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Perspectivas sociológicas sobre


Machado de Assis
Luiz Carlos Jackson

Que "outro vinho" era aquele? Dizia Quincas Borba


que nao há vinho que embriague como a verdade.
E de qualquer modo sentimos sob a aparência gratuita e mesmo
leviana do tom de Brás Cubas uma paixão ardente,
sombria, demoníaca de verdade a todo transe, o amor da sinceridade para
consigo mesmo levado ao extremo das mais dolorosas conseqüências,
não recuando diante dos riscos do cinismo.
Augusto Meyer

Pretendo discutir neste texto duas perspectivas críticas sobre Machado


de Assis, as de Antonio Candido e Roberto Schwarz, cuja importância torna·as
parâmetro obrigatório a todos que pretendam analisar a obra do escritor carioca

Nota: Agradeço aJosé Guilherme Magnani o estimulo à realização deste trabalho. redigido a partir de pales­
tra proferida no XV Moitara (Enconao anual da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica), ocorrido em
novembro de 2001. Agradeço também as sugestões de Maria Célia Paoli, Hélio de Mello Filho e Piero Ca­
margo Leirner.

Estudos HislÓriCOSJ Rio de Janeiro, nO 321 2003. p. 71·88.

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sob um viés sociológico. Trata-se, como se sabe, de mestre e discípulo. Ao assu­


mir, em dezembro de 1960, a Cadeira de T eoria Literária e Literatura Compara­
da, na FFCL-USP, Antonio Candido imediatamente convidou seu ex-aluno de
graduaçao do curso de ciências sociais para compor equipe. I A rrajetória de Ro­
berto Schwarz parece, assim, acompanhar a mudança de área acadêmica do mes­
tre, que desistiu da carreira sociológica na USP no final dos anos 50, para se dedi­
car integralmente à literatura. A passagem é marcada também pela publicação de
Formação da literalllra brasileira, em 1959. Veremos, entretanto, que essa inflexão
só é verdadeiramente significativa do ponto de vista institucional,2 pois a elabo­
ração desse livro e da obra posterior de Antonio Candido é impensável sem o ins­
trumentaI sociológic03 que o autor mobiliza no estudo da literatura.
A menção à obra de um de nossos principais críticos não é casual, pois
uma das questões fundamentais que o livro pretende resolver diz respeito à li­
teratura de Machado de Assis: como explicar, em um país pobre e dependente,
cuja literatura até então não seria nem de longe comparável à européia,4 o
surgimento de um escritor como Machado de Assis, que, sobretudo a partir das
Memórias póstumas de Brás Cubas, produziria uma obra tão sofisticada, esta sim
equivalente às grandes expressões literárias do realismo europeu? Percebemos
desde já que a relação entre "literatura e sociedade" (título de livro do autor,
publicado em 1965) seria um dos motes centrais da Formação, na qual nos
deteremos um pouco mais.
A resposta de Antonio Candido associa as abordagens estética e socioló­
gica com a avaliação das obras, voltada sobretudo à dimensão interna, à qualida­
de da solução formal alcançada pelo escritor, que sempre decorre (e o caso de Ma­
chado seria típico) de um longo processo de amadurecimento, não apenas do au­
tor, mas do sistema literário em que se insere. A noção - provavelmente baseada
em conceitos da antropologia inglesa - é central para compreendermos a pers­
pectiva sociológica do crítico em relação à literatura brasileira, entendida como
"sistema articulado" pela "interação dinâmica" do "triângulo autor- obra- públi­
co". A configuração do sistema permitiria a formação da uadição, relacionando
escritores auavés de padrões de pensamento, de comportamento e estéticos.s Em
nossa literatura, a configuração do sistema, ou seja, a articulação orgânica en­
tre autor, obra e público, ocorreria durante o Arcadismo e o Romantismo,
movimentos aproximados pela mesma "vocação histórica" e traduzidos pela
consciência dos escritores de seu papel na constituição de uma literatura na­
cional.
Essa tese defendida por Antonio Candido -a formação de tlma "literatu­
ra empenhada" - exige o método sociológico e estético utilizado em FLB, que
nos mostra "como certos elementos da formação nacional (dado históri­
co-social) levam o escritor a escolher e tratar de maneira determinada alguns te-

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Perspectivas sociológicas sobre Machado de Assis

mas literários (dado estético)" (Candido, 1993, vaI. I: 16). Estamos diante de
uma obra regida por um problema sociológico, qual seja, explicar como se deu o
processo de formação da literatura brasileira como sistema, mas, sobretudo, pe­
las preocupações do crítico com a estruturaçao do texto literário: "Deste modo
sendo um livro de história, mas sobretudo de literatura, este procura apreender o
fenômeno literário da maneira mais significativa e completa possível, não só ave­
riguando o sentido de um contexto cultural, mas procurando estudar cada autor
na sua integridade estética" (Candido, 1993, vol. l: 29).
O ponto de vista histórico-sociológico não deveria, portanto, anular a
compreensão das obras literárias. Tal perspectiva, adotada pelo autor desde a tese
escrita em 1945 sobre Silvio Romero, indica a preocupação em evitar os "efeitos
colaterais" da crítica sociológica e também da crítica psicológica. Dizia então
Antonio Candido:
Com efeito, um dos maiores perigos para os estudos li­
terários é esquecer esta verdade fundamental: haja o que houver e seja
corno for, em literatura a importãncia maior deve caber à obra. A litera­
tura é um conjunto de obras, não de fatores, nem de autores. Uns e ou­
tros têm grande valor e vão incidir fortemente na criação; devem e preci­
sam ser estudados; não obstante são acessórios, quando comparados
com a realidade final, cheia de graça e força própria, que age sobre os ho­
mens e os tempos: a obra literária. (Candido, 1988: 103)
Temos, aparente"lente, definições opostas, em 1945 e 1959, mas a ênfase
nas obras permanece, apesar da pr�ocupação evidente com o meio social e a his­
tória. Esta deve, contudo, ser melhor qualificada. Seguindo a leitura de Paulo
Arantes ( 1992), o esforço do autor estaria voltado para a compreensão do proces­
so de formação da nação, e a dimensão da cultura, especificamente da literatura,
seria o veio escolhido por Antonio Candido. Desta forma, o livro deveria ser lido
a partir de autores como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Ho­
landa, que interpretaram, nos anos 30 e 40, o mesmo processo a partir das dimen­
sões social, econômica e política. Porém, há uma diferença importante, aponta­
da, aliás, por Roberto Schwarz: enquanto nossa formação social permanecia in­
completa, a formação da literatura realizara-se no final do século XIX, uma vez
que "em Machado de Assis remos um escritor cuja força e peculiaridade só se ex­
plica pela interação intensa e aprofundada entre autores, obras e público, intera­
ção que comprova em ato a existência do sistema literário amadurecido"
(Schwarz, 1992: 263).6
A argumentação de Antonio Candido avança, então, articulando duas
dimensôes principais, urna voltada para o problema da formação, outra focada
nas obras. Mostra, por exemplo, como determinados temas e concepções

