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RESUMO
Tendo em vista a alta carga de intertextualidade da obra V for Vendetta na última
década dos movimentos sociais no Brasil, este artigo tem por objetivo analisar a
graphic novel de Alan Moore e David Lloyd. Busco compreender elementos em sua
composição que justifiquem a potencialidade desta obra de ficção literária de ecoar
recorrentemente nas enunciações de revoltosos. Para isso, analiso três aspectos
presentes no corpus: o contexto de produção, descrito pelos autores; a construção do
protagonista V, por meio da figura de Guy Fawkes; e o embate principal entre as
ideologias do fascismo e do anarquismo. Como enquadramento teórico-analítico, faço
uso da Filosofia do Dialogismo e de alguns de seus conceitos-chaves, descritos pelo
Círculo de Bakhtin: gênero do discurso, enunciado, cronotopo e heterodiscurso.
PALAVRAS-CHAVE: V for Vendetta; Dialogismo; Enunciado; Anarquismo
ABSTRACT
Due to the high intertextuality of the work V for Vendetta in the last decade of social
movements in Brazil, this article aims to analyze the graphic novel by Alan Moore and
David Lloyd. I seek to understand elements in its composition that justify the potential
of this work of literary fiction of echoing recurrently in the enactments of rebels. In
order to do this, I analyze three aspects in the research corpus: its production context
described by the authors; the processo f creation of the V character, through Guy
Fawkes’ story; and the main clash between the ideologies of fascism and anarchism. As
a theoretical-analytical framework, I use the notion of Dialogism and some of its key
concepts, described by the Circle of Bakhtin: speech genre, enactment; chronotope and
heterodiscourse.
KEYWORDS: V for Vendetta; Dialogism; Enactment; Anarchism
Introdução
1
discurso antes de se cumprir o mandado judicial de prisão. Dentre outros aspectos, o
trecho a seguir dialoga com noções que parecem já termos percebido ou ouvido em
outros contextos:
Não adianta tentar acabar com as minhas ideias, elas já estão pairando
no ar e não tem como prendê-las. Não adianta parar o meu sonho,
porque quando eu parar de sonhar, eu sonharei pela cabeça de vocês e
pelos sonhos de vocês. Não adianta achar que tudo vai parar o dia que
o Lula tiver um infarto, é bobagem, porque o meu coração baterá
pelos corações de vocês, e são milhões de corações. Não adianta eles
acharem que vão fazer com que eu pare, eu não pararei porque eu não
sou um ser humano, sou uma ideia, uma ideia misturada com a ideia
de vocês. (Luiz Inácio Lula da Silva in: FOLHA, 07 abr. 2018).
Estas palavras que não nos são estranhas – “não sou um ser humano, sou uma
ideia” – me fazem percorrer uma viagem, me levando até 1988, quando Alan Moore e
David Lloyd ([1982] 2005) finalizaram a obra V for Vendetta na Inglaterra. É icônica a
cena em que o herói V é descoberto em seu esconderijo pelo chefe de investigações do
governo, Eric Finch. Ao entrar em confronto com Finch e ser atingido por tiros, V
responde: “então, você achou que ia me matar? Não há carne ou sangue sob essa capa.
Apenas uma ideia. Ideias são à prova de balas” (MOORE & LLOYD, [1982] 2005) 1. É
evidente que a escolha destas palavras pelo ex-presidente também remete a outro
momento, especificamente em junho de 2013, quando esta personagem e esta frase
(“ideias são à prova de balas”) foram recontextualizadas muitas vezes por manifestantes
no Brasil. Reviver os ideais da obra V for Vendetta parece ser uma tentativa de reanimar
o espírito que mobilizou os jovens a ocuparem as ruas do país e produzirem um dos
maiores movimentos da atualidade.
Esta escolha lexical estratégica, além de mostrar que junho de 2013 continua
vivo no imaginário da população brasileira, também nos faz perceber que V, uma
personagem criada há quase quarenta anos, continua a tomar forma em enunciações
revoltosas2. A obra produzida na Inglaterra dos anos 1980, ainda que distante no tempo
1
No inglês: “There, did you think to kill me? There's no flesh or blood within this cloak to kill. There's
only an idea. Ideas are bulletproof”. Todas as traduções apresentadas neste artigo, quando não sinalizadas,
são de minha autoria.
