Epistemologia
do Romance
Volume 1
Organizadores:
Brasília
2019
Copyright © 2019 by Ana Paula Aparecida Caixeta, Maria Veralice Barroso, Wilton Barroso Filho (orga-
nizadores)
Todos os direitos reservados. Direitos desta edição reservados a Verbena Editora. Este livro não pode ser
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e impresso para uso pessoal.
VERBENA EDITORA
Editores:
Arno Vogel
Benicio Schmidt
Fabiano Cardoso
Conselho Editorial:
Santiago Alvarez (Argentina) Lia Zanotta Machado
Geniberto Paiva Campos Paulo Baía
Arnaldo Brandão Carlos Alves Müller
ISBN: 978-85-64857-60-5;
CDD: 100
Apresentação.................................................................................................................................. 7
Conjunto de obra......................................................................................................................... 11
Denise Moreira Santana
Efeito estético................................................................................................................................ 25
Janara Laiza de Almeida Soares
Ego experimental......................................................................................................................... 35
Nathália Coelho da Silva
Epistemologia da sensibilidade.............................................................................................. 51
Itamar Rodrigues Paulino
Epistemologia do romance....................................................................................................... 65
Ana Paula Aparecida Caixeta e Maria Veralice Barroso
Estética............................................................................................................................................. 77
Ana Paula Aparecida Caixeta
Idílio................................................................................................................................................... 89
Herisson Cardoso Fernandes
Kitsch................................................................................................................................................ 99
Ana Paula Aparecida Caixeta e Lucas Fernando Gonçalves
Leitor-pesquisador......................................................................................................................115
Maria Veralice Barroso e Sara Lelis de Oliveira
Metafísica.......................................................................................................................................125
Emanuelle Souza Alves da Silva
Narrador filosófico......................................................................................................................137
Priscila Cristina Cavalcante Oliveira
Serio Ludere..................................................................................................................................169
Itamar Rodrigues Paulino
Tradutor epistemológico..........................................................................................................181
Sara Lelis de Oliveira
Apresentação
7
Tal como se deu com as duas expressões, ao longo dos anos, outros ter-
mos foram sendo gradativamente reivindicados e incorporados aos discur-
sos dos pesquisadores que transitam pelo campo teórico da Epistemologia
do Romance. Por entender que funcionam também como desdobramentos
cujas elucidações interferem não apenas na circulação, mas sobretudo, no
entendimento das partes que compõem a complexidade da Epistemologia
do Romance, Wilton Barroso Filho antecipou-se ao problema, sendo um
dos primeiros a alertar para a necessidade de se proceder aos registros dos
vocábulos. Em sua dissertação de mestrado, sob a orientação de Barroso,
Denise Moreira Santana deu o primeiro passo nessa direção ao selecionar,
a partir de trabalhos e discussões preexistentes, parte dos vocábulos apre-
sentados aqui como verbetes.
Assim, o empreendimento de organização do livro Verbetes da Epis-
temologia do Romance – Volume 1 consolida-se enquanto um projeto
construído a partir das demandas e da própria trajetória da teoria, tendo
como propósito primeiro, apresentar e desenvolver teoricamente 14 ver-
betes reiteradamente utilizados por aqueles que se enveredam pelas teias
reflexivas da Epistemologia do Romance. São eles: Conjunto de obra, por
Denise Moreira Santana; Efeito Estético, por Janara Laiza de Almeida Soa-
res; Ego experimental, por Nathália Coelho da Silva; Epistemologia da sen-
sibilidade, por Itamar Rodrigues Paulino; Epistemologia do romance, por
Ana Paula Aparecida Caixeta e Maria Veralice Barroso; Estética, por Ana
Paula Aparecida Caixeta; Idílio, por Herisson Cardoso Fernandes; Kitsch,
por Ana Paula Aparecida Caixeta e Lucas Fernando Gonçalves; Leitor-pes-
quisador, por Maria Veralice Barroso e Sara Lelis de Oliveira; Metafísica,
por Emanuelle Souza Alves da Silva; Narrador filosófico, por Priscila Cris-
tina Cavalcante Oliveira; Romance que pensa, por Maria Veralice Barroso;
Serio Ludere, por Itamar Rodrigues Paulino; Tradutor epistemológico, por
Sara Lelis de Oliveira.
A publicação Verbetes da Epistemologia do Romance – Volume 1 é
resultante de esforços coletivos e individuais, erguido, portanto, por várias
mãos. O livro imprime, no próprio modo de ser, uma das marcas que iden-
tificam a Epistemologia do Romance: o diálogo e o trabalho coletivo. Cada
autor deixa aqui sua parcela de contribuição para o desenvolvimento e con-
solidação da teoria que se amplia pelos ecos de muitas e variadas vozes, cuja
latência reverbera no exercício do pensamento e da escrita individual.
8
A publicação de Verbetes da Epistemologia do Romance – Volume 1
constitui-se, sobretudo, em mais uma etapa da caminhada teórica da Epis-
temologia do Romance, momento aguardado por todos nós, especialmen-
te por aquele que foi o idealizador e entusiasta, não apenas desse projeto,
mas de toda a jornada da qual ele resulta: Wilton Barroso Filho, a quem,
in memoriam, expressamos nossa admiração e respeito, bem como nossos
eternos agradecimentos.
9
Conjunto de Obra
Denise Moreira Santana1
11
Apresentação
3 Aqui o termo totalidade deve ser entendido como as obras produzidas por um artista, obras
estas que formam um conjunto, pois há que se “Pensar em sentido gestáltico o objeto estético
vez que a forma unifica a diversidade de elementos”. (BRAS, 1990: 13).
12
desdobramento criador. É de tal maneira que compreendemos que é pela
decomposição e unidade das partes que se contempla a escolha racional do
artista no seu conjunto de obra.
Ao partir dessa ideia de conjunto torna-se importante interligar a epis-
teme e a estética e comparar a possibilidade totalizadora da arte presente
no pensamento estético sobre o belo, que se encontra também na estética
hegeliana, com a acepção matemática apresentada por Lalande. É apropria-
do esclarecer que para a Epistemologia do Romance a totalidade hegeliana
é um gesto filosófico fecundo no âmbito da relação sujeito VS. objeto, haja
vista o olhar gestáltico embrenhado no contexto da discussão.
Para a Epistemologia do Romance a totalidade da forma é chamada de
Gestalt e tal termo precisa ser explorado a partir de uma compreensão esté-
tica deste elemento. Para tanto, buscou-se no dicionário de Inwood (1997)
sobre Hegel a seguinte definição:
13
constitutiva de uma obra maior, ou seja, um escrito que pode estar dentro
de um projeto estético e ter uma racionalidade, um gesto filosófico, uma
fusão com a História, um questionamento filosófico, um exercício herme-
nêutico e exercício estético.
É importante ainda lembrar que a palavra obra pode ser tomada
como um objeto escrito, ou também ser o cômputo total de uma produção
autoral. Para o dicionário enciclopédico ilustrado Larousse do Brasil4, um
dos significados de obra é: “o resultado da ação ou do trabalho”. A ideia de
trabalho encontra sentido no labor literário de Diderot e D’Alambert5 e sua
importância enciclopédica; assim, e partir deste esclarecimento, podemos
explicar por que o uso deste termo nas pesquisas literárias que realizamos
é tão importante, visto que nossa pesquisa epistemológica leva em conside-
ração a importância do “escritor da transpiração”, aquele que leva consigo
um projeto estético. Para Barroso, W. e Barroso (2018):
14
ao conjunto da arte e é fruto da criação comunicativa de uma ideia. A arte
literária produz histórias e se classifica em diversos gêneros ou formas de
composição; a arte literária permite ao sujeito adentrar a sua história, seu
tempo e seu espaço de modo ficcional. O conceito de obra literária permite
especificar a que conjunto nos referimos.
Enfim, a ideia de que o conjunto de obra de um autor é fruto do tra-
balho árduo e constante contido em um projeto estético que perdura no
tempo faz parte das noções iniciais das pesquisas que buscam um estudo
epistemológico do princípio de racionalidade de uma obra. Princípio este
que antes mesmo de evocar a ciência se conjuga com a arte, com a estética,
com a filosofia, com a hermenêutica, com a história, e incide na relação da
criação literária com a ciência do conhecimento.
Reflexões adicionais
15
A ER funciona a partir de um olhar atento, de leitor-pes-
quisador, que, como um arqueólogo do texto, procura por
vestígios deixados pelo autor, que conduzem a formação
da obra como um conjunto ligado por um eixo estético.
Dessa forma, fica claro que a investigação epistemológica
no romance precisa de dois pressupostos básicos: um lei-
tor atento, cuja leitura literária, além de sensível, precisa
ser dialógica teoricamente; e a ideia de obra como conjunto
de textos, pois, entende-se que, para se buscar elementos
norteadores e que se repetem formando uma estética, é im-
prescindível que o autor estudado permita condições para
se pensar em elementos, que só existirão quando se tem um
olhar gestáltico do conjunto de obra. (CAIXETA, 2016:
50 – Grifo nosso).
16
contracultural, carrega consigo o peso do contexto literário
a partir das leituras feitas, tornando-se, assim, um margi-
nal erudito […] (CAIXETA, 2016 – Grifo nosso).
À guisa de exemplo
7 (Immanuel Kant, 1724-1804) Utilizamos aqui a edição de A Crítica da razão pura, de Os Pensa-
dores, que apresenta a paginação da segunda edição da obra original de Kant, datada de 1787.
Kant, 1988: 33).
8 A Idade do tempo nos faz lembrar que a História por séculos nomeia seu tempo: Idade das
Trevas, Modernidade, Contemporaneidade i.e..
17
tiempos en la historia, no hay un solo tiempo irreversible, futurizable, sino
que hay tiempos que predican un regreso al pasado, una salud en el origen,
una acumulación” (HERNÁNDEZ, 1999: 224).
“A Idade do tempo” é uma coletânea de romances e contos que estão
classificados e distribuídos conforme critério do próprio autor. Estes escri-
tos formam parte de seu conjunto de obra que conta com ensaios, contos,
teatro, roteiro de filmes, ópera, discursos, documentários, textos jornalís-
ticos e entrevistas, ou seja, um universo textual bem maior que as obras
abarcadas pela Idade do tempo.
Carlos Fuentes aponta de antemão qual o seu princípio fundador de
criação literária, mas pode-se desconfiar se seria este o único princípio
que se pode encontrar em seus textos porque, partindo de uma ideia he-
geliana de totalidade, sabemos que o dinamismo que regula as partes é
que faz com que elas retornem ao todo. Provavelmente, mapear um ele-
mento é reconhecer nele não apenas um ponto de conexão com o todo,
mas encontrar nele o dinamismo do diálogo com a totalidade; é observar
se esta conexão aponta para uma força motriz e se essa força motriz pode
escrever a própria estética.
Para melhor visualizar o que se chama “Idade do tempo” apresenta-
mos um quadro com a visualização das obras relacionadas a esse conjunto
romanesco criado pelo autor:
18
A obra narrativa de Carlos Fuentes
La edad del tiempo
Nesta classificação não estão as obras Vlad (2010) e Federico en su balcón (2012).
19
O que perpassa esse conjunto da obra de Carlos Fuentes é o tempo
constituindo-se como o princípio escolhido a partir da racionalidade do
criador das obras ali destacadas, e consequentemente, se constitui em fun-
damento ou eixo estético. Por certo, o que nos auxiliará a mostrar elemen-
tos da construção literária que subjazem à escrita é a noção de conjunto,
pensar sobre os elementos que estão no âmbito de uma discussão interna
da forma; forma esta que necessita ser dialogada, compreendida e progres-
sivamente aprimorada. De certa maneira Carlos Fuentes faz a ciência de seu
próprio texto romanesco, ele recapitula a história de seus escritos dentro
deles, numa tentativa de totalização de sua arte, de sua trajetória estética.
Ademais dos romances na totalidade da obra de Fuentes existem en-
saios e peças de teatro que complementam algumas de suas obras romanes-
cas e prescindem delas para a compreensão do movimento de interconexão
da obra com o seu conjunto. Este autor escreveu, por exemplo, a peça tea-
tral Todos los gatos son pardos e este texto possui elementos de intertex-
tualidade com a obra Terra Nostra, que também se conecta aos ensaios: De
como escribi uno de mis libros y Cervantes o la crítica de la lectura, e ao
romance Aura, que por sua vez suscita outras obras do autor e assim suces-
sivamente… Na realidade, estas interdependências demonstram o caráter
totalizador do conjunto de obra.
Outro exemplo literário para o uso da terminologia conjunto de obra
são os estudos sobre o autor tcheco Milan Kundera (1929), autor investiga-
do em diferentes pesquisas dentro do grupo de estudos da Epistemologia do
Romance. A tese de Barroso (2013), em sua introdução, explica como se dá
a seleção de seu corpus de pesquisa e a utilização do conjunto de obra que
abrange e delimita os indícios que a levaram a estabelecer com a obra um
eixo estético de busca pela figura de Don Juan nos personagens kunderianos:
20
Constata-se que a restrição da pesquisa a um elemento do conjunto
busca descobrir o princípio norteador da racionalidade nas obras; os roman-
ces de Milan Kundera são perpassados por um personagem presente no ima-
ginário popular que perdura no tempo e na história da literatura, a figura de
Don Juan. A descoberta deste elemento estético constitutivo da obra do au-
tor pela pesquisa realizada em dez9 diferentes obras estabelecidas no corpus
da investigação de Barroso (2013) demonstra a importância de se conhecer
o conjunto de obra do autor em questão. Foi por meio deste conhecimento
que se constatou a permanência da figura donjuanesca funcionando como
um eixo estético, como um elemento de invariância e, consequentemente, de
repetição nas obras delimitadas pela pesquisa de Barroso.
Entendemos ser importante demonstrar ainda como Caixeta (BAR-
ROSO, W. e BARROSO, 2018) apresenta-nos a ideia de conjunto de obra
em Glauco Mattoso:
9 Risibles amours (1063 a 1968), La plaisanterie (1967), La vie est ailleurs (1970), La valse
aux adieux (1976), Le livre du rire et de oubli (1979), L’insoutenable légèreté de lêtre (1984),
L’immortalité (1990), La lenteur (1995), L’identité (1997) et L’ignorance (2000).
21
autor; o conjunto de escritos pesquisados permitiu que a discussão episte-
mológica lançada por Caixeta (2016) encontrasse as percepções sensíveis e
racionais dos escritos deste autor.
Considerações ao leitor
Referências
22
BARROSO, Maria Veralice. A obra romanesca de Milan Kundera: um
projeto estético conduzido pela ação de Don Juan. 2013, 296 f., il. Tese
(Doutorado em Literatura) — Universidade de Brasília, Brasília, 2013.
CAIXETA, Ana Paula A. Glauco Mattoso: O Antikitsch. 2016. 256 f., il. Tese
(Doutorado em Literatura) – Universidade de Brasília, Brasília, 2016.
KANT, I. Crítica da razão pura. Os pensadores Vol. II. São Paulo: Nova
Cultural, 1988.
23
EFEITO ESTÉTICO
Janara Laíza de Almeida Soares10
25
Apresentação
11 Ver “Estética”.
12 “Antes de mais nada, vejamos o conceito de filtro social que determina quais experiências são
permitidas de chegar à consciência. Esse filtro, que consiste numa língua, numa lógica e cos-
tumes (ideias e impulsos tabus ou permitidos, respectivamente) é de natureza social. É especí-
fico em cada cultura e determina o inconsciente social (…) O recalcamento de certos impulsos
e ideias tem uma função muito real e importante para o funcionamento da sociedade e, em
consequência, todo o aparato cultural serve ao propósito de conservar intacto o inconsciente
social” (FROMM, 1992: 80).
13 Desde Platão e Aristóteles, o sensível como possibilidade (ou não) de conhecimento é discuti-
do. Ver Hípias Maior (PLATÃO, 1980), Fédon (PLATÃO, 1972) e Metafísica (ARISTÓTELES,
1984). René Descartes (1981), Immanuel Kant (2015, 2016), Georg Wilhelm Friedrich Hegel
(1988, 2001), Arthur Schopenhauer (2005), Alexander Gottlieb Baumgarten (1993) e, mais
recentemente, Hans-Georg Gadamer (2008) criam seus sistemas de pensamento através de
variações da investigação acerca de conhecimento e sensibilidade.
26
de contato com os objetos, a reação primeira e imediata. Tal explicação
pode dar uma ideia de universalidade, no sentido de haver uma única
formar de percepção dos objetos, mas é necessário aprofundarmo-nos
para evitar tal equívoco.
Isso está ligado ao modo como os objetos nos são dados à percepção.
Esse efeito, como afirma Ana Paula Caixeta (2016: 43), “é passível de julga-
mentos a priori, o que, muitas vezes, destitui o objeto de qualquer conceito
ou contexto – já que todo conceito (conhecimento) virá apenas do sujeito
que lê”. No entanto, esse julgamento a priori não estaria numa imediatez
pura e imanente. O que Sócrates chamava de paixões estão na base dos efei-
tos, enquanto mais ou menos determinadoras da percepção.
Observando as duas formas de sentir (sensações e paixões) apresenta-
das por Sócrates em Fédon (PLATÃO, 1972), podemos entender como elas
determinam os efeitos das coisas com as quais os seres humanos entram em
contato. O diálogo apresentado por Fédon, um dos alunos de Sócrates, mos-
tra os últimos dias de vida do filósofo e desenvolve a ideia da imortalidade
da alma. No decorrer da discussão, Sócrates coloca o corpo como um obs-
táculo para o conhecimento: a alma, se assemelhando às formas imutáveis
(sendo estas o correspondente ao conhecimento verdadeiro), seria o único
meio possível de entrar em contato com elas; o corpo e, consequentemente,
os sentidos, se configuram como empecilhos para se conhecer a verdade.
Nesse diálogo, há uma separação feita por Sócrates entre os sentidos (prin-
cipalmente visão e audição) e as paixões. Ambos seriam barreiras para o
conhecimento das formas imutáveis, já que os primeiros entram em contato
apenas com os elementos mutáveis das coisas e as segundas são fruto do ser
humano voltado para o próprio interesse.
Nesta explanação, não consideramos a verdade como o conhecimento
das formas imutáveis; pretendemos, ao contrário, ressaltar como as paixões
(não identificadas com o sensível) podem determinar o efeito estético e como,
dessa forma, a questão da verdade no objeto estético se torna complexa.
Com o advento e o desenvolvimento da psicologia e da neurologia,
bem como do modelo biopsicossocial de saúde que, por sua vez, se incor-
pora em várias outras práticas, não podemos nos furtar de constatar que
aquilo chamado de efeito imediato, ou efeito estético (efeito pelo contato
dos sentidos com algum objeto ou fenômeno), por ser uma resposta a in-
formações dos sentidos, passa por um processo de construção comporta-
27
mental que nos leva a ter determinadas reações a determinadas causas14. A
Síndrome de Sthendal é um exemplo: a pessoa, geralmente um turista da
arte, quando se encontra com o objeto artístico, sofre reações físicas e psico-
lógicas que podem variar de sudorese e tontura a transtornos obsessivos e
alucinações, a depender da relação que a pessoa tem com o ambiente e com
as obras. Essas reações são moduladas de acordo com as paixões, os inte-
resses e as interpretações que a pessoa dá ao contexto em que se encontra.
Isso significa que os pré-conceitos ou paixões, quando enraizados em
nosso íntimo, passam a fazer parte da nossa resposta às coisas – inclusive
neurologicamente. É o que faz uma pessoa se escandalizar com uma per-
formance de nudez, independente do seu conteúdo: o primeiro contato é
o escândalo, o virar os olhos, evitar o contato visual; a partir do choque,
as relações vão sendo feitas na busca de se criar um significado para a per-
formance, até que o efeito estético – momento primeiro – é superado pela
criação de um conhecimento acerca daquilo. Uma pessoa familiarizada com
esse tipo de performance ou com a visão de corpos nus talvez não tenha este
impacto inicial do efeito estético relativo à nudez. Para Kant,
14 Ver FREITAS, Alexandre Siqueira de. Em busca de novas epistemologias: neuroestética e neu-
rociência cognitiva da arte. Trama Interdisciplinar, São Paulo, v. 8, n. 2, p. 159-175, maio/
ago. 2017. Freitas faz um apanhado de dois novos campos – a Neuroestética e a neurociência
cognitiva da arte – discutindo seus objetivos, limitações e horizontes de pesquisa. John Onians
(ONIANS, John. Neuroarthistory: from Aristotle e Pliny to Baxandall and Zeki. London: 2007)
analisa o percurso histórico de textos clássicos a partir da neurociência; também os estudos
de António Manuel Duarte, na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, trazem
importantes contribuições sobre o assunto na área da psicologia da arte.
28
Desse modo, a sensação (fruto da capacidade denominada por Kant
de sensibilidade) pode ser determinada por vários pré-conceitos carrega-
dos pelo sujeito, o que também acaba por definir como será o efeito estético.
A arte e outras atividades humanas, como a política, o marketing e a reli-
gião, sabem utilizar técnicas que despertam efeitos estéticos de conformida-
de, de choque, de discordância, de agradabilidade, ou quaisquer que sejam
suas intenções.
No entanto, a partir do uso do entendimento, criam-se conceitos, que
são posteriores ao efeito e, no processo de fruição15, o conhecimento a partir
do objeto estético se dá transformando-se em experiência estética.
29
medida em que as estruturas do texto se concretizam ao afetar o leitor. O
efeito estético, nesse caso, é o resultado das estruturas prefiguradas pelo
criador na obra, mas sem alcançar o caráter discursivo.
É nesse sentido que a Epistemologia do Romance trata, também, em
intencionalidade: não há ingenuidade ou coincidências, pois o escritor pre-
vê tanto o leitor quanto as possíveis reações que quer provocar. As escolhas
estéticas são subjetivas, mas, como afirma Wilton Barroso (2018), passam
a ser objetivas assim que são feitas, já que é a partir da coerência em sua
construção que o romance terá o fundamento para o seu desenvolvimento.
Descobrir o fundamento de uma obra passa, então, por entender como
o autor organizou seus recursos técnicos para a obtenção de determinados
efeitos. Um exemplo explorado por Barroso, W. (2018) é o caso do romance
Mme Bovary (1857), de Gustave Flaubert. A recepção desse romance na
França da segunda metade do século XIX foi negativa, pois o texto sem au-
tor, em que não haveria o peso do julgamento dos personagens e a coloca-
ção do próprio autor em sua obra como aquele que emite o juízo, bem como
a narração realista, escandalizaram os leitores. Desse modo, julgou-se que
o livro incitava a prevaricação e Flaubert foi processado.
Sem as amarras morais e com a devida distância histórica, foi possí-
vel que os leitores ultrapassassem o efeito estético. Segundo Barroso, W.
(2018: 27), “em vez de tocar o leitor pela emoção ou estimulá-lo pelo de-
vaneio, o estilo inaugurado por Flaubert pretende tocar o leitor pela razão
ou estimulá-lo ao conhecimento teórico real, sem as complicações da ex-
periência sentimental dos fatos”. Desse modo, as escolhas estéticas feitas
por Flaubert intencionavam determinados efeitos e a possibilidade de um
olhar diferenciado sobre um assunto já bastante discutido na literatura e na
cultura geral. Com os preconceitos existentes, os leitores não conseguiram
observar essa possibilidade de construção de conhecimento, detendo-se no
efeito estético.
Um exemplo parecido está na narradora do livro Cartucho: relatos de
la lucha em el norte del Mexico (1931), da escritora mexicana Nellie Campo-
bello. Tal escolha é especialmente importante para que o efeito pretendido
seja criado: a revolução mexicana é narrada através dos olhos de uma crian-
ça. A narradora vive esse ambiente, escuta os relatos da mãe e de pessoas
que ficaram para trás, dos “no-ciudadanos” (mulheres, idosos e crianças),
como afirma Mary Louise Pratt (2004), trazendo para o leitor as imagens
30
percebidas pelo olhar infantil. A autora utiliza a visão da criança, que ainda
está no espaço do efeito estético, para apresentar de modo cru um ambiente
para o leitor, estando este carregado de sentidos e de interpretações prévias
(paixões/pré-conceitos). Desse modo, a visão “pura” da criança, no sentido
de ver as coisas sem o véu do preconceito, faz o leitor entrar em contato com
uma parte da guerra que é depurada nas narrativas habituais. O aspecto
floreado das narrações dos heróis de guerra e dos eufemismos jornalísticos
é substituído pela simplicidade infantil, causando um efeito de captação
instantânea do real, já que a criança não possui os filtros morais presentes
nos adultos.
A escolha das construções estéticas, principalmente no livro de Nellie
Campobello, está diretamente ligada às noções de jogo (GADAMER, 2008)
e de jogos de verdade (FOUCAULT, 2001). Estabelecendo o conhecimento
(ou seja, a verdade) como uma invenção e uma posição estratégica, Fou-
cault desenvolve o jogo como um “conjunto de regras de produção de verda-
de”, que muda de acordo com a época e a sociedade. Gadamer, por sua vez,
faz uma relação entre jogo e arte em que, ao criticar a ideia de consciência
estética e colocar a experiência da arte como um fenômeno hermenêutico,
questiona o modo de ser da obra artística, configurado enquanto uma “ex-
periência que transforma aquele que o experimenta”. Para tanto, os jogos
estéticos escolhidos pelos escritores estabelecem uma tensão na noção de
verdade e utilizam os efeitos estéticos, as paixões e os pré-conceitos do lei-
tor para desconstruir um discurso ou um ponto de vista e, dessa forma, per-
mitir a construção de outros tipos de pensamento, participando dos jogos
de verdade na noção foucaultiana.
O objeto de arte e, no nosso caso, o romance, é colocado na discussão
gadameriana sobre os tipos de verdades presentes nas ciências humanas e
as verdades específicas da arte e da História. A verdade do romance não se
apresenta como a verdade referencial pretendida pelas ciências: há, como
afirma Iser (1996), uma relação dinâmica e complexa, um jogo entre o tex-
to, o leitor e o autor, em que as verdades são construídas e reconstruídas
no ato de leitura. Os diversos efeitos vão sendo experimentados e saindo do
campo puro da sensibilidade para um campo discursivo, e que deixam de
ser efeitos estéticos e passam a compor a experiência estética.