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formais são internalizados nas obras. Outra preocupação diz respeito ao


movimento do sistema literário - cujo eixo é a passagem do Arcadismo ao
Romantismo -, marcado tanto por permanências quanto por rupturas; estas
são resultantes da lenta gestação de inovações por autores mais talentosos,
catalisadas pela influência estrangeira; aquelas, rotinizadas por escritores de
menor porte.
A tese principal do livro fundamenta-se na recorrência, nos dois perío­
dos, da mesma "convicção histórica" - o desejo de criar uma literatura nacional­
que se manifestaria em Cláudio Manuel da Costa, pela ênfase dada à experiência
local, e, em seguida, no Indianismo de Alvarenga Peixoto, para quem o nativo já
aparece como símbolo brasileiro. Porém, a insistência na temática nacional du­
rante o Arcadismo é um momento do processo que nos enquadra na tradição oci­
dental pela absorção transformadora dos padrões literários do mundo europeu.
No Romantismo, o nacionalismo seria exacerbado, manifestando-se na preocu­
pação quase unânime dos escritores em descrever a natureza, os costumes, a his­
tória e os sentimentos brasileiros. Essa seria a "estratégia" para tornar nossa pro­
dução literária independente, sendo o Indianismo o momento mais explícito de
tal processo, o "nacionalismo literário". Vejamos então como o romance brasilei­
ro o incorpora para chegarmos em Machado de Assis.
Antonio Candido situa o gênero a meio caminho entre poesia e ciência;
a criação ocorreria "por um processo mental que guarda intacta a sua verossimi­
lhança externa, fecundando-a interiormente por um fermento de fantasia, que a
situa além do cotidiano - em concorrência com a vida. Graças aos seus produtos
extremos, embebe-se de um lado em pleno sonho, tocando de outro no docu­
mentário" (Candido, 1993, voI. 2: 97). O comprometimento do romance com a
realidade, ou seja, sua "vocação sociológica", tornaria o gênero perfeito para ex­
pressar o "nacionalismo literário", por isso seria quase regra a "descrição de luga­
res, cenas, fatos, costumes do Brasil". Inicialmente, as obras seriam pobres, com
poucos recursos ficcionais e enredos simplistas; fato relacionado, por um lado,
ao desenvolvimento incipiente do gênero e, por outro, à relativa simplicidade da
sociedade brasileira, cuja modernização se daria a partir da segunda metade do
século XIX.
O introdutor do romance no Brasil, Teixeira e Silva (1843), deixaria
muito a desejar literariamente, restando-lhe o mérito histórico de ter introduzi­
do o gênero. Mais importante seria Joaquim Manuel de Macedo, que já revelava
certa "acuidade sociológica" para descrever a sociedade carioca de seu tempo,
apt!sar de recorrer constantemente a personagens típicos, enredados em tramas
muito superficiais. Antonio Candido assinala, entretanto, que, embora pobres,
os recursos narrativos utilizados foram suficientes para aproximá-lo do leitor. A

superação dessa primeira fase ocorreria na geração seguinte.

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Perspectivas sociológicas sobre Machado de Assis

Na nova fase, destaca-se José de Alencar, interpretado em Os três Alen­


cares. Nesse ensaio, Antonio Candido destaca três aspectos da obra que defini­
riam três Alencares: o ''Alencar dos rapazes"; o "Alencar das mocinhas"; o
"Alencar dos adultos". O primeiro seria o criador dos heróis, que permeiam
seus livros indianistas e regionalistas; o segundo, o "criador de mulheres cân­
didas e de moços impecavelmente bons, que dançam aos olhos do leitor uma
branda quadrilha, ao compasso do dever e da consciência, mais fortes que a pai­
xão" (Candido, 1993, voI. 2: 203); o terceiro, dos "temas profundos". Apesar da
importância dos dois primeiros, é no terceiro que o autor supera (porque incor­
pora) a obra de Macedo. Antonio Candido nos mostra como alguns persona­
gens de Alencar revelam "densidade humana", em Senhora e Lucíola, por exem­
plo.
Entretanto, a profundidade não é apenas dos personagens, mas das
relações sociais nas quais estão envolvidos. A sociedade aparece nos romances
como "campo de concorrência pela felicidade e o bem-estar" (Candido, 1993,
vol. 2: 204). Portanto, em José de Alencar temos um autor talentoso que revela (e
realiza) o processo de amadurecimento de nossa literatura, cuja formação estaria
consolidada um pouco mais tarde, o que se comprova pela obra de Machado.
Vejamos uma passagem decisiva:
Uma literatura só pode ser considerada madura quando
experimenta a vertigem de tais abismos. Na brasileira, experimentou-a
intensamente Machado de Assis, dando-lhe, por esta forma, razão de ser
num plano supranacional. Há, porém, certa injustiça em atribuir-lhe a
iniciativa das análises psicológicas, encarando toda ficção anterior como
um conjunto ameno, superficial e pitoresco. Na verdade, ele foi, sob vá­
rios aspectos, continuador genial, não figura isolada e literariamente
sem genealogia no Brasil, tendo encontrado em Alencar, além da socio­
logia da vida urbana, sugestões psicológicas muito acentuadas no senti­
do da pesquisa profunda. (Candido, 1993, voI. 2: 193)
A passagem apresenta o "herói oculto"7 da Formação, Machado de Assis.
Se tomamos a tese principal do livro como mote, nos importa perceber como
certa tradição literária vai se constituindo, para possibilitar a emergência de
grandes talentos a partir de sua estrutura interna, que se transforma ao longo do
tempo. Assim, explica-se a obra de Machado pela influência de seus
predecessores brasileiros e não por influência externa.8 A formação literária
ocorre, portanto, por meio do movimento gerado pela superação da tradição
pelos autores de talento (os autores menores consolidam e expandem o sistema),
que se integram (assimilando ou recusando traços) à tradição no esforço de ir
além dela.

