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ISSN: 2525-7501

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APRESENTAÇÃO................................................................................................................... 15

ARTIGOS

A RECUPERAÇÃO DA HISTÓRIA E MEMÓRIA NA FUNDAÇÃO DA COMUNIDADE


ITALIANA DOS TRÊS MÁRTIRES DAS MISSÔES NA QUARTA COLÔNIA ITALIANA
.................................................................................................................................................. 17
O ENSINO DE HISTÓRIA REGIONAL E A PATRIMONIALIZAÇÃO DAS MEMÓRIAS
NO VALE DO TAQUARI-RS ................................................................................................. 31
O PODER PÚBLICO DO MUNICÍPIO DE SANTO AUGUSTO/RS E A MANUTENÇÃO E
CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL – PRESERVAÇÃO E MEMÓRIA DO
CEMITÉRIO DOS DEGOLADOS .......................................................................................... 59
MUITAS HISTÓRIAS PARA CONTAR: O PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL
BRASILEIRO ........................................................................................................................... 69
A GERAÇÃO DE ENERGIA SOLAR FOTOVOLTAICA E SUA RELAÇÃO COM SÍTIOS
HISTÓRICOS ........................................................................................................................... 78
PRESERVAÇÃO DA HISTÓRIA DA MODA GAUCHA ATRAVÉS DA MUSEALIZAÇÃO 5
DO ACERVO RUI SPOHR ..................................................................................................... 92
ATUALIZANDO O MAPEAMENTO DAS REDUÇÕES JESUÍTICAS DO TAPE (1622-
1636) ....................................................................................................................................... 102
A DECADÊNCIA DAS MISSÕES E A DISPERSÃO DA ESTATUÁRIA MISSIONEIRA
................................................................................................................................................ 119
SÃO MIGUEL ARCANJO: CIRCULARIDADE CULTURAL E HUMANA NO CONTEXTO
DAS MISSÕES JESUÍTICAS DA PROVÍNCIA PARAGUAIA ......................................... 136
COLUNA PRESTES: HISTÓRIA, MEMÓRIA E PATRIMÔNIO NA REGIÃO DAS
MISSÕES DO RIO GRANDE DO SUL................................................................................ 150
A FORMAÇÃO DO MUNICÍPIO DE SÃO MIGUEL DAS MISSÕES E OS USOS DO
PATRIMÔNIO HISTÓRICO NAS DÉCADAS DE 1970 E 1980 ........................................ 167
O PATRIMÔNIO CULTURAL SANTO-ANTONIENSE: AS MINIATURAS NO
IMAGINÁRIO GUARANI* .................................................................................................. 180
SIMPÓSIO CULTURA, MIGRAÇÕES E TRABALHO ...................................................... 193
A UMBANDA NO RIO GRANDE DO SUL: APONTAMENTOS E REFLEXÕES. ......... 193
VIDA DE SANTO DO ESPIRITISMO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROJETO
IDENTITÁRIO NA LITERATURA DE FERNANDO DO Ó* ............................................ 203
ISSN: 2525-7501
O DISCURSO CATÓLICO SOBRE O ESPIRITISMO NA REVISTA RAINHA DOS
APÓSTOLOS (RIO GRANDE DO SUL, DÉCADA DE 1950)* ........................................... 219
PALCO DE PODER E CARIDADE: A COMPOSIÇÃO SOCIAL DA DIRETORIA DA
SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE JUIZ DE FORA (1854 - 1897) .......................... 234
“COMO NUM FILME DE GUERRA”: PRISÃO E TORTURA DE UM LÍDER
FERROVIÁRIO DURANTE A DITADURA CIVIL-MILITAR EM SANTA MARIA-RS 246
FAVELA REPRESENTADA NA IMPRENSA CARIOCA: UMA FRONTEIRA DENTRO
DO URBANO?* ..................................................................................................................... 266
“AS POTENCIALIDADE AGRÍCOLAS DE PORTO NOVO”: ANÁLISE DE UM PROJETO
DESENVOLVIMENTISTA NO EXTREMO OESTE CATARINENSE ............................. 278
DIREITO A TERRA E CONDIÇÃO DE TRABALHO NO SUL DO MARANHÃO A
PARTIR DA LIDERANÇA DE MANOEL DA CONCEIÇÃO ¹ ......................................... 295
CENÁRIOS DE LUTA: TEATRO, RESISTÊNCIA POLÍTICA E EXPERIÊNCIA
HISTÓRICA NO BRASIL DOS ANOS 60* ......................................................................... 308
BRIGADA GAÚCHA: UM ESTUDO DE HISTÓRIA REGIONAL* ................................. 318
SIMPÓSIO FRONTEIRA, POLÍTICA E SOCIEDADE MESA 5 ........................................ 331
UMA ABORDAGEM TEÓRICA PARA UMA ZONA DE FRONTEIRA NO RIO
ARAGUARI, AMAPÁ* ......................................................................................................... 331
NAVEGANDO EM ÁGUAS TURBULENTAS: O INÍCIO DA CONSTRUÇÃO DA
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FRONTEIRA NO VALE AMAZÔNICO. 1636 A 1639.* .................................................... 345
IMIGRAÇÃO E FRONTEIRA: A LEGIÃO ALEMÃ DE 1851* ......................................... 358
HISTÓRIA VISTA DE BAIXO E MICRO-HISTÓRIA – UMA ESCRITA DA HISTÓRIA
POSSÍVEL?* .......................................................................................................................... 371
II GUERRA MUNDIAL EM PELOTAS: O QUEBRA-QUEBRA NOS HOTÉIS
PELOTENSES* ..................................................................................................................... 380
A IDEIA DE CRISE DA CIVILIZAÇÃO E A QUESTÃO DA FINITUDE NO
ENTREGUERRAS: O CASO FREUDIANO* ...................................................................... 393
BREVES REFLEXÕES ACERCA DA VIOLÊNCIA EM CURITIBA (1894-1908) .......... 400
EDUCAÇÃO CLANDESTINA: MEMÓRIAS DE EXPERIÊNCIAS COMUNISTAS NA
ANTIGA UNIÃO SOVIÉTICA (1955-1974)* ...................................................................... 416
“UM ESTUDO SOBRE O REVISIONISMO HISTORIOGRÁFICO HISPÂNICO NA
REVISTA ESPECIALIZADA EM CULTURA E POLÍTICA “ESTUDIOS AMERICANOS”
(DÉCADA DE 1950)” * ......................................................................................................... 425
PARCERIA ESTRATÉGICA ENTRE BRASIL E ARGENTINA NOS PROCESSOS DE
INTEGRAÇÃO NA AMÉRICA LATINA: UMA ANÁLISE ENTRE OS ANOS 2002 A 2012
................................................................................................................................................ 442
ISSN: 2525-7501
QUESTÃO DA PALESTINA: CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL NA
ORDEM INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEA* ......................................................... 460
CULTUAR E DIFUNDIR NOSSA HISTÓRIA, NOSSA FORMAÇÃO SOCIAL, NOSSO
FOLCLORE, ENFIM, NOSSA TRADIÇÃO [...]. NOTAS INICIAIS DE UM ESTUDO DE
CASO DO MTG EM ALEGRETE - RS (1954-2008).* ........................................................ 471
HOMOEROTISMO NO PRINCIPADO ROMANO: REPRESENTAÇÕES SÁTITICAS NOS
POEMAS DE JUVENAL (SÉCULO I D.C.) ....................................................................... 487
“MAS A PALAVRA DE DEUS NÃO ESTÁ ALGEMADA”: A IMPORTÂNCIA DA
ORALIDADE NA DIFUSÃO DO CRISTIANISMO PRIMITIVO* .................................... 501
REPRESENTAÇÕES DE GENSERICO, REI DOS VÂNDALOS, NOS PANEGÍRICOS DE
SIDÔNIO APOLINÁRIO (SÉCULO V D. C.) ...................................................................... 513
A ALQUIMIA NO REINADO DE FELIPE II ...................................................................... 527
ANTIGUIDADE TARDIA OU PRIMEIRA IDADE MÉDIA? A DISCUSSÃO
HISTORIOGRÁFICA E AS “FORMAS” DA HISTÓRIA ................................................... 535
“NENHUMA MULHER PODE SER RETA”: O MALLEUS MALEFICARUM COMO
AGENTE DE DEMONIZAÇÃO E SUBJUGAÇÃO DO FEMININO ................................. 549
O DIABO ESTÁ NOS DETALHES: A FIGURA DO DEMÔNIO E SUA ASSOCIAÇÃO

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COM PRÁTICAS MÁGICAS ATRAVÉS DOS MANUAIS DE INQUISIÇÃO ................ 558
ASPECTOS AUTOBIOGRÁFICOS NO CARMINA BURANA: O CASO DO
ARCHIPOETA DE COLÔNIA ............................................................................................. 569
FRONTEIRAS IDENTITÁRIAS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: AS
REPRESENTAÇÕES DA ÍNDIA NA BIOGRAFIA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA
(SÉCULO III D.C)* ............................................................................................................... 583
PIRATAS DO CARIBE NO XVIII: O CONTEXTO DE UM GRADUAL
DESAPARECIMENTO ......................................................................................................... 597
A DIGITALIZAÇÃO DA HEMEROTECA DA CASA DE MEMÓRIA EDMUNDO
CARDOSO COMO MEIO DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO * ............................. 613
MEMORIAL DO COLÉGIO MANOEL RIBAS: PESQUISA E EDUCAÇÃO
PATRIMONIAL* ................................................................................................................... 623
A CONSTITUIÇÃO DO ACERVO FERROVIÁRIO GAÚCHO NA DÉCADA DE 1980*
................................................................................................................................................ 642
“AQUI JAZ”: LOCAL DE PASSAGEM, ESQUECIMENTO OU EXÍLIO ?* .................... 653
TUMBAS TRANSI DA INGLATERRA MEDIEVAL: MEMÓRIA E COMUNICAÇÃO DOS
MONUMENTOS FUNERÁRIOS* ....................................................................................... 667
O JORNAL COMO FONTE DE PESQUISA PARA A HISTÓRIA, COMUNICAÇÃO E
ARQUIVOLOGIA: UMA PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR* ................................... 682
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IMPRENSA PERIÓDICA MILITAR: A ESCOLA DE APRENDIZES MARINHEIROS E O
JORNAL “O MARUJO” ........................................................................................................ 700
FAMÍLIAS PIPPI E PIGATTO: MEMÓRIAS CONSTRUÍDAS* ....................................... 716
CRÔNICAS VISUAIS DE UM CASSINO – ANÁLISE DA PINTURA CRÔNICAS DE UM
CASSINO Nº 6 DE RUTH SCHNEIDER*............................................................................. 734
O CULTO À MEMÓRIA DO CÔNEGO LUIZ GONZAGA DO MONTE A PARTIR DOS
LUGARES DE MEMÓRIA: O IHGRN, O SEMINÁRIO SÃO PEDRO E A ANL-RN ...... 748
PATRIMÔNIO CULTURAL E MEMÓRIA SOCIAL NA FRONTEIRA SUL: ESTUDO DE
CASO DA ASSOCIAÇÃO CRUZEIRO JAGUARENSE (1881-2016) EM JAGUARÃO RS *
................................................................................................................................................ 764
MEMÓRIAS SEM CASA: O VIÉS POLÍTICO DA MEMÓRIA NO ACERVO DA
COLEÇÃO MOSSOROENSE E SUA CONSTRUÇÃO E AFIRMAÇÃO COMO
PATRIMÔNIO INTELECTUAL DO RIO GRANDE DO NORTE* ................................... 777
A REPRESENTAÇÃO DO GAÚCHO ATRAVÉS DE UM LUGAR DE MEMÓRIA: O
LAÇADOR ............................................................................................................................. 787
TRAUMA E MEMÓRIA: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PERÍODO DA DITADURA
MILITAR * ............................................................................................................................ 799

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A ANISTIA DE 1979 COMO PROJETO DE ESQUECIMENTO* ..................................... 810
ATUAÇÕES FEMININAS DURANTE AS CAMPANHAS FRONTEIRIÇAS NA BANDA
ORIENTAL (RIO PARDO – 1811 a 1828) ........................................................................... 821
O DISCURSO DA MULHER ORIENTAL A PARTIR DO DAI-NIPPON (1897) DE
WENCESLAU DE MORAES ............................................................................................... 835
ENTRE O MOVIMENTO SOCIAL E A TEORIA: O FEMINISMO NO ESPAÇO
ACADÊMICO* ...................................................................................................................... 851
ATIVISMO DE MULHERES NO PARTIDO DOS TRABALHADORES DE SANTA
MARIA NA DÉCADA DE 1980: CATEGORIAS DE ANÁLISE E OFÍCIO DO
HISTORIADOR ..................................................................................................................... 863
O FEMINISMO NA (DES)CONSTRUÇÃO E NO (DES)PRINCESAR DA EDUCAÇÃO
FAMILIAR SEXISTA ........................................................................................................... 877
NATUREZA, SEXUALIDADE E PAPEIS SOCIAIS: O MASCULINO NA ATENAS
CLÁSSICA ............................................................................................................................. 902
OS “DESPORTOS” NO DICCIONÁRIO HISTÓRICO, GEOGRÁPHICO E
ETNOGRAPHICO DO BRASIL DE 1922: A (NÃO) CONTRIBUIÇÃO DO NEGRO PARA
O ESPORTE NA VISÃO DO INSTITUTO HISTÓRICO GEOGRÁFICO BRASILEIRO*
................................................................................................................................................ 918
ATIVIDADES CULTURAIS E SOCIABILIDADE ENTRE UCRANIANOS DE UNIÃO DA
VITÓRIA ................................................................................................................................ 930
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QUEM NÓS SOMOS: O JORNAL “O 5 DE ABRIL” COMO FORMADOR DE
IDENTIDADE NA EMANCIPAÇÃO DE NOVO HAMBURGO ....................................... 957
COMENTÁRIOS SOBRE A EXPERIÊNCIA COLONIAL ALEMÃ A PARTIR DA
LEITURA DE GIORGIO AGAMBEN* ................................................................................ 971
UMA BIBLIOTECA COLONIAL: A GÊNESE DA SOCIEDADE DE LEITURA HERMANN
FAULHABER DE PANAMBI .............................................................................................. 978
A RELAÇÃO ENTRE TRABALHO E VALOR PARA DESCENDENTES DE IMIGRANTES
ITALIANOS EM ARVOREZINHA – RS* ........................................................................... 989
GUERRA CISPLATINA (1825-1828): A HISTORIOGRAFIA PLATINA (BRASIL,
URUGUAI E ARGENTINA) E SUAS DIFERENTES ABORDAGENS SOBRE O
CONFLITO .......................................................................................................................... 1005
“PARADIPLOMACIA” DE FRONTEIRA: RELAÇÕES SOCIAIS DE PODER E
TERRITORIALIDADE NO AMBIENTE POLÍTICO/PARTIDÁRIO SUL-
RIOGRANDENSE E URUGUAIO A FINS DO SÉCULO XIX ........................................ 1018
BORGES DE MEDEIROS E OS CORONÉIS MARAGATOS: COMO SE CONSTITUÍRAM
AS RELAÇÕES DE BORGES DE MEDEIROS COM OS CORONÉIS DA CAMPANHA
DURANTE SEU PRIMEIRO PERÍODO DE GOVERNO (1898-1908) ............................ 1034
O PARTIDO LIBERTADOR: LIDERANÇAS, GRUPOS E ALIANÇAS NO PROCESSO DE
UNIFICAÇÃO DAS OPOSIÇÕES POLÍTICO-PARTIDÁRIAS NO RIO GRANDE DO SUL
(1922-1928) .......................................................................................................................... 1044
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PRESIDENTES DE PROVÍNCIA E A ADMINISTRAÇÃO PROVINCIAL: PRIMEIRAS
NOTAS DE PESQUISA ...................................................................................................... 1059
NOTAS INICIAIS DE PESQUISA SOBRE OS JUÍZES DE PAZ NA CÂMARA DE RIO
PARDO-RS* ........................................................................................................................ 1072
CONFLITOS AGRÁRIOS NA JUSTIÇA: LITÍGIOS EM SOLEDADE E SEUS
SIGNIFICADOS (1857-1927)∗ ............................................................................................ 1086
FRONTEIRAS, HISTÓRIA E LITERATURA: NOTAS PARA UMA REFLEXÃO. ....... 1098
APONTAMENTOS A RESPEITO DO CONSUMO E DISTRIBUIÇÃO DE BENS NO
BRASIL MERIDIONAL (ALEGRETE, 1846-1886)* ........................................................ 1112
AS LEIS PENAIS E OS CÓDIGOS CAVALHEIRESCOS NO EMBASAMENTO DOS
CRIMES DE HONRA NO PRATA ..................................................................................... 1128
A VILA DE “SÃO FRANCISCO DE BORJA DAS MISSÕES” (1834 - 1887): ELEMENTOS
DA HISTÓRIA E DE GEOPOLÍTICA NA FORMAÇÃO DOS LIMITES MERIDIONAIS DO
BRASIL* .............................................................................................................................. 1143
DEFENDER LA FRONTERA Y VIVIR BAJO CAMPANA. LOS VECINOS DE BELÉN A
PARTIR DEL PRIMER LIBRO DE BAUTISMOS DE SU PARROQUIA (1830- 1852)*
.............................................................................................................................................. 1160
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AÇÃO PORTUGUESA NA VIGILÂNCIA DE FRONTEIRA QUANDO DAS INVASÕES
BRITÂNICAS AO RIO DA PRATA (1806 e 1807) ........................................................... 1178
AS MANIFESTAÇÕES DA RELIGIOSIDADE AFRICANA ATRAVÉS DOS CALUNDUS
NO PERÍODO COLONIAL BRASILEIRO ........................................................................ 1195
OS LIMITES DA MODERNIDADE E A TRADIÇÃO EM MOÇAMBIQUE .................. 1204
ASSOCIATIVISMO, CULTURA E LUTA DE CLASSES EM UM CLUBE SOCIAL
NEGRO, NO INTERIOR DO RIO GRANDE DO SUL (1940-1980) ................................ 1218
AS IMPLICAÇÕES POLÍTICAS, CULTURAIS E ECONÔMICAS NA FORMAÇÃO DA
PRIMEIRA GERAÇÃO DE CANTORAS DE SUCESSO DO BRASIL. .......................... 1235
A CARTOGRAFIA E AS FRONTEIRAS DO FOLCLORE MUSICAL ........................... 1250
A NOVA HISTÓRIA E A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: A CONSTRUÇÃO DE UM ELO
ENTRE TEORIA E PRÁTICA* .......................................................................................... 1262
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E ENSINO DE HISTÓRIA* ............................................ 1276
A CATEDRAL SÃO FRANCISCO DE PAULA E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A
CIDADE DE PELOTAS ...................................................................................................... 1287
INVENTÁRIO DA COLEÇÃO LEOPOLDO GOTUZZO: CLASSIFICAÇÃO E
RECUPERAÇÃO DA INFORMAÇÃO* ............................................................................ 1304
MUSEU DO COLÉGIO MAUÁ: UM RELICÁRIO PAR A CIDADE DE SANTA CRUZ DO
SUL* ..................................................................................................................................... 1316
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UM PALCO DE MEMÓRIA: A ESCOLA DE TEATRO LEOPOLDO FRÓES ............... 1328
O PALMEIRENSE É NOSSO, AME-O”: O ENVOLVIMENTO DA POPULAÇÃO LOCAL
COM O CLUBE DESPORTIVO EM 2001 E 2013* ........................................................... 1337
OS ACHADOS ARQUEOLÓGICOS DE KESEL: PORQUE JÚLIO CÉSAR TEMIA AS
TRIBOS GERMANAS DOS USÍPETES E TENCTERES? ............................................... 1346
ISLÃ: PRECONCEITO, TERRORISMO E O ENSINO DE HISTÓRIA* ......................... 1364
DO ESGOTAMENTO DO MODELO ASSISTENCIAL NA SAÚDE À SUA
DEMOCRATIZAÇÃO (1975-1990).................................................................................... 1377
RELAÇÕES DE PODER: A DIDÁTICA DA HISTÓRIA, O CURRÍCULO DA
UNIVERSIDADE E A FORMAÇÃO DO/A PROFESSOR/A DE HISTÓRIA ................. 1387
OS EDITAIS DO PNLD 2012-2015 E O MANUAL DO PROFESSOR: CONTRIBUIÇÕES
TEÓRICAS E METODOLÓGICAS ................................................................................... 1402
A MULHER ‘IDEAL’ NAS PÁGINAS DA REVISTA O CRUZEIRO.............................. 1415
DURANTE A DÉCADA DE 1950* .................................................................................... 1415
A LIGA DA JUSTIÇA EM PERSPECTIVA: APONTAMENTOS METODOLÓGICOS 1425
ANÁLISE DE CONTEÚDO: OS JORNAIS A FÔLHA E GAZETA DO SUL COMO
ATORES POLÍTICOS NO PLEBISCITO DE 1963 (1961-1963)* .................................... 1435
ISSN: 2525-7501
ANÁLISE DA IMPRENSA GAÚCHA E SUAS ABORDAGENS DURANTE A
CAMPANHA DA LEGALIDADE (1961) .......................................................................... 1448
O ANTICOMUNISMO CATÓLICO EM SANTA MARIA E ATUAÇÃO NA IMPRENSA:
DA CAMPANHA DA LEGALIDADE AO GOLPE DE 1964* ......................................... 1459
OS USOS DO JORNAL COMO FONTE PARA A PESQUISA HISTÓRICA:
APONTAMENTOS METODOLÓGICOS E ANÁLISE DE CONTEÚDO DO JORNAL
GAZETA DO SUL ACERCA DA CAMPANHA “O PETRÓLEO É NOSSO” (1946-1954) *
.............................................................................................................................................. 1472
A DEPENDÊNCIA DA ORIENTAÇÃO EXISTENCIAL NO TEMPO DA
CONVERGÊNCIA NARRATIVA: RUSEN E RICOEUR* ............................................... 1479
A MEMÓRIA E A METAMEMÓRIA DE IBERÊ CAMARGO NA SÉRIE CARRETÉIS:
UMA NARRATIVA META-HISTÓRICA ......................................................................... 1491
TEMPORALIDADE E NAÇÃO EM “DIE NATIONALITÄTENFRAGE UND DIE
SOZIALDEMOKRATIE” (1907) DE OTTO BAUER ....................................................... 1508
SOMATERAPIA, SAÚDE E ANARQUISMO NA ............................................................ 1520
CRISE DO PARADIGMA MODERNO* ............................................................................ 1520
HISTÓRIA DAS IDEIAS DA LOUCURA E INIMPUTABILIDADE: ESTUDO DE CASO

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MANICÔMIO JUDICIÁRIO RS * ...................................................................................... 1537
A REDE LATINO-AMERICANA DE HISTÓRIA DAS IDEIAS: CONEXÕES
INTELECTUAIS E DISCURSOS IDENTITÁRIOS .......................................................... 1546
CONSIDERAÇÕES ACERCA DA NAÇÃO E SEUS EXTERIORES CONSTITUTIVOS A
PARTIR DAS NARRATIVAS DOS INTELECTUAIS BRASILEIROS BOMFIM, LIMA E
NABUCO * .......................................................................................................................... 1563
CRIANDO E RECRIANDO O BRASIL: RAÇA E MESTIÇAGEM EM GILBERTO FREYRE
E NINA RODRIGUES* ....................................................................................................... 1576
EMÍLIO WILLEMS E OS ANOS 1930-40: OS INTELECTUAIS E AS TEORIAS
CULTURALISTAS NO BRASIL ....................................................................................... 1590
PATRIMÔNIO: UM DIÁLOGO ENTRE A MEMÓRIA E O ESPAÇO............................ 1606
A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA FOTOGRÁFICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE
SANTA MARIA* ................................................................................................................ 1620
A FERROVIA NA CIDADE DE SANTA MARIA – GÊNESE DO LUGAR DE MEMÓRIA
.............................................................................................................................................. 1632
A HISTÓRIA COMO RECURSO EPISTEMOLÓGICO PARA A COMPREENSÃO DA
IMPLANTAÇÃO DOS COLÉGIOS TÉCNICOS NA UFSM ............................................ 1648
DIVERSIDADE, ARTE E VANGUARDA: GRUPO DE TEATRO VIVENCIAL E A
REPERCUSSÃO DA CONTRACULTURA INTERNACIONAL E NACIONAL NA CENA
PERNAMBUCANA * .......................................................................................................... 1659
ISSN: 2525-7501
HISTÓRIAS SILENCIADAS QUE GANHAM VOZ NA LEI FEDERAL 10.639/2003 E NA
LEI MUNICIPAL 10.695/2010* .......................................................................................... 1672
LICENCIADOS E SUAS PROFISSÕES (NÃO) EMANCIPADAS/REGULAMENTADAS:
UM ESTUDO DE CASO SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA HOLÍSTICA DA
ATIVIDADE ........................................................................................................................ 1684
PODER, MANDO E SUBMISSÃO: REPRESENTAÇÕES NA TELENOVELA QUE
MOBILIZAM APRENDIZAGEM HISTÓRICA* ............................................................ 1697
ATRAVESSAMENTOS ENTRE NAÇÃO E EDUCAÇÃO NO BRASIL NO INÍCIO DO
SÉCULO XX NAS PÁGINAS DA REVISTA DE ENSINO (1927-1931)* ....................... 1707
AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORMAÇÃO DOS HISTORIADORES-DOCENTES NA
FRONTEIRA: NUANCES COMPARADA ENTRE O BRASIL E O URUGUAI ............ 1717
A CONSTRUÇÃO DA PERCEPÇÃO DO "ESPAÇO PÚBLICO": ................................... 1730
O USO DA ALFABETIZAÇÃO CARTOGRÁFICA E DA CARTOGRAFIA ESCOLAR
.............................................................................................................................................. 1730
CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA (RIO GRANDE DO SUL-1975) ............. 1739
MIGRAÇÃO SAZONAL PARA A COLHEITA DA MAÇÃ EM FRAIBURGO-SC* ..... 1749
NORDESTINOS EM INHUMAS: FLUXOS MIGRATÓRIOS, TRABALHO E
ALTERIDADE ..................................................................................................................... 1759
A IDENTIDADE ÉTNICA E CONFESSIONAL COMO PRINCÍPIO NORTEADOR NA
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IMPLANTAÇÃO DO PROJETO DE COLONIZAÇÃO PORTO NOVO NA DÉCADA DE
1920* .................................................................................................................................... 1776
1936: CONTRA OS TRABALHADORES E O COMUNISMO, O TRIBUNAL DE
SEGURANÇA NACIONAL (TSN)* ................................................................................... 1792
O TRABALHO INFANTIL EM SANTA CRISTINA DO PINHAL: INGÊNUOS
ENQUANTO PROPRIEDADE EM INVENTÁRIOS* ...................................................... 1808
ENTRE SOLDADOS E RESERVISTAS: ........................................................................... 1824
A JUSTIÇA DO TRABALHO EM TEMPOS DE GUERRA* ........................................... 1824
A CULTURA POLÍTICA DO POPULISMO EVIDENCIADA NO GOVERNO DE
OTTOMAR DE SOUSA PINTO EM RORAIMA .............................................................. 1840
O RIO GRANDE DIVIDIDO: CONFLITOS ELEITORAIS ENTRE PESSEDISTAS E
PETEBISTAS (1946-1954) NA PERSPECTIVA BOURDIANA DO CAMPO POLÍTICO *
.............................................................................................................................................. 1857
O ENCONTRO DE LISBOA E O CONTATO DE LEONEL BRIZOLA COM A
SOCIALDEMOCRACIA EUROPEIA: DISCURSOS DE O GLOBO ............................... 1874
A RESISTÊNCIA PERONISTA E O GOVERNO FRONDIZI (1958-1962)* ................... 1888
ISSN: 2525-7501
UMA POLÍCIA, VÁRIAS IDEOLOGIAS: AS RELAÇÕES POLÍTICAS DA BRIGADA
MILITAR DO RIO GRANDE DO SUL (1960-1970)* ....................................................... 1902
CONTEXTO HISTÓRICO DA DITADURA CHILENA: DIÁLOGO COM A
HISTORIOGRAFIA* ........................................................................................................... 1913
ALÉM FRONTEIRAS: O EXÉRCITO BRASILEIRO E AS VERTENTES DOS PROCESSOS
DE MODERNIZAÇÃO MILITAR (1548-1970) ................................................................. 1924
DESENVOLVIMENTO E ESTADO NOVO NO BRASIL (1937-1945)* ......................... 1941
PODER E POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA NO CONE SUL ................................... 1949
A POLÍTICA DOS PAPAS: ................................................................................................ 1968
A DIPLOMACIA DA SANTA SÉ E O REICH DE 1930 A 1945 ...................................... 1968
A ESPIONAGEM NAZISTA NO RIO GRANDE DO SUL NO ESTADO NOVO ........... 1981
A ESCRITA DA VIDA DE UM “BRASILEIRO ILUSTRE”: A REMEMORAÇÃO DO
BARÃO DO CERRO LARGO PELO BARÃO DO RIO BRANCO. ................................. 1994
A TRAJETÓRIA DE MANOEL MARQUES DE SOUZA III NO CONTEXTO PLATINO
DO SÉC. XIX* ..................................................................................................................... 2009
GASPAR SILVEIRA MARTINS: SEUS DISCURSOS E OS IMIGRANTES .................. 2023

13
ENTRE A REGIÃO FRONTEIRIÇA PLATINA E A EUROPA: A TRAJETÓRIA DE
GASPAR SILVEIRA MARTINS * ..................................................................................... 2038
PELAS VEREDAS DO IMPÉRIO: MOBILIDADE SOCIOECONOMICA E ESPACIAL
ATRAVÉS DA TRAJETÓRIA DO VISCONDE DE SERRO ALEGRE (RIO GRANDE DO
SUL, c.1810 – c. 1870)* ....................................................................................................... 2049
MEMÓRIAS DE UM CONFLITO: AS MEMÓRIAS FAMILIARES SOBRE A
PARTICIPAÇÃO DE JOCA TAVARES DURANTE A REVOLUÇÃO FEDERALISTA DE
1893* .................................................................................................................................... 2067
O "CIENTÍFICO" E O "TARIMBEIRO": O DISCURSO MILITAR DE LEITÃO DE
CARVALHO E GIL DE ALMEIDA EM 1930* ................................................................. 2082
MOVIMENTO LGBT, DITADURA CIVIL-MILITAR E PÓS-DITADURA ................... 2093
FAMÍLIAS HOMOSSEXUAIS: PSICANÁLISE, PERCURSOS, CULTURA E
COMPOSIÇÕES* ................................................................................................................. 2103
A PROSTUIÇÃO EM STORYVILLE (E.U.A) POR MEIO DA COLEÇÃO FOTOGRÁFICA
DE E.J. BELLOCQ (1912 – 1917) * .................................................................................... 2111
SER MULHER E MILITANTE NA DITADURA MILITAR BRASILEIRA: MEMÓRIAS DE
NILCE AZEVEDO CARDOSO SOBRE REPRESSÃO EDUCAÇÃO E
*
CLANDESTINIDADE ....................................................................................................... 2127
ISSN: 2525-7501
SOCIEDADES ABOLICIONISTAS NA PROVÍNCIA DO PARANÁ NA DÉCADA DE
1880: SOCIEDADE SECRETA ABOLICIONISTA ULTIMATUM E CONFEDERAÇÃO
ABOLICIONISTA PARANAENSE .................................................................................... 2139
VIOLÊNCIA, CONFLITO ENTRE VIZINHOS E CALÚNIA: UM BREVE ESTUDO
ACERCA DA CRIMINALIDADE ENTRE OS IMIGRANTES ALEMÃES DA COLÔNIA
DE SANTA CRUZ DO SUL (1878-1887) .......................................................................... 2157
LAVOURAS DE SUSTENTO: UM PERFIL DOS PEQUENOS PRODUTORES DE SAN
JOZÉ DO TAQUARY EM 1784* ....................................................................................... 2177

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APRESENTAÇÃO

O Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal de Santa


Maria (UFSM), Brasil, com o fim de congregar, valorizar e divulgar a produção do
conhecimento vinculado ao seu perfil acadêmico-científico promove o I CONGRESSO
INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA:
Poder, Cultura e Fronteiras – CIHIS/UFSM, nos dias 16, 17 e 18 de novembro de 2016, no
Campus da UFSM (Santa Maria, RS, Brasil). Para tanto, entre os muitos apoios internos e da
comunidade acadêmica em geral, temos também, o apoio do Museu Treze de Maio de Santa
Maria, auxílios e parcerias fundamentais da CAPES e FAPERGS, bem como, da UNESCO no
âmbito do Ano do Entedimento Global e de Valorização das Humanidades.
A partir da temática geral que envolve discussões acerca do poder, da cultura e das
fronteiras nos seus mais diversos âmbitos e níveis de manifestações e preocupações, buscamos
proporcionar a comunidade acadêmico-científica e ao público interessado, um novo espaço de
divulgação, problematização, criação, atualização, estabelecimento de contatos, diálogo e
15
encontro. Nesse sentido, pretendemos contemplar a temática geral com discussões relevantes,
diversificadas e de qualidade que possam contribuir para a construção de novas perspectivas
para a área das Ciências Humanas e Sociais e, especialmente da História.
Nesta perspectiva o CIHIS/UFSM se constitui em sua estrutura organizacional, de
momentos como: Conferências, Mesas Redondas, Simpósios Temáticos - Mesas de
Apresentação de Trabalhos, além, de momentos artístico-culturais. As Conferências e as Mesas
Redondas são compostas por pesquisadores (as) convidados (as). Já os Simpósios Temáticos e
o Simpósio Jovens Pesquisadores são constituídos por trabalhos que foram encaminhados para
o processo de seleção pelo Comitê Científico e receberam cartas de aceite. Sendo que, foram
300 trabalhos selecionados no total, destes, 68 estão situados no Simpósio Jovens
Pesquisadores. Os trabalhos a serem apresentados nos Simpósios Temáticos serão analisados e
comentados por pesquisadores convidados.
Os trabalhos presentes nos Anais Completos estão disponíveis a partir de Simpósios
Temáticos e divididos em três grandes temas: a) Fronteira, Política e Sociedade; b) Cultura,
Migrações e Trabalho; c) Memória e Patrimônio com suas respectivas mesas. No que tange ao
ISSN: 2525-7501
Simpósio Jovens Pesquisadores, criamos um espaço de diálogo acadêmico-científico e de
experiência, em que, alunos da Graduação possam apresentar tanto resultados parciais ou finais
de projetos de Iniciação Científica, como, de Trabalhos de Conclusão da Graduação.
Desta forma, o CIHIS abrigou trabalhos tanto de pesquisadores com larga experiência,
quanto, os que estão realizando doutoramento, mestrado, graduação e professores que atuam
no ensino básico.
Os Anais aqui apresentados comportam os trabalhos enviados até o final do mês de
outubro de 2016 e, tem na autoria dos textos a responsabilidade de seus autores.
Para finalizar, queremos registrar que este I Congresso Internacional de História da
Universidade Federal de Santa Maria – CIHIS/UFSM é fruto do trabalho de uma equipe. Assim
sendo, destacamos o empenho e o trabalho dos alunos do mestrado e do doutorado em História
do PPGH/UFSM, como também, de alunos da graduação em História. Assim, queremos
agradecer a todos os envolvidos diretamente com esse projeto que se concretiza como
fortalecimento de um trabalho que busca a construção de conhecimento e a qualificação social
em uma Universidade Pública, gratuita e de qualidade. Muito obrigado!
16
Coordenação Geral

I Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria –


CIHIS/UFSM!
ISSN: 2525-7501

A RECUPERAÇÃO DA HISTÓRIA E MEMÓRIA NA FUNDAÇÃO DA


COMUNIDADE ITALIANA DOS TRÊS MÁRTIRES DAS MISSÔES NA QUARTA
COLÔNIA ITALIANA

Júlio Ricardo Quevedo dos Santos 1


Saulo Felin2

RESUMO:
O referido trabalho tem por objetivo fazer um estudo sobre a história e a memória na fundação
da comunidade de Três Mártires das Missões, tendo em vista, um acontecimento religioso
ocorrido em 1935, no qual se atribui ao milagre do coração do Pe. Roque Gonzáles de Santa
Cruz, pela salvação de uma criança moradora na antiga Linha Rincão da Lagoa. Associado a
este acontecimento se tem presente o fato fundante, no qual a comunidade recebeu a
denominação, tanto com atributos de valor histórico, patrimonial e litúrgico, tanto como
devocional e sagrado. Como resultado deste estudo, busca-se recuperar a história e a memória
do local, considerando-se aspectos culturais e religiosos, a respeito de um significado
missioneiro, tido a partir da história oral e escrita, guardada e contada pelos moradores da
localidade. 17
PALAVRAS-CHAVE: História e Religiosidade –Três Mártires distrito – Lugares da Memória
– Cidade e Memória.

INTRODUÇÃO

Na Região da Quarta Colônia de Imigração Italiana, situada na Região Central de


Santa Maria – RS, existe a comunidade de Três Mártires, distrito do município de Júlio de
Castilhos, com aproximadamente 1.000 habitantes (IBGE/2010), descendentes dos imigrantes
italianos que vieram para a região de Silveira Martins desde 1877.

1
Docente do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), atuando nos PPGs
Acadêmico Mestrado e Doutorado em História, Mestrado Profissional em Ensino de História (PROFHISTÓRIA)
e Mestrado Profissional em Patrimônio Cultural. e-mail: j-quevedo@uol.com.br
2
Mestre em Patrimônio Cultural (UFSM); Licenciado em Filosofia e Psicologia da Educação e Radialista. e-mail:
felinsaulo@yahoo.com.br
ISSN: 2525-7501
Na década de 1930 um contingente de descendentes de imigrantes italianos das
famílias Anversa, Avosani, Biachi, Maffini, oriundas da Região de Mântova; Venturine e Rigo,
da Região do Friuli, ambas do Norte da Itália.
Estas famílias se localizaram no antigo Rincão da Lagoa, há 42 km de Santa Maria,
área rural especializada na agricultura familiar e na pecuária, católicos devotos de Nossa
Senhora da Saúde e Santo Antônio de Pádua. Na localidade fundaram a capela dedicada a São
Francisco de Assis. Cultuam as devoções advindas da Itália.
Na década de 1940 a comunidade acrescentou a devoção aos Mártires das Missões e
decidiram alterar o nome de Rincão da Lagoa para Três Mártires, em homenagem aos mesmos,
e devido ao acontecimento de um milagre ocorrido em 1940 na família Anversa. Muitos
acreditam que um parente da família Anversa recuperou-se de uma doença incurável atribuído
ao milagre do Padre e Beato Roque Gonzalez de Santa Cruz. O evento inspirou aos habitantes
daquela comunidade à construção de lugares de memória missioneira em devoção aos Mártires,
que se transformou em palco de procissões e peregrinações.
Esta comunicação aborda sobre as narrativas construídas no bojo do imaginário
popular a respeito dos milagres de beato Roque Gonzalez, que em dia – imemorável, ainda do 18
século XVII – percorreu a região sacralizando-a, a ponto de influenciar três séculos apósa
decisão da comunidade de Rincão da Lagoa alterar o nome para Três Mártires, guardiã da
memória missioneira.
Na comunidade é construída na década de 1940 a Capela aos Três Mártires das
Missões, local de peregrinações e símbolo da força do milagre católico, a força da tradição.
Nestes acontecimentos a presença do alto clero católico foi decisivo, no caso a açãodo
Monsenhor Humberto Busato da Igreja Matriz São José, de Ivorá com vínculos político-
eclesiásticos com a Capela de Três Mártires, e do Bispo Dom Antônio Reis da Diocese de Santa
Maria.

Capítulo I - DE RINCÃO DA LAGOA A TRÊS MARTIRES


A década de 1930 é profícua na construção da imagem dos três mártires das Missões
no Rio Grande do Sul, mortos em 1628, e ressignificados em 1928, quando o coração do Padre
Roque Gonzalez passa a ser uma relíquia sagrada, consagrada na beatificação de Roque (em 28
de janeiro de 1934) pelo Papa Pio XI. Não faltaram estudos e depoimentos que procuram dar
ISSN: 2525-7501
conta da presença do beato Roque em diferentes lugares do Rio Grande do Sul, inclusive em
Santa Maria.3A respeito do evento do martírio e as suas inflexões recomenda-se uma
historiografia crítica ao assunto.4 Na ocasião da beatificação estava em curso o processo de
sedimentação dos “Mártires” como Apóstolos do Rio Grande do Sul. O clero católico sul
riograndense elaborou discursos evidenciando a ação dos jesuítas no processo de evangelização
e organização da Igreja Católica no Rio Grande do Sul desde o período colonial. Tais discursos
não podem ser vistos de forma isolada, mas inseridos na política estadonovista (1937-1945) do
governo Getúlio Vargas, em momento de sacralização da política, em resposta a aliança Estado
Novo e alto clero da Igreja Católica.5

A intelectualidade católica que vivia em Santa Maria sob os auspícios da Diocese, se


valia deste ideário, acolhendo e incentivando os debates, divulgando-os na “Revista Rainha dos
Apóstolos”, o que fazia parte do Projeto de Restauração Católica empreendido pela Diocese de
Santa Maria, protagonizado pelo “clero católico de Santa Maria [que] contribuiria,
significativamente, para a consolidação e implementação da Restauração Católica em Santa
Maria, quanto nas cidades da região onde atuaram [como é o caso de Três Mártires]” (BORIN,
2010, p. 226).
19
Os acontecimentos: a mudança adotada pelos moradores da Linha Rincão da Lagoa
para Três Mártires, pode ser compreendido a partir da veneração aos mártires, em particular ao
Padre Roque Gonzalez de Santa Cruz, bem como ao milagre consagrado à família Anversa e a
ação do Monsenhor Humberto Busato, devoto dos mártires e propagador da ação dos jesuítas

3
O padre Enio José Rigo, em obra recente, recorre a espacialidade extensiva de Roque Gonzalez, considerando-o
“primeiro Padre Católico a palmilhar o território da Diocese de Santa Maria [...] Parece que, em nossos dias, não
resta mais dúvida de que o Santo Missionário Jesuíta, São Roque Gonzalez de Santa Cruz, foi o primeiro Sacerdote
que palmilhou, diversas vezes, regiões do atual território da Diocese de Santa Maria [...] tinha estado na Região
de Jaguari e nas vizinhanças da Serra de São Martinho e de São Xavier.” RIGO, Pe. E. J. A Diocese de Santa
Maria RS – Brasil (1910-2010). Santa Maria: Diocese de Santa Maria, 2010. pp 21-22.
4
OLIVEIRA, P. R. M. Padre Roque Gonzalez: entre a história e a hagiografia. Revista Brasileira de Historia e
Religiões, ANPUH, N. 23, ano 08, set./dez. 2015; SANTOS, J. R. Q. Romaria do Caaró: prática cultural,
patrimônio e discurso midiático. In: LEAL, E; PAIVA, O.C. (orgs.) Patrimônio e História. Londrina: Unifil, 2014.
Pp. 97-111; MARIN, D. A consolidação da Romaria do Caaró a partir da mídia impressa: 1937-1945. 2014.
163f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria/RS;
QUADROS, E. L. A defesa do modo de ser Guarani: o caso de Caaró e Pirapó em 1628. Porto Alegre:
Renascença, Edigal, 2012; OLIVEIRA, P. R. M. O encontro entre os guarani e os jesuítas na Província Jesuítica
do Paraguai e o glorioso martírio do venerável padre Roque González na tierras de Ñezú. 2009, 503 f. Tese
(Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre/RS.
5
LENHARO, A. Sacralização da Política. Campinas, São Paulo: Papirus, 1986.
ISSN: 2525-7501
no Rio Grande do Sul, o qual salientava nas homilias a importância desses padres na formação
do catolicismo sul riograndense. O nexo destes elementos é encontrado no Projeto de
Restauração Católica da Diocese, cujo sentido para a comunidade é ser defensora do mesmo.

Nas homilias dominicais, o Monsenhor Busato insistia para os fiéis de Três Mártires
sobre a importância dos jesuítas na formação do Rio Grande do Sul. Essas homilias da década
de 1940, quando se funda a Capela, se mantém vivas nas memórias de moradores entrevistados
(Otilia Rigo, Lori Avozani Rigo, Ilda Maffini, Victalino Cerezer). A imagem do Monsenhor
aparece nos relatos como um sacerdote austero, enérgico, que não media esforços em usar as
violências simbólica e física. A construção discursiva do Monsenhor evidenciava que até a
chegada dos arautos do catolicismo – os beatos jesuítas – a região se constituía em terra arrasada
habitada por seres humanos – os indígenas – que viviam em estado de selvageria sem Deus,
sem Rei e sem Lei, em atos profanos, cabendo aos apóstolos a conversão dos seres para os
campos do senhor (catolicismo, Estado Absoluto e civilização através da cultura escrita)
referenciando-se nas narrativas históricas de Carlos Teschauer, Luiz Gonzaga Jaeguer e Aurélio
Porto.
20
A elaboração do imaginário de devoção aos Mártires garante aos devotos as benesses
da fé e cristandade. Esses elementos articulados são elevados à ideologia do Estado Novo sob
o governo autoritário de Vargas, onde fé, patriotismo e civismo tinham seus nexos, exatamente
no momento histórico das comemorações do IV Centenário da Fundação da Companhia de
Jesus (1541-1941),6sendo o Monsenhor Humberto Busato o grande responsável pelas
comemorações e guardião da memória jesuítica na paróquia de Ivorá.

Portanto, é mister entender a interpretação do presente de 1940 pelos atos heróicos do


passado jesuítico do século XVII, quando afirma: “Em nossos dias já não resta mais dúvida de
que o Beato Roque Gonzalez foi o primeiro sacerdote que palmilhou diversas regiões do atual
território da diocese de Santa Maria. E após dele, outros heróis”.7Do discurso “oficial” da
Diocese depreende-se a máxima que impressiona os católicos e em particular os moradores da

6
DIOSEN, M. cita o decreto nº 6355/40, assinado pelo Governo Vargas, em que se reconhece a importância da
Companhia de Jesus na formação do Brasil, como expressão da aliança Estado Novo – Igreja Católica. Op. Cit.
p. 79.
7
SARTORI, L.V. A Diocese de Santa Maria. Santa Maria: edições Diocese, 1956. p. 11.
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Linha Rincão da Lagoa em suas experiências de seres humanos voltadas ao sagrado, ao
mistério, à devoção.

Porém, à medida que a Diocese Católica de Santa Maria, em disputa de Poder


simbólico referenciada nas estratégias do Monsenhor Humberto Busato, do bispo de Santa
Maria D. Antônio Reis e o Estado Novo, no governo de Getúlio Vargas, definem glorificar e
evidenciar alguns atos do passado jesuítico no Rio Grande do Sul, personalizado Beato Mártir
Roque Gonzalez e nos seus companheiros Afonso Rodrigues e João de Castilhos, evocam a
memória católica a fim de interpretar a história e legitimar as intenções políticas da Dioceseno
Projeto de Restauração Católica.

No bojo destes atos é visível a ação tanto do Monsenhor Humberto Busato quanto
Dom Antônio Reis em unificar os sentidos dos discursos católicos posto que: “estava em jogo,
desde o Projeto de Restauração Católica em Santa Maria, o prestígio da Igreja e seu capital de
bens de salvação” (BORIN, 2010, p. 224). De forma discursiva, o milagre ocorrido na família
Anversa adquire o sentido de legitimação social do capital religioso na região. Portanto é um
momento significativo, posto que: “os padres palotinos, jesuítas e diocesanos deram um novo 21
perfil a Santa Maria e cooperaram com a concretização da ideia da Igreja em período de
renovação” (BORIN, 2010 p. 225).

Na sequência ocorre a construção da Capela de Três Mártires, cuja conclusão é em


1941 e, no dia 11 de janeiro de 1942 celebra-se a primeira festa em honra aos Santos Mártires
das Missões, cuja missa é celebrada por Monsenhor Humberto Busato e com as presenças de
Dom Antônio Reis. João Maffini, Vicente Maffini, José Antônio Brondani, Mariano de Freitas,
João Anversa e João Nicoloso, as pessoas que compunham a comissão organizadora da
construção. Nesses momentos a Diocese de Santa Maria passa a evidenciar o milagre concedido
a família do camponês João Anversa, que agora assume o protagonismo dos acontecimentos
com a capela dos Três Mártires na comunidade.
Os acontecimentos do século XVII, da região das Missões do Rio Grande do Sul, são
ressignificados longinquamente, em meados do século XX na região da Quarta Colônia de
Imigração Italiana, sinalizando que suas histórias e memórias são lembradas em outros e
diferentes locais, para além da Região das Missões que se aproximam aos lugares de memória
missioneira, cujas narrativas que mesclam História e Memória são revividas pelos habitantes e
ISSN: 2525-7501
peregrinos que frequentam a Capela dos Três Santos Mártires das Missões. A Capela abriga
aproximadamente 100 pessoas, possui campanário central e arquitetura externa que lembram o
Renascimento italiano e conforme Bellinaso: “planta é de João Lapitz, com construção de
Olinto Lôndero” (BELLINASO, 1984, p. 84). A construção da capela deu aos moradores um
novo viés em suas vidas afetivo-espirituais.

