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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS


CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

DANIELLE MEDEIROS

O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO INTÉRPRETE DA


CONSTITUIÇÃO: OS LIMITES DA DECISÃO JUDICIAL

Florianópolis
2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO INTÉRPRETE DA


CONSTITUIÇÃO: OS LIMITES DA DECISÃO JUDICIAL

Monografia submetida ao Centro de Ciências


Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina
como requisito para obtenção do título de Bacharela
em Direito.

Orientador: Professor Doutor Matheus Felipe de


Castro

Florianópolis
2019
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AGRADECIMENTOS

Antes mesmo de iniciar o presente trabalho, ainda quando estava elaborando o projeto
de conclusão de curso, o medo de não conseguir completar este desafio tomava conta de mim.
Nesses momentos, pensava em Deus, e lhe pedia forças para completar minha jornada na
graduação, sabedoria para lidar com os infortúnios que surgiram no meu caminho e humildade
para saber tratar as vitórias que angariei sem espera-las. Hoje, ao observar que consegui passar
por mais uma etapa de minha vida, agradeço por Ele ter ouvido minhas preces, ter cuidado de
mim nos momentos de fraqueza e me mantido em terra firme nos momentos de glória.
A graduação é o sonho de todo jovem que almeja um futuro melhor para si e para sua
família. E ter a oportunidade de cursar uma das melhores Universidades do país é muito mais
do que a realização de um sonho, mas sim o reconhecimento do esforço e dedicação de várias
pessoas envolvidas neste processo. No meu caso, de sete pessoas em específico.
Primeiro, uma jovem de 19 anos, do interior do Estado, que estudou a vida toda em
escola pública, abdicou de todos os lazeres que podia ter para se dedicar única e exclusivamente
aos estudos, saia de casa as 17 horas para pegar ônibus, viajava cerca de 83 quilômetros, todos
os dias, para fazer curso pré-vestibular, e chegava em casa à meia noite, comia algo
rapidamente, tomava banho e dormia, para no dia seguinte fazer tudo de novo. Até que a
aprovação veio. E a matrícula não pode ser feita porque os documentos para assumir a vaga
pelas cotas censitárias não foram aprovados. Mais um ano estudando, dessa vez em casa. Com
organização, persistência, e um sonho maior do que qualquer outra coisa que pudesse existir, a
aprovação veio novamente, dessa vez na classificação geral: cursar Direito na Universidade
Federal de Santa Catarina. À essa jovem, eu agradeço por não ter desistido, mesmo quando tudo
deu errado, mesmo quando ninguém acreditava que seria capaz de seguir adiante.
Depois, a primeira pessoa que soube da aprovação: minha avó Amélia. Minha Nona,
que hoje já não está mais entre nós em pessoa. Toda vez que eu chegava de viagem, ela me
recebia de braços abertos, sorriso no rosto, e um belo de um café na mesa. Queria poder lhe dar
uma rosa de homenagem, no dia da formatura, mas não conseguirei, pois a senhora já está em
outro plano. Ainda assim, sinto sua presença quando estou triste, desanimada ou ansiosa. À
senhora, Nona, agradeço por ter feito parte dos momentos mais felizes da minha vida, por estar
comigo até hoje, por nunca ter me abandonado, e por ainda cuidar de mim, de onde quer que
esteja.

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Passar cinco anos longe de casa, sozinha, não é tarefa fácil. Mas acredito que passar
cinco anos longe de sua filha mais nova, sem vê-la todos os dias, sem cuidar dela quando está
doente, sem conversar sobre o seu dia todos os dias, seja infinitamente mais difícil. Minha mãe,
Laudania, e meu pai, José, que o digam. Acho que me deixar sozinha em uma cidade
completamente estranha foi uma das coisas mais difíceis que eles já fizeram. A preocupação
em saber se cheguei bem em casa, se estou num local seguro, se minha cama é confortável, se
estou me alimentando direito, se minha saúde está boa. Ser pai e mãe não é para qualquer um.
Aos meus pais, agradeço por sua dedicação, a vida toda, por me proporcionarem a melhor
infância, a melhor educação, as maiores experiências de vida, por serem os meus maiores
exemplos e fonte da minha mais pura admiração. Por terem respeitado meus sonhos, terem
confiado em minha perseverança e hoje estarem comemorando mais uma vitória comigo. Não
sei se sou digna de seus orgulhos, mas tudo o que fiz, aquilo que sou e quem desejo me tornar
sempre teve como razão poder fazer valer a pena todo o sacrifício que se submeteram por mim.
Por falar em orgulho, aquele que é o meu maior: ser irmã da pessoa mais iluminada do
mundo. Com ela não tem tempo ruim, apesar de às vezes ela ser um pouco brava. Mas com
certeza sem o seu apoio, sem seus puxões de orelha, sem suas palavras nos momentos mais
difíceis, sem os seus conselhos, sua sabedoria, sua paciência e também sua dedicação e seu
sacrifício, nada do que tenho ou sou hoje existiria. À minha irmã, Raquelli, agradeço por ter
estado sempre do meu lado, me corrigindo quando eu estava errada, mas me defendendo mesmo
quando às vezes eu nem merecia. Além de nossos pais, sua história de vida me motiva a tentar
ser pelo menos metade da mulher que é, no aspecto profissional, pessoal ou familiar. Tenho
muito orgulho de ter crescido ao seu lado, e de continuar crescendo contigo, através de seus
exemplos e sua paixão pela vida.
Dos sete mencionados, faltaram dois, que são as minhas joias mais preciosas, os donos
do meu coração, os quais me ensinaram a ter mais paciência, a ser mais delicada, a encarar a
vida de forma mais real, mas que também trouxeram mais ternura e fofura para uma pessoa que
não sabia como expressar seus sentimentos. Meus afilhados, Guilherme e Laura, a vocês
agradeço por terem trazido mais luz à minha vida, por terem me ensinado a ter mais
responsabilidade em nossas atitudes, pois podemos ser os exemplos de uma geração, mas
também por eternamente me lembrarem que a vida não é só feita de momentos de seriedade,
que às vezes a gente tem que parar para se divertir, deixar nossa criança interior brincar.
Por fim, agradeço aos meus amigos e demais parentes, por terem tido paciência comigo
nas lamentações do dia a dia, nas discussões acerca de política nos grupos de Whatsapp, por

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terem também me aconselhado nos momentos de dúvida, terem tornado minha passagem pela
graduação mais leve e divertida.
Agradeço, também, ao meu orientador, Professor Doutor Matheus Felipe de Castro, por
todo o ensinamento compartilhado e também pela paciência em ter aguardado a conclusão desse
projeto desde o convite para me orientar, ainda na sexta fase do curso.
Muito obrigada!

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Ainda que os teus passos pareçam inúteis, vai
abrindo caminhos, como a água que desce
cantando da montanha. Outros te seguirão.

Antoine de Saint-Exupéry

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RESUMO

A presente monografia tem o objetivo de estudar a formação das Democracias atuais, levando
em conta o desenvolvimento das teorias de Estado clássicas aplicadas ao Constitucionalismo
vigente, para entender de que forma a tripartição dos poderes definida por Montesquieu vem
sendo utilizada na prática. Procuraremos entender, também, se este modelo tripartite vem sendo
seguido conforme fora idealizado, principalmente quando nos defrontamos com uma atuação
cada vez mais ativista do Poder Judiciário, que utiliza ferramentas externas ao Direito para
embasar suas decisões, transformando um sistema estatal de Civil Law numa mistura entre
aplicação subjetiva da lei e vinculação à precedentes. Por fim, analisaremos casos práticos
recentes do Supremo Tribunal Federal nesta atuação inovadora, para verificarmos de que forma
o ativismo judicial encontrado nos tribunais brasileiros atingem a sociedade, indo de encontro
com os próprios preceitos basilares da Democracia, demonstrando um agir completamente
controverso à constitucionalidade vigente, uma vez que não possui legitimidade para atuar de
forma direta na representação das vontades do povo.

Palavras-chave: Poder Judiciário. Ativismo judicial. Tripartição dos Poderes. Democracia.


Constituição.

ABSTRACT

The present monography has the objective of understanding how current Democracies are
shaped, taking into account the State classic theories applied to the ongoing constitutionalism,
to comprehend in what way Montesquieu’s division of powers has been used in practical
manners. In addition, we intent to understand if this model has been used as idealized, mainly
when confronting it to the increasingly activist operation of the Judicial Power, who uses
external tools from law as ground for their decisions, transforming Civil Law state-owned
system in a mix of subjective application of law and precedents association. At last, we will
analyze recent practical cases from Federal Court of Justice, who used this innovative operation,
in means of verifying in what way the judicial activism found in Brazilian courts affect society,
encountering the basic principles of Democracy and evidencing a controversial act towards the
actual constitution, once it has no legitimacy to operate directly in representing people’s desires.

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Key-Words: Judicial Power. Judicial Activism. Division of Power. Democracy. Constitution.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas

ADO – Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão

HC – Habeas Corpus

LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais

MI – Mandado de Injunção

STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 13
CAPÍTULO I - ESTADOS REPRESENTATIVOS E O PAPEL DO PODER LEGISLATIVO
.................................................................................................................................................. 16
1.1. Os limites da decisão judicial num Estado de funções tripartidas: uma abordagem
inicial .................................................................................................................................... 17
1.2. O Desenvolvimento das teorias de Estado Democrático e o Conceito de separação de
poderes .................................................................................................................................. 22
1.3. Representação e Poder Legislativo: legitimação como porta-voz do povo ................... 33
CAPÍTULO II - O PODER JUDICIÁRIO E SUA CONJUNTURA FUNCIONAL ............... 40
2.1. O Poder Judiciário como intérprete constitucional: o controle de constitucionalidade
como função precípua do órgão jurisdicional ....................................................................... 43
2.2. Interpretação judicial e discricionariedade: as atuais formas de se fazer justiça no
sistema Judiciário .................................................................................................................. 48
2.3. A problemática do decisionismo e a fuga às funções básicas do órgão jurisdicional.... 56
CAPÍTULO III - AS CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS DO INTERVENCIONISMO
JUDICIAL ................................................................................................................................ 60
3.1. A mitigação do princípio da presunção de inocência: construção de princípios a partir
de juízos de valor .................................................................................................................. 64
3.2. Criminalização da Homofobia: um Judiciário que cria leis penais “de ofício” ............. 73
3.3. O Poder Judiciário brasileiro do século XXI: quem pode explica-lo? .......................... 79
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 84
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 88

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INTRODUÇÃO

Desde o início das formações sociais, a humanidade procura estudar e entender a


maneira com que os mais variados tipos de governo surgem, e como eles atuam com relação ao
povo e ao seu próprio poder. Tais preocupações avançaram conforme a evolução das sociedades
e do modo de pensar o poder do Estado, procurando sempre encontrar a melhor maneira de
relacionar Governo e sociedade, de acordo com os anseios e necessidades apresentadas por esta,
com o passar dos tempos.
Nos dias de hoje é praticamente uma unanimidade considerar que a melhor relação entre
Estado e povo provém da forma de governo democrática, que permite uma atuação mais direta
da comunidade perante o poderio estatal, colocando a soberania das decisões, num aspecto
amplo, à sociedade, sem retirar, contudo, a autoridade governamental da figura dos
governantes. Nesse sentido, teorias de desconcentração de poder acabaram adquirindo grande
importância no desenvolvimento dos governos democráticos, notadamente os preceitos de
divisão de poderes entre os entes estatais, que tiveram na figura de Montesquieu seu maior
representante e sistematizador.
Entretanto, denota-se que mesmo a famosa forma de governo democrática baseada na
superioridade da Constituição e embasada na tripartição dos poderes estatais não existe mais da
maneira com que foi concebida, e não se explica a partir das teorias clássicas que lhe
fundamentaram em seu início, principalmente no âmbito brasileiro, em que fenômenos sociais
e políticos influenciaram na atual manifestação governamental que se apresenta.
Nota-se essa mudança de atuação do governo a partir da alteração de protagonismo dos
poderes estatais, onde percebe-se uma maior atenção às ações do Poder Judiciário, em
detrimento da atuação dos demais poderes estatais, principalmente do Poder Legislativo, o qual
possui interferência direta da sociedade em sua formação e manifestação. Além disso,
vislumbra-se uma atuação única do poder judicante que se mostra cada vez mais relacionada a
institutos relativamente novos em nosso sistema jurídico, como o ativismo judicial, presente
em vários momentos da justiça brasileira, não se sabendo mais ao certo se a tripartição dos
poderes está sendo respeitada pelos poderes estatais, colocando em dúvida se este Poder está
cumprindo ou ultrapassando os limites de sua função, num Estado tripartite.
Nesse sentido, faz-se necessário compreender se a atual conjuntura político-social e
jurídica do Brasil ainda consegue se amoldar aos exemplos dos governos exteriores, diante da
complexidade que tem se apresentado em sua própria formulação. Dessa forma, verifica-se a

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necessidade de rediscutir o papel da instituição judiciária e suas funções, mediante os demais
poderes estatais, e principalmente as consequências que tais inovações adquirem na vida da
sociedade, como um todo, para descobrir se a atuação cotidiana do ente judicante está de acordo
com o instituto da separação dos poderes, se o órgão Constitucional deste poder possuem
legitimidade para agir de maneira intensiva mediante as funções dos demais poderes, e se essa
manifestação pode atingir os próprios princípios basilares da Democracia.
Para descobrir a resposta de tais problemáticas, buscamos retratar, no primeiro capítulo,
de que forma a Democracia se desenvolveu como tipo de governo no mundo, desde o
rompimento com o absolutismo, até as manifestações constitucionais que adotaram a
democracia como melhor maneira de se governar um Estado social e liberal. Procuraremos
entender também, neste capítulo, quais foram as razões para se modificar a estrutura do poderio
estatal, de que forma ele seria dividido, e de que maneira o Poder Legislativo se tornou o real
representante dos anseios comunitários, e, portanto, o legitimado para agir de maneira direta na
interpretação e afirmação da vontade geral.
No segundo capítulo, procuraremos estudar a atuação do Poder Judiciário como
intérprete da legislação formulada pelo Legislativo, e quais são os limites de sua hermenêutica
perante suas funções precípuas de controlador da constitucionalidade das ações estatais
legislativas, considerando-o o ente legitimado para agir em controle técnico abstrato da
formulação normativa. Entretanto, verificaremos que esta atuação vem se mostrando cada vez
mais invasiva com relação às funções dos demais poderes, e tentaremos compreender o que está
levando o Judiciário a agir dessa forma.
Por fim, no terceiro capítulo, analisaremos casos práticos dessa atuação ativista, no
âmbito do Supremo Tribunal Federal, quais sejam a mitigação do princípio da presunção de
inocência e a recente criminalização da homofobia, que vêm gerando amplos debates na seara
jurídica sobre a forma de agir do ente judicante perante a Constituição, a qual aquele deveria
proteger em seus próprios termos.
Após essa análise prática, concluiremos sobre este fenômeno recente que está
acontecendo no cenário político-jurídico brasileiro, que não mais consegue encontrar
explicações nas teorias clássicas de governo, e como isso afeta a sociedade, que espera de seus
governantes a aplicação expressa do ordenamento jurídico, colocando em risco a própria
existência do Estado Democrático Constitucional.
Para atingir os objetivos expostos, foi utilizado o método dedutivo, e a pesquisa
realizada foi essencialmente bibliográfica, sendo utilizados artigos científicos, livros,

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publicações avulsas, pesquisas, monografias e teses, contando também com a análise de
jurisprudências do Supremo Tribunal Federal. Utilizou-se no desenvolvimento do presente
projeto as normas atualizadas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), com a
ressalva da utilização do modelo de citação autor-data, em conjunto com o uso de notas
explicativas.

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CAPÍTULO I

ESTADOS REPRESENTATIVOS E O PAPEL DO PODER LEGISLATIVO

Durante toda a história da humanidade, inúmeros estudiosos se ocuparam em entender


as ações humanas, principalmente no que diz respeito à relação entre líderes e subordinados,
entre governantes e governados. Nesse sentido, é correto afirmar que conforme os Estados
foram se desenvolvendo, as teorias de governo também foram acompanhando tal evolução,
chegando-se aos sistemas democráticos representativos que encontramos na maior parte do
mundo, nos dias de hoje. Geralmente, esse papel de representação é incumbido ao Parlamento,
que, nas conformidades de cada Constituição, é formado pelo sufrágio universal. Observamos
também que em grande parte dos países tidos como democráticos, é comum a adoção da teoria
tripartite dos poderes estatais, defendida por Locke e definida por Montesquieu, ainda nos
séculos passados.
A clássica tripartição dos poderes, a qual fora, inclusive, adotada pela Constituição de
1988, no Brasil, determina a forma de atuação do Estado perante a comunidade submetida aos
seus regramentos, a qual pressupõe a divisão dos poderes em Legislativo, Executivo e
Judiciário, cada um com seus objetivos e suas funções bem definidas, e, conforme estabelece a
própria letra da lei, agindo de forma independente e harmônica entre si.
Entretanto, é notório que, na atualidade, essa divisão de funções entre os poderes vem
se confundindo, na medida em que a necessidade de novas leis, ou novas interpretações destas
se apresentam. No que tange aos poderes Legislativo e Judiciário, essa confusão se torna ainda
mais evidente, principalmente num cenário onde encontramos, por vezes, um legislativo omisso
e desqualificado, e em contrapartida, um judiciário ativista e cada vez mais político.
Essa atuação, de forma mais dissociada das funções intrínsecas de cada Poder Estatal,
pode gerar conflitos e questionamentos com relação à própria legitimidade dos referidos
poderes, uma vez que não se sabe, ao certo, quais os limites saudáveis para esse tipo de
intervenção. Dessa forma, cabe resgatar os ensinamentos básicos sobre as teorias de Estado,
política e direito, na intenção de descobrir se tal forma de agir está de acordo com a ideia
original da formação do Estado Brasileiro, após a Constituição de 1988.

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1.1. Os limites da decisão judicial num Estado de funções tripartidas: uma abordagem
inicial

Para iniciar o resgate ideológico que se cumpre fazer, destaca-se o pensamento de


Alejandro Serrano Caldera, no livro Os Dilemas da Democracia (1996), que, ao realizar um
estudo sobre a Constituição da Nicarágua, em 1995, considera que a tripartição dos poderes é
um dos princípios basilares do desenvolvimento dos Estados Democráticos. Em sua opinião,
sem a tripartição, na forma definida por Montesquieu, na atualidade, não há como se falar em
democracia. Segundo Caldera (1996), a tripartição dos poderes do Estado veio justamente para
permitir uma melhor representatividade de classes, uma vez que “se buscava um equilíbrio de
classes mediante a distribuição dos poderes” (CALDERA, 1996, p. 86).
Tais pensamentos se tornaram comuns no mundo pós-absolutista, onde as classes que
almejavam o poder viram nesta nova forma de governo uma maneira de satisfazer seus
interesses perante o Estado. Contudo, para se evitar um novo despotismo, agora calcado nas
figuras de classes sociais diversas, principalmente a aristocracia, se fez necessário delimitar a
atuação dessas classes representativas, bem como dos próprios poderes do Estado. Nessa senda,
de acordo com Caldera (1996), entram os outros princípios garantidores de um Estado
Democrático, que procuram delimitar a atuação do Estado perante seus comandados, e também
sua própria atuação para consigo mesmo.
Caldera (1996) aduz que, dentre tais princípios, encontra-se o princípio da hierarquia da
norma jurídica, bem definida por Kelsen, adotada pela grande maioria dos Estados
Democráticos, e que supõe a nivelação do próprio ordenamento jurídico, para que este pudesse
ter seu próprio grau de coercitividade perante os comandados, e perante o próprio Estado. Nesse
sentido, as leis se colocam acima do próprio Estado, que da mesma forma que as elabora de
acordo com os interesses dos comandados, fica submetido às mesmas, criando uma espécie de
autocontrole. Somado a esse princípio, está o princípio da legalidade, que também busca
delimitar a atuação do Estado e de seus poderes, perante a sociedade e em suas próprias
diretrizes internas. Com estes dois princípios em mente, Caldera (1996) descreve a atuação dos
poderes do Estado, principalmente o Legislativo e o Judiciário, numa Democracia efetiva, e de
que forma esta seria garantida:

A corte tem faculdades para declarar inconstitucional toda lei que se oponha à
Constituição, mas não uma disposição constitucional propriamente dita. Portanto, as
reformas da Constituição política, que legitimamente a Assembleia adote, isto é,
seguindo para tal os procedimentos que a própria Constituição estabelece, não podem
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ser objeto de um recurso por inconstitucionalidade da lei, pois a Corte Suprema não
tem faculdades para declarar inconstitucional uma reforma da Constituição, salvo no
caso que se refira ao procedimento para realizar a mesma, estabelecida pela própria
Constituição (CALDERA, 1996, p. 88).

Além disso, numa Democracia plenamente eficaz, de acordo com Caldera (1996), não
basta apenas definir o poder do Estado sobre os indivíduos, e seu autocontrole, que nem sempre
existirá. É necessário, também, que haja meios em que os comandados consigam postular suas
divergências com relação à atuação do Estado sobre si, quando esta se torna abusiva. É o que
garante o sistema de recursos defendidos pela legislação desses Estados, onde o indivíduo busca
perante o próprio Estado a tutela de seus direitos, dentro do poder estatal definido para tanto,
demonstrando que o Estado somente será democrático quando ele mesmo estiver submetido às
leis que, por suas prerrogativas funcionais, cria em nome dos interessados, representando-os.
Ainda, segundo Caldera (1996), mesmo que o conceito de democracia não tenha surgido
no sentido de se deixar representar por outros, devido à complexidade sociocultural das
comunidades, bem como o tamanho das populações, fez evoluir as definições de tal forma de
governo, relacionando intrinsecamente representação com democracia, de tal maneira que, na
modernidade, não se pode falar de um sem o outro.
Nada obstante, Caldera (1996) salienta que “[...] na regulamentação constitucional e na
prática, não existe uma separação absoluta, pois, sem prejuízo das atribuições que, por sua
própria natureza, correspondem-lhes, cada um dos poderes exerce, em algum momento e
circunstância, funções que naturalmente concernem a outro ou outros poderes” (CALDERA,
1996, p. 86). Dessa forma, assumindo este desvio de função entre os poderes dentro da
Democracia, principalmente no que tange aos poderes Judiciário e Legislativo, questiona-se de
que forma aquele atua, para transmitir essa sensação de intervenção nas funções deste? Na
tentativa de obter uma resposta a este questionamento, faz-se necessário estudar, inicialmente,
a relação entre o direito e o Estado, e os fatores que influenciam nesta relação, na finalidade de
compreender a emanação do real poder estatal.
Nesse sentido, destaca-se o ensinamento de Norberto Bobbio, que sabiamente
relacionou a política e o direito dentro das concepções de Estado, em sua obra Teoria Geral da
Política: A filosofia Política e as Lições dos Clássicos (2000). Bobbio (2000) descreve várias
formas em que a política se relaciona, com os mais diversos setores que constituem um Estado,
como a economia e a própria sociedade, e, ao estudar a influência que política e direito exercem
um sobre o outro, demonstra que tais conceitos não se sobrepõem, e sim, coexistem numa
relação de interdependência.

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Para Bobbio (2000), o poder político surge a partir do momento que se pressupõe a
existência de uma autoridade, que emana esse poder para elaborar os comandos que vigerão
sobre a sociedade comandada por si. Portanto, seria correto dizer que o poder político faz o
direito positivo, ao qual a sociedade se submete. Contudo, ao mesmo tempo em que fabrica o
direito, para diferenciar-se de outros conglomerados humanos de relação de dominância, o
poder político se submete também às próprias leis que cria, no sentido de legitimar sua própria
atuação. Dessa forma, o governante legitima seu poder, perante todos, delimitando seu próprio
poder, conforme depreende-se da seguinte passagem:

O que significa a lei faz o rei? Significa que é rei, ou melhor, é soberano legítimo, e
portanto tem a autoridade e não apenas o simples poder do mais forte, aquele que
governa com base em um poder que lhe foi atribuído por uma lei superior a si mesmo
(que não pode modificar senão com base em leis colocadas ainda mais no alto, que
prevêm o modo como podem ser modificadas as mesmas leis fundamentais)
(BOBBIO, 2000, p. 235).

Sendo assim, para Bobbio (2000), o poder político do governante, seja ele um monarca,
seja o Parlamento, somente se legitima quando sua autoridade é regulamentada pela própria lei
que o estabeleceu, tendo suas funções igualmente delimitadas, exigindo-se que “quem o detém
o exerça não segundo o próprio capricho, mas em conformidade com as regras estabelecidas e
dentro dos limites dessas regras” (BOBBIO, 2000, p. 237).
Em verdade, essa ideia de limitação do poder do soberano, segundo Bobbio (2000)
delineia em sua obra, é um pensamento típico do período pós absolutista, mais precisamente
quando do surgimento dos Estados liberais, onde começa-se a constitucionalização dos Estados,
colocando a soberania da lei acima até mesmo da autoridade do governante. Um dos maiores
responsáveis por esse entendimento, o qual está enraizado na maioria das constituições dos
Estados hoje em dia, foi Kelsen, ao definir a hierarquia das leis, definindo conjuntamente a
hierarquia do soberano, colocando-o em papel coadjuvante com a positivação das regras do
Estado.
Bobbio (2000) ainda afirma que, em contrassenso às formas de Estado até então
desenvolvidas, no Estado liberal, que busca a supremacia da lei, em conjunto com a soberania
do povo, o Estado somente será um Estado de Direito se o poder dos governantes for delimitado
por lei, ou, em suas palavras, “[...] Estado de direito, [...] no qual cada poder é exercido no
âmbito de regras jurídicas que delimitam a sua competência e orientam, ainda que,
frequentemente, com uma certa margem de discricionariedade, suas decisões” (BOBBIO, 2000,
p. 257).

