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Jauretche – breve história

Não é acidente ou mágica que esteja falando hoje aqui sobre


esse autor. Isso nos anos 90, no auge da longa e triste noite
neoliberal, seria pouco provável, porque o pensamento jauretchiano
não tinha espaço quando poucos duvidavam dos vaticínios de
Fukuyama. Mas a utopia do capital foi se desmoronando no
continente pela ação das ruas e das urnas - com a eleição de
Néstor Kirchner em 2003, no caso argentino - e o retorno da política
trouxe consigo a visibilização da dimensão do antagônico nas
relações sociais. Voltar a pensar a partir do conflito o país e a
região significou reivindicar a obra de Jauretche e outros autores
que haviam se posicionado desde o campo popular.
Então, hoje, podemos discutir com mais clareza a noção de
“intelligentzia”. Embora existam pelo menos sete acepções do
termo, para os efeitos desta apresentação nos interessa apenas
mencionar sua origem na Rússia do século XIX, onde aparece para
designar um "estrato social definido que é alienado da sociedade e
que reivindica a liderança moral da nação.” (Gella, 1976, p. 240)
Jauretche, no entanto, o modifica de maneira que, por sutil, não
deixa de ser importante: troca o s do original pelo z. Com isso,
confere unicidade ao conceito que vai desenvolver e ao mesmo
tempo salienta o caráter deformado, deslocado daquele grupo de
nativos que se intitulam intelectuais e se negam a criar um
pensamento próprio.

A “intelligentzia” é formada pelos agentes da cultura que


acreditam ter um status diferenciado, suas análises não partem das
condições concretas, mas de esquemas importados os quais
pretendem impor à realidade preexistente. É condição básica o
afastamento do real, então, a “intelligentzia” recorre a elucubrações
gerais, pretensamente universais, que são, na verdade, a
universalização de valores relativos, europeus, limitados a um
tempo e espaço definidos. Evidente que isso pressupõe a exclusão
do outro, do americano, do indígena, que é sempre um obstáculo e
deve ser eliminado. O país real é sempre o obstáculo, não o ponto
de partida e Jauretche ilustra que para a “intelligentzia” a cabeça
tem que se ajustar ao chapéu.
Mas a formação desse setor não é casual, ela corresponde à
nossa condição semicolonial. Na colônia, a supremacia é garantida
pelo uso da força, na semicolônia isso se dá pela colonização
pedagógica. Gramsci – consentimento A “intelligentzia” é fruto
dessa colonização pedagógica que busca perpetuar a condição de
dependência. Nossos países da América ficaram na divisão
internacional do trabalho com a função de abastecer o centro de
matéria-prima e comprar produtos manufaturados. Para garantir
isso, importou-se o liberalismo, que impediu a formação da indústria
e do mercado interno, impediu assim que a nação se realizasse de
maneira soberana. O liberalismo é, para nós, como andar com um
“Manual do cliente” escrito pelo dono do comércio. A perpetuação
da condição colonial por meio da colonização pedagógica tinha
necessariamente que criar países para poucos e evitar de todas as
formas que a melhora do nível de vida da população colocasse em
perigo essa configuração.
Daí decorre um fenômeno interessante que Jauretche pode
auxiliar na compreensão. Na última década da América Latina, com
o triunfo dos governos progressistas, a condução do Estado
promoveu um considerável crescimento dos setores intermédios.
Que as camadas mais altas sintam-se intimidadas com a ameaça
do fim dos privilégios seria de esperar, mas pode nos deixar
perplexos perceber que a onda de ódio contra os governos da
região partam principalmente dessas camadas médias tão
beneficiadas. Jauretche, no entanto, aponta que, na sociedade, os
problemas aparecem de forma clara para dois setores: o alto e o
baixo. A classe média é a que se movimenta pelas ideias e, como a
ascensão intelectual se dá pelas estruturas da colonização
pedagógica, é a que forma majoritariamente a “intelligentzia”
responsável por fundamentar ideologicamente um projeto de país
excludente que em síntese acarreta na sua própria desaparição. Em
benefício do livre-comércio e do Estado Mínimo, receitas vindas do
centro, ignora a realidade periférica da nossa região, ignora que os
bens que a mobilidade experimentada é produto das políticas que
condena.
Mas nem só de liberalismo vive a “intelligentzia” segundo
Jauretche. A esquerda que nega o país concreto também serve à
colonização pedagógica e forma um só corpo com a direita porque,
mesmo contrária ideologicamente, sente que faz parte do mesmo
terreno abstrato, distante do povo que não corresponde com a
imagem do operário consciente que pressupõe. Essa observação
nos leva a pensar a “intelligentzia” como diversa mas dotada de
forte sentido de pertencimento graças à função de instrumento de
colonização que desempenha e a oposição ao povo. García Linera
É a esquerda infantil, que anda de mãos dadas com a direita
sempre que os movimentos de massa aparecem. É a esquerda que
dividiu as ruas com banqueiros recentemente no Equador contra a
Lei de Heranças impulsada pelo governo porque essa era
insuficiente para acabar com a desigualdade na distribuição de
renda. É a esquerda que atualmente critica os programas sociais
por assistencialistas, mesma palavra usada pela direita, e assim
enuncia um extremismo ideológico que mantém seu prestígio de
revolucionário e sua posição de “culto” em contraposição ao povo
incapaz de decidir seu próprio destino, o povo movido por
interesses.
Porque essa é outra característica da colonização
pedagógica: entender a cultura como técnica, o governo como
técnica, não como interesses que entram em conflito. A análise de
Jauretche antecipou a dimensão que a tecnização da política
alcançou nos anos 90 na Nossa América dominada pelo Consenso
de Washington, mostrando que a “cultura” era máscara para a
dependência. Nos sobram exemplos. Caso emblemático é o de
Jamil Mahuad, estudioso de Harvard, responsável pela crise
financeira de 1999 e pela dolarização do Equador, auxiliado por
Domingo Cavallo.

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