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Para uma Perspectiva da Cultura Portuguesa

*
Fernando de Mello Moser

Para uma Perspectiva


da Cultura Portuguesa * *

1. Nas reflexões que se seguem, proponho-me apresentar,


sinteticamente, a tentativa de conciliação, interpretativa, de
alguns modelos que têm sido aplicados à análise de elementos
integrantes da Cultura Portuguesa e a esta no seu conjunto.
Para evitar ambiguidades, começo por esclarecer qual o
conceito, ou conceitos, de cultura, subjacentes a todas estas
reflexões. Cultura será, no presente contexto, a «herança so-
cial», como a definem os antropólogos, ou ainda «o conjunto de
comportamentos e modos de pensar próprios de uma sociedade»
(1), ou ainda: «o conjunto de expressões e manifestações de
actividade humana, que, em determinado espaço e / ou tempo
define, por contraste, uma originalidade» (2).
De acordo com qualquer das definições citadas, uma cultura
existe diacronicamente, processa-se no tempo, sendo herdada,
foi, necessariamente transmitida. É um fenómeno dinâmico, um
devir, um ser tornando-se. Claro que é sempre possível o estudo
sincrónico de uma cultura. Mas esse estudo representará como
que um corte transversal, numa determinada fase, do passado,
ou da actualidade que passa enquanto está a ser observada.
No decurso das minhas reflexões, procurarei situar a Cultura
Portuguesa no espaço e no tempo, recordando factos
sobejamente conhecidos, mas modificando, talvez, as ênfases;
ao fazê-lo, sublinharei aspectos que considero particularmente
relevantes no modo de relacionação da Cultura Portuguesa com
outras culturas, em diversas fases e momentos, sobretudo pelo
que se refere aos dois movimentos, por vezes simultâneos, mas
de intensidades diferentes e variáveis, que designarei por
movimento centrípeto e movimento centrífugo.

2. A Cultura Portuguesa, propriamente dita, surgiu «onde a


terra acaba e o mar começa», num território junto do Atlântico,
mas já muito próximo da entrada do Mediterrâneo. A localização
e o relevo deram ao habitat da Cultura Portuguesa aquelas três
variantes geográficas que Mestre Orlando Ribeiro classificou
como de três tipos: o atlântico, o mediterrânico e o continental.
Com uma linha de costa muito extensa, relativamente ao
perímetro do país que emergiu no século XVI, entre o Atlântico e

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o Mediterrâneo, entre a Europa e a África, como também entre a


Europa e as Américas por descobrir, na zona temperada do Norte,
mas na vizinhança da zona tórrida, o povo português possuía no
seu habitat factores propícios ao que, por vezes exageradamente,
se tem chamado uma vocação marítima, a par de um
condicionalismo que talvez tenha dotado os portugueses de várias
épocas com apreciáveis qualidades de adaptação a outras lati-
tudes e outros climas, qualidades que influenciaram e
provavelmente continuam a influenciar a sua presença e o seu
destino no Mundo. Sem perfilhar totalmente as interpretações
do eminente antropólogo brasileiro Gilberto Freyre, não posso
deixar de considerar sugestivas as suas ideias sobre o valor
positivo do habitat português entre os factores que permitiram a
nossa adaptação nas Sete Partidas do Mundo. Aliás, a
componente mediterrânica, a componente continental e a
componente atlântica desempenharam um papel relevante na
realização dos Descobrimentos marítimos, já que a uma
experiência de navegação mediterrânica se juntaram os
conhecimentos reunidos de outras proveniências, nomeadamente
a continental, sobre matemática e astronomia, desenvolvidos
uma e outros à luz da experiência gradualmente adquirida na
exploração do Atlântico.
Uma vez lançados à descoberta dos Oceanos e de novas
terras, os portugueses iniciaram uma espécie de Diáspora, que
jamais parou, muito embora tenham mudado as razões e as
condições das suas viagens e da sua emigração, temporária ou
definitiva.
Foi então que adquiriu novas dimensões o processo de
contactos e interpenetração cultural, com a aquisição, permuta
e retransmissão de conhecimentos ¯ geográficos, botânicos,
zoológicos, etc., ¯ com a aquisição, assimilação e retransmis-
são de experiência.
Então, a Cultura Portuguesa projectou-se para fora do seu
habitat original, umas vezes aculturando, outras vezes sofrendo
aculturações, de um modo especial naquelas latitudes, áreas e
ambientes em que, mais uma vez segundo Gilberto Freyre, surgiu
o fenómeno que ele chamou Luso-Tropicalismo, uma cultura
própria do encontro do Português com os Trópicos, com o clima
tropical, com a flora e a fauna dessas regiões e com os povos
que contactou, com os quais aprendeu, e com os quais se
misturou.
(Não cabe aqui abordar o problema das causas da
miscegenação praticada pelos portugueses, ainda recentemente
objecto de um estudo, polémico aliás, de Charles Boxer. Mas