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. .' .-
" " ------------­

Não por acaso, depois de refazer os primeiros passos da crítica literária


brasileira - então apoiada nos parâmetros do "nacionalismo literário", que valo­
rizava a obra à medida que fosse representativa da sociedade nacional em forma­
ção -, o autor fecha o livro citando Machado, exercendo a função de crítico, no
célebre artigo "Instinto de nacionalidade":
Não há dúvida que urna literatura, sobretudo urna lite­
ratura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe
oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que
a empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo
sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ain­
da que trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. (Assis apud Can­
dido, 1993, vaI. 2: 237)
Essa passagem, belíssima, defende a independência literária, que não se
daria pela superficialidade das descrições e do tratamento explícito dos temas
nacionais, e sim pela competência de tratar de ternas universais, em meio aos
quais o local viria à tona. Tal percepção da obra do escritor, a teve Roger Bastide,9
professor de Antonio Candido, um dos principais personagens da missão france­
sa, que consolidaria na FFCL-USP um padrão de pesquisa rigoroso, dos anos
1930 aos 50. Bastide era sociólogo, mas entre seus escritos abundantes e de alto
nível dedicou-se também à crítica literária, influenciando Antonio Candido, so­
bretudo através do artigo "Machado de Assis paisagista". Nos termos de Candi­
do:

E um artigo capital, que nos influenciou decisivamente


e marcou uma reorientação na maneira de conceber certos aspectos fun­
damentais da nossa literatura. Influência tanto maior quanto a idéia
central do artigo era uma dessas convicções que Roger Bastide sabia cul­
tivar com paciência obstinada e suave firmeza, repetindo-a freqüente­
mente nas aulas, nas conversas, nos debates, e que pode ser expressa do
seguinte modo: ao contrário do que se diz, o cunho de "autenticidade"
da literatura brasileira não depende da descrição ostensiva de traços ca­
racterísticos do país. O descritivismo, a presença indiscreta da paisagem
e dos tipos exóticos podem constituir, ao contrário, visão externa, ponto
de vista de estrangeiro, e não compreensão profunda e autêntica. (Can­
dido, 1996: 103)
A interpretação de Bastide, descobrindo os mares revoltos do Rio de
Janeiro nos olhos de Capitu, !O influenciaria também Roberto Schwarz. O crítico,
como veremos, tornaria explícita a crítica contundente do escritor à sociedade
brasileira do século retrasado, escondida nas Memórias póstumas em forma
literária aparentemente desobrigada.

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Perspectivas sociológicas sobre M(/ch(/do de Assis

Antes de aprofundarmos os argumentos de Roberto Schwarz,


abordaremos ainda dois momentos da obra de Antonio Candido, para
podermos situar comparativamente a interpretação forjada por seu discípulo.
O primeiro diz respeito a soluções teóricas alcançadas em textos posteriores à
Formação, como "Estrutura literária e função histórica" - sobre o Caramuru, de
frei José de Santa Rita Durão - incluído em Literatllra e sociedade; "Dialética da
malandragem", sobre Memórias de 11/11 sOIgen/o de milícias, de Manuel Antonio
de Almeida e "De cortiço a cortiço", sobre O cortiço, de Aluísio de Azevedo, os
dois últimos incluídos em O discu rs o e a cidade. O segundo refere-se ao texto
"Esquema de Machado de Assis", em Vários eserilOs, que avalia a importância da
obra do escritor.
As soluções teóricas, que relacionam de modos distintos texto e contexto
nos ensaios citados, têm como pressuposto a idéia de que o estudo da relação de
uma obra com a sociedade e a história deve ter como ponto de referência a
estrutura literária, a partir da qual seria possível estabelecer mediações externas,
esquemall que aproxima Antonio Candido de Lukács e Lucien GoldmannY
Aqui, "estrutura", B conforme nos adverte o autor, diz respeito à forma específica
de cada obra "constituída pela inter-relação dinâmica dos seus elementos", que
expressam um todo coerente. Vale dizer que as mediações visadas têm sempre o
intuito principal de esclarecer a(s) obra(s), através da "redução estrutural", ou
seja, a transformação criativa da realidade externa (mais complexa, por isso
"redução") em forma literária. Ao observarmos o percurso intelectual do autor,
percebemos, entretanto, que ao lado das preocupações do crítico há o ponto de
vista do sociólogo, cujo interesse maior estaria no esclarecimento da realidade
social através da literatura.
Não devemos desprezar esta perspectiva, intimamente relacionada, aliás,
ao próprio desenvolvimento do romance e à sua "vocação sociológica". Uma pe­
quena digressão, a partir do livroAs três ellltllras, de Wolf Lepenies, talvez seja váli­
da neste momento. Sua argumentação percorre a disputa entre literatura e sociolo­
gia, intensificada na transição do século XIX para O XX, pela legitimidade de ex­
plicar e orientar o desenvolvimento da sociedade ocidental industrial, analisando
comparativamente os casos francês, alemão e inglês. A tese principal supõe que o
desenvolvimento da sociologia nos três países teria sido profundamente marcado
por essa contenda, responsável pelo dilema constitutivo da disciplina: aproxi­
mar-se da literatura, com uma atitude hermenêutica, ou das ciências naturais, com
uma atitude cientificista. (As "três culturas" seriam, portanto, literatura, ciências
sociais e ciências naturais.) Do lado da literatura, percebemos também a impor­
tância dessa disputa, especialmente na França, de acordo com análise proposta
pelo autor. O exemplo de Balzac seria significativo pela ambigüidade de sua posi-