2
Além do discurso de Lula da Silva, a execução da vereadora Marielle Franco após sair de uma palestra
no Rio de Janeiro, no dia 14 de março de 2018, também mobilizou frases como “somos milhões de
Marielles”, “Marielle presente” e “Marielle virou semente”. O Deputado Federal Jean Wyllys, amigo e
companheiro de partido, durante sessão na câmara dos deputados em março de 2018, ao entregar relatório
para abertura de comissão externa de investigação do crime, disse: “Estamos aos pedaços agora, mas a
gente vai se juntar e a gente não vai esquecer. As ideias são à prova de balas” (In: XAVIER, 15 mar.
2
e no espaço das manifestações mencionadas, nos faz refletir sobre como o cronotopo
(BAKHTIN, [1975] 2018) – em termos amplos, a relação indissociável entre as
categorias de tempo e espaço – de uma história produzida em um futuro distópico tem
algo a dizer sobre os últimos protestos no Brasil. Isto é, o que justifica a potência da
obra “V de Vingança” de mobilizar até hoje enunciados revoltosos?
Este artigo tem por objetivo, portanto, reunir elementos que possam nos ajudar a
compreender por que a personagem V e a obra V for Vendetta (MOORE & LLOYD,
[1982] 2005)3 têm sido utilizados frequentemente em contextos de revoltas no Brasil e
no mundo. Para isso, analiso discursivamente as escolhas políticas da obra “V de
Vingança” de Alan Moore e David Lloyd, focando em 3 elementos de análise: o
contexto de produção da obra, a construção da personagem “V” em torno da figura
histórica de Guy Fawkes, e o principal embate ideológico da narrativa que se dá entre as
ideologias do anarquismo e do fascismo. Como enquadramento teórico-analítico, faço
uso da noção de Dialogismo e dos conceitos de gênero do discurso, enunciado,
cronotopo e heterodiscurso.
2018).
3
A escolha da edição em inglês se justifica pela obra ter sido popularizada na juventude geek,
notadamente globalizada, que costuma acessar as literaturas de super-heróis em suas versões originais.
3
Segundo Bakhtin, os gêneros do discurso são “tipos relativamente estáveis de
enunciados” que organizam os campos de uso da língua (BAKHTIN, [1953] 2016,
p.12). Nesse sentido, a literatura contém uma diversidade de gêneros discursivos, que
possuem cada qual formas próprias e variadas de construção de discursos. A graphic
novel, um tipo de história em quadrinhos com enredo unificado, é marcada
principalmente pelas ilustrações sequenciais, diálogos em balões e divisão em capítulos.
A graphic novel se distingue dos quadrinhos convencionais no trato de temáticas mais
sérias e complexas, por utilizar uma multiplicidade de focos narrativos e por produzir
uma análise psicológica densa dos seus personagens4. Segundo Czizeweski (2014):
O termo Graphic Novel foi cunhado por Will Eisner porque este
pensava que a denominação comics, termo pejorativo que englobava
qualquer produção de quadrinhos da época, não dava mais conta de
descrever o trabalho que ele vinha fazendo, que tratava de temas
sérios e complexos, além de nada jocosos. A tecnologia cada vez mais
avançada, a maior abrangência dos meios de comunicação, formando
intrincados mosaicos de informação, com cada vez mais fontes, mais
velocidade e mais intensidade, foram absorvidas e reproduzidas pela
linguagem das Graphic Novels. Inseridos no contexto da alta
tecnologia dos videoclipes, da computação gráfica e do controle
remoto, as Graphic Novels passaram a utilizar uma multiplicidade de
focos narrativos, ampliaram a densidade psicológica dos personagens,
rompendo com a linguagem tradicional das HQs e ampliando a
velocidade dos fatos e a quantidade de informações veiculadas
(CZIZEWESKI, 2014, p. 5)
4
de se produzir uma graphic novel na década de 1980. Este é um aspecto importante da
indústria das histórias em quadrinhos (HQs) que está em constante interface com as
outras mídias (GUIMARÃES, 2011).
