pensa a monarquia
(idem, p. 252). como elemento político consistente desse projeto.
Hegel insiste no ponto de que a tese da separação
Na relação que Hegel estabelece entre realidade
dos poderes como se apresenta pela discussão de
e pensamento, isto é, a realidade como produto
seus defensores, que pensam saber o que dizem
daquilo pensado, a separação dos poderes afetaria
pelo entusiasmo, não difere, em si, das outras
de imediato a lógica do conceito, pois nisso consiste
representações que estabelecem no Estado uma
todo princípio de universalidade. A separação dos
verdadeira disputa entre os poderes, quando na
poderes, que pensa obstruir desconfianças e
verdade o que se deseja é que uma função seja
arbítrios, na verdade cumpre o papel de
exercida em plena relação de conjunto, uma com
particularização do Estado, visto que sua soberania
a outra, ou melhor, que todas as atividades de poder
repousa numa unidade realizada no Estado como
tenham como princípio o conceito de Estado em
concreto histórico. A separação entre os poderes
cada momento que atue como tal. Cada função
acirra as relações entre os mesmos, e cada um
exercida deve representar a idéia de Estado e não
20
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 9-31 FEV. 2009
21
O PENSAMENTO POLÍTICO DE HEGEL À LUZ DE SUA FILOSOFIA DO DIREITO
serviços administrativos como os judiciários estão do Estado e de suas determinações” (idem, p. 273).
centralizados no interesse do universal e, dessa
O interesse do Estado é sempre de fundo
forma, vinculados diretamente à soberania como
universal, com isso o poder governativo não pode
expressão máxima do Estado. A execução da justiça
operar de outra maneira senão como expressão
prende-se, politicamente, ao fato de que toda
soberana do Estado, e tal soberania visa, em si, à
decisão, mesmo que tenha caráter particular, deva,
consecução de fins últimos na superação das
em princípio, estar em consonância com o espírito
diferenças particulares. O poder governativo não
universal, que, sem dúvida, justifica o fim do
pode ser instituído e firmado a partir de princípios
Estado, a natureza deste e a sua existência como
próprios, seus fundamentos só podem e devem
instância ideal na realização do Direito.
ser os mesmos fincados no e pelo poder soberano,
Aos olhos do pensamento político ao que o poder legislativo, segundo Hegel, é
contemporâneo, qualquer subordinação de um constituído pelas: “Leis enquanto tais, na medida
poder a outro seria vista como um forte atentado em que elas carecem de determinações
ao Estado de Direito, uma violenta ruptura com complementares e pelos assuntos interiores que
os princípios firmados pela democracia são, graças ao seu conteúdo, completamente
representativa, sobretudo no que concerne à gerais. Este poder faz parte da Constituição que
justiça, que tem no poder Judiciário uma espécie ele mesmo supõe e que, por conseguinte, está fora
de corolário do liberalismo, uma salvaguarda dos das determinações que provêm de si mesmo,
direitos individuais. Importa ressaltar que Hegel embora o seu ulterior desenvolvimento dependa
atrela a administração da justiça ao poder do aperfeiçoamento das leis e do carácter
governativo, por considerar tal serviço um ato da progressivo da organização governamental geral”
administração pública e não um serviço particular (idem, p. 278).
destinado ao particular. A administração da justiça
No sistema político hegeliano, o poder
tem para Hegel um caráter público de máxima
Legislativo não se determina em si como um poder
relevância, e por isso está vinculada ao poder
soberano, a partir daquilo que se convencionou
governativo sob orientação direta da universalidade
chamar de “autonomia dos poderes”, pois o aquele
do soberano, pois o seu conteúdo repousa na
poder tem como figura a totalidade da sociedade
soberania do Estado. Nesse sentido, a
civil. Nele imperam as relações de subjetividade, e
administração da justiça assume, no pensamento
por isso dele só podem emanar decisões que,
hegeliano, dimensão estatal primordial, e não,
mesmo gerais, não constituem em si a
como afirmam muitos, um aspecto conservador
universalidade, o que só pode dar-se na soberania
do seu pensamento político.