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talvez se possa recordar o dito popular: «Deus fez o branco e o


preto, e o português fez o mulato» ¯ a que Gilberto Freyre
acrescentaria com entusiasmo: e sobretudo a mulata!)
A Cultura Luso-Tropical começa e parte do Velho Portugal,
evoluindo em contacto com as culturas autóctones que encon-
trou, adquirindo uma identidade própria e reconhecível nas
variantes locais, do Minho e Douro a São Salvador da Bahia, a
Olinda, na África como na Índia (e não apenas em Goa), em
Macau como, em vestígios maiores ou menores, através de todo
o Oriente, incluindo, nomeadamente, Shri Lanka (ou Ceilão) e o
Império do Sol Nascente. Sem falar nos Estados jovens de
expressão oficial portuguesa, onde a permanência da nossa
gente foi mais prolongada, onde continua, em novas condições,
a presença de Portugal, dos portugueses, da Cultura Portuguesa
atestada por vestígios linguísticos, por recordações históricas,
por monumentos, por tradições de amizade e convivência, em
áreas consideráveis, pela persistência dos efeitos de uma
evangelização que teve profundas implicações culturais ¯ como
no Brasil e em Goa, por exemplo.
Ao transferir-se do seu habitat europeu, atlântico-
mediterrânico, a Cultura Portuguesa não só acompanhou o
processo histórico português dando «novos mundos ao Mundo»,
mas tornou-se, ela própria, um fenómeno de significado mundial,
à escala mundial.
Neste contexto, é interessante recordar o papel
desempenhado pela língua portuguesa como língua franca,
sobretudo no Oriente. A propósito, permito-me citar um passo
da advertência ao Leitor, da Gramática Ingleza, de Carlos
Bernardo da Silva Teles de Menezes, impressa em Lisboa em
1762. Aí se lê que:

«A Lingua Ingleza, que até os fins do século passado


era não somente desconhecida dos estrangeiros, mas
desprezada dos seus próprios naturaes, se acha oje
tão polida, e tão abundante por benefício dos grandes
Autores que nella tem effeito desde o principio do
século presente, que merece ser entendida de todos,
para se utilizarem dos excelentes originaes que nela
se achão impressos.»

E mais adiante, o ponto que mais nos interessa, ressalvado


algum exagêro:

«[Os Inglezes] tem differentes gramáticas da língua

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Portugueza; quazi todos a aprendem, especialmente


aqueles (e he a mayor parte da nação) que se aplicam
ao commercio.»

Talvez venha a propósito recordar que, aproximadamente por


esta altura, Os Lusíadas era exaltado em Inglaterra como epopeia
da criação do comércio mundial, por poetas, intelectuais e pelo
próprio tradutor William Julius Mickle, que empreendeu a
tradução, em parte, com o objectivo de conseguir um bom
emprego na East India Company!