Enquanto obra situada em um determinado tempo e espaço, V for Vendetta
(MOORE & LLOYD, [1982] 2005), em uma visão dialógica, pode ser considerada um
enunciado. Isto é, a unidade fundamental em que manifestamos a comunicação, e que se
delimita por suas marcas de alternância dos sujeitos do discurso (BAKHTIN, [1953]
2016). No caso de V for Vendetta, a história foi publicada em fascículos entre os anos
de 1982 e 1989, com a edição completa em 1990. Este princípio absoluto e esse fim
absoluto do enunciado possui suas particularidades na obra de Moore e Lloyd, já que o
sexto fascículo, publicado em 1985, esperou cerca de cinco anos para prosseguir em
outra editora. As primeiras seis edições, publicadas entre 1982 e 1985 na revista
britânica Warrior da editora Dez Skinn, não tiveram continuidade devido ao
cancelamento da revista em 1985. Neste hiato de cinco anos, Moore escreveu outras
obras importantes, incluindo Watchmen, publicada em 1986 pela DC Comics. Em 1988,
V for Vendetta foi retomada na revista Vertigo em colorido, a qual publicou mais quatro
edições que foram finalizadas em 1989.
É importante observar que esta espera de cinco anos teve repercussão direta
sobre os ecos discursivos que se desenvolveriam a partir de duas temporalidades
distintas. Nas primeiras edições, as eleições legislativas se aproximavam e Moore
acreditava em uma vitória óbvia do partido trabalhista inglês na Câmara dos Comuns, o
que o fez rascunhar inicialmente um enredo com um tom mais otimista 5 para o futuro da
Inglaterra (MOORE & LLOYD, [1982] 2005). Com a vitória expressiva do partido
conservador, liderado por Margareth Thatcher, Moore repensou o enredo da história e o
tom pessimista assumiu a direção da sua narrativa. Em 1983, os conservadores não
apenas ganharam novamente as eleições, pois já haviam vencido a de 1979, como
também ampliaram seus assentos na Câmara.
A obra de Moore atravessa, portanto, todo o período de força do governo de
Thatcher, que, mesmo com um elevado quadro de desemprego, conseguiu se reeleger
por quatro mandatos consecutivos. O caso de Margareth Thatcher foi um dos mais
5
Inicialmente, Moore pensou em escrever sobre um futuro baseado na vitória do partido trabalhista
inglês, que começaria com a remoção de todos os mísseis norte-americanos de solo britânico, prevenindo
a Grã-Bretanha de se tornar um alvo de uma guerra nuclear (MOORE; LOOYD, [1982] 2005, p. 272).
5
extremos da conjuntura neoliberal da década de 1980, pela pressão que conseguiu
aplicar sobre as políticas assistenciais e sistemas “corporativistas” de relações
industriais, que haviam fornecido proteção substancial aos setores mais fracos dos
trabalhadores. Cabe lembrar como a política inglesa conservadora rachou a classe
trabalhadora e os sindicatos, desenvolvendo um “livre mercado” que reviveu a velha
divisão vitoriana de “pobres respeitáveis” e “não respeitáveis” (HOBSBAWN, 1995,
p.330). O individualismo de mercado se desenvolveu com tal intensidade e respaldo que
foi sintetizado pela frase da ex-primeira ministra: “Não há sociedade, só indivíduos”
(HOBSBAWN, 1995, p.330).
Desta atmosfera pessimista ligada à ascensão da via conservadora neoliberal,
surgiram os primeiros rascunhos de V for Vendetta (MOORE & LLOYD, [1982] 2005)
que se desenvolveram acompanhando as mudanças na política inglesa. Nas últimas
edições, este clima se intensificou, mas a partir do desenho de outras conjunturas, e,
então, certo grau de amadurecimento político é admitido pelo autor:
6
No inglês: “It's 1988 now. Margaret Thatcher is entering her third term of office and talking confidently
of an unbroken Conservative leadership well into the next century. My youngest daughter is seven and the
tabloid press are circulating the idea of concentration camps for persons with AIDS. The new riot police
wear wear black visors, as do their horses, and their vans have rotating video cameras mounted on top.
The government has expressed a desire to eradicate homosexuality, even as an abstract concept, and one
can only speculate as to which minority will be the next legislated against. I'm thinking of taking my
family and getting out of this country soon, sometime over the next couple of years. It's cold and it's mean
spirited and I don't like it here anymore. Goodnight England. Goodnight Home Serve and V for Victory.
Hello the Voice of Fate and V for Vendetta”.
6
Moore revela ter se arrependido parcialmente de construir a situação
apocalíptica, a partir de uma guerra nuclear (MOORE & LLOYD, [1982] 2005, p.6), o
que provavelmente seria um resquício do sentimento de bipolaridade dos anos de
corrida armamentista. Em 1988, grande parte da “paranoia nuclear” (HOBSBAWN,
1995) da Guerra Fria já estava se dissipando. Não obstante a mudança do entorno social
da obra e da percepção do autor sobre os acontecimentos, V for Vendetta (MOORE &
LLOYD, [1982] 2005) manteve uma linha narrativa crítica ao panorama político que se
desenvolvia na Inglaterra, desde a primeira edição até a última (CIZEWESKI, 2014).