Para esses moradores, a nova capela despertava neles um sentimento de pertencimento


ao seu país de origem, a Itália, como relatam alguns entrevistados, moradores idosos da
comunidade. No entanto, o ambiente místico simbolicamente missioneiro impera no interior da
Capela, podendo se reviver ali o universo simbólico missioneiro.O prédio atual é o mesmo da
década de 1940, como se pode ver na imagem.

22

Foto: Júlio Quevedo, setembro de 2016.


ISSN: 2525-7501

23

Foto: Procissão do Beato Roque Gonzalez de Santa Cruz,


Da Capela de Três Mártires até o Santuário de Nossa Senhora da Saúde
(Linha 4ª Norte), provavelmente em 1942.
Acervo de Ilda Mafini da Comunidade de Três Mártires

Dentro da Capela de Três Mártires está a imagem do padroeiro Padre Roque Gonzalez
de Santa Cruz, doada por João Anversa para a inauguração em 1942. Esta imagem permaneceu
sem os outros mártires até começo do século XXI. Alguns entrevistados comentam que sempre
ISSN: 2525-7501
viram com estranheza a veneração de apenas um dos mártires e a ausência dos outros dois:
Afonso Rodriguez e João de Castilhos.

24

Foto: Júlio Quevedo, setembro de 2016.

A interação religiosa de veneração aos três mártires jesuítas, indissociáveis, ligados aos
episódios dos eventos de 1628 por muito tempo não aconteceu na Capela de Três Mártires.
Somente em 2009, os devotos da terceira idade se organizaram e doaram ao templo a imagem
dos outros dois mártires: Afonso e João.
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25
ISSN: 2525-7501
Ao contrário da imagem de Roque Gonzalez, confeccionada em gesso,as duas outras
imagens dos dois mártires são confeccionadas em madeira, na interpretação do artista Bertoldo,
do Jardim das Esculturas em Júlio de Castilhos. Assim, desde 2009 a comunidade pode venerar
os seus três mártires, graça à ação dos devotos da terceira idade.

26

Foto do altar mor da Capela de Três Mártires, Júlio Quevedo, setembro de 2016.

Convém destacar que em 2009 a comunidade começa a valorizar de outra forma os seus
santos mártires a partir da organização de peregrinações e de links com a Região das Missões
do Rio Grande do Sul, daí a preocupação em renovar a interação religiosa e a liturgia.

A peregrinação a Três Mártires atualiza o evento histórico do passado da região das


Missões e se constitui em movimento de devotos que seguem em peregrinação religiosa à
capela, quer seja para pagar promessas, agradecer ou pedir bênçãos. Esse movimento popular
revela a devoção do povo católico e a sua veneração aos três santos “mártires”, na perspectiva
da Igreja Católica. O movimento dos peregrinos atualiza a todo instante um passado distante de
mais de trezentos anos e confere ao local um lugar de memória do sagrado e a construção de
um dos mitos fundadores do Rio Grande do Sul na figura de Roque Gonzáles de Santa Cruz.
ISSN: 2525-7501
Na comunidade de Três Mártires acontecem procissões eperegrinações à Capela desde
sua inauguração e em seu ambiente místico está a imagem dos mártires, movimentando e
atualizando o capital simbólico, principalmente em janeiro; ocorre a festa tradicional em
homenagem a eles, o que engloba tríduos, celebrações, novenas e missas festivas em memória
aos padroeiros. Esse evento acontece sempre no segundo domingo de janeiro.

É mister compreender que a Capela de Três Mártires se constitui em lugar de memória


de veneração aos Mártires das Missões e o que eles representam à comunidade, que optou em
denominar-se pelo nome da capela, reconhecendo-a, valorizando-a, apresentando por ela um
sentimento de pertencimento ao universo simbólico que a mesma representa. Nesse sentido,
buscamos em Pierre Nora a compreensão de que: “a necessidade de memória é uma necessidade
da história” (NORA, 1993, P. 14). Assim, a força da memória assume papel significativo na
recuperação do passado histórico da comunidade de Três Mártires.

De uma maneira geral compreendemos a memória “nos seus sentidos entrecruzados


da memória mítica, da memória social inscrita em práticas, e da memória construída do
historiador”.8Esta provocação é constante ao se recuperar a memória missioneira presente e 27
elaborada ainda na antiga Linha Rincão da Lagoa, envolta em seus aspectos da mística religiosa,
penitencia e mistério cristão.

Desta forma, subentende-se que a história dos Mártires atua na memória tanto da
região das Missões quanto na da Quarta Colônia, em particular, na de Três Mártires, atentando
para a representação do imaginário da cultura dos descendentes de Mantuanos. Assim, cria-se
uma forte relação entre o passado e o presente, de forma que o que está em jogo são os valores
patrimoniais e que a identidade destes valores se expressam para a região da Quarta Colônia de
Imigração Italiana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, atualmente, a partir de nossas intervenções etnográficas – observações e


entrevistas – percebe-se que a comunidade de Três Mártires sente orgulho em cultuar (venerar
e valorizar) a memória do passado através dos Mártires. Isto mostra que uma comunidade,

8
ACHARD, P.; ORLANDI, E. P. [et al.] Papel da Memória. 4 ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2015. p. 44.
ISSN: 2525-7501
mesmo sendo predominantemente de origem italiana, cultua, num misto de ciência e fé, a
devoção missionária de Roque Gonzalez de Santa Cruz, juntamente com os Mártires Afonso
Rodrigues e João de Castilhos, a ponto de se decidir pela necessidade de incorporá-los à mística
através da aquisição das imagens que faltavam.

É interessante observar como a comunidade imagina o seu passado e negocia com um


passado histórico, elegendo-o da melhor forma possível reconhecendo e preservando o lugar de
memória, onde tudo começou em 1940, a Capela de Três Mártires. Nesse sentido, a análise de
Nora ao definir os lugares de memória: “nascem e vivem do sentimento que não há memória
espontânea, que é preciso criar novos arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar
celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque estas operações não são
naturais” (NORA, 1993, p. 13). Portanto, a reflexão de Nora sobre os lugares de memória se
torna premissa à compreensão das memórias individuais e coletivas a respeito do passado da
comunidade de Três Mártires.

Em suma, a mudança de nome adotada pela comunidade para Três Mártires está para
além do alicerce semântico, trata-se de identidade, de pertença, de inclusão, portanto, são os 28
fios de Ariadne que nos desafiam e provocam a pensar os nexos entre o BEATO (Roque
Gonzalez de Santa Cruz), e o MILAGRE (cuja família Anversa é guardiã da Memória que se
faz História) e os nexos estabelecidos que dão sentido à História da Comunidade, ora
recuperada através da Memória. Estes fios ao serem tecidos unificam o sentimento de
pertencimento ao universo simbólico cristão missioneiro e italiano.

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Editores, 2015.

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VENTURINI, S. Ivorá: sangue italiano na Quarta Colônia. Porto Alegre: Edigal. Exclamação,
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30
ISSN: 2525-7501

O ENSINO DE HISTÓRIA REGIONAL E A PATRIMONIALIZAÇÃO DAS


MEMÓRIAS NO VALE DO TAQUARI-RS *9

Cristiano Nicolini**10

RESUMO

O ensino de História Regional vem adquirindo espaço nos currículos principalmente a partir do
surgimento da Nova História, que oportunizou a inclusão de novos objetos, novos problemas e
novas abordagens à pesquisa e ao ensino de História. Este campo da historiografia, no entanto,
chega às salas de aula de diferentes formas, nem sempre seguindo uma orientação teórica e
metodológica pertinente, tendo em vista que, na maioria das vezes, estes conteúdos são
desenvolvidos nos anos iniciais do Ensino Fundamental, cujos profissionais não possuem
habilitação específica para o ensino de História. A partir desta realidade, propõe-se tecer
algumas considerações sobre a prática de ensino da História Regional na região do Vale do
Taquari (RS), utilizando-se da análise prévia de alguns manuais destinados ao ensino da
História dos Municípios, direcionados a alunos do 4º ano do Ensino Fundamental. Estes
portadores de narrativas contribuem, por sua vez, para o processo de patrimonialização das
memórias na região, considerando as representações que propõem acerca da História Regional. 31

Palavras-chave: História regional; memórias; patrimonialização.

INTRODUÇÃO

As salas de aula dos municípios do Vale do Taquari, região situada na porção central
do estado do Rio Grande do Sul (Brasil), são espaços privilegiados para a construção e a
afirmação da identidade regional. Os diferentes sistemas e redes de ensino propõem, desde o 4º
ano do Ensino Fundamental, o ensino da história do município no qual estão situados. Muitos
professores desconhecem a trajetória histórica das localidades em que atuam, bem como não
têm formação específica na disciplina, o que os leva a elaborar o seu planejamento e a sua
prática pedagógica a partir de manuais oferecidos pelas administrações municipais, estaduais

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Doutorando em História, UFSM, cristiano782006@hotmail.com.
ISSN: 2525-7501
ou pelas redes privadas ou comunitárias. No caso da não existência dos referidos manuais, os
profissionais recorrem a outros recursos e fontes de pesquisa, disponíveis em bibliotecas,
museus e outros acervos das localidades.

Nesta análise, selecionamos alguns manuais didáticos destinados ao estudo da história


do município, disponibilizados para consulta pelas respectivas administrações através das
Secretarias Municipais de Educação. São eles: Teutônia: nosso município, de Siziane Koch e
Susiane Wink (2000); Educação, a base para o desenvolvimento de um povo, elaborado pela
Secretaria Municipal de Educação de Estrela (1992); Estrela: nosso município, de Siziane Koch
e Susana Mendoza (1999); Arroio do Meio: sua História, sua Geografia, elaborado pela
Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Arroio do Meio (2000); e um livro com textos
elaborado pelos alunos do Ensino Fundamental, denominado O lugar onde vivo, um projeto
desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Desporto com as Escolas
Municipais de Westfália (2004-2005).

Capítulo I - Os livros e suas narrativas sobre a História Regional


32
Conforme afirma Pinsky (1992), as noções históricas trabalhadas em sala de aula são
fortes elementos que agem na construção de concepções de mundo:

Estas concepções ficaram a tal ponto arraigadas, de tal maneira elas continuam sendo
reproduzidas pelos manuais didáticos, que se torna difícil mostrar aos estudantes que
são falácias, representações decorrentes de uma visão ideológica. (1992, p. 12).

Assim ocorre nos anos iniciais do Ensino Fundamental do Vale do Taquari, em cuja etapa
da aprendizagem os estudantes têm contato com as primeiras noções sobre a história regional.
Nestes estudos acerca da formação histórica do município onde vivem, juntamente com o
desenvolvimento de noções geográficas sobre a região, são disponibilizadas aos estudantes
possibilidades de construção acerca do passado. São nestes estudos que eles sistematizam as
primeiras noções sobre o espaço em que vivem, bem como sobre o sentido do passado e as suas
relações com o presente.
ISSN: 2525-7501
Apesar de encontrarem-se no nível concreto do desenvolvimento cognitivo11, são
propostos conteúdos bastante subjetivos, os quais são pretensamente simplificados nos manuais
didáticos para que, a partir de atividades de cunho mais prático, os estudantes tenham a
possibilidade de “construir” conhecimento histórico e geográfico. Porém, cabe questionar e
analisar quais são as propostas destes manuais, ou seja, quais histórias são apresentadas aos
estudantes e de que forma eles recebem estas informações disponibilizadas.

Os manuais analisados apresentam diversas semelhanças quanto ao conteúdo, abordagens


e atividades propostas aos alunos. Todos iniciam a narrativa da história do município a partir
da ocupação indígena, partindo imediatamente para a trajetória da ocupação europeia no
território: “O solo estrelense foi pisado, pela primeira vez, por gente branca, provavelmente
espanhóis, na metade do século XVII. Não tinham o objetivo de colonizar, mas explorar e caçar
índios, que eram os guananás, pioneiros da nossa região.” (SECRETARIA MUNICIPAL DE
EDUCAÇÃO DE ESTRELA, 1992, p. 3).

Em seguida, narram-se os feitos dos primeiros povoadores da região, aos quais são
atribuídas as principais ações na delimitação do município. Todos destacam a predominância 33
da herança cultural dos imigrantes na atualidade, sugerindo que o trabalho destes sujeitos teria
dado o impulso mais significativo ao desenvolvimento do município. No manual destinado ao
ensino da história do município de Teutônia (KOCH; WINK, 2000), o texto sobre a colonização
inicia da seguinte forma:

O nosso município foi colonizado por imigrantes alemães. Você sabe o que são
imigrantes? Imigrantes são pessoas que deixam o lugar onde vivem, suas casas, suas
famílias, para morar em terras estranhas, novas. Muitas vezes os imigrantes saem de
seu país para conhecer novos lugares, novas terras. Outras vezes, procuram melhores
condições de vida, fugindo de guerras, epidemias (doenças), fome, falta de terras.
Essas pessoas eram chamadas de imigrantes alemães porque vieram de um País

11
“De acordo com Piaget, o indivíduo (a criança) aprende construindo e reconstruindo o seu pensamento, através
da assimilação e acomodação das suas estruturas. Esta construção do pensamento, Piaget chamou de estágios:
estágio sensório -motor, estágio simbólico e estágio conceitual. Segundo Piaget, no estágio sensório-motor, que
vai do zero até os 2 anos de idade, é onde se inicia o desenvolvimento das coordenações motoras, a criança aprende
a diferenciar os objetos do próprio corpo e o pensamento das crianças está vinculado ao concreto. Já no estágio
simbólico, que é dos 2 até por volta dos 7 anos, o pensamento da criança está centrado nela mesma, é um
pensamento egocêntrico. E é nesta fase que se apresenta a linguagem, como socialização da criança, que se dá
através da fala, dos desenhos e das dramatizações. No estágio conceitual, que é dos 7 até por volta dos 11, a criança
continua bastante egocêntrica, ainda tem dificuldade de se colocar no lugar do outro. E a predominância do
pensamento está vinculado mais acomodações do que as assimilações”. (PORTAL EDUCAÇÃO. Disponível em:
http://www.portaleducacao.com.br. Acesso em: 9 jul.2016).
ISSN: 2525-7501
chamado Alemanha. A maioria dos imigrantes que colonizou Teutônia veio de duas
regiões da Alemanha: do Hunzrück e da Westfália. (2000, p.9).

No manual elaborado para o município de Estrela (KOCH; MENDOZA, 1999), encontra-


se uma caracterização semelhante:

Antes de chegarem os colonizadores em Estrela, nosso município era somente mato e


campo, habitado por índios. Não havia estradas nem casas. Colonizador é aquela
pessoa que vai cultivar e morar em terras estranhas, que não são suas. No ano de 1636,
chegaram em Estrela bandeirantes paulistas e índios semicivilizados. [...] Foi em 1824
que chegaram em nosso município os colonos alemães. Os colonos chegavam de
barco pelo Rio Taquari, pois naquela época não existiam estradas nem carros. Os
alemães vinham da região de São Leopoldo e Feliz. (1999, p.9-10).

Diferentemente destes primeiros manuais apresentados, para o município de Arroio do


Meio foi elaborado um manual cuja proposta diferencia-se das anteriores em alguns aspectos.
Já na introdução, a comissão organizadora do material destaca a preocupação com uma
abordagem didático-metodológica que:

[...] respeitasse as características e a identidade locais [...], sendo que, para isso, [...] a
primeira parte trata da construção da identidade individual e coletiva do aluno. Aborda
aspectos relacionados à sua formação familiar, escolar e comunitária. A partir desta
contextualização, na segunda parte são abordados aspectos geográficos e históricos
do município. (SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO E CULTURA DE
34
ARROIO DO MEIO, 2000, p. 9).

Enquanto os primeiros manuais ocupam-se basicamente com a citação dos principais


fatos, nomes e datas referentes à ocupação do território, no livro sobre Arroio do Meio constata-
se uma proposta de análise da ocupação indígena, oferecendo aos estudantes maiores
possibilidades de reflexão acerca do processo histórico anterior à ocupação europeia. Há, neste
último material, um capítulo dedicado exclusivamente aos povos indígenas que habitavam a
região e às características da ocupação antes da chegada dos europeus nas terras do município,
enquanto nos demais livretos eles são apenas mencionados como antecessores dos europeus.

Muitos termos são utilizados de forma descontextualizada ou erroneamente nestes


manuais, como, por exemplo, a designação alemão. Apenas o livro de Arroio do Meio
preocupa-se em marcar a diferença entre os termos alemão e germânico, evidenciando que a
Alemanha ainda não existia como nação na época da imigração para o Brasil.

Porém, é no livro produzido pela Prefeitura Municipal de Westfália (SECRETARIA


MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE WESTFÁLIA, 2004/2005), denominado O lugar onde
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vivo, cujos textos foram selecionados a partir de produções feitas pelos estudantes, que o
enaltecimento da cultura germânica torna-se mais evidente. Não consiste em um manual
didático, pois é uma obra destinada a registrar produções textuais a partir de estudos
desenvolvidos em sala de aula, acerca da história do município. Nas crônicas, poesias e
narrativas publicadas no livreto, fica evidente a ênfase na predominância da cultura germânica.
Raras são as passagens que fazem menção aos demais povos que habitaram ou ocuparam as
terras posteriormente colonizadas pelos “westfalianos”.

Neste caso, é evidente o enaltecimento da germanidade na constituição das identidades


em sala de aula. Por tratar-se de um município recente, onde predomina a vida rural e a
população descendente de colonizadores germânicos, procura-se implantar, desde cedo, a
consciência da necessidade de preservação dos costumes dos antepassados, aos quais são
atribuídas características dignificantes e essenciais para o desenvolvimento da comunidade.

Nos textos de O lugar onde vivo, os alunos mencionam os espaços do cotidiano dos
colonizadores germânicos - serrarias, frigoríficos, alambiques e ferrarias -, bem como costumes,
festas, crenças, religiosidade, vida familiar e acontecimentos marcantes. São retratadas as 35
belezas naturais, o caráter “pacífico, ordeiro e trabalhador do povo westfaliense”, cujas
qualidades são, direta ou indiretamente, associadas ao passado e àqueles que teriam sido os
“pioneiros” na formação da comunidade. Quanto a estas narrativas, Wassermann (2001) destaca
que:

A identidade conforma-se a partir de experiências reais e significativas. Ela,


identidade, enquanto sentimento de pertencimento é simbólica e abstrata, mas é
originária de vivências, experiências e afetos concretos. Essas experiências cotidianas
vão compondo um mosaico de imagens que vinculam sempre a significados
ampliados da identidade a ser construída. O que no universo da infância se constitui
numa história pessoal, no adulto faz parte do seu universo cognitivo, de sua memória,
que no caso da coletividade conforma a identidade social. (2003, p.9).

A partir da rememoração de eventos passados, os integrantes destas comunidades


evocam momentos vividos pela coletividade na qual estão inseridos ou da qual descendem,
sendo que estas passagens dão sentido à sua existência e sobrevivência material e simbólica.
Fortalecem os vínculos através dos registros feitos nestes manuais, e através da transmissão
destas informações constroem-se, nos espaços educacionais, a imagem condizente com a
sociedade que se pretende enaltecer. Preservam-se os traços que são considerados necessários
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para a continuidade destas identidades, sejam elas individuais ou coletivas. No caso específico
da identidade germânica, a ideia de que “[...] todos os conterrâneos já compartilharam, mesmo
num passado longínquo, aquelas experiências é muito importante para a conformação da
identidade social”. (WASSERMANN, 2003, p. 12).

Para compreender o significado histórico da germanidade construída nestas narrativas do


ensino da história regional é relevante destacar que:

Uma das características das regiões de colonização alemã foi a tendência da população
a se unir em sociedades ou associações com fins econômicos, esportivos, recreativos,
culturais, beneficentes e de socorro mútuo. Predominaram numericamente aquelas
identificadas com atividades culturais e desportivas. (VOGT, 2003, p.61).

Nestas associações comunitárias preservou-se o Deutschtum, sentimento de germanidade


que, na comunidade italiana, pode ser associado ao italianitá. Apesar de não abordar-se, neste
texto, nenhuma obra produzida para estudantes dos municípios de imigração
predominantemente italiana, pode-se identificar esta mesma tendência em outros materiais
publicados para os leitores em geral, e que acabam sendo utilizados na sala de aula. São os
casos de calendários, guias turísticos, resumos históricos impressos pelas prefeituras, catálogos, 36
revistas, folders, dentre outros. Todos estes materiais se tornam portadores do discurso aqui
analisado, cujas imagens e textos tendem para a valorização da cultura italiana e germânica e,
mesmo que levem em consideração a existência e as contribuições de outras etnias para a
formação histórica dos municípios, prevalece a tendência de associar o Vale do Taquari à
Europa, como se esta fosse transplantada para o Rio Grande do Sul a partir do século XIX.
Acentuam-se os traços diferenciais para que a região assuma esta identidade em meio ao cenário
gaúcho e brasileiro, carregando consigo as histórias, os valores e as verdades contidas nestes
portadores de discurso.

Capítulo II - Patrimonialização de memórias através do ensino de História


Regional

O papel da memória, neste contexto, torna-se imprescindível para que a coletividade


construa os vínculos identitários:

A memória [...] deixaria o domínio da lembrança individual, para tornar-se de domínio


coletivo. A memória desdobrar-se-ia do indivíduo para o grupo a partir de suas
vivências comuns, sua língua e sua classe social. O grupo social que fala, trabalha,
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tem valores e eventos comuns, elabora também suas lembranças coletivas. (GIRON,
2000, p. 27-28).

Nesta seleção de imagens do passado, os descendentes de imigrantes elegem as passagens


que elevam o valor da etnicidade germânica ou italiana, ou seja, aquelas em que os antepassados
lograram êxito: as vitórias, o trabalho, os costumes trazidos de longe. Em contraposição,
ocultam as passagens que não condizem com esta caracterização: o fracasso, os vícios, os
defeitos. Estas lembranças transformam os pioneiros em sujeitos heroicizados, vindos de terras
distantes para construir uma nova sociedade, cujos precursores têm a missão de dar
continuidade e perpetuar os feitos gloriosos.

Neste sentido, a escola torna-se um espaço privilegiado de fortalecimento destes vínculos


histórico-identitários, comprometendo as gerações presentes com a manutenção de valores
forjados no passado. São recriações repassadas através dos referidos manuais didáticos,
instrumentos que portam em si verdades passíveis de se perpetuarem na consciência dos
estudantes, colaborando para a manutenção de um discurso forjado e mantido pela coletividade.

Evocando a imagem das escolas criadas para instruir as crianças filhas de imigrantes, no
passado, as atuais instituições permanecem sendo espaços de construção identitária. Apesar da
37
língua alemã e italiana não serem mais predominantes nestas comunidades, especialmente nos
espaços escolares, a história que se narra permanece apresentando aos alunos uma germanidade
e uma italianidade imaginadas, a partir da realidade, conforme as necessidades e valores de
cada comunidade do Vale do Taquari.

Além da imigração como elemento de representação nestes manuais destinados ao ensino


da História Regional no Vale do Taquari, destaca-se também a construção acerca do trabalho
na edificação destas comunidades. Apesar da pluralidade de relações e formas de trabalho que
caracterizaram a dinâmica de formação destes municípios – incluindo o trabalho escravo, o
arrendamento de terras, o trabalho assalariado, dentre outras formas específicas de
sobrevivência características das regiões de colonização europeia no século XIX -, as
representações do trabalho no passado do Vale do Taquari assumem, nas narrativas dos
materiais didáticos, a função de cristalizar determinados discursos acerca dos sujeitos e das suas
relações com o mundo do trabalho.
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E. P. Thompson (1987) inspirou vários trabalhos acerca das múltiplas relações
estabelecidas nos mundos dos trabalhadores no final do século XIX e início do XX. Autores
que pensaram a temática a partir desta perspectiva (CASTORIADIS, 1985; GENOVESE, 1976;
PERROT, 1988; WILLIAMS, 1969; 1979) desenvolveram trabalhos que revelam uma classe
trabalhadora muito mais complexa do que aquela representada e imaginada nas narrativas
anteriores: homens brancos, livres, descendentes de europeus e urbanos.

Assim também ocorre quando as narrativas sobre a imigração, especialmente na região


colonial do Rio Grande do Sul, retratam os trabalhadores como colonos-imigrantes,
estritamente dedicados às atividades agropastoris. Estas representações, evidentes nos materiais
didáticos destinados ao ensino da História Regional, utilizam recursos textuais e imagéticos que
contribuem para a perpetuação de determinados discursos. Nestas representações, os colonos
são retratados como pessoas humildes, dedicadas ao trabalho no campo, à religiosidade e à
família. O lazer, por exemplo, é representado como algo raro e ainda assim vinculado ao mundo
do trabalho – festas da colheita, celebrações religiosas, jogos e outras formas de diversão que
tinham o tempo do trabalho como referência.
38
Os manuais para o ensino da história dos municípios contribuem, dessa forma, para a
construção de uma identidade que está diretamente ligada à narrativa da História Regional. Para
Halbwachs (2006, p.48), “[...] para evocar seu próprio passado, em geral, a pessoa precisa
recorrer às lembranças de outras.” A memória coletiva representa aquilo se lembra e se perpetua
como as narrativas oficiais acerca do passado regional. Neste processo, as memórias de grupos
minoritários ou que tiveram as suas memórias apagadas são excluídas das narrativas sobre a
ocupação e a formação do território. O trabalho e a imigração, representados nos manuais
didáticos analisados, são essencialmente associados aos germânicos e aos italianos que
chegaram no século XIX. Negros escravizados e indígenas, bem como grupos europeus que
também colonizaram a região – poloneses, portugueses, espanhóis -, são invisibilizados no
decorrer da narrativa, como se a sua participação na história fosse menos significativa ou até
mesmo nula frente à saga da imigração germânica e italiana.

Além do trabalho realizado nas salas de aula, este enquadramento da memória se utiliza
também de outros recursos, dentre os quais estão os monumentos da cidade, os espaços de
memória construídos para evidenciar momentos e sujeitos do passado colonial, bem como
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festividades, comemorações, placas e outras formas de edificação da memória. Os estudantes
que entram em contato com as narrativas dos manuais didáticos também convivem neste meio,
cujas informações e estímulos colaboram para a referida construção de uma memória coletiva.
Narrativas individuais, como as histórias da sua família, do bairro, da comunidade onde residem
dentro da municipalidade e da regionalidade, dialogam com as narrativas oficiais e
hegemônicas.

Neste sentido, como essa construção identitária incorpora as formas de trabalho diversas
e a presença de outros grupos étnicos na formação territorial do que hoje se denomina Vale do
Taquari? Onde encontrarão as memórias de antepassados negros, indígenas, poloneses,
portugueses e outros grupos? Onde enquadrarão as narrativas que não correspondem ao
imaginário oficial em que o cotidiano do colono-imigrante predomina sobre as demais formas
de organização social? Cabe aos pesquisadores ampliar estas referências para a produção de
materiais didáticos que ampliem e desconstruam as referidas representações. Aos professores é
necessário oferecer subsídios teóricos e metodológicos que viabilizem o questionamento frente
a estas narrativas tradicionais, provocando os estudantes a pensarem sobre as múltiplas relações
e culturas que deram origem à região.
39
As análises feitas por E. P. Thompson e os historiadores britânicos reconceituaram o
materialismo dialético e ampliaram a “[...] compreensão da existência e da consciência social”.
(MÜLLER; MUNHOZ, 2010). Recuperou-se a pesquisa empírica e o compromisso com o
acontecido, bem como a participação do sujeito na história. Propôs-se a noção de experiência
dos sujeitos como mediadora entre a determinação das estruturas e as ações humanas.
(PETERSEN; LOVATO, 2013).

O que subjaz nas propostas desses historiadores é uma reconceituação de modo de


produção, que já não é visto unicamente em seus aspectos econômicos. As obras
desses historiadores não perdem de vista que as relações de produção e a luta de
classes envolvem também uma série de questões morais, culturais e políticas, ainda
que pudessem discordar quanto à hierarquia destes fenômenos. (PETERSEN;
LOVATO, 2013, p. 177).

Esta perspectiva da história vista a partir das experiências dos sujeitos, sem contudo
ignorar a importância das estruturas, leva a uma compreensão da História Regional em que
diferentes grupos são considerados na elaboração das narrativas sobre o processo de formação
dos municípios. No Vale do Taquari, são múltiplas as formas de povoamento, bem como são
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plurais os grupos étnicos que compuseram este mosaico. No entanto, o processo de
patrimonialização da memória regional caminha para outra direção, ao considerar relevantes
determinadas histórias em contraposição a outras.

Nas narrativas presentes nos manuais sobre a história dos municípios do Vale do Taquari
a imagem do colono-imigrante é representada como o trabalhador, evidenciando a
identificação dos municípios do Vale como espaços construídos a partir do esforço coletivo.
Um autor utilizado como referência para a elaboração dos livros escolares afirma que “[...] a
vocação ao trabalho, à cultura e à religião são características que os descendentes dos pioneiros
continuam apresentando. Os povoados que se formaram, entre eles Teutônia e Corvo, refletem
esses predicados em seus cidadãos.” (GERHARDT, 2004, p. 17).

A atual configuração destas localidades é atribuída ao trabalho dos imigrantes alemães


ou italianos. Nega-se a totalidade social e a presença de outras etnias, prevalecendo o discurso
que supervaloriza a herança cultural italiana e germânica atribuindo-se a ambas, inclusive, o
desenvolvimento econômico do Vale do Taquari em relação a outras áreas do estado, onde não
ocorrera a colonização europeia no século XIX. Deixa-se subentender que somente a partir da 40
chegada dos colonos houve a possibilidade de progresso regional pois, como propõe Schierholt
(2002) em sua obra sobre a história do município de Estrela, podemos nos imaginar naquele
período: “Teríamos que abrir um pique e uma clareira, erguer nossa choupana provisória, tudo
em mutirão entre os conterrâneos.” (2002, p. 17).

São enaltecidos os problemas enfrentados pelos colonizadores, o que tende a tornar ainda
mais intensa a valorização destes grupos, que teriam provado, através destas superações, a sua
excelência étnica. Mattei (2000) destaca esse aspecto na obra sobre a história do município de
Sério: “Os descendentes de italianos chegaram provavelmente na década de 1910. A
colonização se deu com muito sacrifício e trabalho, motivada pela vontade dos moradores, em
vencer e progredir.” A explicação destes sucessos a partir das qualidades dos imigrantes e seus
descendentes escondem as contradições que permearam o processo de colonização nestes
municípios. Conforme a historiografia mais ampla acerca deste período da história do Rio
Grande do Sul, fica evidente que nem todas as ações foram bem sucedidas, e que nem sempre
estes colonos tiveram diante de si apenas dificuldades. Cada localidade apresentava condições
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diferenciadas para a instalação das famílias, bem como havia variações conforme a época em
que estes alemães e italianos chegavam ao Vale do Taquari.

Estas e outras afirmações de escritores locais, cuja dedicação à escrita da história não
perpassa necessariamente a formação acadêmica, levou à reprodução de narrativas que hoje se
perpetuam nos manuais didáticos. O processo de patrimonialização da memória regional
fortaleceu a imagem do colono-trabalhador, inserindo-a na descrição das trajetórias de seus
municípios. No rol das atividades desenvolvidas pelos imigrantes, a agricultura ocupa lugar de
destaque nas narrativas, sucedida pelo comércio e pela indústria incipiente.

Dava alimento, trabalho, repouso e riqueza. De outra parte, um dos fortes do povo
alemão é o trabalho. Trabalho que por vezes faz esquecer defeitos não leves. Apreciam
pessoas trabalhadoras, não importa de que raça sejam. Sejam ‘tüchtig’ e o indivíduo
‘ipso facto’ tem meio passaporte na alma do teuto. (...) E a disposição contrária
também se acusa: detestam preguiçosos, seja de que raça forem. A indolência do
caboclo brasileiro, explicável por diversos motivos que a sociologia e outras ciências
poderiam precisar, nem ela teria boa acolhida entre os teuto-brasileiros de Arroio da
Seca. (HESSEL, 1998, p.28).

A ênfase das narrativas às dificuldades transpostas pelos imigrantes italianos e


germânicos acaba invisibilizando a realidade anterior à imigração do século XIX, na qual outras 41
etnias também enfrentaram dificuldades semelhantes ou mais acentuadas, tendo em vista que
as matas eram significativamente mais densas, os animais ferozes apresentavam-se em maior
quantidade, as vias de transporte terrestre eram praticamente inexistentes. Enfim, os colonos
imigrantes não foram os “primeiros” a ocupar a região; portanto, não foram os pioneiros.

Mas, por que então denominá-los desta forma? Segundo os autores, a eles atribui-se o
pioneirismo devido ao fato de fazerem esta terra prosperar. Nesta concepção, subentende-se
que os imigrantes “venceram” as dificuldades do meio e usufruíram de forma produtiva dos
recursos naturais, enquanto os povos anteriores apenas teriam utilizado o meio para sobreviver
e extrair riquezas, mas não para fazer a terra progredir. Esta tese transformou-se em discurso
dominante através do tempo, permeando discursos, justificando a suposta superioridade étnica
e contribuindo para a exclusão daqueles que não se adequavam a este padrão humano.

O “preguiçoso”, o “caboclo”, o “bugre”, o “pêlo-duro”, dentre outros indivíduos


estigmatizados ao longo dos anos, foram perdendo seu espaço em função da cultura europeia
italiana e germânica, consideradas ‘pioneiras’ na construção do Vale do Taquari.
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Conforme Le Goff (1984), as identidades são construídas a partir da rememorização de
determinados fatos, relegando outros ao esquecimento; a memória coletiva é manipulada para
que permaneçam apenas os aspectos que interessam para os grupos envolvidos neste processo.
Assim, explicações até mesmo míticas servem para dar sustentação a esta identidade, pois estas
efetuam simplificações dos “(...) acontecimentos históricos, sociais e naturais comumente
totalizados, naturalizados e antropomorfizados. Tem a função de manter o grupo social coeso,
estabelecendo regras, ordenando-o, dando-lhe segurança, facilitando a manutenção da
autoridade.” (LE GOFF, 1984, p.13).

As explicações míticas têm uma função social claramente definida. Elas organizam o
presente conforme as necessidades do grupo, sendo que os fatos relatados são indiscutíveis e
inalteráveis. Vão se fixando ao longo do tempo, passados de geração para geração, oralmente
ou através de registros como os livros de história dos municípios e os manuais escolares neles
baseados. Segundo Carbonell (2002):

A propensão para moralizar não é própria dos historiadores de função. É igualmente


comum nos historiadores não oficiais, cujas obras bastante diversificadas (biografias,
monografias locais, relatos militares, manuais para estudantes, compilações de 42
anedotas, etc.) seguem o mesmo método. (2002, p.56)

A moralização embutida nesses relatos atinge o público na medida em que as pessoas


conhecem e assimilam as mensagens propostas pelas passagens selecionadas pelo autor.
Através dos relatos do passado, pretende-se deixar ao leitor a impressão de que a realidade atual
é fruto dos esforços dos antepassados, devendo-se a eles a herança material e cultural usufruída
pela sociedade presente. Criam-se, assim, vínculos não apenas entre o passado e o presente,
mas principalmente entre as pessoas que formam este grupo, neutralizando ações contrárias ao
projeto de cooperação entre as diversas partes deste conjunto denominado Vale do Taquari.
Permanentemente, detecta-se a presença de argumentos voltados para os esforços coletivos da
população, seja na imprensa, nos discursos políticos e empresariais e nas administrações
municipais. Há uma coesão discursiva que pode ser verificada e analisada ao identificarmos os
portadores destes discursos.

CONCLUSÃO
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A escola representa um espaço de formação e elaboração de saberes a partir de vivências
e conhecimentos prévios dos estudantes, cuja consciência histórica se constitui desde o
nascimento. O contato com manuais da história dos municípios a partir do 4º ano do Ensino
Fundamental integra um conjunto de ações resultantes de interesses e disputas de poder na
sociedade. As estruturas influenciam as interações, cujos sujeitos contribuem ou problematizam
o processo de construção identitária em jogo. Por isso, cabe questionar qual é a função da
disciplina de História no currículo escolar, e mais especificamente da História Regional no
processo de formação dos estudantes: repetir e sustentar o discurso dominante ou promover a
compreensão dos múltiplos processos históricos, contemplando a diversidade étnico-cultural
que deu origem à região do Vale do Taquari?

A tentativa de ressignificar as narrativas sobre a história dos municípios perpassa a


formação docente, com a incorporação de teorias e metodologias próprias do campo
historiográfico. Pensar as relações entre os mundos do trabalho, a cultura e as migrações pode
ser um bom começo para quem deseja provocar mudanças nestas práticas, estimulando escolas,
professores e estudantes a compreenderem por que estudam a História Regional.
43

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ISSN: 2525-7501
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: O ENSINO DE HISTÓRIA A PARTIR DE ESPAÇOS
NÃO FORMAIS12

Marta Rosa Borin13


Vivian Alkaim14 15

RESUMO

Com este trabalho espera-se orientar os trabalhadores de educação na construção de suas aulas
de História a serem desenvolvidas em espaços não formais de ensino como os Museus, pois o
ensino é mais eficaz quando guiado por princípios e metas. O ensino no museu compreende
habilidades que permitem ao profissional de História despertar nos visitantes um olhar atento
para além do objeto exposto. É vital que ele conheça o público e os acervos sobre os quais irá
ensinar. Assim, a partir da pesquisa bibliográfica especializada e da criação de imagens busca-
se a produção de material didático a ser publicado (textos/imagens) em plataforma digital e/ou
impresso. Os conteúdos conceituais estarão relacionados ao patrimônio cultural, a partir de
artefatos que serão objeto de problematização de conteúdos históricos no Ensino Fundamental
e Médio. Com esse produto busca-se facilitar, ao professor e ao aluno, a leitura crítica sobre o
46
patrimônio cultural, para que, ao se apropriar de uma a linguagem especializada, possa também
desenvolver o interesse pela pesquisa acadêmica e reconhecer o saber nos espaços não formais
de ensino. O tema deste trabalho está relacionado ao Projeto “Patrimônio, cultura e migração”
e conta com a participação da acadêmica do curso de História, Vivian Alkaim, bolsista
FIEX/UFSM.

Palavras-chave: História, Educação patrimonial, museu

INTRODUÇÃO

12
O tema deste trabalho está relacionado ao projeto Patrimônio, Cultura e imigração, Universidade Federal de
Santa Maria.
13
Doutora em História, professora do Departamento de Metodologia do Ensino, Centro de Educação, do Programa
de Pós-graduação em História, Grupo de Pesquisa: História Platina: sociedade, poder e instituição, UFSM/CNPq,
Linha de Pesquisa: Memória e patrimônio; Programa de Pós-graduação em Patrimônio Cultural – Mestrado
Profissional, Linha de Pesquisa: História e Patrimônio, Universidade Federal de Santa Maria/Brasil, orientadora,
mrborin@gmail.com
14
Acadêmica do Curso de História, Universidade Federal de Santa Maria, bolsista FIEX/UFSM,
alkaim_vivian@hotmail.com
ISSN: 2525-7501
Nos anos de 1980, introduziu-se no Brasil o conceito e a metodologia da Educação
patrimonial. O trabalho disseminador deste campo de estudo, sobretudo em nível da Educação
Básica, é atribuído à museóloga Maria de Lourdes Parreiras Horta que coordenou a organização
do Guia Básico de Educação Patrimonial, juntamente com Evelina Grunberg, arquiteta e
urbanista, e Adriana Queiroz Monteiro, publicado pelo Ministério da Educação 16. A
metodologia visava práticas pedagógicas a partir do conhecimento, preservação e valorização
do patrimônio, entendido como qualquer expressão resultante da relação entre indivíduos e seu
meio ambiente, dos utensílios e vestígios capazes de remeter ao cotidiano das pessoas, seu
modo de vida e de socialização. Com isto, o Patrimônio Cultural tornava-se fonte de
conhecimento e informação, tanto individual quanto coletiva.

Assim, a Educação patrimonial, enquanto processo permanente e sistemático de


trabalho educacional busca, na releitura daquilo que é tradicional, a rede de relações que se
estabelece na vida social e simbólica das pessoas: “os significados que a sua presença
significante provoca e desafia” (BRANDÃO, 1996, p.51).

A partir de 2011, a Educação Patrimonial, numa parceria entre o Instituto do Patrimônio 47


Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e o Ministério da Cultura (MEC), passou a integrar o
macro campo Cultura e Artes, articulando os princípios do Programa Mais Educação com as
diretrizes da política de Educação Patrimonial17.

Esta iniciativa valorizava os diferentes contextos das comunidades culturais do país, e


no intuito de preserva-las o IPHAN passou a mapear essas referências também a partir da
realidade escolar através da elaboração de um inventário pedagógico do patrimônio local a fim
de que os indivíduos pudessem se reconhecer como sujeitos ativos no processo de construção
do seu espaço e no da construção do conhecimento de sua cultura (IPHAN, 2011, p. 33).

Para compreender-se como parte desse patrimônio é necessário que os professores


desenvolvam ações que valorizem o cotidiano, a memória, a percepção e o conhecimento da

16
Maria de Lourdes Parreiras Horta é doutora em Museologia pela Universidade de Leisester, Inglaterra, graduada
em Museologia pela atual Escola de Museologia da UNIRIO; Evelina Grunberg é arquiteta e urbanista pelo
Instituto Metodista Bennett.
17
II Encontro Nacional de Educação Patrimonial, realizado em Ouro Preto, julho de 2011. Cf. FLORENCIO,
Sonia Rampim; CLEROT, Pedro; BEZERRA, Juliana; RAMASOTE, Rodrigo. Educação Patrimonial. Histórico,
Conceitos e processos. Ministério da Educação: DAF-SEDUC, 201[?].
ISSN: 2525-7501
realidade, tanto da zona rural quanto urbana. Nesta perspectiva, as praticas educativas podem
contribuir para a formação de um cidadão comprometido com a realidade em que vive, pois o
objetivo desta metodologia é despertar no educando a atenção para o território e seu entorno.

Neste sentido, amplia-se o conceito de Educação Patrimonial quando se sugere o


diálogo com todos os segmentos sociais, associações e instituições, que neste caso são os
museus.

Capítulo I - O museu como território educativo

O território representa uma variedade de saberes que se definem no cotidiano, nos


investimentos simbólicos, éticos, morais e estéticos que revelam o sentido próprio de sociedade
e por isto não podem ser ignorados pelo saber científico escolar.

A definição de território, apresentada por Coelho (1997, p. 354), relaciona a concepção


de patrimônio cultural com a construção da identidade:
48

O que define o território é um efeito de mundo gerado pela inserção do individuo


ou grupo numa determinada área física. Esse efeito de mundo produz a sensação
de uma relação natural com o território da qual decorre a identidade, mediante a
elaboração linguística, o comportamento cotidiano e as obras de cultura
propriamente dita. Para o autor, essa relação não seria na verdade natural, mas
resultado de uma construção simbólica, de substituição de um signo pelo outro,
uma operação complexa da qual resulta um significado historicamente
determinado. Este significado é localizado ou traduzido em obras de cultura
(monumentos, pintura, objetos preservados em museus, por exemplo), cujo efeito
principal é o efeito de discurso que permite a cada indivíduo ou grupo o
reconhecimento de si mesmo como parte integrante daquele conjunto maior de
signos definidor da identidade.

Portanto, quando o espaço social for percebido como ambiente de aprendizagem,


estaremos reconhecendo as praças, as ruas, os parques, as bibliotecas, os museus, etc., como
espaços não formais de ensino. A colaboração entre instituições educativas, formais e não
ISSN: 2525-7501
formais, passa a ser vetor de aprendizagem para todos os cidadãos e elemento constitutivo da
concepção de uma Cidade Educadora18.

Nesta direção, destacamos a responsabilidade das Instituições de Ensino Superior como


vetores de projetos de integração com a comunidade, instituições de patrimônio e museus. Neste
caso, o papel social da Universidade Federal de Santa Maria está relacionado ao Patrimônio
Cultural, a partir do Museu de Arte Sacra de Santa Maria, não somente buscando a promoção
e a valorização do patrimônio local, mas também a criação de espaços para a formação
educacional e cultural. Isto se pode verificar quando, nos anos de 2007-2010, acadêmicos do
curso de História (Licenciatura/Bacharelado) da UFSM, escolheram aquele Museu para realizar
suas atividades de estágio acadêmico. O resultado deste diálogo entre a universidade e a
comunidade resultou para a UFSM um espaço não formal de atuação do historiador, e para o
museu a oportunidade de melhor organizar suas exposições, uma vez que a equipe desta
instituição era composta por apenas duas pessoas voluntárias.

Através da integração e troca de saberes entre a Universidade e a sociedade, visamos


difundir o significado e o valor do patrimônio cultural, presente não apenas nos aspectos 49
materiais, mas, também, nas praticas, nos ofícios, nos fazeres e saberes, nos valores simbólicos
resultado das relações estabelecidas entre os indivíduos.

O suporte de comunicação escolhido para este propósito é a edição impressa de um livro


didático, que chamaremos de Cartilha, com a qual buscamos possibilitar ao professor e ao aluno
do Ensino Fundamental e Médio, educar o olhar para o significado dos bens patrimoniais. No
dizer de Ramos (2004), a "alfabetização museológica" pode ser realizada a partir do objeto (em
exposição) gerador do conhecimento, pois não seria adequado tratar os elementos daquela
linguagem científica como conceitos prontos e acabados. Ainda, espera-se contribuir para o
reconhecimento do saber nos espaços não formais de aprendizagem, como os Museus, bem
como desenvolver o interesse dos alunos pela pesquisa acadêmica.

A Cartilha está sendo projetada para orientar os trabalhadores de educação no


planejamento de suas aulas de História, que poderão ser desenvolvidas em espaços não formais

18
BRASIL. Ministério da Educação. Educação integral: texto referência para o debate nacional. MEC, Secad:
Brasília, 2009; BRASIL. Ministério da Educação. Gestão Intersetorial no território. MEC, Secad: Brasília, 2009.
ISSN: 2525-7501
de ensino, pois o ensino é mais eficaz quando guiado por princípios e metas. Para tanto, é vital
que o professor conheça o público e os acervos sobre os quais irá ensinar. Os conteúdos
conceituais da Cartilha estarão relacionados ao patrimônio cultural, a partir de artefatos que
serão objeto de problematização de conteúdos históricos no Ensino Fundamental e Médio.

Capitulo II – O Museu de Arte Sacra de Santa Maria

O Museu de Arte Sacra de Santa Maria, criado 95 anos depois da inauguração da matriz
católica, propicia ampliar a teia de significados da religiosidade brasileira.

Está localizado numa sala anexa a Catedral Arquidiocesana, num terreno em declive,
num antigo porão. Antes da reforma do templo, o acesso a ele dava-se por duas entradas: uma
através da escada interna que o ligava à sacristia e, a outra, por uma abertura externa que o
ligava ao pátio da igreja.

O antigo porão de chão batido servia para guardar o vinho da missa e anos antes da
50
terceira reforma da Catedral Diocesana o lugar abrigava entulhos. A escuridão do local impedia
perceber que aquele espaço poderia ter outra utilidade. Mas, o olhar atento da arquiteta Berenice
Jobim, profissional responsável pelas reformas do templo, vislumbrou o aproveitamento
daquele espaço. Seu projetou possibilitou a colocação de novas aberturas para dar mais
luminosidade ao local, a restauração das paredes internas deixando à vista os blocos de pedra
que sustentaram e sustentam a Catedral centenária, revelam a plasticidade dos 70m² do antigo
porão, em forma de semicírculo.

O trabalho dessa reforma resultou para a comunidade um novo espaço cultural: o Museu
de Arte Sacra de Santa Maria, sugestão do professor Humberto Gabbi Zanatta, um dos
incentivadores deste projeto e também promotor da cultura em Santa Maria. Outras pessoas
ligadas à comunidade paroquial se destacaram para efetivação deste projeto: a professora Inês
Cecília Durlo e Cleonice Durlo, que ao longo dos anos guardaram as alfaias sagradas, artefatos
de uso litúrgico que não eram mais usados nas missas, indumentárias, quadros, livros,
estandartes de associações religiosas, dentre outras.
ISSN: 2525-7501
A ideia da criação do museu foi levada ao Conselho Paroquial o qual, à época, era
presidido pelo casal Edison e Marilise da Silva Paz. Este apelo pela preservação do patrimônio
cultural da Igreja católica recebeu a aprovação daquele colegiado e, posteriormente, do Bispo
Dom José Ivo Lorscheiter (1974-2005), bem como da comunidade paroquial.

Mas, para que aqueles artefatos pudessem ser expostos à visitação pública era necessário
que eles passassem por um processo de seleção, higienização, restauração, catalogação,
classificação e pesquisa histórica. Devido à importância deste legado cultural durante quatro
anos consecutivos seus projetos foram aprovados pela Lei de Incentivo a Cultura - LIC
Municipal, com o objetivo de captar recursos para a organização do acervo, uma vez que o
material existente era diversificado e quantitativamente significativo para uma primeira
exposição. Neste primeiro projeto atuaram pessoas voluntárias e profissionais da área de
Arquitetura, História e Artes Plásticas, os quais possibilitaram a futura exposição.