3. Por motivos de ordem geográfica, ou histórica, ou de


ambas, algumas culturas são mais abertas, mais permeáveis,
que outras. Além disso, poderão alternar, em alguns casos, fases
de abertura e fases de fechamento ¯ o que é flagrante, por
exemplo, se atentarmos na característica insularidade da cultura
inglesa, interrompida temporariamente em determinadas
circunstâncias, com consequências notáveis.
Enquanto «fechada», uma cultura pode, não obstante, estar
inserida num contexto cultural mais vasto e, nesse caso,
constituirá uma subcultura relativamente a esse mesmo contexto
mais vasto, que constituirá uma supercultura. Esta terminologia,
desenvolvida por Philip Bagby (3) permite-nos considerar a
Cultura Portuguesa nos seus dois aspectos fundamentais: como
subcultura da cultura europeia ocidental, e como supercultura
englobante e integrante, projectada para o Mundo recém-
descoberto, para as áreas que Gilberto Freyre designou, em título
de livro, como «O Mundo que o Português Criou».
A situação que o referido antropólogo e sociólogo brasileiro
estudou encontra-se hoje, sob numerosos aspectos, claramente
ultrapassada, mas a presença da Cultura Portuguesa como fac-
tor e componente de culturas, que possuem um vigor próprio
indiscutível, é um facto, que o estreitamento das relações com o
mundo de expressão oficial portuguesa testemunha, cimenta e
consolida.
Enquanto cultura, com identidade, capaz de assimilar
inovações trazidas através dos contactos, em especial com as
culturas mais próximas ou afins, particularmente aquelas que se
inserem na mesma supercultura, a Cultura Portuguesa
desenvolveu a força que chamarei centrípeta, ao passo que no
movimento de projecção a distância, acompanhando a Diáspora
dos portugueses, ela tem desenvolvido, e pode / deve continuar
a desenvolver uma força centrífuga.

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O movimento centrípeto é, evidentemente, uma constante


ao longo da História: se e quando cessasse por completo, a
própria cultura, como identidade evolutiva, chegaria ao fim. O
movimento centrífugo, pelo contrário, é particularmente óbvio
em determinados momentos da História, e a ele se prende, em
certa medida, o próprio futuro da Cultura e da Língua Portuguesas
no Mundo.
Até aqui, insisti sobretudo nos resultados da projecção
portuguesa no Mundo, que resultaram dos Descobrimentos
Marítimos, pondo ênfase na Cultura Portuguesa como
supercultura, e como veiculadora, intermediária de aculturações,
numa dimensão mundial, no desenvolvimento da força
centrífuga. Por esse facto incorri, de certo modo, numa inversão
cronológica, que agora me proponho remediar, transferindo a
nossa atenção para a Cultura Portuguesa como subcultura da
Cultura Europeia Ocidental, pelo menos por algum tempo.
Aliás, enquanto Estado, Portugal regressou ao espaço do
velho habitat, com as Ilhas Atlânticas. Mas o Mundo sofreu, no
decurso destes séculos, profundas transformações, a que os
portugueses não foram alheios, e que importa considerar mais
adiante, relativamente às «idades» da História, numa visão
actualizada.

4. Enquanto subcultura da Cultura Europeia Ocidental, a


Cultura Portuguesa despontou inserida numa vasta
movimentação sócio-cultural, na transição do chamado período
monástico para o período cavalheiresco, muito próximo, no
tempo, da chamada Renascença do Século XII, que entre as
suas manifestações inclui, precisamente, a ascensão das línguas
e literaturas românicas, o aparecimento do estilo gótico, a cultura
provençal, enfim, um conjunto de manifestações / expressões
de actividade humana, que entre nós se afirmam mais
nitidamente no século XIII. Dos substratos culturais, além dos
comuns a toda a área românica, poderão talvez salientar-se o
visigótico, o árabe e os núcleos de originalidade espalhados pela
faixa costeira.
Nesse mesmo século XIII, três portugueses se notabilizarão
a nível internacional, com raro e prolongado prestígio: Santo
António de Lisboa, autêntico pioneiro da vocação missionária e
universal dos portugueses; Pedro Hispano Portucalense, filósofo
e médico, cujas obras foram lidas e consultadas durante alguns
séculos, e que já dá lugar de relevo à observação e à experiência;
finalmente, o rei D. Dinis, que o povo cognominou de Lavrador,
por uma das tónicas da sua acção governativa, fundador da

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Universidade, cultor da poesia trovadoresca, e que impressionou


