Cultura urbana
e educação
Secretaria Ministério da
de Educação a Distância Educação
SUMÁRIO
Ecio Salles1
Em um conhecido poema, João Cabral de dos grupos que desenvolvem ações culturais
Melo Neto escreve que um galo sozinho não na cidade. Em primeiro lugar, a cultura é
é capaz de produzir a manhã. Para isso, seria entendida como um modo de estar na vida.
necessário que o canto deste galo se unis- Nesse contexto, deixa-se de lado o ponto de
se ao de outros, até que o conjunto sônico vista da cultura como representação e pas-
de todos os galos finalmente tecesse a ma- sa-se a entendê-la a partir de suas estraté-
nhã. Essa é uma forma poética – e, por isso gias e procedimentos, que deslancham pro-
mesmo, não menos importante que qual- cessos continuados de ação criativa com a
quer outra – de narrar a força do coletivo, a vida. A cultura pensada como processo atua
importância de os indivíduos ou grupos de no cotidiano das pessoas, modificando-as
indivíduos se articularem no sentido de po- produtivamente, potencializando os sujei-
tencializar suas ações. tos das ações, incidindo sobre a comunida- 4
1 Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal Fluminense e doutorando em Comunicação e Cultura pela
Escola de Comunicação da UFRJ. Consultor do Programa Onda Cidadã (Itaú Cultural). Entre 1997 e 2006 foi Coordenador de
Pesquisa e Conteúdo do Grupo Cultural AfroReggae. Consultor da série.
rar os sujeitos e os discursos, tomar posse constituem um terço da população urbana
da própria existência. Como percebe Ivana global. E pelo menos metade dessa popula-
Bentes, “é preciso tomar posse das lingua- ção é composta por jovens com menos de
gens e dos meios, tomar posse das câmeras, vinte anos de idade (apud Davis, 2006). Sob
pois as questões de pertencimento e autoes- um determinado ponto de vista, esse fenô-
tima passam pela potência da imagem e da meno é preocupante, uma vez que resulta
visibilidade”2. E também garantir o direito à do aumento da desigualdade social, do de-
fruição, ao gozo estético. semprego e da miséria, além de favorecer o
recrudescimento da violência urbana.
Por um lado, a cultura designa a capacidade
de determinados grupos em desenvolver o Por outro lado, nos últimos anos o campo
seu trabalho com organicidade e legitimi- da cultura vem desempenhando um papel
dade nas comunidades onde se estabelece- cada vez mais importante em nossa vida so-
ram. Nos últimos anos, os movimentos dos cial, econômica e política. Nesse mesmo pe-
jovens – em especial dos jovens negros e po- ríodo, a voz das periferias, “falando alto em
bres – têm sido responsáveis pela produção todos os lugares do país”, tem-se apresenta-
de uma nova subjetividade a partir das peri- do como, nas palavras de Hermano Vianna,
5
ferias do Brasil. Transformaram suas comu- “a novidade mais importante da cultura bra-
nidades, a partir de uma dinâmica que com- sileira na última década”4.
bina comportamentos de resistência com os
das redes sociais de produção, inaugurando Os meios de expressão aí encontrados são
espaços de criação e de “trabalho comum”3. os mais diversos, desde o saquinho de pão
impresso, distribuído nas padarias de Vi-
É notável como, no mundo inteiro, o fenô- tória pelo Projeto Forninho e funcionando
meno da proliferação das favelas tem se como um jornalzinho regional; os saraus
tornado um elemento marcante do cresci- poéticos promovidos pela Cooperifa nos ba-
mento dos centros urbanos. Segundo rela- res de Capão Redondo, na periferia de São
tório do Programa de Assentamentos Hu- Paulo, transformando o bar no verdadeiro
manos das Nações Unidas, os moradores “espaço público” das favelas; as interven-
de favela representam 78,2% da população ções públicas e midiáticas do coletivo Bi-
urbana dos países menos desenvolvidos e jari em áreas gentrificadas de São Paulo,
2 BENTES, Ivana. 2007. Texto inédito, produzido para o Programa Onda Cidadã, do Itaú Cultural.
3 NEGRI & COCCO, 2005, p. 57.
4 Texto publicado pela TV Globo como anúncio em vários jornais brasileiros, no dia 08/04/2006, data da estréia do programa
Central da Periferia. Depois republicado em formato de manifesto em sites na Internet, como o Overmundo.