Devido às limitações do espaço para a realização das primeiras tarefas, a recuperação


dos quadros e das obras de artes foi realizada pelo artista plástico Juan Amoretti no seu próprio
atelier, as demais peças foram higienizadas e catalogadas numa mesa improvisada no espaço 51
do museu. Esta tarefa contou com pessoas da comunidade paroquial, como a artista, autodidata,
Sandra Leão Borin. Com a evolução do trabalho de higienização realizado naquele inverno, a
preciosidade e o valor daqueles artefatos revelavam-se dia-a-dia, não somente na sua
materialidade mas, principalmente, pela sua historicidade.

A pesquisa histórica possibilitou determinar a função de cada artefato, seu valor


simbólico, sua origem histórica e a procedência das peças. As informações encontradas foram
adicionadas num banco de dados o qual pode ser acessado por usuários interessados em
pesquisar, não somente sobre o campo religioso, mas, também, sobre os costumes e os valores
de uma época.

Nessa altura do trabalho o Museu contava com um importante patrimônio restaurado e


catalogado, mas faltavam os expositores. Para suprir essa necessidade o novo epíscopo da
Diocese, empossado em 2005, Dom Hélio Adelar Rubert, doou algumas peças de mobiliário
que estavam na sede do edifício da Secretaria do Bispado, já que o mesmo estava prestes a ser
demolido e aquela mobília ainda não tinha um destino definido.
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Além de resolver o problema em relação aos expositores do Museu, esta iniciativa
também enriqueceu o acervo do mesmo pois, todo o mobiliário doado passou a fazer parte do
acervo do Museu devido a sua plasticidade e o seu valor histórico, uma vez que essas peças de
mobiliário datam das décadas de 1920 e 1930, aproximadamente. O resultado do trabalho de
recuperação e de restauração destas, executado pelo marceneiro Rossato, tornou visível a
qualidade das mobílias que foram utilizadas como expositores do acervo, alternativa que
viabilizou a organização da exposição, no dia 08 de dezembro de 2005, dia da festa da padroeira
da Paróquia Catedral, Nossa Senhora da Conceição.

Na solenidade de abertura da exposição fizeram uso da palavra, o pároco e Diretor do


Museu, padre Antônio Bonini; o Prefeito Municipal, Valdeci de Oliveira; o Secretário de
Cultura do Município, professor Humberto Gabbi Zanatta e o Bispo da Diocese de Santa Maria,
Dom Hélio Adelar Rubert. Junto à comunidade estavam presentes nesta solenidade, outras
autoridades eclesiásticas locais: Dom José Ivo Lorscheider, Bispo Emérito, e o padre Edu
Erabany de Pádua, Chanceler do Bispado.

Nos anos subsequentes, de 2006 a 2008, foram aprovados novos projetos através da LIC 52
Municipal que resultaram em novas exposições às quais despertaram o interesse da população
santa-mariense e da comunidade paroquial em doar novos objetos ao Museu, inclusive
sacerdotes o fizeram.

As exposições do Museu não foram arranjadas de forma a montar uma narrativa


histórica junto às peças, pois, o “porão”, como uma primeira seção do Museu de Arte Sacra de
Santa Maria não comporta muitas informações textuais devido à restrição do espaço físico. As
peças em exposição foram selecionadas pelo seu valor histórico-temporal e artístico e foram
identificadas com informações específicas do artefato.

Mediante o acervo que compõe o Museu de Arte Sacra de Santa Maria pode-se
identificar os seguintes temas do acervo: às expressões da religiosidade popular, artefatos do
ofício de sacerdote, objetos litúrgicos e alfaias sagradas.

Aqui destacamos, por exemplo, a escrivaninha que pertenceu ao primeiro bispo de Santa
Maria, Dom Miguel de Lima Valverde, que governou essa Diocese católica de 1912 a 1922. O
estudo dos traços da materialidade desse artefato permite uma “leitura”, não somente do estilo
ISSN: 2525-7501
de uma época, das técnicas de trabalho, da qualidade da madeira usada na execução do
mobiliário como, também, permite decifrar outros significados através da narrativa que pode
ser encontrada a partir do artefato, já que ele pode conter um duplo significado, para além do
sentido estático que caracteriza os bens culturais. Se as peças do acervo de museus “classificam
as pessoas e geram critérios e condições para as relações sociais” elas são também entendidas
como “produto e vetor de relações sociais”19. Neste caso, podemos dizer que esta escrivaninha,
como uma peça de mobiliário, pode ser entendida através das diferentes narrativas que
permeiam a história da Igreja católica na cidade. O valor da escrivaninha, então, não ficaria
restrito à sua funcionalidade. O entalhe da insígnia do episcopado de Dom Miguel de Lima
Valverde executado no frontal do móvel, por exemplo, lembra seu lema enquanto bispo e a
hegemonia da Igreja romana, instituição que sustentava as ações em prol do catolicismo na
cidade. Ainda, remetendo-nos às práticas sociais desse sujeito na história eclesiástica local,
podemos relacionar este artefato aos seus atos administrativos dando, assim, outro significado
a esta peça de mobiliário.

53

Ilustração 1: Escrivaninha em madeira que pertenceu a D. Miguel de Lima Valverde, primeiro bispo que
governou a Diocese de Santa Maria, Rio Grande do Sul, de 1912 a 1922. O brasão do epíscopo foi talhado
na parte superior da mobília e representa o lema do seu episcopado:
“Quis ut Deus”, (quem como Deus?).

Para “ler” esta escrivaninha, neste “lugar da memória”20, como um vestígio, um


testemunho, um documento, precisamos levar em consideração as ações do jovem bispo e o

19
MENESES, Ulpiano Bezerra de. Museus históricos: da celebração à consciência histórica. São Paulo: Museu
Paulista, 2000, p. 7-9.
20
Para Nora a história está presente onde não há mais as “sociedades-memória”, quando a tradição é suplantada
pela modernização resultando então nos “lugares da memória”: museus, arquivos, cemitérios, monumentos,
ISSN: 2525-7501
contexto histórico da época. Com isso, a exposição de um artefato num Museu pode, “mudar a
perspectiva de análise a respeito do mesmo, daquela do seu lugar de origem”, o objeto poderá
ter outros significados para o museu e para a sociedade (RAMOS, 2000)21.

Um episódio que podemos associar ao epíscopo que, a esse artefato estava sujeito, é a
celebração de um importante e polêmico acontecimento na cidade: a comemoração do primeiro
centenário de Santa Maria, em 1914.

Assim, utilizando-nos dos estudos de Le Goff (1992, p. 473), podemos dizer que essa
comemoração, como “lugar simbólico” da memória coletiva, pode ter contribuído para a
“manipulação” da construção da memória da cidade, à época. Esse episódio, juntamente com
outras demandas administrativas do episcopado de Dom Miguel de Lima Valverde, confere
àquele objeto do acervo um novo significado, outro valor simbólico que está relacionado às
iniciativas desse epíscopo em torno da afirmação do catolicismo em Santa Maria, numa época
de disputa com outros agentes sociais da cidade por diferentes espaços do sagrado22. Isso
significa que, nessa busca pela memória histórica, “nós nos sentimos obrigados a acumular
religiosamente vestígios, testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais visíveis do que 54
foi” e, nesse caso, a escrivaninha como documento pode remeter a diferentes interpretações
23

sobre uma mesma época, bem como os demais artefatos do Museu.

Nessa perspectiva, com as diferentes narrativas históricas esse e outros artefatos do


Museu passam a compor uma rede de significados para além da sua materialidade, pois,
entende-se que, no seu conjunto, os objetos deste acervo também testemunham as tensões, os
conflitos sociais e a cultura de uma época, cujo valor simbólico precisa ser constantemente
analisado pois, a materialidade dos objetos podem contribuir para novas análises da memória
da cidade.

santuários, associações, festas e coleções para os quais é necessário criar espaços. Cf. NORA, Pierre. Entre a
memória e a história: a problemática dos lugares. In: Revista de estudos históricos 9, Rio de Janeiro: Vértice, 1993,
p. 13.
21
RAMOS, Eloísa Capovilla da Luz, Eloísa Capovilla da Luz. Os museus da imigração e seus acervos: um campo
para o estudo da história. IX Reunião da ANPUH/ RS, Porto Alegre, UFRGS, jul. 2008 (texto impresso).
22
BORIN, Marta Rosa. “A Medianeira nos salvou!” Tensão e conflito no campo religioso de Santa Maria. Anais
das Primeiras Jornadas de Religión y Sociedad en la Argentina Contemporánea y Países del Cono Sur –
RELIGAR-SUR. Universidade de Buenos Aires - UBA, Buenos Aires, jun. 2009.
23
NORA, op. cit. p.15.
ISSN: 2525-7501
Deste modo, os elementos que, por ora, compõem o acervo do Museu de Arte Sacra de
Santa Maria reportam também a historicidade religiosa e cultural da cidade que, com diferentes
pontos de vista, apreendidos de múltiplas maneiras, podem remeter a mutações do campo
religioso e cultural e apontar para uma sociedade heterogênea, às vezes, em conflito devido à
ampla teia de relações dos agentes sociais que compunham o cenário da Santa Maria do
primeiro quartel do século XX, como os sacerdotes, os políticos e os populares.

Um exemplo do que apontamos, pode ser verificado nos artefatos que pertenceram ao
bispo Dom Antônio Reis e compõem a exposição no Museu. Esse epíscopo quando governou
a diocese de Santa Maria (1930-1960) estreitou as relações da Igreja católica com o governo de
Getúlio Vargas pois, combateram um inimigo comum: o comunismo. A presença de Flores da
Cunha, como paraninfo na cerimônia de posse do bispo, em Porto Alegre, atesta o que
afirmamos. O Interventor Federal representava, naquele momento, o apoio do Estado à Igreja
e vice-versa, cuja importância dessa relação pode ser verificada na imprensa local, quando
registrou a posse do bispo e a sua chegada à cidade.

55

Ilustração 2 - D. Antônio Reis desfilando em carro aberto com autoridades civis e militares, na atual
Avenida Rio Branco de Santa Maria.
(Fonte: Acervo Fotográfico Museu Sacro de Santa Maria).

Nessa perspectiva, a historicidade dos artefatos do museu está relacionada aos agentes
sociais que estavam sujeito àqueles artefatos. Caberá, então, ao pesquisador exercer esta ponte
entre o patrimônio e a sociedade, entre o objeto e os agentes sociais, cumprindo assim a função
do museu, de comunicador da cultura, dos valores de uma época. Assim, podemos justificar,
minimamente, a importância do ensino de História a partir de espaços não formais, como os
museus.
ISSN: 2525-7501

CONCLUSÃO

A aprendizagem no museu é um processo no qual os visitantes participam ativamente,


mas os significados desta aprendizagem são individuais e fazem parte de um processo em
permanente construção, pois os questionamentos permitem prolongar a curiosidade do
observador e desenvolver conceitos.

É necessário que o educador trabalhe como em sala de aula, com recortes temáticos,
estabelecendo relações entre o passado e o presente, sem negligenciar a temporalidade e as
ideias que os objetos comportam, pois estes não devem ficar reduzidos à sua classificação. A
função das peças é dar pistas sobre o passado, pois as ideias que os artefatos da exposição
transmitem são resultado do diálogo com outros objetos, conceitos, memórias, significados,
história e função social. Mas, o modo de olhar, de “ler” a exposição, depende do background
do visitante, do aluno, do que ele conhece.

Para fazer a mediação entre o conhecimento cientifico e o escolar, e diminuir a distância


56
entre a educação escolar e o cotidiano dos alunos, o professor encontrará na Cartilha, ora
proposta, sugestões de estratégias pedagógicas para avaliar o que o educando entende por
patrimônio cultural, poderá também inserir novos conteúdos pautados no fortalecimento das
referências culturais. Pois, preservar a memória de um grupo social é mais que agrupar
informações (da memória individual ou coletiva), sua funcionalidade principal é contribuir para
que a história de um grupo não seja esquecida.

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O PODER PÚBLICO DO MUNICÍPIO DE SANTO AUGUSTO/RS E A
MANUTENÇÃO E CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL –
PRESERVAÇÃO E MEMÓRIA DO CEMITÉRIO DOS DEGOLADOS*24

Leônidas Luiz Rubiano de Assunção**25

RESUMO
O presente trabalho discute o papel das ações e narrativas emanadas pelo poder público, em
âmbito municipal, bem como a sua influência na construção e na manutenção da simbologia do
patrimônio cultural na sociedade. O trabalho aqui apresentado é baseado em uma pesquisa
dívida em três partes, sendo a primeira voltada para a análise do processo de preservação,
manutenção e construção do patrimônio histórico nas esferas federal, estadual e municipal,
buscando expressar e divulgar informações sobre os instrumentos, processos e trâmites que
viabilizam o tombo do patrimônio histórico. A segunda parte desta pesquisa busca a localização
histórica bem como a percepção social do conflito armado ocorrido no ano de 1923 no Estado
do Rio Grande do Sul, intitulado como Revolução Libertadora, em que lutaram, de um lado, os
partidários do presidente do Estado, Borges de Medeiros (chimangos) e, de outro lado, os
revolucionários aliados a Joaquim Francisco de Assis Brasil (maragatos), sendo que o foco da
59
pesquisa é a batalha ocorrida aos arredores do município de Santo Augusto/RS, batalha esta
que resultou em diversas mortes, e que, conforme o Professor, Historiador e Escritor Odilon
Gomes de Oliveira, dentre os abatidos, oito foram degolados e enterrados no local hoje
chamado Cemitério dos Degolados. Por fim, a última parte deste trabalho trata sobre
retrospectiva histórica do processo de criação do local, hoje marco histórico do município,
situado as margens da RS 155, criado através da Lei Municipal nº 844 de 25 de maio de 1989,
demonstrando as articulações sociais e políticas que motivaram ao poder público tal ato.
Palavras-chave: memorial, cemitério, degolados.

INTRODUÇÃO

O Patrimônio Cultural é o conjunto de bens materiais e imateriais que narram a história


de um povo por meio de seus costumes, religiões, arte, lendas e danças. Já o Patrimônio

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Licenciado em História, Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ ,
Instituto Federal Farroupilha Campus Santo Augusto, leonidasassuncao@hotmail.com.
ISSN: 2525-7501
Histórico faz referência a história de uma geração por meio de sua arquitetura, obras, objetos,
documentos e utensílios.

A Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural é importante para compreensão e


conscientização dos indivíduos sobre sua própria história. Sabe-se que com a preservação do
patrimônio é possível alcançar uma melhoria na qualidade de vida da sociedade. Afinal, a
sociedade é a verdadeira responsável pela guarda e manutenção dos seus valores patrimoniais.

Por pertencer a sociedade, percebe-se a importância do Poder Público em criar leis,


regras, e diretrizes para manutenção deste patrimônio. Afinal, o Poder Público representa o
povo como assim preceitua o artigo 1º da Constituição Federal do Brasil: “Todo poder emana
do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos desta
Constituição”.

Torna-se evidente que a preservação do patrimônio é uma atribuição conjunta entre a


sociedade e o poder público. Para tornar com efeito essa atribuição, o poder público organizou

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instituições para agir nas esferas federal, estadual e municipal, cada qual com sua própria
organização, limitação e diretrizes. Restando a sociedade a provocação do Poder Público quanto
aos seus pleitos de tombamento e preservação.

Muitas vezes os pleitos de tombamento e preservação apresentados fazem referência a


preservação de bens patrimoniais que de certa forma se mostram “bem vistos”, isto é, costumes,
documentos, cultura, obras, objetos, etc. Mas em outras ocasiões, o pleito da sociedade é pela
preservação de memórias marcantes, com uma forte história de ações violentas como: guerras,
batalhas, revoluções e revoltas.

O presente trabalho busca discutir o papel das ações e narrativas emanadas pelo poder
público, em âmbito municipal, bem como a sua influência na construção e na manutenção da
simbologia do patrimônio cultural na sociedade.

O desenvolvimento deste trabalho é baseado em uma pesquisa dívida em três partes,


sendo a primeira voltada para a análise do processo de preservação, manutenção e construção
do patrimônio histórico nas esferas federal, estadual e municipal, buscando expressar e divulgar
ISSN: 2525-7501
informações sobre os instrumentos, processos e trâmites que viabilizam o tombo do patrimônio
histórico.

A segunda parte desta pesquisa busca a localização histórica bem como a percepção
social do conflito armado ocorrido no ano de 1923 no Estado do Rio Grande do Sul, intitulado
como Revolução Libertadora, em que lutaram, de um lado, os partidários do presidente do
Estado, Borges de Medeiros (chimangos) e, de outro lado, os revolucionários aliados a Joaquim
Francisco de Assis Brasil (maragatos), sendo que o foco da pesquisa é a batalha ocorrida aos
arredores do município de Santo Augusto/RS, batalha esta que resultou em diversas mortes, e
que, conforme o Professor, Historiador e Escritor Odilon Gomes de Oliveira, dentre os
abatidos, oito foram degolados e enterrados no local hoje chamado Cemitério dos Degolados.

Por fim, a última parte deste trabalho trata sobre retrospectiva histórica do processo de
criação do local, hoje patrimônio histórico do município, situado as margens da RS 155, através
da Lei Municipal nº 844 de 25 de maio de 1989, demonstrando as articulações sociais e políticas
que motivaram ao poder público tal ato.

1. Capítulo I – Poder Público e o Patrimônio Histórico e Cultural


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O Patrimônio Histórico e Cultural é a materialização dos bens, direitos, histórias e ações
que marcaram a presença de um indivíduo ou povo na história da humanidade. Patrimônio é
tudo aquilo que nos pertence, é a herança do passado bem como as o que fazemos no presente.

De acordo com Gonçalves (GONÇALVES, 2002, p. 121) “os patrimônios culturais são
estratégias por meio das quais grupos sociais e indivíduos narram sua memória e sua identidade,
buscando para elas um lugar público de reconhecimento”. Este reconhecimento citado por
Gonçalves mostra que a proteção do patrimônio cultural deve ser valorizado pois este “bem”
não é de propriedade de um único indivíduo mas um verdadeiro bem público.

Por isso o Poder Público tem papel central na condução do processo de escolha,
preservação e uso do patrimônio cultural. De acordo com a Constituição Federal do Brasil
(BRASIL, 1984), inciso VII, artigo 24, legislar sobre a “proteção ao patrimônio histórico,
cultural, turístico e paisagístico” compete concorrentemente “à União, aos estados e ao Distrito
Federal”.
ISSN: 2525-7501
Em âmbito federal, cabe ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
IPHAN, promover e coordenar o processo de preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro
para fortalecer identidades, garantir o direito à memória e contribuir para o desenvolvimento
socioeconômico do Brasil. De acordo com às informações disponibilizadas no endereço
eletrônico: http://portal.iphan.gov.br/, o processo para tombamento de bem ocorre da seguinte
maneira:

“O tombamento é o instrumento de reconhecimento e proteção do patrimônio


cultural mais conhecido, e pode ser feito pela administração federal, estadual e
municipal. Em âmbito federal, o tombamento foi instituído pelo Decreto-Lei nº 25, de
30 de novembro de 1937, o primeiro instrumento legal de proteção do Patrimônio
Cultural Brasileiro e o primeiro das Américas, e cujos preceitos fundamentais se
mantêm atuais e em uso até os nossos dias.
De acordo com o Decreto, o Patrimônio Cultural é definido como um conjunto de
bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação é de interesse público,
quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu
excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. São também
sujeitos a tombamento os monumentos naturais, sítios e paisagens que importe
conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza
ou criados pela indústria humana.
A palavra tombo, significando registro, começou a ser empregada pelo Arquivo

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Nacional Português, fundado por D. Fernando, em 1375, e originalmente instalado
em uma das torres da muralha que protegia a cidade de Lisboa. Com o passar do
tempo, o local passou a ser chamado de Torre do Tombo. Ali eram guardados os livros
de registros especiais ou livros do tombo. No Brasil, como uma deferência, o Decreto-
Lei adotou tais expressões para que todo o bem material passível de acautelamento,
por meio do ato administrativo do tombamento, seja inscrito no Livro do Tombo
correspondente.
Responsabilidade e fiscalização - Qualquer pessoa física ou jurídica poderá solicitar
o tombamento de qualquer bem ao Iphan, bastando, para tanto, encaminhar
correspondência à Superintendência do Iphan em seu Estado, à Presidência do Iphan,
ou ao Ministério da Cultura. Para ser tombado, o bem passa por um processo
administrativo que analisa sua importância em âmbito nacional e, posteriormente, o
bem é inscrito em um ou mais Livros do Tombo. Os bens tombados estão sujeitos à
fiscalização realizada pelo Instituto para verificar suas condições de conservação, e
qualquer intervenção nesses bens deve ser previamente autorizada.
Sob a tutela do Iphan, os bens tombados se subdividem em bens móveis e imóveis,
entre os quais estão conjuntos urbanos, edificações, coleções e acervos, equipamentos
urbanos e de infraestrutura, paisagens, ruínas, jardins e parques históricos, terreiros e
sítios arqueológicos. O objetivo do tombamento de um bem cultural é impedir sua
destruição ou mutilação, mantendo-o preservado para as gerações futuras. ”

Quanto ao âmbito estadual, neste caso o Estado do Rio Grande do Sul, cabe ao Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado – IPHAE as ações de tombamento bem como a
organização, orientação e produção de diretrizes para intervenção nas áreas de tombo. O IPHAE
realiza ainda convênios e parcerias junto aos municípios do Estado com o intuito de auxiliar na
implementação de leis.
ISSN: 2525-7501
O IPHAE disponibiliza em seu site institucional (http://www.iphae.rs.gov.br/) a relação
dos documentos básicos para pedidos de tombamento e diretrizes. Dentre as diretrizes
apresentadas no documento disponibilizado destaca-se:

“O IPHAE - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado, na avaliação para


o tombamento de um patrimônio, estabeleceu algumas diretrizes. A proposição para
tombamento de um bem deve estar acompanhada de uma justificativa e obedecer as
seguintes condições:
- Ter comprovada relevância em nível estadual;
- Ter alta significância para a sociedade onde está inserido possuindo tombamento
municipal, federal ou outra forma de proteção; ”

Satisfeitas as condições, o interessado deverá desenvolver um estudo que será enviado


a SEDAC/IPHAE. Este estudo ira auxiliar o IPHAE na avaliação do bem quanto aos critérios
de valoração do patrimônio cultural.

Em âmbito municipal, a preservação do patrimônio histórico e cultural compete ao


município de Santo Augusto/RS, conforme pode ser visto no artigo 8º, inciso X da Lei Orgânica
do Município de Santo Augusto/RS (2008):

Art. 8º Compete ao Município:


63
(...)
X – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observadas a
legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual;

Cabe também ao município a adequação aos currículos escolares quanto as


peculiaridades do município e a valorização de sua cultura e patrimônio histórico, conforme
artigo 100º da Lei Orgânica Municipal: “Art. 100. Os currículos escolares serão adequados às
peculiaridades do município e valorizarão sua cultura e seu patrimônio histórico, artístico,
cultural e ambiental”.

Referenciando a responsabilidade do Estado, da população e do município, a Lei


Orgânica também prevê que é competência destes dar acesso ao patrimônio cultural natural do
município:

Art. 109. Compete ainda ao Município, com a colaboração da comunidade, e


articulado com o Estado:
(...)
V – dar acesso ao patrimônio cultural natural do Município, aos bens materiais e
imateriais portadores de referências à identidade, à ação e à memória dos grupos
ISSN: 2525-7501
formadores da comunidade, incluindo-se dentre estes bens: a) a expressão; b) o fazer,
o criar e o viver; c) as criações artísticas; d) a ciência; e) a tecnologia; f) as obras,
objetos, monumentos naturais e paisagens, documentos, edifica- ções e demais
espaços públicos e privados destinados às manifestações políticas, artísticas e
culturais.

De acordo com as informações prestadas pela Prefeitura Municipal através da Secretaria


Municipal de Comércio, Industria e Turismo – SICUMTUR as tratativas para tombamento
deverão ser dirigidas a Câmera de Vereadores.

Observa-se que a proteção do patrimônio histórico e cultural acontece através da


articulação das esferas: federal, estadual e municipal, cada uma agindo dentro de suas
limitações e competências. Nisto, torna-se de grande importância a articulação da sociedade
junto as esferas administrativas, afinal, o poder público pode ser provocado para buscar a
preservação do patrimônio histórico e cultural.

Capitulo II – A Revolução de 1923

Conforme registra o Jornal Correio do Povo a Revolução de 1923, ocorrida no Rio


Grande do Sul foi um conflito armado entre as elites estaduais. De um lado estavam os
partidários do presidente do Estado, Borges de Medeiros – os Chimangos e, do outro lado os
64
aliados a Joaquim Francisco de Assis Brasil – os Maragatos.

O conflito se deflagrou após as eleições para presidente estadual no ano de 1922. A


frente única formada pelos oposicionistas designou Joaquim Francisco de Assis Brasil como
candidato para concorrer contra Borges de Medeiros. As eleições ocorreram, tendo sido Borges
de Medeiros decretado como vencedor.

A luta armada ocorreu em diversas localidades do território estadual através da liderança


de chefes políticos e militares que possuíam contingentes armados. Maestri (2010) ratifica tal
afirmação: “Em abril, diversos focos insurgentes libertadores, sem direção centralizada,
surgiam em praticamente todo o Rio Grande, organizados em colunas de setecentos a 1.800
homens”.

Conforme Maestri (2010) em dezembro de 1923, a revolução foi pacificada com a


assinatura do Pacto de Pedras Altas na residência de Assis Brasil, no castelo da Granja de Pedras
Altas. Pelo pacto, Borges de Medeiros pôde permanecer até o final do mandato em 1928. Mas,
ISSN: 2525-7501
a partir de então, não haveria mais reeleição para a presidência do estado e para cargos
executivos dos municípios. O acordo também trazia condições de interesse para os opositores:

“O acordo determinava, igualmente, que o vice-presidente seria eleito e restringiu-se


significativamente a possibilidade de intervenção nos municípios. No mínimo, a
oposição ocuparia seis cadeiras na Assembleia dos Representantes e cinco, no
Congresso Nacional. Nas eleições para a Câmara Federal, realizada poucos meses
após o fim do conflito, os ‘’1oposicionistas tiveram sete deputados reconhecidos. Para
o Senado, o candidato republicano obteve quase oitenta mil votos e Assis Brasil,
pouco mais do que quarenta, sugerindo, por um lado, que o PRR era majoritário e
hegemônico no estado e, por outro, que as eleições de 1922 haviam sido realmente
fraudadas”

De acordo com a obra do Professor Odilon Gomes de Oliveira – Santo Augusto 1815/20
até 1940, haviam grupos de pessoas, os chamados “piquetes”, que se formavam em toda parta
do Estado. Os piquetes que regem a história dos fatos que antecederam ao Cemitério dos
Degolados foram: do Cardoso (Carlos Cardoso), dos Marianos, dos Miquelinos, pelo lado
Maragato e do Major Câncio de Campo Novo ao qual estava subordinado o grupo dos Lifonsos
(Ildefonso A. de Mello), pelos Chimangos. Ao dito popular, os piquetes eram chamados: “a
gente do Cardoso” e “a gente do Major Câncio”.

Seguindo os relatos do autor, da cidade de Santo Ângelo saiu um grupo militar do 3º


65
Provisório, sob o comando de Tarquino de Oliveira, para reforçar o piquete do Major Câncio
na cidade de Campo Novo. No percurso entre Inhacorá e a Fazenda Monte Alvão esta força se
encontrou com um grupo de recrutadores companheiros de Cardoso que estavam recrutando
para Leonel Rocha de Palmeira. O encontro resultou em combate e após os sobreviventes
Maragatos agruparam-se com Cardoso.

Carlos Cardoso na companhia de João Dentista, João Rufino e outros, foram até o
Bolicho do Bririva na localidade de Portão Velho quando lá avistaram as forças de Tarquino de
Oliveira. Tal encontro resultou em combate, deixando seis mortos (incluindo João Dentista e
João Rufino) e muitos feridos na ala do Cardoso. Já do lado dos Chimangos houveram vários
feridos, mas sem perda de vidas.

Entre os homens de Tarquino de Oliveira estava o Tenente Froylan Rolim e no grupo


do Cardoso, seu irmão, Jovino Rolim. Jovino Rolim foi ferido durante o combate e capturado
pelos Chimangos os quais, após reunião, decidiram o destino dos prisioneiros. Como eram dois
prisioneiros ainda vivos, foi decidido que um seria degolado (mesmo destino tiveram os demais
ISSN: 2525-7501
mortos pelo lado do Cardoso), como o outro era irmão do Tenente Froylan Rolim, este foi
consultado sobre o destino do seu irmão, e nas palavras registradas pelo autor segue a frase dita
pelo Tenente: “- É inimigo, tem o mesmo destino dos outros. ”

Os mortos foram sepultados pelas pessoas da vizinhança, em geral por mulheres e


criança já que os homens estavam ou na revolução ou escondidos nos matos. Para sepultar os
degolados, aproveitaram a vala de um carreiro que tinha sido alargada pelo Tio Castro, na qual
puseram os oito mortos, sem caixão, velório ou outra formalidade que não o Terço das
Excelências.

Capitulo III – Marco Histórico do Cemitério dos Degolados

De acordo os registros constantes nos arquivos municipais, o Movimento


Tradicionalista Gaúcho – MTG e o Centro de Tradições Gaúchas – CTG Pompilio Silva (sendo
o último do município de Santo Augusto/RS) iniciaram as tratativas junto a Prefeitura
Municipal quanto a preservação do Cemitério dos Degolados no ano de 1980. Em 1989 o local

66
foi transformado em Marco Histórico através da Lei nº 844 de 25 de maio de 1989.

A primeira revitalização do local se iniciou em 30 de dezembro de 1999 a pedido do


Professor Odilom Gomes de Oliveira e em 2005 o Cemitério foi considerado como Ponto
Turístico através da Lei nº 192, de 08 de maio de 2005.

A segunda revitalização teve início em 2013 quando da elaboração dos projetos de


engenharia. Em 02 de outubro de 2014 as Secretarias de Planejamento e de Turismo iniciaram
os tramites para realização da licitação para contratação do serviço de revitalização através da
Tomada de Preços nº 15/2014.

Em 29 de janeiro de 2015 foi inaugurado o memorial dos degolados. Conforme consta


nos arquivos, o objetivo da revitalização é o de avivar a memória de que uma revolução sempre
leva a desordem e a insegurança para o povo. Já o objetivo do memorial é o de lembrar aos
homens que é possível encontrar soluções para quaisquer problemas por caminhos que não
sejam, necessariamente, por meio do conflito armado.

O projeto de revitalização elencou os seguintes serviços: revitalização de mureta e cerca,


instalação de 6 painéis contendo a história do cemitério, pórtico de acesso, pavimentação,
ISSN: 2525-7501
canalização, ajardinamento, realocação de lápides e cruzes, por fim, a demarcação da vala onde
foram enterrados os combatentes.

Conforme informação prestada pela SICUMTUR, cabe a Prefeitura Municipal, em


consonante com a sociedade, a preservação e manutenção do Cemitério dos Degolados.

CONCLUSÃO

Como foi possível observar, a preservação do patrimônio histórico e cultura é atribuição


tanto da sociedade quanto do poder público. Fica evidente a distribuição de responsabilidades
através das esferas: federal, estadual e municipal, cada uma devidamente organizada através de
suas próprias legislações e diretrizes.

A busca pela contextualização da Revolução de 1923 ocorrida no Rio Grande do Sul


mostrou seu reflexo no cotidiano da população tanto nas grandes como nas pequenas cidades.
Inclusive foi marcada na história do município de Santo Augusto/RS com a transformação do
Cemitério dos Degolados em Marco Histórico e Ponto Turístico. 67
Por isso tudo, percebe-se a importância de se preservar a memória e a história de um
povo como forma de se lutar por uma sociedade que valorize os elementos que a moldaram no
passado ao mesmo tempo que a alerte do resultado de suas ações no presente e no futuro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1998. Brasília: Senado Federal,


1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.
Acesso em: 20 jul. 2016.

BRASIL. Ministério da Cultura. Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.


IPHAN. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=10&sigla=Institucional&re
torno=paginaIphan>. Acesso em: 20 jul. 2016.
ISSN: 2525-7501
GONÇALVES, J. R. S. Monumentalidade e cotidiano: Os patrimônios culturais como gênero
de discurso. In: OLIVEIRA, L. L. (org.). Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2002. p. 108-123.

MAESTRI, Mário. Breve História do Rio Grande do Sul: da pré-história aos dias atuais.
Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2010.

OLIVEIRA, Odilon Gomes de. Santo Augusto-RS; 1815/20 até 1940. Porto Alegre: Ed.
EVANGRAF, 2000.

Revolução, tempo de ideias e de sangue. Correio do Povo. Porto Alegre. Disponível em:

<http://www.cpovo.net/jornal/especiais/cpespecial/html/ECONOMIA.HTM> Acesso em 28
de ago. 2016.

RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Estado da Cultura/Sedac. Instituto do Patrimônio


Histórico e Artístico do Estado. IPHAE. Disponível em: <http://www.iphae.rs.gov.br/>. Acesso
em: 28 ago. 2016.
68
SANTO AUGUSTO/RS. Lei Orgânica do Município de Santo Augusto/RS. Santo
Augusto/RS. 2008.

SANTO AUGUSTO/RS. Secretaria Municipal de Comércio, Industria e Turismo –


SICUMTUR. Arquivos da Revitalização do Cemitério dos Degolados. Acesso em: 29 set.
2016.
ISSN: 2525-7501
MUITAS HISTÓRIAS PARA CONTAR: O PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL
BRASILEIRO*26

Mônica da Silva Pereira**27

RESUMO

O Patrimônio Cultural é um reflexo da sociedade, são suas histórias, ritos, monumentos e


hábitos que de alguma maneira representam ou tem algum significado para uma comunidade,
é um legado passado de geração à geração. Este artigo tem como objetivo traçar um breve
panorama de como o Patrimônio Imaterial Brasileiro vem sendo tratado no período de 2000 à
2015. Quais resoluções foram criadas, quantos bens foram registrados, quantos foram
inventariados e como as diretrizes do decreto nº 3.551 vem sendo conduzidas. Para estruturar
este estudo consultou-se a base de dados do IPHAN e do Senado Federal e se percorreu os
estudos de Cecília Londres, Márcia Sant’Anna, Regina Abreu, Mario Chagas, Ruben Oliven e
Laurent Lévi-Strauss que tratam da trajetória e do que é o patrimônio cultural imaterial
brasileiro por diversas perspectivas proporcionando uma reflexão ampla e uma análise mais
sólida das normativas e resolução que foram desenvolvidas a partir do decreto 3551/2000. Tal
reflexão vai embasar uma discussão sobre os rumos do Programa Nacional de Patrimônio
Imaterial. 69
Palavras-chave: Patrimônio Imaterial, Inventário, Legislação.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural, Patrimônio Imaterial, Cultura.

INTRODUÇÃO

Em novembro de 1997, quase uma década depois da publicação da Constituição


Federal, por ocasião de um seminário comemorativo dos sessenta anos de funcionamento do
IPHAN realizado na capital cearense, foi confeccionado um documento denominado Carta de
Fortaleza, o qual recomendava, urgentemente, estudos para a criação do registro como forma
de proteção do patrimônio cultural imaterial (BRASIL, 2000, p.12).

Laurent Lévi-Strauss, na qualidade de representante da UNESCO, que participou do


seminário que elaborou a Carta de Fortaleza, contribuindo também com algumas sugestões na
confecção do Decreto 3551/2000. Este autor cita em artigo publicado que:

26
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa
Maria.
27
** Bacharel em Produção Cultural pela UFF, e-mail: monica100ph@hotmail.com
ISSN: 2525-7501
“O novo decreto sobre bens culturais imateriais do Brasil e o programa nacional para
sua salvaguarda respondem, por conseguinte, às prioridades da UNESCO, mas são
também notáveis por vários outros fatores. De início, pela rapidez e seriedade com
que o decreto foi preparado. Resultante da Carta de Fortaleza, adotada em novembro
de 1997 como recomendação de um seminário internacional de alto nível, os trabalhos
que o fundamentaram se desenrolaram em menos de três anos, graças às orientações
estabelecidas pela comissão criada em março de 1998, [...] mas também graças ao
dinamismo incansável do grupo de trabalho [...].” (LÉVI-STRAUSS, 2001, p.26)

O Ministério da Cultura, a partir da recomendação dos signatários da Carta de Fortaleza,


instituiu através da Portaria nº 37/98, uma comissão assessorada por um grupo de trabalho “com
a finalidade de elaborar proposta visando o estabelecimento de critérios, normas e formas de
acautelamento do patrimônio imaterial brasileiro”.

Após várias reuniões e colaborações de especialistas, chegou-se à versão final do


Decreto 3551/2000 que trata de; “Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial
que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio
Imaterial e dá outras providências”.

O Decreto 3551/2000, compreende o patrimônio cultural imaterial brasileiro como os


saberes, os ofícios, as festas, os rituais, as expressões artísticas e lúdicas, que, integrados à vida
70
dos diferentes grupos sociais, configuram-se como referências identitárias na visão dos próprios
grupos que as praticam. (CAVALCANTI & FONSECA, 2008, p. 12)

Nessa corrente rumo à preservação da diversidade, a UNESCO aprova a Convenção


para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, em 17 de outubro de 2003, e define
patrimônio cultural imaterial como:

“[…] as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com


os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhe são associados - que as
comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte
integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se
transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e
grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história,
gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para
promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.” (UNESCO,
2006).

Dessa forma, vê-se que o instituto do registro, regulamentado através do Decreto


3551/2000, foi criado em consonância com as diretrizes da UNESCO, dentro das discussões do
contexto internacional, sendo, ainda, discutido e pensado pelos intelectuais da cultura brasileira.
ISSN: 2525-7501
O conjunto de políticas voltadas para o patrimônio cultural imaterial tem como
principais instrumentos o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI), o Inventário
Nacional de Referências Culturais (INRC), o Registro e os Planos de Salvaguarda.

Com a criação do Programa Nacional de Patrimônio Imaterial que tem como objetivo a
implementação de políticas específicas, o decreto instituiu dois mecanismos de valorização dos
chamados aspectos imateriais do patrimônio cultural: o inventário dos bens culturais imateriais
e o registro daqueles considerados merecedores de uma distinção por parte do Estado.

O Inventário Nacional de Referência Cultural (INRC) do IPHAN é o meio de


instrumentalização previsto na lei que institui o programa e é peça fundamental para que se
possa instruir o Registro do bem de natureza imaterial. O Inventário Nacional de Referências
Culturais (INRC) é um instrumento de identificação fechado, composto por extensos
questionários, que objetiva “identificar, documentar e registrar sistematicamente os bens
culturais expressivos da diversidade cultural brasileira” (IPHAN, 2000, p. 23).

71
O INRC é uma metodologia de pesquisa de caráter etnográfica, descritiva, que tem
como objetivo produzir conhecimento de um dado bem imaterial para registro.

Segundo Cecília Londres falar em referências culturais nesse caso significa, dirigir o
olhar para representações que configuram uma “identidade” da região para seus habitantes, e
que remetem à paisagem, às edificações e objetos, aos “fazeres” e “saberes”, às crenças, hábitos,
etc.(IPHAN, 2000, p. 14)

O registro é uma forma de reconhecimento e busca a valorização desse patrimônio


imaterial com o qual, o Estado assumiu um compromisso. O registro é etapa posterior ao
inventário. Documentar, produzir conhecimento e apoiar a dinâmica dessas práticas
socioculturais são algumas ações de acautelamento e salvaguarda de bens já registrados. Na
visão do IPHAN, o registro:

“[...] corresponde à identificação e à produção de conhecimento sobre o bem


cultural. Isso significa documentar, pelos meios técnicos mais adequados, o
passado e o presente da manifestação e suas diferentes versões, tornando essas
informações amplamente acessíveis ao público – mediante a utilização dos
recursos proporcionados pelas novas tecnologias de informação.” (IPHAN,
2006, p. 22).
Segundo Cavalcanti e Fonseca;
ISSN: 2525-7501
“Um critério-chave para a legitimidade de qualquer pleito ao registro é a sua
relevância para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira.
A continuidade histórica dos bens culturais, sua ligação com o passado e sua
reiteração, transformação e atualização permanentes tornam-nos referências
culturais para as comunidades que os mantêm e os vivenciam. A referência
cultural é um conceito-chave na formulação e na prática da política brasileira
de salvaguarda.” (2008, p. 19).
Os bens culturais de natureza imaterial estariam incluídos, ou contextualizados, nas
seguintes categorias que constituem os distintos Livros do Registro:

1) Saberes: conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades.

2) Formas de expressão: manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas.

3) Celebrações: rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da


religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social.

4) Lugares: mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e


se reproduzem práticas culturais coletivas.

Nesse momento vou fazer um adendo cronológico para falar livro de registro das
línguas. 72
Em 2006 foi reconhecido pelo IPHAN na Portaria nº 586 o grupo de trabalho que tinha
como finalidade indicar políticas públicas voltadas à preservação e proteção da diversidade
linguística no Brasil tendo como proposta a criação do Livro de registro das Línguas.

Em 9 de dezembro de 2010 fica instituído no Decreto nº 7.387 que:

“Art. 1º Fica instituído o Inventário Nacional da Diversidade Linguística, sob


gestão do Ministério da Cultura, como instrumento de identificação,
documentação, reconhecimento e valorização das línguas portadoras de
referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores
da sociedade brasileira.”
Entretanto, não é feita a criação de um livro de registro para esse bem. A língua incluída
no inventário receberá o título de "Referência Cultural Brasileira", expedido pelo Ministério da
Cultura conforme artigo 3º do decreto.

Dada a dinâmica da cultura humana, como ressalta o documento do IPHAN, o processo


de registro deve ser renovado a cada 10 anos (IPHAN, 2006, p. 22). Segunda Márcia Sant’Anna:

“[…] O registro corresponde à identificação e à produção de conhecimento


sobre o bem cultural de natureza imaterial e equivale a documentar, pelos
ISSN: 2525-7501
meios técnicos mais adequados, o passado e o presente dessas manifestações
em suas diferentes versões, tornando tais informações amplamente acessíveis
ao público. O objetivo é manter o registro da memória desses bens culturais e
de sua trajetória no tempo, porque só assim se pode “preservá-los”. Como
processos culturais dinâmicos, as referidas manifestações implicam uma
concepção de preservação diversa daquela prática ocidental, não podendo ser
fundada em seus conceitos de permanência e autenticidade. Os bens culturais
de natureza imaterial são dotados de uma dinâmica de desenvolvimento e
transformação que não cabe nesses conceitos, sendo mais importante, nesses
casos, registro e documentação do que intervenção, restauração e conservação.
”(SANT’ANNA, 2009, p.55)
Em 2004 através do decreto nº 5.040 que aprovou nova estrutura regimental do IPHAN
foi instituído o Departamento de Patrimônio Imaterial – DPI que possui como princípio básico
de atuação propor ações nas áreas de identificação, reconhecimento, acompanhamento e
valorização do patrimônio imaterial.

Em 2 de março de 2009 é instaurada a Instrução Normativa nº 1, que “dispõe sobre as


condições de autorização de uso do Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC”, o
interessado em fazer uso do INRC deverá encaminhar solicitação a direção do DPI
(Departamento de Patrimônio Imaterial) atendendo as indicações feitas no art. 3º aguardar que
o DPI aprove a solicitação e firmar o “Termo de Responsabilidade para uso do Inventário
73
Nacional de Referências Culturais - INRC”.

Como resultado do processo de inventário e registro são desenvolvidos os planos de


salvaguarda. Maria Cecília Londres de Fonseca e Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
constatam que:

“Os planos de salvaguarda são compreendidos como uma forma de apoio aos bens
culturais de natureza imaterial, buscando garantir as condições de sustentação
econômica e social. Atuam, portanto, no sentido da melhoria das condições de vida
materiais, sociais e econômicas que favoreçam a vivência do grupo produtor, e a
transmissão e a continuidade de suas expressões culturais.” (2008, p.24)

Com os planos de salvaguarda, foi criada a Resolução nº 1, de 05/06/2009 que “dispõe


sobre os critérios de elegibilidade e seleção, bem como os procedimentos a serem observados
na proposição e preparação de dossiês de candidaturas de bens culturais imateriais para
inscrição na Lista dos Bens em Necessidade de Salvaguarda Urgente e na Lista Representativa
do Patrimônio Cultural e da outras providências”.

Essa resolução foi criada para atender as diferentes necessidades que um bem pode
conter. É possível observar quais são esses tipos de diferenças a partir dos exemplos de
ISSN: 2525-7501
salvaguarda dos bens o ofício das paneleiras de goiabeiras, da arte kusiwa e da feira de caruaru
que seguem abaixo:

Na recomendação de salvaguarda do ofício das paneleiras de goiabeiras o foco do plano


de ação é a preservação das fontes de matéria-prima, facilitando o acesso à jazida, analisando
os impactos ambientais além de proporcionar melhores condições de infraestrutura.

Já no caso da arte kasiwa, a proposta principal é dar subsídios para os índios wajãpi
como oficinas de filmagem, cursos de formação e um ponto de cultura dentro de terras wajãpi.

A feira de caruaru tem como única recomendação de salvaguarda a formação de guias-


mirins.

Fica claro como cada caso é um caso e que não tem como uma proposta engessada
atender a diversidade dos bens imateriais.

Em 2011 foi implementada a “Chamada Pública de Projetos” do PNPI com o intuito de


fomentar e apoiar iniciativas e práticas da sociedade, relacionadas à salvaguarda do patrimônio
cultural imaterial. 74

Capítulo I – Bens Imateriais Registrados, Inventários Realizados e em Andamento

Desde o ano de 2002 diferentes expressões culturais vem sendo registradas como
patrimônio, criando uma distinção entre os chamados bens materiais e bens imateriais. Até o
momento 38 bens culturais imateriais foram registrados (atualizado em 25 de agosto de 2016),
137 inventários realizados (atualizado em 25 de agosto de 2016) e 20 inventários em andamento
(atualizado em 25 de agosto de 2016).

As informações acima apontadas foram coletadas em duas bases no sítio eletrônico do


IPHAN e no Banco de dados dos Bens Culturais Registrados – BCR criado pelo IPHAN para
disponibilizar informações a respeito do patrimônio cultural imaterial já registrado no Brasil.
Nele é possível ter acesso a informações detalhadas sobre o tema e os principais documentos
ISSN: 2525-7501
que compõem o processo de registro de cada um dos bens já reconhecidos como Patrimônio
Cultural Imaterial do Brasil.

Nesses quinze anos do Decreto 3551/2000, sete bens culturais imateriais completaram
dez anos de registro e conforme artigo 7º o bens registrado tem que passar por uma revalidação
do título entretanto, conforme notícia publicada no sítio eletrônico do IPHAN em outubro de
2016 só quatro bens passam por esta reavaliação: a Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte
Gráfica dos índios Wajãpi, no Amapá (registrada em 20/12/2002); o Samba de Roda do
Recôncavo baiano, na Bahia (registrada em 05/10/2004); o Ofício das paneleiras de Goiabeiras,
no Espírito Santo (registrada em 20/12/2002), e a celebração da festa do Círio do Nazaré, no
estado do Pará (registrada em 05/10/2004) ainda sem conclusão.

CONCLUSÃO

É possível observar nesse breve panorama que a legislação de forma tímida vem se
adaptando a esse patrimônio que não é de “pedra e cal”.
75
Ações como a chamada pública são um modo de estimular a participação da sociedade.

As ações de salvaguarda que vem sendo implementadas tem como objetivo a


continuidade, atua para melhoria das condições sociais e materiais de transmissão e reprodução
que possibilitam sua existência entretanto, para uma transmissão eficiente é necessário uma
integração entre a cultura a educação e as tecnologias.

Constata-se que os processos de revalidação vem sendo construído desde 2013 ainda
sem resultados.

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ISSN: 2525-7501
A GERAÇÃO DE ENERGIA SOLAR FOTOVOLTAICA E SUA RELAÇÃO COM
SÍTIOS HISTÓRICOS

Cândida Ianzer Viedo Alvorcem28


Ísis Portolan dos Santos29

RESUMO

Sítios históricos são reconhecidos visualmente por suas características construtivas, estéticas e
materiais. Esta percepção esta comumente relacionada ao seu valor histórico em função do
tempo decorrido ou sua validade cultural para as pessoas que com ele se relacionam. O material
empregado em suas construções reflete a tecnologia de sua época, sendo altamente perceptível
quando há novas tecnologias ou materiais agregados a ele. Neste contexto surgem
considerações sobre a utilização de módulos fotovoltaicos contribuindo para a geração de
energia da edificação e tornando os edifícios mais sustentáveis e aliados às atuais necessidades
de diminuição de impacto ambiental das construções. Assim, o objetivo deste trabalho é
levantar considerações para o diálogo entre o passado (edifício histórico) e o futuro (geração
de energia alternativa), para que juntos contribuam para a preservação destas edificações ao
mesmo tempo que contribuem para sustentabilidade. O desenvolvimento deste trabalho se
constitui em três etapas: no estabelecimento das necessidades da tecnologia e dos sítios 78
históricos; no estudo de casos que já fazem uso desta tecnologia; e finalmente considerações
sobre usos futuros da integração entre a tecnologia fotovoltaica e os sítios históricos. Este
projeto está em fase inicial de desenvolvimento, tendo identificado que os sítios históricos têm
grande preocupação com acréscimo de elementos que promovam alterações estéticas no seu
edifício. Ao mesmo tempo em que os painéis fotovoltaicos precisam estar posicionados em
locais com máximo de insolação possível (solo, cobertura ou fachada). Ainda assim observa-se
que alguns casos de estudo apresentam posicionamento dos módulos de forma não visível no
conjunto histórico, ou módulos com tecnologias diferenciadas com cores similares à própria
edificação (módulos preto opaco ou tons de marrom). A conclusão deste trabalho aponta
caminhos para a utilização dos módulos fotovoltaicos de forma a contribuir com a
sustentabilidade dos sítios históricos sem alterar significativamente a percepção estética do
conjunto.

