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É Tempo de Refletir

Uma Visão sobre a Igreja, hoje, no Brasil
Ariovaldo Ramos
e
Ricardo Bitún
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Índice
Preâmbulo
I A Inserção da Fé Protestante no Brasil
Tentativas e fracassos
Imigrantes e missionários
O choque petencostal
Manoel de Mello e as “igrejas autóctones”
Paraeclesiáticas, o regime militar e a reação jovem
II Fé em Expansão: Os Anos de Crescimento
Três ondas
A quarta onda: os neopentecostais
A sedução da mídia e a paixão pelo crescimento
Fé e sincretismo
Liderança e personalismo
III Por Uma Nova Eclesiologia
Fé e auto-ajuda
Epílogo
Bibliografia

Preâmbulo
A Bíblia registra em 1 Timóteo 6:9: “Ora, os que querem ficar ricos caem em
tentações, e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam
os homens na ruína e na perdição”. As palavras do apóstolo Paulo ganham um tom ainda
mais profético quando aplicadas ao momento atual da Igreja Evangélica Brasileira. Ele
adverte contra a sedução da riqueza e a insensatez de se perseguir o sucesso material. Esse
caminho, diz o apóstolo, está pavimentado de “ciladas” e só pode terminar em “ruína e
perdição”.
Nas últimas duas décadas, uma corrente teológica vinda dos Estados Unidos invadiu
o Brasil. Travestida de verdade revelada, ela subverte o Evangelho e põe em xeque nossa
herança protestante. A Teologia da Prosperidade, nome pelo qual essa corrente é
conhecida, encontrou ampla acolhida no mundo editorial. Com raras exceções, as editoras
evangélicas inundaram o mercado com obras que propagandeavam os ensinamentos do
Movimento da Fé, como também é chamada a escola doutrinária iniciada pelo americano
Kenneth Hagin, autor dos best-sellers A autoridade do Crente e Compreendendo a Unção.
Restrita no começo a uma ala do protestantismo brasileiro, a Teologia da
Prosperidade se espalhou rapidamente entre nós e pode ser ouvida dos mais insuspeitos
púlpitos. Entra-se numa igreja e lá está um sujeito pregando mensagens mais próximas da
auto-ajuda do que da teologia dos reformadores. O povo não quer ouvir falar de renúncia e
sofrimento pela causa do Reino, rendem-se os pastores. A Cruz tournou-se outra vez uma
vergonha, mas ironicamente para aqueles que dela deveriam fazer sua profissão de fé.
O pastor sobe ao púlpito acreditando combater forças ocultas, que talvez não sejam lá
tão ocultas, mas assim mesmo cridas como sendo. O crente vai ao templo para ouvir uma
palavra positiva, para cima; anela por uma mensagem de refrigério, de bênção. Falar de
arrependimento e conversão seria trair sua confiança, frustrar sua expectativa. Então, sob
esse aspecto, a Teologia da Prosperidade venceu.
O mundo editorial não foi, porém, o único a contribuir para a ascensão da Teologia da
Prosperidade. Da noite para o dia, os canais de televisão passaram a abrigar em suas
grades programas apresentados por estrelas do Movimento da Fé como Valnice
Milhomens e R. R. Soares. O poder do meio amplificou o efeito, e não demorou para que
a Teologia da Prosperidade ganhasse o status de “pensamento oficial” da Igreja
Evangélica Brasileira, tamanha sua influência e de seus líderes.
Um dos seus mais destacados representantes, R. R. Soares declarou, em entrevista
recente à revista Eclésia, preferir “mil vezes pregar a teologia chamada da prosperidade do
que a teologia do pecado, da mentira, da derrota, do sofrimento”. O triunfalismo esnobe
dos arautos da Prosperidade emerge na afirmação: “Não creio (sic) na miséria. Essa
história é conversa de derrotados. São todos um bando de fracassados, cujas igrejas são
um verdadeiro fracasso”. E desafia: “Todo mundo que está na derrota tem que aprender
correndo a tomar posse da benção, senão vai continuar na derrota e dando péssimo
testemunho. Esse negócio de falar que Deus é bom mas não cura, não liberta, não prospera
(sic), que bondade é essa?”.[1]
Retrucaríamos: Que teologia é essa? Que evangelho é esse?
As páginas que se seguem não são uma refutação da Teologia da Prosperidade. Pelo
menos três volumes já foram dedicados a esse tema com relativo sucesso. Dois são de
autoria do pastor e pesquisador Paulo Romeiro e um do pastor Ricardo Gondim.[2]
Nosso objetivo é mais modesto. Temos em mente o leitor que, bombardeado pelas
mensagens dos mensageiros da Prosperidade, foi tomado de dúvidas sobre sua fé e, sem
respostas, sente o chão fugir-lhe. Sofre com a falta de conhecimento e de argumentos para
rebater aos que o acusam de ser ele um “crente fraco”, sem poder.
Pensamos também no pastor que se angustia por não ter encontrado a “chave do
crescimento e do sucesso” para o seu ministério e se impacienta com a própria falta de
criatividade. Ele ouve relatos de igrejas onde as pessoas se espremem porque o lugar ficou
pequeno para tanta gente; onde o pastor tem um programa de televisão e o nome do seu
ministério está na boca de todo mundo. Aí ele para e se pergunta: “Onde está o segredo?”
Ao fazer um excurso através da história da Igreja Evangélica Brasileira, tive a
intenção de mostrar duas coisas: primeiro, que não temos por que nos envergonhar da
nossa herança protestante; segundo, que é possível crescer e manter a identidade com essa
mesma herança. Se logrei sucesso, somente leitor poderá dizer.
Não precisamos fazer concessões para nos tornar mais respeitáveis ou ganhar a
aprovação da sociedade. Paradoxalmente, depois de anos como minoria religiosa, os
evangélicos podem vir a se tornar uma maioria que não faz diferença.
I
A I N S E R Ç Ã O D A
F É P R O T E S TA N T E N O B R A S I L


Tentativas e fracassos
A Igreja Evangélica Brasileira é nova. Começou a fixar-se a partir da segunda metade
do século XIX, quando o Brasil já havia conquistado sua independência de Portugal e era
governado por um imperador (D. Pedro II). Houve, no período Colonial, tentativas de
implantar por aqui a fé protestante, mas ela só viria a vingar entre nós muito tempo depois
de o catolicismo tornar-se a religião oficial do Brasil. De fato, a Constituição Imperial de
1824 apenas ratificou um domínio já existente na prática.
Villegaignon, comandante da expedição francesa que aportou na Guanabara em 1555
e teve o apoio do huguenote Gaspard de Coligny, escreveu a Calvino e à Igreja de
Genebra pedindo que para cá fossem enviados “crentes reformados”. Dois anos depois
era celebrado o primeiro culto evangélico em terras brasileiras.
Mais tarde, o francês expulsaria os calvinistas da recém-fundada França Antártica,
por discordar deles acerca da administração dos sacramentos.
No século XVII, durante a dominação holandesa do Nordeste (1630 a 1654), o
Evangelho teve nova chance. Instalada sob a proteção de Maurício de Nassau, a Igreja
Reformada chegou a ter duas dezenas de igrejas e congregações, atendidas por mais 50
pastores e “predicantes”, além de dois presbitérios e um sínodo. Os holandês deixaram o
país em 1654, depois que a Companhia das Índias Ocidentais negociou com Portugal sua
saída do Nordeste.
Um fato curioso na história da Igreja no Brasil foi o movimento iniciado por Frei
Caneca, então regente do Império, para separar a Igreja brasileira do Vaticano. O religioso
chegou mesmo a convidar teólogos de Westminster para virem ao Brasil, com o intuito de
criar aqui uma nova teologia, de traços protestantes e anglicanos. O religioso foi destituído
da sua regência e condenado por traição. Fracassou, desse modo, mais uma tentativa de
implantar a Igreja Evangélica em nosso país, o que só viria a acontecer com a chegada dos
imigrantes europeus (principalmente alemães, que abriram igrejas luteranas no sul do país)
e das primeiras missões estrangeiras na segunda metade do século XIX.
Imigrantes e missionários
Os imigrantes tiveram um papel decisivo na inserção da fé protestante no Brasil. Em
1810, Portugal e Inglaterra haviam firmado o Tratado de Comércio e Navegação que,
entre outras coisas, protegia os imigrantes protestantes de perseguição religiosa. Isso
incentivou a chegada deles em grande número, vindos principalmente dos Estados Unidos,
Escócia e outros nações européias. Foram os imigrantes alemães, entre eles muitos
luteranos e reformados, porém, que criaram comunidades de colonos, instalando-se
principalmente nos estados do Sul do país. No começo, seus pastores foram escolhidos
entre os próprios “leigos”, e ficaram conhecidos como “colonos-pregadores”. Só bem mais
tarde, missionários e ministros foram enviados da Suíça e da Prússia para cuidar do
rebanho alemão no Brasil.
As primeiras ações missionárias no país foram resultado do trabalho das sociedades
bíblicas. O clima de tolerância da época (era ainda o tempo de vigência dos tratados
assinados com a Inglaterra, uma nação protestante) permitiu que homens como Daniel
Parish Kidder e James Cooley Fletcher realizassem um extraordinário trabalho de
colportagem. O primeiro era episcopal; o segundo, presbiteriano. Kidder chegou aqui em
1842 e fundou, com o rev. Fountain Pitts, a primeira escola dominical do Brasil. Sua maior
realização, contudo, foi como distribuidor de bíblias, tendo viajado por todo o país.
Como Kidder, Fletcher foi agente da Sociedade Bíblica Americana e um verdadeiro
apaixonado pelo trabalho de divulgação do Evangelho. Enviado ao Brasil pela União
Cristã Americana Estrangeira, escreveu, em 1857, O Brasil e os Brasileiros, obra que viria
a influenciar ninguém menos do que Robert Reid Kalley.
Médico de formação, Kalley foi missionário na Ilha da Madeira, de onde fugiu vítima
de perseguição religiosa. Nos Estados Unidos, encontrou-se com Fletcher, de quem ouviu
relatos sobre o “grande campo” recém-aberto no Brasil. E para cá Kalley veio, em 1855,
acompanhado de Sarah Poulton, sua esposa, co-autora com ele do mais famoso e influente
hinário evangélico brasileiro, o Salmos e Hinos.[3]