contrapondo-se à limpeza étnica urbana vestiram, a um só tempo modificaram e se
em curso; T-bone Açougue Cultural e suas permitiram modificar por ele.
atividades em Brasília (chegou a ter dez mil
livros em seu açougue para empréstimo Essas iniciativas são, talvez, representativas
gratuito à população); o pessoal do Media de uma nova modalidade de arte. E o artista
Sana em Pernambuco, com sua militância hoje já não pode deixar-se levar pelo mito
política e estética, juntando vídeo e músi- romântico do ser solitário, inspirado, acima
ca; o Enraizados, e suas múltiplas atividades das coisas do mundo. Ele se torna uma espé-
através do hip-hop, falando a partir de Nova cie de operário, de produtor ou operador de
Iguaçu para o Brasil inteiro e para alguns ações criativas, sempre inserido na mobili-
países no mundo; a incrível experiência do zação coletiva, em que cada ponto da rede é
Espaço Cubo, em Cuiabá, com a produção um foco de irradiação cultural. Assim, caem
de festivais de rock independentes, produ- por terra as noções consolidadas sobre a
zindo uma economia local tão consistente relação centro/periferia, a dependência em
que gerou uma própria; ou, ainda, o traba- relação às instituições reconhecidas e os
lho da Fundação Casa Grande, no Ceará, em clichês sobre inclusão social, cidadania, pre-
que as crianças participantes assumiram a cariedade, reivindicação e conflito. Está em
6
gestão do projeto. suas mãos a potência de reinventar a subje-
tividade coletiva, os meios de produção, de
E mais, iniciativas como as do Grupo Cultu- troca e de consumo, a própria mídia.
ral AfroReggae, do Observatório de Favelas,
da Cia. Étnica de Dança e da CUFA, no Rio; do Nas periferias do Brasil, os casos em que
Eletrocooperativa e do Bagunçaço, na Bahia; essa forma de articulação foi determinante
da Casa do Zezinho e a do Hip-Hop, em São para o êxito das iniciativas – especialmente
Paulo... Inúmeros outros projetos e experi- no que se refere a projetos ligados à educa-
ências espalhados pelo país têm em comum ção e à cultura – são numerosos. Nessas or-
a conjugação dos aspectos mencionados ganizações, a música, a dança, o teatro, o
acima com uma profunda e consistente in- circo e a capoeira, entre outras, além de for-
serção em seus territórios de atuação. Nem mas estéticas, são também linguagens que
todos os grupos têm sua origem nos locais promovem um certo diálogo, aquele capaz
em que atuam (e mesmo essa “origem” não de reescrever trajetórias de vida, modificar
seria por si garantia de legitimidade). Aque- pessoas e comunidades, repensar a vida e
les que obtiveram os melhores resultados transformá-la. Como afirma George Yúdice
nesse processo são os que, ao entrarem em em seu estudo sobre o assunto, a cultura
contato com o contexto social no qual in- hoje “está sendo crescentemente dirigida
como um recurso para a melhoria sociopolí- promovem um outro nível de articulação,
tica e econômica”5. agora com setores externos às comunidades
– agências de fomento, empresas, governo,
Nessa perspectiva, abre-se a possibilidade mídia... –, visando potencializar seus proje-
de investimento, a partir do campo cultu- tos e atividades.
ral, em outra vida possível, afetando e as-
sociando-se ao movimento da vida social, Esses agenciamentos tendem a se complexi-
numa recusa decidida de acomodar-se à or- ficar ainda mais no momento em que as de-
dem dominante. É por isso que, apesar de a sigualdades sociais e a violência urbana pas-
forma de organização pelas ONGs encontrar sam a ocupar o centro das preocupações.
limites à sua atuação – o risco de cooptação, Nesse momento, algumas organizações, em
devido à sua adesão à grande mídia; o des- especial aquelas que se valem da cultura
vio do sentido de suas lutas ao participar de como recurso, passam a investir fortemente
redes abrangentes, com setores das classes na criação de modos de aproximação entre
dominantes, etc. –, no fim das contas não os espaços sociais antagonizados por ques-
cessam de elaborar a cultura popular como tões sociais, raciais/étnicas ou geográficas.
