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Nota: Agradeço aJosé Guilherme Magnani o estimulo à realização deste trabalho. redigido a partir de pales
tra proferida no XV Moitara (Enconao anual da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica), ocorrido em
novembro de 2001. Agradeço também as sugestões de Maria Célia Paoli, Hélio de Mello Filho e Piero Ca
margo Leirner.
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mas literários (dado estético)" (Candido, 1993, vaI. I: 16). Estamos diante de
uma obra regida por um problema sociológico, qual seja, explicar como se deu o
processo de formação da literatura brasileira como sistema, mas, sobretudo, pe
las preocupações do crítico com a estruturaçao do texto literário: "Deste modo
sendo um livro de história, mas sobretudo de literatura, este procura apreender o
fenômeno literário da maneira mais significativa e completa possível, não só ave
riguando o sentido de um contexto cultural, mas procurando estudar cada autor
na sua integridade estética" (Candido, 1993, vol. l: 29).
O ponto de vista histórico-sociológico não deveria, portanto, anular a
compreensão das obras literárias. Tal perspectiva, adotada pelo autor desde a tese
escrita em 1945 sobre Silvio Romero, indica a preocupação em evitar os "efeitos
colaterais" da crítica sociológica e também da crítica psicológica. Dizia então
Antonio Candido:
Com efeito, um dos maiores perigos para os estudos li
terários é esquecer esta verdade fundamental: haja o que houver e seja
corno for, em literatura a importãncia maior deve caber à obra. A litera
tura é um conjunto de obras, não de fatores, nem de autores. Uns e ou
tros têm grande valor e vão incidir fortemente na criação; devem e preci
sam ser estudados; não obstante são acessórios, quando comparados
com a realidade final, cheia de graça e força própria, que age sobre os ho
mens e os tempos: a obra literária. (Candido, 1988: 103)
Temos, aparente"lente, definições opostas, em 1945 e 1959, mas a ênfase
nas obras permanece, apesar da pr�ocupação evidente com o meio social e a his
tória. Esta deve, contudo, ser melhor qualificada. Seguindo a leitura de Paulo
Arantes ( 1992), o esforço do autor estaria voltado para a compreensão do proces
so de formação da nação, e a dimensão da cultura, especificamente da literatura,
seria o veio escolhido por Antonio Candido. Desta forma, o livro deveria ser lido
a partir de autores como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Ho
landa, que interpretaram, nos anos 30 e 40, o mesmo processo a partir das dimen
sões social, econômica e política. Porém, há uma diferença importante, aponta
da, aliás, por Roberto Schwarz: enquanto nossa formação social permanecia in
completa, a formação da literatura realizara-se no final do século XIX, uma vez
que "em Machado de Assis remos um escritor cuja força e peculiaridade só se ex
plica pela interação intensa e aprofundada entre autores, obras e público, intera
ção que comprova em ato a existência do sistema literário amadurecido"
(Schwarz, 1992: 263).6
A argumentação de Antonio Candido avança, então, articulando duas
dimensôes principais, urna voltada para o problema da formação, outra focada
nas obras. Mostra, por exemplo, como determinados temas e concepções
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dade brasileira não se constituiu, desde a colonização, apenas por senhores e es
cravos. Sempre houve entre uns e outros uma camada intermediária de homens
livres e pobres, lutando pela sobrevivência física e social em condições muito
precárias. Roberto recorre ao excelente livro Homens livres na ordem escravocrata,
de Maria Sylvia de Carvalho Franco,25 do qual retira uma tese decisiva: a ascen
são social dos pobres no Brasil do século XIX dependia necessariamente de rela
ções pessoais com os detentores do poder econômico e político. O princípio polí
tico que ordenava e articulava a sociedade, portanto, era a dominação pessoal.
Esta, no entanto, aparecia disfarçada pela proximidade aparente que relacionava
ricos e pobres, cuja expressão mais típica seria o "compadrio", que'concretizava a
troca desigual - o "favor" - de proteção social (sobretudo econômica) por lealda
de, chegando, no limite, ao crime encomendado.
As relações entre pobres e ricos seria marcada, então, pela subordinação,
pela submissão quase total: os primeiros como vítimas do capricho - muitas ve
zes perverso - da classe dominante. Lembremos um trecho das Memórias, no
qual Brás Cubas narra a vida de dona Plácida, a antiga agregada da família de Vir
gília, que lhes serve de alcoviteira:
,
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de ambos, depois reconciliados por esforço da irmã e esposa Sabina. Esta insiste
no casamento de Brás com a jovem sobrinha de Cotrim, Nhá Loló. Brás que
vivia, então, os estertores de seu longo caso com V irgília, acaba cedendo com as
seguintes palavras: "Não há remédio - disse eu comigo -, vou arrancar esta flor a
este pântano" (capítulo CXXII/Uma intenção muito fina).