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Entretanto, conforme Bobbio (2000) anuncia, para que o Estado de Direito possa
realmente ser “de Direito” não é suficiente que apenas haja as leis. É necessário, também, e
principalmente, que essas leis se mostrem eficazes perante a sociedade, bem como que
transmitam a coercitividade necessária para que seja respeitada, e isso somente ocorreria se, em
concomitância com a criação da normatividade, houvesse o poder de aplica-la.
Nesse sentido, surge a razão de existir do judiciário, que basicamente possui a função
de aplicar as leis aos casos concretos levados à sua ponderação. Contudo, se a atuação dos juízes
fosse apenas de aplicar a lei existente ao caso concreto, não haveria polêmicas com relação à
sua atuação. O problema surge quando faltam leis, e nessa situação, se questiona qual a melhor
maneira de agir do judiciário?
De acordo com Bobbio (2000), na falta da lei, caberia ao juiz analisar caso a caso, e
dessa análise individualista, duas situações poderiam ocorrer, quais sejam a equidade ou o
privilégio. Segundo Bobbio (2000), no primeiro aspecto, o juiz decidiria a questão em análise
de forma análoga a outros casos semelhantes, em que a lei existente foi devidamente aplicada,
o que acarretaria na efetiva imposição da justiça, considerando o sentido lato desta1. Já na
situação do privilégio, o juiz, diante de dois problemas relativamente iguais, aplicaria uma
norma específica em um caso específico, o que poderia acarretar numa interpretação errônea da
aplicação dessa normatividade específica, já que poderia não se relacionar com a questão que
sua constituição se propunha a solucionar, de maneira a privilegiar ou prejudicar alguém,
conforme fosse o caso, podendo, inclusive, gerar incompatibilidade de decisões dentro do
próprio entendimento dos juristas, de modo geral, o que no seu ver, não deixaria de ser a
aplicação de alguma justiça. É nesse sentido que Bobbio (2000) defende a importância da
imparcialidade dos juízes, uma vez que:

Cabe ao juiz estabelecer em cada situação quem deve ser incluído na categoria e quem
deve ser dela excluído. O preceito da imparcialidade é necessário, porque a aplicação
de uma norma ao caso concreto nunca é mecânica e requer uma interpretação na qual
intervém, em maior ou menor medida segundo os diferentes tipos de lei, o juízo
pessoal do juiz (BOBBIO, 2000, p. 313).

1
Segundo Bobbio (2000), “[...] ’justo’ tem dois significados e um dos quais é ‘conforme à lei’ ou legal, enquanto,
respectivamente, injusto significa não-conforme à lei ou ilegal”. Além disso, o autor complementa este sentido de
justiça, aduzindo que “[...] um homem justo pode ser tanto um homem respeitoso das leis quanto um homem
equânime, que distribui imparcialmente o torto e o direito”. Ainda, “[...] ‘sentença justa’ pode ser tanto a sentença
do juiz que observou rigorosamente a lei quanto a sentença equânime que respeitou a regra geral do igual
tratamento dos iguais”. (BOBBIO, 2000, pp. 308-309).
20
Em contrapartida, Carl Schmitt, em sua obra Teologia Política (2006), defende que a
figura do soberano, numa ideia de Estado positivista, é a única que tem o poder de ditar as
regras do Estado, é apenas ele, seja um monarca, seja o Parlamento, quem pode fazer as normas
que regem a sociedade, pois ele é o detentor do poder para tal, isto conforme definição legal de
cada Constituição. Em suas palavras, “[...] à questão de como se deve proceder quando não
existe lei estatal, Anschütz responde que essa não seria, em absoluto, uma questão jurídica
‘Aqui não há uma lacuna na lei, ou seja, no texto constitucional, mas uma lacuna no Direito que
não pode ser preenchida com operações conceituais jurídico-científicas” (SCHMITT, 2006, p.
15).
Contudo, Schmitt (2006) parte do princípio de que o decisionismo é a chave para a
efetividade das normas estatais. Para ele, a norma criada pelo Estado, ainda que represente os
interesses de quem a pleiteia, e apesar de possuir certa impositividade, por si só não tem eficácia
de imputação, uma vez que é considerada de forma abstrata no mundo jurídico. O seu poder
coercitivo e a sua real efetividade somente se concretizam quando a instância competente para
tal aplica a norma à casos concretos, a partir de suas decisões.
Para Schmitt (2006), ainda, essa instância competente se traduz no próprio Estado, que
é o soberano responsável pela produção normativa, seja no seu aspecto abstrato, seja no seu
aspecto concreto. Pode-se depreender que, ao tratar da instância competente para aplicação das
normas, Schmitt queria se referir ao Poder Judiciário, que é um dos poderes estatais segundo a
classificação tripartite do Estado. Ainda, para Schmitt, as decisões tomadas pelo ente
competente, mesmo que tomem por base a positivação da norma estatal, quando se propõe a
aplicá-la, não se submete à sua fundamentação, tornando-se autônoma no que se refere ao
direito aplicado.
Entretanto, segundo Schmitt (2006), o fato de as decisões judiciais serem as
responsáveis pela efetividade das normas estatais traz à tona uma situação que pode não ser
esperada, mas que comumente acontece, qual seja, a produção de decisões incorretas do ponto
de vista positivista, e as quais, da mesma forma que acontece com as decisões apropriadas,
tomam efeito jurídico perante a sociedade.
Corroborando com todo o exposto, retira-se das palavras de Schmitt (2006):

No momento, a decisão torna-se independente da fundamentação argumentada e


adquire um valor autônomo. Na doutrina do ato estatal defeituoso, isso se revela em
todo o seu significado teórico e prático. Confere-se à decisão incorreta e defeituosa
um efeito jurídico. A decisão incorreta contém um momento constitutivo, justamente,
em virtude de sua inexatidão. No entanto, é inerente à ideia da decisão o fato de não
poder haver decisões absolutamente declaratórias. Analisando-se a partir do conteúdo
21
da norma tomada por base, todo momento de decisão específico, constitutivo, é algo
novo e estranho. Na perspectiva normativa, a decisão nasce do nada (SCHMITT,
2006, p. 30).

Depreende-se, portanto, deste levantamento inicial, que para um Estado ser considerado
Democrático e de Direito, precisa-se de um conjunto de fatores, que estão conexos e devem
coexistir de maneira pacífica entre si, quais sejam, uma efetiva representação e participação do
povo nas decisões do Estado, ainda que de maneira indireta, a elaboração de leis claras e
objetivas, que visem as necessidades da sociedade, mas que levem em conta, principalmente, o
interesse geral do Estado, para que, em casos concretos, essas leis possam ser devidamente
aplicadas pelo órgão estatal competente para tal, e que essas decisões, isentas de juízo de valor,
transmitam a eficácia pretendida com a norma abstrata, bem como a segurança jurídica das
interpretações dessas normas, buscando sempre uma igualdade de tratamento, conforme cada
caso.
Ainda, para assegurar todos esses fatores, considera-se de suma importância uma real
separação dos poderes do Estado, com a efetiva divisão de funções entre si. Nesse sentido,
retomando a ideia exposta anteriormente, é natural que, em determinados momentos, possa
existir uma interferência dentre essas funções, contudo, é necessário entender a partir de que
ponto essa intervenção ultrapassa os limites da tripartição dos poderes, a ponto de se prejudicar
a própria democracia, e consequentemente, o próprio modelo de Estado.
Dessa forma, a proposta desta monografia, nos próximos capítulos, é resgatar de forma
mais aprofundada as teorias de Estado que visaram conceituar a Democracia como forma de
governo, repisando, neste contexto, a clássica definição da tripartição dos poderes de
Montesquieu, para que se possa novamente encontrar a verdadeira função do Poder Judiciário
num Estado de Direito tripartite, analisando, a partir de então, de que forma as decisões do
Poder Judiciário, principalmente no que tange ao Supremo Tribunal Federal brasileiro,
influenciam no cotidiano das pessoas, e como se apresentam diante dos outros dois Poderes
Estatais, além de discorrer sobre os fundamentos que vêm sendo utilizados para tal. Isso porque,
do estudo das jurisprudências atuais da Suprema Corte, tem-se vislumbrado um verdadeiro
legislar do Poder Judiciário, frente à omissão do Poder Legislativo, ou mesmo um transpassar
de poder ao interpretar as normas de forma ampla demais, para atingir determinados entes ou
pessoas específicas.

1.2. O Desenvolvimento das teorias de Estado Democrático e o Conceito de separação de


poderes
22
Para começarmos a entender a problemática central no que tange às decisões judiciais,
precisamos inferir o que baseou o modo de governo em que vivemos hoje. Nesse resgate,
importa relembrar o início das sociedades, os motivos que levaram os seres humanos a se
agruparem em comunidades, para adentrarmos às estruturas de Estado, nos interessando, no
momento, o surgimento dos Estados Democráticos, para compreender o aspecto principal que
originou o Poder Legislativo e a sua função como Poder representante das massas.
Inicialmente, podemos destacar que as sociedades surgem, principalmente, num sentido
de tentar determinar regras para a convivência em comum. De acordo com Dalmo de Abreu
Dallari, em sua obra Elementos de Teoria Geral do Estado (2011), o que justifica a criação de
normas regulamentadoras gerais é justamente a impositividade que essas normas possuem
perante as pessoas, estabelecendo um nexo de bilateralidade, uma vez que no descumprimento
dessas leis, o próprio prejuízo da vítima acarreta num prejuízo global, sendo responsabilidade
do Estado punir o culpado, para repor a ordem social, contrapondo, portanto, as normas de
cunho moral, que não possuem impositividade externa, apenas interna, a depender de cada
consciência o cuidado de obedecê-la. Nas palavras de Dallari (2011):

O que se verifica, em resumo, é que as manifestações de conjunto se produzem numa


ordem, para que a sociedade possa atuar em função do bem comum. Essa ordem,
regida por leis sujeitas ao princípio da imputação, não exclui a vontade e a liberdade
dos indivíduos, uma vez que todos os membros da sociedade participam da escolha
das normas de comportamento social, restando ainda a possibilidade de optar entre o
cumprimento de uma norma ou o recebimento da punição que for prevista para a
desobediência (DALLARI, 2011, p. 41).

Essa formação de normatividade, segundo Dallari (2011), pressupunha uma relação de


poder de alguns sobre outros, para que houvesse, de fato, a coercitividade na postura da lei, e
da própria formação social. Por sua vez, a citada relação de poder não se mostra homogênea na
evolução dos tipos sociais, no passar do tempo. Nas primeiras formações sociais, de acordo
com Dallari (2011), a figura do poder estava diretamente relacionada com a força humana,
sendo considerado seu detentor aquele que possuísse maior condições físicas de garantir a
sociedade, e consequentemente seu próprio domínio sobre os outros. Contudo, levando em
conta a forma como as sociedades se relacionavam com o ambiente em que viviam, “[...] em
consequência da tendência do homem para aceitar a presença de um sobrenatural sempre que
alguma coisa escapa à sua compreensão ou ao seu controle, fora admitido um poder desprovido
de força material, reconhecendo-se como fonte do poder uma entidade ideal” (DALLARI, 2011,
p. 52).
23
Em continuidade, ao adquirir maior complexidade, as sociedades foram desenvolvendo
a ideia de emanação de poder e de direito por sua própria constituição, passando a considerar a
existência de uma vontade geral superior às vontades individuais, e que aquela exigiria um
poder que fosse além da força.
Nesse sentido, ao divorciar a noção de poder da ideia de força física ou metafísica
(contudo, ainda relacionado à força jurídica e coercitiva), passou-se a questionar quem ou o que
teria legitimidade para portar este poder. De acordo com Dallari (2011), é nessa conjuntura que
surge o entendimento de que deve existir um consentimento de todos, ou da maioria, para que
o líder, ou os líderes, tomassem para si o poder de governar a comunidade.
Dessa forma, começam a aparecer os primeiros modelos de Estado, os quais, durante
todo seu desenvolvimento, não seguiram um padrão cronológico de existência, mas
inegavelmente sofreram influências uns sobre os outros, conforme a propagação de cada ideia
elaborada para explicar-lhes.
Para o objetivo deste estudo, importa-nos estudar de que modo surgiu e se desenvolveu
as teorias sobre os Estados Democráticos, sendo que estes, de maneira geral e inicial, não são
resultado das teorias modernas. Dallari (2011) ressalta que a democracia surgiu muito antes do
cristianismo, inclusive, perante os povos gregos e romanos. Na Grécia, principalmente na
cidade de Atenas, era comum as pessoas se reunirem nas praças para tomarem as decisões pelo
Estado, visando um bem-estar geral. Para os gregos, de acordo com Dallari (2011), “Há uma
elite, que compõe a classe política, com intensa participação nas decisões do Estado a respeito
dos assuntos de caráter público” (DALLARI, 2011, p. 72). Contudo, não eram todos os cidadãos
que participavam dessas decisões, uma vez que se acreditava que a ampliação excessiva dos
poderes de decisão seria prejudicial à manutenção do controle político por parte desta elite.
Em consonância, Dallari (2011) afirma que Roma também experimentou uma certa
democracia, porém bem mais restrita que a grega, uma vez que na própria sociedade romana,
apenas os patrícios (membros de famílias descendentes dos fundadores do Estado) eram
considerados cidadãos, no aspecto decisionista da democracia romana. Nas palavras de Dallari
(2011):

Assim como no Estado Grego, também no Estado Romano, durante muitos séculos, o
povo participava diretamente do governo, mas a noção de povo era muito restrita,
compreendendo apenas uma faixa estreita da população. Como governantes supremos
havia os magistrados, sendo certo que durante muito tempo as principais magistraturas
foram reservadas às famílias patrícias (DALLARI, 2011, p. 72).

24
Contudo, a experiência romana não foi muito longa, e em seguida fulminada pelo
período imperial, este sim o grande símbolo da Roma Antiga, e o qual era amplamente fundado
na superioridade romana, e posteriormente calcado no cristianismo e na religião que se
desenvolveu a partir de então.
Somente após a Idade Média é que se vislumbrou um novo tipo de Estado emergente,
uma vez que, de acordo com Dallari (2011), a Idade Média foi uma tentativa de reprodução dos
modos de governo romanos, que acabou falhando diante a insatisfação dos feudos com os
monarcas pouco relutantes e violentos, bem como em frente ao surgimento de uma nova classe
social, que buscava o poder no Estado e dominava o poderio econômico da época, qual seja a
burguesia.
No Estado Moderno, segundo Dallari (2011), surgem as primeiras tentativas de se
jurisdicionar os poderes dos governantes, bem como as regras de convivência social. Contudo,
ainda nesse período se tinha uma ideia de soberania num sentido de supremacia, a característica
estatal mais alta e importante de todas, e completamente ligada à figura do governante, que,
geralmente, era um monarca.
Notadamente Dallari (2011) relaciona o desenvolvimento dos tipos de Estado com o
significado de soberania, demonstrando que esta evoluiu de acordo com as mudanças nos
governos, principalmente na Europa dos séculos XVIII e XIX. Nesse sentido, Dallari (2011)
cita Bodin, e o conceito de soberania que este desenvolveu, aduzindo que a soberania, para este,
era um poder absoluto, na medida em que não se submetia nem às leis, nem às vontades
individuais do próprio governante que a detinha, e perpétuo, o qual não concebia a ideia de
temporariedade na chefia de um Estado.
Contudo, Dallari (2011) relembra que Rousseau transferiu essa ideia de soberania
vinculada ao governante, voltando-a ao povo, em si mesmo considerado, dizendo que a sua
soberania está submetida às leis, uma vez que deve buscar sempre a vontade geral do Estado.
É somente após a Revolução Francesa que a soberania é vinculada à ideia de poder político do
Estado, e conforme aduz Dallari (2011):

[...] a legitimação do soberano, que equivale ao nascimento do Estado, se dá com a


consolidação da ordenação através do decurso do tempo. Quando determinada
ordenação consegue positividade, impondo-se ao respeito dos destinatários, e se torna
estável, adquirindo caráter permanente, aí então se pode dizer que existe poder
soberano (DALLARI, 2011, p. 89).

Nesse sentido, afirma Dallari (2011) que, na consecução do objetivo final do Estado,
qual seria a sua organização jurídica para delimitar seu próprio funcionamento perante a
25
sociedade, o citado poder político é preponderante, e atua levando em conta três dualismos
fundamentais: necessidade e possibilidade, onde deve-se identificar as necessidades do povo,
com relação ao seu progresso e sobrevivência, e persegui-las conforme as possibilidades de
organização e persecução ao alcance do Estado; indivíduos e coletividade, onde aduz Dallari
(2011) a importância do equilíbrio entre a persecução de interesses individuais e coletivos,
procurando nunca sobrepor um ao outro; e, por fim, liberdade e autoridade, dualismo este que
também necessita de equilíbrio em sua aplicação, onde, segundo Dallari (2011), não se pode
dar liberdade absoluta aos membros do Estado, mas também não se pode restringi-la demais,
na figura da autoridade da lei.
É levando-se em consideração toda a evolução discorrida sobre o surgimento dos
Estados, principalmente no que se refere ao modelo de Estado Democrático Grego e à
experiência romana, bem como os aspectos de Estado jurídico traduzido por si até então, que
Dallari (2011) delineia o que se passou a entender, a partir do Estado Moderno, como o modo
de governo “Democracia”.
Segundo Dallari (2011), o Estado Democrático Moderno se desenvolveu,
principalmente, a partir das ideias propagadas pelos clássicos jusnaturalistas, como por exemplo
Rousseau e Locke, ainda que estes não defendessem abertamente o modo de governo
democrático, uma vez que não vislumbravam o sucesso de tal empreitada quando a
administração do Estado passasse aos cuidados de absolutamente todas as pessoas. Nesse
sentido, o nascimento da Democracia moderna se baseou das lutas contra o absolutismo europeu
do século XVIII, bem como da afirmação dos direitos naturais da pessoa humana.
Ressalta Dallari (2011), que três foram os principais movimentos político-sociais que
motivaram os princípios basilares do Estado Democrático atual, cada um trazendo uma
peculiaridade própria de sua revolução para a formação do conceito atual de Democracia, quais
sejam a Revolução Inglesa, de 1689, com a criação do Bill of Rights, a Revolução Norte-
Americana, de 1776, com a Declaração de Independência das treze colônias, e a Revolução
Francesa, de 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Com a Revolução Inglesa, Dallari (2011) afirma que o aspecto mais importante que foi
exportado para a Democracia atual foi a ideia de que o governo da maioria era justificado pela
necessidade de limitar o poder absoluto do monarca, de modo a contribuir com a proteção dos
direitos naturais dos indivíduos, nascidos livres e iguais, e aquele governo deveria ser exercido
através do poder de legislar a liberdade dos cidadãos. Nesse sentido, Dallari (2011) cita o
pensamento de Locke, influenciador da Revolução Inglesa, o qual transcreve-se:

26
A comunidade conserva perpetuamente o poder supremo de se salvaguardar dos
propósitos e atentados de quem quer que seja, mesmo dos legisladores. E quem detiver
o poder legislativo ou o poder supremo de qualquer comunidade obriga-se a governá-
la mediante leis estabelecidas, promulgadas e conhecidas do povo, e não por meio de
decretos que surpreendam o povo (DALLARI, 2011, pp. 147-148).

Da Revolução Norte-Americana, por sua vez, de acordo com Dallari (2011), retira-se a
ideia da dissociação da intervenção do Estado da Democracia, entendendo que esta somente
existe quando a liberdade do povo é seu principal objetivo. Contudo, essa liberdade não era
absoluta, mas sim submetida à vontade do povo, que formulava e aprovava as normas que
regulariam a convivência de todas as liberdades individuais. Dallari (2011) atribui o
desenvolvimento desta forma de encarar a Democracia às lutas norte-americanas contra o
absolutismo inglês, e também contra os autocratas presentes em sua própria nação, o que os
levou a defender, inicialmente, um governo do próprio povo, refutando a ideia de um
Parlamento representativo, ou qualquer órgão governamental nesse sentido.
Já a Revolução Francesa deixou por herança à Democracia, segundo Dallari (2011),
além da ideia de nação, como sendo a união de um povo autodeterminado, o desenvolvimento
de uma teoria global para a liberdade e os direitos naturais da humanidade, diferentemente do
que ocorreu nas outras revoluções supracitadas, que buscaram definir tais direitos e liberdade
de maneira local. Foi nesse aspecto que surgiu a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, a qual é mundialmente aceita até hoje, e imposta a todos os países que procurem se
autoafirmar democráticos, mesmo que internamente ajam de forma totalitária. Nesse aspecto,
para os franceses, segundo Dallari (2011):

Declara-se, então, que os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos.


Como fim da sociedade política aponta-se a conservação dos direitos naturais e
imprescritíveis do homem, que são a liberdade, a propriedade, a segurança, e a
resistência à opressão. Nenhuma limitação pode ser imposta ao indivíduo, a não ser
por meio da lei, que é a expressão da vontade geral. E todos os cidadãos têm o direito
de concorrer, pessoalmente ou por seus representantes, para a formação dessa vontade
geral. Assim, pois, a base da organização do Estado deve ser a preservação dessa
possibilidade de participação popular no governo, a fim de que sejam garantidos os
direitos naturais (DALLARI, 2011, p. 150).

Conclui, Dallari (2011), que os princípios norteadores da Democracia, conforme as


inspirações retiradas de cada uma das revoluções citadas, são: a supremacia da vontade
popular, traduzida na participação popular no governo, seja de forma direta, seja através de
representação; a preservação da liberdade, entendida como a garantia de cada indivíduo em
poder fazer tudo aquilo que não seja prejudicial a outro indivíduo, sem a interferência do
27
Estado; e a igualdade de direitos, a qual proíbe qualquer discriminação no gozo dos direitos,
seja por motivos de classe social, ou por motivos econômicos.
Por fim, de acordo com Dallari (2011), a partir destas características, desenvolveu-se na
maior parte dos Estados, a Democracia, a qual ainda sofreu outra alteração, no que diz respeito
à sua forma de atuação, retirando do aspecto social geral a incumbência de governar, colocando
tal responsabilidade à figuras de cidadãos previamente escolhidos pelo povo, geralmente
através de eleição, para, perante o Estado, representar a vontade de todos. Surge, então, o
conceito de Democracia Representativa, sendo esta a que mais se visualiza como governo, nos
dias de hoje, e que será objeto de estudo no próximo tópico.
Contudo, de acordo com Dallari (2011), a mais recente modificação no conceito de
Estado Democrático sobreveio com o aparecimento das Constituições estatais, as quais tinham
por objetivo os mesmos elencados na implantação da Democracia, somando-se, entretanto, a
ideia de racionalização do poder e a positivação dos comandos de limitação dos poderes, que
encontrou guarida nas definições de Kelsen, com relação à hierarquia normativa, colocando,
portanto, a Constituição como norma máxima estatal, garantidora dos direitos individuais e
coletivos. Dallari (2011), para explicar as funções da norma máxima, e delinear o conteúdo
material destas, cita a enumeração de requisitos mínimos de uma Constituição desenvolvida por
Loewenstein, quais sejam:

a) a diferenciação das diversas tarefas estatais e sua atribuição a diferentes órgãos ou


detentores do poder, para evitar a concentração do poder nas mãos de um só indivíduo;
b) um mecanismo planejado, que estabeleça a cooperação dos diversos detentores do
poder, significando, ao mesmo tempo, uma limitação e uma distribuição do exercício
do poder; c) um mecanismo, planejado também com antecipação, para evitar
bloqueios respectivos entre os diferentes detentores de parcelas autônomas do poder,
a fim de evitar que qualquer deles, numa hipótese de conflito, resolva o embaraço
sobrepondo-se aos demais; d) um mecanismo, também previamente planejado, para
adaptação pacífica da ordem fundamental às mutáveis condições sociais e políticas,
ou seja, um método racional de reforma constitucional para evitar o recurso à
ilegalidade, à força ou à revolução; e) além disso tudo, a Constituição deve conter o
reconhecimento expresso de certas esferas de autodeterminação individual, isto é, dos
direitos individuais e das liberdades fundamentais, prevendo sua proteção contra a
interferência de um ou de todos os detentores do poder (DALLARI, 2011, p. 200).