A postura crítica da narrativa revela sua condição dialógica de produção de
sentidos. O diálogo que a obra de Moore e Lloyd travou com os discursos
conservadores e neoliberais característicos dos anos 1980 era hostil, dissonante e
combativo. Este estado de permanente tensão entre os enunciados é a base do
dialogismo, pois “só da diferença nasce o sentido” (SOBRAL, 2009, p.34). Apenas da
luta entre os discursos, da instabilidade característica da linguagem, é que se produz
uma relativa estabilidade de sentidos. A obra V for Vendetta (MOORE & LLOYD,
[1982] 2005) não é, senão, uma tentativa de construir novos significados para o agir
político. É uma resposta que busca confrontar os valores conservadores que estavam
operando na esfera discursiva da política inglesa.
7
De forma geral, a população é bastante conformada com a situação de privação de
liberdade e de vigilância e, por sua vez, a propaganda do Estado ajuda a manter este
status quo. Existem cartazes espalhados nas ruas com o lema do governo (“Força
através da pureza, pureza através da fé”8) e um único canal de informação televisivo e
radiofônico, chamado de a “voz do destino” (voice of fate).
Deste pano de fundo sombrio e asfixiante, surge o protagonista V: um homem de
máscara, traje preto, capa e chapéu cônico. Um aspecto importante da composição da
personagem foi a escolha de suas nuances pessoais. O próprio Moore define não ter sido
fácil de compor, especialmente porque ele e Lloyd queriam fugir de uma “imagem
clichê” de super-herói (MOORE & LLOYD, [1982] 2005, p.274). Segundo Moore, a
grande virada da personagem surgiu de uma ideia de Lloyd enviada por carta:
Script: [...] Eu estava pensando, por que não retratamos ele como um
Guy Fawkes ressuscitado com uma daquelas máscaras de papel
machê, de capa e chapéu cônico? Ele ficaria muito bizarro e daria a
Guy Fawkes a imagem que ele merece todos esses anos. Nós não
deveríamos queimar o cara todo dia 5 de novembro, mas celebrar sua
tentativa de explodir o Parlamento!9 (LLOYD in MOORE & LLOYD,
[1982] 2005, p. 274)
8
O grupo elaborou um plano que foi operacionalizado no subterrâneo do palácio e
Guy Fawkes, especialista em bombas, ficou a cargo de montar os explosivos da
operação. Apesar de toda a engenhosidade, o plano foi descoberto e Guy Fawkes foi
encontrado no local ao lado de um arsenal de detonadores. Quando foi capturado, em 5
de novembro de 1605, Guy Fawkes foi torturado, sentenciado à morte e esquartejado
como castigo do soberano (FRASER, 1996).
Com o passar dos anos, este episódio passou a ser lembrado pela tradição de
várias partes da Grã-Bretanha como o Dia da Traição da Conspiração da Pólvora
(Gunpowder Treason Day) e a ser celebrado como uma vitória da Coroa. A
historiografia (CRESSY, 1992) reporta que as festividades do dia cinco de novembro
passaram por diversas modificações, inclusive por proibições, devido ao perigo dos
fogos de artifício. Por muitos anos, antes das efígies de Guy Fawkes, outras figuras
eram queimadas, como a imagem do papa e da prostituta da babilônia, alimentando um
sentimento puritano e anti-católico. Apenas no século XVIII, a data passaria a ser
chamada de noite de Guy Fawkes (CRESSY, 1992).
Na Inglaterra, este dia é conhecido, de forma geral, como a Noite das Fogueiras
(Bonfire Night) e é celebrado anualmente em muitas cidades do país. O Guy Fawkes
produzido por David Lloyd e Alan Moore ([1982] 2005) é, assim, uma resposta de
ressignificação da história de Guy Fawkes, incorporado na máscara da personagem. A
máscara de Guy Fawkes, usada por V, é branca de bigode preto, com bochechas rosadas
e sorriso enigmático de tom levemente irônico.
9
Fig. 1 – O protagonista V
10
No inglês: “Remember, remember the fifth of november, the gunpowder treason and plot. I know of no
reason, why the gunpowder treason should ever be forgot”.