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ção (o mesmo ocorrendo com Flaubert) em relação à sociologia, pois, ao mesmo


tempo que assumia uma orientação "científica", reivindicava para a literatura a
posição privilegiada na análise e na crítica da sociedade moderna.
A reflexão de Lepenies é muito profícua para o caso brasileiro, em fun­
ção do papel central exercido pela literatura na formação de nossa cultura erudi­
ta, associado ao processo recente de institucionalização das ciências sociais (que
começa nos anos 30). A partir de então, nota-se a polarização entre aqueles que
defendem a separação radical das ciências sociais em relação à .literatura e outros
que não admitem rigidamente esta divisão. Em função dessa disputa, na
FFCL-USP dos anos 50, a sociologia da cultura (e da literatura) era menos pres­
tigiada do que a sociologia econômica e a sociologia política, voltadas para a com­
preensão do desenvolvimento brasileiro, fato que deve ter pesado na decisão de
Antonio Candido em sua transferência para as Letras.14 Acreditamos que, mes­
mo considerando a precedência do crítico em relação ao sociólogo, podemos ler
parte de sua obra também como resposta a tal contexto.
Nesse sentido, como dissemos acima, a trajetória de Roberto Schwarz
relaciona-se à de Antonio Candido, radicalizando sua perspectiva15 Explique­
mos melhor, a começar pelas duas primeiras questões formuladas no primeiro
parágrafo de Um mestre na periferia do capitalismo:16
"Em que consiste a força do romance machadiano da
grande fase? Há relaçao entre a originalidade de sua forma e as situaçoes
particulares à sociedade brasileira no século XIX?" (Schwarz, 2000: 9)
Antonio Candido respondera a primeira pergunta em "Esquema de
Machado de Assis" (Candido, 1995)17 sem enfatizar a acuidade sociológica do
escritor18 O texto enfatiza, em visão abrangente da produção de Machado, o
tratamento pungente do "homem subterrâneo" - a partir da leitura de Augusto
Meyer, que aproximaria o autor carioca de Dostoievski - e temas como: a
identidade do sujeito, a relação entre este e sua projeção social, a fronteira entre
sanidade e loucura, a relação entre fato real e fato imaginado, o(s) sentido(s) does)
ato(s) individual(ais), a busca obsessiva da perfeição na obra, a transformação do
homem em objeto do homem. Percorrendo tais temas, o crítico defende a
atualidade de Machado, comparando-o com grandes escritores do século XX a
partir de questões antes metafísicas e psicológicas do que sociológicas. Apenas
rapidamente, no final, aponta uma brecha para uma perspectiva sociológica:
Mas além disso, há na sua obra um interesse mais largo,
proveniente do fato de haver incluído discretamente um estranho fio so­
cial na tela do seu relativismo. Pela sua obra há um senso profundo, nada
documentário, dostalUs, dos duelos dos salões, do movimento das cama­
das, da potência do dinheiro. (Candido, 1995: 37)

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Perspectivas sociológicas sobre Machado de Assis

Roberto Schwarz segue a brecha, demonstrando que a estrutura literária


de Memórias póstumas de Brás Cubas teria sido construída a partir de uma crítica
radical à sociedade brasileira, mais especificamente, às classes dominantes no
Rio de Janeiro. A dificuldade de apreender a intenção do autor residiria,
propositalmente, na fala do narrador - o "defunto" Brás Cubas - por tudo e nada
interessado, muito menos pela sociedade brasileira.I9 Nesse sentido, a fórmula
da conversão das relações sociais concretas de seu tempo e país em forma literária
seria a volubilidade do narrador. Nos termos do autor:
( . .. ) a fórmula narrativa de Machado consiste em certa
alternância sistemática de perspectivas, em que está apurado um jogo de
pontos de vista produzido pelo funcionamento mesmo da sociedade
brasileira. O dispositivo literário capta e dramatiza a estrurura do país,
transformada em regra de escrita. E com efeito, a prosa narrativa macha­
diana é das raríssimas que pelo seu mero movimento constituem um es­
petáculo histórico-social complexo, do mais alto interesse, importando
pouco o assunto de primeiro plano. (Schwarz, 2000: 11)
Um narrador interessado, em suma, cabendo ao leitor desmascará-lo
para compreender o seu mundo, ou deixar-se levar, conformando-se a ele. Esse
mundo é o Rio de Janeiro de Brás, ou o RJ e o Brasil,2o durante o período com­
preendido enue seu nascimento e sua morte, 1805 e 1869 respectivamente. A
vida do narrador corre, portanto, nos trilhos do século XIX, em meio à socieda­
de escravocrata (colonial até 1822, nacional em seguida), interpretada por Ro­
berto Schwarz21 a partir da tradição sociológica da USp, especialmente daquela
liderada por Florestan Fernandes, e das leituras e concepções formuladas pelo
"grupo d'O capital".22 Em resumo, na fórmula do autor, tratava-se de sociedade
"escravista e burguesa ao mesmo tempo", o que gerava uma espécie de distor­
ção ideológica - as "idéias fora do lugar" - obrigatória para uma elite versada
nos princípios do liberalismo, mas calcada na escravidão e no tráfico negrei­
ro.23
De volta ao romance, sua chave estaria, como vimos, na mudança
constante de opinião do narrador Brás Cubas, sempre interessado em impor sua
superioridade. Esta seria a "regra de composição" do livro, uma transposição
literária da conduta da classe dominante brasileira. Roberto Schwarz focaliza,
nos primeiros capírulos,24 sobretudo, a forma que organizaria todo o romance.
Em suma, "um narrador voluntariamente inoportuno e sem credibilidade", que
confunde o leitor e o seduz, encobrindo sua situação de classe, que lhe impõe um
comportamento abusivo, marcado pela negação constante do outro, qual seja, o
escravo ou o homem livre.