“gestos ritualísticos de produção de subje-
Por outro lado, uma parte significativa dos 7
tividade autônoma por parte dos pobres”,
como define Muniz Sodré6. Ou, como acre- grupos atuantes nas periferias, notada-
dita Peter Pál Pelbart, “esse grupo vive na mente os que se valem da cultura para de-
carne a constatação de que o capital maior senvolver as suas ideias, atuam na direção
é a própria vida, e que sua potência de ex- contrária: no questionamento e constante
pansão e de constituição extrapola o poder enfrentamento das “fronteiras”. A impres-
do capital e o sequestro da vitalidade social são inicial é a de que identificaram os fossos
dali advinda. É uma pequena revolução bio- que dividem e separam as pessoas – os quais
política”7. passam por questões sociais, raciais, econô-
micas, geográficas, de gênero – e decidiram
O processo de articulação não se dá apenas “construir pontes” sobre esses abismos.
no interior das periferias. Uma vez realiza-
do esse movimento, as próprias periferias, Seu desafio é justamente o de criar pontes
a partir da ação dos grupos organizados, capazes de abrir ao menos uma via de acesso
5 YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
6 SODRÉ, 2006, p. 221.
7 PELBART, Peter Pál. Texto inédito, produzido para o Programa Onda Cidadã, do Itaú Cultural.
de um lado a outro. Mas aqui essa “ligação” Se essa diferença será capaz de mudar o
não teria nenhum conteúdo transcendente. mundo é difícil dizer, mas, desde já, compõe
Na prática, além de se investir na produção uma força constituinte de um novo tempo,
de redes em seu próprio campo de atuação, atuante e imprevisível.
trata-se de ligar pontos dissociados na expe-
riência social: favela e asfalto, elite e popu-
TEXTOS DA SÉRIE
lar, ONGs e empresas. Eles não solucionam CULTURA URBANA E EDUCAÇÃO9
os problemas do mundo, não erradicam as
desigualdades ou os conflitos, até porque A série Cultura urbana e educação preten-
são ainda poucos e detentores de escassos de evidenciar estratégias dos grupos que
bém se medem forças. No final, apesar das gias e procedimentos que impulsionam
processos continuados de ações criativas 8
contradições, ele traz à luz do dia sinais “de
um discurso que é diferente – outras formas que reforçam laços de sociabilidade, per-
8 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG; Brasília: Unesco, 2003.
9 Estes textos são complementares à série Cultura urbana e educação, com veiculação de 25 a 29 de maio no programa
Salto para o Futuro/TV Escola (MEC).
a necessidade de “posse” dessas linguagens, tilhar a emoção, a inteligência, disputar com
assim como a posse e a desconstrução das a novela e com a cultura de massa, potencia-
linguagens do poder. De fato, o desejo difuso lizar e empoderar os discursos, tomar posse
é experimentar todas as linguagens, compar- de todas as linguagens.
O texto que embasa o segundo programa tenciais. Por outro lado, a padronização cul-
apresenta, entre outros temas, a necessi- tural da vida rouba da cidade a criatividade
dade de reconhecer que a cidade é produto necessária para inventar a alegria e a felici-
da diversidade da vida social, cultural e pes- dade, enquanto a homogeneização das prá-
soal. Isto significa dizer que a cidade deve ticas socioculturais enfraquece o significado
ser pensada, tratada e vivida como um bem do conviver e do aprender com presença do
público comum, e não como um espaço de outro. Isto significa dizer, portanto, que é
desigualdades. A cidade é o encontro dos preciso reconstruir a vida da cidade pelo re-
diferentes. A cidade é a expressão da plura- conhecimento da diversidade cultural como
lidade de vivências culturais, afetivas e exis- um valor da existência.
9
O texto deste terceiro programa enfatiza es- sentido sobre o mundo. A combinação de di-
tes aspectos, entre outros: Se acreditarmos versos atores sociais com a experimentação
que a escola é o primeiro lugar onde pode- das linguagens e conteúdos pode criar um
mos experimentar o mundo, como isso será ambiente favorável a novas práticas.
possível se dentro da escola não existir a di-
versidade do mundo? Até então, essa diversi- Os textos 1, 2 e 3 também são referenciais
dade do mundo só estava presente dentro da para o quarto programa, com entrevistas
escola através de ilustrações que o conteúdo que refletem sobre esta temática (Outros
escolar difunde. O conteúdo deve ser tratado olhares sobre Cultura urbana e educação) e
como um objeto que pode ser montado/des- para as discussões do quinto e último pro-
montado por todos. Dessa maneira, ele será grama da série (Cultura urbana e educação
percebido como uma linguagem que produz em debate).
INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
ATHAYDE, Celso et alli. Cabeça de porco. Rio LAZZARATO, Maurício. As revoluções do capi-
de Janeiro: Objetiva, 2005. talismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
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CANCLINI, Néstor Garcia. A globalização
imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às me-
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DAVIS, Mike. Planeta de favelas. In: SADER, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001.
Emir. Contragolpes – seleção de artigos da
New Left Review. São Paulo: Boitempo, 2006. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: es-
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ESSINGER, Sílvio. Batidão: uma história do 2005.
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SAID, Edward. Cultura e política. São Paulo:
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio Boitempo, 2003.
de Janeiro: Edições Graal, 1979.
SODRÉ, Muniz. As estratégias sensíveis. Petró- 10
HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e me- polis: Vozes, 2006.
diações culturais. Belo Horizonte: Editora
UFMG; Brasília: Representação da Unesco YÚDICE, George. A conveniência da cultura:
no Brasil, 2003. usos da cultura na era global. Belo Horizon-
te: Editora UFMG, 2004.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão –
guerra e democracia na era do Império. Rio
de Janeiro: Record, 2005.
TEXTO 1
A posse da linguagem
INCLUSÃO SUBJETIVA
Ivana Bentes1
No momento em que a cidade é pensada Mas quais as possibilidades para que as redes
como a “nova fábrica”, como propõe An- de cultura urbana se apropriem e dinami-
tonio Negri, podemos dizer que a cultura zem o território urbano? “Não existe inclu-
urbana está na gênese da própria ideia da são sem inclusão subjetiva”, essa proposição
“multidão” produtiva, formada por singula- do projeto Reperiferia, de Nova Iguaçu, no
ridades que não podem mais ser represen- Rio de Janeiro2, pode se articular com uma
tadas de forma tradicional e que começam outra questão. Também não existe inclusão
a atuar de forma comum ou em projetos e sem a posse das linguagens e o acesso à in-
ações partilhadas. fraestrutura tecnológica, o acesso às redes:
11
sistemas de informação e comunicação que
A cultura urbana, hoje, passa a ser entendi- permitam a comunicação barata, autônoma
da como produção de riqueza e a cidade, as e colaborativa, gerando um aumento da pro-
metrópoles estariam para a multidão como dutividade social: computadores, software,
a fábrica estava para os operários (Antonio câmeras digitais, internet livre, ambientes
Negri). A difusão da produtividade e da cria- coletivos para se “estar junto”.
ção de valor se desloca para o campo das
relações sociais, dos fluxos e trocas, a cidade Mais que tecnologias de comunicação, estas
se informatiza, assim como a produção e o são condições de funcionamento de novos
trabalho. A cultura urbana torna-se uma das processos sociais e criação de capital social,
bases do capital que busca extrair valor das aumentando a “intelectualidade de massa”,
redes espalhadas pela cidade, redes de cul- aumentando a produtividade social em to-
tura, redes de saber, redes de afetividade e dos os níveis. Mas o que seria essa susten-
sociabilidade. tabilidade e inclusão subjetiva, que é tão
1 Doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997). Diretora e professora da ECO/UFRJ.
2 Citado por Marcus Faustini, coordenador do Projeto Reperiferia no evento Onda Cidadã, promovido pelo Itaú Cultural
no Circo Voador, Rio de Janeiro, novembro de 2007.
importante quanto a existência de infraes- rar os discursos, tomar posse de todas as
trutura tecnológica instalada, seja low-tech, linguagens.
seja hight tech. Muitos aspectos dessa sus-
tentabilidade “imaterial”, simbólica são tão Também é interessante pensar as cultu-
ou mais importantes que as questões bem ras urbanas como experiências radicais de
materiais e concretas da necessidade de tec- educação não-formal, em que a experiência
nologias instaladas no corpo da cidade, de audiovisual, musical, teatral, etc. aparece
forma pública e gratuita. como conhecimento lúdico, posse da lin-
guagem como porta de entrada privilegiada
para essa inclusão subjetiva e para o traba-
A POSSE DA LINGUAGEM
lho vivo.
determinante das novas formas do político ra urbana vai incorporando as mais distintas
e da ação. Entre essas linguagens urbanas estéticas, utilizando desde o mais experimen-
destacamos o audiovisual e a música pre- tal até as linguagens que já circulam na cul-
12
sentes na produção cultural, educacional, tura de massas. As estratégias são múltiplas
de forma ampla.