Do trabalho dos Kalleys nasceu a Igreja Evangélica Fluminense, uma comunidade
que reunia madeirenses e brasileiros. Robert Kalley foi um destacado defensor da
liberdade religiosa e o primeiro missionário a usar a língua portuguesa para divulgar o
Evangelho no país.[4]
Outro missionário pioneiro foi o presbiteriano Ashbel G. Simonton, enviado ao Brasil
pela Junta de Missões Estrangeiras, de Nova York (EUA). Sua figura é decisiva na
evolução do presbiterianismo brasileiro. Apesar de ter escolhido o Brasil como campo
missionário, Simonton não dominava o Português e enfrentou muita dificuldade para se
adaptar ao país. Por oito anos esteve à frente da Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro,
fundada por ele em 1862. Veio a falecer em 1867. [5]
O trabalho de Simonton foi secundado pela vinda de outros missionários
presbiterianos, como Alexander Blackford e Francis Schneider.
Depois de uma malsucedida tentativa com Thomas Jefferson Bowen dez anos antes,
os batistas se instalaram entre nós em 1871 na cidade de Santa Bárbara D’Oeste, onde
existia uma comunidade de imigrantes confederados vindos dos Estados Unidos. A
primeira igreja começou a funcionar em Setembro daquele ano, tendo à frente o pastor
Richard Ratcliff. Somente uma década mais tarde, em 1881, a Junta Missionária de
Richadmond enviou ao Brasil William B. Bagby. No ano seguinte à sua chegada, ele
fundaria, ao lado de um ex-padre (Antônio Teixeira), a primeira igreja batista brasileira.[6]
Os episcopais foram, entre as denominações históricas, os últimos a se estabelecerem
no país. Lucien Kinsolving e James Watson Morris chegaram aqui em 1889, enviados pela
American Church Missionary Society. Foram para Porto Alegre no ano seguinte, onde se
fixaram e deram início a um dos mais promissores trabalhos missionários daquela época.
Apesar da presença dos colonos luteranos na região e dos presbiterianos já haverem
iniciado uma missão na cidade de Rio Grande, a Província do Rio Grande Sul era pouco
ocupada por missões. Em poucos anos os episcopais cresceram e, num só ano (1897),
foram confirmados 150 fiéis. Dois anos mais tarde a Igreja Episcopal do Brasil sagrou seu
primeiro bispo residente, Lucien Lee Kinsolving.[7]
A Igreja Evangélica Brasileira permaneceu, da sua instalação até o início do século
XX, sendo tradicional, cujas características mais marcantes eram a erudição bíblica e o
formalismo litúrgico. Havia também acentuada ênfase na educação, compreensível pelas
altas taxas de analfabetismo da população brasileira da época.
Antonio Gouvêa Mendonça, autor de O Celeste Porvir, argumenta que o
protestantismo implantado no Brasil manteve, contrariamente ao que se poderia esperar,
uma certa unidade teológica e ideológica. Duas coisas contribuíram para isso: a origem
comum (EUA) da maioria das missões e a predominância do culto católico entre os
brasileiros. “As diferenças entre as denominações eram de natureza secundária, niveladas
que foram pela teologia originada dos movimentos religiosos norte-americanos, de um
lado, e das condições peculiares do Brasil, por outro”.[8]
Essa unidade irá, pouco a pouco, sofrer abalos à medida que os evangélicos crescem,
até resultar na ruptura e no isolamento dos anos 80.
O aparecimento dos pentecostais será, por mais de uma razão, o elemento
desencadeador das fissuras que levarão ao racha entre os tradicionais, principalmente nos
círculos batistas e presbiterianos. Eis o motivo para nos voltarmos a eles agora.
O choque petencostal
Os pioneiros foram a Congregação Cristã do Brasil, aqui chegada em 1910 pelas
mãos de um italiano, Luigi Francescon, e a Assembléia de Deus, fundada no ano seguinte
pelos missionários suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg. As duas permaneceram como as
maiores forças do movimento pentecostal no Brasil até o final dos anos 40, quando
dissidentes criaram ministérios independentes. Surgiram, então, três novos protagonistas.
Dois deles (a Pentecostal O Brasil Para Cristo e a Deus é Amor) se singularizaram por
marcarem a emergência das “igrejas autóctones”. O terceiro (a Evangelho Quadrangular)
foi trasladado dos Estados Unidos para cá.
Francescon morou nos Estados Unidos no período em que William Seymour iniciou,
num prédio alugado na cidade de Los Angeles, o que ficou conhecido como o Século
Pentecostal. Era o ano de 1906. Francescon e sua esposa, Rosina Balzano, moravam em
Chicago quando receberam o “batismo” com o Espírito Santo. Eles deixariam os Estados
Unidos em 1909 rumo ao Brasil.
Aqui Francescon freqüentou a Igreja Presbiteriana do Brás, bairro da capital paulista
com uma enorme colônia italiana. Suas idéias acerca do ministério do Espírito Santo
causaram um verdadeiro racha na igreja. Apoiado por fiéis (presbiterianos, batistas,
metodistas e até católicos) descontentes com suas denominações, Francescon abriu a
primeira “casa de oração” da Congregação Cristã no Brasil.[9]
A igreja fundada no Pará, em 1910, por Gunnar Vingren e Daniel Berg, tornou-se a
maior denominação evangélica brasileira em menos de cem anos. A Assembléia de Deus é
a tradução mais bem sucedida –tanto em ternos doutrinários quanto numéricos– do
pentecostalismo entre nós.
Intrigante na trajetória da Assembléia de Deus é o fato de ter nascido numa região do
país que nunca despertou grande interesse nas outras denominações. Ao recensear a
história da evangelização no Brasil, Elben Lenz César registra que os protestantes
históricos (luteranos, presbiterianos, congregacionais, metodistas, episcopais e batistas aí
incluídos) instalaram-se nas regiões Sul e Sudeste, ao passo que os pentecostais deram
início à sua expansão a partir do Norte.[10]
Não obstante o isolamento, a Assembléia de Deus crescia. E crescia muito. Quando,
nos anos 60, dá-se o encontro entre tradicionais e pentecostais, o resultado é quase um
cisma na Igreja Evangélica Brasileira, um choque que levou a toda sorte de divisão.
Os pentecostais, liderados pela Assembléia de Deus, ganharam expressão e invadiram
os arraiais das denominações tradicionais. O fogo caiu. E caiu sob dois aspectos: caiu o
fogo do Espírito Santo e pegou fogo a relação entre os irmãos. Igrejas históricas se
dividiram, movimentos secessionistas surgiram com ímpeto. Duas formas de servir ao
Senhor, dois enfoques. O encontro gerou um racha, mas os pentecostais se estabeleceram.
São eles que irão protagonizar o extraordinário crescimento experimentado pela Igreja
Evangélica Brasileira nos anos 70 e 80.
Manoel de Mello e as “igrejas autóctones”
No final dos anos 50 um fenômeno novo surge, provocando uma mudança no cenário
evangélico nacional. São as igrejas autóctones. Sua figura de maior destaque –e,
curiosamente, menos estudada– é o pernambucano, pedreiro de profissão e missionário
por vocação, Manoel de Mello. Ele e a igreja que fundou (Igreja Evangélica Petencostal O
Brasil Para Cristo) são um marco no protestantismo brasileiro. Fruto talvez de
preconceito, Mello permanece mal compreendido, apesar da sua singularidade e da
influência que teve na história da Igreja Evangélica Brasileira.
Manoel de Mello representou uma mudança radical, uma ruptura no curso até então
trilhado pela Igreja Evangélica Brasileira. De repente, um homem oriundo da Assembléia
de Deus (como a maioria dos outros fundadores de igrejas autóctones no Brasil) começou
a sacudir os crentes. Sua pregação, profética e belicosa, ultrapassou as fronteiras das
denominações evangélicas e alcançou o mundo político. Se hoje a relação entre fé e
política está pacificamente incorporada aos nossos debates, não devemos esquecer o
quanto Manoel de Mello tem a ver com isso, rompendo o isolamento dos protestantes e se
fazendo ouvir pelos políticos.