Dante a ponto de o ter colocado no Paraíso.
Não é possível, evidentemente, numa breve apresentação
como esta, historiar todas as grandes relações internacionais da
Cultura Portuguesa como subcultura da Cultura Europeia
Ocidental, aliás, ainda insuficientemente estudadas ou
esclarecidas em muitos pormenores. Só o período final da Idade
Média nos daria um material vastíssimo, dadas as implicações
culturais de factos de natureza política, militar, diplomática e,
evidentemente, económica. Assim, por exemplo, haveria que
referir as relações entre Portugal e a Inglaterra durante a Guerra
de Sucessão de Castela, com o Tratado de Tagilde e o início da
Aliança mais antiga do Mundo: haveria que recordar a inserção
da crise de 1383-85 no contexto da Guerra dos Cem Anos, e no
do Grande Cisma do Ocidente, ou ainda no das revoltas populares
que sacudiram a Europa na fase final do feudalismo. Por outro
lado, está ainda por esclarecer, no pormenor, o alcance das
consequências do casamento de D. João I com D. Filipa de
Lancastre. Mais conhecidas são as relações com a Flandres,
em torno do casamento de Isabel de Portugal com o Duque Filipe-
o-Bom, a que não faltou a viagem a Portugal de Jean van Eyck;
enfim, as relações de Portugal com a Hansa os interesses dos
financeiros europeus nomeadamente os Fugger, no
desenvolvimento dos Descobrimentos, as relações com a feitoria
da Flandres, que também tiveram aspectos culturais, por
exemplo, através da amizade entre o rico comerciante português
Rodrigo Fernandes e Albrecht Dürer; a introdução da Imprensa;
finalmente a gradual introdução do Renascimento em Portugal.
Enquanto subcultura da Cultura Europeia Ocidental, a Cultura
Portuguesa reflectiu, dando-lhes características próprias, os
grandes movimentos ideológicos, intelectuais, literários, artísticos
e científicos, adentro de condicionalismos próprios. Assim, por
exemplo, das complexas movimentações do movimento da
Reforma, foram mais marcados os efeitos da Contra-Reforma;
da união política com a Espanha, durante 60 anos, resultaram
tanto influências como manifestações de rejeição; movimentos
como o Iluminismo e, mais tarde, o Romantismo projectaram-se
entre nós com algum atraso, e consequentes distorções ou
afastamentos.
Ao longo de todo este processo, substratos e elementos ex-
tra-europeus nomeadamente através do exotismo, contribuíram
para a originalidade da Cultura Portuguesa, projectando-se
mesmo, algumas vezes, para outras subculturas do Ocidente
Europeu, sobretudo, como seria de esperar durante o

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Romantismo, época em que assuntos, temas e motivos


portugueses conheceram larga popularidade, em diversas
línguas.
A força centrípeta, trabalhando os elementos inovadores e
assimilando-os aos tradicionais, dotou a Cultura Portuguesa de
originalidade, que foi investigada, nas manifestações literárias
sobretudo, por especialistas que produziram trabalhos muito
fecundos. Recordem-se aqui, a título de exemplo, os nomes de
Fidelino de Figueiredo, Aubrey Bell, João de Castro Osório,
Hernani Cidade, Orlando Ribeiro, Jorge Dias, Jacinto do Prado
Coelho, Maria de Lourdes Belchior ¯ para citar apenas os do
nosso século, e incompletamente. Para os seus trabalhos remeto
todos os que estiveram verdadeiramente interessados no estudo
da Cultura Portuguesa e da Literatura Portuguesa.
Quanto à Arte ¯ Pintura, Escultura, Arquitectura e Artes ditas
Decorativas (das quais salientaria a do azulejo e a do mobiliário)
¯ coloca problemas específicos, além dos de integração na
perspectiva cultural sintética. Recordo aqui os estudos de
Reynaldo dos Santos, Santos Simões, Robert Smith, José
Augusto França e ainda dos professores Mário Chicó e Jorge
Henrique Pais da Silva, que tão bem sabiam transmitir o seu
entusiasmo pelo objecto estudado.
Relativamente à Arte, não quero deixar de salientar um ponto,
muito importante no contexto da perspectiva que procuro aqui
apresentar-vos: se é certo que a Arte Manuelina está intimamente
ligada aos Descobrimentos, é a Arte Barroca aquela que assinala
verdadeiramente a presença portuguesa nas áreas Luso-
Tropicais, o que equivale a dizer, na projecção mundial da Cultura
Portuguesa. De certo modo, o Manuelino representa a força
centrípeta, enquanto o Barroco representa a força centrífuga.