Ultrapassar o efeito estético necessita que o leitor tenha um compor-
tamento específico na construção do sentido do romance. Para Maria Ve-
31
ralice Barroso (2013: 28), o leitor ao qual a Epistemologia do Romance se
refere é aquele que, “assumindo a postura de sujeito da investigação, ao se
colocar diante da obra literária não é movido somente pelo gosto, mas pela
possibilidade de conhecer algo”. O agenciamento por parte do leitor define
uma forma de se aproximar do texto diferente da leitura de entretenimen-
to: exige-se a atenção e a pesquisa de elementos extraliterários que tornem
possível a construção de relações mais profundas.
Ana Paula Caixeta (2016) desenvolve, posteriormente, a noção de lei-
tor-pesquisador16 da seguinte forma:
Considerações ao leitor
16 Ver “Leitor-Pesquisador”.
32
Na atualidade, o efeito estético é analisado em várias áreas do saber,
mas ainda traz a sua carga dicotômica de tanto ser o meio pelo qual se tem
acesso às coisas do mundo quanto uma forma de impedir a criação de con-
ceitos sobre determinados fenômenos. As teorias de comunicação, a análise
do discurso, a crítica e a teoria da arte, a própria arte, bem como a pro-
paganda e o entretenimento, são áreas que estudam e se servem do efeito
estético para determinados fins.
Na teoria literária, entender o papel do efeito estético nas relações en-
tre autor-obra-leitor é essencial para entender a própria experiência estética
como um todo. A discussão possibilita, também, abrir as portas para as re-
lações com outras noções, como intencionalidade, fruição e criação artística.
Referências
33
FREITAS, Alexandre Siqueira de. Em busca de novas epistemologias:
neuroestética e neurociência cognitiva da arte. Trama Interdisciplinar, São
Paulo, v. 8, n. 2, p. 159-175, maio/ago. 2017.
ISER, Wolfgang. O ato da leitura. Vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 1996.
34
EGO EXPERIMENTAL
Nathália Coelho da Silva17
35
suscitar reflexões, ao lado do narrador filosófico19; 3. Espécie de laboratório
de análise das possibilidades de aspectos da existência humana, evidenciados
a partir da ação narrativa da personagem em tempo e espaço específicos; 4.
Código-existencial trabalhado pelo autor dentro do romance que pensa com
o intuito de evidenciar a relativização e pluralidade de verdades individuais
humanas, sem preocupações com características externas, históricas e des-
critivas, desde que estas não façam parte da compreensão por sua busca pela
interioridade e subjetividade; 5. Egos imaginários.
Apresentação
36
ma de o romance pensar o ser, a partir de diversos pontos de vista” (FER-
NANDES, 2017: 51), em sua interioridade, na sua essência e sem vinculação
a características externas do indivíduo. Por isso os romances não têm preo-
cupação em descrições detalhadas. Ademais, o autor tem livre arbítrio –
por meio do narrador – para interferir na história, inferir pensamento e
reflexões, até mesmo explicar o nascimento de algum ego específico. Tal
interferência, inclusive, seria uma evidência explícita do autor pela repulsa
em “objetivar ler o romance como uma narrativa que intenta se passar por
uma simulação do real” (FERNANDES, 2017: 54).
Já Maria Veralice Barroso, em sua tese de doutoramento A obra ro-
manesca de Milan Kundera: um projeto estético conduzido pela ação de
Dom Juan (2013) dedica um espaço para o desenvolvimento da persona-
gem da ficção dentro da ideia de ego experimental. Para Barroso, entre ou-
tras coisas, Kundera se aproxima dos estudos sobre a condição humana de
Hanna Arendt (1906-1975) ao dizer que os egos experimentais possuem,
cada qual à sua maneira e particularidade, um código existencial que os
definem perante os fatores externos de ação:
37
extraído da personagem passa pela tríade de inter-relação autor/persona-
gem/leitor” (BARROSO, 2013: 99). Já Rosenfeld, segundo Barroso, afirma
que “a personagem de ficção apresenta maior coerência que os seres reais,
por isso esses seres trazem um conhecimento menos disperso e mais coeso
sobre a vida” (BARROSO, 2013: 97).
De forma geral, a pesquisadora analisa o projeto estético romanesco
de Milan Kundera por meio da figura de egos experimentais do Don Juan,
elemento epistemológico identificado como fundamento da obra. Segundo
Barroso, é possível perceber que tais egos experimentais são formas criadas
e manipuladas pelo autor – caracterizadas sobretudo pelo riso e o erotismo
– para dialogar e pensar a “condição humana constrangida pela ditadura do
idílio21 e direcionada pela atitude lírica” (BARROSO, 2013: 7).
Se Barroso reitera o aspecto ficcional da expressão, a pesquisadora Ro-
simara Richard Aparecida da Silva reforça em sua tese As memórias no jogo
da criação romanesca (2017), que os egos experimentais não são seres reais
e por isso não necessariamente se pode usar suas informações do passado
como uma maneira de explicar ações no presente. De acordo com Richard, a
personagem “não se mostrará menos vivo se o escritor conseguir explorar sua
problemática existencial até o fim, porque o que o tornará vivo é a exploração
de algumas situações, motivos ou até mesmo de algumas palavras pelas quais
ele é moldado” (RICHARD, 2017: 78). Outro ponto importante destacado
por Richard acerca dos egos experimentais é a intenção de compreender as
ações naquele mundo que lhes é imposto; pois assim, consequentemente, ha-
verá uma possibilidade de se pensar modos plurais do homem no mundo,
com base em hipóteses antológicas (RICHARD, 2017: 67).
21 Ver “Idílio”.
38
Abrindo uma dimensão temporal e espacial para a compreensão de
egos experimentais, criados a partir de um contexto e tempo especifica-
dos pelo autor, Richard coloca ainda que o escritor tcheco abre um leque
de “liberdade sem limites de criação e, consequentemente, de reflexão”, ao
simular seres viventes agindo no mundo nas várias situações que lhes são
oferecidas (RICHARD, 2017: 68). Nesse ínterim, a pesquisadora também
analisa os egos experimentais em consonância com os narradores. De acor-
do com ela, narradores encontram fundamento nos personagens, “que são
muitos e cada qual tem seu espaço no contexto relativista do romance po-
lifônico. Então, mesmo que a narrativa apresente um único narrador, as
situações dos personagens são examinadas a partir de diferentes pontos de
vista” (RICHARD, 2017: 82).
Sob a égide desta ideia de escrever, e ao mesmo tempo pensar a es-
crita, a pesquisadora Nathália Coelho da Silva, em sua dissertação Estética
dos Contrários: a busca pela gênese do romance Uma/Duas, de Eliane
Brum (2017), utiliza a expressão ego experimental pela primeira vez fora
da obra kunderiana para justificar suas escolhas de análise, dentro da Epis-
temologia do Romance, em relação à personagem Laura como o elemento
fundador da narrativa em questão.
Silva interpreta Laura como o ego experimental de um escritor em
formação, “em pleno processo criativo e em reflexão sobre o ato da escrita
permeado pelas contradições próprias da existência” (SILVA, 2017: 120). A
pesquisadora busca compreender o ambiente metaficcional de Uma/Duas,
ao mesmo tempo que reflete sobre as transformações internas sofridas pela
personagem ao escrever um romance dentro do romance.
39
Portanto, os aspectos trabalhados por cada pesquisador em torno da
ideia de ego experimental nos estudos da Epistemologia do Romance indi-
cam que a expressão diz respeito a formas ficcionais do “eu”, criadas para o
estudo das possibilidades de performance de temas da existência humana,
postos em circunstâncias específicas na história narrativa. O foco recai nas
características internas dos personagens e no seu desenrolar no presente;
não necessariamente eles têm passado. Há ainda a indicação de que os egos
experimentais não se filiam a uma categoria específica de romances, tais
como filosóficos ou psicológicos, embora tenham fundamentação em leitu-
ras da Filosofia, como será mostrado nas próximas linhas.
Reflexões essenciais
40
Europa passava por uma crise das ciências e do próprio homem, pois a
primeira fracassou na compreensão do segundo e ambos aparecem desco-
nectados entre si. Para o filósofo, existia um distanciamento entre cons-
ciência e essência, como consequência, a elaboração de uma vida afastada
do seu sentido essencial, que poderia ser explicada pela aplicabilidade da
sua fenomenologia.
Na introdução de A crise da humanidade europeia e a filosofia (2002),
o tradutor da obra, Urbano Zilles, afirma que a fenomenologia de Husserl
“pretende estudar, pois, não puramente o ser, nem puramente a represen-
tação ou aparência do ser, mas o ser como tal se apresenta no próprio fenô-
meno, como fenômeno” (ZILLES, 2002: 12 e 13). Zilles reitera que Husserl
ressignifica a palavra “fenômeno” de maneira mais subjetiva, propondo um
retorno às coisas mesmas, não atribuindo apenas às relações com as coi-
sas físicas exteriores. “A fenomenologia consiste na tentativa de descrever
o fundamento da filosofia na consciência na qual a reflexão emerge da vida
irrefletida do começo ao fim” (ZILLES, 2002: 26 – Grifo no original).
Ademais, Husserl evidencia haver uma dificuldade no avanço das
ciências do espírito, como nas da natureza, bem como uma interligação de
ambas, como ocorria na Grécia antiga. “É um absurdo considerar a nature-
za do mundo circundante como algo por si alheio ao espírito e então querer
fundamentar, em consequência, a ciência do espírito sobre a ciência da na-
tureza e fazê-la, assim, exata” (HUSSERL, 2002: 46). É válido ressaltar que,
para o teórico, ciências do espírito se configuraria no retorno ao racionalis-
mo autêntico voltado para a existência humana, refutando, assim, o objeti-
vismo (inautêntico) científico das ciências, reduzido ao puro conhecimento
dos fatos. (ZILLES, 2002: 37).
Em complemento, Kundera coloca que em Ser e Tempo, de Martin
Heidegger, é evidenciado o modo como a filosofia europeia abandona te-
mas existenciais que tocam a subjetividade humana. Ora, a simplificação
levantada pelo questionamento inicial aparece aí: na desconexão da ciência
e da filosofia com a profundidade dos conflitos e sentimentos contraditórios
inerentes ao ser. Enquanto há parte da modernidade preocupada em definir
o homem como uma máquina racional que se enquadra no cientificismo
promovido pela compartimentalização de saberes, de forma desintegrada e
mecânica, outra – e é essa a explorada pelo romance – põe luz às suas ambi-
41
guidades, aos seus ocultos tangenciados pelo sistema, ao mesmo tempo tão
presentes na vida individual, cotidiana e interna. De acordo com Kundera,
ambos os exercícios de difícil execução22.
É também na obra de Husserl que a palavra ego (do latim, “eu”) de-
senvolve-se – nesse contexto, compreendido como uma fortuna crítica de
“Penso, logo existo” de René Descartes (1596-1650)23 – e parece dar as ori-
gens do pensamento kunderiano, que se firma nas acepções filosóficas do
termo e não da psicanálise, doutrina psicológica criada por Sigmund Freud.
Zilles afirma ainda que a fenomenologia revista por Husserl se tor-
na uma egologia ou ciência do eu, a partir do movimento do sujeito que
se “constitui continuamente”, no processo de chegar ao essencial da cons-
ciência, fazendo com que a fenomenologia “torna-se exegese de si próprio”
(ZILLES, 2002: 23-24).
Em seu Dicionário de Filosofia (2015), Nicolas Abbagnano (2015:
360) diz que, segundo o filósofo, a esfera própria do ego é obtida pela re-
dução egológica, “com a qual, no campo da experiência fenomenológica se
abstrai de tudo o que pertence a outros eus”.
22 Equiparar a importância do labor nas ciências e nas artes já é algo elucidado pela Epistemo-
logia do Romance como justificativa da sua própria existência. Em Estudos Epistemológicos
do Romance (2018), Wilton Barroso Filho afirma que o dilema está presente desde o século
XVIII, com a construção da Encyclopédie de Diderot e D’Alembert. “O ponto de convergên-
cia, sem a qual a obra simplesmente não teria existido, foi a caracterização de ambas como
atividades racionais, entendidas de um modo muito próximo àquelas prescritas no método de
Espinosa. (…) Então se a Literatura é uma atividade racional (…) há portanto, no contexto da
Encyclopédie, as condições de equivalência entre Ciência e literatura. (BARROSO, W. e BAR-
ROSO, 2018: 21).
23 Do latim, Cogito, ergo sum. Descartes, R. Discurso do Método (1637).
42
A fenomenologia torna-se o estudo da constituição do mun-
do na consciência. Constituir significa remontar pela intui-
ção até a origem, na consciência, do sentido de tudo que é,
origem absoluta. Mas não só o mundo é constituído, recebe
seu sentido na consciência ou no sujeito, mas o próprio
sujeito se constitui pela reflexão sobre sua própria
vida irrefletida. (ZILLES, 2002: 23 – Grifo nosso).
43
to, “conhece o inconsciente antes de Freud, a luta de classes antes de Marx
e pratica a fenomenologia (a busca da essência das situações humanas)
antes dos fenomenológos”.
Nesse sentido, está o reforço do comparatismo proposto pela Epis-
temologia do Romance, em compreender a literatura como um espaço de
conhecimento acerca da condição humana, à luz de gestos filosóficos, sem
necessariamente querer resolvê-la ou justificá-la em fundamentos psicoló-
gicos, como dito anteriormente. “Qual é a outra maneira não psicológica de
apreender o eu? Apreender um eu, quer dizer, em meus romances, apreen-
der a essência da sua problemática existencial?” (2009: 34). Ao conceituar
uma espécie de vertigem por meio da personagem Tereza, de A insustentá-
vel leveza do ser, Kundera afirma:
44
universal, embora nasça e se fundamente na consciência da personagem,
no seu mundo particular. Vale ressaltar ainda que não tem a intenção de
consolidá-la numa verdade, mas de abri-la para o plural da existência, nes-
se sentido, em algum momento, “nós” poderemos sentir ou se identificar
com essa vertigem da personagem.
A teoria complexa da Epistemologia do Romance, de um modo geral,
também carrega em seus estudos essa característica do ego experimental:
um desinteresse em qualquer verdade absoluta na análise romanesca; mas
ao contrário, recai o foco na possibilidade de resultados múltiplos pois com-
preende, dentre outras coisas, que a hermenêutica da obra surge a partir da
relação do sujeito leitor-pesquisador24 com o objeto romanesco.
A ideia do teórico, assim, é apreender o código existencial de cada
ego, ou seja, palavras-chave que norteiam a construção da personagem. E
cada palavra, segundo Kundera (2009: 35), tem um significado diferente
no código existencial do outro, assim como a vertigem para Tereza. “É claro
que o código não é estudado in abstracto, ele se revela progressivamen-
te na ação, nas situações” (2009: 35). Essa é outra característica dos egos
experimentais de Kundera: cada aspecto humano em modelação e estudo
ocorre no desenrolar da narrativa, e segue tentando esgotar as problemá-
ticas escolhidas para cada personagem sem necessariamente fechá-los em
si mesmo. “A imaginação do leitor completa automaticamente a do autor.
Tomas (A insustentável leveza do ser) é louro ou moreno? O pai dele era
rico ou pobre? Escolham vocês mesmos” (2009: 39).
Não obstante, para Kundera a personagem não simula um ser vivo,
mas um ser imaginário. “Dom Quixote é quase impensável como ser vivo”
(2009: 38). Nesse sentido, afirma ainda que
24 Ver “Leitor-pesquisador”.
45
Na compreensão do ego experimental e seu mundo enquanto possibi-
lidades, pode-se fazer uma aproximação à compreensão de Mikhail Bakh-
tin (1895-1975) sobre a personagem, descrito em Problemas da poética de
Dostoiévski (2015). Bakthin (2015: 52) afirma que a personagem, para Dos-
toiévski, não é vista como um fenômeno da realidade, “dotado de traços
típicos-sociais e caracterológico-individuais definidos e rígidos, como ima-
gem determinada”, mas sim como “ponto de vista específico sobre o mundo
e si mesma, como posição racional e valorativa do homem em relação a si
mesmo e à realidade circundante” (BAKTHIN, 2015: 52).
De acordo com o teórico russo, os traços da realidade e ambiência para
a personagem só são importantes quando dizem respeito a ela mesma, para
sua autoconsciência. Ora, pensar em autoconsciência é também pensar num
ego experimental. Nesse sentido, caso Dostoiévski construa uma persona-
gem rígida em costumes, com características estáveis e objetivas, tais traços
também farão parte e ajudarão na reflexão. Afinal, “toda realidade (da per-
sonagem) se torna elemento da sua autoconsciência” (BAKHTIN, 2015: 53).
Ademais, vale ressaltar que o autor introduz todos os elementos no campo de
visão da personagem, sem interferir nele com sua ótica pessoal.
Outro aspecto importante de ser dito sobre os egos experimentais é
que eles se aplicam à criação de formas humanas no escopo da obra kunde-
riana. No entanto, é válido afirmar que Massaud Moisés (1928-2018), em A
criação literária (2012), afirma que:
46
Sobre estas questões também Georg Lukács (1885-1971), em Teoria
do Romance (2009), afirma que o romance “é a forma de aventura do valor
próprio da interioridade; seu conteúdo é a história da alma que sai a campo
para conhecer a si mesma, que busca aventuras para por ela ser provada, e
pondo-as à prova, encontrar sua essência. (LUKÁCS, 2009: 91).
Encontrar a essência não é um exercício pacífico, embora haja, para-
doxalmente, uma exploração pela busca do idílio25 nos romances de Kun-
dera, como trabalhado na tese de doutoramento de Maria Veralice Barroso.
Em Geografia do Romance (2007), Carlos Fuentes (1928-2012) postula
que os personagens de Milan Kundera giram em torno desse dilema: “ser
ou não ser no sistema de idílio total, do idílio para todos, sem exceção nem
fissuras, idílio precisamente porque já não admite nada nem ninguém que
ponha em dúvida o direito de todos à felicidade numa Arcádia única, pa-
raíso da origem e paraíso do futuro” (FUENTES, 2007: 117). Ao olhar para
a produção de Kundera, Fuentes reitera seus esforços para com a criação
de egos experimentais que evidenciem, entre outras coisas, a necessidade
humana de busca pela paz num mundo repleto de contradições. O mo-
ver humano parece ser, sobretudo neste contexto, uma proposta de fazer
emergir o que – propositalmente – foi negligenciado pela produção de
conhecimento científico e filosófico; ao mesmo tempo em que, ambos, na
tentativa de construir narrativas que entendem o mundo decodificado por
uma verdade única, não souberam olhar para a relativização compreendi-
da pela arte romanesca.
25 Ver “Idílio”.
47
Considerações ao leitor
48
Referências
49
SILVA, Nathália Coelho da. Estética dos contrários: a busca pela gênese do
romance Uma/Duas de Eliane Brum. 2017. 150 f., il. Dissertação (Mestrado
em Literatura). Universidade de Brasília, Brasília, 2017.
50
EPISTEMOLOGIA DA SENSIBILIDADE
Itamar Rodrigues Paulino26
26 Doutor em Teorias Literárias pela Universidade de Brasília, é professor e pesquisador pela Univer-
sidade Federal do Oeste do Pará, e coordenador do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar
em Sociedade, Ambiente e Qualidade de Vida, da UFOPA. Contato: <itasophos@gmail.com>.
51
Apresentação
52
Epistemologia é o conhecimento filosófico ou justificação filosófica acerca
das ciências. Uma ciência é um conjunto sistemático de axiomas, postula-
dos e definições, que determina a natureza e as propriedades do seu objeto,
e demonstra a relação de causalidade que rege o objeto investigado. Portan-
to, Epistemologia tem relação necessária com a atividade do pensamento
e da ciência. Por meio da atividade epistemológica, pensadores discutem a
validade de axiomas, postulados e definições propostos pela ciência.
Quanto ao termo latino sensibilitatem, ou a sensibilidade, este é de-
rivado do substantivo masculino latino sensibus, e definido como a capaci-
dade perceptiva sensorial referente às emoções, sentimentos ou mesmo às
sensações físicas. Essas definições nos ajudam na compreensão conceitual
de epistemologia da sensibilidade, que no ato de sua criação e desenvolvi-
mento assumiu a função de apresentar elementos de conhecimento, os de
cunho puramente indutivo e os da cognição intuitiva, cujos ajuntamentos
ocorrem sob a força da sensibilidade estética.
27 Estética, precedida por meditações filosóficas sobre alguns tópicos relacionados à essência do
poema e da metafísica.
53
esclarecedora sobre o conhecimento filosófico mediado pelo estético e se
torna, com sua obra, um dos primeiros pensadores a iniciar o debate sobre
a relação entre o sensível e o epistêmico (ROLET, 1998).
Segundo Baumgartem, investigar o belo, a arte, o sublime é a mais
precípua finalidade da Estética. Desde 1735, ano em que defendeu sua dis-
sertação Meditationes philosophicae de nonnulllis ad poema pertinen-
tibus, Baumgarten utiliza o termo para designar uma ciência de como as
coisas são conhecidas por meio dos sentidos, e que anos depois, com a pu-
blicação de Aesthetica, recebeu a definição de ciência da cognição sensível.
Baumgarten (1993) conceitua Estética como uma teoria do saber sensível,
que ele próprio colocara numa posição de inferioridade em relação ao co-
nhecimento racional. Todavia, na nossa compreensão, isso não implica que
a Estética seja uma área inferior de apreensão cognitiva do objeto, mas que
o mundo das impressões particulares, em sua perspectiva, seja fundamen-
tado pelo inteligível (KIVY, 2008). Por isso, ele descreve na sua obra Estéti-
ca que a arte, lugar da sensibilidade por excelência, resulta de atividades in-
telectuais e sensitivas. Com essa postulação, a concepção subjetiva do belo
ganha espaço, ou seja, diferentemente da ontologia clássica que apresenta o
belo como propriedade objetiva e perfeita do ente, na postulação baumgar-
teana, o belo passou a ser visto como algo que resulta da obra do sujeito,
deixando de ser apenas uma propriedade objetiva das coisas.
A tradição platônica, no entanto, considera o belo como uma essência
perfeita, a única que pode ser apreendida por intermédio do sensível, da vi-
são, razão pela qual o belo tem relação com ιδέα [idea e eidos], derivativo de
δει [dei], que significa “ver”, e indica o objeto a ser visto. Antes de Platão, os
dois termos, idea e eidos, eram empregados para expressar a forma visível
das coisas, a forma exterior, a visão sensível. Platão, porém, vinculou o ter-
mo ιδέα ao mundo inteligível. Essa conceituação provocou certa polêmica,
pois segundo Platão, a ideia que fazemos de uma coisa provém do princípio
geral, do mundo inteligível, constituinte da Ideia Universal, desqualifican-
do epistemes que pudessem ocorrer a partir e por meio do sensível. Isto
significa que, conforme Platão, é preciso reconhecer a existência de dois
aspectos do ser: o primeiro, visível, fenomênico e imperfeito; o segundo, in-
visível, metafenomênico e perfeito, que pode ser apreendido somente pelo
puramente inteligível. Neste aspecto, o belo ideal era perfeito em si mesmo,
deixando para o mundo sensível apenas a função de imitá-lo.
54
A concepção platônica foi rigorosamente repensada a partir de Bau-
mgarten, e sua diferenciação do conhecimento a partir e por meio do mun-
do sensível. Contudo, Kant, em sua atividade filosófica, aprofundou a ques-
tão ao presumir a organização do pensamento, notando que o problema da
percepção das coisas pelos cientistas era semelhante ao de como os metafí-
sicos conheciam coisas sobre ideias abstratas, tais como justiça, honestida-
de e moralidade. Segundo Kant (1980), o ser humano parte de dados para
fazê-los juízos. Para tanto, ele usa proposições analíticas e sintéticas. As
proposições analíticas explicam somente as palavras, enquanto que as sin-
téticas explicam as coisas para além das palavras. Além disso, Kant assume
outros dois termos fundamentais em sua discussão crítica, o conhecimento
a priori, que ocorre antes da experiência e torna a experiência possível; e o
conhecimento a posteriori, que ocorre a partir da experiência.
Na filosofia da época kantiana, os juízos analíticos eram perfeitamente
concebíveis, mas o que dizer dos juízos sintéticos a priori? A possibilidade
do conhecimento que ultrapassava os limites do objeto real em si era incon-
cebível. Todavia, Kant (1980) insistia que o conhecimento sintético a priori
era possível. O conhecimento nesse aspecto era o resultado de uma síntese
entre experiência e conceitos. Ora, sem os sentidos, como perceberíamos os
objetos? Entretanto, sem o entendimento, como formaríamos conceito de
um dado objeto? Logo, é necessária a interação da sensibilidade e da razão
para ocorrer apreensão do objeto e do ato cognitivo.
Há, por isso, necessidade de que o mundo numênico – realidade em
si – e o mundo fenomênico – aparência – interajam em vista de gerar co-
nhecimento, pois a coisa em si, o mundo numênico, era para Kant (1980)
incognoscível. Ultrapassar os limites de seu método levaria inevitavelmente
a falácias e paradoxos. Por isso, o emprego da razão deveria se dar na esfera
prática, conhecendo o mundo e organizando na forma a priori de tempo
e espaço a percepção sobre ele. Quando há concorde entre sensibilidade e
imaginação, e estas por sua vez entram num jogo harmônico com a inteli-
gência humana, as funções mentais de um indivíduo e a integração de suas
capacidades suscitam prazer estético e o gosto julga o objeto à mercê desse
agrado – ou desagrado.
O belo, objeto de tal agrado, permite compreender que o prazer es-
tético é suscitado apenas pela forma do objeto e é por isso desinteressado.