Palavras-chave: Sítios históricos, patrimônio arquitetônico, energia solar fotovoltaica

28
Arquiteta e Urbanista, Professora do Curso de Aquitetura e Urbanismo da UFSM, e-mail:
candidaviedo@gmail.com
29
Arquiteta e Urbanista, Doutora em Engenharia Civil, Professora do Curso de Aquitetura e Urbanismo da
UFSM, e-mail: isisporto@gmail.com
ISSN: 2525-7501

INTRODUÇÃO

Sítios históricos são locais compostos por monumentos, grupo de edifícios ou ambientes
naturais que tenham valor histórico, estético, arqueológico, científico, etnológico ou
antropológico para a sociedade. Têm importância artística, cultural ou estética por serem
construídos ou produzidos por sociedades passadas. Representam a cultura de um época e são
uma importante fonte de pesquisa e preservação da identidade cultural. Estes sítios históricos
são de fundamental importância para a memória, identidade dos povos e de sua cultura. São
responsáveis pela continuidade histórica de uma comunidade e transcendem gerações.

Para a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação) a Ciência e a Cultura
) "o patrimônio é o legado que recebemos do passado, vivemos no presente e transmitimos às
futuras gerações. Nosso patrimônio cultural e natural é fonte insubstituível de vida e inspiração,
nossa pedra de toque, nosso ponto de referência, nossa identidade." Os sítios histórico são
considerados patrimônio cultural30, a medida que resgatam a memória e identidade de uma
época. Desta forma a importância em sua preservação está ligada a conservação desta 79
identidade para as futuras gerações. Os edifício ou sítios contam a história de sua época,
preservá-los será assegurar a compreensão da história ou a identidade cultural de quem os
produziu, para gerações futuras.

Muita energia chega de forma gratuita e limpa todos os dias ao nosso planeta. Os raios
solares que trazem a luz e o calor, essenciais para a vida na Terra, também podem ser
aproveitados para a geração de energia. A radiação solar pode ser aproveitada tanto na forma
de calor, com os coletores térmicos para aquecimento de água, quanto na de eletricidade, através
da utilização de módulos fotovoltaicos (RUTHER, 2004). O efeito fotovoltaico foi observado
pela primeira vez pelo físico francês Alexandre Edmond Becquerel, 1839. Mas foi em 1954
que os pesquisadores americanos dos Laboratórios Bell, criaram a primeira célula fotovoltaica
para uso prático. Ele foi fabricada de silício monocristalino, material abundante na natureza..

30
patrimônio cultural: é composto por monumentos, grupos de edifícios ou sítios que tenham um excepcional e
universal valor histórico, estético, arqueológico, científico, etnológico ou antropológico.
ISSN: 2525-7501
As células fotovoltaicas foram utilizadas pela primeira vez para alimentar o satélite Vanguard
I, em 1958 (PINHO e GALDINO, 2014).

O objetivo deste estudo é propor qual a melhor maneira de utilizar módulos


fotovoltaicos para a geração de energia elétrica em edificações pertencentes a sítios históricos,
para que estas edificações se adaptem às atuais necessidades de eficiência energética, mantendo
seu caráter histórico.

Capítulo I - Revisão de literatura


Qualquer intervenção direta ou indireta sobre um bem, para salvaguardar suas
características físicas e garantir o respeito pelo seu significado cultural, histórico e artístico, é
definida como restauro. A prática de intervir nas edificações históricas remota de muito tempo
atrás, mas foi na Europa, a partir do século XVIII, que ela irá despontar e levar o termo restauro
à discussões. Estas discussões foram antecedidas por um sentimento de proteção em relação a
edificações do passado, com valor histórico e ambientes urbanos, ameaçados de perda
irremediável pelas ininterruptas transformações que estavam sofrendo.(KUHL, 1998).

A necessidade de intervenções nas edificações sempre existiu ao longo da história, mas


80
a preocupação com a preservação do patrimônio edificado é mais recente. Elas eram realizadas
sem nenhum critério, havendo muitas vezes, antagonismo de técnicas construtivas e estilo
arquitetônico. Vários teóricos da arquitetura, críticos da arte e historiadores, destacaram-se
neste período, por exporem sua maneira de pensar como deveriam ser feitas estas intervenções,
e criaram verdadeiros tratados para a prática de restauro. Dentre estes, podemos citar: Eugene
Emmanuel Viollet-le-Duc, John Ruskin e Camillo Boito.

Surgiram, também outros nomes que versaram sobre a preservação de edificações e


sítios históricos, mas neste estudo, daremos especial atenção aos três teóricos citados
anteriormente, pois foi a partir de suas ideias que as teorias do restauro foram se adaptando nas
diversas formas.

O desenvolvimento da tecnologia fotovoltaica tem apontado que as edificações são um


campo de atuação com alto potencial de crescimento (REN21, 2016) Isto porque ao integrar a
tecnologia em edificações os módulos não ocupam áreas livres e permitem a geração de energia
distribuída e próximo ao ponto de consumo. Ao mesmo tempo que a eficiência energética
ISSN: 2525-7501
procura a integração da tecnologia no ambiente construído, os teóricos também apresentam
considerações sobre as maneiras de integrar esta tecnologia à estética das construções
(CHIVELET e SOLLA, 2010). A integração dos módulos na arquitetura é feita normalmente
nas coberturas, área que mais recebe radiação solar, o que a torna um elemento muito visível
da edificação e pode apresentar alguma resistência dos arquitetos projetistas, ou mesmo dos
moradores (MUNARI PROBST e ROECKER, 2007).

Nos sítios históricos os módulos fotovoltaicos podem ter impacto visual ainda maior, já
que os módulos são de tecnologia atual, integrando elementos metálicos e normalmente
brilhosos, características não tão comuns em edificações de épocas anteriores. Hestnes (1999)
indica que as integrações com melhor aceitação são aquelas onde o módulo fotovoltaico não é
visível no edifício, ou pelo menos não é notado a partir de sua visualização das fachadas, ou
ainda quando parece se mimetizar a outro material.

A tecnologia fotovoltaica, enquanto geração centralizada na forma de fazendas solares,


já foi analisada quanto à sua integração aos sítios históricos. CHIABRANDO ET AL. (2009)
desenvolveu algumas análises quanto a interferência visual nas paisagens dos locais que 81
recebem instalações de sistemas de grande porte, e indica que estas devam ser feitas longes (no
mínimo 100m) de sítios históricos e monumentos naturais. Isso indica que a percepção visual
dos módulos realmente tem difícil aceitação e mimetismo com edificações históricas, mas
também ressalta que esta limitação é essencialmente pela estética visual. Ou seja, abrem
caminhos para estudos sobre a integração de módulos nas coberturas, de forma não perceptível
das fachadas, ou então com o uso de tecnologias que mimetizem outros materiais de construção.

Capítulo II - Metodologia
Para este estudo a metodologia utilizada é a revisão bibliográfica do estado da arte de
edifícios históricos e integração arquitetônica de sistemas fotovoltaicos. Pretende-se com a
análise de sítios históricos que já fazem uso da tecnologia de módulos fotovoltaicos, identificar
suas potencialidades e deficiências, baseados nos teóricos do restauro e levantar considerações
para o diálogo entre o passado (edifício histórico) e o futuro (geração de energia alternativa),
para que juntos contribuam para a preservação destas edificações ao mesmo tempo que
contribuam para sustentabilidade do planeta.
ISSN: 2525-7501
Primeiramente serão elencados os princípios norteadores de cada posicionamento
teórico em relação às alterações em edificações históricas. A partir disso, irá se sugerir maneiras
de como a tecnologia fotovoltaica poderia se integrar neste conceito, visto a diversidade de
cores e materiais que os módulos fotovoltaicos apresentam atualmente.

Na segunda etapa serão analisados alguns edifícios históricos que já fazem uso destes
sistemas em sua construção. Estas edificações serão analisadas segundo os teóricos
anteriormente levantados, visando a identificação do tipo de restauro que foi implantado.
Baseado no estudo destas teorias, nas possibilidades da tecnologia e também nos exemplares
existentes, serão levantadas indicações de possibilidades de integração da tecnologia em novas
propostas de restauro que tenham a intenção de agregar a sustentabilidade e eficiência
energética em seus projetos.

Capítulo III - Resultados

3.1. Análise dos teóricos do restauro

No século XIX, alguns historiadores, arqueólogos e arquitetos de Roma, dão início a 82


um tipo específico de restauro, o Arqueológico, fazendo um levantamento dos monumentos
existentes. Surgi desta iniciativa, a primeira legislação sobre o Patrimônio Histórico. Dois
nomes ganham grande destaque na época, Prosper Merimée e Eugene Emmanuel Viollet-le-
Duc, por suas formulações teóricas sobre o tema.

Viollet-le-Duc, arquiteto, historiador, de formação autodidata, torna-se um dos


principais teóricos do restauro, criando um novo tipo, o Restauro Estilístico. Este tipo previa
que o arquiteto restaurador deveria incorporar o "espírito" do arquiteto criador da obra e projetar
como ele, devendo haver mimetismo31 entre as partes novas e as originais. (KUHL, 1998).

Na segunda metade do século XIX, um jovem inglês, crítico de arte, poeta e filósofo,
com formação em Bacharel em Artes pela Universidade de Oxford, ataca duramente as
afirmações feitas por Viollet-le-Duc. Este jovem chamava-se John Ruskin e, cria com sua linha
de pensamento, o Restauro Romântico, restauro este que valorizava as marcas do tempo nas
edificações, condenando as intervenções.

31
Mimetismo: cópia ou imitação de algo.
ISSN: 2525-7501
Conforme citado por KUHL (1998), Ruskin defendia uma atitude passiva, de não
atuação, mesmo que isso significasse a perda da edificação. O intuito era deixá-la tal como se
apresentava, com aversão total a qualquer ação à qual os arquitetos restauradores estavam
acostumados. Ele considerava as intervenções de conservação uma falsidade. A corrente de
Viollet-le-Duc estava sendo apoiado por toda a Europa, pois conforme CHOAY, (apud
LLOYD,2006) a ideia de intervir de forma racional nas edificações era melhor aceita do que a
ideia de Ruskin, de deixar envelhecer até as ruínas.

Foi no final do século XIX que mais duas corentes de pensamento são criadas, uma
sendo defendida por Luca Beltrami, chamada Restauro Histórico, onde o edifício era
considerado como um documento e suas intervenções deveriam ser baseadas em registros
históricos que comprovassem seu estilo, levando a um alto grau de subjtividade em sua
restauração. A outra chamada corrente foi chamada de Restauro Moderno, defendida pelo
arquiteto, historiador e crítico de arte italiano Camillo Boito.

Boito resgatou, segundo CHOAY (apud LLOYD,2006), o que as correntes antagônicas


de Viollet-le-Duc e Ruskin tinham de melhor, fazendo uma síntese e criando sua própria 83
doutrina. A noção de conservação baseada na autenticidade foi resgatada da teoria de John
Ruskin; da teoria de Viollet-le-Duc, ele priorizou o presente em relação ao passado. Entendia
ser indispensável a conservação, a partir do momento que a obra se encontrasse impossibilitada
de manter-se sem consertos ou reparos. Para Boito:

"é necessário fazer o impossível, é necessário fazer milagres para


conservar no monumento seu velho aspecto artístico e pitoresco; é
necessário que as complementações, se são indispensáveis, e as
adições,se não podem ser evitadas, demonstrem não ser obras antigas,
mas serem obras de hoje." (BOITO, Camillo. Os restauradores, 1884.
apud KUHL, 1999: 193.)

Outros nomes, de considerável importância, surgiram na época: Gustavo Giovannoni,


acadêmico seguidor de Boito, que reelaborou sua teoria. Considerava a obra como um
documento que deveria ser preservado, pois seria a prova da existência do estilo (LLOYD,
2006). Giovannoni amplia o conceito de conservação do monumento para conservação do seu
ISSN: 2525-7501
entorno, o que lhe valeu uma grande incompreensibilidade perante a especulação imobiliária
da época (BRAGA, 2003).

Dois austríacos também figuram entre os teóricos do restauro: Camillo Sitte e Alois
Riegl, este último, cuja posição em relação as intervenções de restauro foi de extrema
importância, foi um analista objetivo, examinando questões de acordo com cada caso. Riegl
argumentava que "renegar o novo por ser novo equivale a sacralizar o passado e negar à
contemporaneidade o seu próprio direito à história." (RIEGL, Alois. Le Culte Moderne des
monuments, 1984. apud LLOYD, 2006.)

Foi necessário facilitar as questões relativas ao restauro, após a Segunda Guerra


Mundial. Grande parte dos sítios históricos da Europa, e parte do mundo, sofrem com a
devastação causada pela guerra, e as discussões sobre restauro aumentam. Nesta época surgem
outra formas de atuação no Patrimônio Histórico, como a reutilização, a reabilitação e a
recuperação.

84
Muitos encontros internacionais são realizados com o propósito de deixar um legado
documental para a posteridade, criando diretrizes relacionadas a conservação. Nestes encontros
surgem, então as cartas patrimoniais e outros instrumentos de salvaguarda do patrimônio. Os
principais documentos são: Carta de Atenas (1930), Carta de Veneza (1964), Conferência de
Quito (1967) e Carta Europeia (1975).

3.2. Teoria do restauro

De acordo com os teóricos citados pode-se perceber a ideia central de seus trabalhos e
também o modo como os sistemas fotovoltaicos poderiam ser integrados em obras históricas,
conforme Tabela 1.

Tabela 1 – Teóricos sobre alterações em edifícios arquitetônicos


Teórico Ideia central Possibilidade da integração
fotovoltaica

Viollet-le- Restauro Estilístico. Este tipo Neste caso o sistema fotovoltaico


Duc previa que o arquiteto restaurador encontra-se a parte da obra já que
deveria incorporar o "espírito" do não era um material
arquiteto criador da obra e projetar construtivo/revestimento na
como ele, devendo haver época dos projetistas.
ISSN: 2525-7501
semelhança entre as partes novas e Embora discutível, há uma
as originais. possibilidade de integração com
tecnologias que sejam muito
similares aos materiais da época.
John Ruskin Restauro Romântico, restauro este Neste caso não é possível a
que valorizava as marcas do inserção do sistema fotovoltaico,
tempo nas edificações, já que a obra não pode sofrer
condenando as intervenções. nenhum tipo de alteração.
Considerava as intervenções de
conservação uma falsidade. O
intuito era deixá-la tal como se
apresentava, com aversão total a
qualquer ação de conservação.
Camillo Restauro Moderno, entendia ser Livre inserção da tecnologia
Boito indispensável a conservação, a fotovoltaica já que se apresenta de
partir do momento que a obra se maneira bastante diversa das
encontrasse impossibilitada de configurações dos sítios
manter-se sem consertos ou históricos. Cabe aqui a intenção
reparos. E que estas adições do arquiteto em colocar a
demonstrassem ser obras atuais. tecnologia de forma a apresentar
maior contraponto ou unidade.
85
3.2. Análise de edifícios históricos com integração fotovoltaica

Embora parecendo um tema contraditório, sítios históricos e sistemas fotovoltaicos já


possuem alguns exemplares reais (IEA, 2016).

Instituto de Energia da Galícia, Espanha

Esta edificação situa-se na cidade de Santiago de Compostela, capital da Galícia,


comunidade autônoma da Espanha. Tem um alto valor patrimonial por estar no Centro
Histórico da cidade.

Podemos notar que para a instalação dos módulos fotovoltaicos foi criada uma estrutura em
madeira. Esta estrutura apoia os módulos mas integra-se à fachada, não deixando os painéis FV
a mostra. Está é uma ação característica do Restauro Estilístico, onde pode haver semelhança
entre as partes novas e as originais da edificação. Observa-se o uso da madeira e telhas
cerâmicas, fazendo uma camuflagem da nova intervenção, conforme Figura 1. Este sistema
entrou em operação no ano de 2004.
ISSN: 2525-7501

Figura 1 – Imagens do edifício Instituto de Energia. (Fonte:


http://www.pvdatabase.org/projects_view_details.php?ID=266)

Prefeitura de Freiburg, Baden-Württemberg, Alemanha.

Com uma população média de 200 mil habitantes, situada ao sudoeste da Alemanha, a
86
cidade de Freiburg tornou-se famosa por seus cuidados com o meio ambiente. No prédio da
prefeitura municipal, edificação com valor histórico para a cidade, foi instalado o sistema FV
em 2004. Optou-se por utilizar a parte posterior da cobertura para instalação dos módulos. Esta
cobertura somente é visível pela parte interna da edificação, não alterando a percepção visual
da fachada principal. Entende-se, esta, uma ação do Restauro Moderno, onde os materiais
utilizados remetem a tecnologia de seu tempo. Neste exemplo específico, optou-se pelo
posicionamento onde não comprometesse visualmente a edificação, conforme visto na Figura
2.
ISSN: 2525-7501

Figura 2 – Imagens da fachada da Prefeitura de Freiburg. Fonte:


https://en.wikipedia.org/wiki/Freiburg_im_Breisgau

De Witte Roos, Icarus Delft, Holanda

Construção datada do século 16, situada no Centro Histórico da cidade de Icarus Delft,
na Holanda, recebeu a instalação dos módulos FV nos anos 2000.

Neste projeto, o Instituto Internacional para o Meio Ambiente Urbano (IIUE), quis
mostrar a integração dos sistemas solares com as edificações históricas, onde novas tecnologias 87
poderão fazer parte da edificação sem que se altere sua percepção. Utilizou-se aqui a cobertura
da fachada posterior para instalação do módulos FV, de onde não são visíveis na fachada
principal. Intervenção característica do Restauro Moderno, conforme Figura 3.

Figura 3 – Fachada principal do De Witte Roos e fachada posterior com módulos


semitransparentes. Fonte:
http://www.envireo.eu/assets/media/building/image/7166afa09aebf741d1ec3919a2168d
1d.jpg
ISSN: 2525-7501

Museu de História Natural, Viena, Áustria

Esta edificação pertencia a família real da Áustria. Transformou-se em Museu de


História Natural de Viena e pode ser visitado desde 1889. Considerado o primeiro sistema FV
instalado em edificações deste porte, em abril de 1998. Foi desenvolvida uma estrutura especial
em alumínio, posicionada sob o telhado do edifício, para receber os módulos FV. Desta maneira
o sistema fica todo camuflado pela platibanda, não alterando a percepção visual da edificação,
conforme Figura 4. Nota-se, neste caso, as características do Restauro Moderno, onde se valeu
de tecnologias atuais, mas sem que interferissem no estilo arquitetônico da construção.

88

Figura 4 – Museu de História Natural em Viena. Fonte:


http://www.wikiwand.com/de/Naturhistorisches_Museum_Wien

Escritório do Turismo, Ales, França

A cidade de Ales na frança, utilizou as ruínas de uma edificação histórica para Criar o
Escritório do Turismo da cidade. A construção é do século 11. Nesta edificação uma fachada
original foi mantida e um novo prédio foi construído junto á ela.

Os módulos FV foram instalados nas aberturas da fachada principal. Deixando a mostra


a tecnologia de construção diferenciada da edificação original. Também se adequando as
características do Restauro Moderno, onde as adições demonstram sua época, como visto na
Figura 5.
ISSN: 2525-7501

Figura 5 – Detalhe da fachada com instalação fotovoltaica do Escritório do Turismo em


Ales. Fonte: http://www.pvdatabase.org/projects_view_details.php?ID=126

3.3. Possibilidades da tecnologia fotovoltaica

Os sistemas fotovoltaicos apresentam três gerações de tecnologias que possuem


aparências diferentes, aumentando as possibilidades de integração fotovoltaica com aparências
diversas. A cor azul brilhante, característica dos módulos de silício policristalino (primeira
geração), já foi alterada para módulos de silício policristalino de outras cores, mas ainda
89
brilhantes. A segunda geração de módulos apresenta tecnologia de filmes finos de silício ou
outros materiais, que opacos ou com brilho uniforme apresentam normalmente coloração entre
azul e preto, podendo ser encontradas de outras cores. A terceira geração da tecnologia, de
células sensibilizadas por corantes tem trazido uma gama ainda maior de cores disponíveis
(HEINSTEIN et. al.2013). Assim os projetistas dispõem de materiais com estéticas diversas
para optar por sua integração, conforme Figura 6.

a)
b) c)
ISSN: 2525-7501

d) e) f)

Figura 6 – Diversos módulos fotovoltaicos: a) integração de silício policristalino junto a


telhas cerâmicas; b) instalação de silício amorfo em fachada; c) módulo semi
transparente; d) silício amorfo colorido (percebe-se o reflexo que não há nas outras
placas) junto a fachada metálica; e) fachada com células sensibilizadas por corante; f)
módulo de silício amorfo laranja testado para integração em coberturas cerâmicas.
Fonte de todas as imagens: (HEINSTEIN et. al., 2013)

CONCLUSÃO

Através desta pesquisa concluiu-se que as novas tecnologias, como os sistemas


fotovoltaicos, apresentam grandes possibilidades de inserção em sítios históricos. Embora com
aparências estéticas diversas, existem maneiras de integração sem interferir no conceito 90
histórico da edificação, inclusive baseado em teóricos do restauro, e sem alterar a percepção
visual do conjunto.

As tecnologias usuais (como o silício policristalino azul brilhoso) podem ter boa
aceitação nos sítios históricos quando ocultam nas fachadas, normalmente escondida pelas
platibandas. Outras cores e tecnologias também permitem inserções visíveis nas fachadas, e
neste caso, devem apresentar maior flexibilidade de escolha de cor e brilho por parte do
projetista, que pode optar por modelos que salientem o material fotovoltaico, mas que ainda
guardem relação de unidade com os materiais históricos do restante do edifício.

Deste modo, observa-se que é possível a integração entre a tecnologia fotovoltaica e os


edifícios históricos. Embora ainda não aceito, ou desconhecido pelo grande público da área,
isto já está sendo feito em várias edificações pelo mundo, e novos materiais que surgem trazem
ainda mais possibilidades de integração entre os dois elementos. Assim, conclui-se que os sítios
históricos podem ser um local de preservação da cultura, mas também um local de preservação
ambiental através da inserção de elementos que primem pela sustentabilidade.
ISSN: 2525-7501

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ISSN: 2525-7501
PRESERVAÇÃO DA HISTÓRIA DA MODA GAUCHA ATRAVÉS DA
MUSEALIZAÇÃO DO ACERVO RUI SPOHR.*32

Lauro Corrêa Barbosa**33

RESUMO

O presente trabalho quer compreender a moda e os processos de musealização, e aplicar esses


dois conhecimentos ao acervo Rui Spohr. A moda será trabalhada de forma multidisciplinar,
sendo analisadas as informações e conhecimentos que podem ser retiradas do vestuário. E a
musealização será focada nos acervos de moda, para que seja possível adaptar a documentação
e preservação às especificidades dos acervos têxteis. Visando a preservação da moda no Rio
Grande do Sul e a memória do estilista.

Palavras-chave: Moda, Musealização, Acervo têxtil

INTRODUÇÃO 92
Rui Spohr é um famoso estilista gaúcho nascido em 1929 na cidade de Novo Hamburgo.
Durante sua carreira Rui atua como professor e jornalista, sem nunca deixar de trabalhar como
criador de moda em seu ateliê, além de ser o primeiro brasileiro a ser formar em moda em Paris.
Desde seus 14 anos sentia vontade de estudar Belas Artes, essa vontade se efetivou no ano de
1949. Nessa época trabalhava no Citibank e esse trabalho lhe permitia sobreviver e se vestir. A
decisão de trabalhar com moda não foi fácil, iniciou trabalhando em um jornal local e nesse
momento decidiu mudar de nome para que não existisse nenhuma ligação com sua família.
Através de sua coluna aconselhava mulheres a se vestir de forma elegante, ao se transformar
em Rui "o novo personagem carrega em si, simultaneamente, a proximidade familiar e o
distanciamento cultural necessários para se expressar livremente e, assim, inferir sobre seu meio
social” (NORONHA, 2013, p. 54).

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Bacharel em Museologia, Universidade Fedreal de Pelotas (UFPel), Lauro.bc03@gmail.com.
ISSN: 2525-7501
O reconhecimento de seu trabalho e receber parte da herança deixada por seu pai,
levaram Rui a Paris. Com 22 anos sua principal motivação era conhecer o centro da moda, após
a criação do new look de Dior a cidade se tornava o berço da criação e das revoluções da moda
do pós-guerra e onde teria ferramentas suficientes para se formar como criador, assim como
outros grandes nomes da moda do século XX.

Ao retornar a Porto Alegre em 1955, dedicou-se inicialmente à criação de chapéus, mas


seu reconhecimento maior virá com a produção de roupas sob medida. Rui instalou no Brasil
um Maison nos moldes franceses, e juntamente com isso passou a escrever suas próprias
colunas o que lhe tornou uma espécie de conselheiro do bom gosto, um mediador entre as
tendências internacionais e a realidade local. Ao passar sua visão sobre a moda, Rui encontra
espaço para divulgar-se também como criador. A relevância de suas opiniões torna Rui uma
espécie de pedagogo do bom gosto.

Em sua Maison encontra-se o antigo atelier de Rui, nesse local repleto de memórias é
guardado um acervo das mais diversas tipologias, dedicado à moda. Esse acervo encontra- se
em espaço reservado, por ser uma coleção particular. Dentro desse acervo existem formas de 93
chapéus, moldes, tecidos, materiais de costura, fotografias, documentos, vídeos, recortes de
jornais e revistas, e uma infinidade de revistas de moda.

Muito sobre a vida e carreira do estilista está guardado nesse acervo, mas existem
relíquias fundamentais para compreender a moda. Existem fitas VHS de desfiles da época de
Rui em Paris e documentários sobre moda. Existe uma infinidade de revistas sobre o tema, as
edições da Vogue francesa, que começam em 1960, além de exemplares raros que datam 1890,
nesses fascículos é possível aprender técnicas de costura, bordado e tricô. As revistas
atualmente veem sendo digitalizadas por uma estudante de moda que trabalha voluntariamente
no acervo.

Também é possível encontrar documentos da Maison, como planilhas de encomendas,


balanço dos anos, croquis e fotografias. Essas pastas estão organizadas por ano. Também
existem pastas com registro dos desfiles, das coleções, prêmios e participações de Rui em
eventos, concursos e etc. E é claro esse acervo também guarda um grande numero das criações
de Rui, em seu acervo estão em média 500 peças de vestuário. Nesse acervo se encontram
ISSN: 2525-7501
criações de desfiles de Rui, roupas usadas por primeiras damas, misses, cantoras e muitas outras
personalidades. E também o vestido de noiva e o de debutante de suas filhas. O acervo têxtil
está dividido em coleções: tear; inverno; verão; gala; noivas; debutantes e peças para desfiles e
ensaios fotográficos. Essas peças são acondicionadas penduradas por cabides em araras, e
cobertas por uma capa plástica e alguns vestidos estão em suas capas originais.

Todos os itens presentes no acervo diretamente ou indiretamente fazem parte da história


de Rui. Mesmo as revistas de moda, que poderiam ser acervo de qualquer museu histórico ou
especializado na temática ao estarem na coleção do estilista sofreram uma seleção pessoal e
com isso refletem o próprio Rui.

O acervo têxtil é guardado no mesmo ambiente, todos são pendurados em cabides.


Poucos vestidos são acondicionados em capas originais da Maison, o restante é guardado em
capas de plástico. O acervo havia sido numerado e era guardado com fichas com informações
básicas sobre cada uma, mas pelo acervo ainda ser usado e não haver uma sistematização em
como guardar as peças, muitas delas foram perdidas. Muitas pessas possuem informações no
acervo, como fotografias, seus croquis, informações nas planilhas sobre sua encomenda, 94
noticias no blog da Maison e reportagens.

Esse acervo traz consigo, além de informações intrínsecas, algumas informações


extrínsecas à materialidade do vestido, que fazem parte da memória do objeto e são relevantes
na pesquisa sobre moda. Este trabalho irá se apropriar dos conhecimentos da museologia para
documentar e conservar este acervo. Mesmo não sendo institucionalizada, a criação de uma
ficha documental e de medidas de conservação preventiva, vão possibilitar que as informações
presentes nessa coleção não se percam, independente do futuro dessa coleção. Mesmo
ingressando em uma instituição, essas informações poderão ser usadas e mesmo dentro da
Maison poderão facilitar a pesquisa sobre esse acervo.

Capítulo I - Conservação preventiva aplicada ao acervo Rui

A utilização dos conhecimentos da conservação visa prevenir danos ao acervo, evitar a


necessidade de intervenções e de danos irreparáveis. Baseando-se no principio de que “a
ISSN: 2525-7501
prevenção é a melhor cura” (EASTOP, 2006, p.20). Para isso deve- se identificar, monitorar,
avaliar e controlar qualquer tipo de risco. E mesmo não sendo uma coleção institucionalizada e
a Maison não tenha a obrigação de preservar seu acervo como um museu, ações simples e de
baixo custo podem ser usadas pela equipe como forma de preservar a memória de Rui e para
seguir sendo utilizada como fonte de pesquisa e conhecimento sobre o estilista e à moda do Rio
Grande do Sul. Segundo Maria Cristina Oliveira Bruno:

Nesse âmbito, a ênfase desta análise está orientada para a problemática do


TECIDO enquanto bem patrimonial com múltiplas perspectivas museológicas, cuja
abordagem preservacionista exige um olhar transversal a partir de distintos campos
do conhecimento, no que tange aos estudos da cultura material, bem como às
referências a desdobramentos de salvaguarda e comunicação. (BRUNO, 2006, p. 131)

Assim a preocupação com o acervo têxtil como patrimônio requer um cuidado e uma
análise interdisciplinar. Para que se possa compreender muito além de sua historicidade ou
filosofia e a preservação desse acervo permite que no futuro possam existir novos estudos e
visões dobre o tema.

Manter o sistema de armazenagem do acervo usado pela Maison é possível, não sendo
necessário um espaço maior ou a adoção de armários horizontais. No acervo Rui onde as peças
95
ainda são guardadas horizontalmente é mais fácil encontrá-las, mas mesmo assim podem ser
tomadas medidas para preservar ainda mais o acervo.

A grande maioria dos trajes está em sacos de plástico transparente, essa escolha não é a
ideal, o plástico retém a umidade e deixa a peça sem “respirar”. No caso do Rio Grande do Sul
onde temos estações bem definidas, as mudanças de temperatura podem ser muito mais fortes
no “micro-clima” dessas capas e por serem transparentes não protege o acervo da luminosidade.
Uma solução é trocar as capas plásticas por capas de TNT (tecido não tecido) que deve ser
branco para não manchar a peça, e esse tecido “dispensa os cuidados de lavagem em água neutra
sem adição de químicos para eliminar resíduos de amido como o algodão cru e é mais leve,
estável e de fácil manuseio.” (SANTOS, 2006, p. 97).

Essas capas devem ser de duas partes iguais costuradas na parte superior abertas nas
laterais para facilitar o manuseio. Fechadas com velcro em dois ou três pontos dependendo do
tamanho da peça, costurados na parte de fora para evitar marcas na peça. Na parte frontal pode
haver uma barra de tule, para facilitar a visualização da peça e no mesmo tecido pode se criar
ISSN: 2525-7501
um bolso aonde irá uma ficha com a foto da peça ali guardada e seu número. Essas capas são
de fácil elaboração e de baixo custo, sendo facilmente feitas pela equipe da Maison.

Os cabides usados podem ser mantidos, mas devem ser acolchoados para evitar danos
às peças. Manta acrílica esse material não absorve tanta umidade como outras espumas. Por
cima desse acolchoado deve ser usado também o TNT branco para forrar, sem deixar marcas
de costura em contato com a peça. Essas medidas protegem as peças de dobras, vincos,
forçamentos das costuras dentro outros danos na peça.

O espaço também deve receber cuidados, como mantê-lo limpo sem a utilização de
produtos químicos que possam afetar o ambiente. Com as capas de TNT as peças irão se manter
ventiladas, mas em dias não úmidos a ventilação do ambiente é necessária. O ambiente deve
ser monitorado e deve se manter com a temperatura entre 18 e 22°C e umidade relativa entre
45 e 60% (TEIXEIRA, 2012, p. 55). A utilização de desumidificadores é uma boa opção e
ventiladores para a circulação de ar também e são de menos custo em longo prazo, “a
temperatura e umidade relativa devem acusar o mínimo variação” (MCLEAN, 2006, p. 104)

A iluminação também deve ser cuidada, as peças devem sofrer a incidência de no


96
máximo 50 lux (TEIXEIRA, 2012, p 55). Para isso a utilização das capas é necessária. Para
uma maior proteção as luzes fluorescentes devem ser filtradas para eliminar os raios
ultravioletas, e dessa forma evitar amarelamento das roupas. Como no acervo da Maison
existem vestidos de noiva que são em sua maioria brancos esses cuidados devem ser maiores.
Janelas e aberturas que façam a luz solar incidir no acervo podem ser cobertas com TNT na cor
preta para diminuir essa incidência.

Outros deteriorantes do acervo podem ser evitados por monitoramentos e vistorias


constantes como mofo, insetos, roedores e outras pragas. Para isso as inspeções devem ser
regulares para que se alguma parte do acervo for infectada ela possa ser encaminhada para um
conservador/restaurador o mais rápido possível para evitar danos maiores e, além disso, quanto
mais cedo isso for detectado menos peças serão danificadas. Não é recomendável a utilização
de fungicidas ou inseticidas no acervo, pode-se utilizar para prevenir a aparição de pragas, as
buxas de louro. Ou o uso de “sachê com várias bolinhas de naftalina espalhadas, sem encostar-
se às peças” (TEIXEIRA, 2012, p 55).
ISSN: 2525-7501
Capítulo II - Documentação museológica aplicada ao acervo Rui.

O processo de documentação museológica visa a humanização do acervo e esse


“processo de humanização do acervo traz consigo um maior diálogo com a comunidade que faz
parte da instituição” (TEIVEIRA-RIBEIRO, 2012, p.112). A documentação de têxteis é
importante, tanto para a gestão eficiente da coleção, como para garantir sua preservação. Se um
objeto está bem documentado e existe um sistema de controle da localização das peças,
diminuirá consideravelmente o seu manuseio. (PERALES, 2006, p. 90). Com a utilização da
documentação é possível preservar tanto as informações sobre o objeto quanto o próprio objeto
físico.

Conforme Perales (2006, p. 69), “processo de documentação da coleção abrange o


registro dos objetos que ingressam na coleção, seu inventário e a catalogação”. A Maison
deveria criar um livro tombo para seu acervo, que é um livro de atas com folhas numeradas,
onde são informados: o número do objeto, o que é esse objeto, um campo para observações e
sua localização.

Um campo fundamental na documentação é a numeração dos objetos, pois ele é “a ponte


97
entre o objeto e a sua documentação” (FERRAZ, p.8). Em relação à numeração o mais adotado
pelos museus é o sistema alfanumérico, onde se coloca a sigla da instituição seguida por
números. Esse sistema pode ser adotado pela equipe da Maison por ser mais garantido que em
caso de empréstimo para algum museu ou instituição a peça não se perca. Essa numeração deve
ser feita na peça, de maneira com que não danifique o acervo. Um pedaço de linho lavado com
o número escrito com caneta ou bordado, costurado na parte de dentro do traje em algum lugar
de fácil localização e se possível padronizado. Deve ser costurado com agulha sem ponta com
um fio de seda para não causar danos à peça.

Foi colocado um campo para a fotografia das etiquetas na ficha documental, por esta
ser uma forma de identificar a peça e nela existirem informações como o tamanho da peça, os
vestidos foram feitos por encomenda e no tamanho da cliente, mas em peças que não são de
alta costura o tamanho P, M e G, por exemplo, vem na etiqueta e essa seria uma forma de
identificação e fácil acesso a informação.
ISSN: 2525-7501
O campo da medição não tem campos definidos, pois para cada peça de roupa existe
uma medição específica. Como na Maison existem peças variadas, as medições de uma calça
não seriam as mesmas de uma saia. Sugere-se que seja criada uma tabela, com as informações
que devem estar presentes em cada tipo de peça. Por exemplo, para uma calça altura do gancho,
comprimento lateral, altura do joelho e altura do quadril ou de uma saia onde a altura do gancho
não seria necessária.

Pode ser adicionado um campo “peças complementares” entrariam outras peças que
fizessem parte do mesmo traje. Se em algum desfile com o vestido foi utilizado um sapato ou
algum acessório presente no acervo também deve ser colocado nesse campo. Em campos sobre
a composição da peça, tecido e cor e sobre bordados e estampas, as informação cor deve ser
discutida pela equipe afinal a cartela de cores é infinita e cada fabricante de tecido escolhe o
nome de cada cor. Se a peça possuir bordados ou estampas esse campo irá informar
detalhadamente. Essa informação é necessária para identificação e maior cuidado na
preservação dessa peça.

Seguido por informações sobre a origem da peça, no campo “uso a que se destina” é 98
para ser informado se é um vestido de festa, para uso de dia ou a noite e etc. No histórico da
peça vão informações mais detalhadas sobre quem usou e criou a peça, detalhes sobre sua
origem, etc. E no campo histórico de usos/exposições vão informações sobre locais e eventos
em que a peça foi usada,

No campo seguinte vão as informações exterrnas ao traje, que tanto podem estar dentro
ou fora da instituição. Desde fotografias e croquis presentes no acervo, como informações,
fotografias ou noticias que possam estar na internet, por exemplo. A preservação do patrimônio
se torna possível a partir da documentação e de medidas de conservação, somente essas ações
dão a uma coleção a devida importância e relevância para a sociedade. Essas ações propostas
têm por objetivo preservar a memória e a história de vida de Rui Spohr, por compreender o
criador e sua moda, como elementos importantes para a memória e história da Moda do Rio
Grande do Sul e do país.

CONCLUSÃO
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Estes olhares sobre as potencialidades no estudo da moda analisados neste trabalho, que
tornam o traje um documento, perceber que o acervo esteve inserido em um contexto histórico
e social, portador de informações sobre seus usuários, criadores e mesmo os expectadores.
Como analisado anteriormente, a partir da moda pode ser indicada a manufatura do traje, como
foi feita sua modelagem e as modificações estéticas da sociedade, sua origem, fabricante e os
caminhos até chegar ao consumidor e ao acervo da coleção. São infinitas as possibilidades de
pesquisa e de compreensão da sociedade a partir da moda. Como vemos nas palavras de
Svendsenc(1970):

Se considerarmos as roupas como um texto, vemos que nas


sociedades hierárquicas elas funcionavam tipicamente como textos
"fechados", com um significado relativamente estável, fixo. Em
sociedades pós-modernas mais fragmentárias, por outro lado, elas
funcionam mais como textos "abertos", podendo adquirir novos
significados a todo momento. (1970, p.80)
As interpretações da moda devem ser analisadas dependendo de seu período, de
informações sobre quem criou e quem usufruiu dessa criação, porém a análise de seu contexto
sociocultural é, talvez, a mais importante forma de compreensão e de aproximação do estudo 99
da moda a sua interpretação pelo público. Modas e modos são constantemente criados e
recriados e a consciência de sua função como patrimônio ajuda a compreender esse fenômeno,
nesse sentido Lipovestsky (2009, p. 20) afirma que:

A moda produz inseparavelmente o melhor e o pior, a informação 24 horas


por dia e o grau zero do pensamento; cabe a nós combater, de onde estamos, os mitos
e os a priori, limitar os malefícios da desinformação, instituir as condições de um
debate público mais aberto, mais livre, mais objetivo.

Essas discussões foram fundamentais para a escolha deste tema, e ao ter contato com a
história do estilista Rui Spor foi percebido que esse acervo e a história de vida do estilista são
um patrimônio que necessita ser preservado, e como o próprio Rui diz quando questionado
sobre seu acervo: "tenho medo que se perca". O que foi sugerido são ações preventivas que
devem ser adotadas para a preservação do acervo, e principalmente por serem métodos viáveis
para serem aplicados a um acervo não institucionalizado. Pensando com que a vontade do
criador se preserve e suas memórias sejam preservadas.
ISSN: 2525-7501
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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101
ISSN: 2525-7501
ATUALIZANDO O MAPEAMENTO DAS REDUÇÕES JESUÍTICAS DO TAPE
(1622-1636)34
Filipi Pompeu35

RESUMO
A pesquisa versa sobre a localização das Reduções Jesuíticas do Tape, durante a primeira fase
do movimento jesuítico no Rio Grande do Sul (1622-1636). Diante das três Reduções já
localizadas e pesquisadas arqueologicamente (Candelária do Caaçapaminí, São Miguel do
Itaiacecó e Jesus-Maria), assim como do incremento das obras públicas e privadas se torna
necessário promover esta pesquisa. Nesta etapa inicial, se buscou realizar uma revisão
historiográfica e, principalmente, cartográfica acerca das fontes existentes sobre o tema. Uma
vez descobertas inconsistências na localização das Reduções diante dos mapas dispostos, foi
necessária a adaptação destas coordenadas dentro do software Google Earth, auxiliados pelo
Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos para promover uma avaliação das
fontes consultadas. As informações obtidas serão utilizadas em contraponto e complemente à
pesquisa bibliográfica que já ocorre, possibilitando a eleição de Reduções com maior potencial
de localização efetiva.

INTRODUÇÃO
Esta pesquisa parte de um pedido formulado pelo IPHAN para uma atualização das 102
localizações das Reduções Jesuíticas da 1ª Fase. Em virtude do vertiginoso crescimento na
construção de empreendimentos no Brasil e no Rio Grande do Sul surge a preocupação de um
mapeamento de todos os sítios arqueológicos já localizados. Este esforço, primeiramente
empregado com foco nos sítios anteriores ao contato, agora tem atenção desenvolvida às
Missões Jesuíticas; não aos Sete Povos das Missões (1682-1707), cuja notoriedade
arquitetônica e historiografia ampla consagram uma fama e patrimonialização já reconhecida e
instalada pelo IPHAN.
No caso, o pedido do órgão se remete às anteriores e menos conhecidas Reduções da
Primeira Fase (1626-1636), cuja atenção governamental é de fundamental importância pela
precedência frente a pesquisas mais aprofundadas – até o atual momento, são pontuais os
estudos que se debruçam sobre o tema.

34
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
35
Doutorando em História – PUCRS, filipi.pompeu@gmail.com
ISSN: 2525-7501
Assim, em prol da proteção, preservação e reconhecimento destas evidências de nossa
história sulamericana, este estudo se dispõe. A realização da primeira etapa é elaborada adiante,
e se propõe também a sugestão das duas etapas subsequentes cujo objetivo final é delimitar e
apontar referências para futuros pesquisadores que se interessem por esta senda ainda
pouquíssimo explorada.

Capítulo I - Objetivos e Métodos


O objetivo é apresentar uma atualização cartográfica das localizações disponíveis para
as Reduções Jesuíticas da 1ª Fase. Para tanto, o estudo foi fundamentado sobre a bibliografia
disponível (Cartas Ânuas36 e outras fontes), assim como em mapas e autores cujos propósitos
são concomitantes aos nossos. Também são apresentados os dados arqueológicos disponíveis
para cada uma das Reduções já encontradas. Diante disto, em um segundo momento, podemos
avaliar o potencial cartográfico para a localização das Reduções ainda por conhecer,
comparando os pontos plotados em alguns mapas pesquisados com as posições das Reduções
já pesquisadas no software Google Earth. Para tanto, as posições sugeridas pelos diferentes
mapas foram deduzidas através das distâncias retratadas para os diferentes rios considerados – 103
com muitos afluentes e menores corpos d’água inominados, foi necessário recorrer ao banco de
dados do SNIRH37 para reconstruir as referências utilizadas por cada cartógrafo, possibilitando
assim, uma localização mais fiel para comparação direta.

Capítulo II - Mapas Consultados e Exegese Histórica


Um total de seis mapas foram consultados como base para pontuar a localização
aproximada das Reduções conhecidas e ainda por conhecer. São eles, o mapa Rio Grande do
Sul de 1626 a 1638 com a localização aproximada das Reduções Jesuíticas, de Luiz Gonzaga
Jaeger, publicado em 1936 e posteriormente em Porto (1954); um segundo mapa de Jaeger, de

36
As cartas ânuas são documentos escritos pelos padres dentro das Reduções, prestando contas aos
seus superiores imediatos, que, por sua vez, resumiam as informações em outras cartas que eram enviadas neste
sistema ascendente para a Europa. A capital da província jesuítica do Tape, região hoje conhecida como Rio
Grande do Sul, era em Assunção, atual Paraguai, e não apenas para lá as cartas eram enviadas, mas também de lá
vinham os próprios jesuítas e víveres diversos para a efetivação das Reduções e negociação com os indígenas.
Uma coleção de cartas com o Tape como interesse, foram publicadas integralmente por Jaime Cortesão em 1969
e são constantemente citadas em documentos mandatórios para a pesquisa histórica missioneira.
37
Sistema Nacional de Informações sobre Recursos Hídricos. Ver Referências Digitais.
ISSN: 2525-7501
1935, Carta da 1ª zona civilisada pelos jesuítas; o mapa de Rego Monteiro e Leovegildo
Silveira, Mappa do Território das Missões Orientaes no Estado do Rio Grande do Sul, de 1939;
o “mapa de Carrafa” e o “mapa de Ernot”, citados constantemente na literatura produzida na
década de 1930 e adiante; e o Mapa Historico Geografico de la Provincia de Misiones (1585-
1896), de Casiano Carvallo, sem data, mas possivelmente da década de 1980. O esforço
caracterizou claramente uma pesquisa histórica reversa, onde a consulta de fontes secundárias,
mais recentes, foi indicando cada vez mais uma rota para as fontes primárias, mais antigas. Para
tanto, uma abordagem diferenciada e aprofundada deverá ser explicada no espaço que
dispomos.
Prosseguiremos avaliando, enfim, dois destes mapas que consideramos principais, dado
que nosso espaço é restringido. Eles foram inseridos no corpo do texto respeitando a formação
sugerida para a publicação dos anais - portanto, sua resolução aqui não representa seu tamanho
real. Talvez algumas críticas a serem elaboradas esbarrem na evidente vantagem tecnológica
que não era disponível na época dos primeiros pesquisadores. Nenhum dos mapas a passarem
por exegese é capaz de realizar uma localização exata das Reduções, seja este seu objetivo
principal ou não. Munidos do software Google Earth isto hoje é possível pela multiplicação de 104
referências espaciais que podem ser criadas ou apagadas com a ferramenta do zoom do software.
Os mapas antigos sofrem com a poluição visual que é provocada pela mesma estratégia e não
a podem explorar devido a necessidade de uso de uma escala específica, congelada. Desta
forma, todo mapa antigo estará mais afim para o uso de referências aproximadas do que de uma
exatidão; mesmo se as técnicas cartográficas permitiam uma exatidão (como é o caso do mapa
de Rego Monteiro), o próprio ato de reconstituir graficamente a espacialidade de localizações
construídas há, então, trezentos anos atrás, só pode resultar em elaborações provisórias.
ISSN: 2525-7501

105

O mapa mais comumente citado acerca das Reduções da Primeira Fase é mais conhecido
pela sua publicação no trabalho de Porto; porém, sua estreia bibliográfica saiu em uma separata
de Terra Farroupilha, em tamanho maior, 15 anos antes. De modo geral, o mapa elaborado
pelo P. Luis Gonzaga Jaeger é elucidante; a localização parece deixar claro o posicionamento
das Reduções, usando como referência espacial principal as bacias dos rios às quais fazem
parte. Jaeger, que é o pioneiro na pesquisa das Reduções da primeira fase aparentemente devido
à sua devoção ao Padre Roque Gonzalez, revisa as Cartas Ânuas em busca de informações para
seu importante artigo. Na época, era faltante a carta de Pedro Romero, que elencava pormenores
ISSN: 2525-7501
fundamentais acerca da maior parte das Reduções do Tape, por conta disto “Enquanto, porém,
não dermos com o paradeiros das Cartas Ânuas de 1632-1634 da Província do Paraguai, nosso
estudo há-de, forçosamente, basear-se em conjecturas mais ou menos plausíveis” (JAEGER,
1936a, p. 11). Sua credibilidade está assentada em dois mapas: um mapa dedicado ao Real
Provincial Vicente Carrafa, “construído pelos jesuítas desta Província”, que seria o primeiro
mapa da Província do Paraguai e que não é apresentado; e um mapa atribuído ao jesuíta Luiz
Ernot38, disponível na página 12. Em uma nota de rodapé sobre Ernot, esclarece: “É autor do
mapa mais antigo que conhecemos acerca do Paraguai, feito provavelmente em 1631 ou 1632,
portanto, anteriormente ao de Carrafa, o qual em quase tudo é cópia fiel do de Ernot, até nos
erros.” (JAEGER, 1936a, p. 13). Assim, atribui autoridade informativa sobre o mapa que
publicou em seu artigo e nele se baseia para formular o seu, ressalvando que “não havendo
ainda precedido um exame minucioso, da nossa parte, de todas as reduções, vemo-nos
obrigados a apresentar um mapa apenas provisório e isso tanto mais quanto o serviço de
levantamento do Rio Grande do Sul ainda não está terminado” (JAEGER, 1936a, p. 13).