Se a história falará bem ou mal dele, é uma questão discutível. Mas que Manoel de
Mello transpôs as fronteiras, disso não se pode ter a menor dúvida. E o fez de maneira
original. Não só porque era um grande comunicador de massas e possuía aquele afã que é
próprio dos pentecostais, de cura, libertação. Aquela palavra poderosa que constrange e
exige decisão. Não, não foi só por isso. Foi também porque corajosamente fez escolhas
que o levaram por caminhos desconhecidos das lideranças evangélicas tradicionais.
Emblemática nesse itinerário foi sua filiação, em 1969, ao Conselho Mundial de
Igrejas (CMI), porque corajosa. Imagine-se um líder procedente das lides da Assembléia
de Deus, com uma igreja autóctone, com o nome mais autóctone possível (O Brasil Para
Cristo) formando fileira com o CMI.
Mello era um homem de atitudes radicais, convicções fortes e declarações explosivas.
Um exemplo dessa explosividade aparece quando profetizou: “Roma deu ao mundo a
idolatria; a Rússia, os terrores do comunismo; os Estados Unidos, o demônio do
capitalismo; nós, brasileiros, nação pobre, daremos ao mundo o Evangelho”.[11] Noutra
entrevista, pontificou: “O ateísmo cresce devido às situações de injustiça, de miséria em
que o povo vive. Os pregadores estão pregando sobre um futuro longínquo e se esquecem
que Jesus deu valor e atenção ao momento em que o povo vivia”.[12]
Marcante na biografia de Manoel Mello foi também sua declaração, durante um
programa de televisão no qual ele e Dom Paulo Evaristo Arns falavam sobre o CMI. O
repórter perguntou ao pastor como era possível a convivência com o cardeal Arns (aquele
era um tempo em que os evangélicos ainda tinham os católicos como alvo). Mello, então,
sem mostrar qualquer constrangimento, pôs a mão no ombro do cardeal e disse: “Ah, se
todos os padres fossem como Dom Paulo, nossa relação seria diferente”.
Naquela época, um gesto como esse era simplesmente revolucionário. Rompia a um
tempo com o preconceito e abria uma possibilidade de convivência e comunhão com os
cristãos de confissão católica. No futuro, quando historiadores se debruçarem sobre esse
período da história da Igreja Evangélica Brasileira, haverá quem se surpreenda com esse
homem.
Paraeclesiáticas, o regime militar e a reação jovem
Estamos no final dos anos 60 e início dos 70. Os militares se instalaram no poder e a
vida nacional mergulhou num período de incertezas, angústia e medo. Os anos que se
seguirão ao golpe serão os mais negros da nossa história. Nem mesmo a breve bonança
experimentada com o “milagre econômico” nos anos setenta, tida como a maior realização
do governo dos generais, diminui o travo que ainda hoje sentimos ao lembrar aquela
década.
E, no entanto, o sopro do Espírito se fez sentir sobre A Igreja Evangélica Brasileira.
Outro milagre, agora da fé, também acontece no meio evangélico. Um fervor evangelístico
toma conta das igrejas com o surgimento das missões paraeclesiáticas. São fruto tanto do
zelo missionário dos pentecostais quanto da diligência evangelística dos tradicionais. As
paraeclesiáticas eram missões pioneiras, queriam levar a Boa Nova a todos os rincões do
país, ser o sal fora do saleiro.
Algo de extraordinário havia nesse fenômeno. Não exatamente do ponto de vista
evangelístico, pois as denominações protestantes sempre empreenderam ações
evangelizadoras entre o povo. As paraeclesiáticas configuraram-se, na evolução do
protestantismo brasileiro, num novo locus, no sentido sociológico do termo. Numa
religião marcada por divisões, permitiram a superação de diferenças doutrinárias pontuais.
Nenhum grupo reivindicava o monopólio da verdade, ninguém defendia territórios. O
resultado era um esforço conjunto na evangelização do país, com um significativo
aumento da distribuição de literatura cristã, abertura de institutos bíblicos e encontros, que
reuniam pastores e líderes de diferentes orientações denominacionais.
Num corte propriamente sociológico, pode-se dizer que as paraeclesiáticas eram um
espaço mais democrático para o exercício do mandato missionário deixado por Jesus. Paul
Freston alarga esse conceito quando diz que elas permitiam “expressar alianças e
oposições contemporâneas mais relevantes do que as velhas fronteiras denominacionais”.
E conclui que nelas os que se sentiam marginalizados em suas denominações de origem
podiam encontrar um “espaço alternativo”, onde suas ações talvez pudessem “influenciar
o conjunto do protestantismo”, mesmo que essa influência se restringisse a uma “área
específica da fé”.[13]
A Revolução de 64 inaugurou em nossa história uma era de sombra e terror que se
estendeu até meados da década de 80, quando deu-se o início da redemocratização do país.
Do mesmo modo que para outro grupos, o golpe representou para os evangélicos um
enorme desafio. Apesar da sua importância, esse é um período da história da Igreja
Evangélica que ainda espera por um exame apurado por parte dos estudiosos.
O regime instaurado pelos militares deixava pouca ou nenhuma alternativa para os de
pensamento diverso. Era o tempo do “ame-o ou deixe-o”. A intelligentsia brasileira viu-se,
da noite para o dia, transformada em inimiga do país, caçada em todos os cantos. A
perseguição foi implacável: prisões, interrogatórios, julgamentos sumários, exílios,
mortes.
Lideranças de destaque da Igreja Evangélica Brasileira alinharam-se à esquerda, num
movimento claramente oposto ao tomado pelos setores conservadores da igreja Católica.
Quem se der ao trabalho de consultar os registros da época nos arquivos da antiga
Confederação Evangélica Brasileira descobrirá, não sem um certo assombro, o quanto
havia de “vanguarda” nas idéias defendidas pelos irmãos.
A Confederação era uma instituição progressista, com um ideário mais próximo dos
partidos de esquerda brasileiros. A clima político da época parecia não deixar outra opção
que não a do exílio. E foi para ele que muitos líderes partiram.
Há os que verão em tudo isso algo de inusitado. Mas o fato mesmo de se constituir
em novidade para alguém denuncia, por si só, o descuido que temos com a nossa história.
E assoma maior razão para que se encare com urgência um estudo sobre a atuação da
Igreja Evangélica nos anos de chumbo.
Os líderes não foram os únicos acossadas pelo regime. Outro alvo da intransigência
militar foram as organizações jovens evangélicas. Como suas congêneres estudantis, elas
também sentiram o peso do arbítrio: portas foram fechadas, diretorias destituídas,
documentos confiscados. Os jovens foram silenciados pelo argumento dos fuzis.
Como sempre na história dos homens e mulheres que constróem o Reino de Deus, a
fé e a esperança abriram caminho em meio às pedras e espinhos do mundo. Assim, no
final dos anos 60 e início da década de 70, precisamente quando os militares lançavam
mão dos mais perversos expedientes para se manter no poder, brotou entre os jovens uma
vigorosa reação.
Um renovado fervor surgiu no seio das igrejas protestantes, arregimentando milhares
de jovens para o trabalho de evangelização. É a época de movimentos como Influência de
Palavra da Vida, Mocidade para Cristo, Jovens da Verdade, Jovens em Cristo e ABU.
Chega também ao Brasil a Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo. A seara era
grande, e eles respondiam ao chamado do Senhor da seara.
Foi a década dos jovens. O mundo testemunhava um milagre: colônias inteiras de
hippies nos Estados Unidos e na Europa convertiam-se a Jesus. Uma geração inteira vai
se inspirar em homens como David Wilkerson. No Brasil, jovens tornam-se ousados
pregadores do Evangelho. A Igreja Evangélica Brasileira não será mais a mesma desde
então.
II
F É E M E X PA N S Ã O :
O S A N O S D E C R E S C I M E N T O