5. Resta-me apontar o significado da participação da Cultura


Portuguesa a par do papel sócio-económico-político da expansão
portuguesa, na passagem de uma grande «Idade» da História
para outra, e isto segundo mais de um critério.
Consideremos, em primeiro lugar, com um grupo de
historiadores anglo-saxónicos (a partir de uma sugestão do
comentador político W. Lipmann) que o Mundo conheceu uma
fase Mediterrânica (do Egipto, da Grécia, de Roma), depois uma
fase europeia, à qual se seguiu uma fase atlântica. E desde logo
evidente que a passagem da fase europeia para a fase atlântica
arrancou graças aos povos da Península Ibérica, nomeadamente,
o Povo Português.

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Se, por outro lado, com o historiador indiano K. M. Panikar,


entendermos que os períodos da História devem ser revistos,
nas suas balizas e designações convencionais e, com ele, que A
Idade Moderna começou em 1498 e terminou em 1947 (isto é,
que a Idade Moderna foi a Idade de Hegemonia mundial da
Europa, iniciada com a chegada de Vasco da Gama à Índia e
encerrada, simbolicamente, com a saída da Índia das autoridades
britânicas), temos de novo em evidência o papel histórico do
Povo Português, num conjunto de factos históricos de profundas
implicações culturais.
Mas se, com o Professor Orlando Ribeiro, em parte apoiado
em Toynbee, a expansão portuguesa ¯ e a correspondente
mudança de dimensão da cultura portuguesa ¯ contribuiu para o
início de uma Segunda Idade do Mundo, de novo sobressai o
significado da participação portuguesa nos destinos do nosso
planeta. Em paráfrase livre, vejamos um pouco a que
corresponde esta noção das «três idades» do Mundo, ou mais
exactamente, «Três Imagens do Mundo», na terminologia de O.
Ribeiro, em artigo que data de 1960.
Numa primeira idade, as civilizações existiram (nasceram,
cresceram, declinaram e muitas vezes extinguiram-se) em
círculos relativamente fechados. Uma ou outra conheceu
expansão territorial notável, apogeu ou duração mais longa, mas
o isolamento no espaço levou, geralmente, à sua extinção, sem
deixar linha de continuidade. Um dos grandes factores de
isolamento, porque obstáculo limítrofe, foi o Oceano Atlântico.
Na segunda idade deu-se a abertura, por «mares nunca de
antes navegados» e dando «novos mundos ao Mundo»,
modificando a própria imagem do Mundo (4) e tornando possível,
por uma contribuição directa, um repensar do Universo. Daí por
diante, isto é, depois de completado o ciclo dos grandes
Descobrimentos marítimos portugueses e espanhóis, pôde dizer-
se, parafraseando Giordano Bruno, que o Universo se tornou
maior (porque infinito) e o Mundo se tornou mais pequeno (porque
conhecido, percorrido, atingido nos seus limites, e relativizado).
Esta segunda idade é, pois, a da interpenetração gradual de
continentes e respectivas culturas. A hegemonia política,
económica e cultural ¯ que nem sempre, infelizmente, foi exercida
com o devido respeito pelas culturas autóctones ¯ da Europa
sobre os povos e nações dos restantes continentes conduziu, no
caso português sobretudo, a uma interpenetração, ou aculturação,
na qual os portugueses se revelaram com frequência predispostos
a aprender da experiência local, a colaborar nos referidos
processos de aculturação (Gilberto Freyre).