Dessa forma, de acordo com Dallari (2011), a revolução constitucionalista incorporou


ao conceito de Democracia características do movimento iluminista em ascensão,
principalmente no que tange à importância dada à razão e à submissão às leis. Exemplo dessa
relação entre constitucionalização e Democracia, são as palavras de Dallari (2011), que afirma
que “o poder constituinte é sempre do povo. É nele que se encontram os valores fundamentais
que informam os comportamentos sociais, sendo, portanto, ilegítima a Constituição que reflete
28
os valores e as aspirações de um indivíduo ou de um grupo e não do povo a que a Constituição
se vincula” (DALLARI, 2011, p. 201).
Denota-se, portanto, que o conceito mais atual de Democracia leva em conta as
diretrizes que basearam os movimentos constitucionalistas, demonstrando que uma das mais
importantes garantidoras do Estado Democrático, contra abusos de totalitarismos e ditaduras,
ou seja, contra a concentração de poderes, é a divisão de funções dentro de órgãos estatais, ou,
em outras palavras, a separação dos poderes estatais.
Sem dúvidas, o maior expoente da teoria da separação de poderes foi Montesquieu, que,
em sua clássica obra O Espírito das Leis (2003), desenvolveu-a de acordo com o momento
político da Europa do século XVIII. Nesta senda, para resgatar tal base teórica, deve-se entender
o pensamento do filósofo, para compreender às conclusões por ele retiradas, chegando-se à
separação dos poderes, que se pretende estudar.
Segundo o filósofo, desde sua criação, o mundo é regulamentado por leis, quais sejam
as leis naturais e as leis divinas. Contudo, com o aparecimento do homem, este, por ser um Ser
inteligente, passou a produzir normas para sua convivência harmônica com seus semelhantes,
ainda que todos estivessem submetidos às leis primordiais já citadas. Entretanto, Montesquieu
(2003) entende que o homem não é inteligente o suficiente para seguir todas as regras que ele
mesmo se impõe, de forma que as normas humanas estão sempre em modificação. O filósofo
ainda afirma que, mesmo que leis humanas não existissem, o senso de justiça sempre existiu,
num sentido de garantir a vontade individual de cada um. Dessa forma, o filósofo afirma que o
único meio encontrado para que o homem parasse de descumprir e modificar as normas
humanas foi através da fabricação de leis, a partir do poder legislativo.
A partir daí, dando ao conceito acima delineado o aso de explicar as razões pelas quais
os homens precisavam se unir em sociedades, o filósofo se ocupa a definir os tipos de governo
reconhecidos à época. Destaca-se que a Democracia não era a forma de governo preferida de
Montesquieu (2003), contudo, este se propôs a estudar de que forma ela poderia prosperar,
desde que não houvesse corrupção do homem e dos governantes.
Nesse sentido, Montesquieu (2003) definiu a Democracia como o governo onde o povo
é o soberano, que “a vontade do soberano é o próprio soberano” (MONTESQUIEU, 2003, p.
23), e que por isso as leis são fundamentais nesse tipo de governo. Montesquieu (2003) já trazia
a ideia de representação do povo, uma vez que considerava que deixando as decisões nas mãos
de todo o povo, este poderia ignorar a si mesmo, ou perder o controle de quem efetivamente
participou das votações ou não. Para o filósofo, além de limitar o número de cidadãos que

29
compunham as assembleias, a composição destas deveria ser escolhida pelos próprios cidadãos,
para que atuassem nos momentos em que estes, por si próprios, não conseguissem se manifestar.
Contudo, para o filósofo, esta forma de governo é bastante frágil, uma vez que os
homens não possuem a capacidade para tomar decisões pelo Estado, já que, algumas vezes
podem ser enérgicos demais, ou, em outras, ser muito relapsos, ou seja, em suas palavras, “Às
vezes, com cem mil braços, tudo transforma; outras, com cem mil pés, caminha apenas como
os insetos” (MONTESQUIEU, 2003, p. 25). Afirma, ainda, o filósofo, que a Democracia
somente consegue se manter com a soma dos princípios da força da lei e da virtude, considerada
como o “amor pela república” e o “amor pela igualdade”, que se pode traduzir numa ideia atual
de honestidade dos homens para governar conforme as leis, se submetendo a elas.
Em sequência, Montesquieu afirma que, a despeito de que se tenha um órgão
funcionando como elaborador de leis, e levando em conta que o homem, por sua natureza, não
consegue obedecer às leis que por si edita, nos governos deve existir um órgão responsável por
julgar as demandas nas quais estas leis não foram obedecidas, e no que se refere à Democracia,
o filósofo aduz que este órgão, ao cumprir sua função, deve se restringir expressamente ao que
diz a letra da lei, uma vez que os jurisconsultos eram formados por membros do próprio povo,
e estes não poderiam ser capazes de interpretar além do que a lei expunha.
Contudo, as leis e as decisões, de acordo com o filósofo, jamais devem imprimir uma
sensação de liberdade como significando agir da maneira que se quiser. Em verdade, para
Montesquieu, o sentido de liberdade, numa Democracia, “[...] não pode consistir senão em
poder fazer o que se deve querer, e em não ser constrangido a fazer o que não se deve desejar”
(MONTESQUIEU, 2003, p. 164). E, para a garantia dessa liberdade, em cada governo, o
filósofo desenvolve a ideia da divisão de poderes do Estado em três, os quais denomina como
“poder legislativo”, “poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes” e “poder
executivo das coisas que dependem do direito civil”. De acordo com Montesquieu (2003), cada
poder destes teria uma função bem definida, conforme delineou:

Pelo primeiro poder, o príncipe ou magistrado cria as leis para um tempo determinado
ou para sempre, e corrige ou ab-roga aquelas que já estão feitas. Pelo segundo,
determina a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança,
previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes ou julga as questões dos indivíduos.
Chamaremos este último “o poder de julgar”, e o outro chamaremos, simplesmente,
“o poder executivo do Estado” (MONTESQUIEU, 2003, pp. 165-166).

Nesse sentido, o filósofo afirma que, para que a citada liberdade seja plenamente gozada
pelos cidadãos, além da divisão dos poderes em si, esses poderes jamais poderiam se misturar

30
uns aos outros, pelo risco de se criar, novamente, governos despóticos. Defende, portanto,
Montesquieu (2003), a independência dos poderes, pois, de acordo com sua obra, quando o
poder legislativo e o poder executivo estão concentrados em uma só pessoa, ou em um só corpo
de pessoas, corre-se o risco de ocorrer a criação de leis tirânicas, a serem aplicadas de forma
tirânica. Em consonância, se o poder de julgar não estiver desvinculado dos demais poderes,
poderia ou ocorrer a opressão por parte dos juízes, ou haveria apenas decisões arbitrárias, já
que o juiz legislaria conforme seu entendimento, em cada causa, abolindo-se, assim, a liberdade
dos indivíduos perante o Estado.
Contudo, o filósofo defende que, ao contrário do poder legislativo, que deve ser vitalício
para que os costumes sejam sempre preservados, e do executivo, que deve ser hereditário,
concentrado, preferencialmente, na figura de um rei, o poder de julgar deveria ser eleito pelo
cidadão a ser julgado, sempre que necessário, para não se criar um mal-estar social. E, ainda,
de acordo com Montesquieu (2003), os jurisconsultos eleitos para dirimir as questões
levantadas deveriam se ater às leis, trazendo uma noção primária de segurança jurídica,
conforme se depreende se seus dizeres: “se os tribunais não devem ser fixos, os julgamentos
devem sê-lo a um tal ponto, que nunca sejam mais que um texto fixo da lei. Se representassem
uma opinião particular do juiz, viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente quais os
compromissos que nela são assumidos” (MONTESQUIEU, 2003, pp. 167-168).
Em contrapartida, remontamos ao que diz Dalmo de Abreu Dallari (2011), que explica
que esta separação de poderes, ainda que considerada o alicerce fundamental contra a tirania
dos governos, não se caracteriza como uma efetiva quebra no poder do Estado, mas se traduz,
sim, numa divisão de funções entre órgãos estatais que compõem o poder do Estado, de forma
uma. Nesse sentido, Dallari (2011) afirma que a intenção da ideia primária de divisão de
poderes era exatamente a de enfraquecer o Estado, para que as liberdades individuais fossem
asseguradas e prevalecessem. Contudo, nos dias de hoje, é pacífico o entendimento de que o
Estado deve ser indivisível, para manter sua soberania frente à outros Estados, transformando
essa noção de separação de poderes em uma distribuição de funções, à órgãos especializados
dentro do Estado, o que dá maior eficiência às ações governamentais.
Conforme bem lembra Dallari (2011), a ideia de repartição do poder do soberano
remonta à Aristóteles, que já afirmava que a concentração do poder estatal na mão de apenas
um indivíduo era injusto e perigoso. Perpassou-se esta ideologia, ainda, por Maquiavel, que
afirmava que “[...] já se encontravam na França três poderes distintos: o Legislativo
(Parlamento), o Executivo (o rei) e um Judiciário independente [que] poderia proteger os mais

31
fracos, vítimas de ambições e das insolências dos poderosos, poupando o rei da necessidade de
interferir nas disputas [...]” (DALLARI, 2011, p. 216).
Contudo, é apenas em Locke que se encontra uma sistematização da separação de
poderes, mas foi Montesquieu o responsável por elaborar a teoria da separação dos poderes,
harmônicos e independentes entre si, nos moldes encontrados na maioria das Constituições
atuais do mundo, estando prevista, inclusive, na própria Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão, como garantia de liberdade individual constitucional.
Com o desenvolvimento das Constituições pelo mundo todo, conforme aduz Dallari
(2011), o conceito de separação de poderes de Montesquieu foi aprimorado, justamente para se
afastar do já mencionado aspecto enfraquecedor do Estado, buscando caracterizar apenas uma
divisão de funções entre os órgãos estatais. A Constituição Norte-Americana, com seu conceito
de freios e contrapesos deu grande contribuição para este aprimoramento, o qual, juntamente
com a definição primitiva de Charles-Louis de Secondat, influenciou a Constituição Brasileira
de 1988. De acordo com Dallari (2011), a teoria dos freios e contrapesos defende o seguinte:

[...] os atos que o Estado pratica podem ser de duas espécies: ou são atos gerais ou
são especiais. Os atos gerais, que só podem ser praticados pelo poder legislativo,
consistem na emissão de regras gerais e abstratas, não se sabendo, no momento de
serem emitidas, a quem elas irão atingir [...]. Só depois de emitida a norma geral é que
se abre a possibilidade de atuação do poder executivo, por meio de atos especiais. O
executivo dispõe de meios concretos para agir, mas está igualmente impossibilitado
de atuar discricionariamente, porque todos os seus atos estão limitados pelos atos
gerais praticados pelo legislativo. E se houver exorbitância de qualquer dos poderes
surge a ação fiscalizadora do poder judiciário, obrigando cada um a permanecer nos
limites de sua respectiva esfera de competências (DALLARI, 2011, p. 218).

Apesar da evolução no conceito de separação de poderes, aduz Dallari (2011) que na


atualidade, esse sistema se mostra falido, não por sua conceituação primordial, que buscava o
protagonismo máximo do povo, estando o Estado como coadjuvante do governo geral, mas sim
porque com o avanço das sociedades, passou-se a exigir cada vez mais a intervenção do Estado,
de forma técnica, para a solução dos problemas cotidianos, principalmente no que se refere à
economia Liberal, que sempre buscou a liberdade individual das pessoas, mas acabou se
mostrando defensora das liberdades de apenas alguns privilegiados.
Dessa forma, as principais críticas ao modelo de Democracia calcado na separação dos
poderes, onde Dallari (2011) afirma que, atualmente, esta separação de poderes é apenas formal,
uma vez que da análise do comportamento dos órgãos estatais, depreende-se que houve uma
intensa intervenção de uns órgãos sobre os outros, ou ainda, da sobreposição de algum dos
órgãos estatais sobre os demais. O caso brasileiro que se pretende estudar não foge à regra,
32
concentrando-se o segundo capítulo desta monografia na pesquisa sobre a interpenetração que
o Poder Judiciário vem fazendo às funções do Legislativo, para tentar entender o sistema
governamental que se desenvolveu em nosso Estado, à luz de nossa Constituição.

1.3. Representação e Poder Legislativo: legitimação como porta-voz do povo

Remontando ao aspecto basilar da democracia, qual seja a participação das massas


gerais da sociedade, faz-se necessário entender como funciona a democracia representativa, e
de que forma surgiu essa ideia de representação. Nesse sentido, retornamos ao ensinamento de
Bobbio (2000), que afirma, ao analisar o desenvolvimento das teorias de governo, que o
conceito de democracia passou por uma evolução, uma vez que em sua concepção antiga, o
povo se reunia na praça para decidir por si mesmos as coisas do Estado, o que não era bem visto
aos olhos dos principais teóricos políticos, já que estes consideravam as sociedades um
agrupamento de classes que não saberia dosar seus interesses pessoais em prol do bem maior
do Estado, onde cada grupamento estaria apenas interessado em defender suas próprias queixas,
quase que num retorno ao “estado de natureza”, cuja existência é defendida por alguns teóricos.
Contudo, ao contrário do que pensavam os teóricos clássicos pós-absolutistas, a
democracia moderna é a forma de governo mais aceita e mais buscada pelos Estados na
atualidade, justamente porque, de acordo com o Bobbio (2000), a soberania e o poder
continuam com o povo, porém, quem decide para o povo são seus representantes, eleitos por
estes, demonstrando uma centralização de ideias dentro do Estado, mas esse tipo de governo
somente será considerado uma democracia efetivamente, se toda a atuação do representante for
pública, para que o povo possa exercer o controle sobre este, de forma a permitir que a
representação continue, ou se encerre.
Dessa forma, uma vez que a representação é vista como um dos alicerces da democracia
moderna, destaca-se os conceitos desenvolvidos sobre o que é, de fato, este instituto. De acordo
com Bobbio (2000), por exemplo, a representação pode tomar dois aspectos diferentes em seu
fundamento, quais sejam, primeiramente a ideia de uma instituição composta por pessoas
eleitas, que se reúnem para tomar decisões coletivas, e, em segundo plano, a noção de que essas
mesmas pessoas lideram diferentes ideologias, e defendem, neste interim, interesses
particulares de determinados grupos sociais. Nas palavras de Bobbio (2000):

“Estado Representativo” quer dizer Estado no qual existe um órgão para as decisões
coletivas composto por “representantes”, mas pouco a pouco assume também o outro

33
significado de Estado no qual existe um órgão decisório que, através de seus
componentes, representa as diferentes tendências ideais e os vários grupos de interesse
do país globalmente considerado (BOBBIO, 2000, p. 458).

Contudo, destaca Bobbio (2000) que essa “representação” deve ser considerada, sempre,
uma “representação de interesses”, ainda que se leve em conta os vários aspectos que a palavra
“interesse” possa tomar. Bobbio (2000) afirma que o termo “interesse” é bastante genérico, e
apenas terá sentido, dentro da ideia de representação, num Estado democrático, quando
qualificado pela intenção que necessita tomar. Nas palavras de Bobbio (2000), “[...] a diferença
está na oposição entre interesses parciais e interesses gerais, entre interesses de grupos
particulares e o interesse da inteira nação [...]” (BOBBIO, 2000, p. 461), e esta “representação
de interesses” tomará forma, ou seja, será privada ou global, a depender da atuação do
representante, dentro do órgão representativo, observando-se os momentos em que este agirá
em defesa da classe que lidera, ou na formação da vontade geral do Estado.
Em consonância, Orides Mezzaroba, em seu livro Introdução ao Direito Partidário
Brasileiro (2004), aduz que a representação, encarada de forma genérica, possui uma infinidade
de conceitos que podem ser considerados nas mais diversas áreas de conhecimento, desde as
artes, a dramaturgia, passando pelas questões cotidianas, do âmbito civilístico, perpetrando pela
noção jurídica da palavra, em seus mais variados ramos, até chegar na sua definição política.
Em suas palavras, tanto o verbo representar quanto o substantivo representação podem
significar “substituir ou agir em nome de alguém; reproduzir, espelhar as características de
alguém ou de alguma coisa; evocar simbolicamente alguém ou alguma coisa; ou ainda
personificar alguém ou alguma coisa” (MEZZAROBA, 2004, p. 10).
Tomando essa ideia de que a representação admite inúmeras formas, ainda segundo
Mezzaroba (2004), encontramos dentre os maiores pensadores clássicos da filosofia, as mais
variadas formas de conceitua-la, com por exemplo Aristóteles, que defendia que a representação
possui um caráter mais intelectual, ou Descartes, que relaciona representação com imaginação.
Chama a atenção, contudo, o conceito de Schopenhauer, que define a representação como a
manifestação da vontade objetificada no mundo real.
Depreende-se da obra, ainda, que a vastidão de conceitos sobre representação também
se agiganta dentro do Direito propriamente dito, ideia a qual, desde o século XIII, vai ganhando
espaço. Frente ao juízo, por exemplo, a ideia de procurador, de acordo com Mezzaroba (2004),
não se iniciou num sentido de representação de maneira geral, mas sim de interventor, que,
contudo, caracterizava em si toda uma sociedade que buscava se apresentar. Entretanto, pelo

34
fato de os defensores da justiça guardarem essa relação com as pessoas, de modo geral, estes
passaram a denominar-se representantes, para se referir à sua atuação profissional.
Todavia, de todas as conceituações possíveis de representação, interessa-nos aquela
feita por Mezzaroba (2004), no âmbito político, qual seja:

A representação proporcional é, no Direito Político, instituto que garante, ao mesmo


tempo que a representação dos grandes Partidos, também a possibilidade de espaço
juridicamente protegido para as minorias partidárias. Da mesma forma, no Direito
Público se opera com o conceito de regime representativo, para qualificar, em sentido
amplo, todo o governo que for escolhido livremente pelo povo através de processo
eleitoral e no qual o Poder é exercido em seu nome (MEZZAROBA, 2004, pp. 13-
14).

Ainda, segundo Mezzaroba (2004), há de se tomar o cuidado em diferenciar


representação da figura do mandato, que, apesar de se apresentarem correlacionadas, são
institutos diferentes. Enquanto a representação se apresenta como essa tese de espelhar algo ou
alguém, o mandato é a ordem propriamente dita, que é dada por alguém e para alguém, para
efetivamente exercer a representação. Conforme aduz Mezzaroba (2004), “o mandato é um tipo
de autorização para que uma pessoa exerça determinadas atividades em nome daquela que lha
deu” (MEZZAROBA, 2004, p. 15).
Contudo, o conceito de representação política, segundo Mezzaroba (2004), não nasceu
da forma como o concebemos hoje em dia. Inicialmente, este conceito de representatividade
não se referia à pessoas, ou à formas de governo, mas sim admitia-se um conceito de
representação voltado à personificação de imagens abstratas, de objetos da natureza. Mesmo na
idade antiga, com as primeiras civilizações, ainda que houvesse um tipo de governo com a
figura de um representante, não se considerava que essa representação projetasse ideias
políticas eleitorais, ou se relacionasse à figura do povo, de forma geral.
A ideia de representação política como projeção das vontades e ideias de uma
comunidade, conforme assegura Mezzaroba (2004), somente vieram a surgir entre os séculos
XIII e XVII, com as reuniões dos burgueses e os lordes do parlamento, os quais foram tomando
para si essa postura de reivindicadores das necessidades de seus conglomerados perante o poder
central da monarquia.
Verifica-se pela obra de Mezzaroba (2004), que as raízes do que se chama de
representação iniciaram na Inglaterra, a partir do século XI, quando os senhores feudais
buscavam limitar os poderes do rei, na necessidade de garantir seus interesses. Inicialmente,
observa-se que os primeiros grupos representativos de classes não necessariamente
representavam os interesses destas, ou do povo, de modo geral, mas sim, eram convocados pelo
35
rei para discutir o interesse deste. Apenas com o passar do tempo, e com a necessidade crescente
que essas classes, principalmente a burguesa, do século XVIII, desenvolviam para proteger seus
próprios interesses, é que esta noção de representação da vontade de outros passou a prosperar,
e mesmo prevalecer sobre a soberania do rei. Nos dizeres de Mezzaroba (2004):

Ao ser introduzida, a representação política não comportava nenhuma implicação


democrática, operava tão somente como instrumento de articulação e acomodamento
das forças políticas no Poder. Somente após a consolidação do Parlamento frente aos
poderes do rei é que o regime político passa a atuar na direção crescente da formação
de um governo representativo (MEZZAROBA, 2004, p. 31).

Já nos Estados Unidos, o surgimento dos ideais de representação se relaciona com a


conjuntura social em que a então colônia inglesa estava inserida. Suas próprias constituições
regionais já demonstravam que se tinha essa ideia de soberania do povo, e que os governantes
lá estavam para defender os interesses da nação. Tanto é que este sentimento de liberdade foi o
motivo primordial que desencadeou na independência deste país.
Enquanto isso, na França, o fator culminante para se instaurar uma ideologia
representativa em seu governo foi a grave crise econômica que o país passou a atravessar após
sua empreitada na guerra de independência norte-americana, o que gerou a instabilidade do
governo, desencadeando nas manifestações das classes menos favorecidas, qual seja o terceiro
estado, composto pelos que não faziam parte da nobreza e do clero, as quais resultaram no
divisor de águas estabelecido pela Revolução Francesa. Foi ali que surgiram as maiores teorias
sobre a representação política do povo, e de onde saíram as maiores inspirações para as
formações de governos que viriam a seguir, como, por exemplo, a própria brasileira.
Hoje em dia, nas palavras de Mezzaroba (2004), o conceito de representação, como o
conhecemos, não é algo que possa ser definido de forma desconectada dos conceitos do sistema
eleitoral, principalmente com relação às ideias liberais de Estado, uma vez que “a razão da
representação política está em possibilitar o controle do Poder do Estado por aqueles que não
podem exercê-lo pessoalmente” (MEZZAROBA, 2004, p. 20).
Com a evolução das teorias dos estados e governos, verifica-se, segundo Mezzaroba
(2004), que a mais recente estrutura de representação se encontra nas definições do estado
liberal, o qual ascendeu como forma de governo em contraponto ao absolutismo vigente na
Europa do século XVIII. No estado liberal, o principal objetivo era garantir a proteção à
propriedade privada, reduzindo o intervencionismo do estado nas questões particulares,
econômicas e sociais.

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Dessa forma, de acordo com Mezzaroba (2004), houve um intenso trabalho dos teóricos
da época, para definir o estado liberal, e foi de onde partiram as primeiras noções de
representação política com o intuito de representar os interesses do povo, ainda que fossem,
inicialmente, a defesa dos interesses de apenas algumas classes sociais.

Obviamente que, de início, o modelo apresentado foi o da representação burguesa,


censitário e excludente, com o qual a burguesia passa “ilusoriamente” a falar em nome
de toda a Sociedade e a estabelecer as normas válidas para todos os indivíduos
(MEZZAROBA, 2004, p. 48).

Contudo, ainda que a representação política somente tenha ganhado força numa Europa
moderna, o primeiro teórico a desenvolver um raciocínio de representação política, segundo
Mezzaroba (2004), foi Thomas Hobbes, ao definir seu Leviatã como a personificação de todos
os homens submetidos à sua autoridade. Entretanto, era exatamente esse o sentido de
representação em Hobbes: o de uma entidade soberana, maior do que tudo e todos, e fundada
na subordinação.
Ainda para Hobbes, no ponto de vista de Mezzaroba (2004), havia uma diferença entre
pessoas naturais e pessoas artificiais, nas quais, enquanto as primeiras eram aqueles cujas
palavras e ações eram manifestações próprias, e as segundas eram aqueles que estavam
representados por outros. Contudo, em Hobbes, a noção de soberania, de onde nasceu seu
conceito de representação, não compreendia um soberano que fazia o que bem entendesse, sem
dever satisfação aos seus súditos, mas sim, que os súditos, ao autorizarem o soberano a
representa-los, não poderiam reclamar de certas decisões tomadas, em prol da prosperidade do
Estado.
Já para Rousseau, a vontade geral era soberana, e, por ser imutável e absoluta, jamais
poderia ser efetivamente representada. Os membros do Legislativo, para ele, eram meros porta-
vozes da vontade geral, e nenhuma lei poderia ser criada sem a ratificação do povo. Em Burke,
a ideia de um Legislativo parte do processo eletivo, onde as pessoas escolhem conscientemente
seus preferidos, sabendo quem os representará, e que estes representantes funcionariam apenas
como fiscais dos interesses dos representados, procurando sempre priorizar o bem comum, sem
se ater às vontades locais, sendo que “estar representado quer dizer simplesmente estar
governado por uma elite”. (MEZZAROBA, 2004, p. 63).
A ideia de um corpo de representantes políticos voltados à projeção de ideias gerais,
com a mesma hierarquia do chefe de Estado, fundado na liberdade das pessoas (ainda que
limitada às leis) somente apareceria com John Locke, que definiu um modelo de governo onde

37
há um Poder Legislativo formado por pessoas de determinada classe social, com determinado
patrimônio, o qual garantiria, perante o Estado e os próprios cidadãos, a segurança e a paz na
manutenção da propriedade privada.
É em Locke que se encontra as primeiras definições de separação de poderes num
Estado, ainda que não tenha sistematizado a ideia. Com Locke, de acordo com Mezzaroba
(2004), “surge o primeiro indicativo da ideia de divisão de poderes, cabendo, contudo, o
exercício do Poder supremo ao Legislativo, cuja função seria a de governar o Povo através de
leis impessoais e gerais” (MEZZAROBA, 2004, p. 51).
Posteriormente, de acordo com Mezzaroba (2004), Montesquieu aperfeiçoa esta ideia
de separação de poderes, como forma de governo, conforme depreende-se da obra. Contudo,
ao revés do que defendia Locke, Montesquieu acreditava que um governo moderado era
composto por três poderes, hierarquicamente iguais, independentes entre si, mas que
fiscalizavam uns aos outros, para evitar os abusos de poder. Para Montesquieu, a soberania
estaria dividida entre os três poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), que permitem a
liberdade política do Estado em comandar a vida dos cidadãos, liberdade esta que não se
confunde com a liberdade dos indivíduos, que somente estarão autorizados a agir conforme as
leis.
Outra diferença que se observa entre Locke e Montesquieu, segundo Mezzaroba (2004),
é que enquanto para o primeiro apenas algumas classes de pessoas poderiam formar o Poder
Legislativo, para o segundo, toda e qualquer classe poderia eleger seus representantes para
compor a Potência Legislativa, para que a vontade do povo estivesse realmente se
manifestando.
Ressalta-se, conforme bem aduz Mezzaroba (2004), que a representação pode aparecer
sob dois aspectos: com relação aos poderes do representante e com relação ao conteúdo da
representação, e através desses conceitos, chega-se a noção de existência ou não de um
mandato.
Com relação aos poderes do representante, segundo Mezzaroba (2004), estes podem ser
delegados ou confiados ao representante. Se são delegados, o representante toma a imagem de
um porta-voz dos anseios da comunidade, ficando desta forma submetido a um mandato
passível de revogação. Por outro lado, quando se trata de uma relação de confiança, ou de um
representante fiduciário, dispensa-se a ideia de um mandato, já que a confiança do representado
é passada ao representante de forma que este encarna em si a própria vontade da maioria, não
agindo como um mero legatário da vontade de todos.