O belo, objeto natural que suscita o sentimento do prazer desinteressado,
55
e dependente apenas de sua forma – e não da sua matéria –, leva-nos a
acreditar numa harmonia entre natureza e mente. Neste aspecto, os fun-
damentos do juízo estético kantiano postulam uma possível superação da
dicotomia entre reino da natureza e reino moral. Segundo Kant, em Crítica
da Razão Pura (1980), enquanto a necessidade reside no reino da natureza,
regida pela relação causa-efeito, no mundo dos sujeitos, as ações não têm
necessariamente vínculo com a causa. Se no mundo sensível a natureza im-
pera, no mundo inteligível a liberdade responde pelas ações. Assim, o mun-
do inteligível torna-se o mundo do numênico regido por uma razão instru-
mental e teorizada em categorias de entendimento, enquanto que o mundo
da necessidade natural e, como coisa-em-si, sem categoria formal absoluta,
ou mundo do fenomênico, é organizado por epistemes que surgem do gesto
sensível. Neste ponto, há a possibilidade da liberdade, do intelecto tornar a
coisa-em-si algo cognoscível, pois não é determinado pela lei da causalida-
de que determina o mundo fenomênico.
A mediação entre os mundos da razão pura e da razão prática é enfati-
zada por Kant na Crítica da faculdade do juízo (1993), onde propõe a facul-
dade do julgamento pelo entendimento como atividade de intermediação
entre necessidade e liberdade. Logo, o entendimento é a fonte dos conheci-
mentos, a razão o princípio de nossas ações e o juízo tem a função de pen-
sar o mundo sensível em referência ao mundo inteligível (PASCAL, 1999:
177). Isso exige uma percepção com base na sensibilidade sobre um mundo
sem referências fixas e com significações tão entrecruzadas que, sem um
olhar estético, descrevê-lo ou narrá-lo tornar-se-ia algo complicado, pois o
mundo exterior é constantemente recriado pelo sensível humano e a reali-
dade imediata estilhaçada sem ser desvalorizada. Isto também demanda a
estruturação de um tipo de epistemologia que se atenha à natureza sensível
do indivíduo, assumindo a condição e a função de encontrar epistemes ne-
cessárias à compreensão de situações e acontecimentos cuja lógica clássica
não conseguiria dar significado.
Assim, as novas epistemes seriam extraídas do gesto estético movido
pela sensibilidade em relação a determinado evento. Neste caso, a epistemo-
logia da sensibilidade desenvolve análises identificadoras ou delineadoras
do conceito fundamental, oferecendo sustentação plausível ao conteúdo epis-
têmico de um evento ou acontecimento, trazendo ao intelecto entendimento
a partir de processos da sensibilidade estética (HEGEL, 2009). Portanto, a
56
epistemologia da sensibilidade é uma dimensão dos estudos filosóficos que
prima em apresentar elementos de conhecimento, os de cunho puramente
indutivo e os da cognição intuitiva, cujo ajuntamento ocorre pela sensibilida-
de estética, compondo novos cenários epistemológicos complexos.
57
científicos em razão do importante momento de renovação vivido pela lin-
guagem e pela matematização da lógica; e ao surgimento de novas linhas
epistemológicas vinculadas a um tipo particular de ciência e refratárias à
conceituação geral (BARROSO, W., 2003: 2). A fim de que sejam discutidas
as configurações epistemológicas refratárias dentro de parâmetros de no-
vos cenários epistemológicos complexos, Michel Maffesoli (1944-) sugere a
presença de uma nova estrutura racional, a razão sensível, capaz de superar
a utilizada pela modernidade, no caso a razão instrumental (MAFFESOLI,
1997). A razão sensível é um viés que pode garantir eficácia às epistemolo-
gias refratárias, pois um tipo de razão que se estrutura pela sensibilidade
e tactibilidade terá mais êxito ao procurar conciliar, sem necessidade de
sintetizar, pares até então dicotômicos: racionalidade/irracionalidade, in-
telectualidade/intuição, objetividade/subjetividade, entre outros. A razão
sensível, como instrumento epistemológico, desempenharia eficaz e plausi-
velmente papel de abordar o real em sua complexidade, apresentando com
leveza configurações que envolvam imprevisibilidade, onírico e incerteza,
características fundamentais da existência humana.
Neste sentido, há necessidade filosófica de haver mediação que possi-
bilite a relação profícua entre sensibilidade e entendimento. A essa mediação
chamamos de satisfação estética e sua ação evidencia um conceito funda-
mental, o eixo epistemológico que, pela sua invariância, assume caráter de
episteme e gera ilustrações ou esclarecimentos sobre a realidade. O eixo epis-
temológico é uma ideia principal que tem validade epistêmica e a partir do
qual são definidos parâmetros a serem seguidos na estruturação de uma obra,
ou mesmo na leitura e compreensão de uma obra (BARROSO, W., 2003).
A sensibilidade, além de protagonizar a satisfação estética, também
ajuda na composição de epistemes fora do espaço exclusivo do entendimen-
to. Segundo Maffesolli (1997), a lógica do instante superaria a força da ob-
jetividade histórica e tornaria o acaso algo necessário à condição humana,
pois nos indicaria o valor e a importância de olharmos com sensibilidade
e credo o absurdo enquanto apresentação incondicional da vida como é
no “aqui” e no “agora”, e também como valor epistemológico. Essa nova
percepção teórica do conhecimento, por sua característica de refrangência,
na perspectiva de Gaston Bachelard (1884-1962), aponta necessariamente
para um corte epistemológico, ou rupturas epistemológicas (1996), e abre
caminho para a constituição de uma epistemologia da sensibilidade.
58
A Epistemologia da Sensibilidade como partícipe
dos novos cenários epistemológicos complexos
28 A realidade inventada: como sabemos o que achamos que sabemos? Tradução livre.
59
É nisso que se faz necessário operar um importante corte
epistemológico, aquele que consiste em abandonar uma ló-
gica voltada para o longínquo, uma lógica histórica, em que
as causas e os efeitos se engendram de um modo inelutável
e decidido, e, ao contrário, estar atento a uma lógica do ins-
tante, apegada ao que é vivido aqui e agora. Tal lógica do
instante nada mais tem a ver com a vontade racionalista que
pensa poder agir sobre as coisas e as pessoas. Ela é muito
mais tributária do acaso, de um acaso que, ao mesmo tempo,
é necessário. (…) Em suma, uma lógica que deve menos à
História do que ao destino. (MAFFESOLI, 1997: 57).
60
A mediação entre ser físico (sensível) e ser moral (consciência), entre
pensamento e sentimento, sensação e intuição, realidade e forma é a sen-
sibilidade estética, processo necessário para que se possa alcançar o fim
último do entendimento existencial: o homem estético, a forma viva, a bela
alma. Schiller (1991), neste caso, afirma em sua XVI carta à educação esté-
tica da humanidade, que,
Considerações ao leitor
61
to. Em outros termos, o processo de transformação do experimentado em
algo belo, portanto, a relação entre sensibilidade e entendimento é feita no
instante do acontecimento. Mas a compreensão das cognições decorrentes
desse processo é feita a posteriori, pensando metodologicamente o preté-
rito. O esteta e o epistemólogo, por essa razão, refletem sobre a sensação
já passada não para entender o objeto que se tornou belo pela experiência,
mas concentram sua atividade intelectiva em outros pontos, a saber, no es-
paço do sujeito, na sensação que ele sente e na sua relação com o objeto.
A sensação, investigada por estetas e epistemólogos, ocorre sob a força
de um fenômeno existencial e, enquanto tal, não se enquadra na mentalida-
de binária de verdadeiro-falso, pela sua ambiguidade dialético-fenomênica.
Daí que cada sujeito tenha sua sensação e, consequentemente, sua singu-
laridade, promovendo diversidade de olhares sobre um mesmo objeto. O
belo, somente por isso, pode ser belo pela força sensível e não pela razão,
além de ser um termo que não pertence ao mundo conceitual da objetivida-
de e da clareza, do definível, pois ocorre no mundo da sensibilidade. Ainda
assim, será um conceito e, embora seja um conceito, não é possível haver
esteticamente generalização, pois há infinitas possibilidades não necessa-
riamente dedutíveis do belo.
É na percepção sensível e cognição do mundo que o sujeito faz suas
opções estéticas. Elas ocorrem quando há necessidade de tornar compreen-
sível a sensibilidade, ou seja, a opção estética garante ao sujeito a leitura de
sentimentos estéticos, que é um processo epistemológico da sensibilidade.
A estética faz esse processo de significação do sensível pelo entendimento.
No mundo atual, essa percepção subjetiva ocorre sob a égide da autonomia
porque está fundada na razão autônoma. A percepção subjetiva se faz a par-
tir de opções estéticas, mas isso somente ocorre porque tal percepção está
vinculada ao gesto estético. Assim, o mundo na forma caótica em que se en-
contra, demanda que o sujeito, ao fazer sua opção estética, tenha imediata-
mente depois um gesto estético que o faça dar significado a si nesse mundo
e ao mundo para si. Para que esse gesto estético ocorra, o sujeito necessita
da percepção subjetiva. Ainda assim, há um esforço inelutável por parte
do sujeito de apreender as formas do objeto e assegurar a si a estabilidade
na compreensão das coisas, gerando, assim, as configurações necessárias à
validade da epistemologia da sensibilidade.
62
Referências
______. Aesthetics: Lectures on Fine Art. Tradução de T.M. Knox (Vol I).
Oxford-UK, Oxford University Press: 1988.
63
______. Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução de Valério Rohden e A.
Marques. Rio de Janeiro, Forense: 1993.
64
EPISTEMOLOGIA DO ROMANCE29
Ana Paula Aparecida Caixeta30
Maria Veralice Barroso31
29 Este verbete pressupunha a autoria de Wilton Barroso Filho, que faleceu antes de sua elabo-
ração e escrita. Por esta razão, foi escrito e estruturado pelas autoras indicadas, a partir dos
desdobramentos assimilados sobre a teoria, enquanto membros do grupo Epistemologia do
Romance.
30 Líder do grupo de pesquisa Epistemologia do Romance e professora do Departamento de Ar-
tes Visuais (VIS) e do Programa de Pós-Graduação em Literatura (PósLit), na Universidade de
Brasília. Contato : <anapaulacaixeta.unb@gmail.com>
31 Vice-líder do grupo Epistemologia do Romance, professora colaboradora do Programa de Pós-
Graduação em Metafísica da Universidade de Brasília. Contato: <mariaveralice27@gmail.com>
65
embora se ampare na filosofia, não trabalha com pretensões de delinear
uma verdade verificável ou refutável por meio de sistemas. A partir dos ges-
tos estéticos e hermenêuticos, o que pretende a Epistemologia do Romance
é refletir filosoficamente acerca da estética enquanto espaço voltado para o
entendimento da relação do sujeito com objeto de criação artística, a ponto
de levar o leitor-pesquisador a um gesto epistemológico que permita extrair
possibilidades de conhecimentos sensíveis sobre o humano.
Apresentação
32 O artigo original foi publicado em anais, pela UNISINOS. Contudo, ele foi republicado como
capítulo de livro no Estudos Epistemológicos do Romance (BARROSO; W. e BARROSO,
2018).
66
autor que, no entendimento de Barroso, não só comportava, como também
sugeria, uma análise de cunho filosófico e literário tal como pressupunha
a ER, a dissertação de Paulino centrou-se na degradação de valores como
“o elemento fundador”33 da trilogia Os sonâmbulos, de Broch. Assim, tal
qual Hermann Broch, “o elemento fundador” já se fazia presente no texto
inaugural da ER enquanto conceito a ser pensado e explorado pelo campo
teórico e, certamente, o trabalho de Paulino34 cumpriu este apelo inicial da
teoria, embora não tenha esgotado o assunto.
A preocupação para com o desenvolvimento da teoria ER foi o que
levou Barroso Filho a se aproximar da literatura de um ponto de vista teó-
rico. Tal aproximação foi o que o conduziu ao Programa de Pós-Graduação
em Literatura da Universidade de Brasília em 2008. Dentro dos estudos
Comparados, neste Programa, Barroso Filho abriu a linha de pesquisa Epis-
temologia do Romance, a partir da qual passou a atuar tanto como profes-
sor, quanto como orientador de dissertações e teses. O primeiro trabalho
orientado por Wilton Barroso no Programa de Pós-Graduação de Literatura
foi a tese de doutorado de Maria Veralice Barroso, que propunha um olhar
sob a personagem de Don Juan, também como elemento fundador da Obra
de Milan Kundera. Somado a Broch, Kundera foi outro autor referência no
artigo inicial de Barroso, mas aqui, além do elemento fundador, a pesquisa
também se desenvolveu a partir da noção de “conjunto de obra do autor”35,
outro conceito caro à ER. Defendida em 2013, a tese de Maria Veralice
Barroso representou um grande avanço nos domínios da ER, entretanto,
muitas questões trazidas pela teoria continuaram e seguem necessitando de
investimentos intelectuais.
Ciente da complexidade do campo em discussão, em 2011, Wilton
Barroso Filho criou, oficialmente junto ao Conselho Nacional de Desen-
volvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Grupo de Pesquisa também
intitulado Epistemologia do Romance. A criação do Grupo representa um
33 Elemento fundador da obra pressupõe, para a ER, que no processo de leitura atenta feita pelo
que se denomina leitor-pesquisador, há vestígios e repetições que encaminham a leitura para o
entendimento de uma ideia que norteia o conjunto de obra de determinado autor. Não pressupõe
um acabamento na leitura quanto à compreensão dessa ideia, contudo, a ER exige a busca por
elementos que denunciem por que há uma latência de temas, em variadas repetições estéticas.
34 A pesquisa de Paulino foi retomada e ampliada no doutorado, realizado já no Programa de
Pós-Graduação em Literatura da UnB.
35 Ver “conjunto de obra”.
67
marco para a ER, pois, a partir dessa institucionalização, passou a receber
diversos estudantes e pesquisadores comprometidos com o desenvolvimen-
to da teoria. A partir de estudos sistematizados e estrategicamente acompa-
nhados, a variedade das propostas de pesquisas e de pesquisadores vindos
da literatura, da filosofia ou das artes, introduziria uma dinâmica própria
aos estudos, intensificando e, ao mesmo tempo, confirmando a natureza
interdisciplinar que caracterizava a ER já em suas origens.
Na trajetória de consolidação teórica, o ano de 2015 configurou-se
como outro momento significativo para o desenvolvimento da teoria ER. A
publicação do artigo Epistemologia do Romance: uma proposta metodo-
lógica possível para a análise do romance literário, produzido por Maria
Veralice Barroso e Wilton Barroso Filho, apresentou oficialmente o termo
leitor-pesquisador36 e trouxe mais uma vez o conceito de jogo de Gada-
mer para o centro de observação dos estudos, dois aspectos caros aos estu-
dos da ER e, além disso, fez nascer calorosos debates sobre a perspectiva
metodológica presente no título. Os questionamentos foram importantes
para dar-se conta de que, embora o serio ludere37 possa ser compreendido
com um espaço metodológico da ER, não se pode condicioná-lo como um
todo, em um campo metodológico, uma vez que se realiza com vigor bem
mais acentuado enquanto uma teoria complexa, interdisciplinar, voltada
ao comparatismo.
Além do referido artigo, ainda no ano de 2015, o trabalho de tese da
Pesquisadora Ana Paula Aparecida Caixeta configura-se como um impor-
tante passo da teoria rumo ao entendimento da estética no âmbito da ER.
Além de trazer para o espaço do debate aspectos da narrativa literária local.
Com os estudos estéticos voltados para a obra de Glauco Mattoso, Caixeta
(2015) propôs uma retomada da tradição do pensamento moderno em tor-
no da estética. Intitulada Glauco Mattoso, o antikitsch, defendida em 2015
no Programa de Pós-graduação em Literatura da UnB, a tese de doutorado
da pesquisadora buscou se aprofundar especialmente em Kant e Hegel para
dar conta de questões referentes à relação do sujeito com objeto, problemá-
tica que já no artigo primeiro de Barroso Filho, se apresentava por meio da
pergunta kantiana: “O que posso saber?”.
36 Ver “leitor-pesquisador”.
37 Ver “serio-udere”.
68
Embora tenhamos até aqui trazido referências pontuais cuja impor-
tância se faz sentir na trajetória acadêmico-científica da ER, vale ressaltar
que junto aos estudantes e pesquisadores que compõem o grupo homônimo
à teoria, a ER se apresenta como um campo teórico em desenvolvimento.
Avessa a engessamentos de quaisquer naturezas sugere um movimento de
intercâmbios entre a teoria e os que partem dela como opção teórica. Além
de preocupados com o desenvolvimento dos próprios trabalhos, cada mem-
bro deve por meio deles, ocupar-se com aspectos conceituais constitutivos
da ER, o que lhes permite um exercício não apenas de assimilação ou apli-
cação da teoria, mas de diálogo com o objeto estético de sua pesquisa. A
dinâmica dialogal e dialógica aponta para novas possibilidades de leituras
tanto do objeto analisado quanto do que fora inicialmente apontado por
Barroso Filho no texto inaugural da ER.
Foi por meio do movimento interativo entre a teoria, o pesquisador e
o objeto estético que a dissertação de mestrado de Denise Moreira Santa-
na, intitulada “A ontologia do tempo na atemporalidade da obra de Carlos
Fuentes”, defendida em 2017 no Programa de Pós-Graduação em Literatura
da Universidade de Brasília, atentou-se para a necessidade de desvendar,
de modo sistematizado, junto ao público palavras-conceito utilizadas no
âmbito da ER, tarefa esta assumida por hora na construção desse livro cujo
zelo requer preocupações com a consolidação teórica das ideias apontadas
por Barroso Filho em 2003.
Fundamentos teóricos
69
genética como espaço de formulação de hipóteses interpretativas, pensadas
a partir de vestígios da construção do texto como documentos históricos. O
que, pressupomos, separa a Epistemologia do Romance da crítica genética é
o gesto filosófico que, ancorado pela percepção hegeliana do Absoluto38 na
arte, permite pensar a questão do objeto estético/literário. Enquanto obje-
to dialético à recepção, as questões oriundas desse movimento de confronto
nascem do processo de contemplação, mediadas pelo gesto filosófico, logo,
reflexivo. Para a ER, esse gesto leva à busca por entendimento da tríade auto-
ria/obra/recepção e, consequentemente, para possibilidades de conhecimen-
to no contexto da arte, do sujeito que cria bem como sua condição no mundo.
Entretanto, para lidar com essa provocação inicial, foi necessário
percorrer uma fundamentação que contemplasse o terreno ocupado por
aquilo a que Barroso Filho chamaria Epistemologia do Romance. Desse
modo, vale ressaltar a nuança observada por ele, em suas leituras de Carri-
lho (1991), quando este prevê uma abertura epistemológica, especialmente
nascida das arestas etimológicas dos termos, evidenciadas por Barroso, W.
e Barroso (2018: 16): epistemology (ing.) e epistemoligie (fran.). Enquanto
a primeira destaca uma teoria do conhecimento, a segunda está para aquilo
que Barroso Filho atenua como filosofia e história da ciência. Mais do que
isso, o filósofo afina sua discussão assimilando a complexidade da episte-
mologia no contexto da narrativa literária a partir de parâmetros históricos:
do contexto da obra; da sua ontologia às teorias favoráveis à sua hermenêu-
tica. De Wilton Barroso nasce, portanto, a discussão de uma epistemologia
como Filosofia e História da Literatura (BARROSO, W. e BARROSO, 2018),
amparadas pelos esforços de Diderot e D’Alambert (1989) ao assumirem a
atividade artística como atividade racional, equivalente, agora, a uma dis-
cussão de caráter epistemológico.
Outra abertura apontada por Wilton Barroso para fundamentar o
espaço ocupado por uma epistemologia do romance está em Bachelard
(BARROSO, W. e BARROSO, 2008), quando este constrói um pensamento
70
acerca da objetividade científica trincada pela possibilidade de manipula-
ção do objeto, ou seja, uma subjetividade (que é estética) emerge da relação
entre sujeito e objeto, possibilitando outras formas de conhecimento que
estão em um espectro metafísico. O objeto a ser observado pelo epistemó-
logo do romance é um objeto estético, subjetivo, passível de transformação
por meio do entendimento, contudo, um objeto de conhecimento, pois é da
ordem do sujeito, que é individual e também social, e reflete sua condição
no mundo. Assim, de uma epistemologia com sensibilidade histórica, ini-
cialmente vislumbrada por Wilton Barroso, emerge a possibilidade de uma
epistemologia com sensibilidade estética, ampliada por Paulino (2006) em
sua pesquisa de mestrado.
Para alcançar os anseios de uma possibilidade analítica do romance,
cujo movimento teórico pressupunha um movimento epistemológico, Wil-
ton Barroso apropria-se de um termo latino, o serio-ludere39, como possi-
bilidade metodológica da ER. O principal argumento está na identificação
do objeto de análise, que não é o tema ou proposição do romance, mas a
obra literária como espaço de investigação de elementos estéticos contidos
naquele texto. Dessa forma, Wilton Barroso aponta tal ação metodológica
como necessária ao campo investigativo da ER, por ser ela capaz de con-
templar uma dinâmica entre saberes a fim de um objetivo em comum: os
conhecimentos possíveis, presentes no romance. Dar-se-á na ação do serio-
-ludere o espaço fecundo para um trânsito interdisciplinar de análise literá-
ria, a partir de disciplinas como a Estética, a Epistemologia e a Hermenêu-
tica, basilares para a ER.
O caráter de “brincadeira séria” promovido pela definição de serio-
-ludere compete, na ER, à ideia de jogo interpretativo ou jogo estético, pres-
supondo um movimento relacional entre sujeito e objeto, no caso, sujeito
investigativo e objeto estético de análise. Barroso, W. e Barroso (2018), as-
sim como Paulino (2006), demonstram a preocupação com o jogo inter-
pretativo movimentado pela relação de leitor e obra, cujas experiências não
se findam no movimento contemplativo em busca de um efeito imediato,
tampouco do sublime. Ao contrário, observa-se, por meio do serio-ludere,
um esforço em lidar com formas interpretativas oriundas da experiência
estética que denunciem as estratégias do efeito que o objeto artístico/literá-
71
rio provoca. Recorrendo-nos a Gadamer (2012), que coloca a ideia de jogo
como fundamental para a Estética, em suas discussões destaca-se sua preo-
cupação em esboçar uma hermenêutica da arte que promova uma consciên-
cia do estético e, por que não, uma consciência do efeito estético40. A noção
de jogo esboçada por Gadamer (2012), influenciada por Huizinga (2017),
contribui para o pensamento da ER, enquanto teoria, por considerar, espe-
cialmente, o papel do jogador no jogo interpretativo.
Dito isso, parece-nos ser de relevância o pensamento gadameriano
quando este pressupõe que o jogador é um sujeito de intencionalidades, que
pode ser modificado pelo objeto (um objeto de conhecimento), contudo,
criará estratégias durante esse movimento lúdico. Para a ER, seria o jogador
duas instâncias com intencionalidade: a primeira, o leitor-pesquisador41,
sujeito perverso e inquieto, que não se satisfaz com impressões iniciais e
o efeito estético provocado pela obra; e o autor, outro jogador inserido no
jogo interpretativo, cuja obra não é vazia de intencionalidade, embora seja
aberta (ECO, 1971) e inacabada (BAKHTIN, 2014).
O que nos aproxima de Gadamer (2012) está em sua percepção de
que a objetividade explorada no contexto da subjetividade não pode esgo-
tar um objeto, o que pressupõe, para a ER, que o movimento analítico da
obra literária, mesmo buscando identificar o que fundamenta a obra e quais
elementos estéticos são vestígios de conhecimento e se repetem naquela
forma estética, não cabe a ela fechar esse movimento em uma reflexão. Ao
contrário, é próprio da origem do leitor-pesquisador movimentar-se insis-
tentemente em possibilidades ontológicas quem fundam a obra literária,
especialmente um tipo de obra: o romance que pensa42.
Barroso, W. e Barroso (2018: 22) definem como ponto de partida
essencial para a ER a identificação do “conceito fundamental do objeto/
romance”. Após mais de uma década de estudos da teoria em questão, as
discussões da ER chegaram ao entendimento de que não se trata apenas
de encontrar um conceito fundamental do romance, mas de identificar ele-
mentos estéticos quem compõem uma ideia insistentemente reverberada
ao longo do conjunto de obra de determinado autor, levando o leitor-pes-
72
quisador a criar condições de traçar pontos elementares da intencionalida-
de e do processo criativo do autor, que escapariam em um tipo de leitura
desinteressada ou de deleite. Desse modo, atentas a uma das últimas falas
de Wilton Barroso sobre as duas premissas essenciais para a Epistemologia
do Romance, confirma-se aqui considerar, para o gesto filosófico de análi-
se, tanto a ideia de paradigma, como a necessidade da teoria no contexto
de entendimento e análise daquilo que toca a sensibilidade. Para Wilton
Barroso, o paradigma, pensando a partir de Thomas Kuhn (2017) é aderido
por convencimento, tornando-se fundamental existir um direcionamento
de análise que busque por esse convencimento, chamado aqui de “eixo epis-
temológico” – ou seja, o fundamento da obra. Para a ER, o fundamento con-
figura o que Lalande (1993: 435) define como “aquilo que dá a alguma coi-
sa a sua existência ou a sua razão de ser”. Essa identificação, entendemos,
não fecha o movimento interpretativo da obra, mas, sim, eleva-o a outras
problemáticas do texto literário nascidas desse apontamento. Para tanto, é
salutar para a ER voltar-se aos estudos kantianos acerca do conhecimento,
especialmente da diferença entre intuição e entendimento estabelecida em
Estética transcendental (2015), de modo que fique demarcado o lugar de
partida para um pesquisador da ER: da fruição ao entendimento e conheci-
mento promovido pela relação sujeito e objeto.