Três ondas
A década de 60 marcou a inserção definitiva da Igreja Evangélica na sociedade
Brasileira. A Assembléia de Deus cresceu de forma expressiva e ganhou projeção
nacional. O Pr. Manoel de Mello tornou-se alvo do assédio de políticos, cientes do peso
que ele e sua igreja representavam em termos eleitorais. Os evangélicos passaram a ser
percebidos como uma força não só numérica, mas ideológica. Nasce a primeira grande
onda de crescimento da igreja.
A simplicidade das teses acima pode levar à falsa conclusão de que a Igreja
Evangélica Brasileira apenas seguiu seu curso evolutivo natural. A rápida emergência dos
pentecostais e a reação dos tradicionais dizem muito de como nada de natural houve nessa
evolução.
Ancorados num rígido formalismo litúrgico e numa sólida erudição bíblica, os
tradicionais condenavam os excessos “emocionais” dos pentecostais, tidos como pouco
letrados. Estes últimos deploravam a “frieza” e a falta de poder dos primeiros. O “choque”
foi inevitável.
Hoje, beneficiados pela perspectiva histórica, compreendemos como esse encontro
entre o formal e o espontâneo, o racional e o emocional, o erudito e o operoso, foi salutar
para o crescimento da Igreja Evangélica Brasileira. As brigas não enfraqueceram o corpo,
antes o tornaram mais forte. Não necessariamente mais coeso, apenas mais forte.
Se a Assembléia de Deus avançava em direção ao Nordeste e ao Sul do país, sua
visibilidade, contudo, não rivalizava com a das igrejas fundadas por missionários como
Manoel de Mello ou David Miranda.
A Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil Para Cristo, como já se defendeu aqui, é o
epítome das igrejas autóctones. A figura do Pr. Manoel de Mello sintetiza esse movimento
e permanece, como sugerimos algumas linhas atrás, ignorado pelos estudiosos. Para
sustentar nossa tese, basta recordar aqui um episódio ocorrido com Manoel de Mello no
ano em que Adhemar de Barros concorria à prefeitura de São Paulo.
Em retribuição ao apoio recebido, o candidato presenteou Mello com um terreno,
onde foi construído um templo provisório. Uma vez eleito, Adhemar de Barros mandou
demolir a construção, cedendo a pressões da Cúria Metropolitana.
Manoel de Mello era um homem com um projeto político. Após o incidente com
Barros, lançou e apoiou diversos candidatos, até que a intervenção dos militares em 64
veio interromper suas investidas no mundo da política.
Manoel de Mello tinha uma visão. Suas idéias, ousadas para a época, o colocavam na
vanguarda. Um autêntico líder, era aceito por políticos, mas visto com desconfiança pelo
evangélicos. Com sua morte, ocorrida em 1990, não morreu o sonho de ganhar o Brasil
para Cristo!
Em David Miranda temos outro exemplo de líder carismático, embora de magnitude e
intenções algo distantes das de Mello. A denominação fundada por Miranda, a Igreja
Pentecostal Deus é Amor, experimentou um crescimento tão vertiginoso a ponto de, em
1991, contar mais de cinco mil templos e missionários em quase duas dezenas de países.
[14]
Com a Deus é Amor surgiu um discurso que fará escola nas décadas seguintes: a cura
como eixo do discurso religioso. A Assembléia de Deus, a Quadrangular e a Congregação
Cristã também a enfatizavam, mas nenhum ministério faria da sua pregação marca
registrada. Importa menos perguntar se do ponto de vista doutrinário essa ênfase é
aceitável do que identificar na Deus é Amor o embrião dos tele-ministérios de Edir
Macedo, R. R. Soares e outros.
O elemento mercadológico, o caráter propagandístico e o apego à mídia estão todos
presentes na Deus é Amor. Ela foi a primeira entre as pentecostais a usar os programas de
rádio maciçamente. Lenz César menciona, em seu História da Evangelização do Brasil,
que a Deus é Amor irradiava 581 horas diárias de programa no início da década passada.
[15]
Quando seu fundador anuncia-se como “o maior pregador de curas divinas” e seu
nome aparece nos letreiros afixados à porta de seus templos[16], não resta dúvida de que o
protestantismo brasileiro entrou na era dos líderes como estrelas, da personalização do
Evangelho.
Os quadrangulares também impulsionaram a expansão da fé protestante na década de
60. A Igreja do Evangelho Quadrangular foi fundada nos Estados Unidos na década de 20
por Aimee Semple McPherson, canadense de nascimento e trazida para o Brasil em 1951
pelo ex-ator americano de filmes de faroeste Harold Williams.[17] No início os
quadrangulares tiveram um crescimento modesto para uma igreja pentecostal. Atingiriam
as dimensões que têm hoje sob a liderança do missionário George Russell Faulkner.
Faulkner chegou ao Brasil em 1962 e, três anos mais tarde, implantou uma estratégia
que levaria os quadrangulares a um crescimento espetacular. Em 1999, eles eram mais de
1,5 e suas igrejas, presentes em todos os estados brasileiros, já passavam de seis mil.[18]
A pregação da Quadrangular enfatiza os quatro aspectos do ministério de Jesus:
aquele que salva, batiza com o Espírito santo, cura e virá outra vez. Mas o que a destaca
do grupo de igrejas pentecostais é sua preocupação com a formação teológica dos seus
líderes e o espaço dado à mulheres no ministério.[19]
No final dos anos 70 e início dos 80 teve início a segunda grande onda de
crescimento da Igreja Evangélica Brasileira. Missões, como a Sepal, chegam ao país e
injetam novas idéias na evangelização. Os jovens formam verdadeiros exércitos e as
“cruzadas” se multiplicam pelo país.
A sociedade havia entrado em transe e, mundo afora, a insatisfação das novas
gerações se cristalizava num movimento que ficou conhecido como contracultura.
“Drogas, sexo e rock-n-toll” ganhou status de ideologia e John Lennon declarou que os
Beatles eram mais populares que Jesus Cristo. No Brasil, vivíamos os anos de chumbo do
regime militar.
A literatura passa a ser cada vez mais usada como meio para divulgar as Boas Novas
do Reino. Numa nação de iletrados e onde livros eram artigos de luxo, essa era uma
estratégia audaciosa, para não dizer revolucionária. A revista Mensagem da Cruz,
publicada pela Editora Betânia, reproduzia textos de David Wilkerson, já a essa altura
mundialmente conhecido. Os livros de Billy Graham, best-sellers no país, enchiam as
prateleiras das livrarias (não só evangélicas) e eram lidos avidamente. Foi um verdadeiro
boom!
Uma mudança de mentalidade vai aos poucos se processando no seio da Igreja
Evangélica Brasileira. O fervor evangelístico e o sucesso de algumas denominações
(principalmente as pentecostais) na conquista de fiéis ajudou a sedimentar a idéia de que
os evangélicos podiam crescer no Brasil. Essa nova confiança contrapunha-se à timidez
excessiva dos evangélicos no passado. Até então, acreditávamos que nunca chegaríamos a
conquistar este país, tão grandes eram os obstáculos a superar. Era como se nos
contentássemos em ser uma minoria. Não apenas silenciosa, mas auto-refreada. Isso foi
deixado para trás nos anos 70. Entramos na terceira onde de expansão.
A década de 80 foi marcada por um crescimento sólido e sustentado dos evangélicos.
As denominações, contudo, permaneceram em seu isolamento uma das outras. Cada uma
só sabia de si, avançava consciente de seu crescimento individual, enquanto ignorava o
que acontecia aos outros irmãos. Em parte isso foi resultado do debate em torno do
Espírito Santo, causa da divisão entre pentecostais e tradicionais.
No final dos anos 80 a mídia passou a divulgar que as denominações evangélicas
cresciam assustadoramente. Éramos expressivos, contávamos e passamos a ser notados
como nunca acontecera antes na história da Igreja Evangélica Brasileira.
Havíamos crescido e não tínhamos nos dado conta disso. Um fato ilustrativo dessa
ignorância aconteceu durante uma entrevista na qual me indagavam sobre como era
possível explicar o crescimento da Igreja Evangélica Brasileira. Quase caí na tentação de
perguntar: “Que crescimento?” Disse, então, ao jornalista: “A partir de que dados você
está falando?” Assustei-me quando ele me forneceu os números. Não queria revelar minha
desinformação. Passei, então, a falar a partir do que ele me dissera.
E como crescemos?
Embora a Assembléia de Deus continuasse a liderar as ondas de crescimento, este
veio principalmente em decorrência da multiplicação de ministérios independentes, muitos