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Inegavelmente, conclui-se que na Democracia de forma representativa, o principal
Poder Estatal que se liga diretamente às massas populares é o Poder Legislativo, que, em sua
função essencial, deve buscar sempre o atendimento à vontade geral das pessoas, que elegeram
seus representantes, para lá lutarem por estes anseios.
Contudo, mesmo no Poder Legislativo, encontra-se uma crise generalizada, tanto de
representação, como de finalidade, uma vez que não há participação popular direta nas
determinações da formação desta vontade maior, a não ser nos períodos eleitorais, onde as
pessoas se veem manipuladas pela falta de conhecimento e pela propaganda incisiva dos
grandes grupos de domínio social (religiosos, políticos, econômicos, entre outros), e também
se deve a existência, na atualidade, de um Parlamento formado, em sua grande maioria, por
classes políticas tradicionais, que procuram se manter no poder infinitamente, para proteger
interesses dissociados daqueles provenientes do povo.
Dessa forma, por muitas vezes, as pessoas procuram em outro lugar a salvaguarda da
predominância da vontade geral, traduzida nas leis formuladas, no intuito de proteger a própria
Democracia. E muitas dessas pessoas refletem no Poder Judiciário a esperança de moralizar
novamente o Poder do Povo. Portanto, verificaremos adiante se o Poder Judiciário pode atuar,
como poder estatal, da forma esperada pela população, bem como se a forma que vem atuando,
com esse objetivo, é a mais adequada perante os princípios da Democracia.

39
CAPÍTULO II

O PODER JUDICIÁRIO E SUA CONJUNTURA FUNCIONAL

A ideia de que a ineficácia do Poder Legislativo acarretou numa procura, por parte da
sociedade, de outro lugar para a consecução de seus Direitos fez com que o Judiciário acabasse
por tomar para si características mais subjetivas, atuando de forma mais ativista em suas
decisões, dando grande importância aos fatos do cotidiano, e à moralidade social, muitas vezes
relegando a própria legislação escrita para um terceiro plano. A partir disso, muitas foram as
críticas produzidas em face dessa atuação judicial, uma vez que as decisões judiciais cada vez
mais passaram a transparecer as vontades dos aplicadores do Direito, e não deste em si.
Dessa forma, uma vez que o Judiciário procura suprir uma necessidade de moralização
social, em virtude de omissões ou corrupções no âmbito do Legislativo, que é o representante
mor da população, numa Democracia, faz-se necessário entender como aquele órgão se legitima
a interpretar as leis em prol da sociedade, bem como de que forma essa hermenêutica pode se
tornar prejudicial à própria Democracia, num Estado de Direito. Para isso, é necessário
entender, inicialmente, os ideais básicos das teorias que predominaram no mundo após o
advento da Democracia Liberal, principalmente no que se refere aos desenvolvimentos do
positivismo e do constitucionalismo, e de que forma uma se relaciona com a outra.
Nesse sentido, inicialmente, retoma-se de forma aprofundada os conceitos de
positivismo, que coloca a legislação como centro do universo do Direito. Nessa senda, o
professor Lênio Luiz Streck, em sua obra Verdade e Consenso (2014), descreve o positivismo
a partir da visão de outro brilhante teórico jurídico, Norberto Bobbio, que divide a corrente
positivista da atualidade em três, quais sejam o positivismo ideológico, o teórico e o
metodológico.

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De acordo com o Streck (2014), Bobbio descreve o positivismo ideológico como a tese
onde o Direito toma o protagonismo total na sociedade e na aplicação judicial, onde todos
devem obediência às leis, e o órgão jurisdicional deve aplicá-la aos casos concretos,
independentemente de seu conteúdo, ou de qualquer juízo moral por parte de seus membros.
Define Streck (2014) que, no âmbito do positivismo ideológico, “[...] em suas decisões, os
juízes devem considerar um único princípio moral: observar tudo aquilo que o direito vigente
determina” (STRECK, 2014, p. 38).
No positivismo teórico, segundo Streck (2014), lei e Direito se confundem como fonte
formal normativa, emanada do Legislativo, desconsiderando completamente a atuação do
Judiciário. Por fim, o positivismo metodológico, ou conceitual, definido por Streck (2014)
como a teoria que mais se reflete atualmente nos modelos de Estado, considera as descrições
dos juristas como matérias primas do Direito, não considerando essa função descritiva da
normatividade como um juízo valorativo. Nesse sentido, Streck (2014) afirma que o
positivismo metodológico sofreu alguns aperfeiçoamentos, que fizeram com que outras coisas
passassem a fazer parte da formação do Direito, como, por exemplo, a discricionariedade
judicial. Segundo Streck (2014):

O grande detalhe que marca essa construção do positivismo jurídico diz respeito ao
fato de, no seu interior, o teórico do direito poder afirmar que, em alguns casos
específicos, os juízes podem decidir casos que não estão previamente previstos de
forma unívoca pela ordem jurídica vigente, sem se contradizer. Nalguns casos, poder-
se-ia afirmar que o juiz pode inclusive deixar de aplicar uma lei porque a considera
moralmente injusta, sem que isso represente uma contradição da teoria. E isso tudo
porque, dentre os critérios de verificação observáveis empiricamente, aparece o da
chamada discricionariedade judicial. (STRECK, 2014, p. 39).

Dessa forma, Streck (2014) afirma que esta discricionariedade se mostra não como um
impasse, dentro do positivismo metodológico, mas sim como uma solução para as controvérsias
jurídicas, sendo considerada uma teoria neutra, na qual os juízes teriam o aval de tomar decisões
a partir de critérios extrajudiciais, podendo, inclusive, deixar de seguir uma normatividade
prévia para tomar uma decisão. Entretanto, Streck (2014) levanta a problemática da
institucionalização da discricionariedade judicial, uma vez que esta não possui respaldo
democrático para existir.
Importa destacar, contudo, que Streck (2014) explica que o positivismo metodológico
pressupõe uma espécie de experimentação entre norma e caso concreto, atuando pelo
empirismo, na aplicação ou não da norma escrita, em cada fato. Para Streck (2014), quem fez
essa teoria evoluir foi Dworkin, que passou a levar em conta o poder interpretativo dos juristas
41
na aplicação das normas, uma vez que, mesmo quando as regras não fossem claras, seria
obrigação funcional e moral do Judiciário encontrar em algum lugar o direito das partes, mesmo
que dentro de princípios, para cumprir com sua responsabilidade política. Dessa forma, Streck
(2014) critica o positivismo por não levar em conta que a discricionariedade jurídica é um
fenômeno político, e não empírico, como queria fazer-se crer.
Streck (2014) afirma, ainda, que a discricionariedade judicial passou a ser mais comum
após o desenvolvimento das teorias constitucionalistas, que surgiram como a leitura liberal do
combate ao absolutismo, num sentido de proteger direitos e princípios básicos da humanidade.
No aspecto brasileiro, aduz Streck (2014) que, por se tratar de um processo constitucionalista
relativamente recente, e conturbado por inúmeros governos autoritários, essa discricionariedade
tomou maior protagonismo, com a justificativa de se resguardar os direitos fundamentais
previstos na Constituição, onde os juízes encontram enormes espaços para fazer valer seu
próprio entendimento sobre o Direito, levando em conta suas vontades pessoais. Nesse sentido,
defende Streck (2014):

Nesse sentido, discricionariedade acaba, no plano da linguagem, sendo sinônimo de


arbitrariedade. E não confundamos essa discussão – tão relevante para a teoria do
direito – com a separação feita pelo direito administrativo entre atos discricionários e
atos vinculados, ambos diferentes de atos arbitrários. Trata-se, sim, de discutir – ou,
na verdade, pôr em xeque – o grau de liberdade dado ao intérprete (juiz) em face da
legislação produzida democraticamente, com dependência fundamental da
Constituição. E esse grau de liberdade – chame-se-o como quiser – acaba se
convertendo em um poder que não lhe é dado, uma vez que as “opções” escolhidas
pelo juiz deixarão de lado “opções” de outros interessados, cujos direitos ficaram à
mercê de uma atribuição de sentido, muitas vezes decorrente de discursos exógenos,
não devidamente filtrados na conformidade dos limites impostos pela autonomia do
direito (STRECK, 2014, pp. 49-50).

Streck (2014) também ensina que a discricionariedade judicial, em verdade, muito se


assemelha aos autoritarismos antigos, quando buscam concentrar o poder em um só corpo de
decisão, uma vez que se constitui em arbitrariedades veladas, cometidas ainda pelo Estado, mas
na figura de outro órgão, diferente do administrativo. Nessa toada, Streck (2014) relembra a
crítica de Dworkin ao pensamento positivista, quando esta pressupõe que o juiz tem
legitimidade para decidir além da norma, nos casos em que esta não é clara, onde o citado
pensador vincula, então, as escolhas dos juízes aos princípios norteadores do Estado, para que
estas decisões não se tornem, portanto, tão arbitrárias quanto se tinha no período pré-liberal.
Destaca, ainda, Streck (2014), que no caso brasileiro, esse imaginário dos juízes é maior,
tamanha a subjetividade empregada em suas decisões, já que aqui há um maior protagonismo
do Judiciário dentro do Estado, e perante a sociedade.
42
Entretanto, entende-se que o controle de constitucionalidade, hoje, o qual é produzido
de forma difusa pelos juízes de Direito, e também de forma concentrada pelo Supremo Tribunal
Federal, é de extrema importância para a concretização da Democracia, conforme defende até
mesmo Streck (2014), durante sua construção ideológica, conforme se verá adiante. Contudo,
nem todos os teóricos que defendem o Estado Democrático de Direito pensam dessa forma. Há
quem defenda que até mesmo o controle de constitucionalidade feito pelo Judiciário caracteriza
um rompimento com a clássica teoria da separação dos poderes. Cabe-nos, a partir daqui,
analisar essas teorias, para compreender onde realmente se encontra o cerne da problemática
do decisionismo judicial, tomando por pressuposto a atuação exclusiva das Cortes Superiores,
em sua função precípua de intérprete da Constituição.

2.1. O Poder Judiciário como intérprete constitucional: o controle de constitucionalidade


como função precípua do órgão jurisdicional

Na conceituação do que podemos considerar ser a função das Cortes Constitucionais,


Mauro Cappelletti, em sua obra O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito
Comparado (1992), afirma que aquelas surgiram num sentido apartado do Poder Judiciário,
muito mais ligado ao Poder Legislativo, uma vez que, na ideia inicial da separação de poderes,
o objetivo dos juízes era apenas o de aplicar as normas, sem conteúdo criativo, ao passo de que
caberia ao Tribunal Constitucional, também chamado por Cappelletti (1992) de “Tribunal de
Cassação”, interpretar as leis em sua matéria e quando dos conflitos provenientes de sua criação.
Contudo, de acordo com Cappelletti (1992), o que se observou, principalmente após a
Revolução na França, foi uma mudança de paradigma do Judiciário, que, no que se refere ao
seu objetivo existencial, possuía “[...] não apenas a função de interpretar, mesmo além da letra,
o verdadeiro sentido da lei, mas, com certeza, a função de julgar a validade das leis, isto é, de
sua correspondência com uma norma superior às próprias leis” (CAPPELLETTI, 1992, p. 43).
Os Tribunais Constitucionais, por sua vez, passaram a integrar o Judiciário num papel de órgão
supremo deste Poder, atuando no controle dos erros dos juízes de instâncias inferiores.
Nesta senda, para entender melhor a atuação dos órgãos do Poder Judiciário, Cappelletti
(1992) procurou analisar a atuação deste, nos mais variados países, a partir do tratamento dado
ao controle normativo, de acordo com cada viés adotado para tanto. Nesse sentido, Cappelletti
(1992) delineia o controle difuso e o concentrado, destacando a ocorrência e as consequências

43
de cada uma perante a sociedade, e perante o próprio Estado, na sua produção normativa, dentro
da ideia democrática de atuação governamental.
Cappelletti (1992), ao descrever o controle difuso, afirma que este ocorre em qualquer
grau de jurisdição, podendo ser feito por qualquer órgão do Judiciário, e que a inaplicabilidade
de uma norma apenas seria afastada ao caso concreto. Contudo, Cappelletti (1992) critica tal
forma de controle, principalmente no que se refere aos países adotantes da common law, que
vincula as decisões aos precedentes jurisdicionais, fazendo com que, inegavelmente, os efeitos
de uma decisão de invalidade normativa passem a ser erga omnes. Nesse caso, de acordo com
Cappelletti (1992), a atuação do Judiciário, num sistema de princípio de vinculação aos
precedentes, iria para além da interpretação da lei no caso concreto, exercendo um verdadeiro
juízo de eliminação de leis, por lhes retirar a eficácia. Nas palavras de Cappelletti (1992):

Mas eis, ao invés, que, mediante o instrumento do stare decisis, aquela “mera não
aplicação”, limitada ao caso concreto e não vinculatória para os outros juízes e para
os outros casos, acaba, ao contrário, por agigantar os próprios efeitos, tornando-se, em
síntese, uma verdadeira eliminação, final e definitiva, válida para sempre e para
quaisquer outros casos, da lei inconstitucional: acaba, em suma, por tornar-se uma
verdadeira anulação da lei, além disso, com efeito, em geral, retroativo
(CAPPELLETTI, 1992, p. 82).

Já num sistema de controle concentrado, Cappelletti (1992) explica que este se preocupa
muito mais com a nítida separação dos poderes, num sentido de evitar algum autoritarismo que
pudesse ressurgir com a supremacia de algum poder sobre outro, transferindo o controle da
normatividade para um Corte Constitucional, não contemplando tal poder para os órgãos
jurisdicionais como um todo. Dessa forma, o Tribunal Constitucional, segundo Cappelletti
(1992), deveria se ater à interpretação da lei, delimitar sua validade perante os princípios e
regramentos da Constituição, e determinar sua eficácia erga omnes, de maneira geral, jamais
ampliando essa interpretação para além das margens definidas na Carta Magna, de modo que
as fundamentações das decisões sempre girem em torno da normatividade existente, afastando
a amplitude da vinculação aos precedentes.
De outro modo, surge a teoria de Jürgen Habermas, ao analisar a estrutura da divisão de
poderes em sua obra Direito e Democracia: entre a facticidade e a validade (1997), onde
admitiu a hipótese de um poder lançar mão da competência de outro poder, e questionou como
essa situação se relacionava com a produção da normatividade num Estado Democrático. Para
Habermas (1997), a questão da intervenção entre os poderes já se inicia no controle de
constitucionalidade exercido pelas Cortes Federais, uma vez que, levando-se em conta o
conceito de Democracia como autodeterminação dos povos, este controle, quando analisado em
44
sua forma abstrata, deveria caber ao próprio legislativo, que é o órgão legitimado para fazer
leis.
Ainda, de acordo com Habermas (1997), essa concentração do controle de
constitucionalidade no Poder Legislativo auferiria a este órgão o autocontrole, determinando
definitivamente a autonomia do poder. A lógica que Habermas (1997) entende existir, nesse
sentido, é a de que “O legislador não dispõe da competência de examinar se os tribunais, ao
aplicarem o direito, se servem exatamente dos argumentos normativos que encontraram eco na
fundamentação presumivelmente racional de uma lei” (HABERMAS, 1997, p. 301).
Habermas (1997) buscou ainda comparar o entendimento sobre o assunto, de dois dos
maiores estudiosos clássicos da teoria do direito, nos quais as legislações mais recentes,
principalmente a brasileira, têm se inspirado: Carl Schmitt e Hans Kelsen. Segundo Habermas
(1997), o primeiro defendia que o controle de constitucionalidade abstrato não concebia uma
questão de simples aplicação de norma, já que se fosse assim, haveria apenas a comparação
destas, sem a subsunção de normas gerais umas sobre as outras, e para o segundo somente seria
possível a sobreposição de uma norma hierarquicamente superior, quando a norma inferior
contivesse vícios em sua formação, contudo não preconizava tal acontecimento às normas com
vícios materiais.
Dessa forma, Habermas (1997) explica que esta análise de normatividade, nos Estados
democráticos, acabou recaindo sobre o Poder Judiciário, mais especificamente, aos tribunais
constitucionais, por uma precaução em proteger os direitos fundamentais, e que, inicialmente,
este controle de constitucionalidade se prestava a ponderar princípios de direito, quando estes
se contrapunham um com outro.
Ainda de acordo com Habermas (1997), existia o entendimento de que o direito é
indeterminado, e não se encontra em todo o tempo dentro da lei expressa, sendo função da
jurisdição encontrar esse direito e realiza-lo em suas decisões. Ressalta Habermas (1997),
também, que esta situação fática, não constitui necessariamente uma ameaça à lógica da divisão
de poderes. Uma ameaça à separação de poderes, e consequentemente ao próprio Estado
Democrático, de acordo com Habermas (1997), poderia surgir no seguinte contexto:

Nos domínios da ação não-formalizada, a possibilidade de contextualização de uma


aplicação de normas, dirigida à totalidade da constituição, pode fortalecer a liberdade
e a responsabilidade dos sujeitos que agem comunicativamente; porém, no interior do
sistema de direito, ela significa um crescimento de poder para a justiça e uma
ampliação do espaço de decisão judicial, que ameaça desequilibrar a estrutura de
normas do Estado clássico de direito, às custas da autonomia dos cidadãos
(HABERMAS, 1997, p. 306).

45
Nesse sentido, Habermas (1997) afirma que se tornou tão grande a importância
normativa que se deu aos direitos fundamentais e aos princípios de direito, que as normas
expressas passaram a não ser aplicadas conforme suas próprias diretrizes, aplicando-se muito
mais os valores comuns da principiologia normativa. Esta, de acordo com Habermas (1997),
possui uma abstração tão grande, que pode tomar diferentes conclusões a cada caso julgado,
fazendo com que o Poder Judiciário agisse numa função legislativa concorrente, dando-se muita
ênfase à jurisdição, e retirando o protagonismo dos verdadeiros representantes do povo,
legitimados para tal, o que vai de encontro com os preceitos de um Estado liberal.
Habermas (1997), nessa senda, ainda afirma que, apesar de, dentro de uma Democracia,
considerar-se que a jurisdição interventiva é necessária na interpretação das normas, visto a
preponderância dos princípios e dos valores comuns nas sociedades atuais, que adquirem
validade com as decisões judiciais, deve-se tomar cuidado com o excesso de decisionismo e de
apropriação de funções atípicas ao poder jurisdicional, sob o risco de “Ao deixar-se conduzir
pela ideia da realização de valores materiais, dados preliminarmente no direito constitucional,
o tribunal constitucional transforma-se numa instância autoritária” (HABERMAS, 1997, p.
321).
Nesta senda, a autora Yuri Frederico Dutra, em sua obra Democracia e Controle de
Constitucionalidade (2012), resgata a pesquisa de Habermas, confrontando as teorias de Kelsen
e Schmitt, no contexto atual da separação dos poderes, trazendo a problemática da concorrência
de funções também no âmbito do controle de constitucionalidade.
Dutra (2012) reafirma o entendimento de Habermas, quando suscita que a análise de
como se dá a interpretação das leis feita pelo Judiciário devem verificar se os valores sociais à
época da decisão não estão sendo impostos de modo arbitrário. Percebe-se da obra que, não se
busca denegar a importância da reflexão nas interpretações judiciais, apenas que as divagações
feitas no âmbito da justificação das decisões não podem implicar em inovação normativa. Em
suas palavras “[..] A discussão do bem e o justo, não cabe ao poder Judiciário, mas a teoria
discursiva auxilia na correta aplicação do direito, porque a teoria normativa é composta por
uma parte em que escolhas morais são necessárias e auxiliam nas escolhas a serem tomadas”
(DUTRA, 2012, p. 26).
Nesse sentido, Dutra (2012) expõe que, na teoria da proteção da Constituição, Schmitt
não entendia ser correto a delegação da interpretação da norma ao Poder Judiciário, devendo
caber a este apenas a subsunção normativa, bem como a aplicação da norma ao caso concreto.
Dutra (2012) explica que, no entendimento do citado pensador, é função precípua do

46
Legislativo decidir, de forma política, sobre a validade formal e material das leis, uma vez que
este é o órgão legítimo de representação do povo, restando ao Poder Executivo, de forma
subsidiária, tal função, a partir do momento em que o Legislativo se mostrasse impossibilitado
de o fazer, já que “[...] no Contrato Social, o príncipe (o soberano, no Estado Absolutista) havia
delegado ao povo o direito de ser representado pelo Legislativo [...], podendo retomar esse
direito novamente” (DUTRA, 2012, p. 31).
Já para Kelsen, de acordo com Dutra (2012), a interpretação da norma, e também a
proteção à Constituição caberia a um órgão neutro, que não deveria ser nem o Executivo, nem
o Legislativo, para garantir que não se retornasse à uma situação de concentração de poder, e
consequentemente, um autoritarismo governamental. Para o citado pensador, segundo Dutra
(2012), este órgão seria o Tribunal Constitucional, que diferentemente dos juízes de primeira
instância, estes sim apenas aplicadores da norma, os compositores daquele teriam a prerrogativa
de interpretar a norma de forma a validá-la ou não, agindo não com um caráter jurídico, mas
sim político. Ainda, para Dutra (2012), Kelsen defendia que o Tribunal Constitucional fosse
eleito pelo povo, mas admitia que sua legitimidade para atuar da forma descrita existiria da
mesma forma, caso fossem escolhidos a partir dos outros poderes. Nesse sentido, definiu Dutra
(2012):

Assim, em alguns Estados, há um órgão superior, que está acima do Legislativo,


Judiciário e Executivo, que é o tribunal constitucional; em outros, esse órgão faz parte
do Judiciário, como por exemplo, o Supremo Tribunal Federal, no Brasil. O tribunal
constitucional é responsável pela interpretação da Constituição, pela proteção da
coerência da ordem jurídica e por dirimir as disputas entre órgãos Legislativo,
Executivo e Judiciário, bem como analisar o controle de constitucionalidade de
normas jurídicas e os recursos constitucionais (DUTRA, 2012, p. 48).

Segundo Dutra (2012), no estudo sobre o pensamento de Habermas, este defende que
se justificaria o controle das leis pelo tribunal constitucional, a partir do momento em que não
houvesse uma efetiva representação do povo no Legislativo, quando este se corrompe na
elaboração normativa. Para o pensador, o tribunal, normalmente, age como guardião da
Constituição, e tem sua legitimidade na proteção procedimentalista das normas. Contudo, o que
vem ocorrendo nos tribunais constitucionais, de acordo com Dutra (2012), é a prática do
paternalismo2, no qual o Judiciário passa a tomar decisões pelo povo, usurpando a função
precípua do Legislativo, e a qual deve ser evitada num Estado Democrático.

2
Dutra (2012) descreve paternalismo a partir da ideia de Habermas, que dizia se definir como “a usurpação por
um dos Poderes da autonomia de vontade da população”, e afirma também que não é papel do tribunal
constitucional agir de forma a assumir o protagonismo da produção normativa do Estado.
47
Entretanto, essa ideia de renegar a função judicial do controle de constitucionalidade
não é o que predomina nos Estados de Direito. Em verdade, grande parte dos estudiosos atuais
criticam a posição de Habermas, considerando-o formalista demais, e defendendo que esse
controle feito pelo Judiciário não interfere nas funções do Legislativo, sendo, inclusive,
necessário para a efetivação da Democracia. O real problema da atuação do Judiciário, para
estes autores, como se verá adiante, e que prejudica a Democracia, ao não respeitar o basilar da
separação de poderes, é a possibilidade de interferência de fatores externos ao Direito, os quais
demonstram uma importância demasiada para os juristas atuais, e que têm como consequência
mudanças de paradigmas relacionados às leis e princípios delineados na Constituição.

2.2. Interpretação judicial e discricionariedade: as atuais formas de se fazer justiça no


sistema Judiciário

Num sentido de compreender melhor essas críticas feitas à atuação do Poder Judiciário,
em sua função como intérprete legal, principalmente no que tange às Cortes Constitucionais,
remonta-se ao que defende Cappelletti, em sua obra Juízes Legisladores? (1999), o qual procura
analisar o fenômeno da interpretação judicial dentro do sistema de separação de poderes,
admitindo que, com a expansão do Estado, naturalmente a atuação de todos os seus Poderes
também foi tomando novas formas, especialmente no tocante ao Judiciário, frente ao
Legislativo, com o crescimento, também, do papel criativo dos juízes, na formulação de suas
jurisprudências.
Cappelletti (1999), em seu estudo, adverte que essa expansão dos poderes,
principalmente do Judiciário, no que se refere à sua função de intérprete das leis, é necessária
para se fazer o contrapeso com os demais Poderes Estatais, dentro de um sistema democrático
de “checks and balances”3. Contudo, afirma Cappelletti (1999) que se faz necessário entender
quais são os limites que essa interpretação deve ter, para manter-se legítima neste sistema.