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estudos Iristóricos e 2003 - 32

Um aspecto imponanre da argumenração diz respei to, enrão, ao liberalis­


mo, que entre nós não seria propriamente ideologia, por estar referido n�v à nossa
realidade social mas à européia, marcada pelo desenvolvimenro histórico do tra­
balho assalariado regido por conrralO, solo da equivalência transposta como re­
presentação para o plano social, que, como sabemos por Marx, revelaria a explo­
ração de mais-valia, processo constitutivo do capitalismo. Como emender, en­
tão, liberalismo sem conrrato? O ideário agiria "fora de lugar", traduzido diferen­
temenre de acordo com as situações e conveniências: "Necessário à organização
e à idenridade do novo Estado e das elites, ele representa progresso. Por outro
lado não expressa nada das relações de trabalho efetivas, as quais recusa ou desco­
nhece por princípio, sem prejuízo de conviver familiarmenre com elas" (Schwarz,
2000: 38). Nas Memórias, Robeno Schwarz reconhece essa ambivalência no
modo perverso com que Brás Cubas exige do vadio a dignidade que não reconhe­
ce ao trabalhador (Schwarz, 2000: 104). Em relação a este, prevalece o desprezo
ao trabalho, associado ao escravo; àquele, a sua valorização burguesa, operando
anres como sadismo do que como ética positiva.
Avancemos agora à segunda parte do romance (a primeira seria uma
"prosa sem mais", mera estratégia de Brás para se impor ao leitor), quando a nar­
rativa biográfica ganha corpo, mas de forma desenconrrada, e com ela a rede de
relações sociais, da qual seu personagem principal participa. Brás Cubas seria,
para o crítico, inrencionalmenre (para Machado) um represenranre da classe do­
minanre brasileira, burguesa mas nem tanto, resultanre de um padrao de moder­
nização que não incorpora traços do passado residualmente, e sim como "parte
integrante da reprodução da sociedade brasileira":
Fica clara, assim, a inrenção de sintetizar 11m tipo repre­
sentante da classe dominante brasileira através das relações que lhe são pe­
culiares. Cabe ao enredo concretizá-Ias por meio de personagens e ane­
dotas convenienres. Daí a presença de uma diversificada galeria de figu­
ras socíais, necessária para que Brás tenha realidade. (Schwarz, 2000: 71,
grifos meus)
A realidade social do personagem ganharia corpo, nesse senrido, nas re­
lações estabelecidas com pobres e ricos, interpretadas nos capítulos 6 e 7 das Me­
mórias póstumas. Acompanhemos a análise do autor, mas sugerindo a partir desta
outra possibilidade de leitura sociológica, inreressada na singularidade da expe­
riência social de Brás em relação à sua situação de classe.
O titulo ''A sone dos pobres" (capítulo 6) é perturbador. Chance, felici­
dade, destino, qual o melhor senrido para "sorte"? Tratemos logo de desfazer um
mal-entendido para compreendermos o modo típico de relação social enredado
na literatura de Machado, o "favor", como demonstra Roberto Schwarz. A soeie-

80
PerspectiJ'as sociológicas sobre Machado de Assis

dade brasileira não se constituiu, desde a colonização, apenas por senhores e es­
cravos. Sempre houve entre uns e outros uma camada intermediária de homens
livres e pobres, lutando pela sobrevivência física e social em condições muito
precárias. Roberto recorre ao excelente livro Homens livres na ordem escravocrata,
de Maria Sylvia de Carvalho Franco,25 do qual retira uma tese decisiva: a ascen­
são social dos pobres no Brasil do século XIX dependia necessariamente de rela­
ções pessoais com os detentores do poder econômico e político. O princípio polí­
tico que ordenava e articulava a sociedade, portanto, era a dominação pessoal.
Esta, no entanto, aparecia disfarçada pela proximidade aparente que relacionava
ricos e pobres, cuja expressão mais típica seria o "compadrio", que'concretizava a
troca desigual - o "favor" - de proteção social (sobretudo econômica) por lealda­
de, chegando, no limite, ao crime encomendado.
As relações entre pobres e ricos seria marcada, então, pela subordinação,
pela submissão quase total: os primeiros como vítimas do capricho - muitas ve­
zes perverso - da classe dominante. Lembremos um trecho das Memórias, no
qual Brás Cubas narra a vida de dona Plácida, a antiga agregada da família de Vir­
gília, que lhes serve de alcoviteira:
,

E de crer que Dna. Plácida não falasse ainda quando


nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: - Aqui estou.
Para que me chamastes?... - Chamamos-te para queimar os dedos nos ta­
chos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado
para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer
e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas
sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na
lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de
sImpatia.
• •

A ironia da passagem, segundo penso, é mordaz, mas crítica, revelando


pelo destino absurdo de dona Plácida a violência constitutiva de uma sociedade
radicalmente injusta e desigual. Na interpretação de Roberto Schwarz, contudo,
as palavras de Brás expressam o escárnio da classe dominante, operando critica­
mente à medida que o personagem é desmascarado pelo leitor.26 Farei, todavia, o
papel de "advogado do diabo", com os riscos inerentes a essa condiçã027
Em primeiro lugar, vejamos a vida de Brás, em comparação ao pai, ao cu­
nhado (Cotrim) e ao rival (Lobo Neves). Não há dúvida que se trata de existência
sem trabalho e representativa da "desfaçatez" de sua classe, mas também marca­
da por certa marginalidade e por revolta impotente e ambígua. Lembramos que,
do ponto de vista do seu grupo, Brás é um fracassado. Antes de mais nada, por
não se casar, apesar da insistência do pai (que morre após Lobo Neves vencê-lo
na disputa por Virgilia) e da irmã. O fracasso do romance com Eugênia - cuja

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estudos históricos - 2003 - 32

condição social inferior apareceria convertida em defeito físico - reforça a tese de


Roberto Schwarz. Nesse caso, a aproximação e posterior afastamento de Brás fo­
ram deliberados e orientados por sua situação de classe, que supera qualquer ro-
mantlsmo:

Eugênia aliás não é propriamente pobre. Educada na


proximidade do mundo abastado, ela pode até fazer um bom casamento
e vir a ser uma senhora. Mas também pode terminar, como termina, pe­
dindo esmola num cortiço. Do que depende o desfecho? Da simpatia de
um moço ou de uma família de posses. Noutras palavras, depende de um
capricho de classe dominante (...). Faltando fundamento prático à auto­
nomia do indivíduo sem meios - em conseqüência da escravidão, o mer­
cado de trabalho é incipiente -, o valor da pessoa depende do reconheci­
mento arbitrário (e humilhante, em caso de vaivém) de algum proprietá­
rio. Neste sentido, penso não forçar a nota dizendo que Eugênia, entre
outras figuras de tipo semelhante, encerra a generalidade da situação do
homem livre e pobre no Brasil escravista. (Schwarz, 2000: 88)