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A terceira idade do Mundo é aquela em que vivemos desde há


algum tempo e corresponde à Idade Contemporânea, dos
conceitos de K. M. Panikar e Geoffrey Barraclough, por exemplo.
A ascensão do chamado Terceiro Mundo é apenas um dos grandes
aspectos e acontecimentos que assinalam o início desta nova era,
marcada pelos desencantos e consequências da História recente,
sob a ameaça da auto-destruição da Humanidade, e em que a
exploração do espaço exterior nos recorda a exploração dos mares
na outra fase de grande mudança. A participação sem precedentes
dos jovens na vida política das nações é mais um traço distintivo.
O desenvolvimento espectacular dos meios de comunicação so-
cial, com a consequente repercussão, ou possibilidade de
repercussão, quase instantânea, de acontecimentos locais a nível
mundial, é outra característica fundamental do nosso tempo, ligada
a uma interpenetração recíproca das culturas mais variadas e mais
longínquas entre si.
Tendo desempenhado um papel importante, a nível mundial,
na passagem da Idade Média para a Idade Moderna recém-
terminada (pelo critério aqui seguido), ou da idade «fechada» para
a idade da «abertura», Portugal, o seu povo e a sua cultura entram
na nova fase com um regresso do Estado português à área de
partida, com uma presença bem marcada em diversos pontos do
Globo, e com uma Diáspora, motivada por problemas do mercado
laboral, que coloca trabalhadores portugueses em diversos países,
de vários continentes, dando o seu contributo, cada vez mais
apreciado, aliás, para as sociedades em que constituem elementos
activos, produtivos, economicamente válidos.

6. Nas circunstâncias actuais, chegou o tempo de o Povo


Português repensar a sua cultura, tomar plena consciência dela,
das suas forças centrípeta e centrífuga, postas à prova no passado,
para, assumindo o passado, criticamente, mas sem complexos,
consciencializar a sua identidade profunda e, com ela, construir o
futuro.
A História da Cultura Portuguesa é, mais do que muitas outras,
a história de encontros enriquecedores, à escala universal. Na
assimilação de valores, importa que a força centrípeta continue a
exercer-se, para a preservação possível e desejável da identidade
cultural e das reservas morais daí resultantes. Mas importa manter,
ou porventura criar uma força centrífuga ¯ no sentido figurado do
presente contexto ¯ que lance para o exterior os valores humanos,
de carácter universalista, que tantas vezes demonstrámos.
Diversas comunidades de descendentes de portugueses, em
várias partes do Mundo, manifestam de modo crescente a sua

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consciência das Raízes portuguesas, independentemente da sua


plena integração nas sociedades onde encontraram acolhimento.
Nas suas melhores expressões, a Cultura Portuguesa afirmou-
se no encontro com outras, e não contra as outras. Assim também,
a consciência da origem étnico-cultural portuguesa subjacente
em qualquer ponto da Terra, tal como o laço cultural que
representa a língua portuguesa como língua comum, deverão
constituir um elo de solidariedade a nível universal, sem prejuízo
das solidariedades locais ou nacionalmente adquiridas.
Em jeito de conclusão, gostaria de manifestar a esperança
de que um encontro com a Cultura Portuguesa ¯ na sua Arte, na
sua Literatura, mas, acima de tudo, no convívio com a nossa
gente ¯, sirva para estabelecer, ou fortalecer, laços de
compreensão, respeito mútuo e verdadeira amizade, na melhor
tradição do Povo Português.

* Professor Catedrático da Faculdade de Letras da


Universidade Clássica de Lisboa. Presidente do Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa (ICALP) de 1981 a 1984, ano do
seu falecimento.
** Lição inaugural do Curso de Língua e Cultura Portuguesa
para estrangeiros, proferida na Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, no ano de 1982.

Notas
(1) P. H. Chombart de Lowe, cit. por M. de Lourdes Belchior, H & L II.
(2) Adaptado de Kleber & Kluckhon.
(3) Culture and History, Londres, Macmillan, 1958.
(4) Cf. W. G. L. Randles.

Referência
MOSER, F. M. - Para uma Perspectiva da Cultura Portuguesa. Revista
ICALP, vol. 1, Março de 1985, 23-32.

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