Uma dinâmica recorrente na constituição
A maioria dos grupos culturais urbanos não de grupos, coletivos, projetos de cultura
trabalha com uma linguagem exclusiva, di- urbana é começar com as referências exis-
ferentes linguagens são mobilizadas na sua tentes dos jovens, sejam quais forem. Uma
produção, mas todos reconhecem uma di- jovem da Escola Livre de Cinema de Nova
mensão decisiva hoje na passagem de uma Iguaçu, por exemplo, quer produzir clipes
cultura letrada para uma cultura audiovisu- para as músicas evangélicas e religiosas da
al: a necessidade de “posse” dessas lingua- sua Igreja, um menino quer aprender a fazer
gens, assim como a posse e a desconstrução filmes de ação tipo James Bond... O profes-
das linguagens do poder. sor não vai dissuadi-los dos seus projetos e
motivações, mas vai lhes apresentar novas
De fato, o desejo difuso é experimentar to- referências. Já no projeto “coletores de ima-
das as linguagens, compartilhar a emoção, gens” são os registros do cotidiano de cada
a inteligência, disputar com a novela e com um que serão analisados nas aulas. Parte-se
a cultura de massa, potencializar e empode- do cotidiano para pensar uma estética ou
linguagem expandida para outros campos, “pertencimento” social, criar uma “comuni-
repertórios e referências. dade” subjetiva, um comum, uma inserção
pelo compartilhamento da linguagem, mais
Um garoto traz as imagens das irmãzinhas do que pelo confinamento em um gueto,
tomando banho em nudez inocente, no decisivo como estratégica de sair do lugar
projeto TV Lata, da Bahia. O mediador/pro- de objeto e se tornar sujeito do discurso e
fessor, Joselito Crispim, tem que perguntar ganhar mobilidade social.
se ele acha mesmo que pode mostrar as ir-
mãs para qualquer um ver. O garoto recua, Para a TV Lata e o Espaço Bagunçaço de Ala-
melhor não expor as irmãs à curiosidade de gados, Salvador essa construção de autoes-
desconhecidos. Ética das imagens que nasce tima e pertencimento, assim como para o
do fazer, do sentir, do perceber. pessoal das Filmagens Periféricas, da favela
paulista de Tiradentes, surge como decisiva
A partir do concreto se chega ao conceito, num primeiro momento. Fazer seus filmes,
à ética, à história do cinema e da videoarte. se ver nos filmes, exibir seus filmes e ser re-
Pode-se partir dos códigos do melodrama ou conhecido dentro e fora da sua comunidade
da novela para chegar a Godard. Partir do de forma singular. Inclusão subjetiva.
sabido, do consumo, para trazer outras refe- 13
Como falar de uma cultura urbana plena A mídia também tem, muitas vezes, um dis-
quando jovens negros são impedidos de se curso paternalista e piedoso, que só valoriza
deslocarem livremente pela cidade ou, ao se os projetos que vão “tirar o jovem do trá-
deslocarem, aparecem os constrangimentos fico”, discurso que transforma os projetos
e os territórios proibidos. em “creches de adultos”. Matérias que só
querem explorar a antiga relação dos jovens
Joselito Crispim descreve o espanto que os com o tráfico ou a delinquência. Todos re-
garotos negros de Alagados/Bahia ainda cau- conhecem essa dupla força da mídia: de dar
sam nos espaços públicos de Salvador. Ra- visibilidade aos projetos e, ao mesmo tem-
cismo, desconfiança, choque visual diante po, produzir clichês e caricaturas. Alguns
das crianças do Bagunçaço, que tocam per- jornalistas não conhecem as periferias das
cussão em latas. Também os jovens do Fil- cidades, e fazer mídia e tornar-se mídia são
magens Periféricas destacam a necessidade pontos decisivos na guerrilha semiótica.
dessa posse simbólica e real da cidade. Pre-
cisam sair do gueto e circular nos espaços Seria importante ter ações que levem a im-
prensa e a mídia para conhecer os projetos TV. Ainda na criação de circuitos, temos a
e periferias, de forma não sensacionalista, TV Minuto. Debates relâmpagos no trânsito
deixando de lado a retórica que transforma os são feitos enquanto o sinal fecha, com um
novos produtores de cultura em “pobrestars”. banquinho de plástico e uma pauta. Paródia
dos debates de TV em que não se discute
Os grupos e coletivos que trabalham nesses nada. A correria e a preocupação com o si-
campos midiáticos profissionais voltados nal que vai abrir ou fechar já bastam para
para a formação de atores, músicos, direto- “entreter”.