Desde seus primeiros esboços, a ER é colocada como uma teoria trans-
gressora, no sentido de não se filiar a nenhuma corrente filosófica ou teórica
literária, e isso é latente nos discursos dos pesquisadores dessa teoria. Dos
gestos de maior transgressão e apropriação, há destaque na leitura de Kant
aqui assumida, reunindo suas críticas como possibilidades interpretativas
de conhecimento sobre a arte, por um viés cognitivo, mas também histórico
e cultural, assumindo que o objeto arte, ou seja, enquanto objeto estético, é
passível de conceitos e conhecimentos, pois é também um objeto de histó-
ria. Nesse alinhavar de entendimento acerca de teorias filosóficas, podemos
situar a ER como vinculada ao pensamento kantiano, enquanto motivada
por um sujeito indagador, de conhecimento, que se relaciona com elemen-
tos (ou outros sujeitos e formas da arte) que não são isentos ou vazios de
significado, pois trazem consigo a marca da história, conforme pontua He-
gel (2001). Vale ressaltar que Kant (2015) é entusiasta de um sujeito que
ultrapassa os sentidos para, por um gesto de consciência e interpretação,
buscar entendimento e transformar esse entendimento em conhecimento,
73
o que, para a ER, configura sua essência enquanto teoria de análise com-
paratista. Ademais, dirão Barroso, W. e Barroso (2018: 23), interessa-nos,
em Kant, a um primeiro momento, uma estética de adjetivação judicativa,
ligada às relações inerentes à narrativa literária, à sua criação e àquilo que
a compõe, como forma de entendimento acerca do ajuizamento oriundo do
sujeito/objeto. Posteriormente, interessa-nos o que se pode conhecer des-
ses judicativos, por meio do estético.
No tocante a essa trajetória, começam a se evidenciar caminhos teó-
ricos fecundos para consolidação da ER. Sejam pelas disciplinas filosóficas
Estética, Epistemologia e Hermenêutica, sejam pelos caminhos dialógicos
que esbarram em outras manifestações estéticas e artísticas, a teoria da
Epistemologia do Romance ainda requer esforços para ampliar seu olhar
enquanto possibilidade comparatista e teórica da literatura, especialmente
em se considerando uma teoria em constante movimento, motivada pela
forma da arte em seu tempo e espaço. Destarte, ressalta-se o forte apelo
da ER ao movimento epistemológico da Estética, enquanto teoria da Arte,
nascida na modernidade, mas dona de tragédia ontológica do sujeito no
mundo: a razão em confronto com a sensibilidade.
Considerações ao leitor
74
objetos de criação estética, as artes visuais por exemplo, têm se mostrado
como um campo de atuação promissor para ER. As possibilidades de apro-
ximações com as visualidades se justificam quando se observa que, no cam-
po da criação estética, literária ou não, o exercício de compreensão pressu-
põe um gesto reflexivo que leve em conta as intencionalidades daquele que
cria, o objeto criado e as ações daquele que recebe.
Ao voltar suas atenções especialmente à relação do sujeito com o ob-
jeto, por meio do gesto filosófico, a ER apontou para a necessidade de se
repensar e reorientar a perspectiva epistemológica quando se trata de obje-
tos resultantes da criação sensível. Lidar com o conjunto da obra e nele ob-
servando as repetições ou “invarianças” – algo colhido por Barroso Filho na
Enciclopédia de Diderot —, buscar por meio de uma assunção hermenêu-
tica uma decomposição da obra que lhe permita compreender seu funcio-
namento bem como o jogo que a constitui, pode levar ao entendimento das
escolhas efetuadas pelo criador e, a partir disso, assumir como orientadora
da análise a pergunta kantiana (2015): O que posso saber?
Referências:
75
GADAMER, H.G. Verdade e Método 1. Tradução: Flávio Paulo Meurer.
Petrópoles, RJ: Vozes, 2012.
76
ESTÉTICA
Ana Paula Aparecida Caixeta43
77
provenientes da percepção sensível. Sua relevância para a teoria em ques-
tão, a qual se apresenta enquanto estudo crítico comparado e interdiscipli-
nar, vale-se especialmente na necessidade desta em lidar com um esforço
sensível e consciente acerca dos elementos que circundam o processo de
subjetivação, apreciação e pesquisa de objetos de arte. Por meio de um ges-
to estético, a ER busca ampliar o olhar acerca daquilo que faz parte do
objeto de criação estética, da sua gênese à recepção.
Apresentação
78
Seus esforços assumiram a necessidade de se levantar uma ciência da sen-
sação, embora compreendida por ele como um conhecimento inferior à
ciência racional (BAUMGARTEN, 1993). A hierarquia promovida em seu
discurso vai refletir na história da estética como tentativa de organização
e sistematização de um conhecimento necessário, porém, complexo e sub-
jetivo, fora dos parâmetros e critérios de verdade e método e, por sua vez,
difícil de ser enquadrado.
Esses esforços não são casuais e sua hierarquização não diminui a es-
tética. Dimensões ambíguas que ligam sensação e razão perpassam a histó-
ria do pensamento ocidental e ainda fazem parte dos problemas da estética,
seja pela perspectiva filosófica do problema da verdade (PAREYSON, 1996);
seja pelos eventos de uma estética moderna preocupada com princípios de
harmonia, crítica e sistematização (JIMENEZ, 1999); seja pelos enfrenta-
mentos da modernidade quanto à (des)estetização da arte e sua reproduti-
bilidade (ADORNO, 2008; BENJANIM, 1987) sua seja pela configuração de
um novo sujeito contemporâneo, que se volta para um pensamento sensível
que anule a dicotomia razão e sensibilidade em favor de confrontos dialógi-
cos, de um “saber” ou “não-saber”, cujo inconsciente assume uma identida-
de de contrários (RANCIÈRE, 2005).
De todo modo, não há espaço para desconsiderar a presença contun-
dente dos estudos acerca da sensibilidade e dos efeitos provocados pela arte
ao longo da história da arte e da filosofia. Assim sendo, apresento esta dis-
cussão sobre estética46 como confirmação da necessidade de compreensão
das coisas subjetivas da arte (e por que não, das coisas objetivas47) por meio
de seus efeitos sensíveis48, observados, agora, pela óptica da Epistemologia
do Romance49.
79
Princípios para uma estética epistemológica
80
corrobora com o papel dela enquanto parte da história e da formação do su-
jeito moderno, evidenciado por Descartes em sua célebre frase “cogito ergo
sum”. Em Jimenez (1999), um dos elementos que justifica os esboços dessa
autonomia pode ser observado ainda no período renascentista, cujo artista
transitava entre a figura do gênio (sem necessidade de explicação do seu
processo de realização das coisas) e do cientista (cujo processo de relação
com as coisas é, por si só, o conhecimento), metaforizados, hoje, pela figura
de Leonardo Da Vinci.
Para estes apontamentos valemo-nos da relevância dada às questões
que são da ordem da sensibilidade ao longo da história da filosofia do belo,
mesmo observada a inútil insistência em refutá-las. De todo modo, é notória
a presença da forte dicotomia que rege os princípios aos quais se baseiam a
estética, seja atrelada ao Belo e ao Bom, do ponto de vista da moral platô-
nica, seja atrelada à ultrarracionalidade exacerbada pelo projeto iluminista,
seja à experiência sensível e ao efeito que as coisas causam, a partir de uma
cultura visual e industrial do último século. Destarte, é inerente ao sujeito o
movimento dual presente nos processos de criação, nascido de conflitos en-
tre a sensação e entendimento daquilo que se sente, como forma consciente
e racional de escolhas no campo da arte. Escolhas estas que compreendem
um complexo epistemológico fecundo, de totalidade, para darem conta da
forma da arte em sua capacidade gestáltica (HEGEL, 2001).
Lidar com as etapas processuais de composição da obra de arte não é
sinônimo de controle absoluto ou método de aplicabilidade para criação – o
que, por consequência, esbarraria na ontologia da arte de um ponto de vista
benjaminiano quanto à aura do objeto, pois, pressuporia a reprodução me-
cânica daquilo que é da ordem da sensação, comprometido apenas com o
ato criativo. Contudo, valemo-nos da crença da intencionalidade como um
gesto estético perverso do sujeito que cria, denunciado por vestígios que se
escondem nos mais complexos movimentos de composição da arte – lite-
rária, visual, musical etc. – cujas variações e repetições não são elementos
ingênuos ou de espontânea sensação, mas fazem parte de uma consciência
criativa relevante que consolida aspectos representativos da forma estética
escolhida para abarcar uma poética.
Assumindo a intencionalidade do artista, valemo-nos de uma ressal-
va: não nos é de interesse afirmar que toda obra tem uma intencionalidade,
até porque isso faria do olhar da ER um olhar preocupado com os acordos
81
e engajamentos que alguns artistas submetem seus trabalhos e esta não é a
questão em debate. O processo de intencionalidade como ponto importante
da Estética na visão da ER é, principalmente, o reconhecimento da neces-
sidade de se partir da obra, porém, em retorno à autoria, não como apego
biográfico, mas como aspecto relevante no processo de investigação acerca
daquilo capaz de provocar o sensível daquele que cria, contudo, articulado
pela competência criativa, que é também da ordem do prático e do cogni-
tivo, conforme nos fará entender Hegel (2001) ao tratar da “manifestação
sensível da ideia”.
Desse modo, um olhar investigativo assumido pela disciplina Estética
na ER pressupõe preocupações que não se encerram neste ou naquele saber
interpretativo; nesta ou naquela relação primária ou representação identifi-
cada. As buscas epistemológicas lançam mão daquilo que se pode apreender
do objeto de arte, não encerrando-se em níveis interpretativos estruturais,
poéticos, linguísticos, históricos, sociológicos ou, até mesmo, psicanalíticos.
Há a compreensão – a partir daquilo que a Estética, enquanto abordagem
teórica, pode oferecer – de que o efeito sensível causado na relação do ob-
jeto com o sujeito, em suas mais variadas possibilidades (autoria/criação/
obra; espectador/interação/obra; leitor/obra; etc.), seja só o começo para
a identificação de uma infinidade de saberes oriundos desse movimento de
experiência sensível, mas também oriundos do objeto, intrínsecos a ele, por
um ponto de vista epistêmico. Isto posto, podemos abarcar agora as etapas
processuais importantes que julgamos compreender serem parte do movi-
mento da aisthesis no processo de conhecimento das coisas.
82
no campo da moral e da ética, cuja classe burguesa a encarna de sobre-
modo. Chama-nos atenção, contudo, que essa subordinação, concedida à
tentativa de autonomia do sujeito, cai sobre um ponto que nos é peculiar: o
domínio da estética acerca das relações dos sujeitos: seja por um ponto de
vista político, histórico, filosófico ou psicológico, por exemplo. A nós, cabe o
recorte desse domínio quanto aos aspectos do conhecimento, em que, dian-
te dos efeitos causados pelos processos da experiência sensível com a arte
ou qualquer outro objeto que evoque faculdades sensíveis de entendimento
(como o gosto pensando por Kant, por exemplo), identifica-se a facilidade
de se sucumbir aos encantos das primeiras impressões. E isso, de fato, pa-
rece distanciar quaisquer possibilidades de conhecimento no objeto de arte.
Assumir essas possibilidades é relacionar dois pontos conflituosos das
críticas kantianas, especialmente no que diz respeito aos conceitos a priori
que julgamos estar presentes no objeto de arte, logo, assumidos como ele-
mentos de conhecimento. Contrariar a máxima kantiana de que o objeto de
julgamento é livre de conceitos é também aceitar que seus tratados preci-
sam ser lidos em conjunto, pois elucidavam um processo de entendimento
das coisas e do sujeito no mundo a partir de etapas cognitivas sérias, de
modo a se alcançar determinados níveis de entendimento que, sem esse
distanciamento e critério, provavelmente não traria o grau de profundidade
analítica ali presente.
Assumimos que Kant percebeu a estética como ponto fecundo no
processo de entendimento, não só pelo que se está evidenciado em Estética
Transcendental (2015), mas, principalmente por seu cuidado em se dis-
tanciar das coisas, pensá-las de modo racional e sistematizado para, então,
conceituá-las, no tempo e espaço. Isso promulga um tipo de movimento
que nos parece imprescindível de ser evocado no contexto de análise da
obra de arte, sem fechar os olhos para os paradoxos e incongruências que
possam existir.
No tocante à estética hegeliana, apresentam-se várias interpretações
que a colocam em oposição ou afastamento às percepções kantianas acerca
dos efeitos da arte nas faculdades subjetivas. Não obstante, há um ponto
em comum em ambos: a autonomia do sujeito quanto ao entendimento e
faculdade das coisas. Embora Kant (2010; 2015) visse a autonomia do su-
jeito em dissonância com o objeto, e Hegel (1999) percebesse tanto o sujeito
quanto o objeto como parte constitutiva de um contexto, ambos parecem
83
se preocupar com critérios de realidade das coisas. Para nós, isso faz com
que possam ir ao encontro da possibilidade contextual das coisas fenomê-
nicas, passíveis de cognição e conhecimento. Este elo coincide com o gesto
da ER ao escolher a Estética como disciplina basilar no processo de análise
da obra de arte literária, pois nos permite pressupor: 1º) que os objetos
artísticos não são totalmente livres de conceitos e contextos, logo, possuem
uma história; 2º) se possuem uma história, são passíveis de conhecimento
acerca do sujeito e suas relações com o mundo. Desse modo, podemos in-
tuir que a arte é espaço para pensar questões do sujeito, ou seja, questões
da condição humana, evocadas, reverberadas e concretizadas pela forma da
arte – manifestadas sensivelmente pela ideia (HEGEL, 2001).
Assumindo a arte como espaço de entendimento do humano, a ER se
coloca como preocupada com os fins didáticos para se chegar a essas possi-
bilidades de conhecimento. Logo, pensamos em situações próprias da Esté-
tica que incitam o sujeito a pensar sobre suas fusões com o objeto. Embora
não assumamos como possibilidade analítica o intuito moderno de relação
separada entre sujeito e obra, a ER também não se mostra simpática à fusão
do sujeito como o objeto analisado. Pelo contrário, cria esforços analíticos
no sentido de priorizar um distanciamento momentâneo e consciente do
objeto a fim de que se possa apreender elementos que corroboram para os
efeitos que determinados objetos estéticos causam.
Essa relação que pressupõe direcionamentos conscientes não parece
algo que possa ser praticado de modo ingênuo ou apaixonado e, portanto, é
assumida aqui como um olhar sério, distanciado, de pesquisador51, de ma-
neira que seja propício lidar com possíveis variações das percepções causa-
das pelas experiências sensíveis com a obra de arte. Não defendemos, e nem
é de nosso interesse, uma análise que pressuponha um caráter absoluto e
universal da obra, entretanto, assumimos a totalidade hegeliana como par-
te processual dos diálogos entre o particular e universal como ponto im-
portante de compreensão dos objetos estéticos em seu contexto de criação.
Por conseguinte, para dar conta de uma estética a partir do distanciamento,
é necessário, primeiramente, lidar com seu efeito, algo assumido pela ER
como efeito estético.
51 Ver “leitor-pesquisador”.
84
O efeito estético52 é a experiência primária com os objetos, não ape-
nas artísticos, mas com tudo aquilo com que o sujeito se relaciona. Para a
ER, ele é primário e leva à faculdade subjetiva do julgamento de gosto, seja
daquilo que é belo, bom ou aprazível (KANT, 2010). Ele não se interessa
por conceitos; apenas vale-se do sentimento movido pela experiência inicial
que, para nós, embora legítima, ainda não está numa etapa fruitiva, pois o
encantamento impede a demora que a fruição incita.
Se o efeito estético ainda não é a fruição, pois não pressupõe deleite,
mas sensação primária e imediata, assumimos, então, que o processo frui-
tivo se dá posteriormente ao primeiro envolvimento com o efeito sensível.
E se a fruição é permitida, se se abre espaço para ela, haverá caminhos para
etapas interpretativas e de entendimento daquilo com o qual o sujeito se
relaciona sensivelmente, de modo que perguntas possam ser feitas a fim de
provocar um cognitivo que intensifique a capacidade da faculdade humana
de julgar as coisas – agora não mais pelo simples efeito imediato, mas pelo
exercício de entendimento, do modo como provoca Kant em suas pergun-
tas de conhecimento, quais sejam: “1) O que posso saber?; 2) O que devo
fazer?; 3) O que me é permitido esperar?” (KANT, 2015: 584). Dessas, a
primeira configura o gesto filosófico inicial do pesquisador da epistemolo-
gia do romance, que nasce de percepções estéticas e esforço hermenêutico
sobre essas impressões sensíveis.
Lidando com os conflitos gerados nesse processo relacional, que é sen-
sível por natureza (DEWEY, 2010; MERLEAY-PONTY, 1999), o movimento
cognitivo evocado diante do exercício de consciência do efeito que as coisas
causam leva a conhecer o que está por trás daquilo que forma o objeto: os
elementos estéticos. Reparem que há, na defesa desse processo, a intenção
de se lidar com tudo aquilo que é proveniente da experiência sensível sem
o filtro da moral como fonte primária de ajuizamento. Ao contrário, é por
etapas insistentes, demoradas e reflexivas que a ER compreende ser pos-
sível lidar com a análise da arte literária (ampliando, consequentemente,
para outras artes), a fim de que questões que possam parecer evidências
formativas da arte denunciem situações, condições, culturas e comporta-
mentos que precisam de linguagens para abarcá-las, contudo, sem espaços
discursivos que não seja o contemplado pela arte.
85
Considerações ao leitor
53 Menção feita à ER, presente na entrevista de Barroso, gravada em vídeo e intitulada “Episte-
mologia do Romance Entrevista: Wilton Barroso Filho”. disponível no sítio do YouTube, em:
<https://www.youtube.com/watch?v=kU5OOQ1LFGM>.
86
atrelado à autoria. Destarte, pelo objeto, pela figura de autoria e por ele-
mentos que extrapolam os limites da forma do objeto da arte, estão denun-
ciados vestígios que corroboram com a materialização das ideias sensíveis
concretizadas pela obra. Com a consciência desses critérios, assumimos,
assim, um ponto de partida genuíno para escolhas teóricas facilitadoras de
compreensão no contexto de análise dos objetos estéticos.
Referências
DEWEY, J. Arte como experiência. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins
Fontes, 2010.
87
JIMENEZ, Marc. O que é estética? Tradução: Fulvia M.L. Moretto. São
Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 1999.
88
IDÍLIO
Herisson Cardoso Fernandes54
89
de conflito. A Epistemologia do Romance parte da noção kunderiana de idílio
mas, ultrapassando-a, pensa o idílico como uma situação de ocultação e anu-
lação de questões relevantes para se pensar o humano. Tal ocultação deixaria
de guiar o indivíduo ao conhecimento de si, do outro, e da própria condição.
Apresentação
90
Para além dessa localização histórica, a atenção dada pela Epistemo-
logia do Romance ao termo Idílio vem, mais especificamente, a partir da
importância concebida à palavra por um de seus autores mais estudados: o
romancista tcheco Milan Kundera (1929-).
Em seu livro A arte do romance, uma coletânea de textos críticos e teó-
ricos, originalmente publicada em 1986, Kundera cria um dicionário próprio,
com palavras de significância específica dentro de sua obra romanesca. Na
edição brasileira, por tradução de Teresa Bulhões, o capítulo contendo tais
termos intitula-se Sessenta e três palavras (KUNDERA, 2009: 113).
O autor resgata o termo idílio e a maneira como o utiliza dentro de
seus romances: “o estado do mundo antes do primeiro conflito; ou, fora dos
conflitos; ou, com conflitos que não passam de mal-entendidos, por conse-
guinte falsos conflitos.” (KUNDERA, 2009: 123).
Kundera (2009) afirma que tal noção era muito cara a escritores ale-
mães como Goethe56 e Hegel57. Dessa forma, buscar em tais autores uma
breve formulação de suas ideias para com a concepção idílica nos parece
um dos fundamentos para pensar a forma como ele formula sua própria
compreensão do conceito.
O poema Hermann und Dorothea, de Goethe, escrito entre 1796 e
1797, é tido como um dos ápices modernos de uma construção de poema
idílico, como sublinhado pelo estudioso H.J. Schueler (1967: 36), em The
German Verse Epic in the Nineteenth and Twentieth Centuries. A reto-
mada do idílio de Goethe mostra-se importante na medida em que revela
uma faceta que nos parece central no pensamento kunderiano acerca do
tema: o significado da ideia idílica para o indivíduo moderno.
Ainda conforme H.J. Schueler, em carta endereçada a Schiller, Goethe
declara ser seu poema, Hermann und Dorothea, um “idílio burguês”
(bürgerliche Idylle) (SCHUELER, 1967: 2). E uma crítica de Wilhelm von
Humboldt58 destaca o conflito inerente:
91
taken by what in fact amounts to a completely new genre
and what Humboldt termed the “biürgerliche Epopee”. The
prime example of this new genre was, of course, Hermann
und Dorothea. (SCHUELER, 1967: 3 – Grifos no original)59.
92
abstrai, na descrição destes sentimentos, de qualquer rela-
ção com fins mais profundos e conteúdos mais ricos do que
os de uma vida bucólica de pastor. (HEGEL, 2009: 222).
61 “Mas um tal ‘mundo homogêneo’ e uma ‘visão totalizante’ são ainda possíveis dentro do qua-
dro limitado e abstrato de um cenário idílico ou estreitamente confinado. E é no interior de tal
quadro que alguns autores empreenderam esforços supremos para alcançar uma perspectiva
de totalidade e universalidade e apresentar algum ponto de vista válido, alguma ligação com
uma ‘imagem de mundo’ e uma ‘visão totalizante’ em pequena escala”. – Tradução nossa.
93
Parece-nos ser dessa espécie de concepção que parte Kundera (2009:
123) para afirmar que o idílio é “o estado do mundo antes do primeiro conflito”.
É a situação de ausência de conflitos, dos falsos conflitos ou dos meramente
mal-entendidos. Sendo assim, o romancista tcheco tem sua própria forma de
visualizar a existência das formas idílicas dentro de sua obra literária.
Carlos Fuentes, romancista e diplomata mexicano, diz que o “idílio é
o nome do vento terrível, constante e atrevido que atravessa as páginas dos
livros de Milan Kundera” (FUENTES, 2007: 115). Isso porque, para o escri-
tor tcheco, o totalitarismo – majoritariamente o totalitarismo comunista,
presença constante em seus romances – é uma das expressões de idílio para
o homem de seu tempo. O sonho de uma sociedade unitária, onde todos e
todas se reúnem em torno das mesmas vontades não se assemelha mesmo à
concepção da possibilidade de viver em um mundo conhecido e compreen-
dido em sua totalidade? Um Totalaschauung circunscrito em fronteiras po-
líticas? Nas palavras de Fuentes:
94
Em O livro do riso e do esquecimento (1978), romance de Kundera, le-
mos que todos os seres humanos aspiram desde sempre ao idílio. O livro vê-
-se às voltas com uma reflexão acerca da condição humana por intermédio
da meditação sobre os propósitos idílicos que cercam o que é inerentemente
humano, ou seja, de nossa constante vontade de “anular as contradições”
(BARROSO, W. e BARROSO, 2017: 99).
É fundamental essa compreensão de que o que é idílico não se sustenta
sem que haja quem lhe ampare e alimente. A busca pelo embotamento dos
conflitos interiores do sujeito manifestam-se também nos sítios exteriores.
95
Considerações ao leitor
96
reflexiva. A Epistemologia do Romance, tomando dessas reflexões, percebe
como o pensar sobre o idílio é pensar nessa intermitência que abre espaço
para as ponderações filosóficas inseridas no corpo das obras romanescas.
Referências
HEGEL, G.W.F. Cursos de estética: o belo na arte. 2a ed. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2009.
SCHUELER, H.J. The German Verse Epic in the Nineteenth and Twentieth
Centuries. Dordrecht: Springer Netherlands, 1967.
97
KITSCH
Ana Paula Aparecida Caixeta62
Lucas Fernando Gonçalves63
99
A ER ampara-se, ainda, à ideia kunderiana de ocultação da “merda” como
um ideal estético do ser (KUNDERA, 2008), em que o kitsch, como forma
estética da negação de questões da condição humana, lida com aquilo que
Hermann Broch (2014) define como ausência de reflexão ética no contexto
da estética, fomentado pela necessidade do efeito estético agradável. Para a
ER, o kitsch é a forma estética do idílio65.
Apresentação
65 Ver “idílio”.
66 Ver “Epistemologia do Romance”.
100
Kundera caracteriza o kitsch a partir de uma leitura que faz do pen-
samento de Hermann Broch, quando este, em uma de suas conferências,
tratou de questões teóricas importantes concernentes ao kitsch como ten-
dência de uma arte pela arte (BROCH, 1970). Como ensaísta, Broch apon-
tou reflexões no âmbito da cultura da modernidade, traduzidas para o
português em Espírito e Espírito de Época (2014), cujo pensamento era
norteado por suas interpelações aos sistemas de valores em decadência. Na
perspectiva de Broch, kitsch é uma estética da má-arte: “(…) o mal na arte
é o kitsch” (BROCH, 2014: 11), por ser algo fútil ou efêmero, sendo incapaz
de comunicar o espírito da totalidade humana. Nesse contexto, para a ER,
a totalidade humana a qual Broch evoca está relacionada com o espaço da
arte como espaço de possibilidade de transcendência, em que o sujeito, por
meio do estético, consegue lidar com reflexões da condição humana ocupa-
das pela forma da arte. Desse modo, sendo o kitsch incapaz dessa comuni-
cação, ele traz consigo uma forma que se ampara mais no efeito ameno e
falseador do que no tocante aos debates profundos do sujeito enquanto ser
no mundo.
Tanto Broch quanto Kundera compreendem o conceito não somente
como aspecto estético, no que diz respeito à forma da arte, mas como ferra-
menta de manipulação do efeito e anulação de reflexões pungentes. Para o
primeiro, há uma questão ética implícita, pois diz respeito aos valores de-
cadentes da sociedade europeia moderna. Tendo em vista que: “(…) o pro-
blema da arte como tal se tornou, ele mesmo, um problema ético” (BROCH,
2014: 10). Já em Kundera, temos uma preocupação existencial ou ontológi-
ca do termo kitsch:
101
Broch quanto para Kundera, contempla um espaço discursivo único, “(…)
daquilo que só o romance pode dizer”. (KUNDERA, 2006: 66). Entende-se,
portanto, que no espaço da narrativa literária pode-se falar com autentici-
dade sobre temas éticos e existenciais com cenários, histórias particulares
e banais, contudo, tocantes às mais diversas complexidades humanas, em
caráter universal. Dirá Kundera (2006: 24): “(…) o romancista quer dizer
tudo em cenas”.