3
Segundo Oriana Piske de A. Barbosa e Antonio Benites Saracho, “O Sistema de Freios e Contrapesos consiste
no controle do poder pelo próprio poder, sendo que cada Poder teria autonomia para exercer sua função, mas seria
controlado pelos outros poderes. Isso serviria para evitar que houvesse abusos no exercício do poder por qualquer
dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Desta forma, embora cada poder seja independente e autônomo,
deve trabalhar em harmonia com os demais Poderes” (BARBOSA, Oriana Piske de A; SARACHO, Antonio
Benites. Considerações sobre a Teoria dos freios e contrapesos (Checks and Balances System). Publicação em
2018. Disponível em <https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/artigos-discursos-e-
entrevistas/artigos/2018/consideracoes-sobre-a-teoria-dos-freios-e-contrapesos-checks-and-balances-system-
juiza-oriana-piske> Acesso em: 25 mai. 2019).
48
Inicialmente, Cappelletti (1999) compara os conceitos de “interpretação” e “criação do
direito”, no âmbito do Poder Judiciário, justificando que a linha entre um e outro é bastante
tênue, e que seria impossível, na interpretação das leis e sua aplicação aos casos concretos, não
haver um mínimo de criatividade por parte dos juízes. Cappelletti (1999), nesse sentido, afirma
que essa mínima criatividade é necessária porque as leis sempre deixam lacunas que devem ser
preenchidas com a interpretação judicial, e que por serem essas leis criadas dentro de uma certa
conjuntura temporal, faz-se necessário modificar, em certos casos, o entendimento que se tem
sobre elas, para adequá-las ao momento atual. Portanto, nas palavras de Cappelletti (1999), “O
verdadeiro problema, portanto, não é o da clara oposição, na realidade inexistente, entre os
conceitos de interpretação e criação do direito. O verdadeiro problema é outro, ou seja, o do
grau de criatividade e dos modos, limites e aceitabilidade da criação do direito por obra dos
tribunais judiciários” (CAPPELLETTI, 1999, p. 21).
Para Cappelletti (1999), tanto o Judiciário, quanto o Legislativo, são Poderes
legitimados para a criação da normatividade, contudo um não se confunde com o outro, na
medida em que o primeiro tem maior grau de criatividade que o segundo, num sentido de que,
na aplicação da norma ao caso concreto há maiores divagações e comparações normativas do
que na formulação de uma lei específica, mas essa criatividade deve estar subsumida aos
preceitos formulados por este. Nesse sentido, Cappelletti (1999) afirma que o intérprete da lei
não está totalmente vinculado às normas legislativas, uma vez que existem princípios legais e
morais que também regulam a sociedade, entretanto, a sua liberdade interpretativa também não
é absoluta, de modo que não pode fundamentar-se apenas em critérios de valoração, devendo
apoiar sua argumentação no direito judiciário ou legislativo. Nas palavras de Cappelletti (1999):

Por isso, deve ser firmamente precisado que os limites substanciais não são
completamente privados de eficácia: criatividade jurisprudencial, mesmo em sua
forma mais acentuada, não significa necessariamente “direito livre”, no sentido de
direito arbitrariamente criado pelo juiz do caso concreto. Em grau maior ou menor,
esses limites substanciais vinculam o juiz, mesmo que nunca possam vinculá-lo de
forma completa e absoluta (CAPPELLETTI, 1999, p. 26).

Cappelletti (1999) atribui essa nova maneira de pensar o Poder Judiciário à evolução da
própria figura de Estado, principalmente das influências que as mais diferentes formas de atuar
da democracia tiveram sobre as sociedades. Inicialmente, Cappelletti (1999) pontua que a
criatividade inserida nas decisões judiciais, perante as leis, se deu pela necessidade de fuga do
positivismo e do formalismo que passaram a imperar após o absolutismo, de maneira que

49
aquelas correntes de pensamento estavam, de certo modo, igualando-se a esta, quando passaram
a engessar determinadas atuações sociais, dentro e fora do Estado.
Nesse sentido, para Cappelletti (1999), na medida em que os Poderes Legislativo e
Executivo foram tomando para si cada vez mais responsabilidades, no que concerne a essa
necessidade de inovação legal e administrativa, para a continuidade do Estado, e se agigantando
como Poder, o Judiciário necessitava, de algum modo, igualar-se aos outros órgãos, para fugir
da figura de mero aplicador do direito. Nesse ponto, Cappelletti (1999) aduz que os Tribunais
Constitucionais, a depender do sistema de governo adotado, assumiu o dever de interpretar
criativamente as designações dos demais Poderes, chegando até mesmo a controla-los, a partir
de suas decisões, o que explica de onde o Judiciário retira sua legitimação para atuar de maneira
criativa. Ainda de acordo com Cappelletti (1999), essa inovação judicial é muito mais comum
nos países que adotaram um sistema de “checks and balances”, do que naqueles que
procuraram seguir à risca os desígnios de Montesquieu. Desse modo, em suas palavras:

Os tribunais judiciários ordinários [...] passaram com audácia a aceitar a tarefa de


ultrapassar o papel tradicional de decidir conflitos de natureza essencialmente privada.
Todos os juízes, e não apenas alguns daqueles novos juízes especiais [...] tornaram-
se, dessa maneira, os controladores não só da atividade (civil e penal) dos cidadãos,
como também dos “poderes políticos”, nada obstante o enorme crescimento destes no
estado moderno [...] (CAPPELLETTI, 1999, p. 49).

Cappelletti (1999) defende, ainda, que a criatividade nas decisões é fundamental para o
Estado, considerando-se um sistema de balanceamento entre os Poderes. Cappelletti (1999)
também aduz que a consequente criação normativa proveniente da inovação na interpretação
das leis, dentro das decisões, não pode ser considerada um “legislar” dos juízes, uma vez que
os procedimentos para a criação de leis e para a produção de decisões são completamente
diferentes.
Entretanto, Cappelletti (1999) enumera vários defeitos para a legitimação da produção
normativa através das decisões por interpretação do Judiciário, como, por exemplo, a falta de
acesso à verdadeira informação, já que o excesso de produção normativa, em inúmeros sentidos,
bem como o grande volume jurisprudencial de aplicação das normas, formuladas ao longo dos
tempos, faz com que haja uma confusão no momento de aplicar tais resoluções aos casos
concretos. Nesse sentido, Cappelletti (1999) defende que a saída para evitar tais confusões é o
Judiciário voltar-se muito mais para o sistema de precedentes, uma vez que estes são muito
mais flexíveis para serem aplicados aos casos concretos, diferentemente da norma positivada,
que possui uma conotação mais objetiva.

50
Outro defeito elencado por Cappelletti (1999) é a eficácia retroativa das decisões, já que,
naturalmente, se aplicam a situações que ocorreram antes de sua existência, pois sua
intervenção na vida social sobrevém apenas quando provocada por alguém. Nesse sentido, pelo
fato de ter uma eficácia retroativa, retira o sentimento de segurança jurídica que a normatividade
positivada dá as partes, pois estas nunca saberão de que forma o Judiciário interpretará aquela
norma aplicada ao caso concreto.
Uma terceira limitação descrita por Cappelletti (1999) é a incompetência institucional
do Judiciário para produzir entendimento normativo para a sociedade. Segundo Cappelletti
(1999), a produção normativa efetuada pelo Legislativo conta com inúmeros fatores externos,
como estudos socioeconômicos, recursos financeiros, entre outros. Contudo, essa limitação é
amenizada por Cappelletti (1999), quando este diz que o Judiciário também pode se valer de
instrumentos parecidos, como perícias e pareceres técnicos sobre os assuntos, bem como
problematiza a produção normativa do Legislativo, uma vez que nem sempre é técnica e pode
sempre estar submetida à interesses locais e corporativos, vícios estes, no ponto de vista de
Cappelletti (1999), inexistentes no âmbito Judiciário.
Um último defeito, o mais relevante, de acordo com Cappelletti (1999), é a falta de
legitimação democrática do Judiciário, na produção normativa. Segundo Cappelletti (1999), os
juízes seriam absolutamente incompetentes para produzir normas porque não são representantes
diretos do povo, além de que “[...] num sistema democrático é, obviamente, assegurada a
independência dos juízes, mas tanto mais são esses independentes, tanto menos obrigados a
‘prestar contas’ das suas decisões ao povo ou à maioria deste e a seus representantes”
(CAPPELLETTI, 1999, p. 93).
No entanto, por ser a favor de tais intervenções inovativas do Judiciário, Cappelletti
(1999) contraargumenta a citada limitação, dizendo que, mesmo que o Judiciário não seja
diretamente representativo do povo, tampouco o é os poderes Executivo e Legislativo, uma vez
que estes somente representam parcelas da população, concentrados em grupos de interesses
locais. Além disso, afirma que o Judiciário pode ser sim considerado representativo, na medida
em que as decisões tomadas pelos juízes são públicas, e, portanto, submetidas ao controle social,
bem como os juízes que presidem os órgãos deliberativos são renovados com o passar do tempo,
onde pode-se alterar o viés filosófico das Cortes. Por fim, Cappelletti (1999) ainda aduz que é
no Judiciário que as pessoas têm maior envolvimento direto, uma vez que este órgão somente
atua quando provocado pelas partes, e é o único onde as pessoas (ainda que somente as
envolvidas) participam diretamente na formação do convencimento do juiz.

51
Denota-se, portanto, que Cappelletti (1999) legitimou a criatividade judiciária através
da própria função do Judiciário, em aplicar as leis aos casos concretos, mesmo que de maneira
inovadora, mas não fugindo do conjunto normativo e principiológico existente. O que
Cappelletti (1999) não levou em conta, é que, com o passar do tempo, as decisões judiciais
criativas passaram a receber influências externas, conforme se pode depreenderá no tópico a
seguir.
Nesse mesmo sentido, retoma-se o estudo de Lênio Luiz Streck, em sua obra Verdade e
Consenso (2014), onde verifica-se que o positivismo é visto como uma teoria mais rígida, com
relação à aplicação da norma aos casos concretos, e não leva em conta a legitimação das
decisões tomadas, ficando a sociedade à mercê do entendimento privatista dos poderes. Nesse
sentido, surgiu o constitucionalismo, em contraposição à ideia anterior, com a intenção de
auxiliar o Poder Legislativo na produção normativa, uma vez que este não consegue antever
todas as situações que necessitam de legislação, atuando também como limitador da
discricionariedade dos juízes, em suas decisões, a partir dos princípios e direitos fundamentais
elencados e protegidos na Carta Maior. Para Streck (2014), o fenômeno do constitucionalismo,
que deveria vir neste sentido de condicionar toda a normatividade aos direitos fundamentais
que preleciona, seria essencial para a construir as condições do Estado Democrático de Direito,
no que se refere à produção e aplicação da lei.
Contudo, o que de fato acabou ocorrendo, principalmente nos países de Democracia
jovem, como no caso brasileiro, foi o aumento do protagonismo das decisões judiciais, apenas
rompendo com o pensamento positivista primitivo, que era extremamente rígido com a
produção e aplicação da normatividade estatal. Depreende-se que esse protagonismo se deve
pelo fato de a Constituição, além de possuir conteúdo normativo relativamente estático, ser,
principalmente, uma convenção política, que ao mesmo tempo em que deriva da Democracia e
da vontade geral, através da jurisdição, é a mesma limitada por esta, possuindo, portanto, um
sentido ambíguo em sua própria existência.
Nesse sentido, Streck (2014) ressalta a importância de se entender o fenômeno do
controle de constitucionalidade, dentro de cada realidade Democrática, para entender de que
forma ocorre o deslocamento de funções entre os poderes Estatais. No caso brasileiro, por
exemplo, relembra Streck (2014) que, quando da constituinte de 1986-88, permaneceu-se com

52
o sistema norte-americano do judicial review4, onde delegou-se a função de controle de
constitucionalidade ao Judiciário, de maneira difusa. De acordo com Streck (2014):

No Brasil, há um elenco considerável de juristas que [...] defendem uma atuação mais
efetiva da justiça constitucional, questão que assume maior visibilidade em face da
notória inefetividade da Constituição e da omissão dos poderes legislativo e executivo
na execução de políticas públicas, circunstância que demanda a utilização dos
mecanismos (ações constitucionais, controle de constitucionalidade etc.) aptos à
realização dos direitos substantivos previstos na Constituição (STRECK, 2014, p. 91).

Ensina-nos também, Streck (2014), que duas são as principais teorias que procuram
entender como funciona o controle de constitucionalidade perante as sociedades modernas,
quais sejam o procedimentalismo, da qual um dos maiores expoentes é Jürgen Habermas, e o
substancialismo, da qual Streck (2014) é adepto. Streck (2014) ainda tece várias críticas ao
procedimentalismo, aduzindo que este considera a Constituição apenas como um caderno
legislativo procedimental, e que qualquer produção material de lei é de incumbência do
Legislativo, sendo que o controle de constitucionalidade não poderia ser efetuado pelo
Judiciário, sob risco de se estar suprimindo o poder de outro ente estatal. Já o substancialismo
entende que a Constituição deve sim ter aspectos legais materiais, e que é necessário à
democracia que o controle de constitucionalidade seja efetuado por órgão diferente do
Legislativo, como um Tribunal Constitucional, de ares políticos e jurídicos, e que a jurisdição
constitucional, até certo ponto, é saudável ao Estado Democrático, uma vez que permite a ampla
proteção aos direitos fundamentais, que por muitas vezes é ignorado pelo Legislativo.
Dessa forma, denota-se que Streck (2014) defende certa intervenção judicial, na medida
em que as decisões visem à proteção dos direitos fundamentais, quando da omissão do Poder
Legislativo, contrapondo-se ao entendimento de Habermas, de que até mesmo o controle de
constitucionalidade fere os conceitos primordiais de Democracia. De acordo com Streck (2014),
“O que ocorre é que, em países de modernidade tardia como o Brasil, na inércia/omissão dos
poderes Legislativo e Executivo [...], não se pode abrir mão da intervenção da justiça
constitucional na busca da concretização dos direitos fundamentais de várias dimensões”
(STRECK, 2014, pp. 198-199).

4
Nas palavras de Édlon Nunes, o sistema de judicial review “se traduz na possibilidade do Poder Judiciário rever
os atos dos demais poderes e até invalidar as leis. Esse modelo teve origem nos EUA, onde a importância atribuída
às decisões judiciais, justamente por força do judicial review, exigiram para a funcionalidade do sistema, a adoção
do efeito vinculante aos precedentes judiciais” (NUNES, Édlon. Afinal, de quem é a última palavra? Uma análise
sobre o “judicial review”. Publicação em 2017. Disponível em
<https://edlonnunes.jusbrasil.com.br/artigos/519674087/afinal-de-quem-e-a-ultima-palavra-uma-analise-sobre-o-
judicial-review> Acesso em 26 mai. 19).
53
Contudo, Streck (2014) esclarece que, tanto na teoria procedimentalista, quando na
substancialista, não se compactua com arbitrariedades que possam surgir da prática do
decisionismo. Para Streck (2014), é fundamental que a jurisdição constitucional, para que seja
saudável, esteja devidamente de acordo com os preceitos delineados na Constituição, não
podendo, em hipótese alguma, acarretar em supressão de direitos aos cidadãos, ou
interpretações dissonantes que configurem a insegurança no sistema judiciário.
Nesta senda, para se entender como a discricionariedade judicial atua no Brasil, Streck
(2014) explica que o constitucionalismo brasileiro é de difícil compreensão, e de tamanha
abrangência hermenêutica, porque o país adotou indiscriminadamente várias teorias de
inúmeros países, com realidades sociais diferentes, não levando em conta tais diferenças, o que
acabou originando tal desorganização. Segundo Streck (2014), três teorias adotadas pela
jurisdição brasileira, principalmente, se destacam, quais sejam a teoria da Jurisprudência de
Valores, a teoria da argumentação de Alexy, e o ativismo judicial norte-americano.
Com relação à Jurisprudência de Valores e a teoria da argumentação de Alexy, estas de
certa forma se contradizem em suas fundamentações básicas, uma vez que a primeira pressupõe
a existência de inúmeros princípios compilados numa Constituição, e que é tarefa do
jurisdicionado se basear nesses valores fixados para tomar as decisões, enquanto a segunda
admite a regra da ponderação de princípios, no qual o juiz deve escolher qual princípio norteará
o caso concreto.
No que se refere ao ativismo judicial, por sua vez, Streck (2014) explica que o conceito
foi adotado pelo Brasil de modo equivocado, uma vez que nem mesmo nas Cortes norte-
americanas, onde o ativismo surgiu, há um consenso sobre a positividade ou não de tal prática.
No âmbito brasileiro, de acordo com Streck (2014), o ativismo foi adotado de maneira tão
abrangente, que essa teoria acabou se tornando um princípio de Direito, imposto pelo próprio
Judiciário sobre suas decisões.
Streck (2014) ainda delineia que o equívoco na adoção dessa teoria, no território
nacional, se dá pela confusão (proposital ou não) que os juristas fazem com os conceitos de
ativismo e mutação constitucional. Enquanto a mutação constitucional se caracteriza pela
inovação na interpretação normativa, sem, contudo, se afastar do texto escrito da norma, no
ativismo “[...] temos uma decisão que vai além do próprio texto da Constituição, acarretando o
que Hesse chama de rompimento constitucional, quando o texto permanece igual, mas a prática
é alterada pelas práticas das maiorias” (STRECK, 2014, p. 63).

54
Dessa forma, o ativismo judicial é encarado por Streck (2014), como uma problemática,
dentro de um Estado Democrático de Direito, principalmente quando ocorre no âmbito da Corte
Constitucional, que institui tal prática na interpretação da Carta Maior do Estado, uma vez que
os juristas Constitucionais performatizam verdadeiras inovações textuais na Constituição, com
a desculpa de se estar agindo por uma mutação constitucional, pretendendo, contudo, modificar
o texto escrito da norma, sem ter a legitimidade Constitucional e política para isso, a qual
sabidamente pertence ao Poder Legislativo, através dos procedimentos legalmente bem
definidos. Ressalta Streck (2014), ainda, que a prática do ativismo judicial está tão subvertida,
que até mesmo regras de interpretação normativa se tornam princípios nas mãos desses atores,
como é o caso da ponderação, da proporcionalidade e da razoabilidade que, para justificar o
ativismo, se tornaram verdadeiros dogmas legais, inquestionáveis, de evocação ensimesmada,
aplicados à rodo na tentativa de legitimar tal atuação jurisprudencial.
Mesmo com tamanha crítica às decisões discricionárias do Judiciário, Streck (2014) não
possui total aversão à intervenção judicial, conforme já se pôde observar. Para Streck (2014),
“[...] além da faceta ‘negativa’ de proteção contra atos e abusos dos poderes estatais, é obrigação
da jurisdição constitucional efetuar uma efetiva proteção positiva, estando os juízes e tribunais
obrigados, por meio da aplicação, interpretação e integração, a outorgar às normas de direitos
fundamentais a maior eficácia possível no âmbito do sistema jurídico” (STRECK, 2014, p.
215).
No entanto, Streck (2014) deixa claro que sua defesa à jurisdição constitucional não se
confunde com as críticas ao decisionismo judicial, imbuído de subjetivismo, no qual ocorrem
arbitrariedades por parte dos juízes e tribunais, e o qual verifica-se antidemocrático. Streck
(2014) explica que jurisdição constitucional não se confunde com discricionariedade judicial,
sendo esta o “[...] próprio paradigma positivista que o constitucionalismo do Estado
Democrático de Direito procura superar, exatamente pela diferença ‘genética’ entre regras e
princípios” (STRECK, 2014, p. 228).
Dessa forma, Streck (2014) afirma que o fenômeno que ocorreu com o
constitucionalismo atual foi uma regressão à importância que se dá ao subjetivismo judicial nas
decisões, que era predominante na fase positivista, onde o juiz possuía discricionariedade de
buscar a fonte do direito das partes fora do conjunto normativo, quando este não conseguia se
subsumir à facticidade. Além disso, segundo Streck (2014), o constitucionalismo existente hoje
em dia, principalmente no âmbito brasileiro, falhou em sua fundamentação básica, que era a de
propor que os princípios garantidos na Carta Magna fossem genéricos a ponto de permitir que

55
a jurisdição interpretasse as leis e os casos concretos a partir de seus nortes, já que deixou-se
levar pela institucionalização da moralidade e da própria facticidade à aplicação normativa nas
decisões, contaminando, portanto, a contextualização da existência do próprio Direito,
conforme verificaremos a seguir.

2.3. A problemática do decisionismo e a fuga às funções básicas do órgão jurisdicional

Uma das maiores críticas que se faz à discricionariedade judicial é a contaminação que
as decisões judiciais sofrem de agentes externos ao Direito, principalmente fatores subjetivos,
como aspectos políticos e morais adotados pelos aplicadores da lei. Nesse sentido, denota-se
do estudo de Lênio Luiz Streck, em sua obra Precisamos Falar Sobre Direito e Moral (2019),
como tais fatores afetam a realidade da Democracia no Estado de Direito brasileiro, uma vez
que a criatividade das decisões, hoje em dia, já ultrapassou, e muito, os limites defendidos pela
Constituição, para a interpretação inovativa saudável, por parte do Judiciário.
Streck (2019) inicia sua crítica ao decisionismo criativo, principalmente no âmbito
brasileiro, ressaltando essas influências externas, que num Estado Democrático de Direito, vêm
afetando a normatividade, e consequentemente, a vida dos cidadãos. Streck (2019) delineia os
três principais fatores que, nos últimos anos, procuram influenciar as decisões judiciais, quais
sejam a política, a economia e a moral, sendo que, para Streck (2019), esta última é a que mais
causa prejuízos ao Direito.
Streck (2019) explica que, numa Democracia, onde há uma ideia de abrir mão de certas
liberdades para a convivência harmônica de todos, de acordo com as leis, confundir Direito com
moral é basicamente envenenar todos os princípios democráticos de um Estado, pois o primeiro
não pode se submeter ao segundo. De acordo com Streck (2019), “ [...] na Democracia não é a
moral que deve filtrar o Direito e, sim, é o Direito que deve filtrar os juízos morais” (STRECK,
2019, p. 11). Nesse sentido, defende Streck (2019) que o Direito deve estar acima da Moral, de
modo que não pode se deixar levar por paixões pessoais para ser aplicado, uma vez que a moral
pressupõe juízos de valores e opiniões diferenciadas, e o Direito, a validade de uma norma, não
pode ficar refém dessas divergências, que são completamente subjetivas. Nas palavras de Streck
(2019):

[...] por mais que um discurso moral, político ou econômico seja tentador, ele deve
pedágio ao Direito. Alguém pode até confessar que matou alguém, mas, se essa
confissão for produto de uma intercepção telefônica ilícita, deve ser absolvido, porque
a prova foi ilícita. Esse é o custo da democracia. Você pode pensar o que quiser sobre
56
o réu; mas, como autoridade, só pode agir com responsabilidade política. [...] E, assim,
o custo da democracia é que a acusação, o Estado, deve ter o ônus da prova. Não é o
juiz que faz a prova nem é o juiz que intui provas. A Teoria da Prova é condição de
possibilidade. (STRECK, 2019, p. 14).

Em sequência, Streck (2019) procura entender de que forma a moral interfere nas
decisões judiciais. Inicialmente, Streck (2019) afirma que judicialização da política é um
instituto diferente do ativismo judicial, e aduz que o primeiro nem sempre será ruim, no sentido
democrático, já que, quando os órgãos estatais se desvirtuarem de seus objetivos, faz-se
necessário o Judiciário interferir para restituir a ordem estatal. No entanto, o segundo sempre
será ruim para a Democracia, uma vez que decorre de comportamentos e visões pessoais dos
juízes e tribunais.
Nesse sentido, Streck (2019) defende que o Judiciário deve se abster de utilizar a
moralidade dos juízes, e mesmo a moralidade das ruas, para proferir suas decisões. Para Streck
(2019), o Direito é quem deve controlar a moral, definindo o primeiro como o limitador da
segunda, retirando as influências julgadoras moralistas da sociedade da função do Judiciário.
Segundo Streck (2019), “O Direito exige um elevado grau de autonomia, e ignorar a lei,
cedendo aos predadores externos, é um luxo ao qual os juristas não se podem dar” (STRECK,
2019, p. 29).
Em outras palavras, Streck (2019) quer dizer que toda a sociedade, e mesmo os
compositores do Poder Judiciário, possuem valores morais intrínsecos e pessoais, com os quais
conduzem suas próprias vidas privadas. Contudo, no que se refere ao Poder Judiciário, que não
é um ente pensante, dotado de subjetivismo moral, este não pode e não deve ceder aos luxos da
moralidade social. O referido órgão deve obediência ao Direito, e deve aplica-lo de maneira
indiscriminada, sempre submetido ao ordenamento jurídico, sendo sua responsabilidade
política abolir pré-conceitos para interpretar as leis, mesmo que o resultado da hermenêutica
aplicada seja visto como moralmente errado. Afirma, ainda, Streck (2019), que a demasiada
intervenção da moralidade na aplicação do Direito faz a sociedade retornar ao estado de
natureza descrito por Hobbes5, onde a lei que mais vale é a lei da moral coletiva, e quem pensa
o contrário é tomado, praticamente como um herege.

5
Em sua teoria, Hobbes afirmava que a sociedade somente poderia ser considerada civilizada quando estivesse
sob o jugo de um contrato. Antes disso, o homem vivia num estado de natureza, onde seria absolutamente livre
(sem nenhum tipo de lei ou determinação interferindo no seu agir), racional (fazia uso da sua racionalidade para
exercer sua liberdade) e iguais (iguais em racionalidade e liberdade). Nesse estado de natureza o homem está
sempre atrás dos seus objetos de desejo, e para conseguir o que se deseja, o homem faria tudo aquilo que estivesse
ao seu alcance, de forma que essa busca geraria conflitos de desejos, já que todos fariam de tudo para conseguir o
que se deseja. Dessa forma surge uma guerra de todos contra todos, e por estar nesse estado constantemente, o
homem sente-se inseguro e com medo. Além disso, nesse estado de natureza, como os homens estão muito
57
Streck (2019) ainda critica a atuação do Judiciário brasileiro, desde as escolas de Direito,
até o Supremo Tribunal Federal, aduzindo que a confusão entre Direito e moral se tornou tão
grande, que defender que o órgão jurisdicional se atenha às leis se tornou um problema de
cometimento de injustiças, perante os olhos da moralidade social. Streck (2019) ainda defende
que, uma vez que se permita a discricionariedade do Judiciário, deve esta ser controlada da
mesma forma que a jurisdição controla a discricionariedade dos demais Poderes, para se evitar
arbitrariedades por parte daquele órgão, uma vez que “Quando o Direito é livre (da Lei),
dependemos do intérprete. E, se dependemos dele, contrariamos o próprio Estado de Direito,
pois passamos a nos submeter a discricionariedades, arbitrariedades [...], subjetivismos e
quetais. Eu defendo a necessidade de critérios” (STRECK, 2019, p. 50).
Ainda, sobre o problema da interpretação, Streck (2019) ressalta a importância da
existência do aspecto textual para que a hermenêutica se dê de forma efetiva e correta,
relacionando, no que tange ao Direito, a existência da norma escrita e a interpretação dos juízes,
que não deveria saltar longe da letra da lei. Streck (2019) afirma que não existe interpretação
fora do texto escrito, e é em torno dessa relação que ele desdobra sua crítica com relação ao
ativismo judicial, uma vez que, em seu ver, o que o Judiciário faz, ao agir de forma ativista, é
transpassar os ditames legais escritos, inventando nova normatividade, como se isso fosse algo
natural, apenas se apegando à literalidade da lei quando lhe é conveniente. Nas palavras de
Streck (2019):

Pois parece que nossos juristas têm resistindo à voz dos textos. Eles chamam e os
juristas atendem apenas quando interessa. Por isso, temos um encontro de águas bem
peculiar: tudo vira política e ideologia. Quando convém, os Tribunais (e os Juízes)
apegam-se à letra da lei; no dia seguinte, também porque convém, fazem ouvidos
moucos, canibalizando o próprio material que compõe o Direito (STRECK, 2019, p.
93).