res de vídeo sublinham esse horizonte de
uma profissionalização dessas atividades, Em relação a novos circuitos, o Filmagens
não de uma glamourização das profissões e Periféricas tem como um dos projetos do
atividades midiáticas e artísticas. Reforçam grupo, depois das oficinas de vídeo na cidade
a ideia do trabalhador-artista ou do artista- de Tiradentes-SP, a exibição do material pro-
trabalhador. No Nós do Morro e em outros duzido no MIS, no CCBB, locais que muitos
grupos, todos têm que passar por todas as moradores de Tiradentes, periferia paulista,
etapas de produção, realização, atuação, não têm acesso, não sabem o que é. Surge,
manutenção física dos espaços, viabilização então, o “Cinema de Periferia”, com a ideia
16
financeira, as diferentes ocupações na ca- de colocar todos os vídeos realizados pelo
deia do audiovisual, atividades técnicas (ele- Filmagens Periféricas em uma fita ou DVD e
tricista, iluminador, figurinista, etc.). distribuir nas locadoras de Tiradentes.
O conhecimento do território
CONHECER O TERRITÓRIO, VIVER A CULTURA
atributos que lhes são comuns e não co- ral. Multiplicam-se pela cidade os signos im-
muns, constituindo relações que privi- pressos nas falas, nos gestos, nas roupas, na
dade de práticas, o que denotaria uma con- atividade criativa e do direito de manifestar
zante da cultura.
Valorizar e respeitar a diversidade de mani-
trução da cultura como herança e projeto, renovada. Consolida-se com essa perspecti-
potência afirmativa de sociabilidades gene- Afinal, a cultura se torna mais rica quando
25
TEXTO 3
Práticas inovadoras
NOVAS PRÁTICAS
Marcus Faustini1
Uma mãe voluntária dentro de uma escola ditamos que qualquer construção de novas
tem a tarefa de colocar as crianças para to- práticas dentro da escola, antes de inventar
mar banho no intervalo entre um turno e novos sistemas, deve garantir a presença
outro. Diante da constante resistência das de atores sociais diversos dentro do espaço
crianças em tomar banho, ela começa a escolar.
pensar no que fazer para aqueles “moleques
gostarem de se limpar”. Começa a perceber Nenhuma nova prática nasce sem a cultura
que as crianças gostam de cantar funk im- da diversidade, sem a garantia diária, atra-
provisado e cria “a hora do funk no chuvei- vés de práticas, de que essa diversidade não
26
ro”. A partir desse dia, a hora do banho pas- será tida como um corpo estranho ou extra-
sa a ser disputada por todos. ordinário, até mesmo na grade curricular.
A estratégia desta mãe não pode ser vista
A pequena história acima pode parecer como jocosa, singular e extraordinária. Ela
anedótica para alguns e até mesmo anti- só foi possível pela repetição da tarefa que
pedagógica para outros. O fato é que ela lhe foi dada. Garantir o direito à repetição
demonstra uma bela estratégia estética e da presença diária desses diversos atores
afetiva construída por essa mãe voluntária sociais dentro da escola e superar a eventu-
dentro do espaço-tempo da escola. Por ou- alidade da presença comunitária são os ca-
tro lado, para percepção de quem busca no- minhos para se criar o sentido de inovação.
vas práticas pedagógicas, salta aos olhos a Não adianta convidar a comunidade para
perspicácia da mãe que uniu afeto e incor- jornadas de sábados ou datas comemorati-
poração do imaginário das crianças para vas escolares, se essa comunidade não for
realizar a sua tarefa. Podemos nos arriscar estruturante para as estratégias cotidianas
e dizer que isto só foi possível porque ela é de relacionamento, conhecimento e expres-
uma mãe voluntária e, desta maneira, acre- são estética da escola.
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Presidência da República
Ministério da Educação
Coordenação-geral da TV Escola
Érico da Silveira
Coordenação Pedagógica
Maria Carolina Machado Mello de Sousa
Supervisão Pedagógica
Rosa Helena Mendonça
Acompanhamento Pedagógico
Carla Ramos 29
Copidesque e Revisão
Magda Frediani Martins
Diagramação e Editoração
Equipe do Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Impressa – TV Brasil
Gerência de Criação e Produção de Arte
E-mail: salto@mec.gov.br
Home page: www.tvbrasil.org.br/salto
Rua da Relação, 18, 4o andar – Centro.
CEP: 20231-110 – Rio de Janeiro (RJ)
Maio de 2009