Essa premissa de que só o romance tem algo a nos dizer, permite ques-
tionar, assim como fez Carlos Fuentes, o porquê dos outros dispositivos dis-
cursivos não serem capazes de fazer o mesmo: “Que pode dizer o romance
que não se pode dizer de outra maneira?” (FUENTES, 2007: 14). Para o
escritor mexicano, a linguagem da narrativa literária contempla nuanças
que escapam ao formato enrijecido de outros discursos. Com os romances
temos, potencialmente, o imperativo das escolhas estéticas essenciais para
melhor compreendermos a existência de modo imagético e poético, pois “O
imperativo que exorta o romancista a ‘concentrar-se no essencial’ (naquilo
que ‘só o romance pode dizer’)” (KUNDERA, 2006: 67 – Grifos no original).
Dessa forma, a concepção do romance poderia, portanto, ser definida como
uma meditação poética sobre a condição humana.
O que é então aquilo que o romance diz e que não pode ser
dito de nenhuma outra maneira? Isto que Laurence Sterne
e Italo Calvino, Denis Diderot e Milan Kundera, Miguel de
Cervantes e Juan Goytisolo souberam e sabem perfeita-
mente: O romance é uma busca verbal do que espera para
ser escrito. Mas não só o que diz respeito a uma realidade
quantificável, mensurável, conhecida, visível, mas sobretu-
do, desconhecida, caótica, marginalizada e, amiúde, intole-
rável, falaz e até desleal. (FUENTES, 2007: 30).
102
comprometimento ético, tal como evoca Broch. Ao contrário, a escolha da
teoria da ER, por elencar o kitsch como parte da construção de entendimen-
to dos processos estéticos do romance é explicada pela insistente presença
do kitsch nos espaços discursivos, especialmente quando há a dificuldade
de se lidar com discussões que tocam a existência do humano em suas mais
complexas naturezas, comportamentos e culturas.
103
Sabemos que as classes burguesas daquele período, lutando contra
os privilégios da nobreza, disputavam novos espaços sociais. Dentre eles,
a inserção no debate político sobre a necessidade de formação de Estados
democráticos e laicos, excluindo o poder das igrejas cristãs no seio público
e colocando as instituições religiosas como fator individual, doméstico ou
privado na vida das pessoas. Paralelo a isto, a classe burguesa se viu no de-
sejo de obter direitos que eram usufruídos somente pela nobreza.
104
A atitude kitsch, que é preciso agora definir, será um destes
modos de relações com o quadro da vida material, mistura
específica dos modos precedentes, característico de uma
forma de sociedade que se desenvolveu no decorrer do sé-
culo XIX com o nome de civilização burguesa. (MOLES,
1972: 21).
67 O termo serio ludere é apropriado por Wilton Barroso Filho no texto “Elementos para uma
epistemologia do romance”, publicado originalmente em 2003 e, posteriormente, em 2018,
no livro Estudos epistemológicos do romance. O termo faz referência à ideia de jogo interpre-
tativo do leitor pesquisador (consultar verbete) e evoca um movimento filosófico intencional
acerca da experiência estética. Há resquícios da ideia do serio ludere como método, contudo,
parte dos estudiosos da ER tem se preocupado cada vez mais com essa abordagem, entenden-
do que pode não ser um método, em seu sentido lato, e, sim, um movimento que pressupõe
envolvimento teórico, necessário para consciência da percepção sensível acerca de um objeto
estético de análise. Mais do que isso, para a ER, fica evidente que não se trata de um meio
investigativo a ser aplicado, mas de um gesto de relações teóricas acerca do universo que con-
templa elementos da ordem do estético. Ver “Serio ludere”.
105
Transitar por essas características conduz-nos à compreensão das
nuanças trazidas por Broch, quando evoca o conceito enquanto partícula de
reflexão acerca de uma época cuja sociedade se vê em declínio, ético e mo-
ral. O kitsch se torna, então, uma possível metáfora desse tempo, esboçado
por Broch na decadência de um século marcado pelos horrores do nazismo.
O austríaco Hermann Broch, romancista e ensaísta, utiliza suas obras,
consideradas de forte característica filosófica para provocar um debate so-
bre questões éticas e metafísicas, assumidas por ele como problemas sem
solução, inerentes ao sujeito.
Em Espírito e Espírito de Época, Broch explora a problemática do
kitsch em relação a decadência dos valores éticos. Na concepção do escritor,
o aspecto histórico da cultura ocidental, abordado pelos filósofos Nietzsche
e Kierkegaard, contribuem na tessitura do entendimento da subjetividade
do sujeito moderno que se encontra sem referenciais éticos. “Foi quase a
descoberta apaixonada do alcance ainda impossível de ser previsto do con-
ceito de valor que moveu Nietzsche – e Kierkegaard (…)” (BROCH, 2014:
10). O escritor austríaco destaca aqui a instauração de uma filosofia nietzs-
chiana que pensa acerca do niilismo68 e de uma reflexão sobre a angústia
dos valores realizada por Kierkegaard.
Tendo em vista o reconhecimento de Hermann Broch como escritor
crítico à decadência dos valores éticos por conta da efervescência do posi-
tivismo e do racionalismo científico europeu, fica evidente que os seus en-
saios caracterizam a preocupação latente com a vida contemporânea, bem
como aquilo que foi demarcado pela História Moderna. A atitude filosófica
de Broch é de engajamento estético e epistemológico na arte literária, pois
na sua visão o escritor é um que “ergue para todo e qualquer criador a per-
gunta sobre a relação com a época em que vive” (BROCH, 2014: 75). Tal
movimento de engajamento não pressupõe um vínculo ingênuo, contratual
entre o artista e sua obra em detrimento de valores e discursos, mas é tra-
zido como reflexo da necessidade da arte em pensar questões que são de
propriedade do sujeito enquanto ser no mundo, considerando a substância
68 O niilismo nasce do latim nihil, que designa o nada, o nada de sentido; o que traz o niilismo
para o âmbito da existência do homem é a sensação de que as coisas que o cercam não pos-
suem nenhum sentido; assim o homem passa a afirmar o “nada”, e muitas pessoas que mergu-
lham em um terrível vazio existencial acabam aceitando a depressão como estado da vida, com
o que findam por não mais terem esperança em nada.
106
daquilo que o compõe, daquilo que circunda sua existência e sua condição
de humano. Sem ignorar o próprio momento em que vive, ou seja, ao pre-
senciar a Primeira Guerra Mundial, Broch esclarece em seu ensaio James
Joyce e o Presente, de 1935 a sua posição estética acerca da importância da
condição espiritual e ética da condição humana:
107
Constatamos, assim, a diferenciação de Broch entre arte kitsch e arte
da totalidade. Na primeira há um mal ético e por consequência é decadente
esteticamente e espelha o niilismo da própria época. Ao passo que na arte
da totalidade, o que há é uma expressão do ser-no-mundo implicado onto-
logicamente com o espírito crítico de época
Ao escrever A Brincadeira, publicado no ano de 1967, Milan Kundera
toma como objeto de representação os temas da modernidade e do des-
dobramento da condição humana contemporânea, tendo em vista que “o
romance moderno nasce, ironicamente, da constatação da incompletude
humana” (BARROSO, W., 2014).
Kundera, como romancista, afirma: “Sempre me esforcei para aden-
trar a alma das coisas.” (KUNDERA, 2006: 60). A questão do sentido do ser
e da condição humana, na concepção de Kundera, está presente nos roman-
cistas. Pois o autor argumenta que “a razão do romance é manter o ‘mundo
da vida’ sob uma iluminação perpétua e nos proteger contra ‘o esquecimen-
to do ser’”. (KUNDERA, 2016: 25 – Grifos no original) e acrescenta:
108
reais, não sabemos grande coisa de nossos pais tais como
eram antes de nosso nascimento; não conhecemos nossos
familiares a não ser por fragmentos (…). Apenas o romance
isola um indivíduo, clareia toda a sua biografia, suas ideias,
seus sentimentos, torna-o insubstituível: faz dele o centro
de tudo. (KUNDERA, 2013: 44 – Grifos no original).
109
Em A arte do romance, Kundera (2016: 120) salienta: “em Praga, vi-
mos no kitsch um inimigo principal da arte”. Tal afirmação se dá em face
da postura kitsch, ao falsear o homem criando um modelo de existência
idealizada, de onde se retira o feio, o fétido, o sujo, o não padronizado, o
questionamento, o conflito e o trágico.
110
Kundera nos dá a ver que o kitsch não é só uma categoria que se esten-
de do político ao estético; sua presença nos dois campos se deve pelo fato
de ser condição de nossa existência. Por isso, com o sentimentalismo e as
certezas, genuinamente idílicas, são compreendidas como duas categorias
distintas, mas complementares no âmbito das reflexões kunderianas, em
que subtrai-se que o kitsch não é uma particularidade de classe ou caracte-
rística singular de algumas pessoas ou realidade cultural da sociedade mo-
derna ou pós-moderna. O kitsch está em todo discurso que se quer idílico,
porque busca uma unidade sem conflitos, como também pelo fim da tragé-
dia. Desse modo, o kitsch é o anseio ontológico pelo controle e segurança
existencial e, para isso, nega as fragilidades presentes em toda humanidade,
ora presente em cada indivíduo e nas sociedades.
Considerações ao leitor
111
valores estão em decadência. A queda de dogmas leva a outros formatos
dogmáticos, com novos sistemas de valores e novas oposições entre o que é
bom e mau. Na emergência desses novos valores surge também uma exigên-
cia estética que ampara esses novos sistemas, contudo, ancorada em formas
já existentes. Desse modo, a estética passa a substituir a credibilidade no
sistema, representando, pela forma reproduzida, uma falsa representação
de totalidade, como é o caso do kitsch.
Quando Kundera (1988) retoma o conceito de kitsch a partir da lei-
tura de Broch e assume o romance como um espaço de desdobramentos
metafísicos que leva à discussões ontológicas, ele abre uma questão impor-
tante para a ER, que ultrapassa aspectos da forma estética e conduz-nos à
reflexão acerca da condição humana denunciada no espaço da arte roman-
cesca. Desse modo, para a ER, o kitsch passa a ocupar um espaço exclusivo
da forma, cuja preocupação estética está no efeito, desconsiderando a pos-
sibilidade de conhecimento a partir do estético na arte.
Ao fazer transitar em seus romances temáticas que incitam a discus-
são sobre o idílio no contexto da existência humana, Kundera recorre a uma
forma estética do kitsch, que ampara esse conceito. Assim, ocupado por esta
forma que atenua e eufemiza aspectos de difíceis discursos sobre o sujeito
em sua existência no mundo, o idílio ganha forma por meio do kitsch e as-
sume outros confrontos éticos que em nada querem evocar reflexões tocan-
tes ao humano e sua condição de ser. Ao contrário, os confrontos éticos do
kitsch são reconfigurados pelo apego à forma e a celeuma entre o autêntico
e inautêntico. Isso é algo que não contribui para uma reflexão sobre o ser,
importante para a ER, por ser uma teoria que considera a forma um recurso
para construção estética de entendimento das experimentações feitas no
espaço da arte bem como possibilidade discursiva de reflexão sobre ques-
tões da condição humana.
Referências:
112
______. Kitsch, vanguardia y el arte por el arte. Barcelona: Tusquets
Editores, 1970.
113
LEITOR-PESQUISADOR
Maria Veralice Barroso70
Sara Lelis de Oliveira71
115
Apresentação
116
A elaboração teórica de leitor-perverso percorre a compreensão do fi-
lósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) acerca da relação sujeito/objeto
contida na obra Crítica da Razão Pura (2015), notadamente quando me-
dita acerca da estética transcendental. Importante destacar que, no âmbito
da teoria literária, a noção de sujeito kantiano pode ser atribuída ao autor,
ao narrador – que, na concepção da Epistemologia do Romance, trata-se
de um sujeito criado a partir de um gesto conduzido pelo entendimento do
sujeito autor acerca do objeto em processo de criação – e ao leitor.
Orientando-nos pelo pensar kantiano sobre a relação sujeito/objeto, o
leitor-perverso pode ser aqui compreendido como aquele que almeja o en-
tendimento do que lê. Em geral, sua relação com o objeto estético é marca-
da pelo exercício de busca da fruição. Dotado de um grau elevado de infor-
mações, o leitor conduzido pela perversidade objetiva ultrapassar o campo
das sensações no qual usualmente permanecem os leitores comuns74. Tal
desejo gera uma ação consciente que pode ser compreendida como um ges-
to epistemológico na medida em que visa ao entendimento que lhe permita
emitir juízos a respeito do que lê. Essa capacidade de transcender ao objeto
por meio da fruição revela graus de perversidade, pois para ir além do que é
dado na obra é necessário não se acomodar e, ao mesmo tempo, incomodar.
Neste sentido, um leitor dotado de perversidade tende a duvidar, questio-
nar e, habitualmente, esquivar-se do jogo que lhe é ofertado.
Longe de qualquer passividade, o leitor-perverso, ao se desvencilhar
do jogo pensado pelo escritor, recusa qualquer direcionamento no sentido
de fundir-se às ideias que lhes são apresentadas como verdadeiras. No ato
da leitura, ele também impõe suas regras e, ao fazer isso, não só cria o seu
próprio jogo interpretativo, como também revela consciência de que o esté-
tico nasce de um processo que envolve não somente inspiração, mas ainda
trabalho e elaboração racional.
Ser um leitor-perverso, entretanto, não quer dizer necessariamente ser
um leitor comprometido com a pesquisa do literário. Estabelecer um jogo no
processo de leitura que leve à fruição do objeto não indica que o leitor deverá
74 Aqui entendido como um leitor que se volta apenas para o prazer e o gosto da leitura, que não
demonstra desejo algum de transcender ao texto e que aceita o que lhe é dado. Sua partici-
pação no jogo estético-literário é previsível, pois sua satisfação resulta não do que entende,
do que possa vir a conhecer, mas do que sente. É o leitor que, com frequência, não consegue
ultrapassar o efeito estético – ver “Efeito Estético” – para fruir o objeto.
117
assumir o objeto lido como solo de uma pesquisa. A perversidade de um lei-
tor pode resultar não tão somente de sua condição de leitor (pesquisador ou
não), mas sobretudo de seu grau de informações, ou como postula os estudos
da estética da recepção, de seus amplos “horizontes de expectativas”.
Mas ainda que o comprometimento com a pesquisa do romance li-
terário não seja necessariamente do interesse de todo leitor-perverso, a
perversidade será, sempre, um atributo necessário e perseguido por aquele
que assume o romance literário como espaço de conhecimento, tal como
declaradamente se posicionam os pesquisadores orientados pelas reflexões
teóricas da Epistemologia do Romance.
Será a partir deste círculo de discussão que, neste trabalho, se consti-
tuirá e apresentará o conceito de leitor-pesquisador, posto que não há como
pensar a noção de leitor-pesquisador prescindindo da noção de leitor-per-
verso. É crucial, ainda, não perder de vista que o conceito de leitor-perverso
antecede ao conceito de leitor-pesquisador. O segundo é um desdobramen-
to do primeiro.
Leitor-pesquisador
75 As verdades da época em que a obra literária é escrita e que apenas no campo literário é possí-
vel dizê-las (BARROSO, W. e BARROSO, 2015: 21).
76 Termo cunhado por Maria Veralice Barroso em Epistemologia do romance: uma proposta
metodológica possível para análise do romance literário (2015).
77 Ver “Efeito Estético”.
118
que poderia ou poderiam ser os fundamentos epistemológicos contidos nas
estruturas textuais” (BARROSO, W. e BARROSO, 2015: 22 – Grifos nossos).
A elaboração do saber pelo leitor-pesquisador resulta da interpretação.
Interpretar é uma prática central desse sujeito para uma epistemologia do
texto literário e consiste em um exercício paulatino de decomposição da obra
ao longo de leituras contínuas. No âmbito da ER, interpretar é um processo
no qual se constrói conhecimento na medida em que os elementos resultan-
tes da decomposição textual são acumulados e articulados entre si: tem-se
então a produção de um saber proveniente do texto literário. Nesse sentido,
o caráter interpretativo não se restringe a determinado modelo de interpre-
tação. Propõem-se modos diversos de ler e compreender tendo em vista a
infinitude de conhecimentos provenientes da obra literária e sua capacidade
própria de orientar a compreensão. A depender do modo de leitura, serão
geradas possibilidades infinitas de saberes em/de uma mesma obra literária.
O modo de leitura interpretativa sugerido pela Epistemologia do Ro-
mance é o serio ludere78 (jogo sério). O serio ludere consiste em um modo de
interpretação onde se busca o fundamento epistemológico de uma obra lite-
rária (BARROSO, W. e BARROSO, 2015). Trata-se de uma ação decomposi-
tora da obra literária, pois o sujeito pesquisador “procura extrapolar de modo
abstrato as linhas, buscando as entrelinhas ou as estruturas subterrâneas do
texto” (BARROSO, W. e BARROSO, 2015: 27). Ao interpretar, o leitor-pes-
quisador deve relacionar as regras de produção do texto literário para não só
compreendê-la, como para compreender o conjunto de obra79 de um autor.
119
O gesto epistemológico, ou sujeito investigativo, procura
de forma abstrata passar para além do texto, perguntando-
-se o que lhe é possível saber do objeto/texto/conjunto de
textos/obras. Este gesto epistemológico voltado ao texto
literário faz com que se entre na estrutura íntima do ro-
mance, decompondo-o, procurando regularidades, proce-
dimentos formais, em suma, um fundamento ou princípio
geral. Acostumei-me a chamar essa atividade de serio lude-
re (BARROSO, W., 2003: 4).
120
um movimento (o jogo em si) que se configura conforme as experiências de
cada indivíduo com a obra decorrentes da natureza do jogo. Nesse caso, o
leitor-pesquisador posiciona-se diante do texto literário ciente do jogo em
que está inserido, mas um jogo sério, pois “o jogar possui uma referência
própria para com o que é sério” (GADAMER, 2008: 154).
Para o filósofo, o conceito de jogo inscreve-se na experiência artística.
Há nas obras de arte um modo de ser próprio que, por consistirem em uma
experiência, transformam o sujeito que as experimenta. Essa transforma-
ção resulta do referido caráter lúdico-representativo da arte: “todo repre-
sentar é um representar para alguém” (GADAMER, 2008: 162). O filósofo
propõe que o ato de “representar para” constitui o próprio ser da arte cuja
representação é intermediada pelo jogo. O fato de que a interação entre
obra e leitor seja mediada pelo jogo supõe que o espectador, isto é, o próprio
jogador, compreenda a cena. Seu dever é entender o sentido que se mani-
festa na obra já que ela se representa especialmente para ele. A consumação
do jogo é a arte em si, ou seja, a representação de seu modo de ser para o
leitor. A tarefa do leitor-pesquisador consiste, pois, no entendimento, na
interpretação do jogo que é a própria obra literária.
Conforme Gadamer, o entendimento pauta-se no reconhecimento da
essência representada na arte. “Mas o que vem a ser reconhecimento? É só
uma análise mais exata do fenômeno que mostrará o sentido ontológico da
representação, que é o que nos interessa” (GADAMER, 2008: 169). E o que
propicia o reconhecimento? A experiência da obra de arte pelo leitor. Para
reconhecê-la é necessário experimentá-la, experimentar seu jogo no qual o
leitor é protagonista. Ele compreende o jogo e define o modo de ser da arte,
mas sua compreensão está baseada em sua própria experiência para com a
arte, isto é, em como a arte representa-se para ele. Contudo, a compreensão
da obra mediante o reconhecimento de seu sentido ontológico só é feliz se
o leitor identifica “mais do que somente o que é conhecido” (GADAMER,
2008: 169 – Grifo no original). Eis o papel do leitor-pesquisador.
No âmbito da obra literária, conforme Gadamer, o jogo é concebido na
leitura. A experimentação dessa obra de arte em questão ocorre pelo jogo
oriundo das tramas textuais. A obra literária é o que se lê a partir de como ela
se apresenta, do que ela representa para o leitor. “O modo de ser da literatura
tem algo de peculiar e incomparável; ela impõe uma tarefa específica para o
transformar-se em compreensão” (GADAMER, 2008: 231). Essa tarefa con-
121
siste na interpretação que, por sua vez, consiste no reconhecimento de sua
identidade representada. A experimentação da obra de arte literária por in-
termédio da leitura é um deciframento também transformador, uma vez que
a compreensão do texto se vincula com a experiência artística literária.
A hermenêutica gadameriana embasa a tarefa do leitor-pesquisador
em seu aspecto mais importante da compreensão textual: identificar mais
do que se conhece. A interpretação desse leitor específico da ER deve expe-
rimentar uma leitura da obra literária que permita reconhecer seus funda-
mentos epistemológicos no intuito de formular um saber. Para tanto, essa
leitura caracteriza-se por um movimento contínuo em que o entendimento
da obra é articulado paulatinamente. O leitor-pesquisador deve jogar com
a obra para compreender suas estruturas textuais. No percurso desse jogo,
ele relaciona os elementos que deverão ser articulados entre si a fim de pro-
duzir um conhecimento extraído da obra literária. Essa relação de elemen-
tos consiste em aspectos linguísticos: “uma palavra, uma vírgula, uma pau-
sa, pode vir carregada de sentidos” (BARROSO, W. e BARROSO, 2015: 23).
Considerações ao leitor
122
Transformar o objeto literário em objeto de conhecimento é um ges-
to do pesquisador. Enquanto pesquisador, o sujeito-leitor necessita criar
estratégias que lhe deem condições de, ao final da leitura – ou das leituras,
posto que, na condição de pesquisador, o retorno ao texto muitas vezes se
dá à exaustão – emitir juízos de entendimento sobre o que leu. Enquanto
intérprete, o leitor pesquisador, tem – ou deveria ter – consciência de que
participa de um jogo constituído também pela racionalidade do escritor.
Desta feita, ele busca munir-se de estratégias ao criar, com o texto lido, uma
brincadeira séria ou, como postula a Epistemologia do Romance, um serio
ludere. O leitor-pesquisador não pode se permitir à comodidade de perma-
necer no campo das sensações, ou como pretende a ER, no efeito estético.
Enquanto pesquisador, ele necessita fruir o objeto para elaborar possibili-
dades de entendimentos.
Destarte, ao leitor-pesquisador não cabe uma função redentora no
sentido de esgotar as verdades contidas em uma obra literária. Na quali-
dade de estético, portanto, plural e inacabado, o romance jamais permiti-
ria esta ação totalizadora e insistir em ações dessa natureza só revelaria a
ingenuidade do leitor. Entretanto, por meio de estratégias sensíveis e res-
peitando os limites do texto, o leitor-pesquisador entende que é possível
operar a decomposição do texto em busca de elementos que lhe permitam
ultrapassar o campo do opinativo para acessar o campo do judicativo, pois
para o leitor-pesquisador a leitura do literário é regulada pela relação su-
jeito/objeto que se constitui em um processo de entendimento do qual será
possível conhecer algo.
Referências
123
GADAMER, Hans-Georg. A ontologia da obra de arte e seu significado
hermenêutico. Tradução de Flávio Paulo Meurer. In: Verdade e Método
I. Traços de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Editora Vozes, 10ª
edição, 2008, p. 154-237.
124
METAFÍSICA
Emanuelle Souza Alves da Silva80
125
Apresentação
126
A partir disso, há algumas interpretações ao longo da história da filo-
sofia, como a de que a metafísica inicialmente seja descrita como “depois
da física” no sentido da imaterialidade, em oposição ao sensível. Também
se pode entender que a noção de metafísica trata de algo para além a física
sem se associar com a concepção de localidade. Em Platão, nos deparamos
com a pretensão de um mundo metafísico detentor das verdades. Porém, o
ponto chave para nossa discussão neste trabalho consiste no caráter onto-
lógico81 de metafísica.
A expressão metafísica “vem a se firmar, de fato, na Idade Média”
(LALANDE, 1999: 663). Nesse contexto, a filosofia grega é absorvida pelos
escolásticos que, “em sentido próprio, [constituem] a filosofia cristã da Ida-
de Média” (ABBAGNANO, 2007: 344) e a metafísica se associa à teologia,
que “consiste na prioridade que o ser divino tem sobre todas as outras for-
mas ou modos de ser” (ABBAGNANO, 2007: 662). Essa metafísica escolás-
tica está na gênese do pensamento dos filósofos modernos.
Posto isso, René Descartes (1596-1650) traz à metafísica a concepção
de imaterialidade enquanto oposição às ciências. Segundo ele, a metafísica
se encontraria antes do dado material. Em sua epístola dedicatória presente
em Meditações, Descartes discorre sobre uma razão natural que intui de
forma solipsista a noção de um Deus: “Deus pode ser mostrado por razões
que não precisam ser buscadas em outro lugar que não em nós mesmos e
que nosso espírito sozinho é capaz de nos fornecer” (DESCARTES, 2005:
6), assim, para Descartes, segundo Lalande (1999: 667), “a metafísica ou
filosofia primeira é apresentada como tendo por objeto o conhecimento de
Deus e alma por razão natural”.
Incomodado com as definições de metafísica, Immanuel Kant (1724-
1804) formulou um novo sentido à metafísica, tornando-a espaço para tra-
tar questões de conhecimento, sendo a metafísica “em Kant, constitutivo
do conhecimento, ou do juízo moral, a priori, não derivado da experiência”
(LALANDE, 1999: 676 – Grifo no original). Essa abordagem kantiana não é
solipsista ao modo cartesiano, posto que Kant, em Crítica da Razão Pura,
se pergunta se é possível colocar a metafísica equivalente às ciências. Sua
Estética transcendental apresenta determinados passos metafísicos em que
127
o sujeito, a partir de sua sensibilidade, conhece os objetos: “Por intermédio,
pois, da sensibilidade são-nos dados objetos e só ela nos fornece intuições;
mas é o entendimento que pensa esses objetos” (KANT, 2001: 87).