do Estado, pela representação do soberano, do
Pode-se afirmar que o poder governativo monarca. Sua eficácia enquanto momento do
assume a processualidade da administração conceito de Estado atrela-se ao poder governativo,
pública, cujos serviços públicos não são distintos porque é esse que tem por fim a consecução do
em si e para si. O serviço público pensado na serviço público por meio da burocracia, da classe
Filosofia do Direito tem a especificidade única estatal composta por indivíduos extraídos da
de garantir o universal para todos aqueles que classe média. Os três momentos do Estado,
vivem no Estado. Serviço público tem natureza pensados por Hegel, estão intrinsecamente
pública e, sendo assim, não pode sofrer solução submetidos à idéia do Direito, ao concreto plano
de descontinuidade, deve estar atrelado ao íntimo de uma ordem ideal de se efetivar o Estado como
interesse do Estado na prestação de superação das totalidade da vida moderna.
particularidades e arbitrariedades. A atomização do
IV. A BUROCRACIA: FUNÇÃO DE ESTADO
poder levaria à extinção daquele Estado
politicamente constituído para realizar o plano do Na Filosofia do Direito, Hegel não trata a
Direito, a efetivação da liberdade. Portanto, Hegel burocracia dentro de um capítulo à parte ou
destaca: “Assim como a sociedade civil é o campo mesmo em longos parágrafos. Desenvolve o
de batalha dos interesses individuais de todos problema no correr das exposições dos parágrafos
contra todos, assim aqui se trava o conflito entre concernentes aos poderes governativo e legislativo,
este interesse geral e os interesses da comunidade na tentativa de legitimar a superioridade dos
particular e, por outro lado, entre as duas de servidores do Estado sobre qualquer outro serviço
interesses reunidas e o ponto de vista mais elevado promovido fora do universal concreto, e apontar
22
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 9-31 FEV. 2009
que o único titular do universal é o Estado na figura materialização da soberania que se processa por
de seus agentes submetidos ao espírito do meio de indivíduos públicos.
monarca. Destaque-se que o caráter da burocracia,
O Estado, nas suas atribuições, não pode contar
para o filósofo alemão, assenta-se na racionalidade
com a boa vontade das pessoas e muito menos
do Estado e está diretamente ligado ao espírito da
ficar refém dos cavaleiros andantes, mas instituir
Revolução Francesa e às estruturas de
um corpo de indivíduos que possa exercer
funcionamento do Estado prussiano, que, ao longo
regularmente funções rotineiras de interesse do
do século XVII e em diante, desde a reforma de
universal no seio da sociedade civil, pela ação do
Frederico Guilherme I por meio da Resolução de
poder público. Dessa forma, “o serviço do Estado
1653, instituiu profundas mudanças na Prússia por
exige o sacrifício das satisfações individuais, e
meio de uma forte centralização administrativa,
arbitrárias, das finalidades subjectivas, mas
levada adiante por seus sucessores (ANDERSON,
reconhece o direito de, no cumprimento do dever,
1984, p. 280); por conseguinte, longe daqueles
e só nele, obter suas satisfações” (idem, p. 276).
ideais contidos no espírito revolucionário de
Claro que, qualquer argumento que se tenha em
178913.
prol da burocracia não pode ignorar seu grande
Por fim, o espírito da burocracia confunde-se intento de manter estável o funcionamento
com o espírito do Estado, porque, para Hegel, “no orgânico das instituições do Estado, e para que
funcionamento do governo, dá-se uma divisão de isso ocorra a contento, é necessário o mínimo de
trabalho. Deve a organização das autoridades padronização dos serviços, pagamento em espécie
satisfazer a exigência, difícil embora formal, de, aos funcionários, e uma relação hierárquica das
em baixo, a vida social, que é concreta, ser funções, em que exista comando e obediência no
governada de um modo concreto [...]. De uma propósito de se chegar à “vida social, que é
natureza objectiva para si são os actos de governo; concreta, governada de um modo concreto”.
pertencem ao que já está decidido de acordo com
Assim, na importância da hierarquia dentro do
a sua substância e devem ser executados e
conjunto das considerações de Hegel, tem-se,
realizados por indivíduos” (HEGEL, 1990, p. 240,
objetivamente, que o seu papel visa coibir abusos
274).