A nível de utilidade atual, os rios, como única medida de localização das Reduções neste
mapa, têm suas curvas uniformizadas em excesso, sendo o Ijuí um exemplo disto: a Redução
106
de Assunção do Ijuí, supostamente encontrada por Jaeger, segundo artigo de 1936; tem como
principal referência uma curva do Ijuí, que o mapa não mostra por questões de escala. Este
primeiro mapa de Jaeger viria a apresentar um estilo e informações que ecoariam no exemplar
posterior, sendo clara referência de um estudo aprofundado na área, como o próprio autor viria
a demonstrar em artigos concomitantes (JAEGER, 1933, 1936a). Adicionalmente, alguns rios
em cujas margens, ou proximidades, se encontram Reduções, não são nominados. Isto é um
problema particular diante do grande número de rios, arroios e córregos existentes cuja
figuração total poluiria o mapa, seria interessante fazer todos os que são representados
possuírem alguma indicação além de seu traçado que, como vimos, é elementar.

Rego Monteiro parece partir destas últimas informações para realizar sua abordagem,
em clara suplementação ao trabalho de Jaeger. Ao se inteirar sobre a existência da “Carta de
Ernot” e o “mapa de Carrafa” observa distorções entre um e outro e promove uma correção das

38
Atuou no Tape e fundou a Redução de São Tomé.
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longitudes, calculada sobre mapas modernos (REGO MONTEIRO, 1939, p. 16-18). Dispondo
da minuciosa carta de Leovegildo Silveira, ele cria uma alternativa mais plausível ao mapa
elaborado por Jaeger, pontuando no seu mapa através das coordenadas atualizadas e da consulta
a alguns autores que versam sobre a mesma cepa. Contanto, sua hipótese é prejudicada por,
provavelmente, ter utilizado a versão da Carta de Ernot publicada em Jaeger que não é a versão
em tamanho natural do mapa, “na qual, infelizmente, as falhas na impressão não nos permitiram
localizar algumas Reduções” (REGO MONTEIRO, 1939, p. 17). Uma assertiva correta sobre
as informações oferecidas por Jaeger descansa na dedução de que a legenda da Carta de Ernot
informa sobre Reduções destruídas, assim como retrata localidades e outras Reduções
existentes – “ora essa Reduções foram destruídas e abandonadas entre 1636-1638, logo esse
Mapa que a elas se refere, só pode ser posterior à sua destruição” (REGO MONTEIRO, 1939,
p. 18).
Diante disso, é notório partirmos para um segundo momento, onde é preciso pesquisar
acerca do mapa de Carrafa e da Carta de Ernot, visto que tanto Jaeger como Rego Monteiro as
utilizam como fontes primárias. Jaeger, ao afirmar que o mapa de Carrafa havia sido publicado
em um volume holandês intitulado Atlas Major [sic] (JAEGER, 1936a, p. 12) passou realmente 107
perto de evitar o surgimento do enigma que tentamos desvelar.
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108

Organizado por Ioannes Bleau e seu pai, Wilhelm Blaeu, o Atlas Maior (Theatrum Orbis
Terrarum sive Novus Atlas) foi a maior compilação de mapas do mundo na sua época possuindo
11 volumes e mais de 500 mapas de todo o globo terrestre, sendo utilizado para muitas
finalidades além da cartografia, apresentando informações etnográficas, históricas e
topográficas em conjunto visual (VAN DER KROGT, DE GROOT, 2014). Um destes mapas,
Paraqvaria vulgo Paragvai. Cum adjacentibus (acima), é voltado para a cartografia do Rio da
Prata, possui uma dedicatória a Vincenzo Caraffa (Carrafa [sic]), Superior Geral da Ordem dos
Jesuítas entre 1646 e 1649. No canto inferior direito pode ser vista a assinatura de Ioannes Bleau
e ao lado da dedicatória, a menção a Gerard Coeck, impressor. A data exata de criação do mapa
é 1667 (BUISSERET, 2007, 1168), muito embora isto possa ser posto em dúvida dado que
existem várias versões do Atlas Maior, um trabalho que levou mais de uma década para ser
concluído; e também por que provavelmente a compilação de mapas de Blaeu e seu pai tenha
se iniciado anos antes da publicação da primeira edição do atlas.
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Em termos gerais, ele é quase idêntico ao mapa oferecido por Jaeger n’As Primitivas Reduções,
atribuído ao padre Ernot e dito antecessor, mas diferenças cruciais estão no título e legendas,
que foram trocadas de posição pela supressão da dedicatória do canto inferior direito, cujas
molduras barrocas com volutas são substituídas por imagens de arcanjos e “autóctones”. Na
verdade, esta versão aparece pela primeira vez na publicação de John Ogilby, America..., em
1671 (XAVIER, 2012, p. 54, OGILBY, 1671), uma compilação fastidiosa de várias obras do
período sobre as terras além do Atlântico, que era uma versão inglesa da obra do holandês
Arnoldus Montanus, de 1671 (MONTANUS, 1671). Contanto o texto seja uma tradução da
pesquisa holandesa, Ogilby acrescentou mapas e textos de outras fontes diversas que modificou
com seus conhecimentos técnicos de cartografia, de forma a dar contingência e agregar
originalidade ao livro – os nomes de Blaeu e Coeck estão ausentes nesta segunda versão do
mapa. Desta forma, a referência de Jaeger e Rego Monteiro, que fundamentam a pesquisa
cartográfica da localização das Reduções, são de uma versão simplista que figura mais como
ilustração nas enciclopédias de Montanus/Ogilby do que como um elán para a exatidão. De
forma definitiva, podemos considerar que é mais plausível considerar Blaeu o autor original
por conta dos méritos obtidos através do Atlas Maior, do momento histórico quando ele foi 109
publicado e por conta de sua própria assinatura no canto inferior direito39.
A dedicatória do mapa leva à discordância entre alguns estudiosos de mapas jesuíticos,
como Newton Xavier, a considerar “a dedicatória do mapa ao Geral da Companhia, Padre
Vicente Carrafa (1585-1649), certamente não partiu de Blaeu ou Ogilby. É inspirado no mapa
produzido pela Companhia de Jesus” (XAVIER, 2012, p. 54). Isto não deixa claro de Xavier
reconhece Ernot como o autor do mapa, mas de qualquer forma, parece indicar que existe um
primeiro mapa produzido por Ernot, ainda por descobrir. Outro especialista da cartografia
jesuítica, David Buisseret, no entanto, oferece uma explicação mais aprofundada comentando
sobre a importância da Ordem para a cartografia do período, onde pontos fixos como rios eram
de particular atenção para os fabricantes e aficionados por mapas no século XVII: “When Joan
Bleau printed this map and dedicated it to the Jesuit superior general, he was no doubt
acknowledging the way in which the members of that order had mapped out the course of the

39
Uma disputa entre diferentes cartógrafos holandeses como de Laet, Janssonius e Blaeu ocorria no período e
incentivou o desenvolvimento e difusão de mapas e técnicas cartográficas no século XVII (Van de Krogt, De
Groot, 2014. Ver Referências Digitais).
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great rivers” (BUISSERET, 2007, p. 1169). Enquanto o conhecimento in loco dos jesuítas em
definir as posições dos rios era essencial para saber onde se localizavam suas Reduções
apostólicas, para os cartógrafos, este era um objeto de interesse comum no momento de povoar
os espaços de seus planisférios. Embora, para se resolver essa questão seria ideal uma tradução
da dedicatória, apenas podemos descartar a ideia de que o mapa em questão era de fato,
desenhado por Ernot.
Guillermo Furlong (1936) em sua conhecida compilação, Cartografía Jesuítica del Río
de la Plata, de 1936, também ilustra em sua obra a versão de Ogilby, atribuindo-a a Ernot, o
que nos faz pensar mais uma vez que, já que Ernot não é de fato o autor do mapa em questão;
possa ter, entretanto, realmente produzido um mapa acerca das regiões que teria sido utilizado
por Bleau como referência. Jaeger comprova isto, em outro artigo, citando o volume XIX do
Documentos para la Historia Argentina,
“O sábio Carlos Leonhardt, S. J., quando publicava em 1927 o mencionado tômo XIX, pensava dever atribuir esse
mapa ao jesuíta flamengo Nicolau Henard. Mas, em carta de 2 de março de 1936, ao infraescrito, o padre
Leonhardt, além de oferecer uma fotografia dêsse mapa e a generosa licença de reproduzi-lo em nossa Revista,
confessa que, após estudos mais minuciosos das cartas dos padres gerais da Companhia de Jesus, existentes nos

110
arquivos da Ordem, encontrou uma missiva do padre geral Múcio Vittelleschi de 30 de novembro de 1634, na qual
agradece ao padre Luis Ernot a remessa do mapa geográfico do Paraguai recebido em 1632.
De modo que o autor não é Nicolau Henard, e sim Luis Ernot, que terminou o mapa não em 1640, e sim, antes de
1632” (JAEGER, 1936b, p.10).

Contanto, apesar de apontar a origem do engano que têm repercutido através dos anos,
a carta de Vittelleschi adiciona uma data, 1632, na qual ainda não haviam sido fundadas
Reduções que foram plotadas por Blaeu. Isto indica, definitivamente, que Ernot produziu um
mapa, hoje desaparecido – e que Blaeu possuía informações bastante relevantes para a
elaboração de Paraqvaria vulgo Paragvai. Cum adjacentibus (talvez por isso a dedicatória ao
Geral da Ordem Jesuítica?). Neste ponto, resta apenas prosseguir a pesquisa em busca de mais
informações e do mapa de Ernot, cuja localização ainda ignoramos.
Com esta extensa exegese da cartografia, constatamos que a utilização dos mapas que
atualmente dispomos deve ser tratada com cautela, dado que ainda estão desaparecidos as
referências cartográficas de primeira mão.

Reduções da Primeira Fase e Comparação Locacional


ISSN: 2525-7501
Neste segundo momento, convém reunir as informações arqueológicas disponíveis à
informação cartográfica levantada. Para confrontá-las, parece natural partirmos do mapa mais
antigo, de Blaeu, aparentemente mais confiável por sua situação temporal quanto profissional
de seu autor, mas também disponibilizamos as posições das Reduções em questão dos mapas
de Jaeger (1936a), Rego Monteiro e Carvallo. As plotagens dos mapas supracitados foram
deduzidas através das distâncias referidas aos diferentes rios da região com base no SNIRH,
como já citado. Aqui demonstramos uma ampliação do mapa holandês na região do Tape com
as Reduções circuladas em vermelho40.

111

No mapa de Blaeu existem alguns tipos de referências espaciais, onde geralmente o


espaço entre rios e localidades está desenhado. Enquanto as montanhas ao norte de Santa Tereza
parecem decididamente mais altas do que os cômoros que povoam a parte central do mapa,
também há vegetações que sugerem capinas ou planícies, sem que formações naturais notáveis
se façam representar. Os rios oferecem, seguindo a sugestão de Bruisseret, as melhores

40
Sem a disponibilização virtual do mapa na Biblioteca Digital Luso-Brasileira, este nível de detalhe seria de todo
impossível (ver Referências Digitais, após a Bibliografia). Mapa editado pelo autor.
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referências, tanto do ponto de vista toponímico, quanto do deduzido através de suas trajetórias,
ainda que as suas linhas e curvas, de modo geral, pareçam uniformes. As letras Q., P., e R. se
referem a uma legenda de territórios ausente do mapa.
Jesus Maria, assinalada como ĨHS MA, está nas margens do Rio Iequi, hoje o Rio Pardo,
inferido pela sua confluência com o Yguaí (Jacuí). Fundada em 1633, a Redução seria a primeira
a ser atacada pelas invasões bandeirantes em 1636 e destruída. Pedro Mentz Ribeiro a pesquisou
intensivamente na década de 1970 (RIBEIRO, 1976, 1991). O material coletado se encontra no
Museu do Colégio Mauá e na UNISC, em Santa Cruz do Sul. A Redução se situa no atual
município de Candelária, próxima cerca de 4,3km das margens do Rio Pardo, e é caracterizada
pelos restos de uma taipa defensiva erigida antes do ataque bandeirante. Na visualização de
satélite abaixo, a plotagem de Rego Monteiro ficou muito distante das outras e foi omitida.

112

Onde deve ser notado que o marcador verde representa o sítio exato da Redução, pode-
se perceber a discrepância das tentativas de reconstituição das localizações anteriores. É curioso
notar que a tentativa de Carvallo foi menos exata que a de Jaeger, muito embora ele tenha
concluído seu trabalho mais de 40 anos depois de Jaeger.
As Reduções de Candelária do Caaçapamini e Mártires do Caaró, pela sua proximidade,
serão tratadas em coletivo. Candelária foi uma das primeiras a ser fundada no Tape, em 1628.
ISSN: 2525-7501
A ânua do Padre Pedro Romero dá notícias de um grande incêndio e da remediação deste com
a cobertura de muitas casas da localidade com telhas (ROMERO, 1634, p. 65); quase
quatrocentos anos depois, estas telhas foram encontradas em 1970, por Pedro Ignácio Schmitz,
José Brochado, Ítala Becker. Maria Helena Schorr, Rolf Steinmetz e Danilo Lazzaroto,
acusando o local da Redução, na cidade de Rolador, antigo distrito de São Luiz Gonzaga.
Apesar de pesquisas terem então sido realizadas no local, apenas em 1999 os resultados foram
publicados sob a forma da dissertação de Neli Machado 41; o material encontrado está na
UNIJUÍ, no Museu Diretor Pestana (MACHADO, 1999, p. 68). Mártires do Caaró foi marcada
na história jesuítica como o local do martírio de Afonso Rodrigues e Roque Gonzalez, quinze
dias após sua fundação (Jaeger, 1951, p. 239-241) – depois disso, teria sido refundada em outro
local. O também jesuíta Jaeger promoveu profunda pesquisa em busca do local exato do
ocorrido e acabou por localizar algumas evidências que poderiam estar relacionadas a esta
primeira ocupação (Jaeger, 1933, 1936b, 1951). O paradeiro do material é desconhecido e
supostamente teria ocorrido no local onde hoje existe o santuário do Caaró, em São Miguel das
Missões.
113

41
Uma versão resumida foi recentemente disponibilizada e oferece uma alternativa à difícil localização da
dissertação (MACHADO, 2016).
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No caso de Candelária do Caaçapaminí, as reconstituições de Jaeger e Carvallo ficaram
mais próximas, mas ainda cerca de 20km distantes do sítio arqueológico. Rego Monteiro, muito
embora pareça utilizar recursos mais técnicos, plota a Redução a mais de 50km de distância. O
caso do Caaró é um pouco mais delicado, pois o Santuário (marcador amarelo) estaria situado
sobre os poucos restos de uma ocupação de duas semanas e os materiais encontrados tem a
chance de se referir a uma ocupação mais tardia42. A segunda ocupação, habitada até o seu
abandono em 1636 ou 1637, continua oculta e relacionada aos marcadores brancos acima – mas
não sabemos se tanto Rego Monteiro quanto Carvallo se referem a esta segunda ocupação. O
mapa de Blaeu parece localizar Candelária do Caaçapaminí próximo às nascentes de um
tributário do Ijuí que ele não nomeia, mas que poderiam ser as nascentes do atual Arroio
Rolador, realmente muito próximo de onde a Redução está. Contanto, a carência toponímica
nos impede de garantir essa certeza. Com relação ao Caaró, Martyres, no mapa de Blaeu, estaria
logo acima (ou lado, conforme a posição real do Rio Ijuí) de Candelária, atravessando um outro
corpo d’água, que dadas as feições atuais da superfície, poderia ser o atual Arroio Uruquá; em
virtude da mesma carência informativa é impossível determinar com clareza – mas deve ser
reiterado que, caso Blaeu realmente tenha se referido ao Uruquá para localizar Martyres, a 114
descoberta do padre Jaeger ficaria comprovada.
São Miguel do Itaiacecó, em São Pedro do Sul, foi descoberta em uma conjuntura
peculiar; pois junto a esta Redução coincide um dos maiores painéis de petroglifos do Rio
Grande do Sul, o Abrigo da Pedra Grande (RS-SM-07). Localizado por José Brochado e Pedro
Ignácio Schmitz, o horizonte escavado na quinta ocupação do sítio foi inicialmente associado
à Redução de São João (BROCHADO, SCHMITZ, 1970, p. 126), mas escavações posteriores,
em 1996, dedicadas ao estudo desta ocupação corrigiram a informação (BROCHADO, 2001).
O material encontra-se na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

42
Jaeger (1951, p. 300-304), realiza algo que se pode chamar de abordagem arqueológica das evidências por ele
encontradas no local, que carecem maior interpretação, dado que o jesuíta sequer considerou de que, talvez,
estivesse enganado. Não obstante, suas conclusões nos parecem plausíveis; mas não as únicas.
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A Redução está localizada próxima do Rio Toropi, afluente do Ibicuí, escrito no mapa
de Blaeu como Ybicuiti (cortado no trecho disponibilizado). Infelizmente, Blaeu não nomeia
apenas o Tibiquacin, que, dedutivamente, poderia ser o atual Rio Jaguari ou Jaguari-mirim.
Segundo o SNIRH, existem pelo menos quatro outros afluentes entre o Jaguari e o Toropi
115
(região esta na qual se localizaria a Redução de São José). Por sua vez, a Redução de São Cosme
e Damião se situa próxima ao último rio marcado na região; que provavelmente seria o Ibicuí-
mirim.
Carvallo e Jaeger, embora tenham plotado suas localizações próximas, erraram o lado do rio,
um equívoco quiçá provocado pela ausência de informações nas referências históricas sobre
qual margem a Redução estaria situada. Já Rego Monteiro a coloca “a margem direita do Ibicuí”
(REGO MONTEIRO, 1939, p. 33), posicionando-a as margens esquerdas do Ibicuí-mirim, o
que pode ser talvez um engano ocasionado pela sua confiança na tradução das coordenadas.

Capítulo III - Conclusões e Continuidade do Projeto


Algumas ideias gerais puderam ser explicitadas conforme a pesquisa se desdobrou.
Baseada em um esforço questionador das fontes tidas como definitivas, foi realizada uma
exegese dos mapas encontrados cujo tema eram as Missões Jesuíticas da Primeira Fase do Tape.
Logo se notou que uma série de crescentes imprecisões vieram conforme as fontes primárias,
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ainda por se localizar, ficavam distantes no passado. Contanto, convém subverter estes lapsos
em informações úteis para a continuidade do projeto, não simplesmente descartando o esforço
dos antigos pesquisadores e tampouco relevando as evidências que se fizeram plausíveis.
Se por um lado deve-se prosseguir em busca do mapa elaborado por Luis Ernot, também deve-
se aprofundar o levantamento das fontes históricas relevantes que auxiliem na empreitada.
Embora vários autores como Teschauer, Gay, Techo, Pastells, Serafim Leite, Azara, dentre
outros, já foram avaliados, não cabia nas páginas cedidas uma tratativa a respeito, caso a caso,
das informações levantadas. Uma vez conclusa essa etapa, as Reduções com maiores
informações e maior proximidade a Reduções já localizadas serão o alvo de pesquisas mais
aprofundadas, onde entra a margem de erro gerada pelos pesquisadores pretéritos.
Utilizando as coordenadas e plotagens equivocadas, se montará um banco de dados das
mesmas, mensurando distâncias com relações aos pontos que já se conhece possibilitando a
criação de um referencial de variáveis a ser utilizado para restringir a área de pesquisa de
campo. Embora seja necessária a criação de critérios adicionais para o uso seguro desse banco
de dados, assim como uma melhor definição metodológica do mesmo, acredita-se que o seu
objetivo final não é delimitar com precisão o local de uma Redução, e sim, circunscrever o 116
potencial de áreas totais para uma eventual saída de campo.

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118
ISSN: 2525-7501
A DECADÊNCIA DAS MISSÕES E A DISPERSÃO DA ESTATUÁRIA
MISSIONEIRA *43
Linara Cristina dos Santos**

RESUMO

A dispersão da imaginária missioneira, proveniente dos Sete Povos das Missões, está
diretamente ligada ao processo que ficou conhecido como “decadência das Missões”, o qual
iniciou com a expulsão dos jesuítas em 1768 e se intensificou com a Conquista das Missões em
1801, pelos luso-brasileiros. As frentes demográficas empreendidas pelos novos povoadores e
o fenômeno do tropeirismo, foram fatores preponderantes que pretendemos analisar neste
artigo, como sendo elementos essenciais que explicam a dispersão e a mobilidade da estatuária
missioneira no decorrer do século XIX, mais especificamente no que diz respeito as imagens
missioneiras de Santa Bárbara e São João Batista remanescentes no município de Santa Bárbara
do Sul-RS.
Palavras-chaves: Dispersão; Imaginária Missioneira; Santa Bárbara do Sul.

INTRODUÇÃO 119
O referido artigo trata do contexto histórico da decadência das Missões, que
desencadeou a dispersão da imaginária missioneira. Num primeiro momento, centra-se a
análise na mobilidade indígena que teve início logo após o Tratado de Madri e se intensificou
com a aceleração do processo de decadência dos Povos após a expulsão dos jesuítas em 1768
e administração leiga espanhola.

A Conquista das Missões em 1801 pelos luso-brasileiros e os inúmeros conflitos


decorrentes do processo de independência dos países do Prata agravaram a situação de
degradação dos Povos e, consequentemente, a dispersão dos objetos sagrados das Missões,
devido a maior mobilidade indígena, mas também pelos constantes saques e roubos, aos quais
as antigas reduções foram submetidas.

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Graduada em História UNIJUÌ, Especialista em História e Cultura Indígena e Afro-Brasileira, ULBRA,
Mestranda em História Regional –UPF. Linaracris@hotmail.com
ISSN: 2525-7501
A dispersão das imagens remanescentes no município de Santa Bárbara do Sul podem
ter sido produto de dois fenômenos sociais e econômicos: o primeiro deles, o tropeirismo, pois
a origem dos primeiros povoadores são das rotas tropeiras, e este fenômeno foi responsável por
integrar economicamente a região noroeste do estado do Rio Grande do Sul com o centro do
país. O segundo fator se deve a colonização estancieira que foi empreendida por “paulistas”
logo após a Conquista das Missões em 1801 e se consolida até meados de 1860.

Capítulo I – O Contexto da Decadência das Missões e a dispersão da Imaginária


Missioneira
Para entendermos a decadência das Missões e a dispersão da imaginária missioneira é
necessário retroceder até o ano de 1750, data da assinatura do Tratado de Madri, que marca o
início do processo.

O Tratado de Madri de 1750 foi firmado entre as Coroas de Portugal e de Espanha para
definir os limites de suas possessões na América Meridional, que estavam em constante litigio.
Basicamente, ficou acordado que Portugal cederia a Colônia de Sacramento à Espanha, em
troca dos Sete Povos das Missões, os quais deveriam ser entregues aos portugueses evacuados
dos índios.

Uma parte da população missioneira se opôs ao tratado e resolveu resistir e defender as


120
Missões dando origem as Guerras Guaraníticas (1753-1756). Outros aceitaram migrar para a
outra margem do Uruguai e alguns índios optaram “por se aliarem aos lusitanos e, num segundo
momento, ao migrarem aos seus domínios, tornando-os súditos do rei Fidelíssimo”. (GARCIA,
2007, p.31).

As guerras guaraníticas aconteceram em dois momentos: em 1754, os exércitos de


Portugal e Espanha entram nos Povos separadamente e tiveram que retroceder. No ano de 1756,
as forças castelhanas e luso-brasileiras se reorganizaram e entraram coligados nas
Missões.Após vencerem a resistência indígena na Batalha de Caiboaté, os exércitos ibéricos
entraram nos Sete Povos.
A tática dos portugueses com relação aos índios era outra, enquanto os exércitos
castelhanos dividiam o butim de guerra, Gomes Freire proibiu o mesmo fosse feito pelas tropas
lusitanas. (GARCIA, 2007, p.55)

O “bom tratamento” dispensado aos índios por Gomes Freire fazia parte de um plano
arquitetado pelo futuro Marques de Pombal.44

44
Sebastião Xavier de Carvalho Melo, futuro Marques de Pombal, enviou uma carta secretíssima à Gomes Freire
de Andrada, na qual ordenava que fosse colocado em prática medidas para atrair os índios aos domínios
portugueses. (GARCIA, 2007, P.33)
ISSN: 2525-7501
Um dos primeiros indícios que as relações entre os portugueses e os índios missioneiros
se modificaram foi quando em 1757, Gomes Freire decidiu se retirar para Rio Pardo e centenas
famílias de indígenas o teriam acompanhado para migrarem aos territórios portugueses para a
construção de povoamentos.45

Uma das causas da dispersão durante a transmigração foi o fato de que as imagens
ficavam com as índias. Essas ao se casarem com os soldados46 ou aventureiros levavam consigo
seus santos devotos para várias partes do Rio Grande do Sul. (AHLERT, 2012, p. 257).

Devido aos embaraços, da resistência indígena nas guerras guaraníticas, dos onze anos de
trabalho duro dos demarcadores para fixar a linha fronteiriça, da ocupação militar dos Sete
Povos e da extradição dos índios missioneiros para a outra margem do Rio Uruguai, que
teimavam em voltar aos seus Povos de origem, em 1761 o Tratado de Madri foi anulado pelo
Convênio de El Pardo. “Teoricamente tudo voltaria a situação anterior. Entretanto, durante a
breve vigência do Tratado de Madri os portugueses haviam estendidos seus domínios até Rio
Pardo.” (GOLIN, 2002, p.71), ponto estratégico para o avanço das frentes de expansão.

Não foram somente os portugueses que optaram por construir alianças com os índios
missioneiros.

Em 1767, o rei espanhol Carlos III firmou um Decreto para a expulsão da Companhia de
Jesus de todos os territórios espanhóis. Incumbiu o Governador de Buenos Aires Francisco de
Paula Bucareli y Ursa de proceder a expulsão.
121
Desta vez, a coroa espanhola “achou importante agir de forma diferente com relação a
demarcação do Tratado de Madri na década de 1750, que resultou na rebelião indígena
conhecida como Guerra Guaranítica”. (RANZAN, 2011 p.33).

Por isso, Bucarelli resolveu convocar 27 caciques e 30 Corregedores para representar os


Trinta Povos na capital Buenos Aires. Durante a estadia outorgou-lhes diversos privilégios.
Essa estratégia tinha a intenção de conseguir a confiança dos líderes indígenas para evitar uma
rebelião no momento da notificação da expulsão da Ordem.

Para Guilhermo Wilde a expulsão dos jesuítas dos Povos pode ser entendida como um
processo que começa um ano antes e teve duas grandes fases: a primeira, ocorrida em setembro

45
Os índios missioneiros que migraram a mando de Gomes Freire foram encaminhados para a constituição dos
povoamentos em Nossa Senhora da Conceição do Estreito (Estreito), São Nicolau do Rio Pardo ( 5 km de Rio
Pardo), Guarda Velha de Viamão (Viamão) e Nossa Senhora dos Anjos (Gravataí), São Nicolau do Jacuí (
Cachoeira do Sul) e Fazenda Real (Mostardas entre São Simão e Palmares) (AHLERT, 2012, p.257)
46
Entre as medidas que o futuro Marques de Pombal ordenou que fossem colocadas em prática para atrair os índios
para o lado lusitano foi a que “deveriam ser alvo de privilégio os lusitanos que se casassem com a índias.”
(GARCIA, 2007, p.34) Durante o período de ocupação militar nas Missões muitos soldados se ofereciam para
casar com as índias. Segundo Tau Golin as “índias passam a viver em concubinato ou casando com os primeiros
povoadores.” Formavam novas famílias. “Essas guaranis tinham sido educadas pela moral jesuíta, sabiam seus
deveres de esposas” (...) “eram civilizadas par aos padrões da época, muitas deles letradas.” (GOLIN, 1999, p.31)
ISSN: 2525-7501
de 1767, quando os caciques e corregedores foram convocados a irem a Buenos Aires
representar os Trinta Povos onde foram vestidos com roupas de nobres participaram de
cerimônias oficiais, e lhe são outorgadas a possibilidade de acender ao título de “Dom” e
autorização para seus filhos se tornarem sacerdotes. (2001, p.83)

Já a segunda fase consistiu na execução do Decreto. A “entrada” no Povo é feita cheia de


pompa.47 O comissário é recebido pelos caciques que residiam em Buenos Aires por vários
meses, com a aclamação ao Rei espanhol na Praça Central e missas na igreja. Por último, os
funcionários notificam os jesuítas do Decreto, designam o administrador e o novo cura.
(WILDE, 2001, p.84)

O êxito da execução do Decreto se deve ao fato de a relação entre os índios e os jesuítas


já se encontravam deterioradas especialmente nos Povos que haviam sido afetados pelos
conflitos decorrentes do Tratado de Madri. (WILDE, 2001, p.88)

Para a parte “espiritual” dos Povos foram designadas três ordens religiosas: a franciscana,
a mercedária e a dominicana. Após a expulsão dos jesuítas “formam-se dentro de um mesmo
povoado três instâncias de poder: os padres, os administradores e os cabildos. (RANZAN, 2011,
p.42)

O antropólogo argentino Guilhermo Wilde chama atenção para o fato de que “el nuevo
régime introduce la separación previamente inexistente entre el poder temporal y el poder
espiritual” (2001, p.88)
122
.No início da década de 1770, o governador de Buenos Aires, Francisco de Paula Bucareli
e Ursua foi substituído por Juan José de Vértiz (RANZAM, 2011, P.44).

O novo governador nomeou Juan Angel Lazcano como administrador geral, sediado em
Buenos Aires, para negociar os produtos que chegavam das Missões e pagar impostos à coroa.
Também ordenou que fosse realizado um censo minucioso nos povos pelo coronel Larrazabal.
Do resultado deste censo, os trinta Povos foram divididos em quarto departamento (Yapeyú,
San Miguel, Concepción, Candelária e Santiago) dirigidos por um tenente que foi estabelecido
a partir de 1774. Com essa nova divisão, Zavala ficou responsável por apenas um departamento
o que o “levou a uma batalha judicial contra Lazcano e a nova organização até pelo menos
1784.” (Idem)

Em 1784, Vertiz se torna o Vice- rei do Prata e aplica a “Real Ordenanza de Intendentes”.
Nesta nova organização fica estabelecida a criação de intendências “de modo que os
departamentos de Yapeyú, San Miguel e Concepción ficam a cargo de Buenos Aires, e
Candelária e Santiago com a do Paraguai” (RANZAN, 2011, p.85)

47
A descrição detalhada da “entrada” no Povo de São Miguem feita por Francisco Bruno Zavala encarregado da
execução do Decreto de Expulsão nos Povos Orientais do Rio Uruguai. Ver WILDE, Guihermo. Religión y Poder
em las missiones guaranies. P.192.
ISSN: 2525-7501
Toda essa nova organização administrativa parece ter trazido mais confusão e disputa de
jurisdição.

Somente, o cabildo indígena manteve-se “com todas as atribuições pragmáticas e


simbólicas que tinha na fase jesuítica” (AHLERT, 2012, p.264)

No entanto, foi no campo da administração dos Povos, onde ocorreram as mudanças mais
significativas. Ao dividir a gestão entre o administrador secular48 e o cura49, onde o primeiro
era encarregado do poder temporal e o segundo devia-se ater apenas ao bem das almas –isso
gerou uma confusão de autoridades. (WILDE, 2001, p.89) Conforme Gonzalo Doblas, foi essa
confusão que contribuiu para a Ruína dos Povos:
Los indios, acostumbrados a obedecer solamente a sus curas, miraban al principio con
indiferencia, cuanto los administradores les dictaban, de modo que nada se hacía sin
consultarlo primero al padre. De estos principios nacieran las grandes discordias entre
curas y administradores, y que contribuyeron en gran parte a la ruina de los pueblos,
(1836, p.21)

Os frequentes castigos que os indígenas eram submetidos era uma consequência do


“monstruo con muchas cabeza”50 que se tornou a administração leiga espanhola nos trinta
povos:

Los curas querían que los indios asistiesen todos los días a la misa y al roscírio (…) 123
los administradores se lo impedían (…) y lo que resultaba era que el cura mandaba
azotar a los que obedecían al administrador y el administrador a los que obedecían al
cura, y unos y otros castigos se ejecutaban en los miserables indios. (DOBLAS, 1836,
p.21)

Além dos castigos, a corrupção dos administradores que transformaram os depósitos dos
Povos em “Pulperías”, o comportamento libertino dos padres, que se apropriaram das casas

48
Os primeiros trinta administradores particulares foram escolhidos pelo vigário de Corrientes. Eram homens
analfabetos e pobres e, portanto, não poderiam lidar com grandes interesses. O segundo grupo de administradores
vieram de Buenos Aires e já recomendava-se saber ler e escrever. Mas entre os novos administradores, haviam
alguns comerciantes, cujos negócios fracassaram, sob os quais pesava dúvidas das autoridades maiores quanto as
suas habilidades e responsabilidades na administração dos povos. (BAPTISTA; SANTOS, 2015,P.39-40)
49
Os jesuítas foram substituídos por curas, franciscanos, mercedários e dominicanos. Para que não tivessem
contato “corporativo” entre os curatos, Bucareli se encarregou de uma nova distribuição dos padres. Por exemplo,
na região dos Sete Povos, as ordens religiosas estavam divididas da seguinte maneira: São Borja (Dominicana),
São Lourenço (Mercedária), São Luiz (Franciscana), São Miguel (Dominicana), São João (Franciscana) Santo
Angelo (Mercedária), São Nicolau (Dominicana). Ver mapa da distribuição das ordens religiosas nos Trinta Povos
em WILDE, Guilhermo. Religión y Poder. En las Misiones de Guaranies op. cit. p.231.
50
Sobre o “monstruo con muchas cabeza” ver capítulo 6 “Curas, Administradores e Cabildantes, In.: WILDE,
Guilhermo. Religión y poder. En Las Misiones Guaraníes. Op. Cit. 211-240.
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principais (colégios), maltratavam os índios, ou ainda, se amancebavam com as índias, fez com
que os índios se decepcionassem com os espanhóis.

De acordo com Maria Cristina dos Santos o retrato das Missões no fim do século XVIII
era de miséria e exploração:

(...) as igrejas entrando em processo de arruinamento, as casas abandonadas pelos


fugitivos, o gado disperso, o comércio na mão dos portugueses, as semeaduras
descuidadas as comunidades repletas de dívidas, os ofícios em grande parte
desaparecidos, os índios famintos, nus e doentes. (BAPTISTA, 2015, p.72)

Diante do exposto, o que se constata é que a organização da estrutura administrativa


imposta pelos espanhóis, após a expulsão dos jesuítas, instituída de forma estranha ao que os
indígenas estavam habituados, somadas as más condutas e corrupções dos administradores
seculares e dos religiosos sem vínculos com essas populações, foi o que provocou a decadência
das Missões e as frequentes fugas dos índios para o território português.

Entretanto, para Maria Cristina dos Santos foram os próprios índios que transformaram
os povoados em ruínas: “se por um lado, os indígenas haviam contribuído durante 150 anos do 124
processo jesuítico o esplendor dos povoados, eles agora faziam questão de transformá-los em
verdadeiras ruínas.” (BAPTISTA, 2015, P.98)

Por isso, a Conquista da s Missões em 1801, esteve mais relacionada com o


descontentamento dos índios com relação aos espanhóis do que com os méritos de Borges do
Canto.

No episódio que culminou na Conquista dos Sete Povos em 1801, Borges do Canto
pretendia apenas “hostilizar o inimigo”, ou seja, atacar as estâncias missioneiras como era de
praxe em períodos de guerra entre as Coroas Ibéricas e que acabou por encontrar um ambiente
favorável para a tão deseja conquista da Missões Orientais. Com o apoio de mais de 300 índios
missioneiros Borges do Canto toma São Miguel em 12 de agosto de 1801. Na verdade, as
Missões foram literalmente entregues aos portugueses. Pelos próprios missioneiros.

Logo após receber a notícia da declaração de guerra da Espanha contra Portugal em 15


de junho de 1801, o governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral, publicou um edital que
perdoava os desertores, para se apresentassem para a Guerra.
ISSN: 2525-7501
Em seguida, Borges do Canto se apresentou ao comandante da fronteira de Rio Pardo,
Tenente Coronel Patrício José Correia da Câmara. para pedir permissão para “hostilizar o
inimigo”51. Solicitou ao comandante homens e armas. Conseguiu apenas uma quantia de
munição das autoridades de Rio Pardo.

De acordo com Tau Golin, ainda em julho de 1801, a guarda de São Martinho foi tomada
pelas tropas milicianas de Manoel dos Santos Pedroso, que não tinha a intenção de conquistar
as Missões e integrá-las ao império português, mas aumentar o número de cabeças de gado nas
suas fazendas através do saque nas estâncias missioneiras e, por isso, foi surpreendido pela ação
de outro desertor:

Enquanto o rival Maneco Pedroso se dedicava a rapinagem no dia 03 de agosto Borges


do Canto tomou o Caminho Geral das Missões, usado a décadas pelos guaranis nas
viagens entre os Povos e Santa Tecla, para, apenas em nove dias, conquistar São
Miguel. (GOLIN, 2002, p. 214)

Neste ínterim recebeu a notícia de um índio fugitivo do Povo de São Miguel que se
quisesse atacar esta redução poderia contar com a adesão de sua população, pois estava
insatisfeita com a administração espanhola dos Povos. (GARCIA, 2007 p.188). Também
125
informou existir na estância de São João-Mirim uma patrulha com cinco espanhóis e mais
adiante havia um acampamento com 30 espanhóis e 300 índios.

Ao proceder o ataque ao referido acampamento, os índios começaram a fugir, quando


Borges do Canto mandou Gabriel Almeida fala com eles na língua guarani e convencê-los a
seguirem com Canto para as Missões.

Borges do Canto acompanhado de sua escolta e desses 300 índios rumou em direção a
São Miguel e sitiou o Povo, intimando o Tenente Governador dom Francisco Rodrigo a rende-
se. Este, por sua vez, solicitou três dias para deliberar. Devido a desordem a qual se encontrava
o Povo de São Miguel e com medo de uma rebelião e a consequente perda dos outros Povos,
dom Francisco Rodrigo aceitou a rendição e capitulou em 13 de agosto de 1801.

51
Hostilizar o inimigo era uma prática comum na América Meridional em períodos de guerra entre as duas coroas
ibéricas. Consistia na autorização dos governadores a aventureiros a realizar roubos em terras espanholas, sem
serem incomodados por isso. (GARCIA, 2007, p184)
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O que podemos constatar o que levou a conquista das Missões em 1801 pelos luso-
brasileiros é que tanto “Borges do Canto quanto Gabriel Almeida foram políticos hábeis na
construção de sua relação com os índios missioneiros” (GARCIA, 2007, p. 191)

Apesar dos esforços das autoridades portuguesas às Missões são pilhadas por soldados e
particulares e se encontram em um estado deplorável já no ano seguinte a Conquista.

Os saques, os roubos dos objetos sagrados e a reocupação do espaço fazem com que se
acelere o processo de degradação dos Povos. A imaginária, por sua vez, vai sendo apropriada
por luso-brasileiros, cujos remanescentes podem ser encontrados em várias cidades do atual
estado do Rio Grande do Sul, em casa de particulares que as conservam por gerações.

Outro fator determinante que promoveu a mobilidade indígena e, consequentemente, a


dispersão da imaginária missioneira foram os inúmeros conflitos devido ao conturbado período
da independência dos países da região do Prata.

Dentre os conflitos do período, o que mais ressoou nos Sete Povos foi o conduzido pelo
uruguaio José Artigas, que pretendia promover a independência do Uruguai com a anexação 126
dos Sete Povos.

Entre os anos de 1816 e 1820, a situação das reduções foi marcada pela instabilidade. As
incursões de ambos os lados, ou seja, das tropas portuguesas ou artiguistas se destacavam pela
“brutalidade sobre a materialidade arquitetônica e bens simbólicos missioneiros.” (AHLERT,
2012, p.274) Por exemplo, em represália aos ataques de Artigas aos Sete Povos, o Brigadeiro
Francisco das Chagas Santos atravessou o rio Uruguai e destruiu parte dos Povos Ocidentais.
Depois, de assolados os Povos, Chagas mandou que todos os objetos de valor fossem enviados
ao Rio de Janeiro.

Além dos saques promovidos nos Povos, a mobilidade indígena na guerra foi responsável
pela dispersão da imaginária, já que os índios “levavam para o campo de batalha seus rituais e
santitos” (AHLERT, 2014, p.273).

O relato da celebração da Paixão de Cristo do ano de 1818, descrito por José Joaquim
Machado de Oliveira, militar paulista, que atuou na guerra contra Artigas, quando da edificação
ISSN: 2525-7501
de dois povoados no local da atual cidade de Alegrete, nos mostra a religiosidade destes povos,
mais de meio século depois da expulsão dos jesuítas:

As imagens do Salvador e dos Bem-aventurados que formam o cortejo celeste, eram


obras das mãos dos índios, qualquer que fosse a matéria de que para esse efeito
servisse. Sem as mais superficiais noções artísticas, só com habilidade que sugere o
natural discernimento e por gênio da imitação, fabricavam eles esses e outros muitos
objetos [...] Assim é que a cópia do gentil e nítido semblante de Santo Antônio era
formada pelo fusco carão de um índio quinquagenário, com todas as feições e gestos
agrestes e cabelo hirto; e o divino filho da Virgem [...} que se assenta nos braços do
canonizado Paduado, expondo idêntica fisionomia a de uma criança indígena, tinha
por vestes um poncho de seda orlado com fimbria de ouro. (OLIVEIRA, 1842, p. 342)

Conforme vimos existia uma política de atração dos índios missioneiros para os domínios
portugueses, desde o projeto do Marques de Pombal, durante a vigência do Tratado de Madri,
foram incentivadas migrações para o território rio-grandense, com a formação de povoamentos
indígenas e a empregabilidade dos mesmos em obras públicas (construção de fortes, igrejas,
acampamentos militares, etc.) e, consequentemente, essas migrações impulsionaram a
dispersão da imaginária, pois “carregar estatuetas de santos em viagens e atividades cotidianas
era prática comum no período missional.” (AHLERT, 2012, p.181)
127
Esse costume permaneceu no período pós-jesuítico como observou o militar paulista,
envolvido na Campanha contra em 1818: “D’estas imagens andavam sempre providas as
maletas das chinas em suas viagens, e, como os Penates dos Romanos, eram expostas no interior
dos copês, quando os podiam construir para receberem as manifestações devotas da família”
(OLIVEIRA, 1842, p. 342)

Diante do exposto podemos constatar que a dispersão da imaginária é fruto desta intensa
mobilidade indígena que vinha ocorrendo desde a época do Tratado de Madri e teve seu ápice
com o êxodo missioneiro de 1828. “promovido por Fructuoso Rivera, quando muitos grupos de
guaranis foram levados a Banda Oriental do Uruguai “(AHLERT, 2012, p.293) com o qual,
segundo a documentação da época, emigraram em torno de nove mil pessoas com sessenta
carretas de objetos das Missões, muitos deles, sem dúvida, imagens de santos.
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No entanto, na região de Cruz Alta, onde se localiza o atual município de Santa Bárbara
do Sul52, não foram constituídos povoamentos indígenas. Esta região teve seu povoamento
efetivado devido a colonização estancieira baseada no trabalho escravo.

A partir da década de 1820, começam a migrar para essa região militares e tropeiros
paulistas53 que se apropriaram dos campos nativos, através de concessões de posse outorgadas
pela Comandância Geral de São Borja.

Através da análise dos registros paroquiais da antiga paróquia do Divino Espirito Santo
da Cruz Alta54 constatou-se que os primeiros moradores da região são oriundos da rota tropeira,
a saber: Sorocaba, Castro, Palmas, Lages, Vacaria, Viamão, entre outras.

Para tentarmos explicar como ocorreu a dispersão da imaginária em direção a região de


Cruz Alta, vamos nos deter no fenômeno tropeirismo, que era outra forma de mobilidade de
pessoas e animais.

Capítulo II - O tropeirismo como fator de integração das Missões ao Brasil e a nova


dispersão da imaginária missioneira 128
Após a efetivação da Conquista das Missões em 1801, as autoridades sul rio-grandenses
trataram de efetivar a ocupação das áreas conquistadas. O processo era conhecido: da conquista
do território passava-se a ocupação através da colonização estancieira, criando-se uma situação
de uti possidetis.

Esse processo sistemático ia da distribuição ou ocupação espontânea de terras para a


criação de gado e posterior edificação de vilas. De acordo com Jacqueline Ahlert:

A partir de 1816, cabildos e administradores luso-brasileiros concederam ou


venderam a preços irrisórios, terras missioneiras e terrenos não designados, visando
que militares, tropeiros e criadores, chegados de São Paulo, Curitiba, Lages e Laguna,
organizassem fazendas criatórias nas antigas estâncias guaranis. (2012, p.272)

52
As imagens missioneiras de Santa Bárbara e São João Batista estão no município de Santa Bárbara do Sul desde
meados do século XIX e este trabalho tenta apresentar o contexto histórico em que elas foram trazidas para esta
região.
53
É importante ressaltar que neste período a Província de São Paulo englobava, além do referido estado, o futuro
estado do Paraná até Lages em Santa Catarina.
54
Foram analisados os registros de casamento e batizados entre os anos de 1828-1862 do Arquivo Paroquial da
Mitra Diocesana de Cruz Alta.
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Assim, os campos nativos da região do antigo município de Cruz Alta foram ocupados
por militares e tropeiros, através do simples expediente de obter concessão das autoridades
militares.

Após a Conquista das Missões e a ocupação do território pelos luso-brasileiros o objetivo


do governo português passa a ser a integração desta região à economia do Brasil através da
abertura de novas rotas que ligasse a região missioneira a Feira de Sorocaba em São Paulo.

O antigo caminho das Missões usado pelos índios para abastecer de gado as Reduções,
através de tropeadas à Vacaria dos Pinhais torna-se um intenso corredor de tropas rumo a São
Paulo, especialmente após a Expedição de 1816, conhecida como Vereda das Missões, que foi
empreendida pelo Alferes Atanagildo Pinto Martins.

Após a Expedição de 1816, pode-se verificar o aumento do fluxo migratório para a região
do Planalto Médio, especialmente de militares e tropeiros procedentes da Província de São
Paulo. Fundaram-se nesta região estâncias pastoris destinadas à criação de muares e invernada

129
das tropas que seguiam rumo a São Paulo. Com o aumento da circulação das tropas pela Estrada
das Missões surgem os primeiros núcleos urbanos, originários de pontos de infraestrutura
destinada aos tropeiros. O primeiro deles foi a fundação da Vila do Divino Espírito Santo da
Cruz Alta em 1821.

Hemetério Velloso da Silveira relata os saques realizado pelo povoadores luso-brasileiros


às reduções para a instalação da Paróquia em Cruz Alta. Como o fato dos quatro sinos que
foram apeados da Igreja de São Miguel e levados para Cruz Alta:

Em 1845, quando foram apeados quatro sinos e conduzidos para a matriz de Cruz
Alta, [...] Do transporte dos sinos, foi encarregado o português Francisco Antônio
Alves [...] que informou ter o maior um peso excedente de cem arrobas de bronze e
haver por essa causa quebrado mais de um eixo da carreta. [...] quando morador de
Cruz Alta ouvimo-los badalar muitas vezes. [...](SILVEIRA Apud BAPTISTA, 2015,
p.235-236)

Este episódio relatado por Hemetério Velloso da Silveira pode ser um indício dos saques
aos Sete Povos e nova dispersão da imaginária missioneira realizados pelos povoadores da
recém fundada Vila de Cruz Alta, como o caso do Major Atanagildo Pinto Martins, que após
empreender a vereda das Missões, em 1816, fixa residência nos campos de Santa Bárbara.
ISSN: 2525-7501
As hipóteses plausíveis para explicar como as imagens missioneiras de Santa Bárbara e
São João Batista foram trazidas para Santa Bárbara do Sul gira em torno da possibilidade que
as mesmas foram saqueadas das Missões e conduzidas até essa região por tropeiros.

130
Figura 02: Imagem de São João Batista
Figura 01: Imagem de Santa Bárbara
(156 cm x 68 cm)
(90cm x 34 cm)
Capela São João Batista
Acervo: Lauro Prestes Júnior
Santa Bárbara do Sul -RS
Santa Bárbara do Sul –RS
Fotografia: Linara Cristina dos Santos

No caso da imagem de Santa Bárbara há duas hipóteses pertinentes. A primeira foi


levantada pelo Cel. Aristides de Moraes Gomes55 na obra “Fundação e Evolução das Estâncias
Serranas” publicada em 1966. Segundo este autor a imagem de Santa Bárbara já era venerada
na estância de Atanagildo Pinto Martins. Quando ocorreu um combate nas imediações da
fazenda, em 1837, durante a Revolução Farroupilha, o altar da santa teria sido atingido por uma
bala perdida.