10
explodindo prédios, constrói uma áurea de insanidade essencial para ilustrar o clima
desejado pelos autores.
A estranheza da personagem cresce progressivamente e é explicada pelo
histórico de tortura e perseguição pelo qual passa. V é um homem que foi usado como
cobaia científica por anos no assentamento de Larkhill, junto com pessoas de outras
minorias sociais. Deste período, se justifica a escolha de seu codinome: V, em algarismo
romano, era o número do quarto da personagem.
Ao seu lado, o protagonista angaria o apoio de uma menina de 16 anos, Evey
Hammond, que atua como personagem coadjuvante na história. Evey, no começo da
obra, trabalha para o departamento de munições do governo, é bastante ingênua e teve
seus pais mortos em decorrência de ações do governo. Ao tentar se prostituir por passar
dificuldades financeiras, Evey é violada sexualmente pelos “fingermen” (espécie de
policiais) e é salva por V, passando a colaborar com suas ações terroristas.
O desenvolvimento da personagem Evey é um dos aspectos mais interessantes
da obra. De pessoa ingênua e amedrontada pelo regime, a personagem vai se
transformando, conforme as ações violentas do Estado, e a influência dos diálogos com
o protagonista. É como se Evey representasse uma cidadã comum que, ao entrar em
contato com o ideal anarquista, defendido por V, se transformasse progressivamente em
uma insurgente rebelde.
O momento de inflexão da personagem ocorre após passar por uma série de
sessões de tortura, na qual Evey resiste aos medos e abusos e não delata seus
companheiros. Sob um telhado em uma noite chuvosa, esta transformação se materializa
na passagem em que assume estar “tudo diferente” (MOORE & LLOYD, [1982] 2005,
p.172), ao que V lhe responde “aproveite. Envolva [este sentimento] em seus braços.
Enterre em seu coração até o punho. Fique atravessada, transfigurada para
sempre”(MOORE & LLOYD, [1982] 2005, p.172). A partir deste momento, Evey se
torna uma personagem mais endurecida e a consequente transformação de suas roupas e
cabelo dão sinais visuais da mudança de sua identidade. Evey parece metaforizar o povo
enquanto aprendiz de sua própria liberdade.
11
Enquanto enunciado, a obra de Moore e Lloyd ([1982] 2005) está “plena de
tonalidades ideológicas” (BAKHTIN, [1953] 2016). Além de expressar o estilo, os
sentidos, os valores e os matizes dados por seus autores, V for Vendetta (MOORE &
LLOYD, [1982] 2005) é a expressão responsiva de um embate ideológico construído
entre duas forças políticas: o fascismo e o anarquismo. Nesta arena de forças, a
orientação política do protagonista V é de contorno fortemente anarquista, com caráter
de violência em grande parte da obra. O objetivo de V é destruir o Estado fascista inglês
em todos os seus órgãos – estes construídos como entidades que usurpam o povo. A
palavra “anarquia” é citada do começo ao fim do livro e há um quadrinho particular que
demonstra a visão da personagem sobre isso. Trata-se de uma conversa que V trava com
a estátua da justiça que fica no topo do edifício do tribunal central criminal em Londres,
popularmente conhecido como Old Bailey.
Nesta cena, V falando consigo mesmo, dubla a voz da estátua e cria um diálogo
em que a justiça é personalizada como companheira amorosa que o traiu. Há uma certa
dose de heteronormatividade e misoginia na cena (já que o mito da mulher frágil e
ingênua surge aqui e em alguns momentos da composição da obra, inclusive na
personagem Evey), porém a intenção metaforizada possui potencial como mensagem
política. Gesticulando em direção à estátua, V acusa a justiça de sempre ter uma “queda
por um homem de uniforme” (MOORE & LLOYD, [1982] 2005, p. 40). O clima de
decepção sombria que ilustra a cena segue da afirmação de um novo amor por V, cujo
nome seria “anarquia” e ela o teria ensinado “mais como uma dama do que você [a
justiça] jamais fez”11 (MOORE & LLOYD, [1982] 2005, p. 41).
11
No inglês: “[...] more as a mistress than you ever did”.
12
Fig. 2 - Diálogo com a justiça
Muito da filosofia que se encontra aqui pode ser retirada do anarquismo clássico,
que se desenvolveu desde o século XIX, no cerne das lutas dos movimentos operários.