e injustiças por aqueles que, detendo qualquer
A existência da burocracia está determinada função pública, arroguem-se no direito de
pela natureza do Estado, isto é, o Estado como tal extrapolar de sua determinada obrigação, pois
e pensado por Hegel é a superação da sociedade estabelece um sistema de relação hierárquica, em
civil naquilo que para o filósofo significa o reino que funcionalismo desempenhe suas atribuições
das individualidades, de todos contra todos, isso baseado na competência e na responsabilidade
para usar uma expressão hobbesiana que Hegel direta de seus cargos, submetidos à lei, ao princípio
toma como um axioma em defesa de um Estado do Direito: o plano da normatividade: “A
que compreenda seu papel de abarcar os indivíduos preservação do Estado e dos governados contra o
para si. Nesse sentido, a burocracia assume abuso do poder cometido pelas autoridades e pelos
materialmente a existência do Estado como funcionários, imediatamente consiste, por um lado,
realidade determinada por um conjunto de funções na hierarquia e na responsabilidade e reside, por
e atribuições regulares em que só o poder público outro lado, no reconhecimento das comunas e
por meio do seu pessoal pode exercer. É pela corporações impeditivo de que o arbítrio individual
burocracia que o Estado torna-se uma realidade se confunda com o exercício do poder entregue
concreta anunciando aos seus membros a aos funcionários, assim completando, vindo de
disponibilidade dos serviços públicos de forma baixo, a vigilância que, vinda de cima, é insuficiente
plena, constituindo, assim, “a vida social, que é quanto aos actos particulares de administração”
concreta, ser governada de um modo concreto”. (idem, p. 277).
De um modo objetivo, a burocracia para Hegel é a
Nessa passagem, Hegel aponta a importância
da burocracia e de sua relação com o Estado
13 Item V da Declaração de 1793: “Todos os cidadãos são
moderno, sobretudo aquele surgido após os
igualmente admissíveis aos empregos públicos. Os povos escombros da Revolução Francesa de 1789. A
livres não conhecem outros motivos nas suas eleições a não
burocracia, pensada como metáfora, é a porta de
ser as virtudes e os talentos” (PINHEIRO, 1983, p. 149).
entrada do Estado moderno. Nela o que se almeja
23
O PENSAMENTO POLÍTICO DE HEGEL À LUZ DE SUA FILOSOFIA DO DIREITO
24
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 9-31 FEV. 2009
25
O PENSAMENTO POLÍTICO DE HEGEL À LUZ DE SUA FILOSOFIA DO DIREITO
Inversamente, para o filósofo alemão, a ficavam receosos (como ficam até hoje) com o
propriedade não constitui um princípio da natureza, significado real da democracia: igualdade para a
pois esta não é livre (HEGEL, 1990, p. 65). A manifestação da liberdade, isso porque a liberdade
propriedade é uma das tantas mediações não pode ser um pressuposto da igualdade. No
encontradas por Hegel para a expressão da pessoa sentido da lógica associativa, a igualdade é o
que é na verdade sujeito, que em si mesmo é substantivo para que eu e o outro possamos
abstração, e por isso a propriedade assume na sua externar sentimentos e opiniões no mínimo
filosofia política um papel de efetivar o indivíduo respeitadas19.
na sociedade civil burguesa, a dignificá-lo por meio
Muitos liberais do século XIX não defenderam
da manifestação de algo que o apresente de forma
a democracia como necessidade vital para uma
concreta. Assim, a propriedade em Hegel, não
associação politicamente justa. Preocupavam-se
sendo base de nenhum sistema político, dá-se como
sobremaneira com a liberdade: para negociar,
esteio para que o homem manifeste-se
possuir propriedade e poder contratar como ato
politicamente no seio da sociedade como algo de
de inteira disposição de si mesmo. Para um liberal
si e não como algo em si alheio à sua vontade.
clássico do século XIX, a igualdade era um
Para Hegel, os homens não se organizam em
postulado estranho ao liberalismo, que deveria ser
sociedade para usufruir a propriedade sob garantias
combatido, pois contrariava essencialmente os
públicas, mas sim na dimensão pôr a termo a
interesses da representação parlamentar da época,
liberdade. Em síntese, a propriedade em Locke é
que se fundava no voto restrito àqueles que
uma manifestação da natureza sob a qual os
possuíam propriedade.