55
O cel. Aristides de Moraes Gomes é descendente de um dos primeiros povoadores “paulistas” da região de Cruz
Alta, Manuel José da Encarnação, cujos campos faziam divisa com a Fazenda Santa Bárbara de propriedade de
Atanagildo Pinto Martins.
ISSN: 2525-7501
O major Atanagildo Pinto Martins pode ter trazido a imagem de Santa Bárbara dos
domínios missioneiros56. Eram comuns o saque e a apropriação dos objetos sagrados das
Missões pelos luso-brasileiros, especialmente os militares em campanha.

Outra hipótese foi levantada pelo escritor Lauro Prestes Filho, que por muito anos foi
zelador da imagem de Santa Bárbara. Conforme este autor, a região de Santa Bárbara fazia
parte de uma estância missioneira e estas “eram providas de capelas, com as respectivas
imagens de santos protetores que lhes davam os nomes” (PRESTES, 1999, p.13). Por isso, “há
indícios que nos levam a admitir que o nome Santa Bárbara esteja ligado a um destes
estabelecimentos, que teria existido na área onde hoje se situa o município de Santa Bárbara do
Sul.” (Idem).

Esta hipótese se torna consistente se observarmos o mapa elaborado por Miguel Ângelo
de Blasco no século XVIII:

131

Figura 03: Estância São Lourenço

Mappa que contem o pais conhecido da Colonia até as missões e o caminho que fizerão as duas armadas de S.
Magde Filellma e Cattolica. Miguel Angelo de Blasco. 1758. Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Acervo Tau Golin.

56
Nos bens descritos no inventário de Atanagildo Pinto Martins e de sua esposa Ana Joaquina do Amaral não
consta a menção da imagem de Santa Bárbara nos bens arrolados.
ISSN: 2525-7501
De acordo com o mapa é possível constatar que a região do atual município de Santa
Bárbara do Sul fazia parte da estância missioneira do Povo de São Lourenço, onde as
comunicações com os Sete Povos eram feitas através do Caminho das Missões. Havia um fluxo
intenso de missioneiros neste caminho, devido a reserva de gado que existia na Vacaria dos
Pinhais.57

A hipótese levantada pelo escritor Lauro Prestes Filho, que afirmava que “teria existido
pelo menos um posto, em cujo capela estava a imagem da Virgem-mártir” (1999, p. 29) e, por
este motivo, a imagem de Santa Bárbara já estaria na região antes da chegada dos povoadores
luso-brasileiros, há indícios no fato que:

(...) em distâncias mais ou menos regulares de 60 quilômetros, existiam as sedes das


estâncias. Algumas com características de povoado, com lavouras e pastoreio
organizados, rancheiros e postos de controle nas invernadas. Essas unidades eram
pontuadas por capelas adornadas de estátuas de madeira talhadas pelos próprios
missioneiros. (GOLIN, 2015, p.27)

No caso da segunda hipótese, a região do atual município de Santa Bárbara do Sul, fazia

132
parte de uma estância missioneira, onde existiam capelas com santos que davam nomes aos
lugares. Também de acordo com essa hipótese, a imagem poderia ter sido trazida pelos índios
missioneiros, devido a constante movimentação pelo caminho das Missões em direção a
Vacaria dos Pinhais ou confeccionada no local pelos menos, já que apresenta biótipo indígena,
pois era comum os índios talharem suas próprias imagens. O fato de haver na base da imagem
um orifício pode indicar que se tratava de uma imagem que peregrinava, que poderia ser
encaixada em qualquer altar.

No que tange a imagem missioneira de São João Batista, segundo a tradição oral58, a
imagem havia sido trazida da região dos Sete Povos por tropeiros que seguiam rumo a São
Paulo. Devido ao peso da estátua a enterraram perto de um açude na localidade de Álvaro Nunes
Pereira, interior do município de Santa Bárbara do Sul. Anos mais tarde, um outro tropeiro,

57
A Vacaria dos Pinhais foi criada em 1702 com 80.000 cabeças de gado. As vacarias eram locais onde os
padres e os índios missioneiros introduziam o gado para que se reproduzisse de forma natural, sem a intervenção
constante do trabalho de pastoreio. (GOLIN, 1999, p.528)
58
A lenda de como a imagem de São João Batista foi encontrada, baseada em relatos orais, foi publicada no
Jornal Minuano de Santa Bárbara do Sul na edição nº 1284 de 29 de agosto de 2008, na reportagem “Museu:
espaço da Memória do Município”.
ISSN: 2525-7501
morador local encontrou a imagem enterrada e teria construído uma capela de pedra em
homenagem a São João Batista.

Não se sabe ao certo, quando este tropeiro teria encontrado a imagem, mas há um indício
de que a imagem esteja na região de Santa Bárbara do Sul desde a década de 1920, devido a
edição do jornal Correio da Serra- Diário Matutino de Santa Maria, datado de 21 de abril de
1921, que foi encontrado amassado dentro da imagem para preencher o orifício que estátuas de
maior porte tinham em seu interior, quando foi feita a restauração da imagem, no ano de 2010.
O jornal estava endereçado a Feliciano Gonçalves, antigo morador de Álvaro Nunes Pereira.

CONCLUSÃO

O objetivo deste trabalho não é responder como as imagens de Santa Bárbara e de São
João Batista foram trazidas para o atual município de Santa Bárbara do Sul, mas apresentar o
contexto histórico da dispersão da imaginária missioneira, que ocorreu entre o período que ficou
conhecido como Decadência das Missões e a ocupação luso-brasileira após a conquista das

133
Missões em 1801, que acarretou o povoamento efetivo da região do planalto Médio.

Por se tratar de uma região cortada pelo antigo caminho das Missões, percorrida por
indígena, antes mesmo da fundação das primeiras reduções do Tape, e por ter se tornado uma
importante rota tropeira no século XIX, não é possível atestar com exatidão se as imagens
missioneiras remanescentes em Santa Bárbara do Sul, são produto da mobilidade indígena ou
resultado dos saques que ocorreram nos Sete Povos pelos novos povoadores ou pelos tropeiros
que transitavam por esta região.

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135
ISSN: 2525-7501
SÃO MIGUEL ARCANJO: CIRCULARIDADE CULTURAL E HUMANA NO
CONTEXTO DAS MISSÕES JESUÍTICAS DA PROVÍNCIA PARAGUAIA*59

Jacqueline Ahlert **60

RESUMO

As representações imagéticas remanescentes das doutrinas fundadas em princípios do século


XVII na Província Paraguaia, por religiosos da Companhia de Jesus, junto a um variado
conjunto de etnias indígenas, com a predominância de guaranis, constituem um acervo de
cultura material indicativo dos processos de ressignificação religiosa, apropriação de técnicas
e simbologias, bem como de circularidade cultural entre os preceitos religiosos indígenas e
inacianos. Perpassando o século XIX, as imagens acompanharam a movimentação de inúmeros
grupos missioneiros, remanescendo como referências em coleções de museus no interior do Rio
Grande do Sul e Uruguai, afora os espaços expositivos nas adjacências dos antigos pueblos.
Este artigo voltara-se para a iconografia de São Miguel Arcanjo como meio de elucidação desse
complexo conjunto de processos histórico-estético-culturais. Considerando, inicialmente, as
ressignificações acomodativas, a nível linguístico e estético, que sofreu nas doutrinas, como
circularidade conceitual e cultural, na perspectiva desenvolvida por Ginzburg, como “influxo
recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica” (2006, p. 13). E, posteriormente, sua
remanescência, alusiva a circularidade dos grupos de missioneiros, somada a carga ontológica
136
de sua presença e atuação.
Palavras-chave: Doutrinas jesuíticas da Província Paraguaia, circularidade cultural,
representações de São Miguel Arcanjo.

INTRODUÇÃO

São Miguel foi o arcanjo mais representado nas reduções. A devoção a ele era comum
a todas as doutrinas jesuíticas no Paraguai, havendo em cada uma delas uma congregação
dedicada ao arcanjo. Tal configuração foi introduzida pelos padres e, gradualmente, acolhida
pelos indígenas. Seus potenciais bélicos estiveram voltados contra “as forças demoníacas”,
muitas vezes manifestas em práticas milenares consideradas “pagãs” e posteriormente,

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Doutora, Universidade de Passo Fundo, Programa de Pós-graduação em História, ahlert@upf.br.
ISSN: 2525-7501
apropriadas pelos missionais, contra inimigos históricos, como os bandeirantes, os portugueses
e luso-brasileiros.

Miguel era considerado o chefe dos exércitos celestiais. Seu nome foi dado a caciques,
povoados, estâncias, postos, capelas, entre outros. É mencionado na Bíblia como o “Grande
Príncipe” e na iconografia cristã aparece lutando contra os “anjos do mal”:

Ao final dos tempos, aparecerá Miguel, o grande Príncipe que defende os filhos do
povo de Deus. E então os mortos ressuscitarão. Os que fizeram o bem, para a Vida
Eterna, e os que fizeram o mal, para o horror eterno (DANIEL, 12:1).

Houve uma grande batalha no céu. Miguel e seus anjos lutaram contra Satanás e suas
legiões, que foram derrotadas, e não houve lugar para eles no céu. Foi precipitada a
antiga serpente, o diabo, o sedutor do mundo. Ai da terra e do mar, porque o demônio
desceu a vós com grande ira, sabendo que lhe resta pouco tempo (APOCALIPSE,
12:7).

O Concílio de Trento reforçou o culto ao anjo guerreiro, sendo que “simbolizava o


triunfo da Igreja Católica (...), Deus conferiu-lhe poderes extraordinários para a salvação das
almas, dotando-lhe de bravura e fidelidade” (BOFF, 2005, p. 145). Tudo indica que este

137
conjunto de qualidades operaria de modo imprescindível no imaginário dos loyolistas, posto
que consideravam-se emissários do Criador. Entendiam ser uma “legião de soldados de Deus”,
sendo a América um espaço a ser conquistado para manutenção da hegemonia católica
ameaçada pelos avanços do protestantismo (RAMINELLI, 1996).

A longa empreitada de catequizar os ameríndios (e populações nativas de outros


continentes) fazia parte das razões pelas quais a Companhia de Jesus havia sido criada.
Diferente de outras que a haviam antecedido, a Ordem do jesuítas nasceu na Modernidade e
com isso a exploração da retórica e o sentido pragmático estiveram condensados em sua
didática.

No entanto, em solo americano, inevitavelmente a compreensão da hierofania

miguelista sofreria alterações, como o neologismo61 São Miguel Marangatu.

61
Neologismo: inovação linguística que se pode apresentar sob a forma lexical (vocabular) ou sintática (frasal). O
neologismo lexical pode constituir-se de: a) significante (forma fônica) novo associado a conceito novo; b)
significante novo e conceito já existente; c) significante já existente e conceito novo (a exemplo de Tupã, Ñande
Sy). Os neologismos, muitas vezes, constroem-se com auxílio dos mecanismos usuais de produção lexical, como
a composição (justaposição, aglutinação, prefixação) e a derivação, geralmente por sufixação, como Tupã Oga,
casa de Tupã, e o Tupambaé, terras/coisas de Tupã; Pãi Guaçu, “grande curador”, termo empregado para designar
ISSN: 2525-7501
A associação com as aves, possivelmente, foi a causa do acréscimo da palavra
marangatu aos anjos em tempos coloniais. “Que coisas são os anjos?”, pergunta-se no
catecismo de Montoya, “Mbae marangatu eté”, diz a resposta (em 1637). Dessa forma, nomes
de seres alados da Glória ocidental não chegaram a ser traduzidos, ganhando apenas o
acréscimo marangatu. No século XX, entre os guaranis, marangatu designava os espíritos bem-
aventurados que alcançam a plenitude espiritual e também aves migratórias como o guará. De
modo que, denomina seres capacitados de ir e vir da morada dos deuses (BAPTISTA, 2009, p.
139).62

O padre Dobrizhoffer escreveu, em 1783, desde a sua ótica interpretativa, que: Ñande
Rey marangatu, significava nosso bom e santo rei, “pois Ñande em guarani denota nosso. A
voz marangatu significa bom ou santo, por isso agregaram a todos os santos a que imploram,
o epíteto marangatu” ([1763], 1967, p. 122).

A devoção às imagens sacras e sua difusão entre os ameríndios vincula-se de forma


direta a um problema linguístico. A produção de neologismos contou com a participação efetiva
dos índios na sua elaboração. A criação de uma língua especificamente missional atendeu mais 138
do que uma demanda de comunicação entre missionários e nativos, supriu parcialmente a
desintegração da diversidade étnica. Afora estes fatores, os loyolistas sabiam que a linguagem
caracterizaria a identidade das doutrinas (BAPTISTA, 2009). Foi o idioma guarani o
fundamento da tradução dos preceitos católicos, o que para as outras etnias deveria fundar um
problema a mais, visto as crenças e nomenclaturas terem passado por dois filtros até serem, ou
não, assimiladas por eles.

Concorda-se com Baptista (2009) quando afirma que o método linguístico de tradução
empregado pelos missionários obedece à lógica da semelhança. Alguns termos podiam ser
traduzidos pela analogia. Na falta destes eram gerados novos verbetes, os neologismos, com
significados simbólicos específicos daquele contexto.

o padre provincial. Ver: MANUSCRITOS DA COLEÇÃO DE ANGELIS. Jesuítas e bandeirantes no Tape (1615-
1641). Introdução, notas e sumário de Jaime Cortesão. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1969, p. 76.
62
Sobre estas definições, ver também: CADOGAN, León. Ayvu Rapyta. Textos místicos de los Mbyá-Guaraní del
Guairá. Assuncion, CEADUC-CEPAG, Biblioteca Paraguaya de Antropologia, vol. XVI, 1992, p. 94.
ISSN: 2525-7501
A circularidade de concepções simbólicas estendeu-se ao campo da representação
imagética, sobretudo, daquela expressa na escultura em madeira, onde certa autonomia religiosa
e estética esteve catalisada na figura de São Miguel Arcanjo. Nestas, desvios iconográficos e
estilísticos ratificam um universo de escolhas.

Capítulo I - As representações iconográficas de São Miguel

Desde a Idade Média a iconografia, no âmbito dos seus fins utilitários, teve sua função
dramática ou evocativa acrescida da didática - no que tange a pintura, chamar-se-ia de função
pictográfica, segundo Gombrich (2012). Esta deveria servir para os leigos iletrados para os
mesmos propósitos que servia aos clérigos a leitura.

As grandes imagens - em sua maioria esteticamente barrocas -, que ornavam os espaços


litúrgicos missionais, sobretudo a igreja em seus retábulos e altares internos e nichos externos,
possuíam função didática. Evocavam no fiel uma resposta a sua súplica gestual, enquanto
lembram-no de sua história e suas funções com indumentária simbólica e arranjos carregados

139
de significado. Havia imagens de porte médio que figuravam e capelas e eram carregadas em
andores durante as festividades e procissões. E, na ampla ambiência religiosa do espaço da
redução, havia as pequenas imagens de uso pessoal e doméstico, distantes esteticamente das
suntuosas imagens presentes nas igrejas.

Os usos e, em certa medida, os sentidos das imagens alteravam-se conforme suas


dimensões. De maneira geral, à medida que a representação diminui seu tamanho, abrandam
os atributos tradicionais do ícone, os ornatos, panejamentos e gestos amplos, característicos do
estilo barroco.

Algumas talhas permitem divisar os protótipos barrocos de que receberam influência


ou inspiração (fig. 1 e 2). Outras rompem com tal padrão (fig. 3), libertam-se do cânone e
manifestam a sensibilidade indígena, que endurece os panos criando ângulos no lugar das
curvas, contidos em seus voos, aproximados da estrutura corporal do personagem e conectados
ao tronco de cedro que foi sua base. O resultado é uma estrutura simultaneamente complexa e
simétrica, mais atenta aos valores da forma do que ao teor da expressão.
ISSN: 2525-7501
Os principais elementos do cânone que identificam o arcanjo são suas vestes de general
(corpete e saiote), uma espada ou lança, o uso de sandálias (raramente botas), cabelos longos,
fisionomia jovem e asas. Tendo o diabo derrotado sob seus pés; ocasionalmente, trás também
uma balança na mão esquerda (ver fig. 1).

Este arranjo é, em grande parte, inspirado na luta travada por Miguel e seus anjos contra
o demônio, descrita na Bíblia Sagrada, constituindo uma tradição iconográfica, “geralmente de
feição Medieval, Renascentista, Maneirista e Barroca, raramente Rococó” (CAMPOS, 2004, p.
104).

Mais raras, e ausentes no espaço missional, são as imagens em que o arcanjo aparece
como “Pescador de Almas”, aquele que faz a psicostasia (pesagem das almas) e a psicagogia
(evocação ou condução das almas), ou seja, mediando a passagem das almas da terra, ou do
purgatório, para o paraíso.

Correspondendo a representação do arcanjo guerreiro, a estatuária de origem

140
missioneira relativa a São Miguel abrange, de modo geral, as seguintes características
iconográficas: fisionomia jovem, cabelos ondulados, longos ou médios, caindo nos ombros.
Braço direito curvado para frente e para o lado esquerdo; apresenta-se em pé, em posição de
movimento, com as pernas flexionadas, estando o joelho direito mais flexionado e próximo a
cabeça do demônio, enquanto a perna esquerda avança de modo a deter o tronco do personagem.
Corpete ajustado ao longo do corpo, terminando em saia esvoaçante que nem sempre
acompanha o movimento que o corpo exerce. Pés calçando sandálias, com detalhes talhados e
incrustados na parte superior do cano, com os dedos à mostra. Rosto ovalado, boca pequena e
nariz aquilino.

A similaridade entre as imagens sugere a circularidade das influências entre as oficinas


missioneiras, fosse através do movimento de artesãos especializados, fosse através de estampas
ou exemplares em miniatura que deveriam servir de modelo aos artífices.

Sabe-se que, por vezes, ficava a cargo dos padres a elaboração de componentes mais
complexos das esculturas, como mãos e cabeça, ou ainda, de artífices especialistas nestas partes
– rostos, membros, cabelos –, o que evidencia uma produção em série e a circulação dos
executores e dos jesuítas monitores, ocasionando uma uniformização parcial dentro da
ISSN: 2525-7501
diversidade. Chegavam às Missões, também, mas mais raramente, fragmentos de imagens
importados da Europa, para serem acoplados às estátuas (Cf. PLÁ, 1975).

Além dos artistas itinerantes, outro aspecto que resultava em ícones semelhantes nos
povoados era a repetição de alguns modelos, como gravuras e ilustrações europeias, das quais
se utilizavam vários artesãos para as suas composições. Neste sentido, atentando às analogias
entre as fig. 1 e 2, no que tange as fisionomias e aos cabelos, posição da cabeça, dos braços e
pernas, e, sobretudo, a qualidade técnica da talha, sem marca de goivas, com panejamento
rebuscado e apreço aos detalhes, sejam de policromia, textura ou indumentária - a despeito da
distinção do corpete e da policromia desgastada da fig.2 -, outro condicionante se apresenta,
aquele que diferencia as imagens de acordo com seus usos e sentidos no espaço da doutrina e
missional.

Mais um aspecto que assinala-se na estatuária em estudo é a configuração que assume


o demônio. Comumente, apresentado “sob forma hedionda e essencialmente animal”
(CAMPOS, 2004, p.104), pelos formões dos artesãos missioneiros assumiria traços humanos e
paralelos ao biótipo dos bandeirantes paulistas. Incumbia-se, assim, São Miguel de derrotar um 141
inimigo particular, associando à obra a sua visão de mundo e as suas ameaças.

A variação na conformação do ícone é constante na história da arte, adquirindo aspectos


antropomorfos a partir do renascimento, como elucida Campos, “Através dos avanços da
racionalização, o artista do Renascimento nem sempre o representa com feição monstruosa,
imaginando-o com traços humanos. No barroco ibero-americano observamos a coexistência
das duas representações” (2004, p. 104).

Além da proximidade na gestualidade de São Miguel, as figs. 6 e 7 compartilham da


mesma reação do demônio frente ao ataque do arcanjo. Sob os seus pés, o personagem está com
os braços e as pernas flexionados e segura o pé de São Miguel com a mão esquerda, em posição
de defesa. Suas vestes consistem numa espécie de tanga e possui feições inteiramente
humanizadas, bem como ocorre na fig.8.

As esculturas (figs. 7 e 8) foram talhadas em lados opostos do rio Uruguai. A despeito


das repinturas que sofreram, nota-se que podem ter sido inspiradas na mesma gravura.
ISSN: 2525-7501
Guardam, contudo, distinções tipicamente missioneiras: o dinamismo é rigidamente
acompanhado pelas vestes e, mormente, o demônio humanizado.

É importante destacar a complexidade do acervo em estudo, consequentemente a


impossibilidade de esgotar todas as problemáticas advindas de sua análise no limite de um
artigo. De modo a elucidar, destacam-se as figs. 3 e 9. A última, apesar do tamanho diminuto
(possivelmente pertencia a um oratório ou altar secundário), manteve-se fiel ao modelo barroco
em que foi inspirada, ainda que, simultaneamente, denuncie o gesto indígena na tensão entre o
realismo do modelo e o esquematismo da talha, visível na rigidez do panejamento das vestes e
penas do arcanjo. Ademais, sua diferenciação pode ser notada na gestualidade que assume.
Conjectura-se que portava, conforme os indícios gestuais, a “balança da justiça” na mão
esquerda, evidenciando a adoção de protótipos diversos nas oficinas missioneiras.
A policromia avermelhada de suas penas denota outra subversão apropriativa do ícone,
presente também na fig. 7. Conforme Baptista,

Nas pinturas indígenas coloniais, entidades denominadas pelo neologismo


marangatu, como São Miguel, outros santos, anjos e querubins, estão ali
representadas sem as pueris asas brancas que originalmente as caracterizam. Plumas 142
vermelhas, de fato são majoritárias. O mesmo ocorre com os mantos xamânicos, então
confeccionados com penas de aves migratórias como o guará, e de aves, consideradas

Fig. 5 -
Fig. 1 - Fig. 2 - Fig. 3 - Imagem Fig. 4 - Imagem Imagem de São Fig. 6 - Imagem
Imagem de Imagem de São de São Miguel de São Miguel, 9 Miguel, 20 cm. de São Miguel,
São Miguel Miguel, 116 Arcanjo com cm. Acervo: Acervo: Museu 29,8 cm.
Arcanjo, 142 cm. cocar, 103 cm. Museu Casa de de Arte Sacra
cm Catedral de Rivera. Acervo:Museu
Acervo: Museu de Rio
Encarnación/P Acervo: Museu Durazno/URY. M. Estanislau
Gaúcho da Força Pardo/RS.
RY. das Missões. Wolski. S.
Expedicionária.
São Foto: autora Foto: autora Antônio das
São Miguel/RS.
Foto: autora Miguel/RS. Missões/RS
Foto: autora
Foto: autora
ISSN: 2525-7501
Foto: Equipe
IPHAN

143
xamânicas e também chamadas de marangatu por grupos guaranis contemporâneos
(2009, p. 139).

A fig.3, por sua vez, é emblemática pelo conjunto de significações que abarca. Suas
dimensões indicam um uso de culto coletivo, no entanto, os signos que apresenta, em termos
de linguagem formal e iconográfica, são predominantemente centrados na cosmovisão
autóctone que incidia sobre o “arcanjo guerreiro”. Na cabeça, São Miguel traz um adorno de
penas que não impetra a reprodução de um cocar indígena e, tão pouco, aproxima-se da imagem
de uma coroa, aos moldes ibéricos. No que tange aos valores da forma, nota-se uma
transposição em que os elementos formais barrocos cederam lugar à rigidez, ao frontalismo,
geometrismo e esquematismo indígena.
As percepções componentes dessa expressão estética são advindas de cosmovisões
distintas que, entretanto, nesse contexto, não se contradizem, mas interatuam numa simbiose
de contribuições desequilibradas, que proporcionam o elemento de sua originalidade. A
presença do gesto e da imaginária indígena é o que as destaca enquanto produção cultural e
artística do período colonial, fornecendo a medida da peculiaridade do acervo.
ISSN: 2525-7501

Capitulo II – As remanescências de São Miguel

As fig. 4 e 5 pertencem à fase de dispersão dos indígenas missioneiros. A primeira foi


levada ao Uruguai (sem descartar a possibilidade de haver sido produzida lá) pelo movimento
de transmigração promovido por Fructuoso Rivera, em 1828. A segunda acompanhou as
famílias instaladas na aldeia de São Nicolau do Rio Pardo, por Gomes Freire de Andrada, em
1757. São representativas da circularidade de grupos formados por centenas, mesmo milhares,
de missioneiros.

Esses indivíduos não migravam sós, levavam consigo bens de valor simbólico e uma
importante bagagem de conhecimentos técnicos em distintos ofícios, que os transformavam em
mão de obra requerida e apreciada nas estâncias e centros urbanos do Rio da Prata (FAVRE,
2009, p. 25).

A ininterrupta decadência inaugurada em 1750, com a Guerra Guaranítica, foi


potencializada pela expulsão dos jesuítas da América espanhola, em 1768/9, gestões corruptas,
roubos de terras e bens móveis missioneiros, e teve continuidade após a invasão luso-brasileira 144
de 1801. As guerras resultaram em grandes migrações, uma vez que muitas famílias
acompanhavam os índios arregimentados pelos exércitos hispano-platino e luso-brasileiro,
realidade que prosseguiu posteriormente, nas conjunturas do Reino Unido e dos países
independentes, no contexto da guerra contra Artigas (1816-1820) e da Guerra da Cisplatina
(1825-1828). Nesta, Fructuoso Rivera, na ocupação das Missões rio-grandenses, conseguiu
arregimentação vultosa.

O militar conduziu grupos de missioneiros ao território uruguaio, instalando-os em


Bella Unión, San Pedro de Durazno e Montevideo. Testemunha ocular, o general Pueyrredón
escreveu: “Cada redução ou tribo marchava como em procissão, presidida dos anciãos que
levavam os santos principais”. Além disso, “o povo conduzia multidões de santitos”. Na
dianteira dos grupos iam os músicos, “cada tribo tinha o seu conjunto de violinistas” (in FAVRE
2007, p. 142).
ISSN: 2525-7501
A descrição confirma o que já haviam observado o padre José Cardiel e o viajante Saint-
Hilaire: a música e as imagens eram os elementos de identificação e diferenciação do éthos
missioneiro.63

Mais do que “recitar em voz alta


orações em guarani” e “entoar cânticos,
igualmente, em língua vulgar” (SAINT-
HILAIRE, [1820-1] 2002, p.277), entre
aqueles indígenas havia remanescido o
culto às imagens. Instituiu-se a tradição,
nas Missões, de carregar imagens de São
Fig. 7 - Fig. 8 - Imagem Fig. 9 - Imagem de Miguel em viagens e expedições
Imagem de de São Miguel, São Miguel, 30 cm.
São Miguel, 35 cm. militares.64 Nestas situações, a presença
30 cm. Acervo: Museo del
Acervo: Museu Barro. do arcanjo devia valer por si mesma, sem
Acervo: Vicente Pallotti.
Museo del Santa Maria/RS. Assunção/PRY. a necessidade de vinculá-la a passagens

145
Barro.
Foto: Equipe Foto: Equipe técnica bíblicas. Eram, assim, representadas
Foto: Equipe técnica do do museu.
individualmente, sem demônios,
técnica. museu.
bandeirantes ou balanças.

Nos percalços históricos das


imagens, o pequeno arcanjo de 9 centímetros foi cultuado até meados do século XX por
descendentes dos índios missioneiros que se instalaram nas imediações de Durazno, no
Uruguai. Já a escultura de 20 centímetros foi abandonada num terreno em Boa Vista, arredores
de Rio Pardo. Doada ao Museu de Arte Sacra somente em 2004, não passou imune ao descaso,
encontra-se muito deteriorada. A devoção prestada a ela em tempos passados é não mais que
uma sombra na sujidade dos resquícios de policromia.

63
Sobre a remanescência de práticas religiosas e culto às imagens em São Borja de Yi, localidade extinta, nas
proximidades da cidade de Durazno/URY, ver: AHLERT, Jacqueline. A estatuária missioneira: entre o valor
religioso e o patrimonial. In: ZANOTTO, Gizele; MACHADO, Ironita (orgs.). Momento Patrimônio. Vol. II.
Passo Fundo: Aldeia Sul, 2013 e FAVRE, Oscar Padrón. Ocaso de un pueblo indio: historia del éxodo guaraní-
missioneiro al Uruguay. Durazno: Tierra a Dentro, 2009.
64
A crença na proteção e a presença de imagens de São Miguel são destacadas pelo padre Henis nas narrativas
sobre a Guerra Guaranítica em: HENIS, Tadeo Xavier. Diario histórico de la rebelión y guerra de los pueblos
guaranís, situados en la costa oriental del río Uruguay, del año 1754. Buenos Aires: Imprenta del Estado, 1836
(Coleção de Angelis).
ISSN: 2525-7501
Ambas, ademais de diferenciarem-se estética e iconograficamente, aparentam ter as
sandálias substituídas por botas remissivas ao modelo garrão de potro, peça inventada e usada
pelos guaranis campeiros das estâncias missioneiras, sendo disseminada como indumentária de
montaria na região platina.

Gombrich lembra que o ponto de partida de um registro visual não é uma certeza, mas
uma conjetura condicionada pelo hábito e pela tradição (1986, p. 78). Em imagens feitas,
sobretudo para uso pessoal ou familiar, a tradição – compreendida também como
remanescência – comparece como um elemento natural de expressividade autóctone. Em
muitas imagens tem-se a impressão de que parece difícil ao artesão suspender o gesto que tende
a compactar o ícone em si mesmo, o gesto que adere membros e vestes, movimento e espaço.

Neste sentido, as esculturas constituem representação da circularidade cultural e


humana de grupos missioneiros. Para além das imagens de São Miguel, há acervos numerosos,
como o do Museo Sin Fronteras, situado em Rivera – cidade nos limites entre o Brasil e o
Uruguai –, alusivos ao processo histórico desdobrado naquelas paragens. A remanescência é
remissiva ao sentido que possui, pois fortalece a historicidade do lugar, potencializa os atributos 146
e características presentes nas imagens, que servem como referência aos indivíduos que por ali
transitaram e acabaram por se miscigenar cultural e biologicamente, compondo a identidade
social daquelas extensões geográficas.

CONCLUSÃO

Nas doutrinas jesuíticas anjos eram concebidos como portadores da mensagem celestial
e desempenhavam o papel de intermediários entre o Criador e os homens. Dentre os arcanjos
que aparecem com maior número de imagens no acervo missioneiro estão Gabriel, Rafael e,
mormente, Miguel.

A imagem de São Miguel carregava uma conotação simbólica intensa. Sua aparição em
sonhos converteu-se em baluarte da resistência guarani à expulsão das reduções, no contexto
da Guerra Guaranítica. Sepé Tiaraju, alcaide e depois corregedor do povo de São Miguel, que
inicialmente estava aliado aos cabildantes obedientes à execução do Tratado de Madri, sob as
ISSN: 2525-7501
ordens diretas dos jesuítas, após o fenômeno da aparição do padroeiro nos sonhos, passou a
integrar o grupo de rebeldes. Argumentava que São Miguel pregava para não abandonarem suas
terras e cidades. Assim, as revelações desse santo legitimaram a luta dos guaranis, mesmo que
colidindo com a ordem dos padres.

Juan de Escandón, provincial das Missões, escreveu em 1760 sobre as pretensas


aparições de São Miguel durante o período da Guerra Guaranítica:

Era infalivelmente certo, diziam, que o Santo Arcanjo havia aparecido a um menino
inocente, manifestando-lhe a vontade de que seus miguelistas não deixassem aquele povo e,
menos ainda, aquela igreja, em que o veneravam. São Miguel também não queria que fossem
viver em outras terras, senão que morassem apenas naquelas, em que Deus havia criado e que
tinha concedido a eles e a seus antepassados, pela intercessão do mesmo Arcanjo (1983, p.
92).65

O que poderia ser somente mais uma representação das santidades cristãs, já aparece
transformado pela experiência missional; e, o que poderia ser “evidência da supressão das
crenças nativas perante as de origem ocidental” (BAPTISTA, 2009, p.127), parece ser o
147
resultado de ressignificações religiosas, de amálgamas estético, onde o sincretismo e a
transformação de divindades é marca expressiva da circularidade cultural.

No âmbito da remanescência, os acervos de cultura material presentes em museus e, em


muitos casos, nas casas de descendentes dos processos de miscigenação de longa duração
histórica, entre missioneiros e povoadores de diversas procedências americanas e continentais,
constituindo modos de vida influenciados étnica ou culturalmente, expõem uma permanência
sustentada na historicidade, na presença cultural e simbólica.

65
A origem da noção de animismo, para Edward B. Tylor, estava, sobretudo, nas experiências dos sonhos, que
teriam levado à crença de que a alma independia do corpo. O sonho com pessoas já mortas indicava a existência
de um aspecto insubstancial dos seres. Nesse pensamento, a aparição e a interação com os seres (ancestrais,
animais, fantasmas, espíritos etc.) em sonhos convertiam-se em realidade vivida. Há, nas sociedades indígenas,
um papel cultural do sonho e da complexa teoria onírica que se reporta à ação humana, cujas formas como as
pessoas se apresentam nos sonhos atingem qualidades validadas na vivência. O encontro do índio com os santos
em sonhos fortaleceria e legitimaria sua crença na imagem. Guardadas as devidas ressalvas quanto ao discurso
redutor, nas narrativas de Montoya são inúmeras as ocasiões em que a conversão do indígena dava-se após um
sonho ou aparição.
ISSN: 2525-7501

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ISSN: 2525-7501
COLUNA PRESTES: HISTÓRIA, MEMÓRIA E PATRIMÔNIO NA REGIÃO DAS
MISSÕES DO RIO GRANDE DO SUL. *66

Amilcar Guidolim Vitor**67

RESUMO

A Coluna Prestes tem sua história diretamente relacionada ao Rio Grande do Sul, especialmente
na região das Missões, onde em 1924 Luiz Carlos Prestes liderou, a partir de Santo Ângelo, a
organização de um movimento rebelde em oposição ao Presidente Artur Bernardes. Tal
movimento desencadeado por Prestes em outubro de 1924 em Santo Ângelo e concentrado na
também cidade missioneira de São Luiz Gonzaga, deu origem em 1925, a partir da junção de
efetivos rebeldes gaúchos e paulistas, a marcha da Coluna Prestes, que em dois anos e três
meses percorreu mais de vinte mil quilômetros pelo Brasil buscando depor o presidente Artur
Bernardes. Passados mais de 70 anos de história da Coluna Prestes, em 1996 foi inaugurado em
Santo Ângelo um Memorial em homenagem a Coluna. Também foi criado um monumento
projetado pelo arquiteto Oscar Niemayer. Daquele momento em diante, iniciou-se uma série de
debates, questionamentos e disputas ideológicas quanto ao reconhecimento ou não daqueles
espaços como lugares de memória e expressões do patrimônio cultural de Santo Ângelo, tendo
150
em vista que muito se questionava a trajetória política de Luiz Carlos Prestes, principalmente
sua atuação no Partido Comunista Brasileiro. O texto tem por proposta evidenciar estas disputas
pela legitimação do patrimônio e outras questões relacionadas ao reconhecimento ou não do
Memorial Coluna Prestes como uma expressão do patrimônio cultural de Santo Ângelo.
Palavras-chave: Coluna Prestes; Patrimônio.

INTRODUÇÃO

O início da década de 1920 no Brasil foi marcado por acontecimentos que resultariam
em mudanças na estrutura política do país e que colocariam a região das Missões do Rio Grande
do Sul, especialmente as cidades de Santo Ângelo e São Luiz Gonzaga, em destaque nacional.
Naquela época, o cenário brasileiro tanto do ponto de vista político, social e cultural mostrava-
se bastante agitado. Especialmente o ano de 1922 teve marcos importantes do ponto de vista

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Mestre em Patrimônio Cultural – UFSM; Professor do Departamento de Ciências Humanas da URI – Campus
Santo Ângelo. Contato: amilcar_vitor@yahoo.com.br
ISSN: 2525-7501
das transformações pelas quais o Brasil estava passando e que trariam consequências
significativas não apenas nos anos que estavam por vir, mas também nas décadas seguintes.

Fortaleceram-se os movimentos de oposição ao governo federal em relação à política


vigente no período. Anita Leocádia Prestes68 descreve como explosivo o panorama político e
social do início da década de 1920. Tanto Epitácio Pessoa quanto o presidente eleito em 1922
Artur Bernardes não pareciam dispostos a permitir agitações revolucionárias ou movimentos
que contestassem a ordem vigente, e é justamente neste cenário que se desenvolvem levantes
militares em oposição ao novo governo, levantes estes que passariam à história sob a
denominação de Tenentismo, pelo fato de seus participantes serem, em sua maioria, Tenentes
e Capitães do Exército. (PRESTES, 1997, p. 69)

Entres esses jovens oficiais do Exército que fizeram parte do movimento Tenentista e
que passaram a contestar a autoridade do governo federal, estava Luiz Carlos Prestes, que em
pouco tempo passou a ser um dos principais articuladores do movimento e justamente por isso
foi afastado do centro do país onde se desenvolviam as principais ações contra o governo.
Prestes foi transferido para Santo Ângelo, interior do Rio Grande do Sul. E foi desta cidade que 151
em outubro de 1924 sublevou o 1º Batalhão Ferroviário onde era Capitão, organizando um
levante rebelde contra o governo do Presidente Artur Bernardes. Posteriormente organizou seu
efetivo e de outros quartéis rebelados no Rio Grande do Sul no município de São Luiz Gonzaga.

Em março de 1925 no Paraná o efetivo rebelde do Rio Grande do Sul juntou-se com o
efetivo de São Paulo liderado pelo Major da Força Pública paulista Miguel Costa. A partir daí
formou-se o núcleo rebelde e oposicionista ao presidente Artur Bernardes que daria origem ao
movimento que entrou para a história como Coluna Prestes, o qual percorreu mais de 20 mil
quilômetros em dois anos e três meses em territórios brasileiros e estrangeiros, tornando-se uma
das maiores marchas da história da humanidade.

Passados mais de 70 anos do fim da marcha da Coluna Prestes, foi inaugurado em Santo
Ângelo, em dezembro de 1996, o Memorial Coluna Prestes, espaço dedicado a rememorar,
representar e demarcar a cidade de onde teria partido a marcha da Coluna Prestes em 1924, fato

68
Anita é filha de Luiz Carlos Prestes com a militante alemã Olga Benário, primeira esposa de Prestes. Anita teve
formação acadêmica e escreveu algumas obras sobre a Coluna Prestes e a trajetória política do pai.
ISSN: 2525-7501
este que até hoje provoca polêmica nas discussões que envolvem o movimento de 1924 nas
Missões, tendo em vista que Luiz Carlos Prestes e outras lideranças organizaram a tropa no
município de São Luiz Gonzaga, o que possibilita a discussão de que a Coluna Prestes teria
partido daquela cidade e não de Santo Ângelo. Tal situação evidencia o quanto as disputas em
torno do passado, das memórias e do patrimônio oriundo deste passado são significativas para
que possamos compreender os impactos que isto possui nos discursos, nos imaginários, na
criação de espaços voltados para a construção e representação das memórias e do patrimônio
cultural.

Capítulo I - O movimento rebelde de 1924 na região das Missões do Rio Grande


do Sul.

Os jovens oficiais do Exército que fizeram parte do movimento Tenentista e que


passaram a contestar a autoridade do governo federal, especialmente após a vitória de Artur

152
Bernardes, representante da situação, sobre Nilo Peçanha, representando a oposição nas
eleições de 1° de março de 1922, queriam não apenas a extinção da chamada política dos
governadores69, mas também defendiam eleições livres e limpas que permitissem a vitória dos
candidatos da oposição, pois, de acordo com eles, os pleitos eram fraudulentos. Desejavam a
moralização da política, reivindicavam os direitos dos cidadãos consagrados na Constituição
de 1891 e pleiteavam o voto secreto. Enfim, queriam o saneamento da vida pública nacional
(PRESTES, 1995, p. 12).

Após a vitória de Artur Bernardes nas eleições de março de 1922 e sua posse definitiva
estabelecida para novembro do mesmo ano, os jovens militares do Exército, dissidentes do
governo, passaram a acelerar seus preparativos visando à tentativa de impedir a posse do
presidente eleito. Os militares programaram sua sublevação contra o governo.

69
“Durante o governo do paulista Campos Sales (1898 – 1902), foi posta em prática a famosa ‘política dos
governadores’, um pacto fundamentado na aceitação da hegemonia paulista em nível nacional em troca do
reconhecimento da autonomia das oligarquias em âmbito local. Em outras palavras: a ‘política dos governadores’
significava que, por meio da fidelidade de suas bancadas no Congresso Nacional, os governadores dos estados
davam apoio ao presidente da república e, em troca, este assumia o compromisso de ‘respeitar’ os resultados das
eleições fraudulentas que garantiam a escolha dos governadores em seus respectivos estados” (PRESTES, 1995,
p. 18).
ISSN: 2525-7501
O levante de várias unidades militares sediadas no Rio de Janeiro, então capital da
República, e em outros pontos do país estava marcado para o dia 5 de julho de 1922.
Mas, devido à desorganização do movimento e às vacilações de muitos dos seus
participantes, a maior parte da oficialidade comprometida com a conspiração acabou
descumprindo a combinação feita com os seus camaradas (PRESTES, 1995, p. 08).

Nesta data, a única unidade militar que efetivamente se sublevou foi o Forte de
Copacabana. Os militares que lá estavam foram se rendendo aos poucos, restando apenas
aqueles que ficaram conhecidos como os “dezoito do Forte de Copacabana”, os quais saíram
pelas areias da famosa praia carioca e foram alvejados pelas tropas governistas, restando vivos
apenas os tenentes Antônio Siqueira Campos e Eduardo Gomes.

Após o levante do Forte de Copacabana a maioria dos líderes envolvidos no movimento


opositor ao governo federal foram presos ou transferidos para outras unidades militares do país.
Dentre essas lideranças estava Luiz Carlos Prestes. Identificado como um dos articuladores do
movimento contra a posse de Artur Bernardes à presidência da República, o oficial do Exército
e engenheiro Prestes foi transferido para Santo Ângelo, interior do Rio Grande do Sul, onde
permaneceria até 1924 quando eclodiu o segundo levante contra o governo de Artur Bernardes
e que deu origem à marcha da Coluna Prestes. De acordo com o próprio Prestes: “Eu estava 153
aqui em Santo Ângelo, para onde fui deslocado depois do Levante, como punição, porque eu
servia no Rio de Janeiro na época do Levante” (MEIHY; BIAZO, 2004, p. 34).

É a partir desse momento que Santo Ângelo passa a fazer parte da História da Coluna
Prestes e foi baseando-se nestes acontecimentos que se idealizou entre os anos de 1994 e 1996
a criação do Memorial Coluna Prestes.

Luiz Carlos Prestes chegou a Santo Ângelo em outubro de 1922 para integrar a unidade
do 1° Batalhão Ferroviário, recebendo a missão de construir o trecho de ferrovia que ligaria as
cidades de Santo Ângelo e Giruá, trabalhando também na supervisão das obras de construção
de quartéis para o Exército Nacional na região de Santo Ângelo. (BINDÉ, 2006, p. 291)

Entretanto, foi a partir de 1924 que as ações políticas de Prestes em relação à contestação
do regime político vigente no país tiveram maior destaque. Principalmente após a eclosão de
nova revolta Tenentista em São Paulo no dia 5 de julho de 1924, quando vários grupamentos
policiais e unidades do Exército sediados nesse Estado se rebelaram contra o governo do
presidente Artur Bernardes. Liderados pelo General reformado do Exército Isidoro Dias Lopes
ISSN: 2525-7501
e pelo Major da Força Pública de São Paulo Miguel Costa, o objetivo do movimento era depor
Bernardes.

Além de Luiz Carlos Prestes, outros oficiais do Exército que tiveram participação nos
movimentos de 1922 ou simpatizavam com as ideias rebeldes, voltaram a manter contato no
Rio Grande do Sul, antes mesmo do início da revolta eclodida em São Paulo, em julho de 1924.
“A conspiração acontecia desde janeiro de 1924, quando Prestes recebeu a visita do então
tenente Juarez Távora, cuja reunião foi feita em uma casa perto do acampamento do Comandaí”
(BINDÉ, 2006, p. 293). Sobre a visita de Távora e a eclosão do movimento rebelde em São
Paulo, o próprio Prestes afirma que:

Recebi, aqui em Santo Ângelo, no meu acampamento, às margens ali do rio Comandaí
– onde estava construindo a ponte em cima da estrada de ferro – o camarada Juarez
Távora. Ele esteve aqui para conversar sobre a conspiração, para saber em que pé ela
estava em São Paulo, e para estabelecer as ligações entre a guarnição do Rio Grande
do Sul e a militar de São Paulo. No entanto, não fomos avisados do Levante de 5 de
julho de 1924 que, aliás, foi para nós uma surpresa. Soubemos do Levante através dos
telegramas da imprensa (MEIHY; BIAZO, 2002, p. 34).

Com o início da revolta em São Paulo, os preparativos para que os aquartelamentos do


Rio Grande do Sul se rebelassem foram acelerados. Dessa forma, Luiz Carlos Prestes pediu
154
demissão do Exército em setembro de 1924, pois “recorreu a este expediente para criar a
impressão de que havia abandonado definitivamente a carreira militar e, assim, afastar as
suspeitas quanto à sua participação no movimento tenentista” (PRESTES, 1995, p. 33). A partir
desse momento, a atuação de Prestes passou a ter maior destaque. Ele e o tenente Mário Portela
Fagundes foram os principais responsáveis pela adesão do 1° Batalhão Ferroviário de Santo
Ângelo ao movimento rebelde. “Prestes organizava suas reuniões na casa de Inocêncio Silva
em Santo Ângelo, onde eram recebidos e lidos telegramas, avisos e demais informações sobre
a revolta” (SILVA, 1959, p. 10).

Deflagrada a revolta em Santo Ângelo, o Capitão Luiz Carlos Prestes tentou tomar as
cidades de Ijuí e Tupanciretã, entretanto não logrou sucesso e decidiu reunir a tropa rebelde na
cidade de São Luiz Gonzaga. Antes disso, destacamentos comandados por Prestes e Mário
Portela Fagundes deslocaram-se até a região de Itaqui e São Borja, onde as tropas governistas
estavam em número maior e impondo sucessivas perdas ao efetivo revoltoso. Durante essa
ISSN: 2525-7501
passagem por São Borja, Luiz Carlos Prestes foi nomeado Comandante do efetivo do Rio
Grande do Sul (PRESTES, 1995, p. 39).

Após assumir o posto de Comandante, Prestes e outras lideranças do movimento


organizaram a tropa rebelde em São Luiz Gonzaga e, sendo acossados por efetivos legais do
governo do Rio Grande do Sul, passaram a empreender marcha em direção ao Paraná, onde
estava o efetivo paulista do movimento, comandado pelos oficiais do Exército Isidoro Dias
Lopes e da Força Pública de São Paulo, Miguel Costa. A unificação de tropas riograndenses e
paulistas aconteceu a partir de março de 1925. Entretanto, em função de estarem
constantemente sob perseguição por parte de efetivos militares do governo, os rebeldes
passaram a efetivar deslocamentos sobre o território brasileiro.

Após dois anos e três meses de marcha e inúmeros combates entre tropas rebeldes e
governistas, sem qualquer tipo de ganhos numéricos ao efetivo revoltoso, os líderes da Coluna
resolveram buscar novos caminhos para o movimento. O presidente do país já era Washington
Luís quando em fevereiro de 1927 a Coluna entrou na Bolívia dando fim a uma marcha que
percorreu aproximadamente 25 mil quilômetros, empreendida durante dois anos e três meses, 155
passando de sul a norte por diversos Estados brasileiros, chegando a adentrar territórios do
Paraguai até a chegada em Santa Cruz de La Sierra. Sobre a situação que levou o efetivo a se
refugiar na Bolívia, Luiz Carlos Prestes diz o seguinte: “Precisávamos estudar para
compreender as causas de como em um país tão rico como o nosso, o povo pode viver em tão
grande miséria. Foi por isso que pensamos: estava chegando o momento de terminarmos a luta
[...]” (MEIHY; BIAZO, 2002, p. 66).

Capítulo II - A implantação do Memorial Coluna Prestes em Santo Ângelo e as


repercussões do projeto.

Em dezembro de 1996 foi inaugurado em Santo Ângelo o Memorial Coluna Prestes. O


Prefeito da época e um dos idealizadores do projeto era o senhor Adroaldo Mousquer Loureiro,
do Partido Democrático Trabalhista – PDT. Loureiro recorda que “[...] como prefeito, inclusive
eu conversava muito com a Gládis (Diretora do Museu Municipal) sobre isso. Resgatar essa
ISSN: 2525-7501
história toda que é uma coisa importante, pra cultura, até mesmo pro próprio turismo nosso
[...]”. 70

Apesar de na década de 1990 a democracia estar restabelecida, havia ainda a


manifestação contrária de grupos conservadores quanto aos assuntos ligados à Coluna Prestes
e a Luiz Carlos Prestes. Conforme o verificado no periódico Jornal das Missões, em matéria
publicada no ano de 2002: “Apesar da relevância histórica, apenas a partir de 1993, na
administração do hoje deputado Adroaldo Loureiro, é que a rica história de Prestes começou a
ser resgatada no município que viu nascer a Coluna Prestes” (JORNAL DAS MISSÕES, 2002,
p. 11).