O descrédito total com o Estado moderno e seus aparatos de poder, observado na obra,
pode ser recuperado em algumas ideias de Bakunin ([1873] 1990):
12
No inglês: “No state, howsoever democratic its forms, not even the reddest political republic – a
people’s republic only in the sense of the lie known as popular representation – is capable of giving the
people what they need: the free organization of their own interests from below upward, without any
interference, tutelage, or coercion from above. That is because no state, not even the most republican and
democratic, not even the pseudo-popular state contemplated by Marx, in essence represents anything but
government of the masses from above downward, by an educated and thereby privileged minority which
supposedly understands the real interests of the people better than the people themselves. Thus it is
absolutely impossible for the propertied and governing classes to satisfy the people’s passion and the
people’s demands. One instrument remains – state coercion, in word the state, for the state means
coercion, domination by means of coercion, camouflaged if possible but unceremonious and overt if need
be”.
13
Tanto em Bakunin ([1873] 1990), quanto em Moore & Lloyd ([1982] 2005),
Estado e coerção, Estado e violência caminham juntos. São indissociáveis. Do ponto de
vista de Bakunin ([1871] 2006), a justiça, enquanto subordinada ao aparato estatal,
apenas funciona para manter a classe privilegiada no poder, e a liberdade política, ou
seja, a liberdade dentro do Estado é inexoravelmente uma “mentira” (BAKUNIN,
[1873] 1990, p. 217). V for Vendetta (MOORE & LLOYD, [1982] 2005) trabalha ao
longo das páginas com a noção de que o governo produz um jogo de linguagem
pernicioso, que promete garantir segurança e ordem quando, na verdade, fornece a todos
uma grande ilusão.
Neste sentido, embora não seja citada diretamente na obra, o protagonista atua
sob o que me parece ser uma performance de ação direta, uma prática de resistência
anarquista que tem se desenvolvido conceitualmente desde o começo do século XX por
William Mellor. Esta estratégia parte da noção fundamental de Bakunin de que a “ânsia
de destruir é também uma ânsia criativa” (BAKUNIN, [1842] 1971) 13. Assim, caberia
aos sujeitos a aplicação de práticas que reajam à violência do Estado por meio do caos
destrutivo, que se utilizem de recursos como os de táticas anarquistas da atualidade: uso
de materiais inflamáveis, coquetéis molotov, algumas ações de hackativismo, etc. Esta
forma de ação pode ser observada em uma cena onde V se reporta a Evey com um
dispositivo explosivo na mão dizendo que a “anarquia usa duas faces: uma criadora e
outra destruidora”14 (MOORE & LLOYD, [1982] 2005, p. 222).
13
A citação se refere à passagem do ensaio A Reação na Alemanha, publicado na Deutsche Jahrbücher,
sob o pseudônimo de Jules Elysard, em 1842: “Let us therefore trust the eternal Spirit which destroys and
annihilates only because it is the unfathomable and eternal source of all life. The passion for destruction is
a creative passion, too!” (BAKUNIN, [1842] 1971, p.57).
14
No inglês: “Anarchy wears two faces: both creator and destroyer”.
14
Fig. 3 - Anarquia e a face destrutiva-criativa
15
Orwell, quadros surrealistas de Max Ernst, a música de Tchaikovsky, o teatro burlesco
do Vaudeville, quadrinhos de Judge Dredd, entre outras citações de rock, jazz, de
literaturas vastas (GUIMARÃES, 2009). Todos estes ecos não só conferem uma
atmosfera de intelectualidade para a personagem, como também demarca uma posição
de resistência cultural ao regime totalitário que busca censurar vozes sociais e
monologizar os discursos.
Dentre muitos aspectos do totalitarismo, o mais característico, segundo Hannah
Arendt, é desencadeado “quando toda a oposição organizada já desapareceu e quando o
governante totalitário sabe que já não precisa ter medo” (ARENDT, 2013, p.345). A
supressão das vozes dissonantes é condição essencial do regime totalitário fascista, pois
a promessa da unidade pela pureza da raça só se concretiza enquanto violência que
silencia e tenta suprimir a diferença. O partido que Moore desenvolve em V for
Vendetta (MOORE & LLOYD, [1982] 2005) recupera muitos dos discursos do
fascismo de Mussolini, o nacionalismo que ele reitera com a saudação “Inglaterra
prevalece” (England Prevails), misturado com a aliança ao cristianismo e ao
militarismo. O signo da pureza e da perseguição às minorias remonta ao racismo
arianista de Hitler, o qual em V for Vendetta se dirige principalmente às pessoas de
oposição, negros, paquistaneses e homossexuais. Há uma perseguição constante à arte e
a literatura, as quais são censuradas ou perdidas no controle e centralização da
informação.