Mas a vida de Brás também não se realiza profissionalmente - o que


estaria, vimos, relacionado à especificidade da classe dominante nacional, avessa
ao trabalho -, em comparação a Cotrim e Lobo Neves. O primeiro, cunhado de
Brás, fizera fortuna no tráfico de escravos, o que, do ponto de vista da elite do
século XIX, era legítimo. Vejamos como Brás o encara, de acordo com a análise
de Roberto Schwarz. Seu perfil seria traçado por "elogios que incriminam e
justificações que condenam" (Schwarz, 2000: 115), estando a ironia na pena de
Machado, não na de Brás, que faria a defesa de Cotrim:

O foco não está portanto nas ações de Cotrim e nos


imensos melindres correlatos, mas no esforço do cunhado para descarac­
terizar o conjunto e desculpá-lo. Noutras palavras, o primeiro plano per­
tence às cumplicidades da classe dominante em face de aspectos insus­
tentáveis da sua situação, com aspecto malicioso nas seqüelas grotescas.
(Schwarz, 2000: 116)

O ridículo estaria, portanto, na defesa insustentável do comerciante


ascendente pelo representante da elite tradicional, em face do conluio de ambos,
reveladora de uma classe dominante, que ora admite a escravidão e o tráfico, ora
defende instituições e práticas liberais. Porém, outra interpretação é possível se
lermos a ironia da pena de Brás. O capítulo de referência é "O verdadeiro
Cotrim", título ambíguo, indicativo do bom ou do mau-caráter do cunhado.
Importa lembrar que a relação de Brás com O cunhado não era das melhores,
sobretudo após a disputa em torno da herança do pai, que levara ao afastamento

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Perspectivas sociológicas sobre Machado de Assis

de ambos, depois reconciliados por esforço da irmã e esposa Sabina. Esta insiste
no casamento de Brás com a jovem sobrinha de Cotrim, Nhá Loló. Brás que
vivia, então, os estertores de seu longo caso com V irgília, acaba cedendo com as
seguintes palavras: "Não há remédio - disse eu comigo -, vou arrancar esta flor a
este pântano" (capítulo CXXII/Uma intenção muito fina).
O pãntano dizia respeito aos "antigos costumes e afinidades sociais" da
família da moça, revelados quando o pai dela, ao se entusiasmar por uma briga de
galos, mostrara sua face oculta. Agora,28 porém, ao redor dos quarenta e poucos
anos, Brás resolve arriscar (embora sua decisão seja interrompida pela morte da
o

jovem). E nesse contexto que ocorre a conversa com Cotrim e, em seguida, sua
avaliação moral - seqüência que estrutura o capítulo. Vejamos.
Na interpretação de Roberto Schwarz, a hesitação de Cotrim diante da
consulta de Brás sobre a possibilidade do casamento seria apenas jogo de cena, já
que o "o tio dirige as manobras para casar a moça". Verdade, mas as palavras de
Cotrim querem também desclassificar seu interlocutor (aceitável mas não dese­
jável para a sobrinha), que teria fracassado na vida, apesar do berço favorecido.
Os cunhados compõem, assim, uma relação sui generis. De um lado, o estabelecido
mal-sucedido diante do julgamento de seus pares; de outro, o outsider que conse­
gue - a duras penas - ser aceito (mas não totalmente) pelo grupo dominante29 As
posições apresentam-se, assim, estranha e complexamente invertidas: Brás seria
o estabelecido convertido em outsider e Cotrim, ooutsider-estabelecido. Se válida esta
digressão, Cotrim não seria defendido por Brás, mas atacado com luvas de pelica.
Ataque que visaria também, em outros momentos, com igual sutileza e ironia, ao
rival Lobo Neves e ao próprio pai,JO ridicularizados pelo narrador, que percebe a
fragilidade constitutiva de quem aceita de olhos fechados as regras prescritas
pelo grupo.
A posição de Brás é, assim, tipicamente liminar. Menosprezado por seu
grupo de origem, que a seus olhos não é grande coisa, pretende ao mesmo tempo
o reconhecimento que só consegue do amigo louco (Quincas Borba). A circuns­
tância, se permite um olhar crítico, imobiliza o narrador que, efetivamente, não
realiza nada.
Se o que dissemos se justifica do ponto de vista de sua classe, onde sua
posição é marginal, do ponto de vista das classes inferiores, sua posição é
coerente com a de seu grupo, no qual exerce a mais abjeta dominação pessoal
sobre pobres e escravos (mesmo quando de algum modo se sensibiliza com isso,
o que ocorre apenas esporadicamente, sem conseqüência prática alguma).
A leitura que realizamos, a partir da interpretação de Roberto Schwarz,
não visa evidentemente à rejeição. Nosso intuito foi desenvolver um lado do
personagem pouco explorado, mas reconhecido pelo crítico. Nesse sentido, Brás
Cubas não representaria tipicamente o grupo ao qual pertencia (a classe

83
estudos históricos e 2003 - 32
"- ��������-

dominante), pois seria problemática sua inserção no mesmo. Sem se identificar


subjetivamente com ele, o faz objetivamente (e por isso a interpretação de
Roberto se mantém de pé), Desta contradição, retira o personagem sua única
motivação possível, a crítica impotente que atinge a si próprio antes de atingir os
outros, o que, se levarmos a sério (considerando a ironia que as constitui) as
últimas linhas do romance, o condena ao mesmo tempo em que o redime:
Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a
celebridade do emplasto. Não fui ministro, não fui califa, não conheci o
casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna
de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais, não padeci a morte
de dona Plácida, nem a demência do Quincas Borba. Somadas umas e
outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e
conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque, ao
chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo,
que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: Não tive filhos,
não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria. (capítulo
CLX/Das negativas)

Com as últimas linhas do "defunto autor" concluímos este texto, que


pretendeu analisar comparativamente as perspectivas sociológicas de Antonio
Candido e Roberto Schwarz sobre a obra de Machado de Assis.