O pãntano dizia respeito aos "antigos costumes e afinidades sociais" da
família da moça, revelados quando o pai dela, ao se entusiasmar por uma briga de
galos, mostrara sua face oculta. Agora,28 porém, ao redor dos quarenta e poucos
anos, Brás resolve arriscar (embora sua decisão seja interrompida pela morte da
o
jovem). E nesse contexto que ocorre a conversa com Cotrim e, em seguida, sua
avaliação moral - seqüência que estrutura o capítulo. Vejamos.
Na interpretação de Roberto Schwarz, a hesitação de Cotrim diante da
consulta de Brás sobre a possibilidade do casamento seria apenas jogo de cena, já
que o "o tio dirige as manobras para casar a moça". Verdade, mas as palavras de
Cotrim querem também desclassificar seu interlocutor (aceitável mas não dese
jável para a sobrinha), que teria fracassado na vida, apesar do berço favorecido.
Os cunhados compõem, assim, uma relação sui generis. De um lado, o estabelecido
mal-sucedido diante do julgamento de seus pares; de outro, o outsider que conse
gue - a duras penas - ser aceito (mas não totalmente) pelo grupo dominante29 As
posições apresentam-se, assim, estranha e complexamente invertidas: Brás seria
o estabelecido convertido em outsider e Cotrim, ooutsider-estabelecido. Se válida esta
digressão, Cotrim não seria defendido por Brás, mas atacado com luvas de pelica.
Ataque que visaria também, em outros momentos, com igual sutileza e ironia, ao
rival Lobo Neves e ao próprio pai,JO ridicularizados pelo narrador, que percebe a
fragilidade constitutiva de quem aceita de olhos fechados as regras prescritas
pelo grupo.
A posição de Brás é, assim, tipicamente liminar. Menosprezado por seu
grupo de origem, que a seus olhos não é grande coisa, pretende ao mesmo tempo
o reconhecimento que só consegue do amigo louco (Quincas Borba). A circuns
tância, se permite um olhar crítico, imobiliza o narrador que, efetivamente, não
realiza nada.
Se o que dissemos se justifica do ponto de vista de sua classe, onde sua
posição é marginal, do ponto de vista das classes inferiores, sua posição é
coerente com a de seu grupo, no qual exerce a mais abjeta dominação pessoal
sobre pobres e escravos (mesmo quando de algum modo se sensibiliza com isso,
o que ocorre apenas esporadicamente, sem conseqüência prática alguma).
A leitura que realizamos, a partir da interpretação de Roberto Schwarz,
não visa evidentemente à rejeição. Nosso intuito foi desenvolver um lado do
personagem pouco explorado, mas reconhecido pelo crítico. Nesse sentido, Brás
Cubas não representaria tipicamente o grupo ao qual pertencia (a classe
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Notas
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Maria Célia Paoli a ackson, 2002)-, ainda, com a sua branca orla, suas linhas
interpretamos a obra de Antonio sinuosas, todas as panes do romance".
Candido a partir do pressuposto de que Passagem citada por Antonio Candido
sociologia e crítica literária estariam (1996: 108-9) em "Machado de Assis de
intimamente relacionadas na trajetória e outro modo". Também Gilda de Mello e
na produção intelectual do autor, estando Souza seria influenciada por essa visão da
a separação dos domínios associada antes obra de Machado.
a circunstâncias acadêmicas do que a
1I. Conforme Waizborr (2002b).
mudanças expressivas nas obras. Sobre a
carreira de Antonio Candido e dos 12. Conforme Hastide (197 1 : 22-3),
integrantes do "grupo Clima", ver Pontes "Lucien Goldmann é o representante
(1998). deste novo marxismo qu'e pane da idéia
3. Para uma reconstrução teórica das
luckacsiana que 'a literatura e a filosofia
obras de Antonio Candido e Roberto são, em planos diferentes, expressões de
Schwarz, focada no diálogo com uma visão do mundo e que as visões do
Auerbach e Lukacs, consultar Waizborl mundo não são faws indjviduais, mas
(2002a e 2002b). faLOS sociais'- isto é, são impostas a um
grupo de homens, a uma classe por
4. "A nossa literatura é galho secundário condições de vida econômicas e sociais.