homens por bem deveriam viver, ao passo que
em Hegel é uma determinação do espírito para que Por ser um grande leitor dos clássicos, atento
os homens vivam em liberdade (idem, p. 67). aos escritos políticos de sua época e arguto
observador dos homens em sociedade, Hegel não
Entretanto, para que a propriedade torne-se
poderia ignorar a democracia como um elemento
privada, isto é, torne-se de uma pessoa, é
que, após a Revolução Francesa, tomou uma
necessário que, além da vontade de se apossar da
dimensão de ordem fundamental nos debates
coisa (animus), haja, por parte desse interessado,
políticos de então. Aliás, Hegel sempre viu com
a possessão da coisa, e que, em contrapartida,
reservas a democracia pensada única e
não haja nenhum impedimento interposto por
exclusivamente como sistema de votos.
outrem, ou seja, que outrem não manifeste
Compreendia que uma democracia assim não daria
também o interesse de possuir a mesma coisa.
conta das necessidades políticas de uma Alemanha
Nessa relação de princípios, parece que Hegel toma
dividida. Segundo Herbert Marcuse (1898-1979),
de Locke semelhante argumento: “Ninguém pode
em sua obra Razão e revolução, Hegel escreveu
fechar qualquer parte do terreno ou dele apropriar-
sua Filosofia do Direito em defesa do Estado,
se sem o consentimento de todos os membros da
isso porque considerava que muitos movimentos
comunidade” (LOCKE, 1973, p. 54).
pseudodemocráticos alemães20 representavam
VI. O PROBLEMA DA REPRESENTAÇÃO ameaça maior à liberdade do que as próprias
POLÍTICA E A DEMOCRACIA
Não se pode esquecer que a associação entre 19 “Um princípio fundamental da forma democrática de
liberalismo e democracia foi um processo em parte governo é a liberdade – a liberdade, segundo a opinião
atribuído às lutas que os próprios liberais travaram dominante, somente pode ser desfrutada nesta forma de
contra os socialistas no século XIX (BOBBIO, governo, pois diz-se que ela é o objetivo de toda a
2000, p. 323), isso porque entre liberalismo e democracia. Mas um princípio de liberdade é governar e ser
democracia nunca houve uma relação natural governado alternadamente, pois o conceito popular de
justiça é a observância da igualdade baseada no princípio da
como hoje se deseja passar. Embora para os
maioria, e não no do mérito, e se este é o conceito de justiça
liberais a democracia sempre tenha sido vista como dominante, a maioria deve ser necessariamente soberana, e
uma forma governativa fundamentada na liberdade, a decisão da maioria deve ser final e constituir a justiça,
seus receios estavam intimamente ligados ao fato pois costuma-se dizer que cada cidadão deve ter uma
de que o preceito de liberdade estaria intimamente participação igual” (ARISTÓTELES, 1997, p. 204).
ligado a um outro, tão ou mais importante: a 20 Burschenschaften (agremiações estudantis) e os
igualdade. Por isso que os liberais do século XIX Turnvereine (clubes de ginástica) Em nome da liberdade e
26
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 9-31 FEV. 2009
autoridades constituídas (MARCUSE, 1978, p. do homem para si, dentro de suas fileiras,
171), que, a exemplo do Terror instituído pelo entretanto para isso, Hegel julga que os membros
Comitê de Salvação Pública na França do Estado são positivamente seus membros
revolucionária, invertia o universal pelo particular quando participam dele por meio de uma ordem
(ALVES, 1983, p. 156). Hegel não vislumbrou na (determinação objetiva)21, membros enquanto
democracia o que a monarquia proporcionava-lhe: espécie e não enquanto gênero, pois em sua
o princípio da unidade pela autoridade do monarca corporação atingem o universal. O que Hegel julga
no projeto de efetivação do universal contra o verdadeiramente é que a monarquia em si é uma
particular, isso como razão histórica. Nesse caso, determinação histórica germânica e, por fim, o
pondera: “Diz-se que todos os indivíduos isolados elemento decisivo na unificação político-
deverão participar nas deliberações e decisões econômica da Alemanha, o que ocorrerá em 1871
sobre os assuntos gerais do Estado porque são por essas mesmas forças.