Luiz Carlos Prestes Filho71 esteve em Santo Ângelo entre 1994 e 1995. Na época,
Prestes Filho estava desenvolvendo um projeto no qual iria refazer a trajetória da Coluna
Prestes. Posteriormente, sua viagem seria retratada em reportagens especiais na extinta revista
“Manchete”. Conforme noticiava a imprensa de Santo Ângelo na época da visita de Luiz Carlos
Prestes Filho:

O objetivo da viagem que terá duração de seis meses pelo Brasil é percorrer o 156
itinerário da Coluna Prestes, sendo Santo Ângelo o ponto de partida para analisar o
viés ambiental estabelecendo um paralelo do clima e vegetação das localidades da
década de XX e como encontram-se hoje (JORNAL DAS MISSÕES, 1995, p. 10).

Durante essa passagem de Prestes Filho por Santo Ângelo houve entre ele, o Prefeito
municipal Adroaldo Loureiro e a coordenadora do Museu Municipal de Santo Ângelo Gládis
Maria Pippi uma reunião onde se discutiu a possibilidade de alguma homenagem em relação à
História da Coluna Prestes em Santo Ângelo. Sobre esta reunião Gládis aponta maiores
detalhes:

[...] eu estava no Museu e me chamaram às pressas, que o filho do Prestes estava em


visita ao gabinete e o Prefeito mandou me chamar e eu fui e a gente, quando eu e o
prefeito conversamos sobre fazer alguma coisa em relação à Coluna nós nunca
imaginávamos que o filho do Prestes ia surgir dali uns dois meses na cidade, não se
sabia dessa visita e aí começamos a conversar com o Luiz Carlos Prestes Filho, ele
estava acompanhado de um fotógrafo fazendo um trabalho para a revista Manchete
na época, refazendo a marcha da Coluna, visitando os locais e começou por Santo

70
Arquivo de Entrevistas do Centro de Cultura Missioneira (CCM), de Santo Ângelo/RS. - Depoimento oral
concedido por Adroaldo Mousquer Loureiro à Claudete Boff e Dione Mello Lenz, em 06/11/1998.
71
Luiz Carlos Prestes Filho é um dos filhos de Luiz Carlos Prestes, fruto de seu segundo casamento com Maria
do Carmo Ribeiro.
ISSN: 2525-7501
Ângelo e aí começamos a conversar, eu expus a ideia que nós tínhamos intenção de
fazer alguma coisa e ele na hora assim ele, claro, veio bem ao encontro do que ele
estava, que ele gostaria também de que se fizessem materializações a partir dessa
trajetória e ele poxa, ele adorou a ideia assim, mas nós não tínhamos ideia de
Memorial, nós não tínhamos ideia de nada, simplesmente existia uma ideia de se fazer
alguma coisa, era essa a semente e aí na hora mesmo ele, não, vamos fazer, a gente
tem contatos de pessoas que poderiam ajudar. No próprio dia, no próprio gabinete ele
ligou pro Niemayer pro escritório do Niemayer e pra outros amigos do pai dele e da
família, já fazendo estes contatos, dizendo da intenção pra que essas pessoas já
ficassem de sobreaviso que participariam. 72

Após essa reunião, determinante para que o projeto fosse desenvolvido e contasse com
o apoio da família da segunda união de Luiz Carlos Prestes, foram intensificados os trabalhos
para que a implantação do Memorial Coluna Prestes se tornasse realidade. Profissionais
indicados pela própria família de Prestes, como a programadora visual Flávia Portela, juntaram-
se à equipe da prefeitura municipal, tendo como uma das articuladoras do projeto, a então
Coordenadora do Museu Municipal de Santo Ângelo Gládis Maria Pippi.

Até aquele momento nenhum projeto do tipo, ou seja, criação de museu, arquivo ou
monumento sobre a Coluna Prestes havia sido efetivado no Brasil. Naquele período, Santo 157
Ângelo estava sendo a primeira cidade a criar um local de memória que tratasse da trajetória da
Coluna Prestes. Além disso, também seriam projetados monumentos para rememorar e
homenagear a Coluna Prestes. Um de autoria do arquiteto Oscar Niemayer e outro do escultor
carioca Maurício Bentes.

Aspecto importante sobre a implantação do Memorial Coluna Prestes esteve relacionado


à verba utilizada para viabilização do empreendimento. Apesar de o Ministério da Cultura ter
aprovado e inserido o projeto do Memorial na lei de Mecenato, o mesmo em nada contou com
a participação de dinheiro oriundo da iniciativa privada para sua implementação, salvo na
edificação do monumento “Coluna Invicta” projetado pelo escultor Mauricio Bentes e que foi
erigido no pátio da antiga Estação Férrea, onde o Memorial foi implantado. Sobre essa
específica participação da iniciativa privada, notícias da época afirmavam o seguinte: “A
execução em ferro da escultura da Coluna Invicta foi doada pela empresa Fundição Missioneira
de Santo Ângelo” (TAVARES, 1996, p. 07).

72
Depoimento oral concedido por Gládis Maria Pippi ao autor em 03/12/2011.
ISSN: 2525-7501
Com exceção ao monumento de Bentes, todo o restante da verba empregada na
implantação do Memorial Coluna Prestes foi oriundo do poder público do estado do Rio Grande
do Sul e do município de Santo Ângelo. Oscar Niemayer doou seu projeto do monumento
“Coluna Prestes”. Segundo se noticiava: “Para a realização do Memorial à Coluna Prestes, o
Governo do Estado, através das Secretarias de Cultura e Turismo, participou com R$ 60 mil, e
a Prefeitura de Santo Ângelo com outros R$ 60 mil” (TAVARES, 1996, p. 07).

Apesar da divulgação por parte de alguns órgãos de imprensa de Santo Ângelo com
relação ao custo do projeto de criação do Memorial Coluna Prestes, houve no período certa
polêmica sobre os custos do empreendimento. A implantação do Memorial não era uma
unanimidade na comunidade santo-angelense. Dessa forma, representantes da prefeitura e
equipe envolvida no projeto recorreram à imprensa para prestar esclarecimentos sobre a verba
utilizada na obra.

A verdade (e isto pode ser comprovado) é que o Memorial, como um todo, teve um
custo real de R$ 77.190,88, dos quais R$ 60.000,00 foram doados pelo Governo do
Estado do Rio Grande do Sul, divididos em duas partes, R$ 30.000,00 para o
Monumento (que teve um custo real de R$ 44.500,00) e o restante para o Museu do
Memorial, já que a outra obra escultórica foi doada pela FUNDIMISA, restando R$
158
17.190,88 para a prefeitura (TAVARES, 1996, p. 08).

Após dois anos de atividades voltadas para a viabilização do projeto de implantação do


Memorial Coluna Prestes, o empreendimento foi inaugurado em 17 de dezembro de 1996,
contando com a presença de autoridades municipais, estaduais e federais, como o prefeito de
Santo Ângelo Adroaldo Loureiro, o Governador do Rio Grande do Sul Antônio Britto e o
Senador da República Roberto Freire, além da viúva de Luiz Carlos Prestes, Maria do Carmo
Ribeiro e um dos filhos do casal, Luiz Carlos Prestes Filho, o qual esteve diretamente envolvido
com o projeto. Após o evento, as notícias sobre os atos de inauguração do Memorial tiveram
como principais destaques as palavras das autoridades e de Luiz Carlos Prestes Filho. De acordo
com o noticiado por A Tribuna Regional:

[...] o filho do líder comunista, Luiz Carlos Prestes Filho, leu o manifesto que seu pai,
Capitão Luiz Carlos Prestes, assinou em 28 de outubro de 1924 e que fora o primeiro
documento político da sua vida. O Governador Britto enfatizou que o gaúcho é um
povo motivado a construir o seu futuro e cultivar o seu passado, mas o Rio Grande do
Sul somente será grande se tiver orgulho dos seus ancestrais (A TRIBUNA
REGIONAL, 1996, p. 14).
ISSN: 2525-7501
A implantação do Memorial Coluna Prestes em 1996 não foi uma unanimidade na
comunidade santo-angelense. A iniciativa partiu de um grupo político representado pelo
Prefeito Adroaldo Loureiro que acreditou nos benefícios culturais e econômicos que o
empreendimento poderia trazer para a cidade de Santo Ângelo. Apesar disso, houve
interpretações distintas por parte daqueles que não perceberam o projeto dessa forma, o que
gerou a produção de representações sociais tanto daqueles que aprovaram quanto daqueles que
não foram a favor da implantação do Memorial.

A idealização e criação do Memorial Coluna Prestes tiveram como objetivos, de acordo


com os seus idealizadores, rememorar e homenagear os acontecimentos rebeldes de 1924 em
Santo Ângelo e que deram origem à marcha da Coluna Prestes, além da importância histórica
da figura política de Luiz Carlos Prestes. Como se divulgava na época: “Este espaço histórico-
cultural tem como objetivo homenagear e resgatar um dos fatos mais marcantes na história do
Brasil, servindo como referencial para o seu conhecimento e divulgação” (TAVARES, 1996,
p. 04). Também com a criação do novo espaço de memória do município se tinham os objetivos
econômicos, através do turismo que se acreditava iria projetar Santo Ângelo nacionalmente.
Como a própria imprensa local divulgava:
159
Em visita ao gabinete do prefeito Adroaldo Loureiro, na manhã de quarta-feira, o
artista destacou o potencial histórico de Santo Ângelo, elogiando a iniciativa de
construção do memorial, fato que segundo ele, irá projetar Santo Ângelo no cenário
nacional. De acordo com o prefeito Loureiro, o objetivo de um memorial em
homenagem a Luiz Carlos Prestes, ideia que começou a ser concretizada com o
incentivo de Luiz Carlos Prestes Filho, é um resgate da memória de Santo Ângelo,
aumentando o potencial cultural, histórico e turístico da cidade (JORNAL DAS
MISSÕES, 1995, p. 06).

Prevendo o aproveitamento cultural do Memorial Coluna Prestes a imprensa santo-


angelense já fazia projeção de como o local seria útil. “Formado pelas duas obras de arte e mais
um completo museu o Memorial santo-angelense se tornará uma visitação obrigatória para uma
vasta legião de pessoas que querem conhecer cada vez mais sobre a história de Prestes”
(JORNAL DAS MISSÕES, 1996, p. 02).

Antes mesmo da inauguração do Memorial Coluna Prestes a imprensa destacava os


benefícios que o monumento projetado por Oscar Niemayer para homenagear a Coluna traria
ISSN: 2525-7501
para a cidade, visto que, a obra de um dos principais arquitetos da história do Brasil seria a
primeira no Rio Grande do Sul. De acordo com o que se noticiava:

O Monumento que retrata a trajetória da Coluna Prestes já se tornou uma atração,


antes mesmo de ser inaugurado. Pessoas de outros municípios que visitam Santo
Ângelo estão fazendo questão de passar pela Avenida Ipiranga para conhecer a obra
de Oscar Niemayer, única do grande arquiteto no Rio Grande do Sul. Sem dúvida
nenhuma, mais um ponto de atração turística (JORNAL DAS MISSÕES, 1996, p.
02).

Principalmente o periódico Jornal das Missões, ligado ao Prefeito Adroaldo Loureiro


comemorava os benefícios que o Memorial Coluna Prestes traria para Santo Ângelo. Tais
benefícios não estavam relacionados apenas ao desenvolvimento cultural da cidade através da
valorização do passado em um novo local de memória, mas, fundamentalmente, tratava-se de
benefícios econômicos com o desenvolvimento do turismo na cidade, agregando novos pontos
de referência turística ao município. O jornal destacava o seguinte:

Outro aspecto a ser destacado nessa iniciativa da administração municipal de Santo


Ângelo em homenagear a Coluna Prestes é a atração turística em que se constituirá o
Memorial. O monumento colocado na Avenida Ipiranga é a única obra projetada pelo
mais importante arquiteto do país, Oscar Niemayer, situada no Rio Grande do Sul e
isso, além da importância histórica e cultural, vale como atrativo. É de se destacar que 160
projeto de Niemayer não teve custo nenhum para o município, foi doado pelo arquiteto
que foi companheiro de partido e admirador confesso do “Cavaleiro da Esperança”
(JORNAL DAS MISSÕES, 1996, p. 02).

O uso econômico do Memorial Coluna Prestes através do desenvolvimento do turismo


em Santo Ângelo era um dos aspectos mais ressaltados pela imprensa local. “O Memorial não
é somente um marco a respeito do fato de que a Coluna Prestes partiu de Santo Ângelo, mas
também já se tornou um dos principais pontos turísticos da nossa cidade, provando o acerto de
sua realização” (JORNAL DAS MISSÕES, 1996, p. 02).

Por outro lado, também houveram resistências em relação ao Memorial Coluna Prestes
em Santo Ângelo. Essas resistências eram sentidas desde a década de 1980, quando no ano de
1984 Luiz Carlos Prestes esteve no município de Santo Ângelo em um evento voltado para os
60 anos da Coluna Prestes. Partidos políticos e seus integrantes divergiram em relação à sua
presença na cidade em uma época de grande agitação no cenário político nacional, marcado
pelo processo de transição para a redemocratização. Já nesse período se produziram
representações contra a figura política de Prestes, fundamentalmente por sua atuação no
ISSN: 2525-7501
comunismo nacional e internacional. Em depoimento ao Jornal das Missões, o professor Valmir
Muraro, que fez parte da organização do evento que trouxe Prestes a Santo Ângelo em 1984,
relata a ideia que se tinha acerca do comunismo.

Os comunistas eram vistos como pessoas de uma periculosidade até assustadora. Eu


lembro que nas escolas depois de 64, antes do inicio das aulas a gente rezava pedindo
a Deus que nos libertasse das ameaças do comunismo. As professoras diziam que o
comunismo viria tirar os animais e as terras dos colonos. Certamente esta visão
anticomunista associada à figura de Prestes o transforma num vilão (MEOTTI, 2009,
p. 05).

Não apenas o preconceito que se tinha em relação à orientação política de Luiz Carlos
Prestes, mas também a contrariedade em relação a sua presença em Santo Ângelo ficou
comprovada com a negativa do título de Cidadão Honorário do Município de Santo Ângelo.
Sobre esse evento, Luiz Carlos Prestes Filho recorda:

[...] Quando meu pai esteve visitando Santo Ângelo, em 1984, o então vereador
Adroaldo Loureiro quis dar a ele o titulo de Cidadão Honorário de Santo Ângelo e
naquele momento a Câmara Municipal negou. Além disso, quando ele chegou a Santo
Ângelo foi dada ordem expressa de que se o ex- capitão Luiz Carlos Prestes se

161
aproximasse do Batalhão de Comunicações os soldados tinham que abrir fogo.
Imaginem só, o papai estava com 86 anos, e ainda emitia medo naquela época no
Exército. Então dá para perceber como nós mudamos, como o Brasil mudou. [...]
(MEOTTI, 2009, p. 05).

A iniciativa de trazer Luiz Carlos Prestes a Santo Ângelo desagradou, de maneira geral,
toda a ala conservadora da política local. Valmir Muraro recorda e destaca: “Nosso objetivo
não era, de forma alguma, fazer apologia ao comunismo ou política partidária, mas como
historiadores queríamos registrar um acontecimento histórico importante para a região [...]”
(MEOTTI, 2009, p. 05).

Todas essas polêmicas e acontecimentos que cercaram a vinda de Luiz Carlos Prestes a
Santo Ângelo em 1984, principalmente no que tange às representações contra sua trajetória e
figura política, se refletiram quando da idealização e criação do Memorial Coluna Prestes.
Grupos políticos, basicamente os mesmos que na década de 1980 manifestaram sua
contrariedade em relação a homenagens a Prestes, vieram a público expor mais uma vez seu
descontentamento, influenciados e motivados por suas ideologias. “Existia na época uma
reação muito forte, uma crítica muito forte da oposição ao Prefeito Adroaldo Loureiro,
ISSN: 2525-7501
representada pelo ex Prefeito Andres, eu cito os nomes porque isto estava público em jornais
[...]”. 73 Sobre esse grupo político Adroaldo Loureiro explica:

[...] houveram manifestações fortes, inclusive contra. Vereadores da oposição ligados


à antiga ARENA, inclusive na imprensa e se criticava o investimento, que tinha ali
recurso da Prefeitura, enfim, não lembro qual era o valor, mas não era grande coisa.
Então era criticado, mas principalmente pelo pessoal da antiga ARENA. Pessoal que
era da ditadura, apoiava a ditadura e sempre tiveram o Prestes como Comunista,
enfim, faziam as críticas. Praticamente os mesmos que estiveram contra a concessão
do Titulo de Cidadania pro Prestes e foram contra depois e se manifestaram [...]. Mas
foi um setor da comunidade. É claro que assim, em geral, havia sempre aquela, assim
não um preconceito, mas a população não era muito, assim, em geral, muito favorável,
até porque a imagem do Prestes ficou aquela coisa, Comunismo e a imprensa do tempo
da ditadura se encarregava de denegrir a imagem do Prestes. 74

O principal argumento utilizado pelo grupo citado por Loureiro para representar o
Memorial Coluna Prestes como algo desnecessário para Santo Ângelo esteve vinculado à ideia
de que se estaria desperdiçando dinheiro público para homenagear um comunista, pois, “[...]
diziam que se estava investindo dinheiro público pra uma coisa que não tinha valor. O Prestes,
comunista, a Coluna, era um bando de arruaceiros, enfim, eram contra a democracia.
Depreciavam o valor da Coluna e a figura do Prestes”. 75
162
Apesar de todas as manifestações e representações contrárias, o Memorial foi
inaugurado em dezembro de 1996, o que fez com que o grupo político e demais cidadãos
contrários ao projeto tivessem de aceitar o fato de que o espaço criado se tornou referência em
termos de ressignificação da memória vinculada à Coluna Prestes e à Luiz Carlos Prestes.
Entretanto, aceitar não significa reconhecer o espaço enquanto expressão do patrimônio cultural
de Santo Ângelo, algo que até hoje não é uma unanimidade entre toda a comunidade santo-
angelense. Exemplo disso encontrei durante as pesquisas nos escritos de um colunista do jornal
A Tribuna Regional, onde o mesmo expressa todo o seu descontentamento em relação à figura
política de Luiz Carlos Prestes e o Memorial Coluna Prestes.

Para vergonha e repúdio da nação, o nome de Luiz Carlos Prestes, covarde assassino
e vendilhão de sua pátria, é dado a logradouros públicos, por indicação de autoridades
executivas ou de políticos levianos e oportunistas, sem o menor sentimento de
patriotismo. Certamente, desconhecem a verdadeira história ou esposam ainda
filosofias sanguinárias e ditatoriais. Em nossa querida Capital Missioneira, usamos e

73
Depoimento oral concedido por Gládis Maria Pippi ao autor em 03/12/2011.
74
Depoimento oral concedido por Adroaldo Loureiro ao autor em 29/12/2011.
75
Depoimento oral concedido por Adroaldo Loureiro ao autor em 29/12/2011.
ISSN: 2525-7501
veneramos o nome e a figura de Prestes, para fins turísticos, com o argumento de que
quando iniciou a marcha, hoje denominada “Coluna Prestes”, este ainda não era
militante do comunismo internacional e defendia ideais, digamos, mais “patrióticos”
(MULLER, 2009, p. 06).

Mesmo que o Memorial Coluna Prestes esteja afirmado na cidade de Santo Ângelo
enquanto um espaço de memória, de ressignificação do passado, de usos culturais, econômicos
ou políticos, ele ainda é um espaço em debate, o que gera e pode gerar representações contra o
local. Assim como houve manifestações a favor de sua criação e que o estabeleceram como
expressão do patrimônio cultural de Santo Ângelo, também, quem foi contrário à iniciativa na
década de 1990, procurou representá-lo como algo negativo para a cidade baseados
principalmente em suas ideologias políticas contrárias a que foi seguida por Luiz Carlos Prestes
em praticamente toda a sua atuação como homem público no Brasil.

CONCLUSÃO
A Coluna Prestes se constituiu em um dos movimentos rebeldes mais significativos do
período da República Velha no Brasil. Sua existência significou o início de uma época em que
o modo como era conduzida a política naquele período passou a ser duramente contestado,
163
principalmente no que se refere a centralização das decisões na região sudeste. A marcha pelo
interior do Brasil desenvolvida em dois anos e três meses, passando por todas as regiões do
país, expôs o atraso e a situação de carestia que a maior parte da população sofria.

Tendo iniciado em outubro de 1924 no município de Santo Ângelo sob a liderança de


Luiz Carlos Prestes e com a organização do efetivo gaúcho em São Luiz Gonzaga, o movimento
rebelde passou efetivamente a empreender marcha a partir de março de 1925 quando da junção
de tropas gaúchas e paulistas no Paraná. Depois de mais de 20 mil quilômetros percorridos e
tendo verificado que os problemas políticos e sobretudo sociais brasileiros eram estruturais, o
comando da Coluna optou pelo Exilio na Bolívia em fevereiro de 1927.

Com a criação do Memorial Coluna Prestes em 1996 no município de Santo Ângelo, os


idealizadores do projeto acreditavam que estavam “resgatando”, como eles mesmo diziam, os
eventos do passado relacionados a Coluna Prestes. Para quem trabalha com a pesquisa e a
escrita da história, sabe-se que isso é impossível. A história e principalmente os lugares de
memória ou expressões do patrimônio cultural que se efetivam a partir dela, jamais podem ser
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entendidos como um simples resgate. São representação, seleção e (re)construção social do
passado a partir do presente. Tudo isso é feito intencionalmente. No caso do Memorial Coluna
Prestes se estava sim demarcando o passado e construindo um espaço a ser reconhecido como
parte do patrimônio cultural local, assim como também se tinha a intenção de transformá-lo em
um local de visitação, em um ponto turístico a ser agregado a outras expressões do passado e
possibilitar o desenvolvimento econômico.

Entretanto, a trajetória política de Luiz Carlos Prestes foi marcante no século XX no


Brasil. Prestes fez parte de acontecimentos decisivos tanto na fragmentação e desestruturação
da República Velha, como quando liderou a Coluna que leva seu nome, quanto nos
acontecimentos que marcaram a construção e afirmação da Nova República. Faleceu no início
da década de 1990, tendo sua história de vida diretamente entrelaçada com a história política
brasileira desde a década de 1920.

Tal biografia não passaria despercebida, e quando da efetivação da implantação do


Memorial Coluna Prestes houve significativa resistência quanto a implantação de um Memorial
em Santo Ângelo que estivesse ligado a Coluna Prestes e a trajetória política de Luiz Carlos. A 164
construção e o reconhecimento das expressões do patrimônio cultural também são um choque
de ideologias e de representações do passado. Muitos viram o Memorial Coluna Prestes como
uma homenagem necessária a figura do Cavaleiro da Esperança imortalizado na biografia
escrita por Jorge Amado. Outros acreditavam que era absurda a associação de Santo Ângelo
com a trajetória de um comunista.

São estes embates pelo passado, pelas memórias, pelos acontecimentos e pelas pessoas
que definem aquilo que se esquece e aquilo que se preserva. Às vezes é conveniente esquecer,
às vezes, indispensável lembrar. O patrimônio cultural é também fruto desse processo de
produção de representações sociais e busca pela legitimidade de algumas expressões.
Principalmente com o Memorial Coluna Prestes isto não seria diferente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ISSN: 2525-7501
Arquivo de Entrevistas do Centro de Cultura Missioneira (CCM), de Santo Ângelo/RS. -
Depoimento oral concedido por Adroaldo Mousquer Loureiro à Claudete Boff e Dione Mello
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BINDÉ, W. C. Santo Ângelo: terra de muitas histórias. Santo Ângelo: Multicor, 2006.

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165
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_____. Orgulho para os santo-angelenses. Jornal das Missões. Santo Ângelo, 21 dez. 1996, p.
09.

LOUREIRO, A. M. Adroaldo Mousquer Loureiro: depoimento [nov. 1998]. Entrevistadores:


Claudete Boff e Dione Mello Lenz. Arquivo de Entrevistas do Centro de Cultura Missioneira
(CCM).

______. Adroaldo Mousquer Loureiro: depoimentos [dez.2011]. Entrevistador: Amilcar


Guidolin Vitor.

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MEOTTI, F. “Ele nunca se conformou em aceitar a situação”. Jornal das Missões. Santo
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MULLER, É. Coluna Recanto do Sabiá. A Tribuna Regional. Santo Ângelo, 12 dez. 2009.
Cad. Cultura, p. 06.

PIPPI, G. M. Gládis Maria Pippi: depoimentos [dez.2011]. Entrevistador: Amilcar Guidolin


Vitor.

PRESTES, A. L. Coluna Prestes: uma epopeia brasileira. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1995.

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PRESTES , L. C. O manifesto de Santo Ângelo: 29/10/1924. Disponível em:


<http://www.maniadehistoria.wordpress.com/coluna-prestes-1924-o-manifesto-de-santo-
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SANTOS, E. Coluna Prestes ganha Memorial em Santo Ângelo. Jornal das Missões. Santo
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do rio Apa. São Nicolau: Tipografia O Debate, 1959.

TAVARES, G. P. Memorial à Coluna Prestes será inaugurado no dia 17. A Tribuna Regional.
166
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_____. Coluna Prestes inaugura seu Memorial na terça-feira. A Tribuna Regional. Santo
Ângelo, 14-15 dez. 1996. Cad. Turismo, p. 04.
ISSN: 2525-7501
A FORMAÇÃO DO MUNICÍPIO DE SÃO MIGUEL DAS MISSÕES E OS USOS DO
PATRIMÔNIO HISTÓRICO NAS DÉCADAS DE 1970 E 198076
Sandi Mumbach77

André Luis Ramos Soares78

RESUMO

Nas décadas de 1970 e 1980 uma série de transformações ocorreram na região das missões do
estado do Rio Grande do Sul, fazendo com que os municípios que a formam e seus sujeitos
buscassem no passado remoto referenciais para afirmações no presente, voltando-se para o
passado com um novo olhar. Este movimento é denominado por POMMER (2009) como
Missioneirismo. Em São Miguel das Missões este processo ocorreu de maneira especial, pois o
lugar abriga o sítio arqueológico em melhor estado de conservação do período reducional
jesuítico-guarani em território brasileiro. São Miguel, distrito de Santo Ângelo até o ano de
1988, vivenciou essa negociação com o passado e ressignificou seus patrimônios utilizando
estes como justificativa no seu processo emancipatório. Temos buscado compreender este
processo e a forma como os patrimônios do período reducional vêm sendo acionados e
utilizados pelos sujeitos do lugar e pelas instituições responsáveis pela sua preservação nestas
duas décadas. Procurando elucidar estas questões fazemos uso de edições do jornal A Tribuna
Regional, de Santo Ângelo.
167

Palavras-chave: São Miguel das Missões, Missioneirismo, patrimônios.

INTRODUÇÃO

Neste trabalho buscaremos expor alguns aspectos da pesquisa de mestrado que estamos
desenvolvendo no Programa de Pós Graduação em História da UFSM, na linha de pesquisa
Memória e Patrimônio onde buscamos compreender o processo de emancipação político-
administrativo do município de São Miguel das Missões e os usos do patrimônio Histórico local
neste contexto.

76
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
77
Mestranda do Programa de Pós Graduação em História da UFSM, bolsista CAPES/DS.
sandimumbach@gmail.com
78
Doutor em Arqueologia pela USP, professor adjunto da UFSM. alrsoaressan@gmail.com
ISSN: 2525-7501
O recorte temporal abordado pela pesquisa são as décadas de 1970 e 1980, este período
é caracterizado tanto por uma conjuntura nacional excepcional, marcada pela ditadura civil-
militar, quanto por uma conjuntura regional particularmente especial, período em que na Região
das Missões do estado do Rio Grande do Sul ganha destaque um movimento de valorização do
passado reducional jesuítico guarani, denominado por POMMER (2009) como Missioneirismo.

São Miguel Arcanjo foi uma redução jesuítico-guarani pertencente ao segundo ciclo
reducional, promovido pela Companhia de Jesus nas Colônias da Coroa Espanhola na América
nos séculos XVII e XVIII. Atualmente identificada como pertencente aos Sete Povos das
Missões Orientais, por localizarem-se a margem leste do rio Uruguai, mas que no período
compuseram um total de trinta povos missioneiros pertencentes à Província Jesuítica do
Paraguai. São Miguel Arcanjo teve sua instalação no ano de 1687, e o seu declínio em conjunto
com as demais reduções localizadas a leste da do rio Uruguai ocorreu após as negociações entre
Portugal e Espanha, onde estes firmaram um acordo estabelecendo que os sete povoados
missioneiros passariam aos domínios Portugueses enquanto que a Colônia do Sacramento
passaria aos domínios Espanhóis.
168
Após a desagregação do projeto reducional e às guerras que se seguiram com a
assinatura do Tratado de Madri (1750), a região dos povoados missioneiros sofreu com o
abandono e a depredação por parte dos novos povoadores. No início do século XX, havia a
prática de venda por parte dos órgãos administrativos locais, do material construtivo das antigas
reduções para os novos povoadores da região: “Há registros no Arquivo Histórico de Santo
Ângelo, antigo município sede de São Miguel das Missões, da venda, pela prefeitura de
materiais construtivos da antiga redução.” (RAMOS, 2006 p.94). Neste trecho Ramos (2006)
refere-se à venda do material construtivo da redução de São Miguel por parte da prefeitura de
Santo Ângelo.

As primeiras ações buscando a preservação e limpeza da antiga redução de São Miguel


Arcanjo ocorreram na década de 1920, empreendidas por parte do governo estadual. A obra
reducional apresentava-se, dentro das práticas políticas do período, orientadas pelas ideias
positivista de Ordem e Progresso, a responsável pela evolução do guarani. Desta forma a região
missioneira apresentava-se como um lugar a ser preservado, num projeto que pretendia
demonstrar que o estado viveu sob a égide da evolução desde o período missioneiro.
ISSN: 2525-7501
Na terceira década deste século – 1925 a 1928 – o Governo do Estado do Rio Grande
do Sul, através da Comissão de Divisão e Terras, com sede no município de Santa
Rosa, promovendo a limpeza da igreja, demonstrando, pela primeira vez o interesse e
a preocupação do poder público com o abandono ao qual o monumento estava
entregue. (LUZ, 1987. p.256)

A década de 1920 foi marcada pelo aumento significativo de obras sobre o conhecimento
histórico do Rio Grande do Sul, e de maneira especial pela criação do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Sul, responsável por uma série de ações no âmbito histórico e
cultural. Necessidades e ambições políticas nortearam as ações e escolhas na preservação dos
bens históricos no estado naquele período. Indicando que o patrimônio histórico a ser
preservado era aquele que de alguma forma contribuísse para o governo estadual autolegitimar-
se.

“De onde se conclui que a valorização do patrimônio histórico das Missões, a partir
da década de 1920, pode ser explicada sob a ótica da necessidade do Governo Borgista
em defender os ideais republicanos, em uma época de disputas politicas no Rio
Grande do Sul.” (POMMER, 2009, p. 87)

No ano de 1937 com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional


– SPHAN79, o sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo passou a receber atenção por parte do 169
governo federal, o mesmo possuía a função de selecionar e proteger aquilo que deveria se tornar
patrimônio histórico e artístico nacional. Neste período o governo de Getúlio Vargas
empreendeu um esforço para valorização de elementos que dessem sustentação ao projeto de
estabelecimento de uma identidade nacional, instituindo as primeiras politicas públicas
destinadas à preservação dos patrimônios contidos em território brasileiro.

No período que corresponde entre as décadas de 1930 e 1980, prevaleceu no Brasil a


concepção de patrimônio histórico como patrimônio edificado, estreitamente vinculado às
manifestações culturais de grupos e classes dominantes. Desta forma, os patrimônios escolhidos
para serem consagrados e preservados como símbolos identitários da nação foram os
relacionados ao passado colonial português, em detrimento de diversos outros. Dentro desta
ótica os elementos referentes ao passado reducional no sul do país passaram a integrar as

79
O SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional foi criado por decreto presidencial assinado
em 30 de novembro de 1937, estava subordinada ao Ministério da Educação. A instituição veio a ser
posteriormente Departamento, Instituto, Secretaria e, de novo, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), como se chama atualmente.
ISSN: 2525-7501
políticas de proteção do SPHAN, como representantes de um passado colonial, em destaque
para a arte sacra e as edificações em estilo denominado barroco-missioneira.

Desde o início de sua incorporação por parte de órgãos estaduais e federais como
patrimônio a ser protegido e valorizado o sitio arqueológico de São Miguel Arcanjo passou a
receber atenção, recebendo ações de reparos e conservação. Estas ações intensificaram-se ao
longo do tempo, especialmente, nas décadas de 1970 e 1980, período em que foram
desenvolvidas muitas ações visando a divulgação dos patrimônios buscando impulsionar o
turismo no lugar.

Capítulo I - As décadas de 1970 e 1980: um novo olhar sobre o passado reducional.

Como mencionamos anteriormente foi a partir da década de 1920 que os remanescentes


do passado reducional na região das missões passaram a receber atenção e cuidados por parte
de órgãos estaduais, e posteriormente de órgãos federais, especialmente o sítio arqueológico de
São Miguel Arcanjo. Estas ações intensificaram-se nas décadas que seguiram, melhorando o 170
estado de conservação do sítio arqueológico, para que este pudesse receber os visitantes que se
deslocavam ao local para conhecê-lo. Nas décadas de 1970 e 1980 estas ações passaram a
ocorrer de maneira ainda mais intensa.

Segundo POMMER (2009) nas décadas de 1970 e 1980 a Região das Missões enfrentou
uma crise econômica que abalou o principal setor da sua economia, a agricultura,
principalmente a produção de soja. Esta crise aliada também a um movimento de reação ao
processo de uniformização cultural e econômica, desencadeada pela globalização em meados
da década de 1970, exigiu que as comunidades negociassem com o passado reducional
jesuítico-guarani e buscassem nesse passado, elementos para o estabelecimento de uma unidade
identitária produzindo uma identidade missioneira. O turismo passou a ser visto como uma
alternativa para o desenvolvimento econômico da região. Na tentativa de reforçar e divulgar os
elementos do passado reducional, vários monumentos antigos foram ressignificados e novos
foram construídos na região, de maneira intencional, visando articular a memória local.
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São Miguel, por abrigar em seu território, as ruinas da igreja da antiga redução, sendo
a edificação do período reducional que encontrava-se em melhor estado de conservação da
região, tornou-se o símbolo deste movimento identitário, ganhando grande destaque, sendo
palco de ações, investimentos e divulgação. Destacamos alguns eventos promovidos na região
durante as duas décadas em que focamos a pesquisa e que tiveram grande repercussão e
divulgação, são eles: a criação do espetáculo Som e Luz (1978), a descoberta da fonte da antiga
redução de São Miguel Arcanjo (1982), a declaração de Patrimônio da Humanidade pela
UNESCO (1983), e o o projeto Missões 300 anos (1987).

O espetáculo Som e Luz criado em outubro de 1978 foi promovido pela Secretaria
Estadual de Turismo e tinha como objetivo inicial ser apresentado durante 60 dias e depois
deslocar-se para outros municípios do Estado. Devido à grande procura por parte do público,
resolveu-se manter o espetáculo no local, até a atualidade. O espetáculo com duração de uma
hora, trazia vozes de atores consagrados, e texto de Henrique Grazziotin Gazzana, buscando
narrar de forma teatral a história dos Sete Povos das Missões e apresentar a saga de seus heróis,
utilizando as ruinas da igreja e efeitos audiovisuais. Atualmente a prefeitura municipal de São
Miguel das Missões é a responsável pela manutenção do espetáculo, que passou por uma
171
revitalização no ano de 2016.

Em fevereiro de 1982 foram encontrados os primeiros vestígios da fonte da antiga


redução de São Miguel Arcanjo. “A prefeitura preparava uma área camping quando resolveu
fazer algumas perfurações e sempre brotava água. Foram colocadas máquinas a trabalhar e
notou-se que o piso era de pedra.” (A Tribuna Regional, 10 de dezembro de 1983). Assim que
descoberta a fonte, o SPHAN isolou a área, e assumiu também a tarefa de manter e preservar o
local, que posteriormente foi também aberto ao público para que passasse também a integrar o
roteiro turístico do lugar.

Em outubro de 1982 o Secretário de Cultura do MEC Marcus Vinicius Vilaça, em visita


à cidade de Santo Ângelo, anunciava que em dezembro daquele ano seria ele o representante
que entregaria a documentação de São Miguel das Missões para sua candidatura ao tombamento
pela UNESCO. Além disso, firmou-se também um termo de compromisso, pelo qual o MEC,
através da Sub-Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, iniciava as obras de
consolidação das ruinas de São Miguel. A proposta brasileira de elevação do sítio arqueológico
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de São Miguel Arcanjo à condição Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade foi aceita
pela UNESCO no dia 6 de dezembro de 1983. A noticia foi intensamente comemorada em toda
a região, e principalmente na cidade de Santo Ângelo.

Mais tarde, no ano de 1987 iniciou-se as comemorações dos 300 anos de fundação das
reduções de São Miguel Arcanjo, São Luiz Gonzaga e São Nicolau. Diversas atividades e
festividades foram realizadas tendo com o objetivo a valorização do patrimônio histórico das
Missões, envolvendo professores, artistas plásticos, museólogos, arquitetos, arqueólogos,
cineastas, autoridades estaduais e municipais, reunindo diversas áreas.

Neste período, enquanto a região das missões buscava ressaltar os elementos e os


patrimônios do passado reducional, São Miguel das Missões consolidou-se como atração
principal do turismo da Região das Missões. A fachada da igreja da antiga redução de São
Miguel Arcanjo tornou-se o símbolo que identifica toda a região, assim como a Cruz de Lorena
localizada também dentro do parque arqueológico.

172
Por isso definir o que deve ser preservado é de tanta responsabilidade. É também
decisivo, na medida em que ao escolher/selecionar o que guardar na memória, ou para
as gerações futuras, se está excluindo outros tantos vestígios, e ao mesmo tempo,
conferindo lugar de destaque – patrimonializando - àqueles que são guardados.
(CHUVA, 2011. p.38)

Ao construir a identidade regional o missioneirismo, como denomina POMMER (2009),


acaba selecionando alguns elementos do passado reducional para constituírem-se como os
formadores da identidade, ativando-os80. Estes elementos são relacionados ao passado colonial,
ao êxito do projeto reducional, ao indígena convertido ao cristianismo, ao indígena enquanto
valoroso por defender e lutar na defesa do projeto reducional e pela sua terra. Neste contexto
outros elementos presentes na região foram esquecidos, ou silenciados, não integrando a
identidade missioneira.

Capítulo 2 - A emancipação político-administrativa: disputas políticas envolvendo o


patrimônio histórico.

80
Llorenç Prats (2005) denomina ativação patrimonial o processo de escolha de determinados referenciais do
passado que servem para dar sentido a narrativas e discursos.
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Como citamos acima foram vários os fatos, eventos e acontecimentos marcantes nas
décadas de 1970 e 1980 em São Miguel das Missões. Porém, neste período o mesmo constituía-
se ainda como um distrito do município de Santo Ângelo, e era este município o responsável
por gerir e atuar sobre o patrimônio de seu distrito. Santo Ângelo acabou beneficiando-se
intensamente com a projeção alcançada pelo patrimônio histórico de São Miguel naquele
período, e por este não obter infraestrutura apropriada para recepcionar grande número de
turistas, Santo Ângelo oferecia este suporte, movimentando a sua economia a partir do setor
turístico.

Conforme pesquisas realizadas em artigos publicados pelo jornal A Tribuna Regional de


Santo Ângelo durante todo o ano de 1983 as autoridades locais e a população em geral
aguardaram com euforia os meses que se seguiram ao anuncio da candidatura de São Miguel a
Patrimônio da Humanidade, até a sua confirmação em dezembro daquele ano. Previa-se que a
declaração traria um grande impulso para o turismo da região, trazendo desenvolvimento
econômico para esta. Como já mencionamos, este era um período de crise econômica e agrícola,
Santo Ângelo, como os demais municípios da região, buscava alternativas para o
desenvolvimento econômico, e o turismo apresentava-se como uma saída. A declaração
173
realizada pela UNESCO acabou impulsionou a divulgação e a promoção dos patrimônios
locais, estimulando, ainda mais, o setor turístico da região. A mesma teve uma enorme
repercussão, a região foi a terceira do país a ser reconhecida pela UNESCO com o título de
Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade, apenas Ouro Preto – MG e Olinda – PE
haviam conseguido tal intento, em 1980 e 1982, respectivamente. No mesmo jornal
encontramos diversas notícias relatando o grande fluxo turístico recebido por Santo Ângelo nos
dias e meses que seguiram à declaração de São Miguel pela UNESCO, movimentando hotéis,
restaurantes e até em livrarias.

Como podemos observar o município de Santo Ângelo, beneficiou-se intensamente com


o seu afamado distrito, desde o inicio do século XX, com a venda do material construtivo da
antiga redução, e principalmente nas décadas de 1970 e 1980, com a intensificação do fluxo
turístico no distrito.

O que temos buscado compreender em nossas pesquisas é motivo pelo qual São Miguel,
mesmo alcançando grande importância no contexto turístico da região e podemos dizer também
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no contexto estadual e nacional, e ainda tendo sido o palco de grandes eventos neste período,
permanecer sendo um distrito do município de Santo Ângelo até o ano de 1988.

Como citamos anteriormente, além do contexto regional do surgimento do movimento


denominado por POMMER (2009) como Missioneirismo, o país vivia, nestas duas décadas em
que enfocamos a pesquisa, uma ditadura civil-militar. Esta teve início no ano de 1964,
permanecendo até o ano de 1985. Alegando a ameaça comunista, os militares dominaram as
várias instâncias do poder. Abatendo-se sob a população restrição de direitos e censura. Estados
e municípios mantiveram eleições, mas estavam sujeitos a intervenções por parte do governo
federal.

Por sua vez, os prefeitos das capitais estaduais passaram a ser nomeados pelos
governadores, tornando-se interventores. Essa situação foi parcialmente alterada
quando, em 1968, promulgou-se a lei que declarava de interesse da segurança nacional
vários municípios brasileiros. Nesse primeiro momento, 68 municípios foram
declarados área de segurança nacional, sendo quase um terço localizados no Rio
Grande do Sul. Os prefeitos desses municípios continuariam sendo indicados pelo
governador, porém, neste caso, mediante prévia autorização do presidente, podendo
ser exonerados em caso de "decaírem da confiança do Presidente da República ou do
Governador do Estado". (PADRÓS, 2009, p.41)
174
Conforme menciona PADRÓS (2009) dos 68 municípios declarados área de segurança
nacional um terço localizavam-se no Rio Grande do Sul, um número extremamente expressivo
e que indicava a importância atribuída pelos militares à proteção das fronteiras, principalmente
nos municípios que faziam fronteira com o Uruguai e Argentina. Nestes municípios o governo
federal nomeava interventores para ocuparem os cargos de prefeitos. Além disso, nesse período
houve restrições quanto à emancipações municipais, conforme aponta MAGALHÃES:

O início do processo de emancipação municipal no Brasil ocorreu por volta da década


de 1930. Esse processo se intensificou nas décadas de 1950 e 1960 e foi restringido
pelos governos militares entre 1970 e 1980. Após o término do regime militar, as
emancipações se intensificaram novamente. Com a Constituição Federal de 1988, os
municípios passaram a serem considerados entes federativos e a desempenhar um
papel mais relevante na administração pública brasileira. [...] Desde 1985, a intensa
criação e instalação de municípios no Brasil têm sido parte de um processo mais geral
de descentralização. (MAGALHÃES, 2007, p.13)
ISSN: 2525-7501
O movimento que deu início ao processo de emancipação de São Miguel das Missões,
ocorreu exatamente no ano em que teve fim o período militar no país, em 1985. Uma tentativa
de buscar a emancipação político-administrativa do distrito já havia ocorrido em 1978, porém
a comissão emancipacionista não conseguiu levar a proposta a diante e efetivar a emancipação.
No ano de 1985, ocorrendo o fim do período ditatorial no país novamente as lideranças locais
do distrito de São Miguel das Missões buscaram juntos aos órgãos competentes dar inicio ao
processo de emancipação municipal.

Inicialmente no dia 26 de maio de 1985 foi realizada uma assembleia no Centro de


Tradições Nativistas – (CTN) Sinos de São Miguel, que contou com a participação de 408
pessoas e foi presidida por Valdir Pedro Frizzo, presidente do Núcleo Comunitário local. A
assembleia elegeu uma comissão para tratar do processo de emancipação político-
administrativa do distrito. Posteriormente um plebiscito foi realizado onde a população foi
praticamente unânime quanto a apoiar a emancipação do distrito.

Os membros da Comissão Emancipacionista eleitos em Assembleia eram, em maioria,


pessoas de destaque e influência na comunidade, comerciantes e agricultores, indivíduos 175
interessados no crescimento e no progresso econômico de São Miguel das Missões, conforme
SILVA (2008). Estes custearam com recursos próprios as despesas do processo emancipatório.
Alguns assumiram cargos públicos no município nos anos que se seguiram à emancipação,
como é o caso de Valdir Pedro Frizzo que veio a tornar-se prefeito de São Miguel das Missões
em duas gestões.

Em abril de 1988 a emancipação do distrito de São Miguel das Missões concretizou-se,


finalizando todos os requisitos exigidos. Naquele ano Santo Ângelo perdeu boa parte de seus
territórios com a emancipação de Entre Ijuís, Eugenio de Castro e São Miguel. Além de perder
o sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo, Santo Ângelo, perdeu também extensões de terras
de intensa produtividade agrícola.

Analisamos as publicações referentes a São Miguel noticiadas pelo jornal A tribuna


Regional durante todo o ano de 1983, percebemos que estas demonstram o quanto o município
de Santo Ângelo envolveu-se e beneficiou-se da declaração de São Miguel como patrimônio da
humanidade naquele ano. Foram dezenas de matérias, cadernos especiais, e capas estampando
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e noticiando fatos a respeito do sítio arqueológico. Ao analisarmos as publicações do mesmo
jornal referente à emancipação político-administrativa de São Miguel das Missões ocorrida em
abril de 1988 percebemos que o mesmo apenas noticia este fato de forma bastante tímida em
um canto de página. Desta forma compreendemos que existe ai um silenciamento do jornal,
demonstrando que perder o afamado distrito não foi positivo para Santo Ângelo, não merecendo
grande divulgação.

Após a emancipação de São Miguel das Missões compreendemos que houve uma maior
apropriação dos patrimônios históricos do lugar por parte das lideranças locais e da população.
Os indivíduos do lugar passaram a gerir de forma mais efetiva este patrimônio, e a pensar e
planejar as ações sobre estes, articulando a memoria local.

A emancipação do distrito de São Miguel, que separado do município de Santo


Ângelo passou a se constituir em unidade autônoma, marcou muitas mudanças. A
elaboração do plano diretor da cidade foi uma iniciativa importante para orientar o
desenvolvimento urbano. Embora planos diretores como o de Piratini e o de Porto
Alegre já compatibilizassem a preservação do patrimônio arquitetônico e urbanístico,
com o planejamento urbano, o plano de São Miguel teve particular importância, por
dirigir o crescimento da cidade ao longo da avenida de acesso à cidade, evitando que
as ruinas ficassem isoladas no meio da área urbana. Várias desapropriações foram 176
realizadas para ampliar a área protegida. (MEIRA, 2007. p. 84)

Ao município de Santo Ângelo restou tentar atrair o olhar do turista para aquela que é
considerada a réplica da igreja da redução de São Miguel Arcanjo, a Catedral Angelopolitana,
e construir novas simbologias que remetessem ao passado reducional da região. No final do
século XX novos sujeitos e instituições, publicas e privadas, passaram também a articular e
desenvolver ações sobre o patrimônio da região, buscando uma integração entre os vários
municípios desta, buscando formar um roteiro turístico integrado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa que estamos desenvolvendo encontra-se em fase inicial, buscaremos


esclarecer ainda, muitos outros aspectos referentes à formação do município de São Miguel das
Missões, principalmente no que tange a utilização dos patrimônios históricos do lugar neste
contexto. Estamos buscando ampliar as fontes de pesquisas para além do Jornal A Tribuna
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Regional, utilizando outros veículos de comunicação do período, como também fontes oficiais
e história oral.

Acreditamos que o período delimitado como recorte temporal é extremamente complexo


no seu sentido político e econômico, como também no modo de conceber e agir sobre os
patrimônios históricos, exigindo-nos a compreensão do contexto regional, estadual, nacional e
global. A emancipação politico administrativa de São Miguel das Missões, para além de ser um
fato isolado reflete um contexto político extremamente conflituoso, como também reflete
disputas políticas envolvendo o patrimônio histórico em um período em que este é tido como
uma alternativa para o desenvolvimento econômico da região. O patrimônio enquanto
construção social (PRATS, 1998) é sempre um campo de disputas. As escolhas do que deve ser
preservado perpassam processos de negociação, e são realizadas tendo em vista dar legitimação
à discursos gerados.

