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ESCULTORES DE NÓS MESMOS, LIVRES PARA CRIAR!

Marcelo Forones

psiquiatra e psicanalista

Um colega contou ter descoberto, numa cidade do interior, um artesão


cuja especialidade era esculpir elefantes em madeira. Impressionado com a
qualidade das peças, perguntou ao artesão como ele fazia para obter aquele
resultado tão bom. Então ouviu o seguinte: “É muito simples, doutor: eu pego
na madeira e vou tirando tudo que não é elefante. Sobra o elefante...”

Essa resposta, sutilmente geral do artista caboclo, está sintonizada na


mesma frequência da frase dita por Michelangelo quando perguntaram por que
diabo ele olhava tão pasmo para um bloco de mármore, recém-separado da
rocha: “Não estão vendo? É Moisés! Agora eu vou tirá-lo daí de dentro!”

Um parente meu era assim: uma espécie de obra-de-arte dormindo, há


anos, dentro de uma grossa porção de material estranho à sua verdadeira
natureza. Na infância fora um menino vigoroso, ativo, falante, tão desinibido a
ponto de tornar-se o contador de piadas favorito da família. Conforme ia
crescendo, foi ficando sério, quieto, tímido, retraído. Um dia, quando comentei
com ele sobre essa mudança, ele me disse que tinha a impressão de ter
perdido aquele menino, como um pai que perde um filho na multidão. Porém,
mantinha a esperança de reencontrar-se consigo mesmo, algum dia.

Tornou-se arquiteto. Amava sua profissão, era reconhecido por seu


talento, mas não deslanchava no trabalho. Apesar de ser criativo e original,
sentia-se incapaz de levar adiante algum projeto que não parecesse
semelhante às realizações de outros colegas, cujo trabalho admirasse.
Acabava por sentir-se uma espécie de imitador.

Uma noite ele sonhou que o renomado arquiteto catalão Gaudi – que ele
idolatrava com especial paixão – aparecia com um maço de projetos de teatros,
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todos feitos pelo meu parente, e dizia que estavam todos ótimos, que não
deveriam ser modificados em nada. Ao despertar, ficou pensativo no sentido
daquele sonho incomum. Sentiu que era uma espécie de ousadia sua sair por
aí, sonhando com um vulto tão ilustre. Era justamente essa ousadia, tão farta
em sua infância, que viera a faltar agora, na maturidade.

Ousadia e atrevimento, características indispensáveis ao progresso, só


podem estar presentes em nós quando existem desapego e resignação. Só
podemos ser ousados quando percebemos que não conseguiremos jamais
realizar o sonho de ser como aqueles que passamos a admirar pela vida afora.
A espessa camada de material – mais dura que a madeira e o mármore – que
nos envolve e nos sufoca, é feita desse desejo tresloucado de sermos
iguaizinhos às pessoas que mais amamos e admiramos na vida.

Um escultor retira da pedra, um animal ou um profeta. Nós, ao contrário,


vamos colocando, sobre nossa personalidade, camadas e mais camadas
dessa aspiração insana de ser quem não somos, por medo de desagradar a
quem amamos. Em estreita parceria com nossos criadores, vamos, aos
poucos, erguendo esse personagem fictício, mais propenso à imitação do que
à inovação. Ao mesmo tempo, precisamos respirar, para consumar nossa
verdadeira missão, venha ela dos céus ou das combinações genéticas.

Viver é preservar, mas também é renovar. Se o amor pela vida


prevalecer, acabaremos deixando de lado aquelas figuras queridas e
suportaremos, mesmo a duras penas, a imensa dor dessa separação. Aí, sim,
poderemos ser, finalmente, os escultores de nós mesmos.

-o0o-

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