membros do Estado, os assuntos do Estado a todos
Em uma passagem da Filosofia do Direito,
dizem respeito, todos têm o direito de se ocupar
Hegel aponta claramente que a opinião de muitos
do que é o seu saber e o seu querer. Tal concepção,
não significa necessariamente a detenção do
que pretende introduzir no organismo do Estado
universal, mas, sim, em muitos casos, apenas o
o elemento democrático sem qualquer forma
sentido de particularidade, o sentido de uma
racional – obliterando que o Estado só é Estado
opinião sobre assuntos que pedem inteiro
por uma forma racional –, afigura-se muito natural
conhecimento e profundidade. Não são os
porque parte de uma determinada abstração: serem
indivíduos isolados com opiniões isoladas que
todos membros de um Estado, e porque o
dinamizam a sociedade civil, mas objetivamente a
pensamento superficial não sai das abstrações [...].
representação por meio dos mecanismos das
O membro do Estado é membro de tal ou tal
ordens, das corporações, das classes, da
ordem, e só com esta determinação objetiva poderá
delegação política. Segundo Rosenfield, não se
ele ser considerado dentro do Estado” (HEGEL,
trata de acusar Hegel de ser contra a democracia.
1990, p. 288-289).
Em seu entendimento, o que Hegel nega-se a
Com isso, Hegel afirma claramente que a aceitar é ainda a forma não-racional que apresenta
introdução do “elemento democrático sem qualquer a democracia, isto é, generalidades abstratas22.
forma racional”, no interior do Estado, não o Mais que isso, é a sua origem que repousa nas
transforma em algo melhor, e possivelmente torná- abstrações particulares, nos interesses puramente
lo-ia pior, isso porque o Estado só é Estado em pessoais, ignorando que em uma organicidade
razão de sua racionalidade, e de alguma maneira estatal o que se determina é o universal, não como
os defensores do “elemento democrático” soma de partes, mas como estas no seio do todo,
esquecem-se ou ignoram esse detalhe. Hegel visto este logicamente preceder às partes.
considera a democracia uma abstração que não
Segundo Hegel, a representação parlamentar
tem realidade histórica, não tem relação de
dá-se por competência dos interesses da
concretude para gerar instituições voltadas à
particularidade dentro da universalidade, ou
satisfação dos interesses da universalidade
melhor, não se trata de uma representação a partir
anunciada pela idéia desenvolvida pelo Estado. Essa
idéia posta em processo pelo Estado é o ingresso
21 “A participação orgânica dos indivíduos na vida política
tornou-se uma determinação da Idéia do Estado como
vontade substancial. A participação atomística dos
da igualdade entre os homens, o povo estadunidense
indivíduos, pelo contrário, é a determinação de uma filosofia
constituiu-se livremente em uma república com
que reduz o Estado a um contrato social” (ROSENFIELD,
representação pelo voto. Em nome de tais princípios, o
1983, p. 250).
povo francês derrubou a monarquia e instituiu uma república
que pudesse racionalmente levar adiante os mais simples 22 “O problema não é então afirmar que Hegel é contra a
direitos dos homens. Paradoxalmente, em nome dos mesmos democracia, mas, pelo contrário, trata-se de assinalar que
princípios, a pequena burguesia alemã, após a libertação ele é adversário de sua forma ainda não racional [...]. A
dos estados alemães do jugo francês, através de argumentos participação de todos nos assuntos públicos só tem lugar
liberais e democráticos, propunha ódio aos judeus, através de uma mediação que garanta efetivamente a
católicos, franceses, e fundava o progresso alemão num expressão política das relações da sociedade civil-burguesa”
salvador do espírito germânico etc. (idem, 1983, p. 256).