Notas

concurso de professor titular de Teoria


I. Antonio Candido foi professor Literária e Literatura Comparada, na
assistente na Cadeira de Sociologia II,
FFLCH-USP). Devemos lembrar,
regida por Fernando de Azevedo, de 1942
também, que Robeno foi um dos
a 1958. De 1958 a 1960, lecionou
participanres do "grupo do Capital", no
Literatura Brasileira na Faculdade de
inicio dos anos 1960, experiência
Filosofia, Ciências e Letras de Assis. Na
relacionada à orientação marxista que
FFCL-USp, Robeno Schwarz seria
caracteriza sua obra. Sobre esse
nomeado assistente de Antonio Candido
itinerário, ver Arantes (1992).
no final de 1963, após realizar seu
mestrado em Literatura Comparada na 2. Em trabalho anterior - mestrado
Universidade de Yale (informações defendido no Programa de
retiradas do Memorial apresentado por Pós-Graduação em Sociologia da
Antonio Candido, em 1974, para o FFLCH-USP, em 1998, orientado por

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Perspectivas sociológicas sobre Machado de Assis

Maria Célia Paoli a ackson, 2002)-, ainda, com a sua branca orla, suas linhas
interpretamos a obra de Antonio sinuosas, todas as panes do romance".
Candido a partir do pressuposto de que Passagem citada por Antonio Candido
sociologia e crítica literária estariam (1996: 108-9) em "Machado de Assis de
intimamente relacionadas na trajetória e outro modo". Também Gilda de Mello e
na produção intelectual do autor, estando Souza seria influenciada por essa visão da
a separação dos domínios associada antes obra de Machado.
a circunstâncias acadêmicas do que a
1I. Conforme Waizborr (2002b).
mudanças expressivas nas obras. Sobre a
carreira de Antonio Candido e dos 12. Conforme Hastide (197 1 : 22-3),
integrantes do "grupo Clima", ver Pontes "Lucien Goldmann é o representante
(1998). deste novo marxismo qu'e pane da idéia
3. Para uma reconstrução teórica das
luckacsiana que 'a literatura e a filosofia
obras de Antonio Candido e Roberto são, em planos diferentes, expressões de
Schwarz, focada no diálogo com uma visão do mundo e que as visões do
Auerbach e Lukacs, consultar Waizborl mundo não são faws indjviduais, mas
(2002a e 2002b). faLOS sociais'- isto é, são impostas a um
grupo de homens, a uma classe por
4. "A nossa literatura é galho secundário condições de vida econômicas e sociais.
da pOrluguesa, por sua vez arbusto de Portanto seria ingênuo tentar explicar,
segunda ordem no Jardim das Musas .. ," como se fazia anteriormente, a obra
(Candido, 1993, vol. I: 9). literária pelo meio que a circunda; as
5. Antes do sistema configurado, relações que se instituem entre o criador
teríamos "manifestações literárias", como e o ambiente são infinitamente mais
o barroco brasileiro, que para Anramo complexas- elas não se estabelecem no
Candido estaria ainda vinculado ao nível do homem, como nos antigos livros
sistema literário português. de crítica literár�a marxista) mas no nível
da obra escrita. E preciso panir da
6.Temos aqui um ponto importante, 'estrurura' da obra: 'Há uma coerência
passível de ser inferido da tese de interna ( ...) de um conjunto de seres
Antonio Candido: o processo complexo vivos numa obra literária, esta coerência
de formação da nação ocorreria em várias faz com que a obra constitua uma
dimensões relacionadas, mas também totalidade cujas partes podem ser
relativamente autônomas, movidas por compreendidas uma a partir da outra e)
temporalidades distintas. sobretudo, a partir da estrUlUra do
7. O termo é de Antonio Cailado. conjunto', e o papel da explicação
marxista será reencontrar o caminho pelo
8.Para completar, precisamos lembrar qual a realidade histórica e social se
que esse processo depende também da exprimiu através da sensibilidade
formação do público e da diferenciação individual do criador". As passagens
social que ocorrem na segunda metade do citadas por BasLide foram retiradas de
XIX. Lucien Goldmann, "Problêmes d'unc
9. Sobre o autor, consultar Peixoto (2000). sociologie du roman", Cahiers Im. de
Soci%gie, 1961.
10. "E o mar banha Dom Casmurro nas
suas ondas salgadas, verdes e turvas; J3. O termo, conforme a
ondas que vêm morrer em cada linha, introdução/prefácio de Literatura e
deixando sobre cada palavra nocos de sociedade) é tomado de Radcliffe-Brown, e
espuma) canções noturnas. Não está opera uma analogia a panir da noção de
somente nos olhos de Capitú ( ... ) mas liga estrutura social do autor.

85
estudos históricos e 2003 - 32

14. Embora o crítico afirme 20. O crítico faz menção à observação de


constantemente que tal passagem teria Jobn Gledson, para quem Brás nào seria
sido motivada apenas em função de sua um nome casual, mas provavelmente
vocação para a crítica literária. derivado de Brasil.