16
Fig. 4 – Fascismo
17
o centro de sua enunciação. “O simples fato de alguém enunciar algo como ‘a verdade’,
já pressupõe a existência de alguma outra ‘verdade’ possível” (SOBRAL, 2009, p. 37).
Sob uma perspectiva dialógica, a comunicação é demandante da presença do outro, da
presença da diferença, para produzir novos discursos.
A tentativa de se colocar enquanto verdade única e incontestável, enquanto povo
que possui uma raiz forte e impenetrável, é mais uma proposta retórica, do que
simplesmente uma possibilidade de existência. Para tentar justificar e ilustrar esta
imagem de nação fortificada e autossuficiente, o ideário fascista precisou ir buscar na
Antiguidade uma noção de desenvolvimento único da história nacional, descartando a
influência de outros povos na consolidação do que viria a se tornar a Itália fascista
(GUARINELLO, 2013). É mais um esforço de projetar uma história única que nunca
existiu do que, de fato, uma compreensão ampla de como se produziu a multiplicidade
dos processos históricos dos povos. A supressão de outras verdades, outros sujeitos e
outras culturas, suprimiria a interação pela diferença, o que quebraria a historicidade da
linguagem e, por consequência, qualquer possibilidade de existir linguagem.
A retórica do fascismo e a sua existência, enquanto tal, produz uma
sistematização da política cuja força é também sua fraqueza. Ao apostar no apagamento
da heterogeneidade do discurso, isto é, das milhares de linhas dialógicas e alheias que
compõem um objeto do discurso (BAKHTIN, [1975] 2015)17, o fascismo cria o próprio
terreno da reação e da responsividade a esse estado de coisas. Por isso, o “gelo é
traiçoeiramente fino”, porque, por mais que se tente, a diferença nunca pode ser
totalmente apagada, as vozes sociais vão continuar se confrontando e se entrecruzando,
ainda que não estejam articuladas ou organizadas para este fim.
18
efervescência do encontro das vozes sociais e pela natureza ativamente responsiva da
linguagem.
Isto não significa perder de vista que a retórica do fascismo é palpável enquanto
violência que produz materialização nos corpos submetidos a ela. Esta percepção da
aparência do fascismo, enquanto práticas que refratam o mundo real, simbolicamente
real, aparece nos contornos dados por Moore & Lloyd ([1982] 2005) que desenham a
imposição do totalitarismo enquanto discursos que estão aí, que podem emergir em
qualquer evento. Trata-se de uma visão muito atual que dialoga com a ascensão da nova
direita na Europa e no Brasil, onde vemos surgir discursos conservadores, anti-
igualitários e xenofóbicos.
A resposta a esse mundo fascista na obra V for Vendetta (MOORE & LLOYD,
[1982] 2005) surge, então, da proposta de revolução destrutiva e criativa que perpassa o
anarquismo. Nos quadrinhos, toda a ação da personagem se dá em direção a minar os
principais pontos de concentração de poder, gerando caos e confusão. Do caos, a
personagem espera que surja a revolução espontânea, a partir da ação voluntária dos
sujeitos. Parte desta concepção de revolução molecular pode ser visualizada na
sequência de quadrinhos a seguir, onde V incentiva a população a continuar a lutar pela
causa:
19
É importante observar que a concepção de revolução no anarquismo clássico se
liga à filosofia da dialética da ação-reação, a qual concebe a realidade como resultado
de uma multiplicidade de forças em vários campos da vida (causas geográficas,
etnográficas, fisiológicas, econômicas, religiosas, filosóficas, políticas, sociais etc.). A
dialética de Bakunin recupera noções de Proudhon, que concebe as forças sociais como
antinômicas, negativas e antitéticas, cuja saída seria a ação criadora do trabalho coletivo
para a transformação da sociedade (DA SILVA, 2015). É um pouco distinta do
dialogismo que possui uma dimensão originalmente positiva (no sentido da criação),
que foca em compreender a realidade como resultado de forças de “tese-tese-síntese”
(SOBRAL, [2005] 2017, p.136), para além dos domínios fisiológico, biológico e
psíquico, mirando na potência do meio social organizado. Em uma perspectiva
dialógica, a destruição do sistema que V procura fazer só existe enquanto proposta
combativa, porque responde justamente as questões que tenta superar e destruir. Neste
sentido, a atitude libertária do anarquismo de V nasce como reação criativa às amarras
sufocantes da experiência da ditadura que ele enfrentou, emerge do que seria
denominado de força destrutiva no anarquismo clássico.
