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MORITZ SCHWARCZ
A natureza
como
paisagem:
im
p
imagem e
representação
no Segundo
Reinado
LILIA K. MORITZ
SCHWARCZ é professora
de Antropologia da USP e
autora de, entre outros,
O Espetáculo das Raças
(Companhia das Letras).
6 REVISTA USP,
REVISTA USP, São
São Paulo,
Paulo, n.58,
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O Império brasileiro foi pródigo na criação de represen- Uma versão deste artigo foi apre-
sentada no ciclo de palestras da
Funarte intitulado “Estado-Nação”
tações que acabaram por impor um tipo de memória oficial. (Rio de Janeiro e Curitiba, 2001).
Esta pesquisa vem sendo financia-
im
Nesse esforço de bem costurar uma imagem para dentro da pelo CNPq desde março de
2001.
e para fora do país, destacou-se a atuação do Instituto
pé io
cenários idealizados. A natureza brasileira era desenhada a
INTRODUÇÃO
r
A natureza sempre foi pretexto para representações de
ordem diversa. Enquanto objeto da ciência revelou-se so-
bases para uma atuação que daria a D. Pedro originalidades locais, inscritas em suas 8 O próprio imperador tornar-se-
ia membro do Instituto Francês
a centralidade do processo e a imagem do gentes e na própria natureza. em 1842.
rais em detrimento de tudo o que antes GANHA AS TELAS E REDESENHA tor; Auguste H. V. de Montigny,
arquiteto; entre outros. Aderi-
existia. Era como um novo descobrimento, ram à missão, algum tempo de-
dessa vez dado em bases que se pretendiam A NATUREZA pois, os irmãos Zeférin e Marc
Ferrez, gravador o primeiro e
escultor o segundo, que che-
naturais. garam ao Brasil em 1817. Em
Fazendo da literatura um exercício de Também na Academia Imperial de Be- 1820 a escola é transforma-
da, por decreto, em Real Aca-
patriotismo, esse gênero ganhava um lugar las Artes – criada em 1826, porém imple- demia de Desenho, Pintura,
Escultura e Arquitetura Civil e
oficial nos planos do Estado. A valoriza- mentada durante o reinado do jovem mo- no final do mesmo ano passa
ção do pitoresco da paisagem e das gentes, narca D. Pedro II –, a vertente romântica, a se chamar Academia de
Artes. Em 1827, finalmente,
do típico ao invés do genérico encontrava que elegeu o exótico como símbolo local, outro decreto mudou o nome
do estabelecimento para Aca-
no indígena o símbolo privilegiado e nos proliferou e adaptou-se ao projeto monár- demia Imperial de Belas Artes.
trópicos seu “lugar natural”. Representan- quico presente em outras áreas (19). No Dos fundadores restavam ape-
nas Debret e Montigny, assim
do a imagem ideal, o indígena romântico plano pictórico, a Academia seria a grande como Felix E. Taunay e os ir-
encarnava não só o mais autêntico, como o responsável por uma transformação bas- mãos Ferrez, que a princípio
não faziam parte da missão
mais nobre, no sentido de se construir um tante radical: aos poucos o barroco é rele- francesa.
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do imperador – símbolo de um grande im- um imaginário particularmente brasileiro
pério –, as cenas de batalha, ou as evoca- em sua forma e o artista inclui atributos
ções a passagens presentes nos romances específicos a esse universo exótico tropi-
indigenistas produzidos na época, tornam- cal. A nova estrutura visual, já presente em
se as novas fontes evocativas da nação, ao obras como A Primeira Missa (1860),
mesmo tempo que impõem a substituição Moema (1866) e Iracema (1881) como re-
do modelo alegórico por um modelo narra- ferência pontual a esse mundo, passa a ser
tivo, organizado a partir de uma primeira “cenário” da narrativa. No caso, o artista
ação (Mattos, 1999b, p. 7). À frente não sobrepõe sentimentos patrióticos às quali-
mais o nome, mas o grande feito. dades particulares da paisagem paulista.
O modelo vinha da pintura acadêmica “Há uma dramaticidade encenada nos aci-
francesa, porém, não mais na tradição ab- dentes do terreno, que associam claramen-
soluta – que destacava o rei ao centro da te o sítio ao acontecimento histórico repre-
alegoria – mas na iconografia associada a sentado” (Mattos, 1999b, p. 15), fazendo
Napoleão Bonaparte, sempre vinculado aos da paisagem um pretexto menor diante da
acontecimentos históricos que lhe eram grandiosidade da cena que se apresenta.