deles rebentos de igrejas pentecostais como a Nova Vida, a Quadrangular e a própria AD.
Entre as denominações tradicionais, os batistas cresceram expressivamente.
A quarta onda: os neopentecostais
Um historiador já afirmou que o poder não convive com o vácuo, mas com o vazio.
Foi exatamente isso que ocorreu com a Igreja Evangélica Brasileira no fim dos anos 80 e
início dos 90. O pentecostalismo explodia, seus templos se multiplicavam pelo país e
atraiam verdadeiras multidões. Estavam colocadas as condições para o surgimento de uma
nova liderança, voluntariosa, de homens prontos para fazer a obra do Senhor.
Alguns desses novos líderes haviam saído da Assembléia de Deus, tinham uma base
sólida, pois haviam crescido através da oração. Mas entre eles também contavam-se
homens que converteram-se há pouco, estavam fora e foram atraídos pelo crescimento
extraordinário do Evangelho. Queriam fazer parte disso e aí decidiram criar seus próprios
ministérios. Movimentos como a ADHONEP (Associação dos Homens de Negócio do
Evangelho Pleno) serviram de plataforma para projetá-los.
O aparecimento dessa nova liderança coincide com uma importante mudança
ocorrida no fim dos anos 80. Até então havia uma concentração de fiéis nas às classes
menos favorecidas (C, D e E). Com o surgimento dos neopentecostais, o Evangelho
começa a ter penetração também nas classes A e B. Inicia-se aí um processo, por assim
dizer, de elitização da fé. Essa mudança é sintomática, uma vez que a partir desse instante
uma corrente doutrinária especial vai se tornando prevalente, cuja ênfase vai estar
exatamente na bem-aventurança material do crente e na pregação do sucesso como
intrínseco à condição de filho de Deus.
Surgida na esteira do crescimento dos pentecostais, a nova liderança precisou disputar
espaço com a estrutura tradicional de poder da Igreja Evangélica Brasileira. A velha
liderança, contudo, não estava preparada para absorvê-la nem aceitar seus métodos. Via
com desconfiança esses “crentes” vindos de fora, impactados pela mensagem do
Evangelho, desejosos de por fogo no mundo, mas sem paciência para aprender.
Sem se intimidar, os novos líderes não perderam tempo: iniciaram ministérios,
abriram suas próprias igrejas e foram para a mídia. Assim teve início a ascensão meteórica
dos neopentecostais.
O que, afinal, há de errado com essa nova liderança? Embora honestos em sua fé,
seus representantes não se livraram dos vícios sincréticos da cultura brasileira. Daí seus
ministérios serem sincréticos, com uma pregação também sincrética. Pentecostais no
discurso, pregam parte das ênfases evangélicas, mas pagam tributo à herança católica e
espírita populares. Carecem de ciência teológica para separar as coisas.
Os que identificam no discurso neopentecostal a união espúria entre fé e superstição,
denunciam como heréticos seus propagadores. Escand-alizados, batem a porta na cara
deles. E declaram: “Vamos parar por aí, isso já passou dos limites”. Os que assim agem
falam a partir do conhecimento que possuem da história e da teologia da Igreja Evangélica
Brasileira. O que os preocupa é menos a polêmica do que a integridade da fé; mais a
defesa do Evangelho do que a prerrogativa de ser histórico.
A sedução da mídia e a paixão pelo crescimento
Os movimentos neopentecostais são bem sucedidos por diversos motivos. Primeiro,
por que surgiram como ministérios autóctones ou deles derivaram. Depois, porque lançam
mão de modernas estratégias de marketing para se promover. E, por fim, usam a mídia
como veículo primordial para propagar sua mensagem.
A televisão sempre exerceu fascínio sobre os evangélicos. Poucos, porém, arriscaram-
se nesse veículo. No passado, houve tímidos ensaios, como o programa apresentado por
Silas Gonçalves. Mas até a década de 90, os evangélicos permanecem na periferia do
sistema, comprando horário na grade das emissoras para falar de Jesus. A mudança
acontece quando eles passaram para o outro lado do balcão e tornaram-se donos de canais
de TV, como a Universal do Reino de Deus (Rede Record) e a Renascer em Cristo (Rede
Gospel).
Se algumas incursões primavam pelo bom gosto e correção doutrinária (é o caso de
Pare e Pense, programa apresentado pelo Pr. Caio Fábio na extinta TV Manchete que
obteve expressivo ibope, angariando telespectadores até fora dos arraiais evangélicos), o
mesmo não se pode dizer dos programas exibidos atualmente nos canais abertos e na TV
paga.
O uso indiscriminado da mídia tornou-se um traço marcante dos neopentecostais. O
sucesso extraordinário de seus telepastores já induziu muita gente bem intencionada a
proclamá-los como a última palavra em evangelização. É possível que, em grandes
aglomerados urbanos com as cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, seja a forma mais
“eficaz” de transmitir o Evangelho. Será, porém, sempre uma ação coadjuvante, jamais
substituindo as formas tradicionais de pregação ou as comunidades locais, onde o povo de
Deus se reúne para compartilhar a Palavra e adorar a Deus..
É preciso repetir: o sucesso midiático da nova liderança evangélica não deve nos
impedir de ver o quanto há de perigoso para a fé (e para a Igreja Evangélica Brasileira, em
especial) numa pregação que se caracteriza por um laço teológico fraco, senão duvidoso.
Os evangélicos, inebriados pela própria imagem, fizeram da mídia seu “bezerro de
ouro”. Usam a TV como um instrumento neutro, nunca parando para se perguntar se ali
onde está a oportunidade (levar a mensagem do Evangelho a todos os lares!), também não
reside o maior perigo (a descaracterização dessa mesma mensagem). Os evangélicos
aceitaram a mídia pelo seu valor de face, receberam-na como lhes foi ofertada. O preço
parece todos começamos agora a pagar.
A Igreja pode e deve fazer uso dos meios de comunicação. Colocados a serviço do
Reino de Deus, são instrumentos poderosos na propagação do Evangelho. O erro está no
uso indiscriminado e acrítico da mídia, em sucumbir à sua sedução, ao glamour e ao poder
que ela confere aos que estão na frente das câmeras. É preciso reconhecer: há meios que se
contrapõem à Palavra de Deus, trazem em si a negação mesmo da mensagem (o amor de
Deus pelo mundo) que anunciam. E os evangélicos falharam desgraçadamente em não ter
esse discernimento.
O que teria obliterado aquele salutar apego à ortodoxia da doutrina, à correção
teológica, tão característico do protestantismo? Por que nos deixamos hipnotizar pelo
poder transitório e elusivo da mídia?
Há muito a palavra de ordem entre os evangélicos tem sido “crescer”. Circunscrita no
começo aos grupos pentecostais, a preocupação com o crescimento foi, pouco a pouco,
entrando para agenda das denominações protestantes históricas.
Crescer tornou-se nossa paixão. Uma paixão que nos obseda, turva nossa razão e
arrasta-nos para longe dos propósitos de Deus. Não nasce do sincero desejo de trazer
homens à salvação, encher o aprisco do Senhor. Não, essa paixão pelo crescimento emerge
como sanha mal disfarçada em operosidade, cobiça travestida de fervor. Queremos crescer
a qualquer custo. E para quê? Para ter poder, visibilidade, sucesso!
Ninguém parece ter escapado a isso. Todo pastor, não importa a qual denominação
pertença, já ouviu falar, pelo menos uma vez, de “modelos” que prometem crescimento
rápido: igreja em células, G12 etc. “Trinta mil células em cinco anos? Opa, eu quero”.
Aqui e ali se ouve uma crítica a este ou aquele modelo, mas ninguém quer abrir mão do
crescimento. É preciso crescer, e crescer rápido.
Fé e sincretismo
Talvez nenhum outro país tenha um caldo cultural tão complexo quanto o Brasil.
Somos miscigenados. Uma raça que é todas e nenhuma. O efeito desse mosaico de traços
culturais díspares revela-se mais fortemente em nossa religião, acentuadamente sincrética.
Esta é uma constatação assustadora. No Brasil, afirma Ricardo Gondim, em seu O
Evangelho da Nova Era, “negros, europeus e nativos deixaram de ser africanos, brancos e
índios para assumirem simplesmente uma nova identidade”. E completa: “Se esta
peculiaridade ajudou para que o Brasil tivesse uma só língua, uma só cozinha, contribuiu
também para que nascesse uma religião nova, autenticamente nacional”.[20]