15. Simplificando, diríamos que os 21. Um senão à perspectiva de Roberto


trabalhos do autor sobre Machado Schwarz reside no pressuposto de que a
comprovam que a sociologia da liLerarura percepção histórica de Machado de Assis
(e da cultura) pode ser tão importante fosse a sua própria, como indica a
para se compreender o processo e os passagem seguinte, redi�ida após análise
dilemas da formação social brasHeira do comexto histórico: "E claro que não
quanto as sociologias econômica e se tratou aqui de escrever uma história do
política, ao contrário do que se pensava­ Brasil, mas de expor com brevidade o
• considerando a perspectiva dominante travejamento contradilório da
naquele contexto, vinculada à cadeira de experiência que seria figurada e
Sociologia I, regida por Florestan investigada pela literatura de um grande
Fernandes - sobretudo nos anos 50 e 60. autor" (Schwarz, 2000: 40).
Neste ponto, devemos mencionar,
22. Sobre Florestan Fernandes, consultar
novamente, a perspectiva de Roger
Arruda (1995). Ver também Garcia
Bastide, que apostava na Sociologia da
(2002).
Cultura, como instrumento capaz de
flagrar formas de resistência e recriação 23. A passagem seguinle, na qual o autor
social - vinculadas ao Brasil tradicional avalia o Brasil independente, expressa
-, que minimizassem os efeitos negativos bem a sua perspectiva: "Noutras palavras
da modernização. o senhor e o escravo, o latifúndio e os
dependentes, o tráfico negreiro e a
16. Considerando·se a abrangência e a
monocultura de exponação permaneciam
profundidade que caraclerizam a obra do
iguais, em contexto local e mundial
autor, a análise aqui desenvolvida é
transformado, No tocante às idéias caiam
obviamente limitada e despretensiosa e,
em descrédilo as justificações que a
se ganhou certa orientação crítica, esta
colonização e o absolutismo haviam
deve·se à grande admiração ao trabalho.
criado, substituídas agora pelas
17. Incluído em Vários escn"los, foi escrito perspectivas oitocentistas do estado
muitos anos anles de Um mestre tia nacional) do trabalho livre, da liberdade
periferia do capilalismo. de expressão, da liberdade perante a lei
etc., lDcompanvels com as outras, em
• • •

18. Como vimos através da Fonllação, a


particular com a dominação pessoal
perspectiva sociológica de Antonio
direta" (Scbwarz, 2000: 36).
Candido na análise da obra de Machado
de Assis residia na associação entre a 24. Neste ponto, Robeno Schwarz indica
força do escritor ao amadurecimento de um pormenor significativo. Trata·se do
nossa literatura como sistema e à recurso estratégico à dicção realisla
complexidade crescente da estrutura (informando falOS concretos relativos à
social brasileira. sua morte e à sua vida), mobilizado por
Brás para tranqüilizar o leitor, quebrando
19. Uma das facetas do personagem seria
o ritmo da volubilidade, que logo retoma
a falsa erudição, upara inglês ver", mais
o seu lugar.
retórica do que substantiva. Tal aspecro
nos remete ao "homem cordial" de 25. As diversas representações teóricas
Sérgio Buarque de Holanda, que sobre os pobres divergem
certamente inspirou a análise do crítico. fundamentalmente entre afirmar ou

86
Perspectivas sociológicas sobre Machado de Assis

negar existência autônoma desde a 29. Recorremos aqui ao esquema teórico


colonização àqueles que viveram às de Norbert Elias, formulado em
margens do latifúndio. A tese da autora, Estabelecidos e outsiders e mobilizado em
apoiada provavelmente em Caio Prado Mozart: sociologia de um gênio. Dois
Jr., supõe a subordinação econômica e pontos de sua argumentação nos
política dos homens livres e pobres à interessam especialmente para
sociedade abrangente. Nesse sentido, foca pensarmos a trajetória social de Brás. O
sua análise nas relações societárias, primeiro diz respeito à possibilidade de
defendendo a idéia de que o conflito, e um estabelecido ser tratado como outsider,
não a solidariedade, seria o principio desde que não cumpra o que dele se
organizador da sociedade brasileira, esta espera no grupo. O segundo, é relativo à
capitalista desde os primórdios da candura típica do outsider; que, ao mesmo
colonização. Centrada na produção tempo que espera o reconhecimento pelo
escravista para o mercado externo, grupo dominante, recusa criticamente
entretanto, a sociedade colonial pouca seu modo de vida, o que explica atitudes
chance oferecia aos que não eram aparentemente contraditórias, mas
senhores, gerando um mundo violento e características de sua personalidade
.
quase anOffilCO.
"

social dilacerada.
26. Neste pODro discordamos do autor;
parece-nos que, sobretudo na passagem 30. O pai, por exemplo, Brás ridiculariza
cüada, o narrador não se diverte com o na passagem seguinte (capítulo XlI/Um
destino de dona Plácida, percebendo o episódio de 1814): "Napoleão, quando eu
absurdo de sua condição, ironicamente nasci, estava já em todo o esplendor da
construída. Ao mesmo tempo, nada faz glória e do poder; era imperador e
de concreto; ao contrário, sua atitude é granjeara a admiração dos homens. Meu
marcada pela impotência. pai) que à força de persuadir os outros da
nossa nobreza acabara persuadindo�se a
27. Analisando a relação de Brás e COlrirn si próprio, nutria contra ele um ódio
(capítulo 7/Ricos entre si), Roberto puramente mental". Lobo Neves,
Schwarz faz menção em um dado consagrado na política, ao contrário de
momento ao alter ego esclarecido de Brás: Brás, também não escapa à pena do
"Colado ao Brás Cubas solidário de sua narrador (capítulo LVIlI/COIifidência). O
classe encontramos o seu alter ego político é desmascarado pela ironia que
esclarecido, com horror a ela, piscando o descreve a confissão do falso escrupuloso,
olho para o leitor e indicando como
aparentemente contrariado com as
bárbaros a própria pessoa e o cunhado"
agruras de sua vocação, na verdade
(Schwarz, 2000: 127). Nossa leitura totalmente levado por seus descaminhos.
explora esse duplo do personagem,
Mas Brás cutuca ainda mais fundo
buscando compreender sociologicamente
quando ataca a si mesmo, em muitas
sua importância na obra.
passagens, por exemplo ao revelar seus
28. No romance com Eugênia, a situação baixos sentimentos na ajuda ao amigo
social inferior da moça fora decisiva para Quincas Borba (capítulo LVI/Um projeto):
O afastamento de Brás. O caso de Nhá "Não era impossível encontrá·lo noutra
Lolá é diferente, por tratar-se de família ocasião; prometi a mim mesmo lá voltar.
ascendente e também pelo fato de o A necessidade de o regenerar, de o trazer
personagem já estar socialmente ao trabalho e ao respeito de sua pessoa
envelhecido para o casamento, o que enchia-me o coração; eu começava a
tornava difícil outra possibilidade mais sentir um bem·estar, uma elevação, uma
favorável. admiração de mim próprio... "

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estudos históricos e 2003 - 32

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