Seguindo ainda este raciocínio, Streck (2019) defende que a interpretação dos juízes, ao
aplicar a normatividade, deve sim levar em conta o caso concreto, mas ressalta que a
subjetividade da decisão deve parar por aí. Para Streck (2019), a interpretação de uma norma
pode variar sim, de acordo com cada caso, uma vez que a lei possui características gerais,
contudo, alerta que o caso narrado não deve ser um ponto de partida para a invenção de regras
que não existem. Por isso, Streck (2019) critica veementemente a cultura da produção

ocupados na tentativa de se auto protegerem, não há trabalho produtivo, nem tranquilidade para gerar riquezas,
inexiste motivação para construir ou explorar, não há espaço para as artes, ou seja, não há produção de nada de
útil para uma sociedade.
58
jurisprudencial, pois nem sempre os fatos serão exatamente iguais uns aos outros, e muitas
vezes a analogia feita pelo Judiciário se torna uma verdadeira fabricação de normas.
Na continuidade de sua crítica à atuação do Judiciário, Streck (2019) procura definir
este modus operandi jurisdicional, aduzindo que, atualmente, os juízes não procuram mais
julgar conforme a legislação, intrinsecamente, mas sim julgar conforme a subjetividade pessoal
de cada um, fazendo a “justiça” se basear em aspectos morais, e não legais. Segundo Streck
(2019), “Como se o Judiciário, entre a lei e o que ele considera justo, optasse pelo segundo,
como em uma espécie de jusnaturalismo envergonhado” (STRECK, 2019, p. 114). Streck
(2019) ainda profere críticas à intromissão da mídia e das redes sociais nas decisões judiciais,
e em como o Judiciário se deixa levar por estes subjetivismos, onde, segundo Streck (2019), o
órgão Estatal acaba ficando receoso de aplicar a lei conforme deveria ser, por medo (ou pela
necessidade de se auto afirmar como poder) de se postar contra o senso comum.
Streck (2019) ainda defende que, a única forma, prevista constitucionalmente, para que
o Judiciário atue de forma mais ativa perante a normatividade, de forma legítima, sem
prejudicar o aspecto democrático do Estado, é através do controle de constitucionalidade,
afirmando que “[...] uma lei para não ser aplicada deve ser declarada inconstitucional. Ou se
faz uma interpretação conforme a Constituição. Ou uma declaração de nulidade parcial sem
redução de texto, ou uma nulidade parcial com redução de texto [...] Fora isso, estamos saindo
do terreno da Democracia e entrando no decisionismo e seus congêneres” (STRECK, 2019, p.
115).
Streck (2019) também critica a formação dos juristas nas inúmeras faculdades de Direito
distribuídas pelo solo nacional, dizendo que muito da culpa na atual administração das decisões
judiciais se dá pela falta de criticidade nas universidades jurídicas. Nesse sentido, Streck (2019)
afirma que a falta de pensamento crítico dos juristas em formação, somado à falta de preparo
dos professores dessas instituições, que apenas preparam o estudante para concursos e provas
de Ordem, e não para a vida profissional, está destruindo a profissão, e consequentemente,
destruindo o próprio Direito.
Denota-se, portanto, que o decisionismo e a interferência de aspectos externos à
normatividade estão cada vez mais influenciando os juízes em sua função precípua de defender
e aplicar as normas e principiologias definidas constitucionalmente em nosso país. Contudo,
alegar tais práticas de forma genérica pode não transpassar de forma correta a dimensão do
fenômeno político-jurídico verificado no Brasil, a partir da Constituição de 1988, que se mostra
único, tamanha complexidade teórica e prática constatadas nessas atuações. Dessa forma, a

59
partir dos pontos aqui levantados, propõe-se estudar afinco algumas decisões proferidas pelo
Judiciário brasileiro, principalmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal, para verificar de
que forma as atuações mais ativistas dos operadores do Direito estão colidindo com as próprias
diretrizes fundamentais estabelecidas na Carta Magna de nosso país, além de se buscar entender
o que está levando esses juízes a agirem dessa forma, bem como os reflexos sociais de tais
ações.

CAPÍTULO III

AS CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS DO INTERVENCIONISMO JUDICIAL

As ações cotidianas do Poder Judiciário vêm tomando forma nos últimos anos,
demonstrando um fenômeno completamente diferente dos já estudados em outras localidades
do mundo pelos mais variados pesquisadores da área. É certo que, em algum momento, esse
transpassar de funções estatais por parte do órgão jurisdicional acarretaria no aparecimento de
alguns questionamentos acerca de sua função, principalmente no que tange a determinados
ramos do Direito, no aspecto socioeconômico brasileiro.

60
Dessa forma, em mais uma de suas críticas ao modo de atuação do Judiciário, Lênio
Luiz Streck, em sua obra Juiz não é Deus (2016), direciona sua análise ao direito penal,
ressaltando a problemática formada a partir de um sistema penal antiquado, que persegue
algozes pré-determinados, ou que se preocupam em tutelar bens jurídicos individualistas,
típicos do modelo liberal. Contudo, relembra Streck (2016) que o constitucionalismo moderno,
principalmente após 1988, cuja Carta Maior é nitidamente social, a introdução da principiologia
deu novas direções ao direito infraconstitucional.
Entretanto, Streck (2016) ressalta novamente nesta obra que a abrangência hermenêutica
dos princípios dá vazão aos juízes, para que estes atuem em suas decisões da forma que bem
entenderem, através de seus moralismos pessoais, acarretando numa seletividade para a
aplicação de princípios e normas, as quais eles mesmos escolheriam o que aplicar e em quais
casos aplicar, fazendo uma espécie de juízo de constitucionalidade além da formalidade exigida.
As consequências dessa forma de agir podem ser catastróficas, inclusive se passar a considerar
o atual sistema penal brasileiro, com estigmas inquisitoriais e persecutórios, onde se pode
acabar denegando direitos e princípios fundamentais às pessoas simplesmente pela feição de
um juízo de “não concordar com a norma” completamente subjetivista, sem relação alguma
com qualquer normatividade existente. De acordo com Streck (2016):

[...] Como me preocupa o fato de, seguidamente o Judiciário pretender corrigir a


legislação a partir de juízos pessoais e não constitucionais. Se o juiz ou Judiciário lato
sensu não quiser aplicar uma lei, deve utilizar os mecanismos que estão a sua
disposição, como o controle de constitucionalidade [...], quando sustento que o
judiciário somente pode deixar de aplicar uma lei em seis hipóteses. Caso contrário,
mesmo a contragosto, o juiz deve aplicar a lei (STRECK, 2016, p. 21).

Explica, ainda, Streck (2016), que não se parte de um pressuposto de defender


ferrenhamente o positivismo clássico, e retornar aos seus preceitos básicos de interpretação
estrita do ditame legal, mas sim procura defender que a norma, a partir do advento da
principiologia, não pode ser completamente ignorada em sua semântica em detrimento daquela,
devendo os aplicadores do direito “levar mais a sério” a lei escrita democraticamente
constituída.
Além disso, Streck (2016) se mostra perplexo ao vislumbrar como o Judiciário tem
atuado na esfera penal, onde o ativismo judicial tem desvirtuado o próprio sentido de existir das
normas que procuram assegurar a sociedade da espada do Estado. Depreende-se disto que não
se sabe mais ao certo qual a função das garantias penais no processo acusatório, uma vez que
são interpretadas de forma a se escolher quando elas poderão existir para o acusado (a depender

61
do acusado e do crime atribuído a ele). Nessa crítica, Streck (2016) expõe a inércia e a
complacência do Ministério Público com tais atitudes, onde eles escolhem o que é relevante
acusar, o que não é, quando se é necessário comprovar algo, ou quando apenas “indícios” são
suficientes para a condenação, entre outros.
Para procurar entender o porquê de o Judiciário atuar dessa forma, Streck (2016)
remonta aos tempos anteriores à democracia, onde a esperança das pessoas em sair da crise dos
sistemas governamentais corruptos e autoritários se voltava ao órgão jurisdicional e sua
interpretação sobre as leis. Contudo, ressalta Streck (2016) que com o advento da democracia,
e consequentemente das garantias fundamentais à sociedade, esqueceu-se de retirar esse
protagonismo do Judiciário, que ainda atua nos conformes de uma “terra sem lei” ou “terra sem
garantias”, defendendo e aplicando aquilo que os juízes entendem ser a lei aplicável. Dessa
forma, defende Streck (2016) que aquela crise continua a existir, porque o paradigma judicial
não mudou, e o sistema continua a ser sustentado pelo próprio sistema, mesmo com o advento
de novas leis e princípios, pois o que vale não é a lei legislada, e sim a lei judicializada.
E é justamente pela falta de mudança de paradigma, onde a persecução penal apenas
ocorreu (e ocorre) nas camadas baixas da sociedade, que a corrupção, de acordo com Streck
(2016), se tornou endêmica no Brasil, pela falta de eficácia da normatividade perante o próprio
poder aplicador desta. De acordo com Streck (2016), o combate à corrupção deve ser levado da
mesma forma que se apura os crimes comuns, sem a intervenção de moralismos, mesmo que o
resultado imediato da aplicação da norma não seja o desejável. Nas palavras de Streck (2016),
“[...] o jogo se joga dentro das regras. Mesmo que não gostemos delas. Afinal, fomos nós que
as fizemos” (STRECK, 2016, p. 32).
Dessa forma, Streck (2016) procura retirar do Judiciário essa carga de decisões
subjetivas que o órgão carrega (diga-se de passagem, porque quer), afirmando que o direito não
é uma produção exclusiva do órgão jurisdicional, e que os juízes não são os únicos responsáveis
por sua produção, ou pelo menos não deveriam ser. Streck (2016) chega até mesmo a mencionar
Kelsen, atribuindo que ele não fora feliz em anunciar que “as sentenças são atos de vontade do
juiz”, pois sendo assim, admite-se a carta branca dada ao Judiciário para agir de forma a evitar
a norma escrita. Ainda, Streck (2016) condena a atuação do Judiciário na formação de
princípios novos, os quais são criados para dar fundamentação à decisão pré-tomada pelo juiz,
processo este que não é natural (afinal, para Streck (2016), princípios são criados pela doutrina
e pela filosofia, e não pela moralidade do juiz). Tais ações apenas demonstram, na visão de
Streck (2016), que o Judiciário efetivamente acredita que é o único promovedor do direito, o

62
único capaz de produzi-lo e aplica-lo de maneira adequada, conforme suas crenças pessoais, e
que, no fim das contas, no cenário sócio-político e jurídico atual de nosso país, o direito é
realmente aquilo que o Judiciário diz. Contudo, afirma Streck (2016):

De minha parte, não concordo com a tese de que o direito é aquilo que o Judiciário
diz que é. Fosse isso verdadeiro, não precisaríamos estudar e nem escrever. O direito
é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas,
sendo que as questões a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis,
nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA
constitucional, e não na vontade individual do aplicador (e tampouco na vontade
coletiva de um tribunal) (STRECK, 2016, p. 67).

A partir desse pressuposto, portanto, Streck (2016) afirma que dentro do Poder
Judiciário, o protagonismo na interpretação normativa é tomado pelo Supremo Tribunal
Federal, que se posta como o detentor de todo o conhecimento e poder para determinar de que
forma o direito deve ser interpretado em cada caso, não se atentando às consequências de suas
decisões. Em verdade, o STF é visto (e se considera) a ultima ratio para a aferição do direito (e
isto, não somente num sentido recursal), estando esse papel de intérprete mor do direito
institucionalizado, o que gera um desconforto para a classe jurista, que fica à mercê dos ditames
da Corte Suprema, ainda que suas designações não sejam corretas do ponto de vista legal.
Em outras palavras, a Corte Suprema efetivamente se posta como um ente superior a
todos os outros entes judiciais e mesmo estatais, por se considerar o mais preparado
tecnicamente para ditar o seu direito. Nesse sentido, ressalta Streck (2016) que ele não se posta
contra a interpretação judicial das normas, principalmente no patamar da Suprema Corte, até
mesmo porque o direito, por sua própria natureza, possui certa autonomia, e deve ser regido
conforme cada caso se apresentar, contudo afirma que essa interpretação deve ser formada
através de “[...] condições epistêmicas para que uma decisão não seja fruto de opiniões pessoais
ou por influências políticas, econômicas ou da mídia” (STRECK, 2016, p. 93).
A forma com que a atuação jurisdicional do Estado esteja se mostrando cada vez mais
impositiva de determinados pensamentos subjetivos dos aplicadores, se restringida apenas ao
estudo das teorias desenvolvidas, pode dar a ideia errada de se estar fazendo uma crítica pela
crítica. Contudo, conforme se verificará a seguir, no estudo de casos práticos, os efeitos dessas
decisões inovadoras estão afetando diretamente a sociedade, no sentido de que seus direitos
estão, por vezes, lhe sendo retirados por aqueles que, em tese, deveriam os proteger. A seguir,
verificaremos duas das mais polêmicas jurisprudências de nossa Suprema Corte, que
demonstram a atual face do Poder Judiciário brasileiro.

63
3.1. A mitigação do princípio da presunção de inocência: construção de princípios a partir
de juízos de valor

Um dos casos mais marcantes da recente atuação do Supremo Tribunal Federal de forma
decisionista foi no julgamento do Habeas Corpus (HC) n. 126.292/SP, em fevereiro de 2016,
quando foi a plenário o caso de um homem, condenado por roubo qualificado, a 5 anos e 4
meses de prisão, onde em primeiro grau, assegurou-se seu direito de responder o processo em
liberdade, mas após o recurso apenas da defesa, em segundo grau, teve sua pena reafirmada e
sua prisão decretada “de ofício”. Em sede liminar, já na esfera do STF, foi-lhe concedida a
liberdade justamente pela decisão em segundo grau não ter observado que a sentença assegurou
ao condenado a liberdade durante a desenvoltura do processo, bem como não fundamentou de
forma adequada a prisão do paciente, uma vez que a presunção de inocência apenas admitia o
encarceramento dos acusados após o trânsito em julgado de decisão condenatória.
No momento de proferir o voto, contudo, o então Ministro Teori Zavascki, relator do
referido Habeas Corpus, iniciou sua fundamentação relembrando que mesmo antes da
consolidação do entendimento da Suprema Corte de que a execução provisória da pena antes
do trânsito em julgado da condenação era inconstitucional, à luz da garantia da presunção de
inocência prevista na Constituição, feita no julgamento do Habeas Corpus n. 84.078/MG de
relatoria do então Ministro Eros Grau, as Turmas do STF já entendiam que a possibilidade dessa
execução provisória não feria o mencionado princípio constitucional, uma vez que, nos âmbitos
dos primeiro e segundo graus, a vedação de produção de prova da inocência por parte do
acusado, e todas as demais garantias processuais penais já asseguravam a presunção de
inocência.
Contudo, de acordo com o voto do Ministro, a presunção da inocência finaliza a partir
do momento em que se encerram as possibilidades de produção probatória e exame dos fatos,
pois quando ultrapassada essas instâncias, não ocorrem mais desdobramentos do duplo grau de
jurisdição, se adstringindo as Cortes Superiores em analisar apenas matérias de direito. Nas
palavras do Ministro:

[...] com o julgamento implementado pelo Tribunal de apelação, ocorre espécie de


preclusão da matéria envolvendo os fatos da causa. Os recursos ainda cabíveis para
instâncias extraordinárias do STJ e do STF – recurso especial e extraordinário – têm,
como se sabe, âmbito de cognição estrito à matéria de direito. Nessas circunstâncias,
tendo havido, em segundo grau, um juízo de incriminação do acusado, fundado em
fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instância extraordinária, parece
inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso
concreto, do princípio da presunção de inocência até então observado. Faz sentido,
64
portanto, negar efeito suspensivo aos recursos extraordinários, como o fazem o art.
637 do Código de Processo Penal e o art. 27, § 2º, da Lei 8.038/1990 (BRASIL, STF,
2016, pp. 6-7).

Além disso, ressaltou o nobre Ministro, em seu voto, que os recursos de natureza
extraordinária não devem possuir a finalidade de examinar se as sentenças foram justas ou não,
mas sim devem se ater à preservação da higidez do sistema normativo, e as causas recorridas
devem possuir relevância jurídica, política, social ou econômica, transcendendo o interesse
subjetivo das partes envolvidas. Ainda, ressaltou o Ministro que, de certa forma, a interpretação
garantista da presunção da inocência permite que os recursos sejam utilizados de forma
protelatória, tendo em vista que em sua esmagadora maioria serão desprovidos por não
abrangerem os requisitos exigidos para sua análise e provimento.
Dessa forma, asseverou o Ministro que é dever do Poder Judiciário amoldar os
princípios constitucionais com a necessidade de se dar maior efetividade à função jurisdicional
do Estado, principalmente no que tange à relativização da presunção de inocência, uma vez que
justificável pelas fundamentações explanadas anteriormente. Ao final, o Ministro pontuou que
em caso de ocorrência de equívocos nas condenações, por parte das instâncias inferiores ou
superiores, “[...] havendo plausibilidade jurídica do recurso, poderá o tribunal superior atribuir-
lhe efeito suspensivo, inibindo o cumprimento de pena. Mais ainda: a ação constitucional do
habeas corpus igualmente compõe o conjunto de vias processuais com inegável aptidão para
controlar eventuais atentados aos direitos fundamentais decorrentes da condenação do acusado”
(BRASIL, STF, 2016, p. 16). Cabe observar aqui que o julgamento em questão se trata de um
Habeas Corpus.
Em concordância ao voto do relator, importante destacar que outros 6 ministros
acompanharam o entendimento proferido, reafirmando as teses levantadas, e acrescentando
suas pontuações específicas para o caso. Cabe, no entanto, resgatar o voto do Ministro Luís
Roberto Barroso, pela pertinência dos argumentos trazidos pelo togado ao analisar o caso.
Ressalta-se que o voto do eminente Ministro foi proferido oralmente, e transcrito
posteriormente.
Ao iniciar sua posição, o Ministro Luís Roberto Barroso afirma que o sistema penal
brasileiro “está desarrumado”, seja no âmbito filosófico, no normativo ou no jurisprudencial, e
que é papel do Tribunal consertar essa “desarrumação”. Em seguida, o Ministro enfatiza o voto
do relator, concordando com este, e acrescenta que após a concretização da condenação em
sede de apelação, ocorre a inversão da presunção de inocência, pois já esgotadas as jurisdições
para se discutir a culpabilidade do sujeito perquirido.
65
Ainda em elucidação aos fundamentos do relator, o Ministro Luís Roberto Barroso
explicita que, em ao seu ver, as possibilidades processuais de se recorrer às instâncias superiores
de maneira a suspender a execução da pena até o trânsito em julgado são manifestamente
protelatórias, e acabam por não dar a devida satisfação penal à sociedade ou às vítimas, nem
procura desestimular o cometimento de outros crimes, devendo ocorrer, nesses casos, um juízo
de ponderação entre a presunção de inocência, que é um princípio e não uma regra, e o interesse
constitucional da efetividade da lei penal, que não é um princípio expresso, mas uma norma de
mesma natureza jurídica.
Ressalta, ainda, o Ministro Barroso que a mudança na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, na questão da presunção de inocência é uma constatação empírica, baseada
pelos fatos notórios do caso concreto e pelo longo histórico de recursos protelatórios da
execução penal já impetrados e julgados pelas Cortes superiores durante todos esses anos.
Em linha oposta aos votos vencedores, vislumbra-se que 4 Ministros votaram pela
manutenção do entendimento consolidado de que a execução provisória da pena é
inconstitucional, dentre eles, destacam-se os votos dos Ministros Marco Aurélio e Celso de
Mello.
O Ministro Marco Aurélio inaugurou sua posição com a afirmação temerosa de que a
mudança de paradigma jurídico do Supremo Tribunal Federal na questão da presunção de
inocência provocaria um esvaziamento do garantismo natural da Constituição de 1988, a qual,
em suas palavras, não se poderia mais chamar de cidadã. Em continuidade, reconheceu a crise
existente no âmbito penal, no Estado, e atribuiu a maior chancela dela à morosidade do próprio
Judiciário, que afeta tanto a necessidade da persecução punitiva por parte do Estado, como as
próprias garantias do acusado.
Contudo, afirma o nobre Ministro que em momentos de crise há uma necessidade maior
de resguardar as garantias e valores jurídicos, para não gerar instabilidade à sociedade. Ainda,
ressalta o Ministro, em seu voto, que a interpretação do Direito Positivo é ato de vontade, mas
deve ser vinculado ao próprio Direito Positivo, e, portanto, qualquer interpretação dada à um
dispositivo deve ser cuidadosamente estudada, para não se prejudicar o Estado, mas também a
sociedade como um todo. E, no caso do princípio da presunção de inocência, expressamente
previsto na Constituição, não há dúvidas sobre o sentido a ser dado aos seus dizeres. Nas
palavras do Ministro:

Há uma máxima, em termos de noção de interpretação, de hermenêutica, segundo a


qual, onde o texto é claro e preciso, cessa a interpretação, sob pena de se reescrever a

66
norma jurídica, e, no caso, o preceito constitucional. Há de vingar o princípio da
autocontenção. Já disse, nesta bancada, que, quando avançamos, extravasamos os
limites que são próprios ao Judiciário, como que se lança um bumerangue e este pode
retornar e vir à nossa testa (BRASIL, STF, 2016, pp. 77-78).

Nesse mesmo sentido, continua o Ministro aduzindo a periculosidade em se interpretar


uma norma expressa de maneira abrangente e contraditória aos seus próprios dizeres, afirmando
que o dano causado ao acusado, que pode ser preso sem que ainda tenham se esgotado suas
chances processuais de cancelar sua incriminação, é imensurável, uma vez que a liberdade não
é algo que pode ser simplesmente devolvido após lhe ser retirado. Afirma ainda que o fim da
presunção de inocência até o trânsito em julgado somente poderia ser decretado por Emenda
Constitucional, pelo Poder Legislativo, com ressalvas ao disposto no artigo 60 da Carta Magna,
que diz ser imutável garantia individual, mas que “[...] hoje, no Supremo, será proclamado que
a cláusula reveladora do princípio da não culpabilidade não encerra garantia, porque, antes do
trânsito em julgado da decisão condenatória, é possível colocar o réu no xilindró, pouco
importando que, posteriormente, o título condenatório venha a ser reformado” (BRASIL, STF,
2016, p. 78).
Pontuando o caso concreto, ainda, o Ministro Marco Aurélio observou que o caso, em
si, não seria adequado para a mudança de paradigma da Corte porque a própria sentença em
primeiro grau concedeu o direito ao réu de responder o processo em liberdade, e que o
Ministério Público não recorreu do julgado, sequer para exigir uma prisão cautelar, verificando-
se que a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo mandou executar a pena mesmo
com a garantia de responder em liberdade auferida na primeira instância, numa flagrante
reformatio in pejus.
Interferindo no voto do Ministro Marco Aurélio, o Ministro Ricardo Lewandowski
pontou, em concordância com aquele, que em julgados anteriores, mas recentes, a própria Corte
já admitira que o sistema penitenciário brasileiro estava falido, e encontrava-se “num estado de
coisas inconstitucional”, e que era perplexo conceber que o sistema penal brasileiro pudesse
tutelar de forma mais rígida a propriedade do que a liberdade, tendo em vista as penas
cominadas aos mais variados tipos penais, verificando-se que a pena mínima do roubo é maior
do que a pena mínima cominada à lesão corporal, por exemplo, demonstrando que os valores
constitucionais firmados em 1988 não são devidamente observados no Código Penal Brasileiro.
Perguntou, ainda, o Ministro, como a Corte pretendia resolver a questão da crise do sistema
penal permitindo que mais pessoas adentrassem em seu sistema, se todos ali já tinham ciência
de que seria uma tentativa fadada ao insucesso.

67
O eminente Ministro Celso de Mello, por sua vez, ao concordar com os votos vencidos,
se propôs a relembrar que o princípio da presunção de inocência se tratou de uma grande
conquista dos cidadãos contra a opressão e o abuso de poder Estatal. Em verdade, tal princípio,
de acordo com o Ministro, veio à baila para se contrapor ao absolutismo estatal, principalmente
após ser incluído na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. E, no seu ponto
de vista, a relativização deste princípio vai de encontro com as próprias prerrogativas da
Constituição de 1988, conforme se depreende de seus dizeres:

Vê-se, desse modo, Senhor Presidente, que a repulsa à presunção de inocência – com
todas as consequências e limitações jurídicas ao poder estatal que dessa prerrogativa
básica emanam – mergulha suas raízes em uma visão incompatível com os padrões
ortodoxos do regime democrático, impondo, indevidamente, à esfera jurídica dos
cidadãos restrições não autorizadas pelo sistema constitucional (BRASIL, STF, 2016,
p. 82).