O movimento neopentecostal se fortalece precisamente desse sincretismo religioso,
desse ambiente indistinto, no qual as “verdades” nas se excluem, antes se reforçam. Numa
religião sincrética o Evangelho ganhará todos e nenhum sentido na boca de católicos,
espíritas e evangélicos. É a fé a la carte!
Todos os componentes místicos autênticos do Cristianismo como que se diluem,
perdem sua força em contato com elementos espúrios que tem apelo menos à razão do que
ao coração, capturam mais a imaginação do crente do que sua capacidade de pensar. A
supertição toma o lugar da fé, o transcendente dá lugar ao esotérico, o espiritual confunde-
se com o oculto. Entramos na esfera do sobrenatural, mas não necessariamente na
presença de Deus.
Liderança e personalismo
Os novos líderes retomam ainda o coronelismo, traço que marca a cultura brasileira e
permeia todas as estruturas sociais, quer privadas ou públicas, laicas assim como
religiosas. Poderia ser diferente, tendo esse movimento erguido-se em torno de igrejas
autóctones? É duvidoso.
Os neopentecostais são reconhecidos pela centralização do poder nas mãos do líder,
daí ser até natural que práticas coronelistas de mando medrem entre eles. Mas seria isso de
todo mal? Ao assimilar o coronelismo, os líderes neopentecostais estariam mais próximos
do “povo” e da cultura brasileira do que as igrejas tradicionais com seu modelo mais
parlamentarista de organização. Se, por outro lado, estariam mais próximos do Evangelho
é algo aberto à discussão.
Nenhuma igreja, contudo, exemplifica melhor isso do que a Universal do Reino de
Deus, e ninguém levou essa fórmula à perfeição como seu fundador e líder, o Pr. Edir
Macedo. É possível até ver tentativas mais ou menos bem sucedidas de copiar o sucesso
da Universal em igrejas como a Casa da Benção e a Internacional da Graça, ou ministérios
como Sara Nossa Terra e Renascer em Cristo. Mas a trajetória da Universal é
paradigmática e até agora permanece como o maior triunfo da onda neopentecostal.
A Universal teve o mais meteórico e sustentado crescimento entre as três mais
importantes igrejas autóctones brasileiras (as outras duas são a Brasil para Cristo e a Deus
é Amor). Edir Macedo é um dissidente da Igreja da Nova Vida, celeiro de onde saíram
outros líderes neopentecostais, como R. R. Soares (da Internacional da Graça) e Miguel
Ângelo (da Cristo Vive). Saber como a Universal se tornou dona de um império midiático
é menos importante do que identificar em seus métodos e discurso a gênese da mais
perigosa corrente doutrinária a ameaçar nossa herança reformada: a Teologia da
Prosperidade.
Se no pentecostalismo a ênfase recai sobre as línguas estranhas, a cura de
enfermidades e a expulsão de demônios, na pregação da Universal esses elementos
subordinam-se a uma visão mais ampla da existência cristã, na qual sobressaem a
realização financeira e o desfrute do sucesso individual.
Nessa visão, a salvação ganha novo sentido.
Antes de tudo, porém, é preciso reconhecer que a Universal não é uma igreja herética.
A rigor, nada do que ensina pode ser tido como contrário à ortodoxia protestante. Ela
anuncia que o homem é pecador e está distante de Deus, prega a necessidade de
arrependimento e a salvação pela fé no sacrifício expiatório de Jesus. Proclama o Senhorio
de Cristo, sua segunda vinda e a unidade da igreja. Sua doutrina do Espírito Santo em
nada difere do pregado pela Assembléia de Deus e outras igrejas pentecostais históricas.
Tudo isso pode ser dito a favor da Universal, sem necessariamente se fazer uma apologia
de suas práticas litúrgicas ou de seus ensinamentos sobre o poder do crente. É
precisamente neste ponto que as coisas ganham contorno e coloração diferentes.
A jornalista e professora da PUC de São Paulo Márcia Benedetti Machado sugere que
a Universal vai além do que se pode chamar de uma igreja convencional, preocupada com
a salvação do homem e a proclamação do Evangelho. A Universal defende um verdadeiro
ideário, cujo caráter ideológico nem sempre é percebido por seus críticos.
Autora de Deus vence o Diabo: O Discurso dos Testemunhos da Igreja Universal do
Reino de Deus[21], Márcia Benedetti afirma sustentar-se esse ideário em três conceitos:
salvação, cura e prosperidade. Eles preencheriam lacunas deixadas outras religiões,
principalmente pelo catolicismo. Parte do sucesso alcançado pela Universal residiria
exatamente aí. Percebe-se, então, o entorno que delimita claramente a soterologia da
Universal.
“A salvação não é mais privilégio a ser desfrutado apenas depois da morte”, pondera
a professora. E conclui: “Ser salvo no Juízo Final é certamente uma promessa da igreja,
mas a salvação está estreitamente relacionada à felicidade que o indivíduo pode conquistar
ainda hoje, no plano terreno”. Pode-se afirmar que, enquanto mantém os elementos
transcendentes da fé cristã, a pregação da Universal introduz-se um componente mundano,
secular, imanente, que associa a salvação da alma a conquistas materiais.
Márcia Benedetti prossegue em sua análise e diz: “A cura, por sua vez, mobiliza todas
as dores humanas. Ela abrange não só a cura física, mas também a dos sofrimentos
emocionais. O fim das desavenças familiares e do desejo do suicídio, por exemplo, estão
no mesmo nível das doenças físicas”. O último componente dessa linha de pensamento é,
segundo a professora, “o apelo à realização financeira e ao sucesso”.[22]
Não é difícil entender por que a Universal experimentou um crescimento tão
extraordinário em pouco mais de duas décadas. Chegou a um milhão de membros apenas
17 anos depois de fundada[23]. Em 1989, a Universal tornou-se proprietária da Rede
Record de Televisão. Que a aquisição esteja cercada de suspeitas e Edir Macedo tenha
sido freqüentemente atacado por seus maiores concorrentes (os Marinhos, da Rede Globo)
não diminui o tamanho da proeza nem anula o efeito que a ela se seguiu.
Márcia Benedetti adverte contra a aparente simplicidade do discurso da Universal.
Seu estudo dos testemunhos ouvidos nos templos dessa igreja revela “uma lógica
complexa”. “O homem é dotado de livre-arbítrio, pode escolher seguir os preceitos de
Deus ou não. Deus, por sua vez, está disponível para o homem, desde que este de fato
queira suas benesses. Se o homem chamar e tiver fé, Deus atenderá”, explica Márcia
Benedetti.
Surge, então, a indagação: “Qual é a medida da fé?”. A resposta, diz a professora, é
que não há como sabermos. “O indivíduo pode pedir a Deus que atenda seus desejos e
ainda assim nada acontecer. Nunca será culpa de Deus, e sim falta de fé.”
Márcia Benedetti avança um pouco mais em seu exame para mostrar como fé e bem-
aventurança material se vinculam no discurso da Universal. “Entra aí um segundo
elemento complicador”, diz ela, “que é a expressão da fé por meio do sacrifício financeiro.
Doando mais do que poderiam, as pessoas ‘desafiam’ Deus a cumprir os seus desejos.”
Estabelece-se desse modo uma relação anômala, na qual o Criador torna-se refém da
criatura. Essa inversão de prerrogativas (o homem dando “ordens” a Deus, exigindo que
Sua bondade se manifeste por meio da resposta a uma súplica) fica como que escamoteada
na oração do fiel que diz: “Sou Teu filho, Senhor, ouve minha oração. Já fiz o meu
sacrifício, agora dá o que Te peço”.
Por mais que a análise de Márcia Benedetti seja acertada (e o é em mais de um
ponto), ele deixa de fora o que mais nos preocupa aqui: identificar o elo que une a
ascensão da Universal à, por assim dizer, institucionalização da Teologia da Prosperidade
no Brasil.
Na igreja fundada por Edir Macedo encontramos todos os elementos subjacentes ao
discurso dos teólogos da Prosperidade: a ênfase no poder da oração para curar os males do
corpo como do espírito; o poder do crente para exercer domínio sobre o mundo espiritual;
a prosperidade material como sinal de espiritualidade elevada e fé imbatível; a relação
intimista com Deus e a subjetividade como instância última das certezas do fiel; o uso da
palavra para comandar e mover o intangível; e, por fim, o incentivo à “posse” das bênçãos
divinas.
Uma vez mais, porém, é preciso fazer a ressalva de que nem Edir Macedo nem a sua
igreja podem ser tidos em conta como responsáveis pela maneira como essa corrente, com
o perdão do trocadilho, prosperou entre nós.