Em Kant, a metafísica é entendida como transcendental. Ele postula
pressupostos e princípios para conhecer que já são metafísicos. Segundo
ele, o entendimento parte de uma relação entre o sujeito e o objeto. Essa
nova abordagem traz uma teoria metafísica diferente das anteriores a Kant,
pois, segundo ele, haveria a dificuldade em conhecer um objeto ou o sujeito
aprioristicamente, e desse modo, o conhecimento seria alcançado na rela-
ção entre os dois num determinado espaço e tempo. Porém, essa relação
seria a priori e necessária e, portanto, metafísica. Kant parte dos pressu-
postos deixados pela escolástica para pensar novas possibilidades de tratar
da metafísica e sua filosofia está comumente associada à base teórica da
Epistemologia do Romance.
A partir disso, a metafísica incidiria diretamente no esforço do co-
nhecimento e é dessa concepção que iniciamos a abordagem da metafísica
na Epistemologia do Romance. Segundo Lalande, a metafísica sempre teve
um caráter “duplo” (LALANDE, 1999: 668) e tomamos sua concepção como
um gancho para a pensarmos a dualidade entre sujeito e objeto na investi-
gação literária e o movimento metafísico que compreende o conhecimento
do sujeito sobre o objeto. Nossa discussão sobre o aspecto ontológico da
Epistemologia do Romance começa a partir da relação do sujeito-leitor com
o objeto literário. Essa ontologia busca o conhecimento do ser a partir dos
personagens, que desemboca no que chamamos condição humana. Assim,
não se pretende chegar a um conhecimento da natureza ou essência huma-
na, mas nos conhecimentos existenciais que emergem da obra.
128
eu. Desde que você cria um ser imaginário, um personagem, fica automa-
ticamente confrontado com a questão: o que é o eu? Como o eu pode ser
apreendido?” (KUNDERA, 2016: 31).
Assim, Kundera nos mostra que o problema do ser já se encontra na
gênese da obra literária, pois que o autor vive num mundo com determina-
das concepções do ser, mas o que o encoraja a escrever uma obra literária é
sua “hipótese ontológica” (KUNDERA, 2016: 56). Essa hipótese ontológica
é expressa na obra literária enquanto uma problemática geral ou questão
central que engloba as existências dos personagens. Como exemplo, Kun-
dera expõe a hipótese ontológica de Kafka: “O mundo segundo Kafka: o
universo burocratizado. O escritório não como um fenômeno social entre
outros, mas como a essência do mundo” (KUNDERA, 2016: 56), para ele
“toda a vida interior de K. é absorvida pela situação em que ele se encontra
preso, e nada do que possa ultrapassar essa situação […] nos é revelado”
(KUNDERA, 2016: 34). Do mesmo modo, a hipótese ontológica da obra
Os Sonâmbulos, de Hermann Broch (1886-1951), estaria na concepção do
mundo em decadência dos valores.
Assim em nossa abordagem, estreitamos a busca por conhecimento à
obra literária. A primeira frase de Metafísica é “todos os homens, por natu-
reza, tendem ao saber” (ARISTÓTELES, 2002: 3) e dessa frase surge toda
uma provocação filosófica que ainda persiste. A partir da Epistemologia do
Romance entendemos que o conhecimento não se condiciona à verificação
e adequação com o real na medida em que podemos obter conhecimento
da criação artística. Desse modo, tratamos o espaço da literatura como um
espaço de possível obtenção do conhecimento do ser.
A recepção da obra literária que a Epistemologia do Romance propõe
parte da reflexão kantiana, em que sua noção de objeto é entendida como a
obra artística (objeto estético82) e o sujeito é aquele que está recepcionando
ou está, de alguma maneira, se relacionando com a obra. Essa relação im-
plica num movimento que abrange dicotomias da sensibilidade: o entendi-
mento do sujeito partindo de sua razão e intuição.
Nessa perspectiva, é relevante situarmos como se pretende acessar
esse conhecimento, posto que na Epistemologia do Romance ele não se fin-
da somente na compreensão intuitiva da obra. A investigação literária que
82 Ver “Estética”.
129
busca o entendimento do eixo epistemológico da obra se empenha em se
distanciar da obra para que o entendimento não se confunda com juízos
opinativos. Assim, chegamos ao ponto em que separamos o leitor comum
que se vincula à obra para entrarmos no âmbito do leitor-pesquisador.
Essa distinção entre eleitor comum e leitor-pesquisador nos permite
elaborar uma maneira de investigar a obra academicamente. Partindo da
faculdade de julgamento, o leitor tem juízos sintéticos, e cabe ao pesquisa-
dor rever opiniões frutos de sua intuição para dar espaço a um entendimen-
to epistemológico da obra, e esse esforço é metafísico. O entendimento não
despreza a intuição, mas analisa os predicados intuitivos racionalmente a
fim de chegar a um entendimento.
Na formulação do conhecimento da obra, o leitor-pesquisador formu-
la proposições dos elementos estéticos da obra num diálogo constante con-
sigo mesmo e é importante que haja a consciência de que a relação sujeito/
objeto é limitada a um espaço e tempo. Posto isso, além da fruição ser um
esforço metafísico da leitura que leva em conta aspectos do sujeito-leitor
que podem ser históricos, pessoais e culturais, ela abrange as dimensões
ontológicas da obra. Essa fruição se encaminha para o entendimento da
obra na medida em que relações extra e intratextuais forem sendo feitas
no decorrer da leitura, mas nunca se finda numa verdade absoluta. Assim,
adentramos na hermenêutica a fim de alcançarmos conhecimentos. Georg
Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) nos auxilia nesta tarefa ao mostrar
que o conhecimento está em constante em dialética:
130
leitura. A partir de Hegel, a Epistemologia do Romance entende que não se
pode pretender chegar a uma teoria final sobre um objeto, pois que o sujei-
to pode fazer relações infinitas e, portanto, fruir de diversas maneiras um
mesmo objeto no decorrer da história.
A Epistemologia do Romance se utiliza da pergunta kantiana “Que
posso saber?” (KANT, 2001: 651) para instruir esses questionamentos dian-
te do objeto. A fruição do objeto estético depende do distanciamento que o
sujeito tem para com a obra, pois quando a investigação da obra se torna
científica e o sujeito é um pesquisador, ele procura entendê-la, buscando
responder a perguntas como “que conhecimento do humano essa obra pro-
porciona?”, ou “como a hipótese ontológica desta obra se mostra?”.
Consoante a isso, a Epistemologia do Romance não pretende chegar
a uma verdade da obra, no sentido de condicionar o conhecimento objeto
estético a uma única perspectiva ou método. O objetivo da Epistemologia
do Romance não é explorar a dicotomia material/imaterial que com as ten-
dências positivistas se desenrolam numa divisão entre ciência e filosofia.
Entendemos que pesquisar sob nossa perspectiva implica num esforço me-
tafísico que tenciona filosofia e literatura de maneira comparatista.
Tratamos a metafísica, desse modo, como um esforço filosófico que
parte dos elementos ontológicos envoltos na investigação literária de modo
a tensionar conceitos gerais do ser para compreender os conhecimentos pro-
vindos dos elementos estéticos da obra. O elemento particular da obra é a
individualidade do sujeito fictício e, a partir dele, podemos chegar a conheci-
mentos universais da condição humana. Assim, na Epistemologia do Roman-
ce, esse movimento para compreender o particular é de entender o indivíduo
que está num conjunto maior que compartilha da condição humana.
Na apreensão do mundo fictício do romance, o leitor, enquanto indiví-
duo, se relaciona com as individualidades do autor, narrador e dos persona-
gens. O entendimento dessas individualidades é adquirido junto à compreen-
são de elementos universais, sendo que esta relação universal/particular
possibilita ao leitor a concretização do conhecimento da condição humana.
Para Kundera, o escritor “é um descobridor que, tateando, se esforça para
desvendar um aspecto desconhecido da existência” (KUNDERA, 2016: 147).
A hipótese ontológica do autor direciona o leitor a pensar os persona-
gens envoltos por questões universais que dizem respeito ao ser no mundo.
Para Kundera, os personagens são seres no mundo, ainda que este mundo
131
seja fictício. Segundo ele, romance é “a grande forma de prosa em que o au-
tor, através de egos experimentais (personagens), examina até o fim alguns
grandes temas da existência” (KUNDERA, 2016: 146).
132
sua estética e fazer relações hermenêuticas, abrindo possibilidades de co-
nhecimento. Dessa relação encontramos uma possibilidade de refletir, tra-
tar do mundo real e, sobretudo, conhecê-lo a partir da hipótese ontológica
do autor. Sobre essa discussão, Wilton Barroso diz:
Considerações ao leitor
133
ses processos metafísicos estão presentes desde os primeiros apontamen-
tos estéticos para com a obra enquanto objeto, e se desenrolam e se apro-
fundam na convergência de diferentes posições espaço-temporais: autoria,
obra e recepção.
Referências
134
FERNANDES, Herisson. Elementos para uma ontologia do romance:
um estudo sobre a arte do romance de milan kundera. Dissertação de
mestrado, 2017.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. de Manuela Pinto dos Santos
e Alexandre Fradique Morujão. Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
135
NARRADOR FILOSÓFICO
Priscila Cristina Cavalcante Oliveira83
137
Epistemologia do Romance, ‘o romance que pensa’. Milan Kundera intitula
de ‘romance que pensa’ a narrativa que se torna um lugar para o pensamen-
to e a experimentação do humano. O ‘romance que pensa’ se preocupa com
a exploração do ser e o seu principal aliado é o gesto filosófico do narrador.
Apresentação
138
articula os saberes presentes no romance e considera de perto os pequenos
movimentos do texto, buscando a subterraneidade do texto literário sem
descartar nenhuma possibilidade de conhecimento. O leitor-pesquisador
é estratégico, estabelece relações, questiona, desconfia, decompõe o texto
literário para desvendar a sua gênese.
Por detrás desse olhar pesquisador ou investigativo do leitor dentro
do texto literário há uma busca de possibilidades de saberes no objeto artís-
tico. O autor trabalha a palavra como o artesão a argila, é labor. As palavras
que formam o texto literário são escolhidas pelo seu criador, atentando-se
ao modo de sua utilização, uma vez que dentro de cada palavra há muitas
possibilidades de interpretações semânticas.
A partir do olhar atento e do processo de investigação e decomposi-
ção do texto literário, a Epistemologia do Romance busca a racionalidade
do gesto do criador na construção do texto literário. Enquanto conjunto de
obra85 de um autor, há elementos que se mantêm em todos os textos literá-
rios, não se modificam. Qual é o elemento literário que sustenta o romance
do começo ao fim? Essa invariância permite o reconhecimento da obra de
um autor e orienta a saber qual(quais) elemento(s) constitutivo(s) está(ão)
desde o início à finalização do seu processo de criação. O que eu posso saber
da recorrência de escolhas estéticas, seja de um personagem, um lugar, a
opção pelo narrador? Esse elemento, que faz com que o romance comece
e termine, é denominado pela Epistemologia do Romance por fundamento
primeiro. Quando encontrado o fundamento primeiro do texto literário a
partir da sua decomposição, faz-se necessária analisar a sua configuração
e dialogá-lo com a história da literatura que o texto literário está inserido,
conforme atenta Wilton Barroso.
Tanto os estudos acerca do leitor quanto os do narrador recebem
atenção afim pela Epistemologia do Romance. No já mencionado artigo
Elementos para uma Epistemologia do Romance, Wilton Barroso apon-
tava para a importância de refletir o papel exercido pelo narrador do texto
literário, destacava a necessidade de investigar as intenções que levam o
autor a escolher como narrará o texto literário e explicava que
139
(…) essa escolha subjetiva é uma questão explosiva na His-
tória da Literatura, basta evocar, por exemplo, o narrador
ausente de Gustave Flaubert ou o narrador autoral-tem-
poral de Hermann Broch. A leitura de Kant me confirma
que a qualificação estética fundamental no romance está
indissociável do problema do critério, ou ainda da ausência
deste, de escolha. Essa liberdade de escolha, que, por ser
subjetiva, não pode ser universalizada como elemento de
conhecimento particular, no caso, o romance que exprime
a escolha subjetiva do narrador, que fica assim validado.
(BARROSO, W., 2003).
140
figura de narrador que desenvolve posturas reflexivas e filosóficas de forma
consciente e intencional acerca da compreensão do humano, conforme ex-
plica Maria Veralice Barroso no artigo O narrador filosófico como elemento
estético do romance que pensa. A voz filosófica do narrador indaga, pro-
voca um processo reflexivo e torna-se um solo fecundo para os estudos da
Epistemologia do Romance por ser um campo de possibilidades de saberes
do contexto existencial do ser. À luz dos estudos da narrativa kunderiana,
Barroso afirma que
141
O gesto filosófico do narrador kunderiano é um elemento de destaque
dentro da obra romanesca do autor. Para Barroso, W., Barroso e Paulino
(2012), o teor reflexivo do narrador presente no romance A insustentável
leveza do ser, de Milan Kundera, mostra-se ausente na sua adaptação para
o cinema. Conforme apontado, o filme A insustentável leveza do ser, diri-
gido por Philip Kaufman, apresenta um narrador figurativo, que atribui ao
texto maior clareza em vez de ocupar um lugar denso, complexo e central
como é conferido no romance. A ausência da voz filosófica do narrador no
filme, de acordo com o artigo, provoca no leitor uma sensação de incom-
pletude e cria sentidos diferentes em comparação ao romance das relações
entre as personagens. Ancorado ainda na leitura do artigo A questão do
narrador e as duas insustentáveis levezas do ser: no romance e no filme de
Barroso, W., Barroso e Paulino (2012), se faz necessário lembrar que esta-
mos diante de duas obras, o romance e o filme. A produção cinematográfica
não é o romance de Kundera, mas sim uma releitura e, portanto, uma outra
obra. O narrador kunderiano tem suas especificidades e
142
compromete com o conhecimento da existência humana. O ‘romance que
pensa’ pratica a filosofia dentro do fazer literário, mas não se subordina hie-
rarquicamente a nenhuma corrente filosófica, diferentemente do romance
filosófico. O ‘romance que pensa’ se preocupa com a exploração do ser e o
seu principal aliado é o gesto filosófico do narrador.
O gesto filosófico do narrador é o gesto da inquietação, do incômodo.
A voz filosófica do narrador observa os personagens, faz revelar o que está
até então desconhecido, reflete continuamente o ser, constata a existência
de imensos conflitos que fazem parte do humano, e
87 Trecho referente ao texto “A voz filosófica do narrador kunderiano”, de Wilton Barroso, 2008.
Este texto encontra-se no site Epistemologia do Romance.
143
des (1996) e Theodor W. Adorno (2003), mas diferenciações são necessá-
rias no espaço das discussões, conforme explica Maria Veralice Barroso no
artigo O narrador filosófico como elemento estético do romance que pensa.
No livro A invenção do romance, Jacyntho Lins Brandão discorre so-
bre o surgimento do romance grego e lida com os problemas que cercam a
história da narrativa de ficção na Grécia. Brandão (2005) entende o estatu-
to do narrador a partir do termo grego que Aristóteles define como a ação
do narrador: apangéllon. A partir de sua explicação, entende-se que o ter-
mo é composto de um prefixo que indica a ideia de afastamento, e o radical
da palavra tem o sentido de anunciar, trazer notícias, contar, narrar. Essa
definição, conforme explica Maria Veralice Barroso, no artigo O narrador
filosófico como elemento estético do romance que pensa, não sustenta to-
dos os narradores, uma vez que muitos deles não se contentam em apenas
contar histórias, mas buscam compreendê-las, pensar a condição humana
e refletir sobre o humano. A esses narradores o narrar não é a única ação
que praticam, eles pensam também sobre os acontecimentos e as histórias
narradas, e “ao praticarem o gesto filosófico, levam o leitor a refletir, até
porque não oferecem uma resposta, ao contrário disso. Suas reflexões, nor-
malmente ampliam a problematização porque intensificam as dubiedades
contidas no texto literário”88.
O narrador pós-moderno de Silviano Santiago no livro Nas malhas da
letra também destoa do narrador de interesse da Epistemologia do Roman-
ce. Nesta concepção, o narrador é “apenas aquele que reproduz. As coisas
se passam como se o narrador estivesse apertando o botão do canal de te-
levisão para o leitor” (SANTIAGO, 2002: 60). A ação do espetáculo se faz
mais presente no ato de narrar do que o uso da palavra. Diferentemente do
narrador filosófico, presente nas discussões da Epistemologia do Romance,
que não se satisfaz em apenas contar uma história, ele reflete sobre a histó-
ria narrada.
O livro O narrador do romance, de Ronaldo Costa Fernandes, apesar
de dialogar em alguns momentos com o narrador previsto pela Epistemolo-
gia do Romance, traz diferenciações nas discussões. Para Fernandes (1996),
144
o narrador é aquele que sabe e transmite informação, criando uma relação
de credibilidade com o leitor. No âmbito da Epistemologia do Romance,
a escolha de como o autor narrará o romance é estética. No processo de
criação do romance, o autor escolhe como será o narrador. Por exemplo,
Gustave Flaubert, em Madame Bovary, escolhe um tipo de narrativa em
que não há intermediação entre o que é narrado e o leitor, libertando o au-
tor da responsabilidade do que estava sendo contado. Essa escolha reflete
na história do romance, conforme explica Wilton Barroso (2003) no artigo
Elementos para uma Epistemologia do Romance.
A voz filosófica do narrador é uma escolha estética do criador, que a
realiza a partir de uma ação racional. A escolha do narrador pelo criador
não é em vão e fortuita, mas um ato laborioso e estratégico. Embutidas nas
escolhas, há intencionalidades do autor. A voz filosófica do narrador conduz
o gesto filosófico no interior do romance e a forma como o narrador filosófi-
co tece comentários sobre as personagens ou sobre os acontecimentos, por
exemplo, quer de certa forma interferir na relação do leitor com o objeto li-
terário89. Uma postura mais atenciosa, questionadora e desconfiada diante
do romance permite ao leitor-pesquisador uma leitura mais ampliada com
possibilidades de interpretação.
O narrador previsto pela Epistemologia do Romance dialoga com as
proposições teóricas de outros autores, mas também traz uma abordagem
inovadora que é a voz filosófica do narrador. A voz filosófica conduz o gesto
filosófico, a inquietação, o incômodo. Nesta acepção, o narrador não apenas
conta uma história ou acontecimento, ele também busca compreendê-la e
leva o leitor a participar do exercício do refletir. O narrador filosófico
145
As discussões empreendidas pela Epistemologia do Romance e o es-
tudo das obras romanescas de Kundera e Broch, por exemplo, têm con-
tribuído para pensar questões acerca do narrador filosófico e do romance
que pensa.
Considerações ao leitor
Referências
146
BARROSO, Maria Veralice & BARROSO Wilton. A questão do narrador
e as duas insustentáveis levezas do ser: no romance e no filme. 2012.
Disponível em <http://epistemologiadoromance.com/>.
147
ROMANCE QUE PENSA90
Maria Veralice Barroso91
149
o desejo de fazer do literário um lugar do exercício filosófico; nessa acepção
a narrativa romanesca moderna, sem subterfúgios de qualquer natureza, é
assumidamente um lugar do gesto filosófico, constituindo-se em um espaço
de experimentação do pensamento. Entretanto, embora pratique a filoso-
fia, o exercício criador não está submetido a nenhuma corrente ou sistema
filosófico. Na segunda acepção, o Romance que Pensa pode ser entendido
como um ramo da prosa literária que, desde o século XVII com Miguel de
Cervantes, pratica o gesto filosófico de modo espontâneo, sem demonstrar
interesse em dialogar com a tradição do pensamento filosófico.
Apresentação
150
das em ensaios, muitos dos quais reunidos posteriormente nas coletâneas
ensaísticas dos livros A arte do romance, Os testamentos traídos e A corti-
na. Das muitas deduções possíveis acerca do romance moderno, extraídas
de uma leitura dos ensaios contidos nestes três livros, uma delas nos é par-
ticularmente cara, aquela que leva ao entendimento de que para tratar do
romance que pensa, Kundera percorre um caminho invertido, no qual vai
se contraponto a categorias romanescas distintas.
Por meio dessa trajetória, cuja prática sobressalente é o diálogo por
divergência, Kundera conduz ao entendimento de que a noção de roman-
ce que pensa é gradativamente construída por oposição. Ao longo de sua
jornada ensaística não formula claramente a conceituação de romance que
defende e quer exercer, mas pelo princípio da negação, traz para a cena
elementos constitutivos de certas narrativas que, conforme seu entendi-
mento, necessitam serem revistos para que o pensamento tenha condições
de esteticamente entrar nas narrativas. Destarte, notadamente, Kundera se
interpõe ao que aqui poder-se-ia denominar de: romance psicológico,
romance histórico e romance filosófico.
Romance psicológico
151
O patrulhamento daquele que cria em relação às ações das suas per-
sonagens é incômodo aos olhos do romancista por várias razões: ele retira
do leitor a beleza da descoberta e, na medida em que tudo descreve e a tudo
responde, restringe os espaços das perguntas e consequentemente do pen-
samento. Sobretudo o desagrado evidenciado pelo ensaísta em relação ao
romance psicológico se deve ao fato de que, ao centrar atenção máxima nas
personagens, essa tipologia romanesca negligencia a importância do tema.
E, para Kundera, as personagens não importam enquanto seres correspon-
dentes ao real, mas sim enquanto “eus” que, a partir de uma condição exis-
tencial particular, experienciam as situações propostas pela narrativa cujo
desenrolar está centrado, mais que num enredo, em um tema. E, ao fazer
isso, a narrativa permite um olhar sobre questões humanas que partem do
individual, mas se projetam no universal. Desse modo, buscando incidir
com frequência sobre o compromisso da narrativa romanesca com o veros-
símil93, as personagens são, por ele, tratadas como egos experimentais94.
Em O livro do riso e do esquecimento, por exemplo, embora total-
mente díspares, as narrativas se constituem em um romance cujo entrela-
çamento das sete partes independentes se dá por meio dos temas da Histó-
ria e do riso. É dessa insubordinação, liberdade adquirida pela reorientação
da escrita que se volta ao tema, que advém a simpatia demonstrada pela
escrita literária de Hermann Broch e Robert Musil. Os três volumes de Os
Sonâmbulos, por exemplo, são interligados não por ações lineares das per-
sonagens, nem por uma cronologia temporal, mas por um único tema: a
decadência dos valores. Musil, por sua vez, ainda que não totalmente avesso
à linearidade, interliga os sentidos de O homem sem qualidades por meio
do tema da comicidade e, à medida que prossegue, a narrativa se afasta do
verossímil aproximando-se do jogo como estratégia de narrar, e é este jogo
cuidadosamente elaborado que mantém em movimento o gesto meditativo.
152
No entendimento de Kundera, mesmo introduzindo o pensamento
no romance, os dois autores souberam libertar a literatura do exagero des-
critivo ao propor um modo de pensar distanciado dos sistemas: “Nietzs-
che muda em profundidade a maneira de filosofar: como definiu Hannah
Arendt, o pensamento de Nietzsche é experimental.”(KUNDERA, 1994: 158
– Grifo no original). A resistência de Nietzsche em transformar as ideias em
dogmatismos dentro de sistema de pensamento é semelhante à aversão de
Kundera pelo excesso de descrições sobre as personagens tal qual se obser-
va no psicologismo praticado por parte dos criadores do romance realista.
Neste sentido, o que parece propor Kundera não é que o romancista passe
a seguir o pensamento de nietzcheano, muito menos que a ele se submeta,
mas parece entender ser importante e produtivo para a narrativa literária
se atentar para a maneira de pensar do filósofo.
No ensaio em questão, Sobre obras e aranhas, já se percebe uma clara
defesa em direção ao romance que pensa, entretanto, aqui, Kundera não
está preocupado em discutir se o romance é Filosofia ou se é Literatura95,
como parece. Pelas digressões sobre o trato das ideias praticadas de um
ponto de vista estético pelos literatos e do ponto de vista filosófico pelo filó-
sofo, o que deseja Kundera é desvendar as maneiras pelas quais o romance
deve pensar, e estas maneiras certamente se distanciam da prática excessiva
da descrição cujo resultado se aproxima dos exageros explicativos contidos
nas narrativas filosóficas que, ao pensar por sistemas, arriscam transformar
95 Cabe ressaltar que, de modo geral, as reflexões kunderianas sobre a arte do romance moderno,
sejam elas quais forem, passam necessariamente pela relação Literatura e Filosofia e, ao tecer
reflexões sobre as três tipologias romanescas aqui nominadas – romance psicológico, histórico
ou filosófico –, não será diferente. Contudo, esta relação de maneira alguma quer retomar a
velha dicotomia: Literatura é Filosofia? ou, Filosofia é Literatura? Primeiro porque esta é uma
contenda que não tem razão de existir e segundo porque é muito fácil de ser resolvida, basta lem-
brar que diferentemente da literatura, a filosofia está comprometida com a verdade, ela busca
dar conta de uma verdade; mesmo que não a encontre é essa sua busca. Nesse sentido, aquilo
que traz como verdade pode ser refutado, questionado ou mesmo assimilado e partilhado. Ao
passo que aquilo que a literatura narra como possibilidade de verdade permanece no campo
da ambivalência, sendo, portanto, impossível a qualquer um refutar; sobretudo, porque o que
é dito no espaço do romance literário, por mais real que nos pareça, atua no campo da ficção.
Tentar refutar ou mesmo assimilar como verdade o que, de um ponto de vista estético-literário,
foi narrado é, no mínimo, risível. Assim, será brincando que autores como Machado de Assis,
por exemplo, risivelmente,jogam com a pretensão de verdade que o leitor, por ingenuidade ou
arrogância, busca em seus escritos. De um ponto de vista das duas áreas, a contenda Literatura é
ou não é Filosofia? ou vice-versa é tão risível quanto permanecermos naquela que o jogo macha-
diano fez circular por quase um século: “Capitu traiu ou não traiu Bentinho?”.
153
as ideias em dogmas. Nesta primeira acepção não se tem um conceito ela-
borado de romance que pensa, mas, por oposição ao romance psicológico
ou ao que Kundera entende acerca desta categoria de romance, já é possível
observar o que efetivamente não pode ser o romance que pensa.