da pOrluguesa, por sua vez arbusto de Portanto seria ingênuo tentar explicar,
segunda ordem no Jardim das Musas .. ," como se fazia anteriormente, a obra
(Candido, 1993, vol. I: 9). literária pelo meio que a circunda; as
5. Antes do sistema configurado, relações que se instituem entre o criador
teríamos "manifestações literárias", como e o ambiente são infinitamente mais
o barroco brasileiro, que para Anramo complexas- elas não se estabelecem no
Candido estaria ainda vinculado ao nível do homem, como nos antigos livros
sistema literário português. de crítica literár�a marxista) mas no nível
da obra escrita. E preciso panir da
6.Temos aqui um ponto importante, 'estrurura' da obra: 'Há uma coerência
passível de ser inferido da tese de interna ( ...) de um conjunto de seres
Antonio Candido: o processo complexo vivos numa obra literária, esta coerência
de formação da nação ocorreria em várias faz com que a obra constitua uma
dimensões relacionadas, mas também totalidade cujas partes podem ser
relativamente autônomas, movidas por compreendidas uma a partir da outra e)
temporalidades distintas. sobretudo, a partir da estrUlUra do
7. O termo é de Antonio Cailado. conjunto', e o papel da explicação
marxista será reencontrar o caminho pelo
8.Para completar, precisamos lembrar qual a realidade histórica e social se
que esse processo depende também da exprimiu através da sensibilidade
formação do público e da diferenciação individual do criador". As passagens
social que ocorrem na segunda metade do citadas por BasLide foram retiradas de
XIX. Lucien Goldmann, "Problêmes d'unc
9. Sobre o autor, consultar Peixoto (2000). sociologie du roman", Cahiers Im. de
Soci%gie, 1961.
10. "E o mar banha Dom Casmurro nas
suas ondas salgadas, verdes e turvas; J3. O termo, conforme a
ondas que vêm morrer em cada linha, introdução/prefácio de Literatura e
deixando sobre cada palavra nocos de sociedade) é tomado de Radcliffe-Brown, e
espuma) canções noturnas. Não está opera uma analogia a panir da noção de
somente nos olhos de Capitú ( ... ) mas liga estrutura social do autor.
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social dilacerada.
26. Neste pODro discordamos do autor;
parece-nos que, sobretudo na passagem 30. O pai, por exemplo, Brás ridiculariza
cüada, o narrador não se diverte com o na passagem seguinte (capítulo XlI/Um
destino de dona Plácida, percebendo o episódio de 1814): "Napoleão, quando eu
absurdo de sua condição, ironicamente nasci, estava já em todo o esplendor da
construída. Ao mesmo tempo, nada faz glória e do poder; era imperador e
de concreto; ao contrário, sua atitude é granjeara a admiração dos homens. Meu
marcada pela impotência. pai) que à força de persuadir os outros da
nossa nobreza acabara persuadindo�se a
27. Analisando a relação de Brás e COlrirn si próprio, nutria contra ele um ódio
(capítulo 7/Ricos entre si), Roberto puramente mental". Lobo Neves,
Schwarz faz menção em um dado consagrado na política, ao contrário de
momento ao alter ego esclarecido de Brás: Brás, também não escapa à pena do
"Colado ao Brás Cubas solidário de sua narrador (capítulo LVIlI/COIifidência). O
classe encontramos o seu alter ego político é desmascarado pela ironia que
esclarecido, com horror a ela, piscando o descreve a confissão do falso escrupuloso,
olho para o leitor e indicando como
aparentemente contrariado com as
bárbaros a própria pessoa e o cunhado"
agruras de sua vocação, na verdade
(Schwarz, 2000: 127). Nossa leitura totalmente levado por seus descaminhos.
explora esse duplo do personagem,
Mas Brás cutuca ainda mais fundo
buscando compreender sociologicamente
quando ataca a si mesmo, em muitas
sua importância na obra.
passagens, por exemplo ao revelar seus
28. No romance com Eugênia, a situação baixos sentimentos na ajuda ao amigo
social inferior da moça fora decisiva para Quincas Borba (capítulo LVI/Um projeto):
O afastamento de Brás. O caso de Nhá "Não era impossível encontrá·lo noutra
Lolá é diferente, por tratar-se de família ocasião; prometi a mim mesmo lá voltar.
ascendente e também pelo fato de o A necessidade de o regenerar, de o trazer
personagem já estar socialmente ao trabalho e ao respeito de sua pessoa
envelhecido para o casamento, o que enchia-me o coração; eu começava a
tornava difícil outra possibilidade mais sentir um bem·estar, uma elevação, uma
favorável. admiração de mim próprio... "
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