III
P O R U M A N O VA E C L E S I O L O G I A


Fé e auto-ajuda
Quando o Evangelho começou a ser pregado no Brasil, fomos ensinados que
pertencíamos a Deus. Converter-se era sair do estado de rebelião e vir para o de
submissão. As igrejas de teologia tradicional, tanto as históricas quanto as de orientação
petencostal, ensinavam que conversão implicava rendição, entrega incondicional. Era a
época do “Deus, vem, me quebra, faz de mim um vaso novo, tudo Te entregarei. Sou Teu,
senhor!”
Essa humilde confissão deu lugar a um discurso triunfalista, de exaltação do
indivíduo e suas necessidades, uma declaração de posse (“Deus é meu e tudo é meu”), que
se não reduz Deus a um objeto, o torna refém de quem se proclama seu seguidor. Eis a
profissão de fé da Teologia da Prosperidade.
Nascida nos Estados Unidos, a Teologia da Prosperidade espalhou-se com extrema
rapidez pelo Brasil. Seus defensores não se encontram apenas entre os neopentecostais.
Tem conquistado adeptos também entre os evangélicos tradicionais e seu alastramento
representam sérios desafios à Igreja Evangélica Brasileira. Com ênfase nas “bênçãos” e
indisfarçável aversão à Cruz (metáfora do sofrimento, dor e perseguição que acompanham
os verdadeiros seguidores de Cristo), A Teologia da Prosperidade coloca em xeque nossa
herança protestante.
Uma fórmula pregada com exagerada ênfase por esse novo credo afirma ser o crente
uma pessoa “especial”, subtraída quase às leis da vida e para quem não existira pobreza e
doença. Experimentá-las seria sinal de falta de fé. Saúde e riqueza tornam-se, por assim
dizer, sinais genuínos da salvação, do estado de graça do fiel. Daí esse movimento
também ser conhecido como Wealth and Health Gospel.[24]
O pobre de Nazaré que nasceu numa manjedoura (Lc 2.7) e não tinha onde reclinar a
cabeça (Mt 8.20); o filho de um carpinteiro que pregava o desapego aos bens deste mundo
e ensinava a juntar tesouros onde a traça e o ferrugem não corroem (Mt 6.19-21); o
profeta, enfim, que terminou seu ministério abandonado pelos discípulos (Mc 14.50) e
pregado num madeiro (Jô 19.17) fez da Cruz, e não do bem estar físico e material, o
centro do seu Evangelho.
Numa inversão de valores, os profetas da prosperidade colocam a conquista da
felicidade no plano terreno como o summu bonus da bem-aventurança cristã, quando a
Bíblia exorta-nos a buscar em primeiro lugar o reino de Deus e sua justiça (Mt 6.33). A
posse das bênçãos deixa de ser uma promessa dada por Deus para ser um direito, exigido
pelo fiel com quem pleiteia uma herança ou reclama um bem.
Um exemplo de como esse discurso se instalou entre nós pode ilustrar melhor o
abismo entre a Teologia da Prosperidade e o Evangelho. Certa ocasião, encontrava-me
numa igreja e o pregador da noite anunciou que nos ensinaria a orar a partir da história do
filho pródigo (Lc 15.11-32). “Isso vai ser bárbaro!”, pensei, porque nessa parábola
realmente há uma lição de arrependimento, humildade, conversão. A surpresa veio quando
o pregador aferrou-se apenas ao versículo 12, em que se lê “Pai, dá-me a parte dos bens
que me cabe”.
O que se seguiu foi estarrecedor. Ele dizia: “Irmãos, vocês têm que chegar a Deus e
dizer: Dá o que é meu”. Aos berros, continuava: “Cheguem diante do trono da glória,
olhem para Deus e digam: Dá o que é meu”. Embora honesto em suas convicções, esse
irmão caíra vítima do discurso triunfalista da Teologia da Propriedade, deixara-se seduzir
pela idéia de que o cristão precisa desafiar Deus a demonstrar seu amor por nós,
respondendo as nossas súplicas.
Como estamos distante da Reforma. E mais distantes ainda do Evangelho de Jesus
Cristo.
Há, por trás de frases como “Deus é para mim!”, “Sou cabeça e não cauda” e “Eu
tenho direito, sou filho Deus”, uma definição do homem que não é cristã nem bíblica. As
Escrituras ensinam que nossa existência deve refletir a glória de Deus. O cerne da
mensagem do Evangelho é esse: Deus cria o homem para sua glória. O cristão (e a igreja)
é antes de tudo aquele que adora o seu Criador, que exalta Seu nome. Essa nossa resposta
ao amor de Deus.
Numa pequena obra em que refleti sobre a natureza e a missão da igreja, afirmei: “O
primeiro projeto a ser entabulado pela igreja deve ser o de adorar, fomentar uma relação
de amor e gratidão com Deus.[25] ” Nisso parece residir o sentido último da revelação
divina.
Quando criticamos acima a busca frenética por crescimento, tínhamos em vista
precisamente isso: a subordinação do caráter adorador da igreja à preocupação com o seu
tamanho. Nossa crítica não implica na renúncia ao crescimento em si, apenas à maneira
equivocada como ele tem sido encarado pelos líderes. “Quando se fala de projeto para a
Igreja local, pensa-se logo na questão do crescimento. Porém, o que a Igreja pode fazer em
termos de aumento numérico é, no poder do Espírito Santo, pregar fielmente a palavra de
arrependimento e de submissão ao Senhor Jesus Cristo”.[26]
A Igreja Evangélica precisa com urgência recuperar sua eclesiologia, sob pena de
perder sua identidade. Precisa outra vez encontrar o rumo, voltar àquela visão do
Evangelho de que fomos feitos para a glória de Deus. Na corrida para crescer, deixamos
para trás nossa herança reformada e com ela o sentido de ser igreja.
Muitos já não sabem nem para onde estão levando suas igrejas. Numa reunião de
pastores, tempos atrás, presenciei uma discussão sobre a melhor maneira de se administrar
uma igreja. Depois de ouvir o que todos tinham a dizer, perguntei: “Digam-me, numa
frase, o que é uma igreja edificada? Como vocês podem ter certeza de que estão
edificando a Igreja de Jesus Cristo?” Calaram-se sem resposta, surpresos com a própria
ignorância.
É inócua qualquer discussão sobre “métodos”, quando não se tem resposta para essas
perguntas. Se ignoramos o destino, por que nos preocupar em saber que caminho tomar?
– Qual o caminho?, perguntou a menina.
– Para onde você quer ir?, devolveu o gato.
– Ah, para qualquer lugar.
– Mas para quem quer ir para qualquer lugar, qualquer caminho serve.
Esse diálogo acontece no clássico de Lewis Carrol Alice no País das Maravilhas e
ilustra, de modo um tanto trágico, o dilema da Igreja Evangélica Brasileira. Numa era
dominada pelo marketing religioso e pelos púlpitos midiáticos, a igreja vê-se acossada
pela angústia de ter perdido seu Norte. Daí a urgência de recuperar o senso eclesiológico
dos reformadores, a teologia paulina do Corpo de Cristo.
Daí também a necessidade de repetir o que dissemos acima: a Igreja precisa recuperar
aquela visão do homem que é o cerne do Evangelho, de que fomos feitos para a glória de
Deus. Eis uma verdade esquecida e que precisa ser repetida uma vez mais. O assalto que a
Teologia da Prosperidade representa à verdade bíblica sobre o ser cristão coloca a Igreja
Evangélica Brasileira no limiar de uma revolução, só que de conseqüências desastrosas.
Não se pode transigir com a Revelação, fazer concessões aqui e ali para tornar o
Evangelho mais palatável e lotar templos. Jesus não precisa disso. O risco é diluir o
chamado ao arrependimento e à conversão em auto-ajuda, transformar a igreja num clube.
Denunciei esse “outro evangelho” quando escrevi: “Ainda que a igreja local, num
projeto de evangelização, possa desenvolver metodologias que a tornem mais eficaz na
pregação do Evangelho, é preciso compreender que a Igreja prega, mas só o Espírito Santo
converte. Não dá, portanto, para ter garantias de crescimento, a menos que se troque o
verdadeiro Evangelho de arrependimento por técnicas de manipulação de massa; a menos
que, em lugar da Cruz, ofereçam-se técnicas de auto-ajuda; que se substitua a busca
prioritária do Reino pelo conforto descompromissado dos ‘filhos do rei’; que, ao invés da
comunhão […] forme-se um clube, e em lugar do Senhor Jesus apresente-se um “gênio da
lâmpada”.[27]
O processo que permitiu a assimilação pela Igreja Evangélica Brasileira de elementos
estranhos à tradição reformada e à sua própria herança histórica pode ser melhor
compreendido se olharmos para o modo como os pastores de hoje lêem a Bíblia. Eles
orientam-se por uma exegese de conveniência, sua leitura distorce o texto e força-o a
deitar numa cama de Plocustro. Pegam um texto e não se sabem o que ele diz. Falham em
encontrar o sentido original que o texto tinha quando foi escrito, nem sabem como
interpretá-lo para os nossos dias ou como podemos aplicá-lo às nossas vidas.
Lembro-me de conversar com um irmão que acabara de pregar sobre a promessa
contida em Fl 4.13. Escutei o sermão e o procurei para saber se ele havia entendido o
contexto do famoso versículo. Minha pergunta não fez sentido para ele, assim como lhe
escapara a compreensão do que Paulo dizia ali. Insisti e perguntei: “Escuta, você sabe o
que o apóstolo diz aqui? Ele não afirma o que você falou. Paulo declara que, porque Deus
o fortalece, ele pode viver tanto na pobreza como na riqueza, na abundância como na
escassez. É isso que ele diz: Não importa a situação em que você está, pois é sustentado
pelo Deus que fortalece; a força dele vem de Deus, e não das coisas que estão à sua volta.
Você não viu isso no contexto?”.
Tudo isso agudiza ainda mais a sensação de que perdemos o rumo, de que nos
encontramos à deriva, sem leme e sem bússola.
Epílogo
Houve um tempo em que a única coisa a nos dividir era saber qual a melhor forma de
ser santo. Tradicionais e pentecostais colocavam-se em campos opostos, estes dizendo que
era preciso receber o batismo com o Espírito Santo e ser cheio dos dons espirituais
enquanto aqueles afirmavam ser suficiente o estudo científico da Bíblia para se alcançar à
santificação. Uns buscavam o fogo do Consolador; os outros, a compreensão da Palavra.
Era um tempo em que, por assim dizer, valia a pena brigar.
Não deixa de ser irônico a Igreja Evangélica Brasileira experimentar hoje uma tal
desorientação doutrinária, marcada que é sua trajetória pela presença de denominações
protestantes ditas históricas. Que tenhamos chegado a esse dilema (crescer e manter a
identidade) é menos surpreendente do que assustador.
Reatar o vínculo com os princípios da Reforma e voltar àquela fonte primeira e
última da verdade (Palavra de Deus revelada na Bíblia) é a mais urgente tarefa a nos
esperar. E é na história da Igreja Evangélica Brasileira que encontraremos a inspiração e a
coragem necessárias para realizá-la. O senso de dever deveria nos lembrar nossa dívida
com aqueles que lutaram (e até morreram) para trazer o Evangelho para este país.
Queria concluir este pequeno livro com palavras mais otimistas, acreditando numa
saída para o dilema enfrentado pelo protestantismo brasileiro. Queria compartilhar com o
leitor a esperança de ver a Igreja Evangélica Brasileira trilhando novamente o caminho
aberto pelos pioneiros da fé. A honestidade intelectual, no entanto, me obriga reconhecer
que fomos vitimados pela idéia de que precisamos ter igrejas grandes para ter o poder
político e econômico, aquela coisa de “todo mundo me conhece, sabe quem eu sou”.
Sucumbimos exatamente àquilo contra o que Paulo advertia Timóteo: “Ora, os que
querem ficar ricos caem em tentações, e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e
perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e na perdição”. Que a graça de Deus nos
ampare.
Bibliografia