Romance histórico
154
sim um movimento do Ser que reivindica a história como elemento estético
imprescindível para a criação. Ao entrar para o romance, as circunstâncias
históricas se tornam elementos estéticos sem os quais a narrativa perderia
a credibilidade e potencialidades meditativas acerca da existência.
A metafísica do romance que pensa supõe um olhar às ontologias que
se completam pela presença da história, mas somente como espaço no qual
os seres se constituem e vivem cotidianamente suas experiências. Ao tomar
a história sem pretensão de ilustrá-la ou destituído do desejo de se posicio-
nar sobre as situações descritas tentando emitir ou construir juízos de valor
sobre os fatos descritos, o romancista tornará o espaço e os movimentos da
história capazes de iluminar as diversas possibilidades da condição huma-
na, pois tal como salienta Hannah Arendt (2010), a forma como os sujeitos
se condicionam aos aspectos históricos não é a mesma, depende de algo que
é do indivíduo, que é singular. E são estas partículas que não se sujeitam ao
desejo homogeneizante que Kundera (1988) acredita ser tarefa do escritor
tentar explorar para compreender, uma vez que este não é psicólogo, histo-
riador ou filósofo, mas sim explorador da existência.
Romance filosófico
155
da aproximação que a crítica teima em realizar entre sua escrita literária e o
existencialismo sartreano. Em resposta a tal entendimento, dirá que cons-
titui um grande erro pensar que para se praticar o pensamento no romance
seja necessário ao romancista apelar para os “profissionais do pensamen-
to”. Em seu entendimento, por mais que um romance pense, por mais que
esteja imbuído da prática filosófica, ele faz isso de modo diferente da filoso-
fia, portanto, o ato de pensar na narrativa literária nada tem a ver com uma
subordinação às correntes ou sistemas filosóficos (KUNDERA, 2006: 62).
Para Kundera, a transformação que desviou o romance da fascinação psico-
lógica e o reorientou para a análise existencial, aquela que busca esclarecer
aspectos da condição humana, é anterior à moda existencialista que tomou
conta da Europa no século XX, e, conforme sua compreensão, fora inspira-
da (no âmbito da literatura) não pelos filósofos, mas pela própria lógica de
evolução da arte do romance (KUNDERA, 2006: 63).
O que é reafirmado em A cortina, de uma forma ou de outra, já pode-
ria ser compreendido como um fundamento do pensar estético de Kunde-
ra, uma vez que, em um de seus livros anteriores, A arte do romance, reto-
ma a trajetória do romance moderno expondo um olhar particular sobre o
romance europeu, tratando-o como uma herança depreciada de Cervantes
e, ao mesmo tempo, buscando problematizar em que medida o romance
literário se constituiu como um lugar de exploração e conhecimento do
Ser, o qual, em sua concepção, teria sido negligenciado pela ciência e pela
filosofia modernas.
Do fio condutor das reflexões da coletânea de A arte do romance
(1988) subtrai-se que compreender o romance é compreender seu espírito,
“o espírito da complexidade” em contraposição aos alaridos das respostas
simples que mais e mais nos cercam por todos os lados; é buscar pelo es-
pírito da continuidade, já que em cada obra estão contidas as experiências
anteriores do romance; é, sobretudo, compactuar com a obstinação de Her-
mann Broch, que por repetidas vezes afirmou “descobrir o que somente um
romance pode descobrir é a única razão de ser do romance.” (BROCH, apud
KUNDERA, 1988: 11).
O mesmo fio condutor destas reflexões será responsável por tecer nuan-
ças que fazem subtrair a noção de romance que pensa em contraposição à no-
ção de romance filosófico, cuja sistematização se dá pelo jogo entre Literatura
e Filosofia. Caminhando pelas teias reflexivas ou pelas narrativas literárias
156
kunderianas, nos será permitido depreender de imediato que a relação entre
conceitos filosóficos e o romance literário não é algo proibido, mas deverá
ocorrer preferencialmente por meio de uma “dialógica” – pensando aqui no
uso bakhtiniano do termo –, na qual não haja pretensões de subordinação.
Ao apontar para uma ideia de romance que pensa, o ensaísta gasta
boa parte do tempo discorrendo acerca da relação literatura e filosofia no
âmbito da criação romanesca. Assim como Nietszche quis libertar o pen-
samento dos sistemas, aproximando a filosofia da literatura, defendendo a
necessidade de tratar a criação literária como um exercício do pensamento
no qual pressupõe racionalidades, Kundera aproxima a literatura da filoso-
fia, sem, entretanto, silenciar as potencialidades do literário,
157
ções”, diferentemente do pensamento experimental que deseja “a convicção
é um pensamento que parou, que se imobilizou” (KUNDERA, 1994: 159) e
contraditoriamente a esta ação imobilizadora, “o pensamento experimental
não deseja persuadir, mas inspirar; inspirar um outro pensamento, pôr em
movimento o pensar (KUNDERA, 1994: 159).
Do mesmo modo que Nietzsche não se tornou menos filósofo, porque
se aventurou por um caminho para além dos temas considerados puramen-
te filosóficos para explorar tudo que é humano, com o romance pensado
de Musil nada do que pode ser pensado ficará mais excluído da arte do ro-
mance (KUNDERA, 1994: 160). Destarte, poder-se-ia concluir que a prática
filosófica no romance que pensa, nesta acepção, pode até dialogar com a
tradição do pensamento ocidental e com frequência é algo que se realiza,
entretanto, se distancia do conceito de romance filosófico por se tratar de
um objeto estético resultante de uma atividade que se mantém autônoma,
destrelada de qualquer compromisso com a noção de verdade perseguida
pelos sistemas filosóficos e, por conseguinte, traduz-se como um gesto me-
ditativo que, em vez de buscar por verdades conclusivas sobre o humano,
quer fazer brotar outras questões, outras perguntas…
158
do escritor. Desviando-se da valorização ao biográfico ou ao psicanalítico,
o que almeja a ER é, sobretudo, compreender os sentidos e motivações das
escolhas estéticas realizadas pelo criador da obra. Para a ER, entender as
intenções do autor é algo que auxilia no processo e elucidação no que se re-
fere ao papel exercido pelos elementos estéticos no funcionamento da obra.
Ao estabelecer e coordenar o diálogo entre literatura e filosofia, os es-
tudos desenvolvidos no âmbito da ER se amparam em um tripé filosófico
constituído pela estética, a epistemologia e a hermenêutica. De um ponto de
vista estético, entendem que os processos de criação que orientam as esco-
lhas dos elementos formadores da obra interferem nos sentidos constituti-
vos do objeto criado. Já de um ponto de vista epistemológico, a relação do
sujeito leitor-pesquisador97 com o objeto esteticamente criado leva a ques-
tionamentos acerca das possibilidades de conhecimento, de onde emerge a
pergunta kantiana “O que eu posso saber?” (KANT, 2015) que impulsiona o
pesquisador à assunção de uma ação hermenêutica. Destarte, para dar con-
ta do jogo estético e epistemológico, de um ponto de vista hermenêutico,
procura-se compreender as etapas da criação para que seja possível enten-
der as engrenagens que fazem funcionar o texto. Essa sondagem se reali-
za por meio de uma decomposição, de uma desmontagem das estruturas
textuais, gesto compreendido pelos estudos epistemológicos como sendo
uma brincadeira séria, ou um sério ludere98. Na concepção da ER, esse gesto
pode permitir ao leitor-pesquisador99 enxergar escolhas e procedimentos
realizados pelo criador, tal como prefigura Wilton Barroso Filho no artigo
inaugural da ER100 (2003).
A inter-relação dos gestos estéticos, epistemológicos e hermenêuti-
cos no processo de análise do romance literário busca meios que levem ao
entendimento do que fora, a priori, intuído, permitindo ao leitor que se
afaste da pura intuição para ser capaz de formular questões sobre aquilo
que constituiu a sua relação com o objeto artístico. A junção da estética, da
epistemologia e da hermenêutica faz ainda que o pensamento introduzido
97 Ver “leitor-pesquisador”.
98 Ver “serio ludere”.
99 Ver “leitor-pesquisador”.
100 Apresentado ao público em 2003, o referido estudo foi recentemente, em 2018, publicado no
livro Estudos epistemológicos do Romance, pela Verbena Editora.
159
no romance seja tratado como algo decorrente de uma metafísica101, capaz
de se aproximar, de modo mais reflexivo e menos opinativo, de um movi-
mento que faz circular o desejo de extrair possibilidades de conhecimentos
acerca do humano no espaço das subjetividades literárias.
Se entendermos que o romance é construído a partir de um movimen-
to que reivindica uma razão sensível102, estamos admitindo que o teor de
racionalidade que lhe é agregado possibilita uma edificação estética paulati-
namente elaborada, fazendo-o existir e se mover com uma engrenagem que
lhe é própria. A descoberta do funcionamento desta engrenagem permite
ao leitor, especialmente ao leitor-pesquisador103, inferências no sentido de
ampliar o campo de conhecimentos acerca dos mais diversos aspectos da
existência. Por sua vez, a sensibilidade também condutora de todo o pro-
cesso, injeta na narrativa a metáfora, a ambivalência, sem a quais o estético
não existiria. O grau de sensibilidade faz com que a narrativa romanesca
se afaste da pura descrição para se situar no campo da subjetividade. Este
aspecto que ajuda definir a literatura enquanto tal, ancora-a no campo das
plurissignificações, retirando assim, do criador ou do recebedor, qualquer
probabilidade de fechamento do campo de sentidos.
Por mais que uma obra de cunho estético faça uso da razão, por mais
que seja movida por engrenagens constituídas por meios laborais e refle-
xivos, por mais que assumidamente se aproxime da prática filosófica, não
há como se manifestar enquanto articuladora de um sistema de pensamen-
to, portanto, não nos será permitido jamais dela querer subtrair ou refutar
uma verdade. Será, portanto, nesse campo prenhe de razões e sensações
que se fixará o jogo literário do romance que pensa.
Neste sentido, mesmo os criadores, ou especialmente estes, que assu-
mem o romance como lugar da prática filosófica, fazem-no cientes de que
trabalham com possibilidades de existência. Por tal motivo, dirá Kundera
que, pouco importa que estas possibilidades sejam ou não verificáveis. Sem
dúvida, Broch e Kafka são dois bons exemplos a ilustrar o pensar kunde-
riano sobre o assunto, pois quando Broch lança suas personagens, egos
experimentais, no turbilhão do mundo marcado pela degradação dos va-
160
lores, ou quando Kafka faz algo similar experimentando a existência no
universo das instituições burocráticas que sufocam, esmagam e paralisam
os sujeitos a elas submetidas, o que desejam não é encontrar uma verda-
de descritiva sobre estas instituições, ou realizar um julgamento acerca de
suas atuações, sejam elas políticas sociais, históricas, ideológicas…, o que
desejam é, antes de tudo, compreender os gestos, as angústias, os conflitos,
as atitudes, enfim, aspectos existenciais do homem lançado nesses turbi-
lhões; que sejam ou não reais é, na concepção kunderiana, algo secundário
(KUNDERA, 1988: 43). O que de fato interessa é, a partir da experimen-
tação extenuante dos conflitos humanos nas mais variadas condições par-
ticulares, conseguir ampliar o olhar e refletir sobre a condição humana de
um ponto de vista universal.
Neste sentido, ao lidar com os pressupostos da epistemologia, braço
da filosofia que historicamente esteve ligada às ciências modernas, reforça-
-se a afirmativa segundo a qual a noção de romance que pensa emerge da
necessidade de delinear um caminho em busca do conhecimento. Entre-
tanto, neste percurso, ainda que de um ponto de vista epistemológico, será
necessário trabalhar no sentido de manter um claro afastamento da linea-
ridade e da lógica conclusiva, normalmente previstas pelas ciências exatas,
muitas das quais ainda calcadas nos apelos positivistas. Tentar encontrar
uma resposta para os problemas suscitados é ingênuo, porque, no territó-
rio do estético, seja por meio de binarismos ou pluralidades, eles jamais se
resolverão. Não é senão por outro motivo que a ER acompanha a afirmativa
de Kundera que diz: de um modo ou de outro, “o espírito do romance é o
espírito da complexidade. Cada romance diz ao leitor: ‘As coisas são mais
complicadas do que você pensa’” (KUNDERA, 1988: 21).
Por ser propositadamente edificado em bases meditativas, o romance
que pensa sustenta com maior vigor a prerrogativa da complexidade, uma
vez que seu principal aliado é, com frequência, o riso, especialmente o riso
irônico. Atento às escolhas criteriosas dos componentes estéticos, por meio
de um narrador filosófico104, o romance que pensa coloca em cena uma voz
que incomoda, inquieta, não dando tréguas às pretensões de harmonização
e de contemplação do leitor. Além de desestabilizar por meio de questiona-
mentos contínuos a atuação do narrador filosófico, o romance que pensa
161
contribui para instaurar a ambivalência e o paradoxo, elementos que, se-
gundo Kundera, são prerrogativas essenciais do romance que se quer cons-
tituir por meio da complexidade.
Utilizando-se da voz filosófica do narrador prenhe de uma ironia cor-
rosiva – evidenciando, portanto, elaboração racional e intencionalidades
– o escritor busca relativizar e desestabilizar qualquer certeza que possa
confortar as necessidades idílicas105 do leitor. Pois, se com a ironia ele vai,
aos poucos, corroendo as estruturas homogeneizantes, pela força destrutiva
da comicidade, faz cair por terra edifícios de valores, modelos e princípios
condutores da vida moderna. Em vez de querer representar uma verdade
que possa ser harmonicamente assimilada pelo leitor, na medida em que
provoca a destronação, o desmoronamento de valores, crenças, tradições e
ideologias secularmente constituídos, sem deixar nada no lugar, com regu-
laridade, o romance que pensa opta por colocar à vista o trágico humano.
É deliberado em procurar atuar não na resolução dos conflitos, mas na ins-
tauração de um caos permanente.
Se a escolha do narrador se traduz enquanto ação primordial para a
constituição do romance que pensa, a aparente presença direta ou indireta
do escritor no texto por meio de um eu autoral, acentua ainda mais a dubie-
dade do jogo estético proposto pelo criador.
Contrariando posições emblemáticas como as de Roland Barthes, que
em 1968 preconizava a morte do autor, ou de Michel Foucault que, logo em
seguida, em 1969, perguntava “O que é um autor?”, aquele que lida com o
romance que pensa nos círculos da ER, retoma a tríade autor-texto-leitor
que, no século XX, fora refutada especialmente pelos estudos estruturalis-
tas e recepcionais. Mas, no âmbito desta discussão, é importante lembrar
que no mesmo momento em que a crítica buscava minimizar, ou mesmo
silenciar, a presença do autor no processo de interpretação do texto, para-
doxalmente, um número expressivo de escritores cada vez mais participa-
va de um jogo estético cujo eu autoral, ou aparentemente autoral, entrava
no texto sem nenhuma cerimônia. Neste sentido, aquele que parte de uma
análise epistemológica irá se confrontar com outro problema uma vez que
se orienta para aquisição de um gesto que tende a extrapolar e mesmo sub-
verter os limites interpretativos centrados no texto e no leitor. Entretanto, a
162
questão agora não é tão somente considerar o papel do escritor no processo
interpretativo, mas como lidar com a presença de um eu que se nomeia e
age como autor do texto?
Embora olhe com zelo para as questões referentes à presença de um
eu autoral atuante nos romances que pensam, a ER não está preocupada em
saber que parcela da vida, das angústias e frustrações pessoais do sujeito
que escreve está sendo confessada por este eu autoral. Enquanto boa parte
da crítica literária tenta compreender a presença dessa voz autoral frequen-
te nas narrativas ficcionais106, a ER trilha outros caminhos interpretativos.
Seu interesse não é pelas particularidades individuais do eu que escreve,
mas pelo jogo estético criado pela presença desse eu que se nomeia e se
confunde com a voz do escritor.
Por entender que o romance que pensa participa de um projeto esté-
tico elaborado pelo criador, sendo, portanto, decorrente de intenções que,
para se efetivarem, reivindicam tomadas de decisões, especialmente ligadas
aos modos de narrar107, para a ER, mais que compreender se o jogo entre a
voz que narra e a voz que escreve se constitui ou não em relatos da experiên-
cia de um eu autoral – sendo, por consequência, consonantes com a ideia de
autobiografia apresentada Philippe Lejeune, ou autoficção, conceito apre-
sentado Serge Doubrovsky –, o importante é compreender o porquê deste
jogo ou de qualquer outro que, conforme Gadamer (2004), enreda o joga-
dor. De um ponto de vista da ER, talvez fosse melhor dizer que “tenta enre-
dar o jogador”. Posto que este, por ser perverso, malicioso e nada ingênuo,
desconfia todo o tempo e tenta subverter as armadilhas do criador-jogador.
Tal orientação, faz com que a relação do leitor-pesquisador com o objeto
estético seja mediada por interrogações da seguinte ordem: Quais são as
intenções do jogo criado? O que me é permitido saber sobre a condição exis-
tencial a partir dessa estratégia narrativa? É possível que perguntas dessa
natureza permitam olhar para além do particular, levando a aproximações
com o universal humano cujo interesse justifica a relação dos estudos epis-
temológicos em relação ao romance que pensa.
106 Seja com as contribuições de Philippe Lejeune, a partir da noção de um pacto autobiográfico,
seja pelos conceitos de autoficção de Serge Doubrovsky e Vincent Colonna, por exemplo.
107 A relevância quanto à percepção sobre os modos de narrar um texto foi uma das primeiras preo-
cupações apontadas pela Epistemologia do Romance e se faz presente no artigo fundador da
teoria intitulado “Elementos para uma Epistemologia do Romance” (BARROSO, W., 2003).
163
Aproximações metafísicas
164
angústias semelhantes às que consumia Broch ao buscar pela relação lite-
ratura e filosofia na prática criadora e no pensar sobre a criação como nos
mostrou Hannah Arendt em seu livro homens em tempos sombrios (2008),
partindo da própria experiência, dirá Beauvoir:
165
o romance se apresentará por meio de certezas preconcebidas. Nesse acordo
“honestamente lido, honestamente escrito, um romance metafísico provoca
uma descoberta da existência de que nenhum outro modo de expressão po-
deria fornecer o equivalente…” (BEAUVOIR, 1965: 94).
Embora a ideia de romance metafísico apresentada por Beauvoir
possa destoar da ideia de romance que pensa, posto que ela fala de um
ponto de vista do existencialismo enquanto corrente filosófica – de onde,
por negação, Kundera desenvolve sua noção de romance que pensa –, na
perspectiva da ER, a aproximação apresenta pontos semelhantes na me-
dida em que tanto um quanto o outro defende a autonomia do literário.
Ademais, os dois pressupõem o texto ficcional como um lugar do exercício
livre do pensamento, na medida em que o entendem como espaço de co-
nhecimentos do Ser.
Diante disso, seria correto considerar a possibilidade de diálogos en-
tre as reflexões da filósofa com aquelas da ER concernentes ao romance que
pensa, desde que não se negligencie o fato de que Beauvoir centra sua aná-
lise na relação interativa do texto com o leitor, enquanto a ER quer observar
o funcionamento da obra para entender como se dá essa relação. Ela neces-
sita compreender as escolhas e os papéis desenvolvidos em cada elemento
constitutivo da engrenagem. Nesse sentido, as percepções subtraídas da
leitura estão, por um lado, relacionadas à própria construção do objeto que,
conforme os pressupostos da ER, passam pelas intencionalidades do autor.
E, se é verdadeira a afirmativa de Aristóteles (2016), segundo a qual o dese-
jo natural do ser humano é o conhecimento, o romance que pensa é cons-
cientemente partícipe desse desejo naturalmente presente em nós.
Para a ER, na medida em que busca conhecer a existência partindo
de pressupostos ontológicos, o romance movido pela meditação, traz para
o centro das reflexões as singularidades que se confrontam com os outros.
Nestas condições, a partir de um observatório particular, o autor cria “eus”
capazes de experienciar os mais diversos temas humanos, esta estratégia
estética da criação, aliada à voz do narrador filosófico, permite ao leitor
pensar multiplamente as possibilidades humanas. É neste sentido que se
pode afirmar ser o romance que pensa uma narrativa que se realiza como
um espaço no qual a estética, a epistemologia e a hermenêutica estão imbri-
cadas por uma visão metafísica.
166
Considerações ao leitor
A noção de romance que pensa chega até a ER por meio das medi-
tações de Milan Kundera acerca do romance moderno enquanto lugar do
pensamento sobre a existência, defesa praticada a partir de uma percepção
de autonomia do literário em relação à filosofia.
Em grande parte das meditações de Kundera é possível compreender
que a categoria que entende como autônoma, aquela que se constrói em
diálogo com a história estética do romance moderno, comprometida com
o conhecimento da existência humana, que se opõe ao psicologismo das
personagens, que nega a descrição factual da História no interior da ficção e
que condena o atrelamento das reflexões a correntes ou sistemas filosóficos
preexistentes é a que irá esteticamente perseguir enquanto romancista e
será, portanto, esta categoria romanesca que bem mais tarde denominará
de romance que pensa.
Por apresentar uma elaboração estética que não deriva puramente da
intuição ou da inspiração, o romance que pensa cria condições para que
possamos decompor suas estruturas, construídas laboriosamente, por uma
ação que pressupõe racionalidades, efetuando escolhas estéticas cuidado-
samente desenvolvidas. O romance nesta perspectiva é uma engrenagem
estética que faz produzir sentidos sobre a vida, permitindo uma ação her-
menêutica e epistemológica na qual será possível depreender conhecimen-
tos acerca das ontologias, um conhecimento que prevê uma relação com a
universalidade própria da condição humana.
Pois se é verdade que a filosofia não soube pensar a vida do homem
tal qual nos diz Kundera, caberá ao romance pensar sua “metafísica con-
creta”, mas não será qualquer tipo de romance; não será aquele obcecado
pelas informações sobre as personagens, nem aquele preocupado em fazer
da narrativa um lugar falseado, a partir do qual poderá ilustrar a História,
nem aquele que se subordina às correntes e sistemas filosóficos em busca de
uma verdade. Ao romance que caberá o papel de pensar a “metafísica con-
creta do homem” será o romance comprometido com o pensamento, mas
não com a verdade, será em suma: o romance que pensa.
167
Referências
168
SERIO LUDERE
Itamar Rodrigues Paulino108
108 Doutor em Teorias Literárias pela Universidade de Brasília, é professor e pesquisador pela Uni-
versidade Federal do Oeste do Pará,e coordenador do Programa de Pós-Graduação Interdiscipli-
nar em Sociedade, Ambiente e Qualidade de Vida, da Ufopa. Contato: <itasophos@gmail.com>.
169
Apresentação
Serio Ludere s.m. (port. Sério; port. Lúdico). Em termos gerais, o Se-
rio Ludere é uma proposta de método de estudo investigativo desenvolvido
pela epistemologia do romance com a finalidade de apreender conhecimen-
tos válidos a partir da leitura sistemática de uma obra romanesca. O termo
fora traduzido da língua latina para o português como um jogo estético,
uma brincadeira séria ou brincar seriamente. Serio Ludere foi um preceito
adotado por neoplatônicos do Renascimento inspirados em Achille Bocchi
(lat. Achilles Bocchius) (1488-1562), escritor italiano humanista nascido em
Bologna, administrador e professor de direito da Universidade de Bologna,
que se tornou conhecido pelo dístico serio ludere que deu título à primei-
ra página do seu livro Symbolicarum quaestionum de universo genere109 e
publicado em 1555. A obra de Bocchi, segundo John Manning (2002: 154),
“tem como objeto a totalidade do conhecimento universal: física, metafísi-
ca, teologia, dialética, vida, amor e morte, e embalá-los sob o véu de fábulas
e mitos”. Desde então, a obra passou a fazer parte de um tipo de método
renascentista de construção textual chamado de serio ludere. O termo ser-
via para explicar como escritores trabalhavam seus textos considerando os
tópicos o que e para quem se escrevia, buscando uma compreensão o mais
abrangente possível das questões existenciais (ROLET, 1998).
A partir desse marco histórico, ocorreu a composição de um méto-
do, ou mesmo antes disso, de uma estrutura de ação didática que pudesse
propiciar o levantamento epistêmico, primando pela evidenciação de con-
ceitos invariantes utilizados no desenvolvimento da escrita de uma deter-
minada obra. Essa composição passou a servir como instrumento de busca
de elementos epistemológicos e estéticos que tornam o pensamento sobre
textos literários algo mais complexo do que apenas discussão entre áreas
de conhecimento; e faz o leitor assumir uma condição de investigador em
trânsito entre os discursos filosófico e literário. O método é um instrumento
assentado entre criações literárias e conhecimentos, tendo como objetivo
auxiliar na apreensão do franco jogo entre escritor, narrador e leitor, no
desvelamento da realidade ficcional e real. O serio ludere é um instrumento
170
de apoio na leitura e nos estudos de romances que, não poucas vezes, traem
as percepções do leitor, brincam com seus pensamentos e sentimentos, e
refratam constantemente a realidade porque brincam seriamente com ver-
dades e não-verdades sem preocupação com comprovações lógico-científi-
cas. Embora haja essa despreocupação, ou mesmo descompromisso, uma
leitura epistemológica do gênero literário romanesco por meio da decom-
posição sério-lúdica possibilita conhecimentos sobre a existência humana.
171
Neste sentido, é fundamental uma discussão argumentativa sobre os
termos seriedade e ludicidade que foram juntados para compor o conceito
serio ludere. O termo latino tornado verbo ludere é um verbete que pos-
sui longa trajetória histórica, sendo necessária uma contextualização mais
precisa para uma compreensão das condições às quais se pode utilizá-lo
na conceituação do método serio ludere. Em princípio, o encaminhamen-
to terminológico da epistemologia do romance sobre o conceito tem sua
estruturação na ideia de que o serio ludere se caracteriza por ser um ato
pensado ou epistemológico em relação simétrica com o ato criativo ou es-
tético. Não que o ato pensado esteja reduzido à característica séria e o ato
criativo à ludicidade, mas que na relação entre ambos, o ato sério tende ao
espírito apolínio enquanto que o ato criativo tende ao espírito dionisíaco.