O Ministro ainda afirma que a Constituição brasileira delimita de forma clara o


desempenho do Estado na persecução penal, e que afastar a execução da pena antes do trânsito
em julgado de condenação penal é dar ênfase e conferir amparo a um direito já estabelecido na
normatividade constitucional. Além disso, o Ministro ressalta que comparar a experiência
brasileira com outros países onde a presunção de inocência não é uma garantia expressa é não
dar a necessária observância ao preceito estabelecido na norma vigente.
Aduz, ainda, o Ministro Celso de Mello que o princípio da presunção de inocência não
inviabiliza a prisão cautelar, quando necessária, pois esta possui critérios bem definidos
legalmente para acontecer, e são capazes de proteger os interesses da coletividade em geral, e
dos indivíduos de maneira particular.
Dessa forma, defende o togado que a presunção de inocência pré-determina um dever
de agir do Estado, que não pode ser desrespeitado pelo agente público, que é o de considerar o
acusado inocente até o trânsito em julgado da condenação. Além disso, alega o Ministro que,
caso não se queira considerar o viés constitucional do preceito, devem os magistrados observar
que a própria Lei de Execução Penal somente legitima a execução após o trânsito em julgado
da decisão condenatória, conforme alusão aos artigos 105 e 147 do referido diploma legal6,
ainda que a pena seja apenas restritiva de direitos.

6
Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser
preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução.
Art. 147. Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o Juiz da execução, de ofício
ou a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando
necessário, a colaboração de entidades públicas ou solicitá-la a particulares.
68
Após proferida a decisão final, onde, por 7 votos à 4, a presunção de inocência foi
relativizada, inúmeras críticas passaram a ser feitas à atuação do Supremo Tribunal Federal, e
o caso é estudado até hoje pelos mais variados juristas de todo o país. Em sua grande maioria,
os estudos demonstram que o STF agiu em desconformidade com sua função precípua enquanto
poder estatal, e que o ativismo perpetrado neste tipo de atuação está se tornando prejudicial aos
próprios preceitos constitucionais do Estado Democrático.
Nesse sentido, os autores Jéssica Ramos Saboia e Nestor Eduardo Araruna Santiago, no
artigo intitulado Garantismo e Ativismo Judicial: uma análise da presunção do estado de
inocência e da sua relativização pelo STF (2018), explicam que a presunção de inocência é
uma cláusula pétrea e princípio processual penal garantidor do devido processo legal, no âmbito
brasileiro. Afirmam ainda que tal garantia é assegurada não só pela Constituição do país, de
forma expressa, como também por diversos tratados internacionais ratificados pelo Brasil,
demonstrando, portanto, a dimensão de sua importância. Nesse sentido, Saboia e Santiago
(2018) afirmam que “a presunção do estado de inocência é um valor fundamental contra a
opressão do Estado e exigência básica de respeito à dignidade da pessoa humana como
fundamento do Estado Democrático de Direito” (SABOIA; SANTIAGO, 2018, p. 63).
Para Saboia e Santiago (2018), a presunção de inocência não é um preceito a ser
imputado apenas aos acusados de algum crime, mas sim um princípio natural do cidadão,
independentemente de estar sendo submetido a alguma persecução penal. Em sua opinião, a
presunção de inocência significa dar ao acusado o mesmo status de quem nunca, jamais foi
acusado de alguma coisa, até que sobrevenha a condenação transitada em julgado.
Dessa forma, o julgamento do Habeas Corpus n. 126.292/SP, pelo STF, com o resultado
já mencionado, mostrou-se bastante regressista ao relativizar o preceito da presunção de
inocência, demonstrando um ativismo judicial contrário à própria normatividade brasileira, uma
vez que em sua grande maioria, os fundamentos para tal modificação de entendimento não
foram jurídicos, e desconsideraram uma norma expressa da Constituição.
Ressaltam Saboia e Santiago (2018) que, apesar da decisão proferida no HC mencionado
não produzir efeito vinculante, na prática, os Tribunais passaram a adotar o posicionamento do
STF para julgar em conformidade com a Corte Suprema, da forma como cotidianamente o
fazem. Mesmo com o julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade n. 43 e 44,
em que se pugnava pela decretação da constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo

69
Penal7, que exige o trânsito em julgado de sentença condenatória para legitimar a prisão de
alguém, quando não preenchidos os requisitos da cautelar.
Após referendar o entendimento de que a execução da pena pode iniciar após decisão
de segundo grau, mesmo que não transitada em julgado, no julgamento do Agravo em Recurso
Extraordinário n. 964.246, este sim com repercussão geral, passou-se a pacificar a questão nos
Tribunais inferiores, ainda que estando em desacordo com preceito expresso da Constituição.
Dessa forma, de acordo com Saboia e Santiago (2018):

Entende-se, com os argumentos de que a execução provisória da pena após decisão de


segunda instância não viola o princípio da presunção do estado de inocência e de que
a norma do CPP não impede a execução provisória, que o STF desconsidera a clareza
do texto constitucional e infraconstitucional, privilegiando em suas decisões outros
argumentos para satisfazer interesse pessoal, político ou social, fazendo uma
interpretação com tendência regressista em relação aos direitos e garantias
fundamentais, o que retarda o avanço de um Judiciário como melhor meio de
concretizar as liberdades individuais (SABOIA; SANTIAGO, 2018, pp. 68-69).

Nesta senda, confirmam Saboia e Santiago (2018) o que se vem discutindo durante este
estudo bibliográfico, de que o STF nitidamente vem agindo de forma contrária aos pressupostos
democráticos do Estado, usurpando poderes que não são seus, deixando-se levar por
fundamentos externos ao Direito, desnaturando seus objetivos natos e prejudicando o próprio
Estado Democrático de Direito e a dignidade da pessoa humana. Afirmam, ainda Saboia e
Santiago (2018), que não se está a negar as enormes falhas do sistema penal e processual penal
brasileiros, mas que os problemas somente podem ser sanados a partir de uma reforma no
sistema legislativo e judiciário, para tornar o sistema de recursos mais dinâmico, e não a partir
do decisionismo judicial, que toma direitos fundamentais dos cidadãos para tentar organizar
aquilo que o próprio Estado desorganiza.
Em consonância com a crítica anteriormente proferida, os autores Agnes Carolina
Hüning e Rafael Fonseca Ferreira, em artigo nominado A Presunção de Inocência e o Abandono
do Papel Contramajoritário pelo Poder Judiciário (2017), aduziu que a decisão proferida no
HC mencionado criou um novo conceito de trânsito em julgado, além da nova interpretação ao
preceito da presunção de inocência, restringindo direito fundamental existente a mais de oito

7
Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade
judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação
ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 1º As medidas cautelares previstas neste Título não se aplicam à infração a que não for isolada, cumulativa
ou alternativamente cominada pena privativa de liberdade. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
§ 2º A prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à
inviolabilidade do domicílio. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
70
séculos, em uma decisão “[...] sem coerência e integridade, uma vez que baseada em
argumentos moralistas e midiáticos, que acaba por tolher um direito fundamental concedido a
população lá em 1215, por João Sem Terra” (HÜNING; FERREIRA, 2017, p. 647). Definem
Hüning e Ferreira (2017), portanto, que a função contramajoritária do Poder Judiciário é
assegurado no artigo 95 da Constituição8, que determina uma série de garantias aos
magistrados, para que estes não sucumbam ao clamor social ou às pressões midiáticas para
motivar suas decisões, de forma a se manter isentos de influências externas ao Direito em sua
profissão.
A crítica de Hüning e Ferreira (2017) vai além, afirmando que decisões do STF como a
proferida no HC em estudo não somente demonstram um exacerbado ativismo judicial por parte
da Suprema Corte, que passa a fundamentar suas decisões em questões morais, políticas e
subjetivas dos magistrados, como também afrontam o princípio pétreo da separação de poderes,
definido no artigo 2º da Constituição9, numa clara invasão do Judiciário aos demais poderes
estatais. Dessa forma, retira-se os dizeres de Hüning e Ferreira (2017):

Mas e qual o papel do Poder Judiciário? O Judiciário deve desenvolver seu papel de
fiscal dos Poderes Legislativo e Executivo por isso tem a função contramajoritária, ou
seja, não é por acaso que ele consta como o último descrito no rol dos poderes
previstos pela CF em seu art. 2º, uma vez que os demais poderes são escolhidos ou
eleitos por uma maioria, já os juízes e magistrados não, o que demonstra essa sua
função de ir contra as maiorias, quando necessário, para a defesa da Constituição, não
devendo sofrer, nem com as pressões midiáticas, nem com as pressões da população,
uma vez que conta com um rol de garantias para tanto (HÜNING; FERREIRA, 2017,
p. 650).

Nesse sentido, Hüning e Ferreira (2017) defendem que a mudança de paradigma dos
direitos dos cidadãos numa democracia não deve ser alvo de decisões judiciais, ou seja, não
devem depender do único poder estatal que não possui convalidação social para existir, quando

8
Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:
I - vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda
do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado e, nos demais casos, de sentença
judicial transitada em julgado;
II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII;
III - irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153,
§ 2º, I.
Parágrafo único. Aos juízes é vedado:
I - exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério;
II - receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo;
III - dedicar-se a atividade político-partidária;
IV - receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas
ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei;
V - exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento
do cargo por aposentadoria ou exoneração.
9
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
71
a sociedade acreditar que necessite mudar o entendimento de determinada norma. Essa
mudança deve vir dos poderes eleitos pelo povo para tal, por possuírem, de certa forma, um
controle direto entre eleitores e eleitos, no qual a reivindicação se mostra mais eficaz, deixando
para o Judiciário apenas a sua finalidade precípua de aplicar o direito, doa a quem doer.
O autor Lênio Luiz Streck, por sua vez, ferrenho crítico do decisionismo exagerado do
Poder Judiciário, escreveu várias críticas sobre a mudança de paradigma do STF com relação à
decisão proferida no HC 126.292/SP. Em uma delas, redigida no artigo Teori do STF contraria
Teori do STJ ao ignorar a lei sem declarar inconstitucionalidade (2017), afirma que a
mencionada decisão é um dos maiores exemplos de ativismo judicial, uma vez que os votos
vencedores não se constituem com fundamentos jurídicos, apesar de possuírem argumentos
bons e consistentes, e serem muito bem escritos.
Além disso, defende Streck (2017) que ao propor reescrever a Constituição, com a
renovação do entendimento sobre a presunção de inocência, o STF esqueceu de declarar a
inconstitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, que prevê a prisão do acusado
apenas após o trânsito em julgado de decisão condenatória. A respeito disso, Streck (2017)
confronta o voto do Ministro Teori Zavascki, relator do HC, com decisão proferida pelo
eminente Ministro quando este ainda estava no Superior Tribunal de Justiça, onde proferiu que
“não se admite que seja negada aplicação, pura e simplesmente, a preceito normativo “sem
antes declarar formalmente a sua inconstitucionalidade” (STRECK, 2017).
Dessa forma, Streck (2017) ressalta que a decisão, à época, proferida em sede de HC,
por ser inédita e não tratar da inconstitucionalidade de norma, não é vinculante, e, portanto, os
Tribunais inferiores não precisavam seguir a determinação da Suprema Corte. Contudo, aduz
Streck (2017) também, que quando não se dá o devido respeito à hermenêutica apropriada à
normatividade existente, se incorre no risco de prejudicar a própria democracia. Neste modo,
Streck (2017) critica o ativismo corrente no Judiciário, ainda que as decisões inovadoras sejam
agradáveis aos juristas e à população como um todo, alertando, contudo, para seus perigos,
quando “[..] você aceita que o STF ultrapasse os limites semânticos da Constituição para uma
decisão que lhe agrada, amanhã o que você dirá se a decisão, igualmente ativista e indo além
dos tais limites, não lhe agradar?” (STRECK, 2017).
Portanto, denota-se que a decisão proferida por maioria do Supremo Tribunal Federal,
no Habeas Corpus n. 126.292/SP, que alterou o entendimento sobre a presunção de inocência,
ultrapassou os limites hermenêuticos do Judiciário, adentrando nas funções legislativas, ao
relativizar preceito constitucional pétreo, sem se incomodar com fundamentações jurídicas a

72
esse despeito. Nota-se que o Judiciário, cada vez mais tem sucumbido aos anseios de uma
população cansada, raivosa e inconsciente de seus direitos e deveres, de uma mídia igualmente
raivosa, mas também sensacionalista e oportunista, mas acima de tudo, a um jogo político de
interesses e cartas marcadas, onde para acusar e prender alguém vale tudo, até mesmo derrubar
garantias constitucionais.

3.2. Criminalização da Homofobia: um Judiciário que cria leis penais “de ofício”

Outro fato ainda mais recente que demonstra a predominância do ativismo judicial nas
atuações do Supremo Tribunal Federal está sendo o julgamento conjunto da Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n. 26 e o Mandado de Injunção (MI) n. 4.733, ambos
tendentes a discutir se há uma omissão do Legislativo em criminalizar condutas homofóbicas.
O julgamento, concluído no dia 13 de junho de 2019, contou com a maioria dos ministros para
equiparar a homofobia aos crimes de racismo, até que sobrevenha manifestação do poder
legiferante neste sentido.
A referida ADO é de relatoria do Ministro Celso de Mello, cujo voto foi proferido em
sessão plenária no mês de fevereiro de 2019, e ao qual se declina fazer um breve resgate dos
argumentos levantados para fundamentar seu posicionamento a favor da criminalização da
homofobia.
O Ministro Celso de Mello inicia o voto invocando a função contramajoritária do
Judiciário, existente para afirmar a supremacia e autoridade da Constituição, e por isso a decisão
de Sua Excelência poderia desagradar a parcelas da população manifestamente intolerantes com
as diferenças sociais. Em seguida, o Ministro relata que os fundamentos da pretensão estão no
crescente número de atos violentos praticados contra a comunidade LGBT 10, em razão de seu
gênero/orientação sexual, na omissão do Estado em não legislar sobre a punição de indivíduos
que pratiquem tais violências no momento em que legislou na formulação da Lei n. 7.716/89
(definiu os crimes de preconceito de raça e de cor), e na necessidade de se equiparar os casos
de homofobia e transfobia às condutas de racismo, uma vez que ambas estão embasadas no
artigo 5º, incisos XLI e XLII, da Constituição de 198811.

10
Atualmente o termo LGBT é o mais utilizado, representando: lésbicas, gay, bissexuais, travestis e transsexuais.
O termo foi aprovado no Brasil em 2008 em uma conferência nacional para debater os direitos humanos e políticas
públicas de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transsexuais. (Fonte:
http://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/conferencias/LGBT/texto_base_1_lgbt.pdf).
11
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
73
O Ministro também delineia, durante o voto, toda a conceituação que paira sobre a
comunidade LGBT, ressaltando as diferenças existentes entre gênero, orientação sexual, sexo
biológico, entre outros aspectos envolvendo esta classe, que, de acordo com o Ministro, vêm
sofrendo preconceitos de inúmeras ordens por não se haver o mesmo respeito, por não se
considerar que esta comunidade também seja portadora de direitos e deveres como todo ser
humano, e que deve-se sempre partir do princípio da dignidade da pessoa humana nos
tratamentos sociais.
Dessa forma, o relator monta seu fundamento inicial nos preceitos sociais e
principiológicos básicos da Constituição, afirmando, contudo, que não cabe ao Poder Judiciário
tipificar condutas, por risco de se usurpar função precipuamente legislativa, atentando-se ao
disposto no artigo 2º da Constituição, que bem define a tripartição dos poderes Estatais. Nas
palavras no Ministro:

Não cabe, pois, ao Poder Judiciário atuar na anômala condição de legislador positivo
(RTJ 126/48 – RTJ 143/57 – RTJ 146/461-462 – RTJ 153/765 – RTJ 161/739-740 –
RTJ 175/1137, v.g.), para, em assim agindo, proceder à imposição de seus próprios
critérios, afastando, desse modo, os fatores que, no âmbito de nosso sistema
constitucional, só podem ser validamente definidos pelo Parlamento (J. J. GOMES
CANOTILHO, “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, p. 636, item n. 4,
1998, Almedina). Com efeito, se tal fosse possível, o Poder Judiciário – que não
dispõe de função legislativa – passaria a desempenhar atribuição que lhe é
institucionalmente estranha (a de legislador positivo), usurpando, desse modo, no
contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não
lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação de
poderes (BRASIL, STF, 2019a, p. 28).

Entretanto, reconhece o togado que de fato o Estado restou omisso com relação à
tipificação de condutas tendentes a proteger as comunidades LGBT, uma vez que há, de um
lado, uma imposição do texto constitucional (referindo-se ao já mencionado artigo 5º, incisos
XLI e XLII, da Constituição) para que o Estado promova a criminalização de condutas
discriminatórias, e de outro a manifesta ausência de atuação estatal em promover a plena
acessibilidade aos direitos individuais personalíssimos previstos na Carta Maior do Estado,
principalmente no que se refere à classe homossexual.
Ainda delineado sobre a omissão estatal no referido caso, o relator afirma que a mera
alegação de que exista projeto de lei tramitando no Congresso, com a pretensão de criminalizar
os atos homofóbicos, não é reconhecer a ação do Estado em garantir esse direito, uma vez que

[...]
XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos
termos da lei;
74
sabidamente os projetos de lei existentes neste sentido são constantemente boicotados por
algumas bancadas congressistas, que protelam sua apreciação e votação. Além disso, para o
Ministro, a omissão verificada do Legislativo em não produzir lei expressamente definida na
Constituição significa um verdadeiro desprezo do Estado pela própria Carta Maior, que ele
mesmo formulou e se submeteu a assegurá-la.
Sendo assim, o relator julga que a solução mais conveniente ao caso é decretar prazo
razoável para que o Legislativo sane a omissão apontada, e, caso desobedeça a ordem judicial,
“[...] legitimar-se-á, segundo jurisprudência firmada por esta Corte, a possibilidade do Supremo
Tribunal Federal formular solução jurisdicional que viabilize, enquanto não sobrevier a
legislação reclamada, a aplicação da norma constitucional impregnada de eficácia limitada”
(BRASIL, STF, 2019a, p. 68).
Nesse sentido, o Ministro inclui o conceito de homofobia à definição social de racismo,
considerando as duas espécies como manifestações de ódio motivadas por características
individuais do cidadão, o que autoriza o Judiciário a equiparar as figuras para fins
criminalísticos, dando poderes de punição ao poder julgador para os casos em que hajam
condutas homofóbicas, utilizando-se por base a legislação tipificadora do racismo, durante o
período em que o Legislativo não supra a omissão suscitada.
Para o relator, tal solução não pode ser considerada como tipificação da homofobia, e,
portanto, usurpação do poder legiferante, pelo fato de que não se propõe criar nova legislação
penal para o caso concreto, apenas subsumir os fatos à lei já existente. Também não pode ser
considerada analogia in malam partem, pois o que se está fazendo não é uma comparação entre
institutos equivalentes, mas interpretando a abrangência do conceito de racismo, que engloba
em sua raiz sociológica, os fatos narrados como homofobia. Desta feita, ressalta o relator:

Inacolhível, portanto, a alegação de que a decisão do Supremo Tribunal Federal a ser


proferida no caso presente qualificar-se-ia como sentença aditiva, conforme sustenta
o Senado Federal, pois, na realidade, está-se a utilizar o modelo de decisão de caráter
estritamente interpretativo, sem que se busque reconstruir, no plano exegético, a
própria noção de racismo, cujo sentido amplo e geral já foi reconhecido pelo Supremo
Tribunal Federal em relevantíssimo precedente (“caso Ellwanger”), que observou, na
espécie, o próprio sentido que emergiu dos debates travados no seio da Assembleia
Nacional Constituinte [...] (BRASIL, STF, 2019a, p. 99).

Em consonância com o voto do Ministro Celso de Mello, o voto do Ministro Edson


Fachin, no julgamento do Mandado de Injunção n. 4.733, o qual iniciou seu julgamento em
conjunto com a ADO 26, pela matéria ser a mesma, também acreditou ser correta a extensão da
tipificação do crime de racismo aos fatos concebidos como homofobia, reconhecendo a mora
75
do Legislativo em formular lei apta para tanto. No relatório do MI, o Ministro declinou ser
perfeitamente cabível o remédio constitucional ao caso concreto, por se tratar de direito
subjetivo a obter uma legislação no assunto, em confronto com a visível omissão do Estado em
promover a votação da referida lei, que já possui projetos em tramitação nas casas legislativas
há muitos anos.
Além disso, o voto do relator do MI também vem no sentido de que a omissão legal
deve ser sanada tendo em vista o crescente número de vítimas decorrentes da propagação de
ódio contra as classes LGBT, bem como o entendimento de que “[...] ante a mora do Congresso
Nacional, comporta, até que seja suprida, colmatação por este Supremo Tribunal Federal, por
meio de interpretação conforme da legislação de combate à discriminação” (BRASIL, STF,
2019b, p. 9). Atenta-se, ainda, para o fato de que ambos os votos resguardam a liberdade
religiosa, com relação à objeção de consciência, não adentrando na esfera das pregações dentro
dos cultos de cada religião, sobre suas opiniões com relação à comunidade LGBT.
Após a sessão de julgamento, onde os relatores proferiram seus votos, os Ministros
Alexandre de Morais, Luís Roberto Barroso, Carmem Lúcia, Gilmar Mendes, Rosa Weber e
Luiz Fux manifestaram sua concordância com os termos das decisões. Já os Ministros Dias
Toffolli e Ricardo Lewandowski votaram por reconhecer a omissão legislativa, mas afirmaram
que não é competência do Judiciário equiparar a conduta ao crime de racismo, por risco de
usurpação de poderes, negando, portanto, o enquadramento da homofobia ao crime de racismo,
nos termos expostos pelo Relator. O Ministro Marco Aurélio foi o único quem votou pelo
desprovimento total das ações, por considerar a via eleita para a discussão inadequada, e
manifestou desconforto com os relatórios, por considerar que a equivalência proposta entre os
crimes de homofobia e racismo gera uma “lei temporária” até que o Congresso Nacional se
manifeste, afirmando, inclusive, que a Corte não pode criar tipos penais, e que a decisão
proferida pelos seus colegas de toga é um passo demasiadamente largo, uma vez que uma
decisão judicial não pode chegar à tanto.
Deste julgamento também surgiram várias críticas acerca da atuação do Supremo
Tribunal Federal no caso concreto. Destaca-se o que afirma Marcelo Casseb Continentino, em
artigo intitulado Omissão normativa ou excesso institucional? Mais um dilema do Supremo
(2019), que inicia distinguindo as duas figuras de remédios constitucionais, retomando que a
ADO possui natureza objetiva, preocupando-se precipuamente com a defesa da ordem jurídica
constitucional, aplicando-se à generalidade social, ao passo que o MI é subjetivo, voltado às
tutelas individuais, aplicando-se apenas às partes do processo. Segundo Continentino (2019):

76
O MI, consoante se extrai da própria Constituição, art. 5, inciso LXXI, há de colmatar
a falta de norma regulamentadora que obsta o exercício dos direitos e liberdades
constitucionais, devendo a ordem de injunção propiciar o imediato exercício dos
direitos obstados. Já a ADO tem vocação constitucional diversa, porquanto, em
princípio, não se destina à imediata solução da omissão normativa inconstitucional.
As decisões, nela, proferidas têm outra natureza, a depender da autoridade em face da
qual se propõe a ação. Conforme disposto no art. 103, § 2, se a autoridade a quem se
reputa a omissão é executiva, a decisão a ela determinará que adote as providências
cabíveis no prazo de trinta dias, hipótese em que assume natureza mandamental; se a
autoridade inerte é legislativa, a decisão judicial dará ciência ao órgão para adoção
das providências necessárias sem fixação de prazo; a natureza da decisão será
declaratória da inconstitucionalidade omissiva (CONTINENTINO, 2019).

Dessa forma, para Continentino (2019), o STF vem confundindo os referidos remédios
constitucionais, que deveriam tomar forma na jurisprudência separadamente, uma vez que se
tratam de institutos de natureza diversa. Contudo, de acordo com Continentino (2019), não paira
apenas aí a problemática. Segundo Continentino (2019), a decisão do Ministro Celso de Mello,
no relato da ADO n. 26, fere a Constituição no que diz respeito à abrangência que se deve tomar
as ações de inconstitucionalidade por omissão, uma vez que o Ministro não propõe apenas
informar o Legislativo de sua omissão, e dar “margem de tempo razoável” para que a quietude
seja sanada, mas sim efetivamente preencher o vazio normativo até que o legislador tome
providências. De acordo com Continentino (2019), essa solução encontrada pela Suprema Corte
torna mais tensa ainda as relações entre os três poderes, pois ao julgar uma ADO, propõe
respostas que somente seriam adequadas em sede de MI.
Com relação à matéria debatida no julgamento, qual seja a criminalização da homofobia,
André Luiz Maluf, Rogério Greco e William Douglas, em artigo intitulado Conflito entre os
Poderes: pode o Supremo criar o crime de Homofobia? (2019), afirmam que por mais odiosa
que a conduta seja, e por mais nobre que sejam as intenções dos impetrantes dos remédios e do
STF, não há como se fazer analogia cominatória do crime de racismo aos atos considerados
homofóbicos pela falta de expressa previsão legal destes últimos. Acrescentam ainda que não
há o que se falar em omissão do Legislativo, uma vez que para a configuração da omissão deve
haver um comando certo para a ocorrência da legislação, e não apenas um dever geral de
conduta, como se afigura no caso concreto, que se baseia, como já aludido, no inciso XLI do
artigo 5º da Constituição.
Ressaltam Maluf, Greco e Douglas (2019), ainda, que a criminalização da homofobia,
como pretende o Supremo Tribunal Federal, vai de encontro ao princípio da legalidade, que
expressamente assegura que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia
cominação legal”. De acordo com Maluf, Greco e Douglas (2019), tal garantia assegura o
77
cidadão contra os arbítrios do Estado, não podendo se abrir mão de tal instituto sob risco de se
submeter a autoritarismos estatais. Nesse sentido, afirmam Maluf, Greco e Douglas (2019) que
apenas o Legislativo é quem tem a prerrogativa de formular cominações penais, ocorrendo, no
caso concreto, uma verdadeira violação ao princípio da separação dos poderes.
Em consonância, Bruno Galindo, em artigo intitulado Criminalização da Homofobia,
omissões inconstitucionais e diálogos institucionais (2019), defende que a existência de
remédios constitucionais como a ADO e o MI são de extrema importância na concretização do
Estado Democrático de Direito. Afirma Galindo (2019) que a própria natureza dos Mandados
de Injunção estabelece que o controle de constitucionalidade por omissão seja mais dinâmico,
na medida em que permite a feição de ações com efeitos concretos para superar a obstaculização
do exercício de um direito pela omissão legislativa.
Dessa forma, para Galindo (2019), uma atuação mais positiva do Judiciário é possível,
na medida em que não se sobreponha ao Congresso Nacional, uma vez que o sistema de freios
e contrapesos não pode ser considerado algo estratificado. Em suas palavras, “[...] em verdade,
em sua própria estruturação constitucional, os 3 poderes exercem suas funções típicas de modo
predominante e não exclusivo, admitindo-se de modo subsidiário e pontual que o legislativo
administre e julgue, que o executivo legisle e julgue e que o judiciário legisle e administre”
(GALINDO, 2019).
Contudo, Galindo (2019) ressalva que essa atuação legiferante do Judiciário não pode
se dar de qualquer forma. Deve observar os preceitos da necessidade de intervenção e dos
princípios estabelecidos na Constituição. No caso concreto, de acordo com Galindo (2019), o
Judiciário não pode criminalizar a homofobia pelo simples fato de existir em nossa Carta Magna
o já mencionado princípio da legalidade, que impede uma cominação legal sem lei anterior
definidora. Ao atuar dessa forma descontrolada, Galindo (2019) aduz que o Judiciário está
atuando em uma verdadeira “juristocracia”, onde não existe mais harmonia entre os poderes
estatais.
Denota-se do estudo dos casos concretos mencionados que a atuação do Poder Judiciário
vem causando desconforto perante os demais órgãos do Estado, e mesmo dentro da própria
estrutura, uma vez que vem agindo de maneira até mesmo ilegal, se levado em conta o
ordenamento jurídico brasileiro. É inegável que o avanço da jurisdição normativa deve ser
estimulado, e que muitas vezes o Judiciário toma para si o papel de reinterpretar a
normatividade existente para amoldá-la às situações concretas e inéditas que surgem com a
evolução constante das sociedades. Entretanto, esse avanço não pode se dar a qualquer custo e

78
de qualquer forma, muito menos a partir de um Judiciário que utiliza manobras conceituais e
subjetivismos muito bem fundamentados, para dar o sentido que acharem mais conveniente
para a norma naquele momento, até mesmo inovando a própria letra da lei expressa, com a
prerrogativa de ser um instituto técnico que possui mais conhecimento e capacidade intelectual
que restante do Estado.