ARAÚJO FILHO, Caio Fábio. A igreja Evangélica e o Brasil – Profecia, Utopia e
Realidade. Proclama Editora. Niterói, 1997.
ANTONIAZZI, Alberto e FRESTON,Paul. Nem anjos nem demônios –
Interpretações Sociológicas do Pentecostalismo. Editora Vozes. Petrópolis, 1994.
CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, Templo e Mercado – Organização e Marketing
de Um Empreendimento Neopentecostal. Co-edição Editora Vozes, Umesp e Edições
Simpósio. Petrópolis, 1997.
CÉSAR, Elben M. Lenz. História da Evangelização do Brasil – Dos Jesuítas aos
Neopentecostais. Ultimato Editora. São Paulo, 2a edição, 2000.
GONDIM, Ricardo. O Evangelho da Nova Era – Uma Análise e Refutação Bíblica da
Chamada Teologia da Prosperidade. Abba Press. São Paulo, 1993.
MENDONÇA, Antonio Gouveia. O Celeste Porvir – A Inserção do Protestantismo no
Brasil. Aste. São Paulo, 1995.
RAMOS, Ariovaldo. Igreja, e eu com isso? – Compreendendo a Igreja Para Poder
Vivê-la. Editora Sepal. São Paulo, 2000
REILY, Duncan. História Documental do Protestantismo no Brasil. Aste. São Paulo,
1984
ROMEIRO, Paulo. Evangélicos em Crise – Decadência Doutrinária da Igreja
Brasileira. Mundo Cristão. São Paulo, 1995.
ROMEIRO, Paulo. Supercrentes – O Evangelho segundo Kenneth Hagin, Valnice
Milhomens e os Profetas da Prosperidade. Mundo Cristão. São Paulo, 1993.

[1] “Evangelho de Resultados”, entrevista publicada na edição de Junho de 2001 da revista Eclésia., pp. 24 e ss. O
missionário R. R. Soares, é fundador e presidente da Igreja Internacional da Graça.

[2] As obras são: SuperCrentes – O Evangelho Segundo Kenneth Hagin, Valnice Milhomens e os Profetas da
Prosperidade. Mundo Cristão. São Paulo, 1993 e Evangélicos em Crise: Decadência Doutrinária na Igreja Brasileira.
Mundo Cristão. São Paulo, 1995 (de autoria do Pr. Paulo Romeiro); O Evangelho da Nova Era: Uma Análise e
Refutação Bíblica da Chamada Teologia da Prosperidade. Abba Press. São Paulo, 1993 (do Pr. Ricardo Gondim).

[3] MENDONÇA, Antonio Gouveia. O Celeste Porvir – A Inserção do Protestantismo no Brasil. Aste. São Paulo, 1995.,
pp 29 e 176

[4] Ibidem, p. 176

[5] Ibidem, pp. 29 e 178-185

[6] Ibidem, p. 31
[7] Ibidem, pp. 31 e 32

[8] Ibidem, p. 83

[9] CÉSAR, Elben M. Lenz. História da Evangelização do Brasil – Dos Jesuítas aos Neopentecostais. Ultimato Editora.
São Paulo, 2a edição, 2000, p. 115

[10] Ibidem, p. 119

[11] ANTONIAZZI, Alberto e FRESTON,Paul. Nem anjos nem demônios – Interpretações Sociológicas do
Pentecostalismo. Editora Vozes. Petrópolis, 1994, p.118

[12] REILY, Duncan. História Documental do Protestantismo no Brasil. Aste. São Paulo, 1984, p.389

[13] FRESTON, Paul. Opus cit. p. 389

[14] CÉSAR, Elben M. L. Opus cit. p. 141

[15] Ibidem, p. 140

[16] Ibidem, p. 140

[17] Ibidem, p. 129-130

[18] Ibidem, p. 132

[19] Ibidem, p. 133

[20] GONDIM, Ricardo, O Evangelho da Nova Era: Uma Análise e Refutação Bíblica da Chamada Teologia da
Prosperidade. Abba Press. São Paulo, 1993, p.10

[21] Tese de doutorado defendida na PUC de São Paulo

[22] As citações feitas aqui foram retiradas de uma entrevista, concedida por Márcia Benedetti machado ao Observatório
da Imprensa. A íntegra pode ser lida no site do Observatório ( www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos).

[23] CÉSAR, Elben M. L., História da Evangelização do Brasil: Dos Jesuítas aos Neopentecostais. Ultimato Editora.
São Paulo, 2a. edição, 2000, p. 149. A Universal foi fundada em 1977, no Rio de Janeiro, com o nome de Igreja da
Benção, num prédio antes ocupado por uma funerária. No ano seguinte veio a chamar-se pelo nome atual. Além de
Macedo, foram fundadores da Universal R. R. Soares e Miguel Ângelo. Até hoje ignora-se o motivo de sua separação.

[24] CÉSAR, Elben M. L., História da Evangelização do Brasil: Dos Jesuítas aos Neopentecostais. Ultimato Editora.
São Paulo, 2a. edição, 2000, p. 148

[25] RAMOS, Ariovaldo, Igreja: E eu com isso?. Editora Sepal. São Paulo, 2000 p. 22

[26] Ibidem, p. 22

[27] Ibidem, p. 23

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