Contudo, enquanto o ato pensado fornece os fundamentos racionais, e de
certa forma categoria imperial de cunho moral com a função de ordenar
e preservar conteúdos epistemológicos apreendidos pela ação do entendi-
mento (KANT, 1980), o ato criativo prima por trazer ao cenário do mundo
o sujeito de sensações e prazeres, afetos e desafetos, alegrias e angústias,
evidenciando a condição humana em constante trânsito entre sensibilidade
e entendimento, não havendo seu aprisionamento nas fronteiras da racio-
nalidade (NIETZSCHE, 2003).
Daí que para se apreender os conteúdos pensados e criativos produ-
zidos por um escritor em determinada obra romanesca, o leitor tenha que
assumir a condição de leitor-investigador ou de leitor preparado para ler
um romance que pensa, conforme apregoado por Milan Kundera em seu
texto A Arte do Romance (2016); e nesse pensamento sobre o romance que
pensa o leitor poder explorar as diversas possibilidades de episteme que
lhe permitem assimilar a partilha generosa de conhecimento e discussão
do escritor sobre a existência humana. Neste caso, o romance deve ser visto
como um gênero literário compromissado em apresentar e examinar não
a realidade, mas a existência, pois o escritor de romances que pensam terá
mais liberdade e condições estéticas para se aproximar o melhor possível do
campo das possibilidades humanas (PAULINO, 2014).
Ainda assim, o escritor de romances que pensam não se furtará à
engenhosidade metódica do serio ludere, principalmente quando do uso
criativo de uma brincadeira que permuta com a seriedade para provocar a
evolução do enredo e propor uma história de acontecimentos, que também
172
é uma história de experiências existenciais do próprio autor, do narrador,
dos personagens e do leitor. O ludere nessa estrutura funciona como ativi-
dade seriamente pensada. Conforme Johan Huizinga (1872-1944), a histó-
ria de sua transformação de mera ideia tornada prática para um conceito de
categoria filosófica, chegando à categoria antropológica de homo ludens, é
bastante longa e remonta aos tempos primórdios, mas ganha consistência e
subjetividade na modernidade.
Ainda como atividade objetiva, historicamente o termo ludus ou lu-
dere era utilizado para representar atividades públicas de entretenimento.
Em meados do século XVII, o vocábulo ganhou consistência e entrou em
processo de ressignificação sendo utilizado nas atividades litúrgicas, cêni-
cas e em jogos de azar. O ludere, a partir de Immanuel Kant (1724-1804)
e Friedrich Schiller (1759-1805), ganha um significado mais subjetivo que
objetivo por conta do termo categorial jogo, e Hans Gadamer (1900-2002),
em sua obra Verdade e Método (2004), procura dar novo significado ao
termo descaracterizando sua subjetividade. Huizinga encaminha na mesma
lógica o debate ao defende ser o jogo uma,
173
determinada pela seriedade dos seus fins. Afirma Gadamer (2004: 175) que
“apenas a seriedade que há no jogo que permite que o jogo seja inteiramen-
te um jogo”. Por isso ele considera que aquele que não leva a sério o jogo,
é um desmancha-prazeres. Aquele que joga sabe que o ato é “apenas um
jogo”, mas sabe que para o jogo acontecer é preciso levar a sério sua dinâ-
mica, sua lógica e suas regras.
No que se refere ao termo adjetivo serio, a palavra tem no seu histó-
rico conceitual a origem etimológica latina serietas, cujo significado geral é
fazer referência a algo bastante grave. Condição necessária a certos contex-
tos, o sério é um termo que no espaço da epistemologia do romance ganha
um significado bastante particular, pois integra a composição conceitual do
serio ludere, fazendo um contraponto ao lúdico sem se desprender do esco-
po estrutural do método.
O serio ludere tem sua estrutura desenvolvida para atividades vincu-
ladas à literatura, por isso há em seus resultados implicações aos estudos
literários. As obras literárias são, por isso, um importante espaço de aplica-
ção do serio ludere. Os textos romanescos também ocorrem sob a tutela de
um grande jogo, e como tal deve ser compreendido. O lúdico, assim, desem-
penha um papel fundamental no aprendizado, pois estabelece condições
para criações humanas as mais diversas possíveis. Para Gadamer (2004) e
Huizinga (2008) não é a consciência estética, mas a experiência lúdica da
arte que importa, não é a natureza do Jogo, mas o modo de ser deste ou a
sua condição que é fundamental. Assim, fazer a experiência da arte é fazer
experiência do modo de ser da obra de arte e com isso possibilitar no espí-
rito do jogador as condições necessárias para participar da ação lúdica que
é, por princípio, repetível e por isso duradoura, e ajuda na compreensão, na
caracterização e na configuração da obra.
174
sociais e pessoais, o êxtase na construção da obra, e a condição epistemoló-
gica como afirmação de que toda obra provoca conhecimento (BARROSO,
W., 2003; SUASSUNA, 2004; KYVI, 2008). Neste caso é plausível aceitar
que em certas obras da literatura há eventos arquitetados pelo autor e con-
solidados pela narração, sejam elas quais forem, sob uma ótica do contar
problemas e dificuldades aparentemente singulares e ao mesmo tempo co-
muns, que nem sempre são resolvidos pela via da razão instrumental no ato
corriqueiro da leitura, ou por uma percepção mais objetiva, determinada,
previsível, presumível e racional de um narrador, pois não há universaliza-
ção de solução dos problemas que nascem das infinitas possibilidades na
internalidade de um romance. Por isso, a questão se volta para a necessida-
de de uso do Serio Ludere como método para penetrar a internalidade da
obra já a partir mesmo da gênese de sua constituição.
Em se tratando de método, a decomposição da obra permite averi-
guar que as estruturas racionais sob a forma de conceitos, critérios, regras e
pressuposições intuitivas que norteiam uma determinada narração levam a
uma leitura sensível da obra. A decomposição textual ou a prática do serio
ludere permite ao leitor apresentar uma composição própria com reorgani-
zação de eventos, personagens e narrações, de modo a encontrar as linhas
demarcadoras da engenharia estética do autor que abre portas para o diálo-
go com o leitor, narrador e personagens num entrecruzamento em que to-
dos fazem parte do jogo sério, participando como feiticeiros e enfeitiçados.
(PAULINO, 2018).
Em consequência, leitor e escritor são coparticipantes no desenrolar
da história num determinado romance, acompanhando passo a passo o
compasso do narrador-sujeito e adentrando na experiência de cada perso-
nagem para daí ex-trair uma percepção múltipla da realidade sem que para
isso se separe a realidade real da realidade ficcional, pois, ao final, o que
ocorre é uma profunda experiência estética que provoca um olhar de unida-
de da obra na multiplicidade das formas narrativas, aceitando-a e fazendo
dela a condição epistêmica para se compreender o mundo.
175
Considerações ao leitor
176
Por isso a precípua finalidade do jogo estético ou serio ludere é a de
levar leitor e autor a observar o desenrolar da história acompanhando o
compasso do narrador e adentrando na experiência de cada personagem.
Dessa forma, podemos assumir que a ação intencional do autor romanes-
co na constituição de uma obra expressa na sua forma em suas opções o
seu gesto estético. Essa ação intencional sensível do autor entra em contato
com a ação intencional sensível do leitor a partir do serio ludere, o que leva
o leitor a captar um mundo de possibilidades gerado na obra, e construir
para si um conhecimento racional sobre o tema e os eventos dela advindos.
No caso do autor, o gesto estético é desenvolvido com vistas a ex-
pressar uma via, aleatória ou não, que lhe permita compartilhar com o lei-
tor uma ou várias percepções de mundo. No caso do leitor, o gesto estético
é construído com a finalidade de apreender o conteúdo oferecido pelo autor
para assimilar uma conceituação mais próxima possível da realidade. Por
conseguinte, podemos afirmar que o processo de apreensão metodológica
de conteúdos cognitivos que possam estar inseridos na internalidade de um
romance ocorre por meio da decomposição sério-lúdica e da apreensão de
possíveis e infinitas possibilidades estéticas que, embora estejam no espaço
particular, ganham contornos de universalidade por conta da pessoa que
realiza o processo, que pode utilizar as cognições imergidas do texto ro-
manesco para explorar tudo do seu mundo particular e seu significado em
relação ao mundo externo.
Embora as diferenças entre autor e leitor sejam bastante evidentes, há
algo que os assemelha, o fato de poderem falar, ouvir, escrever, ler, agir e
contemplar narrando suas próprias histórias, procurando compreender a
maneira como estão estruturadas no seu “eu sujeito”, explicitando critérios
estéticos próprios que nem sempre são efetivamente escolhidos pelos pró-
prios sujeitos. Em outros termos, o processo de transformação do experi-
mentado em algo belo, portanto, o processo de relação entre sensibilidade e
entendimento é feito no instante do acontecimento. Mas a compreensão das
cognições decorrentes desse processo é feita a posteriori, pensando o preté-
rito metodologicamente, e nessas condições, o serio ludere funciona como
instrumento apropriado para gerir a relação e gerar conteúdos cognitivos.
O verbete serio ludere, na sua conceituação epistemológica do ro-
mance, lança, no nível da discussão literária, as bases de uma lógica refra-
tária e subterrânea eficaz para satisfazer a intenção do escritor em trans-
177
mitir ao mundo uma espécie de recado que nos faça perceber com mais
sensibilidade a realidade originária, considerando que esse recado nasce
no próprio interior da humanidade. Entretanto, sem um jogo sério, sem
um serio ludere, o encontro entre leitor e escritor recairá na obviedade da
ficção que não pensa.
Referências
178
NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. Tradução de J.
Guinsburg. São Paulo, Companhia das Letras: 2003.
179
TRADUTOR EPISTEMOLÓGICO110
Sara Lelis de Oliveira111
110 O presente verbete é resultado de minhas reflexões sobre o vínculo entre tradução e Epistemo-
logia do Romance junto a Wilton Barroso Filho, que propôs sua inclusão na teoria em 2018.
111 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura (PÓS-LIT) na Universidade de
Brasília. Mestre em Estudos da Tradução e Bacharel em Letras – Tradução – Espanhol pela
mesma universidade. Contato: <saralelis@gmail.com>.
181
Apresentação
182
Esse gesto epistemológico desempenhado pelo leitor-pesquisador as-
semelha-se à tarefa realizada pelo tradutor (desde que comprometido com
o conhecimento) ao longo do processo tradutório de uma obra literária. A
esse indivíduo nomeamos tradutor epistemológico. Denominamos tra-
dutor epistemológico o sujeito que traduz com vistas a obter da passagem
entre línguas um conhecimento; conhecimento este que será transposto
para outro locus linguístico (ROSSI, 2018: 9), plasmando na obra traduzida
uma interpretação da obra literária. José Salas Subirat, escritor e tradutor
argentino, justifica no prefácio de sua tradução para o castelhano da obra
Ulysses, do escritor irlandês James Joyce, que a tradução resulta de seu
desejo de ler a obra original atentamente: “(…) traduzir é a maneira mais
atenta de ler, e o desejo de ler atentamente é responsável pela presente ver-
são” (SUBIRAT, 1945: 3 – Tradução nossa). Compreende-se da assertiva
de Subirat que a possibilidade de uma leitura atenta se concebe mediante
tradução. A versão castelhana de Ulysses significa apenas só um produto
traduzido, mas principalmente o meio e a justificativa para se conhecer in-
timamente a referida obra literária dado que o processo tradutório, nessa
perspectiva epistemológica, permite aprofundar-se em seu conhecimento.
A tradução como profunda leitura interpretativa também é defendida pelo
escritor italiano Ítalo Calvino (1923-1985), que afirma que “traduzir é o sis-
tema mais absoluto de leitura” (CALVINO, 2002: 84 – Tradução minha).
114 Título original: Die Aufgabe des Übersetzers (1923). Todas as citações em português do Brasil
referentes a este ensaio presentes neste artigo são traduções de Susana Kampff Lages.
183
da tradução. Segundo Benjamin, “(…) eles [os românticos alemães] pos-
suíram, antes de outros, uma consciência da vida das obras, cujo mais alto
testemunho é dado pela tradução” (BENJAMIN, 2011: 111 – Grifo e col-
chetes nossos). A consciência da obra original obtida ao longo da execução
tradutória reflete o pensamento benjaminiano de que a tradução revela algo
acerca do texto a ser traduzido. Trata-se de um movimento epistemológico
experienciado no ato de traduzir derivado da linguagem, concepção abor-
dada por Benjamin em ensaio anterior – Sobre a linguagem geral e sobre
a linguagem dos homens115 – que está atrelada à sua concepção sobre tra-
dução. Para o filósofo, a passagem de uma língua para a outra fornece as-
pectos essenciais da linguagem não somente a respeito da materialidade da
palavra, mas sobretudo para além dela. Esses
aspectos consistem na vida linguística do original, no que faz a obra
literária ser o que ela é, proporcionando seu íntimo conhecimento. Lingua-
gem, tradução e conhecimento são inseparáveis no pensamento benjami-
niano: “Para o conhecimento das formas artísticas, vale tentar concebê-las
todas como linguagens…” (BENJAMIN, 2011: 72).
Benjamin define a tradução como “a passagem de uma língua para
outra por uma série contínua de metamorfoses. Séries contínuas de me-
tamorfoses, e não regiões abstratas de igualdade e similitude, é isso que a
tradução percorre” (BENJAMIN, 2011: 64). Significa que a tradução não é
a correspondência entre os significantes e os significados das línguas, “con-
cepção burguesa da língua segundo a qual a palavra estaria relacionada à
coisa de modo casual e que ela seria um signo das coisas (ou de seu conhe-
cimento), estabelecido por uma convenção qualquer” (BENJAMIN, 2011:
63). Ela diz respeito a uma tarefa que pertence “ao nível mais profundo da
teoria linguística” (BENJAMIN, 2011: 64). Na concepção benjaminiana, a
tradução é um processo que revela os substratos linguísticos das obras a
serem traduzidas, isto é, suas composições de linguagem. Para tanto, um
texto deve ser traduzido inúmeras vezes a fim de se extrair a essência lin-
guística do texto original, essência essa que configura a forma da obra lite-
rária. Em suas versões, a tarefa de traduzir manifesta, progressivamente,
115 Título original: Uber Sprache uberhaupt und uber die Sprache des Menschen (1916). Todas as
citações em português do Brasil referentes a este ensaio presentes neste artigo são traduções
de Susana Kampff Lages.
184
diversas camadas do texto original que proporcionam o conhecimento de
seus substratos linguísticos a fim de recompô-los, em um segundo momen-
to, na tradução.
O movimento benjaminiano da tradução de obras literárias deve ser
antes compreendido no âmbito da tradução da linguagem humana, fruto da
relação sujeito-objeto. De acordo com Benjamin, a linguagem humana pos-
sui uma natureza singular: traduzir o silêncio da natureza em palavra sono-
ra, ato a partir do qual as coisas, sejam elas seres animados ou inanimados,
são designadas pelos nomes (BENJAMIN, 2011: 64). A gênese da linguagem
humana pautada na tradução explica-se pelo amparo da teoria da lingua-
gem de Benjamin na metafísica judaica, na qual a função de nomear é um
dom divino conferido ao homem que consiste no reconhecimento da lin-
guagem intrínseca às coisas para, enfim, transformá-la em seus respectivos
nomes. “Recebendo a língua muda e sem nome das coisas e transpondo-a
em sons, nos nomes, o homem solve essa tarefa” (BENJAMIN, 2011: 65).
A possibilidade do reconhecimento deve-se à criação humana à imagem e
semelhança de Deus, pois a criação de toda matéria por Ele pressupõe uma
linguagem para cada uma delas. Além da imagem e semelhança, existe uma
relação especial entre o homem e a linguagem no ato da Criação. Deus, ao
criar o universo, demonstrou
185
do Éden o homem perde a capacidade de obter a perfeição da linguagem
divina e, portanto, traduzir passa a ser um exercício infinito no intuito de se
alcançar o ideal (perdido) da linguagem perfeita.
Esta compreensão metafísica da linguagem de Benjamin respalda o
caráter epistemológico da tradução compreendido em seu ensaio sobre a
tradução. O filósofo declara que é fundamental o reconhecimento da lin-
guagem de uma obra literária no intuito de vertê-la para outra língua. Esse
reconhecimento é, conforme explicitado, efeito do próprio ato divino de
traduzir: na transposição de uma língua para outra, nomeia-se o que foi
reconhecido na linguagem da língua da obra original. O exercício do re-
conhecimento é idêntico ao do ato (imperfeito) do homem adâmico: uma
série de contínuas traduções. Trata-se, conforme Benjamin, de reconhecer
na obra original o que lhe é essencial, sua essência de linguagem inerente
ao texto: …o essencial – não será isto ou aquilo que se reconhece em geral
como o inapreensível, o misterioso, o “poético”? Aquilo que o tradutor só
pode restituir ao tornar-se, ele mesmo, um poeta? (BENJAMIN, 2011: 102).
No entanto, a conversão do essencial no âmbito da tradução literária
só se garante pela traduzibilidade das obras, concepção que Benjamin alude
ao relato bíblico da Torre de Babel. Segundo ele, a possibilidade decorre
da língua-pura, uma língua perfeita e superior a todas as outras e de qual
partem todas elas imperfeitas em si mesmas (BENJAMIN, 2011: 113). A
língua-pura assemelha-se à linguagem adâmica anterior ao pecado original
(BENJAMIN, 2011: 66). Nessa noção, o tradutor deve, mediante uma série
de contínuas traduções, atuar à imagem de Adão. Sua relação com o texto
consiste no reconhecimento da linguagem presente na obra original, isto é,
identificar o que lhe é “essencial”, “misterioso” e “poético” a fim de dar-lhe
um nome na língua para qual se traduz. É sobre o nome que o conhecimen-
to das coisas repousa (BENJAMIN, 2011: 67).
Essa tarefa de conversão é possível, pois considerando todas as lín-
guas como fragmentação de uma língua perfeita, o relacionamento entre
elas é íntimo: “as línguas não são estranhas umas às outras, sendo a priori
— e abstraindo de todas as ligações históricas — afins naquilo que querem
dizer” (BENJAMIN, 2011: 106-107). A conexão entre as línguas expressa o
movimento, a possibilidade da tradução:
186
(…) a tradução deve, em vez de procurar assemelhar-se ao
sentido do original, conformar-se amorosamente, e nos mí-
nimos detalhes, em sua própria língua, ao modo de visar do
original, fazendo com que ambos sejam reconhecidos como
fragmentos de uma língua maior, como cacos são fragmen-
tos de um vaso (BENJAMIN, 2011: 115 – Tradução de Su-
sana Kampff Lages).
187
Para Benjamin, a tradução deve atuar de forma complementar. A obra
traduzida não deve se apresentar como se fosse o original escrito em sua
língua, mas evocar em seus substratos linguísticos a intenção expressa na
linguagem do original. A tradução deve ser transparente, não deve encobrir
o original (BENJAMIN, 2011: 115). Uma melhor compreensão da obra re-
sultará do encontro do original e da tradução em suas respectivas línguas.
E como essa tarefa é executada pelo tradutor após reconhecer o que
é essencial na obra literária? “Por uma literalidade na transposição da sin-
taxe, sendo ela que justamente demonstra ser a palavra – e não a frase – o
elemento originário do tradutor” (BENJAMIN, 2011: 115). A literalidade
proposta por Benjamin significa consentir que as composições linguísticas
da obra original sejam entrevistas na língua traduzida. A língua traduzida
deve ser recriada a partir da lei da obra original, lei essa resultante da iden-
tificação de sua essência. Para tanto, há nesse propósito uma metodologia
em que são compilados aspectos linguísticos que possibilitam uma reflexão
do fundamento epistemológico da obra original, da obra a partir da qual
se produzirá um saber. Ora, se o tradutor deve recriar as composições de
linguagem do original na tradução, é necessário saber que composições são
essas e como elas se articulam na obra literária. Esse trabalho sobre a sinta-
xe da obra original caracteriza-se como a interpretação em si, pois serão re-
fletidos minuciosamente todos os elementos correspondentes à linguagem.
Traduzir implica uma reflexão do próprio texto.
O caráter epistemológico da tradução na concepção benjaminiana
reside no relacionamento que se estabelece entre o sujeito e o objeto, nes-
te caso tradutor e a obra literária, sendo esta última um espaço provedor
de conhecimento, segundo a ER, por intermédio de uma série de tradu-
ções. Relativa a uma operação linguística, a tradução proporciona que
se apreenda o conhecimento na linguagem, e não através da linguagem
(BENJAMIN, 2011: 51). A língua, por si mesma, nada comunica, mas sua
essência linguística configura a forma do conhecimento a ser transmiti-
do na medida em que ele pode ser comunicado tanto na própria língua
que conforma sua linguagem quanto entre outros idiomas. Neste sentido,
nesta consiste a tarefa do tradutor: reconhecer na língua do original a es-
sência da linguagem que encobre o que lhe é essencial. Essa ação resulta
de uma série de contínuas conversões, movimento ininterrupto ao qual o
188
tradutor está fadado pela natureza da relação entre o homem e o objeto
no instante divino da nomeação, o que não é de forma alguma impossível
materialmente, mas um ideal.
Tradução-interpretação
189
Pese à recusa de Gadamer da origem linguística tal como preconiza
Benjamin, ambos os filósofos articulam linguagem e tradução de maneira
similar. Conforme Gadamer, um tradutor deve manusear a linguagem que
está contida no texto original e transpô-la para a língua a ser traduzida de
forma que ela seja inteligível nesse outro universo. O movimento sustenta-
-se porque na formação do que é linguístico, empreendimento em que par-
ticipam a gramática, a sintaxe e o vocabulário da linguagem (GADAMER,
2004: 175), se reconhecem com base na estrutura da língua as cosmovi-
sões de um povo. Essa tarefa de reconhecimento atribuída ao tradutor está
intimamente vinculada à interpretação textual, dado que traduzir implica
necessariamente conhecer a obra em seu sentido e forma ou, em uma só pa-
lavra, conhecer sua linguagem: “a própria compreensão possui uma relação
fundamental com o caráter de linguagem” (GADAMER, 2008: 512).
Para Gadamer, a linguagem é determinante na hermenêutica haja vis-
ta que é somente na linguagem que ocorre a interpretação. Assim como
a teoria da linguagem benjaminiana, esse movimento é comparado ao ato
tradutório ainda que realizado no âmbito de uma mesma língua. Com-
preender, indissociável do interpretar, define-se como “apropriação do que
foi dito, de maneira que se converta em propriedade de alguém” (GADA-
MER, 2008: 515). O que se deve converter em propriedade é a linguagem.
Essa é a tarefa do tradutor, segundo Gadamer: “Ele [o tradutor] está ligado
ao texto que tem diante de si [texto de linguagem] e não pode simplesmente
transportar o material da língua estrangeira para sua própria língua sem
transformar-se ele próprio no sujeito que diz” (GADAMER, 2004: 181 –
Colchetes nossos). Tarefa essa que também é a do leitor que busca interpre-
tar-compreender um texto, pois para obter êxito é preciso aplicá-lo [o texto
dotado de linguagem] a nós mesmos (GADAMER, 2008: 515).
A aplicação do texto dotado de linguagem à vida do tradutor e do leitor
associa-se aos conceitos que devem ser compreendidos e ressignificados no
momento da tradução/intepretação do texto. “A interpretação conceitual é
o modo como se realiza a própria experiência hermenêutica” (GADAMER,
2008; 521). A apropriação proposta por Gadamer diz respeito ao tratamen-
to dos conceitos que precisam ser convertidos de um lócus A para um lócus
B, nesse caso as línguas da obra literária original e da obra literária tradu-
zida ou mesmo a tradução no âmbito de uma mesma língua (GADAMER,
190
2008: 512). Trata-se do reconhecimento das intenções presentes nos subs-
tratos linguísticos dos conceitos, jogo proposto por Benjamin no propósito
de diferenciação das intenções do visado e do modo de visar, processo em
que se faz crucial o conhecimento do entorno linguístico-histórico das lín-
guas em questão e, por conseguinte, da formação conceitual:
191
Neste sentido, a atividade realizada no âmbito da tradução também
ocorre no âmbito da interpretação/compreensão por parte do leitor. Com-
preender/interpretar um texto relaciona-se com o ato tradutório porque
ambas atividades exigem apreender o conhecimento de um texto a partir do
discernimento de conceitos oriundos no trânsito de duas línguas ou mesmo
de uma só. O tradutor é, neste sentido, um profundo conhecedor da obra,
dado que ele conhece mais do que está na superfície. Assim, o sujeito tra-
dutor epistemológico lida com os conceitos engendrados pelos lócus lin-
guístico, histórico e cultural das línguas a fim de apreender o fundamento
epistemológico apresentado na obra literária e de se extrair dela um saber.
Considerações ao leitor
192
jamin pelo escritor e tradutor argentino José Salas Subirat no prefácio à
sua tradução de Ulysses, em 1945, pelo tradutor e crítico literário húngaro
Paulo Rónai em Escola de Tradutores (1952) e pelo escritor italiano Ítalo
Calvino no texto supracitado de 1982.
Em efeito, a tradução como leitura é uma das concepções desenvol-
vidas a partir da obra benjaminiana, sendo considerada uma alegoria da
leitura: “A leitura em primeiro lugar é, para Benjamin, uma tarefa (Aufga-
be), uma palavra que Benjamin utilizará ao referir-se tanto à atividade crí-
tica quanto à do tradutor, do comentador e do poeta” (LAGES, 2007: 216).
Identifica-se, nesta ótica, que a função exercida pelo tradutor epistemo-
lógico no âmbito da ER como um elaborador de saber a partir da apreen-
são de conhecimento da obra literária e sua reconfiguração em outra língua
insere-se na crítica literária. O tradutor epistemológico é não somente um
crítico profundo das obras literárias, como produz na obra traduzida um
conhecimento proveniente da interpretação. Sua tarefa também diz respei-
to à destruição do texto literário no intuito de reestruturá-lo no contexto
linguístico de uma outra língua.
Referências
193
CALVINO, Ítalo. Tradurre è il vero modo di leggere un texto. In: Mondo
scritto e mondo non scritto. Milano: Mondadori, 2002, p. 84-91.
194