contemporâneos. Idealista no conjunto e Sobre o tema diz o próprio artista:
realista nos detalhes, o quadro de Pedro
Américo não apenas fala de um ato pessoal “Para satisfazer o geral desejo de ver repre-
de D. Pedro I, mas recupera o próprio even- sentado o célebre riacho do Ipiranga – o
to de emancipação brasileira como momen- qual na realidade passaria a distância de
to heróico: ritual de iniciação de um impé- alguns metros atrás de quem observa o pri-
rio que então se afirmava. meiro plano – forcei a perspectiva pintan-
O quadro, como o título diz, representa do um simulacro de corrente aos pés dos
D. Pedro I levantando sua espada, bem no cavaleiros do primeiro plano. Desculpe-me
alto da colina do Ipiranga: ato oficial de o público essa quase insignificante violên-
rompimento entre Brasil e Portugal. Junto cia à topografia, considerando a necessida-
ao jovem príncipe vemos os cavaleiros de de de consagrar na pintura a idéia do ribei-
seu séquito, que saúdam o gesto e acenam ro cujo nome tão intimamente ligou-se ao
(26). Ao longo da estrada um caipira se glorioso fato da nossa emancipação políti-
detém com seu carro de boi, a fim de obser- ca” (Américo, 1988).
var a cena histórica. Ele representa a figura
do observador, que guarda a cena em nosso Dessa maneira não só os elementos tí-
lugar: seu momento memorável e idealiza- picos da nação – a vegetação, o casebre, os
do. O pobre caipira vive (real e simbolica- nativos – são selecionados, como “força-
mente) o desnível criado por Pedro Améri- se” a natureza em nome de enaltecer o ato
co, que destaca D. Pedro I acima da colina, glorioso. Mais uma vez natureza e história
26 É o próprio Pedro Américo quem
tal qual uma estátua eqüestre, na melhor se agregam quando se trata de fundar mo-
descreve os personagens: Joa- tradição iconográfica. A composição repõe, mentos inaugurais dessa nação (27).
quim Maria da Gama Freitas
Berquó, João Carlota, João de por sua vez, a estrutura hierárquica do re- Nesse caso, o evento vem à frente e a
Carvalho Raposo, Francisco gime: acima a figura rígida (e quase pere-
Gomes da Silva e, provavel-
natureza é coadjuvante importante na com-
mente, o guarda-roupas João ne) do futuro imperador, abaixo o caipira posição do cenário. Diante de ato tão inau-
Maria da Gama Freitas Berquó.
Depois vinham o marquês de passivo que representa o próprio povo bra- gural, que se desculpem os erros intencio-
Cantagallo, o padre Melchior sileiro. Por sua vez, retomando o modelo nais na topografia, mas tudo vale em nome
Pinheiro e o brigadeiro Manoel
Rodrigues Jordão. acadêmico de realizar pinturas históricas, a da idealização.
27 São conhecidas as rivalidades cena moral da independência surge retrata- Percebe-se, assim, como o projeto que
entre Pedro Américo e Victor
da: é o ato de bravura do monarca que fun- vincula a nação à natureza e seus naturais
Meirelles e as associações do
primeiro com a estrutura oficial da a nação emancipada e uma nova ordem chega à pintura de forma coadunada com o
do Império. Esses vínculos leva-
ram Pedro Américo a experi- política e moral. projeto literário nativista e com a própria
mentar uma certa animosidade Mas um outro aspecto merece a atenção historiografia. Nessas obras, os indígenas
logo nos primeiros anos da
República. de Pedro Américo. Tratava-se de construir passivos e idealizados, colados à paisagem
Índios
Guaianases, de
Debret
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É por isso mesmo que esses autores, qual, longe da escravidão, bons selvagens
apesar de tão apegados à sua imaginação, comportavam-se como nobres das florestas
muitas vezes cedem espaço ao didatismo entre nobres da civilização. Harmoniosas são
que confere ao romance e à pintura a cred- as relações entre as raças, assim como re-
ibilidade necessária. Viajantes, cronistas, ceptiva e prazenteira é a natureza.
historiadores, nomes como Gabriel dos Apesar das críticas da geração realista
Santos, Rocha Pita, Caminha, Manuel da de finais do século XIX, que viu nessa pro-
Nóbrega saem dos compêndios e entram dução um gênero imaginoso e subjetivo, a
nas notas explicativas que acompanham o representação romântica criou raízes no
texto ou que dão base aos quadros. O índio país. Sua popularidade talvez advenha
nobre teria, sim, existido em um passado menos do que contém de artificial e exteri-
remoto e glorioso e era ele, assim mitificado or e mais de seu processo de invenção, re-
e adornado por uma paisagem que lhe era elaboração e adaptação à realidade dos tró-
inseparável, que inspirava os dramas e picos ou de uma representação estimada
quadros produzidos na Corte. entre nós. Como um bom selvagem tropi-
A história escorrega, assim, para a litera- cal o indígena mitificado permitiu à jovem
tura e para a pintura tendo a natureza e seus nação fazer as pazes com um passado hon-
naturais como foco matricial. A afirmação roso, enquanto uma natureza sem igual
da particularidade se dá pela narrativa histó- anunciava um futuro promissor.
rica, marcada por uma natureza sem igual. Naturais e natureza formam um elo coe-
Nesse caso, portanto, a idealização do mo- so e revestem uma certa memória que se
delo heróico e episódico combina com a faz história; história oficial. Parodiando
particularidade da natureza e de seus habi- Lévi-Strauss, em seu livro O Totemismo
tantes “naturais”. Nada como uma boa sele- Hoje, é possível dizer que a “natureza”, as-
ção que esquece o momento presente para sim como os totens, “sempre foi boa para
eleger um passado perdido no tempo e no pensar”.
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