Conclusão
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inspiração para ressignificar a própria história inglesa – dentro e fora dos limites dos
quadrinhos – refratando e refletindo sua própria realidade. Na adoção de um
protagonista com inspiração histórica, V for Vendetta (MOORE & LLOYD, [1982]
2005) faz uma mistura reflexiva sobre a linha tênue entre a distopia literária e a
concretude da realidade social.
Na construção do arco narrativo, o embate entre totalitarismo e anarquismo
apela para o exagero de uma distopia, induzindo à reflexão sobre direções que podemos
tomar em nossas escolhas políticas cotidianas. A construção do cenário da obra carrega
nos elementos de controle do Estado Fascista, instigando essa sensação de sufocamento.
O embate Fascismo vs. Anarquismo posiciona o leitor entre duas opções de mundo:
uma realidade monologizante da vida social e outra realidade que se coloca como força
criativa, através da destruição desse mundo autoritário. Para criar esse cenário, os
autores constroem discursivamente a complementaridade entre o poder de coerção do
Estado, de um lado, e o poder de conformação da Igreja, do outro. Como proposta de
intervenção à distopia criada pela obra, Moore e Lloyd ([1982] 2005) oferecem o
anarquismo e sua revolução molecular, social e destrutiva.
Nesse sentido, a potência da obra V for Vendetta (MOORE & LLOYD, [1982]
2005) estaria principalmente na sua capacidade de fornecer signos de desestalibilização
da ordem social. Paradoxalmente, a relativa estabilidade dos significados da obra reside,
justamente, no seu rico repertório de instabilidade. Isto porque a construção da narrativa
de V for Vendetta e de seu protagonista nos instigam desconfortavelmente a torcermos
nossa reflexão sobre a “normalidade” das relações sociais. V for Vendetta é, antes de
tudo, uma obra profundamente destrutiva, que oferece a possibilidade de criação de
outro mundo, por meio da instalação do caos. Torna-se compreensível, portanto, sua
frequente adoção na enunciação de revoltosos.
Cabe lembrar que esta interpretação anárquica da obra não funciona
automaticamente. A interpretação de utopias possíveis para a vida social, e de muitos
outros elementos presentes na graphic novel, caberá sempre ao leitor em seu universo.
Isso explica porque vimos a máscara de Guy Fawkes sendo usada por muitos
manifestantes enrolados na bandeira nacional nos protestos de junho de 2013. Trata-se
de um apelo nacionalista que está muito distante da inspiração anarquista dos autores.
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Os ecos do anarquismo, por outro lado, não desapareceram com o uso da
máscara da personagem. Ao ser adotada em protestos sociais, a máscara responde
precisamente à questão da normatização da diferença: não permitir que os aparatos do
Estado reconheçam facilmente os sujeitos e os interpelem por sua identidade social. O
anonimato é a proteção contra a investida de um poder que controla os limites e as
categorias do ser. Por estar personificada na figura histórica de Guy Fawkes, a máscara
irônica é ainda um texto/signo que possui um repertório de desafio para a figura do
Estado. Ela pode refratar uma dinamicidade de sentidos que aqui já mencionamos:
anarquia, revolução, anti-conservadorismo, anti-autoritarismo, entre outros, que nos
revelam o quão importante são os signos ideológicos para a politização da vida.
Por todas as questões aqui levantadas, o V dos quadrinhos permanece
resistentemente atual, viajando para lóci múltiplos sem uma ordem precisa: as
ilustrações vão para as telas, para as ruas, para as redes sociais, para as lentes das
máquinas, para os cartazes, para as performances mascaradas nas manifestações e para a
boca de lideranças políticas. Isto porque o texto que foi produzido há quase quatro
décadas ainda possui a potencialidade de dialogar com muitas questões sociopolíticas
do nosso tempo. V tem viajado em vários espaços, se modelando em novos contextos, e
produzindo o que os próprios autores (MOORE & LLOYD, [1982] 2005, p. 252)
parecem ter percebido precocemente: uma possibilidade de “destampar a amargura” 18
dos sujeitos e das amarras sociais em que eles muitas vezes se encontram.
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