27
O PENSAMENTO POLÍTICO DE HEGEL À LUZ DE SUA FILOSOFIA DO DIREITO
28
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 9-31 FEV. 2009
29
O PENSAMENTO POLÍTICO DE HEGEL À LUZ DE SUA FILOSOFIA DO DIREITO
sociedade civil no centro do Estado, apontando o contemporâneo, sobretudo nos últimos trinta anos,
poder Legislativo como o eixo da universalidade, em que cada vez mais o poder Legislativo perde,
mas impedindo, ao mesmo tempo, o acesso de por motivos diversos, o seu papel de legislar, em
todos, quando barra o número (povo) enquanto favor do poder Executivo, cabendo a este o
elemento democrático. Sustenta o Estado como o incremento do universal no seio das
reino da reconciliação e, ao menor piscar de olhos, particularidades. Por isso, estando certo ou não,
sustenta a burocracia como o espírito do Estado. constata-se que ao poder Legislativo ficou
Enfim, Marx assinala que, ao separar moral e reservado o papel de moldura constitucional. O
Estado, Hegel apresenta a moral do Estado poder Executivo, por outro lado, trouxe para si a
moderno: a ilusão racional em torno do Direito tarefa de ser o grande poder no interior das
Privado. É por esse conjunto de fatores que Marx instituições políticas, constituindo-se na própria
apela para o sentido de inverter as proposições representação da soberania. Portanto, nada mais
hegelianas, isso por também perceber que, hegeliano do que a atualidade dos Estados
logicamente, as construções hegelianas estão, a nacionais.
princípio, montadas numa inversão a priori, ou
A Filosofia do Direito busca, por meio de suas
melhor, Hegel não olha a materialidade como ela
especulações, prever que o plano do Estado –
é, por isso é preciso uma metodologia da
portanto, o plano do conceito do Direito – é a
desinversão do ideal pelo real. A presença do real,
liberdade como meio-fim por meio da
para Hegel, converte-se em idealizações, porque
normatividade, enquanto garantias político-
só essas são reais e a experiência não é condição
jurídicas, tomando o indivíduo como ser social.
de universalidade, o que faz as abstrações
Conclui-se, assim, que o pensamento político de
constituírem-se num plano concreto.
Hegel, por mais paradoxal que seja, ainda é uma
No entanto, mesmo sendo relevante o conjunto leitura consistente contra os esforços atomizantes
das oposições de Marx a Hegel, ao ler-se A do pensamento liberal, que insiste, apesar da
Filosofia do Direito, levando em consideração o tragédia social contemporânea, em ser a melhor
critério de apatia, por força da observação, chega- construção política para se pensar a realidade e
se à conclusão de que seu pensamento parece promover o ideal de uma sociedade, no mínimo,
retratar não só o Estado moderno, mas também o inteligente.
Wellington Trotta (wtrotta@ig.com.br) é Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), doutorando em Filosofia na mesma instituição e Professor da Universidade Estácio
de Sá (Unesa).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, J. L. 1983. Rousseau, Hegel e Marx. BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N. & PASQUINO,
Percursos da razão política. Lisboa : Livros G. (orgs.). 2000. Dicionário de política. V. I.
Horizonte. 10ª ed. Brasília : Universidade de Brasília.
ANDERSON, P. 1980. Passagens da antiguidade DURANT, W. 1996. A história da filosofia.
ao feudalismo. Porto : Afrontamento. Coleção. “Os pensadores”. São Paulo : Nova
Cultural.
_____. 1984. Linhagens do Estado absolutista.
Porto : Afrontamento. FREITAG, B. 1992. Itinerários de Antígona : a
questão da moralidade. São Paulo : Papirus.
ARISTÓTELES. 1973. Ética, a Nicômaco.
Coleção. “Os pensadores”. São Paulo : Abril. GIORDANI, M. C. 1985. História dos reinos
bárbaros. Petrópolis : Vozes.
_____. 1997. Política. Brasília : UNB.
HAMILTON, A.; JAY, J. & MADISON, J. 1993.
BOBBIO, N. 1995. Estudos sobre Hegel. São
Os artigos federalistas, 1787-1788. Rio de
Paulo : Brasiliense.
Janeiro : Nova Fronteira.
30
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 9-31 FEV. 2009
31
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 189-193 FEV. 2009
RÉSUMÉS
189
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 181-185 FEV. 2009
ABSTRACTS
181