3.3. O Poder Judiciário brasileiro do século XXI: quem pode explica-lo?

A evolução do Poder Judiciário ao longo de sua existência demonstrou que nem sempre
uma teoria jurídica desenvolvida e adotada em um país vai dar certo em todos os outros. Para
que se possa compreender o fenômeno do desenvolvimento jurídico de um país, deve-se levar
em conta todo o aspecto social e econômico em que aquela sociedade se encontra. O Brasil, por
exemplo, importou inúmeras teorias jurídicas e de Estado para tentar justificar sua própria
existência, nem sempre fazendo a escolha mais adequada para si.
Inegavelmente que nossa Constituição é bastante social e à frente de seu tempo, se
mostrando, na maioria das vezes, contemporânea, suscetível de pequenos ajustes que podem
facilmente sanar qualquer necessidade de reparo. Isso se deve à adoção de inúmeros preceitos
principiológicos, que permitem que a legislação seja flexível no momento de sua aplicação,
para justamente evitar a necessidade de profundas modificações constitucionais, que
desestabilizam econômica e politicamente um Estado, mas que também determinam de que
forma as regras do jogo devem ser consideradas nos casos concretos, o que não se tem visto no
Estado brasileiro atualmente, uma vez que essa abertura hermenêutica é utilizada para permitir
a prevalência de certos pontos de vista pessoais de alguns juristas.
Nesse sentido, José Sérgio da Silva Cristóvam, em seu artigo Menos Princípios, mais
Regras: a Teoria da Ponderação na Encruzilhada do Decisionismo (2019), também faz uma
crítica ao exagero decisionista encontrado nos poderes judicantes dos Estados Democráticos.
Para Cristóvam (2019), ao mesmo tempo em que as constituições carregadas de conceitos
principiológicos vieram para balizar a normatividade existente, no sentido de garantir um
melhor norteamento para a aplicação das regras estatais, acabou se mostrando um verdadeiro
complicador para a manutenção da própria Democracia, ao permitir a abrangência da
interpretação judicial, em suas decisões.
Cristóvam (2019) afirma também que, no âmbito da principiologia constitucional, o que
mais seduziu a classe jurídica para essa nova maneira de agir, de forma inovadora, no que diz

79
respeito à normatividade, foi a teoria da ponderação de princípios, que permitiu um
protagonismo maior do Poder Judiciário, com relação aos demais poderes estatais, uma vez que
legitimou, através de seu aspecto genérico, a hermenêutica judicial desenfreada, que acabou por
se mostrar viciada por moralismos e decisionismos por parte dos aplicadores da lei.
Entretanto, Cristóvam (2019) esclarece que a submissão das soluções jurídicas aos
princípios constitucionais não são, por si só, os vilões da Democracia, pelo contrário, se
aplicadas de maneira correta, são os maiores garantidores dessa forma de governo,
principalmente na realidade brasileira, onde existe uma incompetência generalizada dos demais
poderes estatais nessa garantia.
Do ponto de vista de Cristóvam (2019), o que prejudica a defesa do Estado Democrático
é a tentativa de subsumir os casos apenas às intepretações partidas dos princípios
constitucionais, sem se atentar à existência de normas específicas para alguns fatos, o que torna
o Poder Judiciário ativista, ao produzir entendimento normativo completamente novo aos olhos
da lei. Nesse sentido, defende Cristóvam (2019) que “Um autêntico Estado constitucional de
direito não pode tolerar como legítimo o recorrente apelo a manobras jurídicas de exceção,
veiculadoras de moralismos e decisionismos de ocasião quase sempre escamoteados por
justificações principiológicas frouxas e até seletivas” (CRISTÓVAM, 2019, p. 999).
Da mesma forma, Cristóvam (2019) aduz que a existência e aplicação dos princípios
constitucionais sempre foi alvo de críticas, uma vez que a abrangência hermenêutica que seu
próprio paradigma permite poderia acarretar numa incerteza jurídica, a partir da relativização
de direitos, prejudicando a noção de legalidade e segurança jurídica. É nesse sentido que
Cristóvam (2019) afirma que há uma usurpação desenfreada das funções do Poder Legislativo,
por parte do Judiciário, já que as interpretações principiológicas estão cada vez mais subjetivas
e moralistas, onde um Poder quer, mais do que impor seu entendimento técnico aos outros e à
sociedade, de forma geral, como também se autoafirmar como o Poder mais poderoso e acima
de todos. Dessa forma, ressalta Cristóvam (2019):

Com efeito, esse tal “Estado de ponderação” jamais pode ser convertido em um Reino
do “tudo depende” ou do “vale tudo hermenêutico”. Não se pode entender como
adequada a relativi-zação de conceitos e institutos jurídicos, que fundam as regras e
princípios constitutivos da ordem jurídica vigente, abrindo espaços para práticas
decisionistas dos poderes constituídos, em especial para a subjetividade da atividade
judicial (CRISTÓVAM, 2019, pp. 1000-1001).

Ao citar Ferrajoli, Cristóvam (2019) explica que não se retira a importância da liberdade
hermenêutica do Judiciário, tampouco a do próprio Legislativo. A crítica que se faz é com

80
relação ao excesso de decisionismos subjetivos, que são permitidos pela imensa gama de
princípios existentes, e mesmo inventados para fundamentar as decisões judiciais, cada vez
mais imbuídas de moralismos. Em verdade, Cristóvam (2019) aduz que mesmo a utilização dos
princípios está sendo deturpada, pois estes são clamados às sentenças e acórdãos de maneira
superficial para tentar legitimar seus fundamentos, sendo dessa forma interpretados a bel prazer,
tomando significações diferentes conforme o juiz, a causa, e a finalidade que se pretende com
aquela decisão. Nesse sentido, traduz Cristóvam (2019) que “Não que o Judiciário não seja
legítimo intérprete da ordem constitucional, mas isso não o autoriza a funcionar como constante
e onisciente legislador constituinte positivo” (CRISTÓVAM, 2019, p. 1003).
Ainda, Cristóvam (2019) afirma que uma teoria da ponderação, para se formar num
sentido de convalidar os ideais democráticos do Estado, deve sempre se submeter à limites
formais e materiais devidamente definidos nas legislações constitucionais e
infraconstitucionais. Nesse sentido, de acordo com Cristóvam (2019), deve-se entender que os
direitos e interesses a serem defendidos nas demandas levadas ao Poder Judiciário não devem
ser olhados como conflitantes, mas sim como convergentes, uma vez que o próprio texto
constitucional os defende de maneira equivalente. Para Cristóvam (2019), a problemática se
traduz da seguinte forma:

[...] o espaço da mais efetiva aplicação do modelo ponderacionista é aquele que povoa
as decisões judiciais de concretização de direitos, a partir da solução de conflitos entre
direitos e interesses contrapostos (judicialização das colisões entre interesses
públicos, coletivos, sociais, privados, individuais), além do amplo espectro de
medidas relacionadas ao controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos
em geral. É no palco do debate judicial entre direitos e interesses, em especial se
amparados em princípios, que habita a mais preocupante face da ponderação
proporcional, albergando tanto a produção legítima e racional da decisão judicial,
como também toda sorte de excessos decisionistas e moralismos subjetivos
usurpadores da autoridade do sistema normativo (constitucional e infraconstitucional)
(CRISTÓVAM, 2019, p. 1006).

Nesta senda, Cristóvam (2019) defende que um sistema de ponderação somente pode
existir de forma a não prejudicar o Estado Democrático, lembrando sempre de manter relação
com as limitações da ordem constitucional, quando não houver uma norma constitucional
imediatamente aplicável, e, na falha desta, através da tentativa de subsunção à legislação
infraconstitucional, interpretada nos limites dos princípios constitucionais bem definidos, que
sigam os ditames constitucionais, bem como, na inexistência ou ineficácia deste, através da
fundamentação judicial, que deve seguir requisitos formais e materiais definidos em lei para
efetivamente possuir validade perante a normatividade Estatal.

81
Dessa forma, ao afastar o subjetivismo da realidade das decisões judiciais, consegue-se
fazer com que a convivência entre princípios, normas e decisões seja pacífica, considerando os
fatores elencados anteriormente verdadeiros limitadores do decisionismo, recolocando em voga
a força normativa das regras jurídicas, desvinculadas de moralidades ou aspectos políticos, que
hodiernamente, são visíveis na produção de decisões pelo Judiciário.
Sendo assim, Cristóvam (2019) aduz que o Estado brasileiro moderno se encontra assim
formatado por uma crise de legitimidade de seus órgãos, uma vez que para o povo, e para as
grandes mídias e grupos econômicos, aqueles estão completamente sucumbidos à corrupção e
aos interesses privados. Para Cristóvam (2019), tal situação somente pode começar a ser
amenizada a partir da retomada da legalidade e de um sistema poderacionista limitado pela
supremacia da Constituição e pela defesa dos direitos fundamentais.
Nesse mesmo sentido, a partir de outro ramo jurídico, destaca-se as reflexões de
Matheus Felipe de Castro, em seu artigo O Martelo Moro: a “Operação Lava Jato” e o
Surgimento dos Juízes Partisans no Brasil (2017), onde o autor critica a atuação do Judiciário
na esfera do Direito Penal, no qual nitidamente, e como se verificou no tópico anterior, o órgão
jurisdicional atua de maneira subjetivista e interventiva, desencadeando em relativizações de
preceitos fundamentais, que acabam por remontar aos tempos dos Estados de Exceção.
Como bem aduz Castro (2017), a esfera penal brasileira tem sofrido profundas
alterações em sua forma de existir, contudo não de maneira progressiva, e sim retornando aos
antiquados métodos inquisitoriais e punitivistas, que buscam a autolegitimação do Estado como
detentor de todo o poder e dominador da sociedade, aspectos estes que passaram a ser
reprovados após a Criminologia Crítica dos anos 70 verificarem que se tratava de um modelo
fracassado que só gerava mais problemas sociais. Nas palavras de Castro (2017), o direito penal,
considerado em sua forma medieval, é:

Um ramo jurídico de profundas raízes religiosas, fundado em maniqueísmos ou


binarismos que opõem o lícito ao ilícito, o permitido ao proibido, remontando ao velho
esquema medieval do bem e do mal, de Deus e do Demônio, da moral e do pecado,
da dignidade e da criminalidade, da culpa e da expiação. Elementos que foram
desenhados com acuidade no mais importante tratado de demonologia, direito e
processo penal da inquisição católica: o Malleus Maleficarum, ou Martelo das
Feiticeiras. Em suma, um padrão comportamental das sociedades cristãs ocidentais
reprodutor de uma cultura de medo e repressão que não deveria ser aperfeiçoado, mas,
como intuía Radbruch, superado (CASTRO, 2017, pp. 295-296).

Desse modo, Castro (2017) critica o retorno a esses preceitos de Estado de polícia
firmados dentro da esfera penal, ainda que de forma velada, com o surgimento de atores

82
jurídicos que defendem uma Teoria dos Direitos Fundamentais completamente voltados a
propagar uma ideia de defesa social a todo custo, utilizando o Estado de Direito como ente de
convalidação a essa ideologia. Nesse sentido, segundo se depreende da ideia de Castro (2017),
o Direito, que deveria ser o garantidor da sociedade contra o poder excessivo do Estado, acaba
se tornando o legitimador desse poder, tudo graças aos agentes aplicadores deste Direito, que o
utilizam da maneira que acham mais conveniente conforme suas próprias convicções pessoais,
seja de cunho político, seja religioso, ou qualquer outro.
Para Castro (2017), o maior problema dessa autonomia exacerbada do Judiciário, dentro
da esfera penal, reside no fato de que, mesmo que formalmente, a figura do julgador e do
acusador estejam separadas, na prática verifica-se a permissividade do próprio sistema em
delegar determinadas produções probatórias ao juiz, de forma a retificar o sentido inquisitorial
do sistema penal brasileiro. É levando essas questões em consideração que, de acordo com
Castro (2017), “[...] nosso sistema processual penal leva à criação de verdadeiros ‘juízes
justiceiros’ que não raras vezes passam a crer firmemente nessa missão de combate ao crime e
ao mal social” (CASTRO, 2017, p. 301).
Nesse sentido, defende Castro (2017) que a conjuntura sócio-política atual do Brasil não
se explica mais somente com as teorias da judicialização da política e do ativismo judicial, mas
sim trata-se de um fenômeno inédito, muito mais complexo que a definição dessas teorias. Para
Castro (2017), quem melhor trouxe uma definição do que está ocorrendo no país na atualidade
foi Carl Schmitt, ao introduzir o conceito de juízes partisans, que vão além da figura de um juiz
combatente, no sentido anteriormente referido como justiceiro, mas sim um verdadeiro
partidário, militante de suas ideologias, que foge das regras do jogo para defender aquilo que
ele acredita ser o mais adequado para efetivar a persecução contra um inimigo específico, que
contrarie aquilo que sua própria moral lhe confira como correto.
Denota-se, portanto, que a atuação hodierna do Judiciário vai além de um ativismo puro
e simples. Recorrem nossos magistrados às implicações moralistas e conservadoras de velhas
políticas que não mais tinham chances de ocorrer numa Democracia social implantada a partir
da Constituição de 1988. Notadamente que o Judiciário deixou-se levar por interesses pessoais,
na solução dos conflitos que lhe são submetidos, se postando como um verdadeiro poder
soberano do Estado, que nada lhe atinge e nada lhe contém. Talvez o excesso de confiança
depositado em sua experiência e conhecimento técnico tenham feito com que o órgão
jurisdicionado acreditasse poder fazer aquilo que lhe conviesse no exercício de suas funções,
até mesmo passar por cima do ordenamento jurídico para defender aquilo que achavam ser

83
correto, de acordo com suas consciências. O fato é que a jurisdição se tornou um super poder
capaz de ditar as regras do jogo sem ele mesmo observá-las, deixando a própria população a
mercê de seus caprichos. Contudo, essa posição não poderá ser mantida para sempre, pois uma
hora ou outra os erros virão à tona e a conta será cobrada de todos, mais cedo ou mais tarde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constata-se do levantamento apresentado que a discussão sobre a tomada de decisões


numa sociedade de Direito não é tarefa contemporânea. Desde o nascimento das sociedades se
discute de que forma o Estado será organizado, e quem deterá tais prerrogativas. Compreende-
se que, nas sociedades modernas, principalmente nas Democráticas, a regência do Estado não
compete à uma figura isolada, ou a um conjunto de pessoas apenas, como ocorria antes do
fenômeno da constitucionalização. Verifica-se que a evolução das formas de governo procura
acompanhar o próprio desenvolvimento das sociedades, que não se satisfazem com modelos
governamentais antiquados, e necessitam de renovação política de tempos em tempos.
Para entender essa necessidade de mudança, e como ela se relaciona com a estabilização
dos Estados é que se retomou, no primeiro capítulo deste estudo, a formação dos Estados

84
Democráticos com relação à sua abrangência legal, de que modo esses Estados passaram a se
organizar após a queda do absolutismo, e qual a influência da teoria desenvolvida por
Montesquieu sobre a tripartição dos poderes sobre tal formação.
Depreende-se deste resgate inicial que a teoria da tripartição dos poderes, inicialmente
descrita por Locke, desenvolvida por Montesquieu e aprimorada pelas novas formas de Estado,
surgiu como uma rota de fuga para as populações que sofriam com as tiranias dos governos
despóticos. É na tripartição dos poderes que se vê a possibilidade de controlar e limitar o poder
do soberano, uma vez que as funções do Estado de punir, legislar e administrar não estão
concentradas na figura de uma única pessoa, ou um único ente.
Entendemos também que a política e o direito estão intimamente conectados, partindo-
se do pressuposto de que o primeiro cria o segundo, e se legitima como articulador de normas
a partir de sua submissão à própria norma que fabrica. Dessa forma, a política e o próprio direito
se mostram como limitadores do poder do governante, principalmente após a passagem do
absolutismo para a democracia, e o desenvolvimento desta a partir da constitucionalização do
Estado Democrático, que assegurou garantias à sociedade, e que colocou a lei acima de todos,
inclusive acima do próprio Estado, restringindo sua atuação, e, portanto, evitando novos
despotismos. Essa limitação do Estado e também o advento da representatividade de classes
perante o Estado é que justifica o Legislativo como Poder legítimo para atuar diretamente em
prol das pessoas que escolhem seus representantes, e, dessa forma, podem controlar e trocar, de
tempos em tempos, as figuras que lá reclamam suas necessidades, na formação direta da
normatividade que regerá todo a conjuntura estatal.
Contudo, como se tem visto na atuação dos poderes do Estado atualmente, a teoria
tripartite não tem sido respeitada, nos moldes definidos por Montesquieu, uma vez que se
percebe cada vez mais a usurpação de funções por parte dos poderes entre si, principalmente
no que tange ao Judiciário perante o Legislativo.
É inegável que vivemos uma crise institucional, onde os poderes estatais não estão mais
bem definidos, e verifica-se uma constante queda de braços entre os poderes para ver quem tem
mais poder. Esqueceu-se da harmonia e da independência (ou autonomia) entre os poderes
estatais, para a ideal convivência em sociedade. É fato que as comunidades modernas de hoje
necessitam de respostas mais contundentes e atuações mais céleres e eficazes por parte do
Estado em cumprir sua função de governar e manter sua prosperidade, contudo, essa busca
incessante pela satisfação popular tem afetado diretamente os próprios entes estatais.

85
Nota-se que os vários anos de ineficácia dos poderes perante os problemas sociais, e, no
caso brasileiro, os constantes desequilíbrios no cenário político fizeram com que a sociedade
desacreditasse dos poderes do Estado, o que fez com que estes passassem a buscar novamente
sua legitimidade constantemente, demonstrando atuações inovadoras, céleres, rígidas,
principalmente por parte do Judiciário, que passou a ser encarado como válvula de escape para
a constituição da ética no poder. O que o senso comum não imagina é que o próprio Judiciário
não possui em sua plenitude essa ética almejada. Pudemos observar isso no segundo capítulo
deste levantamento bibliográfico, onde discutimos o intenso decisionismo praticado pelo
Judiciário em sua atuação moderna.
Descobrimos que dentro da separação dos poderes, onde o Legislativo é incumbido de
produzir as normas, o Judiciário tem por objetivo aplicar as normas fabricadas por aquele poder
aos casos concretos, subsumindo o fático ao abstrato. Contudo, é natural que existam lacunas a
serem preenchidas nas leis, uma vez que o Legislativo não possui conhecimento técnico para
efetivamente produzir normas. É aqui que entra a função hermenêutica do Judiciário, que deve
ser criativo no sentido de sanar essas lacunas, sempre observando o que determina a lei e a
principiologia definida na Constituição, não podendo, portanto, essa interpretação ser feita de
qualquer modo.
Mesmo o controle de constitucionalidade exige tal criatividade de interpretação, pois
deve-se observar o que a legislação e os princípios permitem, para saber se uma nova norma
pode existir ou não. E depreendemos do estudo realizado que o controle de constitucionalidade
feito pelo Judiciário, principalmente no tocante às Cortes Superiores não contradiz o princípio
da separação dos poderes, e se constitui num objetivo fundamental do órgão, na medida em
que, pela teoria dos freios e contrapesos, o poder jurisdicionado possui legitimidade para
averiguar quando a atuação do Legislativo perpassa os limites legais que ele próprio instituiu.
O real problema que encontramos na atuação do Judiciário não é, portanto, a utilização
da hermenêutica avançada na solução de conflitos entre pessoas, ou entre normas. O grande
problema é a interferência que os juristas têm sofrido de fatores externos aos Direito e à
principiologia constitucional, quais sejam interesses políticos, filosóficos, morais, subjetivos.
Deixou-se de julgar demandas pela letra da lei para se fundamentar as razões de decidir naquilo
que o jurista acha o mais correto, naquilo que ele acredita dever ser a lei, mesmo que sua crença
vá diretamente de encontro com a norma expressa.
As decisões judiciais sucumbiram às influências externas. Os “juízes” populares de
redes sociais passaram a influenciar diretamente nas decisões dos juízes oficiais. A mídia

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passou a ter relevante papel na formação do convencimento dos juristas. A opinião popular
sobre o certo e o errado passou a fundamentar as sentenças. Se tudo está dessa forma, até que
ponto, então, necessitamos de juízes com altíssimos salários, se a solução dos conflitos pode
ser facilmente e gratuitamente debatida nos comentários do Facebook?
Toda a formação filosófica, doutrinária e legal do Direito não possui mais o devido
valor, tendo em vista que o que importa, nas decisões, é se já houve precedente que julgou
demanda idêntica, e de que forma o Tribunal entende ser correta a aplicação da norma.
Considera-se que a interpretação da norma é necessária sim, mas dentro dos parâmetros
definidos legalmente, sem se deixar, preferencialmente, influenciar apenas pelos precedentes.
Deve-se voltar para a formação das decisões a partir do desenvolvimento dos estudos
direcionados à norma expressa e aos preceitos fundamentais definidos em nossa Carta Magna.
Do derradeiro capítulo deste trabalho pudemos observar que a atuação do Supremo
Tribunal Federal, no Brasil, está seguindo exatamente esta linha de decisionismos baseados em
interpretações subjetivistas das normas, chegando ao ponto de mitigar garantias constitucionais
fundamentais previstas para proteger os cidadãos do poder sancionador do Estado, quando este
age em franca abusividade. Além disso, torna-se comum observar uma verdadeira usurpação
de função, quando o Judiciário se põe a legislar em suas decisões, como foi o caso observado
também nesta monografia.
Percebe-se que não há observância, nos casos concretos estudados aqui, quais sejam a
mitigação do princípio da presunção de inocência e a criminalização da homofobia, aos
princípios constitucionais e à própria legislação infraconstitucional. A mitigação da presunção
de inocência demonstra que, para o Estado, não existe mais execução penal após o trânsito em
julgado de decisão condenatória. O mais interessante é observar que as fundamentações
utilizadas pelos Ministros do Supremo para mitigar o mencionado princípio não são jurídicos,
mas sim nitidamente moralistas, onde atribuem a necessidade de se retirar direitos dos cidadãos
à própria ineficiência do Estado, do qual o órgão faz parte. O cúmulo é observar que o Judiciário
culpa a sua própria morosidade por essa ineficiência, dizendo que o excesso de possibilidades
recursais impede a sensação de punibilidade que a sociedade exige. Se essa é a razão pela
ineficiência do Estado, não seria o correto, então, reformular o sistema recursal brasileiro, para
evitar a morosidade do órgão jurisdicional, ao invés de retirar direitos das pessoas?
Já no caso da criminalização da homofobia, que merece sim nossa atenção, e que
necessita de legislação que defenda os direitos básicos de uma classe social nitidamente
oprimida em sua existência, observa-se o Estado impondo seu poder punitivo arbitrariamente,

87
ao definir, de ofício, um crime que não existe por seus meios legais. Não se pode admitir que o
Judiciário atue de tal forma, dentro de uma Democracia. Ainda vivemos em um Estado de
Direito, com três poderes bem definidos. Precisamos que nossos governantes levem mais a sério
sua função como agentes estatais com poderes sim, mas poderes limitados. Precisamos de um
Judiciário que não utilize a abrangência hermenêutica dos princípios para satisfazer seus juízos
de valores na prática da subsunção, e de juristas que não atuem em prol de uma ideologia
política ou moral, que não atuem como justiceiros e vingadores. Que deixem estes para a
indústria cinematográfica. Na Democracia precisamos de neutralidade e seriedade, inteligência
e serenidade. Precisamos do Direito.

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88
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Ativistas e a Revelação de Conflitos de Interesses no interior do Estado Brasileiro.
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