177
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHUVA, Marcia. Entre vestígios do passado e Interpretações da História – Introdução aos


estudos sobre Patrimônio Cultural no Brasil. In: CERAU, Sandra. KISHI, Sandra. SOARES,
Inês Virgínea. LAGE, Cláudia. Olhar multidisciplinar sobre a efetividade da proteção do
patrimônio cultural. Editora Fórum. Belo Horizonte. 2011.

LUZ, Maturino. S. A arquitetura e o urbanismo no antigo povo de São Miguel das Missões.
Anais do VII Simpósio Nacional de Estudos Missioneiros: As Missões Jesuítico-Guaranís:
Cultura e Sociedade. Santa Rosa. 1987.

MAGALHÃES, João Carlos. Emancipação político-administrativa de municípios no Brasil. In:


CARVALHO, Alexandre Xavier Ywata. [et al.]. Dinâmica dos Municípios. Brasília: Ipea.
2007.

GOELZER, Ana Lucia. A trajetória do IPHAN nas Missões. IN: GOELZER, Ana Lucia.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Fronteiras do mundo ibérico: patrimônio, território e


memória das Missões. Porto Alegre. Editora da UFRGS. 2007.
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PADRÓS, Enrique Serra. MARÇAL, Fábio Azambuja. O Rio Grande do Sul no cenário da
coordenação repressiva de Segurança Nacional. IN: PADRÓS, Enrique Serra. BARBOSA,
Vânia M. LOPEZ, Vanessa Albertinence. FERNANDES, Ananda Simões. Ditadura de
Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e memória. Porto Alegre,
Corag, 2009.

PRATS, Llorenç. Concepto y gestión de patrimônio local. Cuadernos de antropologia


social. n.21 Buenos Aires. 2005.

PRATS, Llorenç. El concepto de patrimônio cultural. Politica y sociedade. Madrid. 1998.


POMMER, Roselene Moreira Gomes. Missioneirismo: história da produção de uma
identidade regional. Porto Alegre. Martins Livreiro. 2009.

RAMOS, António Dari. A formação histórica dos municípios da Região das Missões do
Brasil. Responsável. Santo Ângelo, 25 de janeiro de 2006. Disponível em:
http://www.urisan.tche.br/~iphan/upload/downloads/file1.pdf. Acesso em: 30/03/2015. 178
RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas – SP. Editora da
UNICAMP, 2007.

SILVA, Salete. 20 anos de emancipação de São Miguel das Missões. Santo Angelo. 2008.
TCC (História). URI – Santo Ângelo.

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Escavações mostram novas descobertas. A Tribuna Regional. 10/12/1983.
Prefeito Azeredo acredita em novo fluxo turístico. A Tribuna Regional. 10/12/1983
Ruinas Patrimônio da Humanidade: O que isso significa para Santo Ângelo? A Tribuna
Regional. 23/02/1983.
São Miguel Patrimônio da Humanidade – Já influi na economia de Santo Ângelo. A
Tribuna Regional. 15/12/1983.
ISSN: 2525-7501

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ISSN: 2525-7501
O PATRIMÔNIO CULTURAL SANTO-ANTONIENSE: AS MINIATURAS NO
IMAGINÁRIO GUARANI*81

Ma. Michele Moraes Lopes**


Dr. Júlio R. Quevedo dos Santos ***82

RESUMO

O presente artigo aborda o processo de representação social do Patrimônio Cultural do acervo


da Arte em Miniatura Sacra Missioneira do século XVII e XVIII, que se encontra no Museu
Municipal Monsenhor Estanislau Wolski no município de Santo Antônio das Missões, está
relacionada à necessidade de valorizar, preservar e divulgar o Patrimônio local, enfim, de
expressar o sentimento de pertencimento ao passado missioneiro. Sob esse olhar, pretende-se
valorizar a identidade missioneira pelo viés da memória da comunidade local. As miniaturas no
imaginário guarani apresentam esteticamente uma produção mais livre, individual, onde
emergia traços indígenas na introspecção de uma profunda fé.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural, identidade, miniaturas. 180

INTRODUÇÃO

O acervo pertencente ao Museu Municipal Monsenhor Estanislau Wolski83, abriga uma


coleção única de imagens em Miniaturas da Arte Sacra Missioneira84 do século XVII e XVIII
no município de Santo Antônio das Missões, RS.

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Mestre em Patrimônio Cultural, Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Docente do Instituto Federal
Farroupilha – campus Júlio de Castilhos\RS. E-mail michele.lopes@iffarroupilha.edu.br
*** Professor Titular do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutor em
história Social pela Universidade de São Paulo (USP); Docente do PPGMP em Patrimônio Cultural da UFSM;
Orientador. E-mail: j-quevedo@uol.com.br

83
Museu Municipal Monsenhor Estanislau Wolski, localizado na rua: Irineu Ribeiro de Moraes nº 5882 no
município de Santo Antônio das Missões, RS, destaca-se pelo acervo em miniatura sacra missioneira remanescente
do imaginário guarani.

84
Miniaturas segundo Tau Golin. Estátuas que andam. 2012. De certa forma, as miniaturas tecem os fios da meada
da rede fundante do processo missioneiro, entendido como herança autóctone sincrética ao mundo reducional, mas
especialmente como remanescência. Talvez em uma expressão reducionista, a miniatura se fez “como valor de
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Sua relevância justifica-se devido à necessidade de estudos mais específicos,
relacionados ao patrimônio cultural da comunidade santo-antoniense, a fim de tornar mais
visível a importância desse patrimônio de origem missioneira. As obras da Arte Sacra do
Barroco Missioneiro Guaranítico existente no MMMEW estão relacionadas à necessidade de
recuperar a importância do patrimônio desse município, com a proposição de acionar a
identidade e a história do município pelo viés da memória da comunidade local.

Capítulo I - A representação das imagens no imaginário missioneiro

Em estudos realizados sobre este assunto, encontra-se análises significativas e


importantes a respeito da elaboração do acervo do imaginário missioneiro, entre eles destacam-
se, Trevisan, Marilda Oliveira, Roselene Pommer e Jacqueline Ahlert em 2008 e 2012, a qual
faz uma análise do modo como essas estátuas representaram o imaginário missioneiro. A autora
faz um estudo cronológico que se estende do Barroco, com a chegada dos Jesuítas na América
e consequente organização das missões através da Companhia de Jesus, em 1549, até a
construção dos Sete Povos, no final do século XVII. As estátuas tinham valor estético e
religioso e, com a Guerra Guaranítica (1754 a 1756), espalharam-se pela região das Missões e 181
região do Rio do Prata (atual Argentina, Uruguai, Paraguai e sul do Brasil). Parte desse acervo
que sobreviveu ao tempo, está preservado e guardado no Museu Monsenhor Estanislau Wolski,
no município de Santo Antônio das Missões, RS. Ao analisar as miniaturas do acervo, AHLERT
( 2008, p.115), assim descreve:

Considera-se como descrição pré-iconográfica a leitura da obra a partir do que é


materialmente apresentado: a análise iconográfica corresponde a identificação da
representação tradicional das imagens, ou seja, seus atributos, gestos, história e
apresentação; em suma, são os elementos que permitem o reconhecimento do santo; a
interpretação iconológica é o que permite perceber o desenvolvimento de um estilo de
arte missioneira, identificado a partir da intervenção do guarani na estética tradicional
europeia.

Ao evidenciar o missioneirismo, evoca-se as escritoras são luizenses, Marilda Oliveira


de Oliveira (2004) e Roselene Pommer (2009). Pommer aborda a produção da identidade que
se formou na região missioneira, as negociações com elementos de um passado reducional, para
o apoderamento de uma identidade missioneira, assim, (POMMER, 2009,p.20)

uso”, modo de vida, nas dimensões pragmáticas, simbólicas e sagradas. Expandiu-se além da ritualidade litúrgica
do poder colonial. Atou-se e dimensionou o sentido de cotidianos anímicos. http://historiaupf.com.br. Acesso em:
28 fev. 2015.
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Foi á utilização de referências do passado reducional de modo idealizado com a
finalidade de criar um modelo de comunidade, o qual quanto modelo, deveria servir de
inspiração (…) nesse período, um novo sentido foi atribuído ao passado, o qual deveria
embasar determinadas tradições, capaz de produzir o cariz identitário típico da região:
o gaúcho missioneiro. A escolha das raízes fundantes deste ideal recaiu sobre o tempo
da Missão como época de promissão e prosperidade.

As comunidades remanescentes na região das Missões no oeste do Rio Grande do Sul


acionaram politicamente as representações do passado, construindo a identidade regional para
a superação da crise estabelecida na década de 1970, assim iniciou-se um processo de
negociação com o passado, e iam enaltecendo o que lhes interessava, formando o imaginário
social na busca da identidade missioneira, a partir de interesses do presente, o passado
reducional foi ressignificado que se apresentava como “de fartura, da prosperidade, da
propriedade coletiva da terra, de uma república, enfim de uma felicidade nunca encontrada em
lugar algum” (POMMER, 2009, p.21), buscou essas referências que prosperaram social e
economicamente no passado, portanto hoje a região orgulha-se de se apresentar como gaúchos
missioneiros, voltada à memória das origens dos guaranis reduzidos, e a construção da história
no imaginário social do passado, abordando a igualdade social, a distribuição de terras, o 182
trabalho coletivo, enfim, a prosperidade.

Nesse contexto regional, Marilda de Oliveira (2004) faz um estudo cronológico, da


chegada da Companhia de Jesus e o abordagem por meio do catolicismo as tribos indígenas que
habitavam América, com objetivo de construir uma sociedade sem males, alusão ao mito
Guarani da “terra sem males”, a república guarani, e como se deu a relação dos indígenas e
jesuítas nesse espaço reducional utópico, onde prosperou mais de cento e cinquenta anos, com
destaque a arte missioneira, através da escultura, pintura, arquitetura e a música. Lugar onde se
formou a cultura híbrida, que entendemos como cultura missioneira mesclada por apresentar
um pouco de cada cultura, em um espaço isolado se produziu uma arte que não era o Barroco
europeu nem uma arte indígena primitiva, o que houve foi uma mescla dessas culturas, a qual
se formou o Barroco Missioneiro. Onde a redução foi um sistema de evangelização com forte
apelo espiritual, aliada a objetivos sociais e econômicos, assim, (OLIVEIRA, 2004, p.57)

Certas coincidências místicas e messiânicas eram aproveitadas pelos jesuítas, a fim de


facilitar o processo de conquista espiritual, por exemplo, no nomadismo havia-lhes
restado a opção dos deslocamentos messiânicos que seriam associadas as procissões;
ISSN: 2525-7501
os paus cruzados, outro símbolo religioso guarani, que representa a morada terrestre,
vai ser assimilado e identificado com a cruz cristã (...) Fatos sobrenaturais e
manifestações proféticas que sucedem com tanta frequência que parecem haver se
formado em situação de profecia.

Os jesuítas procuravam aproximar a religião católica das crenças indígenas, mas sempre
com o objetivo maior da redução, converter os indígenas ao cristianismo, mesmo que tivessem
que buscar maneiras diferenciadas para efetivar tal proposta, (OLIVEIRA, 2004, p.57),

A frequência do milagre. Esse fenômeno é essencial à ação missionaria e determina a


resposta indígena. Do ponto de vista histórico e antropológico, estes fenômenos são
partes do processo reducional vão além de uma simples credulidade e exaltação
religiosa do missioneiro que havia encontrado, no universo religioso guarani, um eco
igualmente crédulo e supersticioso.

Nesse espaço reducional são formadas e organizadas na região sul do Brasil


comunidades missioneiras jesuítico guaranis, que levavam o rosário pendurado no pescoço,
símbolo da proteção, e para que os demais índios os reconhecessem como cristãos a serviço de
Deus.

Formou-se na região sul do Brasil, uma fusão de dois povos, com a “contribuição
183
cultural guarani somada à contribuição cultural jesuítica, definindo o barroco missioneiro: uma
mescla de coisas guaranis com coisas jesuíticas” (OLIVEIRA, 2004, p.16).

Com essa pesquisa pretende-se que por meio de valorização e divulgação da cultura que
se formou na região das missões “missioneira”, a partir de recordações e memórias do passado
para contar a história das missões. Com o intuito de direcionar o olhar como meio de divulgar
o acervo da Arte Sacra em Miniatura que está alocada no MMMEW, difundindo a arte, a
história e os valores dos antepassados. Concordamos que existe um estilo missioneiro, onde o
indígena expressou códigos, símbolos e signos de seu universo cultural, seus traços, sua
autenticidade. Nessa abordagem, TREVISAN (1990, p.21) comenta a originalidade indígena:

A feitura das imagens passou por mutações à medida que a diversidade de influências
se acentuava. Além disso, com a intensificação da autoconsciência dos indígenas
criaram-se para eles condições de expressões próprias. Subliminalmente no início,
depois com maior clareza, foram deixando suas impressões digitais nas obras que
produziam impressões capazes de configurar uma autoria, ou, pelo menos, uma
coautoria.
ISSN: 2525-7501
O barroco missioneiro é composto por traços indígenas em todas as expressões
artísticas, principalmente nas esculturas, “o rosto do índio aflora, esboçando os primeiros
documentos de uma sensibilidade latino-americana” (TREVISAN, 1990, p. 21).

Olhares diferentes, da história, da arte, da antropologia cultural e social, voltados a


construção de uma identidade missioneira vão trilhando caminhos à decodificação e possível
compreensão do passado. É perceptível que no espaço reducional ocorreu a aceitação dos
guaranis a religião católica em troca de proteção, com muita imposição e resistência.

A Arte elaborada no âmago da comunidade missioneira é nesta investigação defendida


enquanto expressão e tradução da negociação entre as comunidades indígenas guaranis que
vivem no TEKOHÁ dispostas a efetivarem trocas culturais com o Ocidente Cristão.

Nesse lugar de constantes conflitos e negociações, os jesuítas tiveram que respeitar a


herança cultural guarani, pois se preservou muito de seus costumes culturais, econômicos e
sociais, o modo de ser guarani, principalmente a língua. Na escola período missioneiro a criança

184
aprendia a gramática espanhola e guarani, em sua simbologia e tradução de mundo.

Capitulo II - Conhecimento e valorização do Patrimônio Cultural santo-antoniense

O MMMEW é o guardião da memória representada no riquíssimo acervo das esculturas


em miniaturas, exemplares da imaginária com marcantes traços indígenas. Restaurado em
2006. O museu é considerado o segundo maior em miniaturas da arte barroca missioneira do
Brasil, possui uma coleção de imagens missioneiras dos séculos XVII E XVIII.

Torna-se significativa uma aproximação entre presente e passado, da Região das


Missões, nela o MMMEW estabelecendo as possíveis ligações com a memória coletiva, o que
nos leva a compreensão de que “os museus são por tradição, lugares de memória85, que têm a
tarefa de informar, reunindo indivíduos e comunidades em torno de tradições e ideais (...)”
(FIGUEIREDO, 2013, p.213), os museus relatam trajetórias da vida humana, nos remetendo a
lembranças, onde comunicam sentimentos, ideias, tempo, ligam o passado com o presente.

85
Lugares de memória para NORA, Pierre (…) lugares em que uma sociedade, qualquer que seja, nação, família,
etnia partido, declare voluntariamente suas lembranças ou as reencontre como uma parte necessária de sua
personalidade(...). (Ver Entre Memória e História: a problemática dos lugares. 1993).
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Assim se faz necessário, nesse contexto, conhecer para valorizar o patrimônio cultural
local, através de ações efetivas com a comunidade santo-antonienses, propiciar momentos de
visitação, conhecimento e valorização do patrimônio cultural existente no museu86. Desse
modo, nesta investigação científica propôs-se a elaboração de uma cartilha87, posto que
excelentes e meticulosas pesquisas acadêmicas já dessem conta do acervo, com a intenção de
beneficiar os visitantes do museu, pois, além de conhecer o acervo, poderão levar para casa a
cartilha5, onde constará também ações efetivas voltadas a Educação Patrimonial, o qual
proporcionará conhecimento e cultura, como também visibilidade do Patrimônio Cultural local,
a fim de que a sua construção possibilite a retomada da memória enquanto algo (SALVADORI,
2008, p.29).

[...] sempre presente e seus significados não são prontos à espera de alguém que os
resgate, não são um dado pronto, mas sim um processo de significação que se dá no
interior de uma determinada cultura e, por isso, mesmo mutantes, provisórios e
inacabados. Memória não contém uma verdade sobre o passado e sim se presta a
construir uma de suas possibilidades de interação.

Sob esse olhar, pretende-se reconhecer, preservar e valorizar a identidade missioneira


pelo viés da memória oral dos moradores da cidade de Santo Antônio das Missões, contribuindo 185
no seu processo contínuo de construção. Apropriar-se das lembranças das pessoas da
comunidade, ouvi-las, compreendê-las, descrever, transcrever e traduzir estas memórias para a
construção da história do Patrimônio Cultural local, através dos depoimentos sobre a coleta das
peças realizadas pelo Padre Hartmann, que se encontram no MMMEW. O IPHAN gerenciou a
pesquisa histórica e a história oral do acervo. Ao estudar a cultura guarani, procura-se
aprofundar os conhecimentos e a importância da formação da Identidade Missioneira88.

86
O Conselho Internacional de Museus – ICOM define como Museu, toda instituição permanente, sem fins
lucrativos, aberta ao público, que adquire, conserva, pesquisa e expõe coleções de objetos de caráter cultural ou
científico para fins de estudo, educação e entretenimento. http://www.cultura.pr.gov.br/ acesso em: 27 fev. 2015.

87
Cartilha: Compêndio de noções elementares sobre qualquer assunto. É um livro didático dedicado à
alfabetização de crianças, sobre um determinado assunto. A intenção de elaborar uma cartilha, com itens como,
texto, imagens e mapas, sobre o acervo da Arte Sacra do MMMEW, em Santo Antônio das Missões, abordando
também ações sobre Educação Patrimonial.

88
Identidade missioneira foi um processo de negociação com o passado, ao passado reinventado pelas
necessidades do presente, pois, “é através de subjetivações individuais”, socialmente incentivadas, que se dá o
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Capitulo III - Identidade Missioneira

A compreensão de identidade é intercultural, dinâmica, relacional que se constrói em


suas permanências e rupturas, continuidades/descontinuidades, inclusões/exclusões. É um
sentimento de pertença, que negocia com o passado, efetivando-se ao presente. A construção
histórica sociocultural da identidade missioneira tem suas raízes nas identidades indígenas,
particularmente no modo de ser guarani em suas interculturalidades, trocas culturais, com os
jesuítas missionários em fase de projeto apostólico politico de colonização, iniciado a partir dos
primórdios do século XVII.

O início desse processo na Região das Missões ocorre com a chegada dos jesuítas, em
sua aproximação com os indígenas e na organização das Reduções. Para os jesuítas, a missão89
era o modo de evangelizar os indígenas, mas esses padres aprendem a forma de ser guarani, seu
sentido identitário, religioso, místico e econômico, especialmente a produção agrícola com
caráter coletivo, os missionários mantiveram esse sistema porque atendia interesse do projeto
apostólico político da Companhia de Jesus. Assim, organizaram o projeto, permeando esses
aspectos de vida dos guaranis. Nesse encontro com interações culturais, surgiram formas de 186
vida religiosa e econômica que dificilmente se compreenderiam fora dessa realidade.
Reforçando tais considerações, SANTOS (2012, p. 25) destaca,

A experiência missioneira pode ser entendida a partir da presença significativa e


definitiva das populações indígenas, em particular do grupo étnico guarani. Essa
experiência foi constituída a partir das alianças, negociações entre grupos indígenas e
os representantes do Estado Absolutista Espanhol e os representantes da Companhia de
Jesus – os jesuítas – entre outros, cujo resultado foi à construção de formas e espaços
de vivência, sobrevivência, encontros e desencontros.

encontro do passado com as interpretações desenvolvidas no presente, visando o estabelecimento de uma


identidade que se julgas ser a ideal para um determinado momento histórico num determinado lugar. Essas
referências compõem as memórias coletivas e dão suporte simbólico para a composição das identidades sociais
(ver POMMER. Missioneirismo, História da produção de uma Identidade Regional, 2009, p.35).

89
Missão: é a inversão do índio aos valores do cristianismo ocidental, pois é ela que garante a “reorganização” da
vida tribal indígena segundo os valores da tradição medieval católica, temperada pelo clima combativo da Contra
reforma e impregnada do espírito cruzadista. (Ver: SANTOS, Júlio R. Quevedo. Guerreiros e Jesuítas na Utopia
do Prata. Editora: EDUSC. 2000, p.11).
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Compreende-se, a partir do fragmento, que a interação ocorreu principalmente por meio
da religião católica, com resistência e muitas negociações foram se moldando em um espaço
onde houve uma compreensão e introspecção do catolicismo. O Barroco Missioneiro está
associado aos princípios da religião católica do drama da luta entre o “Bem” e o “Mal” e
aconteceu também nas reduções indígenas dos povos guaranis, onde apresentou traços culturais
indígenas e ocidentais, surgindo uma arte híbrida.

O estilo Barroco tem características próprias, os Jesuítas incentivaram os indígenas


nesse estilo, no âmago cultural dos Sete Povos das Missões, pela vontade de expressar a fé
pelos fiéis propagadores do catolicismo. “Enquanto linguagem o Barroco privilegia três
aspectos: o lúdico, o visual e o persuasório” (IOSCHPE, 1985, p.13). A ação dos Jesuítas
objetivava pacificar e converter os povos considerados selvagens, ou seja, os índios por meio
da fé cristã, facilitando, dessa forma, o domínio da terra.

No projeto Apostólico político da Companhia de Jesus, a Missão cumpriu seu papel de


inserção dos indígenas na Cristandade Colonial hispânica. Por tal projeto de sociedade colonial
o indígena pode estar protegido dos projetos escravistas ou de assassinatos cometidos por 187
determinados conquistadores, assim a missão: “representou para os índios a única possibilidade
que tinham de continuar sendo Guaranis” (KERN, 1982, p.105). Na Missão, o cristianismo está
presente nas representações do cotidiano do Guarani, nas imagens esculpidas e adoradas pelos
fiéis.

A produção artística nas Missões, de um modo geral, procurava traduzir os preceitos de


evangelização da Igreja católica reformada, pós Concílio de Trento, assim “o exercício da
escultura nas Missões atendia a uma dupla necessidade; promover os templos com imagens
(…) e preencher uma das exigências da pedagogia da catequese” (TREVISAN, 1985, p.11), as
imagens se constituem em apoio visual, pois estavam incorporados ao cotidiano das Reduções,
auxiliando na falta da leitura nas práticas religiosas. Nas oficinas das reduções acompanhadas
pelos padres, os guaranis de forma criativa produziram de ouvido a partir de modelos
Ocidentais, assim, “não receberam instrução de técnica de desenho, não estudaram com
modelos vivos e que não conheceram outra disciplina didática se não a cópia” (OLIVEIRA,
2004, p.157). As imagens produzidas pelos indígenas que não eram acompanhadas pelos padres
e não seguiam a didática cristã ocidental do século XVII eram consideradas primitivas. Nesse
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contexto encontramos as miniaturas, onde o indígena se apoderava de valores simbólicos
pessoais, deixando aflorar traços de sua cultura.

Assim, formou-se a cultura jesuítica guarani ou missioneira. Segundo Trevisan, “(…)


o barroco dos Sete Povos é um barroco crioulo90, uma vez que foi indigenizado por sua
expressão estilística. O Barroco missioneiro demonstra certa criatividade de nossos índios”
(1985, p.12), a expressão artística com traços indígenas está presente na formação da cultura
riograndense, a cultura missioneira. A produção artística elaborada nas Missões é intercultural
porque dialoga, é aberta aos preceitos artísticos do Ocidente Cristão e do universo simbólico
cultural guarani.

Capitulo III A representação das miniaturas no imaginário guarani apresentada


pelo Patrimônio Cultural de Santo Antônio das Missões.

Ao analisar o acervo de imagens do MMMEW, fica evidente que os guaranis também


expressaram sua devoção nas esculturas em miniaturas, pois elas estavam presentes em todos

188
os momentos. Sendo assim, é possível sustentar que eram usados como amuletos que
representariam a proteção. Este acervo é representativo da Arte Missioneira, organizado em
meio às vicissitudes dos acontecimentos históricos expressando as continuidades e rupturas, as
inflexões do passado histórico missioneiro suas vivências e experiências organizadas e
ressignificadas ao longo dos séculos XVII e XVIII. Segundo AHRLET (2008, p.23),

As miniaturas possuíam um espaço e movimento próprio. Diferentemente das imagens


que compunham a decoração das igrejas, as miniaturas estendiam sua participação ao
cotidiano missioneiro, representavam a presença dos santos na intimidade dos atos
diários, no domínio da introspecção, na expressão da fé fora do olhar do padre, no
espaço em que a simulação perdia sentido e onde a crença pessoal, depositada em
imagens carregadas de simbologia significativa, manifestava-se à sua maneira.

As miniaturas, portanto, exercem um poder mágico, diferente das demais imagens


presentes nas igrejas, diretamente relacionadas com o indígena no seu cotidiano, em viagens e
guerras, no momento de uma profunda relação de fé, na crença pessoal da religiosidade popular

90
O estilo do barroco crioulo aflora determinados traços da cultura indígena. (Ver: TREVISAN, Armindo. O
principal tesouro das Missões: as imagens. p.19. Em: MISSÕES, passado, presente e futuro. Porto Alegre: Talento
Editorial, 1990).
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do catolicismo popular, devocional e enigmático. Pois, essas imagens representavam,
expressavam e traduziam traços da cultura guarani, carregados de simbologia em seu momento
de interculturalidade com os preceitos do Ocidente Cristão, mesclando símbolos do universo
simbólico guarani e cristão católico pós Reforma da Igreja Católica, via Concílio de Trento. Ao
estudar esses aspectos, HAUBERT (1990, p. 284), assim se expressa:

Toda a vida dos guaranis está mergulhada num verdadeiro banho de piedade. Isto é
verdade mesmo quando viajam sozinhos. Não somente eles se preparam para o
percurso pela confissão e pela comunhão, mas levam ainda uma estátua ou imagem de
santo, e são acompanhados por um sacristão: e vimos, por ocasião de suas expedições
missionarias, que não faltavam a qualquer das devoções cotidianas [...] de volta a
redução, seu primeiro cuidado é santificar-se pelos sacramentos.

Nesse contexto organizacional, é elaborada uma cultura guarani jesuítica, a qual


incorpora a piedade cristã à representação de mundo. As investigações sobre as esculturas
missioneiras revelam amplamente a interação entre a estética do Ocidente cristão católico e a
cultura indígena, assim expressa na arte que traduz a diversidade cultural e diálogo relacional
intercultural. Conforme AHLERT (2012, p.16),

Ao primeiro contato com o acervo de miniaturas, temos a impressão de tratar-se de


peças de valor artístico secundário. Seu esquematismo, sua rigidez e ausência do
189
cuidado com pormenores estéticos podem, inicialmente, levar o espectador a
subestimar esses depoentes históricos. O que está longe de lhes tirar toda a imensa
significação que escondem.

Assim, ao aprofundar os estudos sobre estas fontes históricas da qual dispomos, as obras
missioneiras guaraníticas constituem-se em um desafio quando percebidas como expressão
artística de um momento histórico, social e cultural que esses povos vivenciaram,
experimentaram. As miniaturas apresentavam esteticamente uma produção mais livre dos
indígenas, no momento de elaboração o sentimento do artista indígena em imprimir suas
simbologias, pessoalidades, relação de profunda fé na qual expressavam o seu imaginário91,
quase sempre despistando o olhar e a correção didática do padre. A capacidade e o talento do

91
Segundo Le Goff , o imaginário pertence ao campo da representação, mas ocupa nele a parte da tradução não
reprodutora, não simplesmente transposta em imagem do espírito, mas criadora, poética no sentido etimológico da
palavra. (Ver em Imaginário Medieval, 1994).
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guarani em desenhar, pintar e esculpir contava com a cumplicidade e admiração dos padres
missionários, assim a didática barroca cumpria seu papel, a produção artística era abundante
nas reduções, pois ali havia farta mão de obra e matéria-prima.

CONCLUSÃO

Olhares diferentes, da história, da arte, da antropologia cultural e social, voltados à


construção de uma identidade missioneira vão trilhando caminhos à decodificação e possível
compreensão do passado. É perceptível que no espaço reducional ocorreu a aceitação dos
guaranis a religião católica em troca de proteção, com muita imposição e resistência.

Diante do exposto, vincula-se à presente temática de Patrimônio Cultural, de herança


missioneira da cidade de Santo Antônio, a busca de significados de como as obras em
miniaturas da arte sacra missioneira guaranítica podem ser ressignificadas, objetivando o
reconhecimento, à valorização do patrimônio cultural de herança missioneira existente no
MMMEW. 190
Por intermédio dessas práticas de disputas, que se fazem do patrimônio cultural local,
com vários entendimentos e interpretações constrói-se e reconstrói-se o que se entende como
patrimônio cultural material e imaterial. Nesse processo, construir a memória e a identidade do
patrimônio local, com essa proposta de reconhecimento, com base nos resultados levantados na
comunidade local leva-nos à construção do conhecimento da sua história e valorização da sua
identidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACERVO DE IMAGENS ESCRITAS E DIGITAIS DO MUSEU MONSENHOR


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TREVISAN. A escultura dos Sete Povos. Porto Alegre: Movimento, 1990.

192
ISSN: 2525-7501
SIMPÓSIO CULTURA, MIGRAÇÕES E TRABALHO

A UMBANDA NO RIO GRANDE DO SUL: APONTAMENTOS E REFLEXÕES.

Autor-Gilvan Silveira Moraes92

RESUMO

O presente artigo é fruto da pesquisa desenvolvida pelo autor, durante o curso de Mestrado em
História pertencente ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de
Santa Maria e recebeu financiamento de pesquisa da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES/DS). O trabalho visa trazer os principais aspectos do que a
historiografia nacional e os intelectuais da temática abordam como História da Umbanda.
Ressaltamos no transcorrer do texto, como se deram os processos de normatização da Umbanda
no Brasil durante o século XX, como se construiu o significado da palavra Umbanda, bem como
quem foi o seu fundador. Também abordaremos como surgem os primeiros políticos adeptos
desta crença e a relação do Estado Nacional com as práticas umbandistas. Busca-se neste artigo
também, compreender como o Estado do Rio Grande do Sul está inserido no contexto nacional 193
no que se refere à essa religião. Procuramos entender onde se fundaram os primeiros templos
no Estado, bem como quem foram os primeiros sacerdotes. A metodologia utilizada foi a
pesquisa bibliográfica.

Palavras Chave: História. Umbanda. Rio Grande do Sul.

Capítulo I - Umbanda no Brasil

Não é novidade falar que o Brasil é um país pluriétnico, multicultural cuja grande
dimensão territorial possibilita o intercâmbio entre grupos étnicos, valores religiosos e culturais
que compõe uma gama de diversidades. Assim, fruto de uma infinidade de hibridismos

92
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria. Bolsista
CAPES/DS.
ISSN: 2525-7501
culturais, nosso país é palco de manifestações únicas de cultura e religião que resultam desse
contexto. Um exemplo dessa pujança cultural brasileira é a Umbanda.

A Umbanda é uma religião afro-brasileira, que teve sua normatização feita pelo médium
Zélio Fernandino de Moraes no dia 15 de novembro de 1908 na cidade de Niterói estado do Rio
de Janeiro (DIAS, 2011). É de conhecimento comum, que antes de Zélio, já existiam
manifestações religiosas similares ao que se tornou conhecido como Umbanda (manifestação
de espíritos indígenas, crianças, pretos-velhos entre outros), porém, só após 1908, que tais
manifestações ganham uma nomenclatura e passam por um processo de regulamentação (DIAS,
2011).

Não há consenso sobre a origem da palavra Umbanda. Vários estudos apontam versões
distintas sobre como Zélio Fernandino de Moraes chegou a construção dessa palavra. Dos
estudos recentes, Renato Dias (2011) trás umas das contribuições mais significativas,
apontando que inicialmente o culto se chamava “Alabanda” em alusão à influência árabe-
africana sobre o culto, já que, Al-lah tem a significação de “O Deus” na língua árabe. Porém,
em 1909, o próprio médium Zélio de Moraes, substituiria tal prefixo (al-lah), por Um, palavra 194
que os filósofos gregos utilizam para se referir a “O Deus”. O sufixo Banda, que desde a
oficialização do culto foi uma constante, faz referência a “direção”, portanto, o que os linguistas
e historiadores deliberam como sendo a melhor interpretação para o nome da religião seria: Na
direção de Deus.

Como o significado do próprio nome diz, a Umbanda é uma religião monoteísta, tendo
como figura principal de seu culto, Deus o criador do Universo. A concepção de deidade para
a Umbanda se assemelha à da cristandade em um sentido comum, onde Deus é Onipotente,
Onipresente e Onisciente. O diferencial que se apresenta, é a introdução ao culto à espíritos
iluminados que teriam a missão de auxiliar o ser humano em sua vida (CUMINO, 2011). Tais
espíritos são denominados “guias” e apresentam arquétipos de figuras indígenas, africanos,
crianças e orientais.

A Umbanda se caracteriza como uma religião mediúnica afro-brasileira, por estar


intrinsicamente ligada ao transe mediúnico (momento dentro dos rituais no qual os guias de
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manifestam) e por suas influências oriundas das religiões de matrizes africanas93. O uso de
oferendas rituais94 e de tambores para a condução das cerimônias através das músicas e danças,
além da ressignificação de divindades dos cultos de matriz africana, ou seja, a influência direta
dessas religiões dão subsídios para que aloquemos a Umbanda no hall das religiões afro-
brasileiras.

Genuinamente brasileira, a Umbanda é uma religião que acompanhou os diversos


movimentos sociais e políticos de nosso Estado Nacional. Compreender os processos de criação
e consolidação umbandistas é também compreender os processos sociais dos quais a população
brasileira foi agente:

É interessante notar que a formação da Umbanda segue as linhas traçadas pelas


mudanças sociais. Ao movimento de desagregação social corresponde um
desenvolvimento larvar da nova religião. [...] O nascimento da religião
umbandista deve ser apreendido neste movimento de transformação global da
sociedade. A Umbanda não é uma religião do tipo messiânico, que tem uma
origem bem determinada na pessoa do messias, pelo contrário, ela é fruto das
mudanças sociais que se efetuam numa direção determinada. Ela exprime

195
assim através de seu universo religioso, esse movimento de consolidação de
uma sociedade urbano-industrial. A análise de sua origem deve pois se referir
dialeticamente ao processo das transformações sociais que se efetuam.
(ORTIZ, 1988, p.32)

Podemos dizer que a Umbanda passou por diversos momentos até sua efetiva
consolidação enquanto religião em todo o território nacional. Do início do século XX até
meados dos anos de 1920, a Umbanda ficou bem restrita ao eixo Rio-São Paulo, em especial a
região metropolitana carioca, onde Zélio Fernandino de Moraes fundou a Tenda Espírita Nossa
Senhora da Piedade em 15 de Novembro de 1908, sendo este, considerado o primeiro templo
oficial de Umbanda no Brasil. Após a fundação de seu primeiro templo, Zélio e os demais
adeptos da Umbanda que frequentavam seu centro, fundariam mais 7 templos na região central
do Rio de Janeiro. Para Cumino (2010) a partir desses centros e seus dirigentes, muitos outros
centros seriam fundados no início do século XX.

93
Pensamos Religiões de Matrizes Africanas a partir de Erisvaldo P. dos Santos (2010), como cultos tradicionais
formados por grandes conjuntos de tradições cultural-religiosas ligadas a uma cosmovisão e a um modus vivendi
baseado em uma estrutura hierárquica de povos africanos, vindos ao Brasil nos processos de Escravização.
94
Alimentos votivos oferecidos aos guias espirituais.
ISSN: 2525-7501
Renato Ortiz (1988) apresenta um segundo momento da história umbandista é o período
de legitimação e perseguição sofrido entre meados dos anos de 1920 até meados dos anos de
1940. Durante esse período, a expansão umbandista aumentou significativamente, alcançando
outros estados além do eixo Rio-São Paulo, porém, junto com a expansão ocorreram as
perseguições e retaliações ao culto.

[...] o populismo e o nacionalismo promovido por Vargas, que deu apoio ao


desenvolvimento industrial e urbano ao mesmo tempo incentivava uma
identificação do povo brasileiro com seus valores nacionais [...] A
discriminação cultural sofrida parece marcar a religião com uma atitude de
resignação no que se refere a toda forma de poder estabelecido [...] Os templos,
para funcionar, necessitavam de um registro na polícia, que fixava suas
próprias taxas. Com a instalação do Estado Novo, em 1937, a repressão
aumentaria sobre os segmentos umbandista e afro-brasileiro em geral.
(CUMINO, 2010, p.141)

Diante desse cenário de perseguição aos cultos, inicia-se um importante processo de


legitimação dos cultos afro-brasileiros e de Umbanda: a criação das Federações, Ligas e Uniões
em todo o país. Por exemplo:

Na Bahia, o reconhecimento da legalidade dos terreiros, que vinha sendo 196


tentado desde Nina Rodrigues, ganha novo impulso em 1937, com a criação
da União de Seitas Afro-Brasileiras da Bahia, entidade criada pelos
intelectuais com o apoio de um famoso terreiro nagô, Axé-Opô-Afonjá, a fim
de congregar os chefes de seitas do Estado. (DANTAS, 1984, p.19)

Após 1945 inicia-se um período de crescimento vertiginoso de adesão aos cultos da


Umbanda. O fim da Era Vargas, a volta da política eleitoral e a promulgação da Lei de
Liberdade Religiosa, contribuíram para esse processo de adesão. Nesse contexto cresce, além
do número de adeptos, o número de federações e uniões:

Em 1949, a Primeira Federação Espírita de Umbanda do Brasil (FEUB), agora


denominada UEUB (União Espírita de Umbanda do Brasil), cria o Jornal de
Umbanda, uma publicação mensal destinada a divulgar a religião. Com mais
legitimidade e liberdade, a Umbanda estrutura federações, que empenhadas em
defender seus direitos vão se espalhar por todos os estados, tomando como
exemplo a UEUB. (CUMINO, 2010, p.158)

Nessa crescente onda de expansão umbandista, aparecem os primeiros representantes


das religiões afro-brasileiras em cargos políticos, e posições sociais elevadas como:

O que por ora queremos ressaltar é que, apesar de todas essas contradições,
existe um esforço de canalização da religião que se processa através de uma
ISSN: 2525-7501
elite umbandista; com efeito, as federações agrupam advogados, jornalistas,
militares, médicos. Esta elite pode ajudar, em casos concretos, os chefes de
terreiro junto as autoridades, e muitas vezes são os intermediários entre a seita
e o poder jurídico, quer para registrar oficialmente os terreiros nos cartórios,
quer para fornecer um advogado em caso de perseguição policial. Ela torna-se,
pois, o porta-voz da religião; superando os conflitos regionais, ela irá organizar
encontros em escala nacional, tais como os congressos de 1941, 1961, 1973,
todos no Rio de Janeiro. (ORTIZ, 1988, p.45)

Como alguns desses representantes umbandistas, podemos citar por exemplo, Átila
Nunes no Rio de Janeiro em 1958 elegeu-se como vereador e mais tarde torna-se Deputado
Estadual pelo mesmo Estado. Antes dele, o próprio Zélio Fernandino de Moraes em 1924
também se elegera enquanto vereador no Rio de Janeiro. No Rio Grande do Sul, por dois
mandatos consecutivos, Moab Caldas se elegeria Deputado Estadual em 1958 e novamente em
1962, sendo considerado o primeiro Deputado assumidamente umbandista do Estado.

No ano de 1966 a Umbanda ganha o status de Religião, quando pela primeira vez na
história do Brasil, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas) incluí nas suas
pesquisas, a categoria “Umbanda” no que tange o quesito religioso. Até então, os adeptos do
referido culto, eram tidos como católicos ou espíritas. 197
A expansão umbandista iniciada em meados da década de 1940 vai até o início da
década de 1980 (CUMINO 2010), onde inicia-se um momento de retrocesso no crescimento
dos adeptos. Com a proliferação dos aparelhos televisivos, o aumento da midiatização das
culturas de massa exportadas pelos Estados Unidos, ocorre uma grande desvalorização da
cultura nacional. A exportação dos padrões de beleza e comportamento norte-americanos ganha
respaldo no cenário nacional, o que coloca em xeque a cultura religiosa umbandista, que tem
como pilar a sua “brasilidade”. Além disso, a demonização dos cultos afro-brasileiros e
umbandistas pela crescente onda Evangélica Neopentecostal cresce vertiginosamente. Em
programas de rádio, dentro de seus templos e até pelo uso da mídia televisiva, o discurso
agressivo Neopentecostal contra a Umbanda e as religiões afro-brasileiras atinge um número
muito significativo de brasileiros, que passam a não ver com bons olhos tais práticas.

Capítulo II - Umbanda no Rio Grande do Sul:

Até onde se pode apurar, o Templo de Umbanda mais antigo do Rio Grande do Sul, é o
Centro Espírita Reino de São Jorge (CERSJ), localizado na Rua General Abreu número 497,
ISSN: 2525-7501
Bairro Cidade Nova na cidade de Rio Grande (funcionando do dia de sua fundação até hoje na
mesma sede), tem por ano de fundação 1926 (DIAS 2010). O fundador da CERSJ é Otacílio
Charão, natural da cidade de Santa Maria – RS, integrante da Marinha Mercante, que no ano de
1916, embarca para a costa da África em missão e após seu retorno, fixa residência no Rio de
Janeiro, onde passou a frequentar a Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, fundada por
Zélio Fernandino de Moraes.

Otacílio Charão abandona a Marinha Mercante em 1926 e retorna para o Rio Grande do
Sul, residindo na cidade de Rio Grande onde funda a CERSJ. Nesta cidade, ele fundou uma
fábrica de balas e doces em seu nome. Oficialmente, o registro da CERSJ foi feito em cartório
apenas no ano de 1932.

Na década de 1960, há conjuntamente com o funcionamento do Templo, a utilização do


espaço como escola para as crianças do bairro. Com o financiamento custeado pelo senhor Jesus
Penna Rey, ocorreu o aumento do espaço do Templo, que por determinado período em parceria
com a prefeitura da cidade de Rio Grande, tornou possível o funcionamento da escola.

Não apenas na cidade de Rio Grande, houve a oficialização de Templos Umbandistas


198
nas décadas de 1930 e 1940. Em 04 de outubro de 1936, foi fundado na cidade de Porto Alegre,
o Abrigo Espírita Francisco de Assis95, pelo tenente da Marinha de Guerra Laudelino Manuel
de Souza Gomes. É reconhecido, que o Abrigo Espírita Francisco de Assis, é o templo de
Umbanda mais antigo da cidade de Porto Alegre. Ainda em funcionamento, o Abrigo situa-se
na Avenida Ipiranga número 445, Bairro Menino Deus. Na cidade de Santa Maria, até onde se
pode apurar, o Centro Espiritualista de Umbanda São Sebastião, fundado em 19 de Outubro de
194896, é o templo de Umbanda mais antigo com registro em cartório, tendo como dirigente
Maria Eugênia Duarte de Lima, sua fundadora.

Essa crescente onda de expansão de templos em diversas cidades do Rio Grande do Sul,
não era um fenômeno isolado. Na realidade o Rio Grande do sul não estava deslocado do
cenário nacional em relação a tais acontecimentos, segundo Renato Ortiz: “O movimento

95
Data de fundação disponível em: <https://registrosdeumbanda.wordpress.com/lista-de-terreiros/> . Acesso em:
29 set. 2016.
96
Data de fundação disponível em: <https://registrosdeumbanda.wordpress.com/lista-de-terreiros/> . Acesso em:
29 set. 2016.
ISSN: 2525-7501
umbandista é no Rio Grande do Sul quase que simultâneo ao do Rio; as razões são naturalmente
de ordem histórica, visto que estes dois Estados são pioneiros no que diz respeito a Umbanda.”
(1991, p.57). Assim como nas demais partes do País, no RS nas décadas seguintes ao fim da
Era Vargas, houve um crescimento no percentual de adeptos da Umbanda (ORTIZ, 1991). Essa
movimentação nacional umbandista era percebida pelo crescente número de novos adeptos e
esses acontecimentos do período foram denominados por intelectuais da Umbanda como
“Terceira Onda Umbandista”:

Essa terceira onda marca o que vou chamar de expansão vertiginosa da Umbanda, que
tem início em 1945, com o fim dos 15 anos de Ditadura Vargas, término da Segunda
Guerra Mundial, retorno à política eleitoral e promulgação da Lei de Liberdade
Religiosa. Esta foi a conquista fundamental para as religiões afro-brasileiras em geral
e à Umbanda em específico. É o período de maior expansão umbandista de todos os
tempos, conquistando expressão na mídia, representação política e reconhecimento
público. (CUMINO, 2011, p. 158)

Dentro do que se denominou Terceira Onda Umbandista, ou seja, período pós Era
Vargas e promulgação da Lei de Liberdade Religiosa97, no qual ouve um significativo aumento
no percentual de adeptos da Umbanda, se percebeu no Estado do Rio Grande do Sul, em
especial, a ascensão ao campo da política, representantes da Religião Umbanda. 199
Essa onda também marca a criação e proliferação de Federações e Uniões de Umbanda
no Brasil. Em especial no Rio Grande do Sul, temos no final da década de 1940, como uma das
primeiras a se ter registro a Federação Espírita de Umbanda do RS e a União de Umbanda do
Estado do Rio Grande do Sul fundada em 07 de Junho de 1953, ambas situadas na cidade de
Porto Alegre. Na mesma década, (1950), foi fundada na cidade de Santa Maria – RS, a primeira
federação de cultos afro-brasileiros e Umbandistas da cidade, a USUCAB Cavaleiros de

97
Conhecida como Lei Jorge Amado, a Lei de Liberdade Religiosa no Brasil, foi proposta em 1946 pelo Deputado
Federal do PCB Jorge Amado. Essa Lei anexada ao Artigo nº5 da Constituição, garante livre culto a qualquer
expressão religiosa no Estado Nacional, desde que o culto respeite a Laicidade do Estado. Tal Lei seria reformulada
e ganharia nova roupagem apenas na Constituição de 1988, tornando-se então, definitiva. “Artigo 5º:(...) VI - é
inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e
garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (...) VIII - ninguém será privado de
direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se
de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;” (BRASIL, 1988.)
ISSN: 2525-7501
Cristo98 (União Santa-mariense de Umbanda e Cultos Afro Brasileiros) tendo seu registro de
fundação no dia 19 de Junho de 1959.

CONCLUSÃO

Nestas breves reflexões buscamos resgatar alguns pontos acerca da história da religião
Umbanda no Brasil e no Estado do Rio Grande do Sul. Em um país onde a pluralidade religiosa
é latente, compreender os processos de resistência de grupos religiosos considerados
marginalizados é fundamental para a preservação dessas culturas tradicionais. É essencial que
se perceba a importância da Umbanda e das religiões afro-brasileiras no cenário nacional, em
especial no Estado do Rio Grande do Sul, pois:

Quanto ao número de indivíduos que se declaram pertencentes às religiões


afro-brasileiras, chamou a atenção no recenseamento realizado pelo IBGE no
ano 2000, o fato de o Rio Grande do Sul aparecer como o Estado brasileiro em
que, em termos proporcionais, mais indivíduos disseram pertencer a essas
religiões. Era, então, 1,62% da população gaúcha, contra 1,31% da população
do Estado do Rio de Janeiro, que ocupava o segundo lugar. A Bahia aparecia
somente com 0,08% da população que se declarou seguidora das religiões afro-

200
brasileiras. No Brasil como um todo, 0,3% da população se manifestou como
pertencente ao segmento religioso afro-brasileiro (ORO, 2012, p. 558).

Como se pode perceber, a partir dos dados mostrados acima, é notória a presença de
afro-religiosos e umbandistas no Rio Grande do Sul. Pesquisar a trajetória desse grupo tão
expressivo é dar subsídios às novas gerações para que essas mantenham viva esta cultura tão
presente em nossa sociedade. Este argumento é reforçado nas palavras de Santos (2010, p.100):

As novas gerações demandam explicações e esclarecimentos sobre as práticas


e símbolos rituais presentes no interior do grupo ao qual pertencem e não
aceitam da repetição sem os fundamentos das práticas. Os adolescentes e
jovens querem saber mais sobre os conteúdos tradicionais, que estão acessando
através dos mais velhos. Com esse conhecimento, eles podem enfrentar a
discriminação racial, o preconceito e a intolerância religiosa existentes na
sociedade brasileira.

O autor ainda ratifica:

Compreender os fundamentos das religiões de matrizes africanas como


códigos socioculturais e educativos, referentes a outra forma de sociabilidade,
pode ser um dos caminhos para afastar as atitudes como indiferença, a
intolerância e o preconceito na educação escolar. Essa perspectiva de

98
Para maiores informações a cerca da USUCAB acessar: <http://uniaocavaleirosdecristo.blog
spot.com.br/> . Acesso em: 30 set. 2016.
ISSN: 2525-7501
compreensão contribui para que o/a estudante negro/a – e também não-negro/a
– adepto/a das religiões de matrizes africanas, possa ver sua religião ser
abordada na escola como uma referência identitária positiva (SANTOS, 2010,
p. 61).

Trazer a toma parte da história dessa grupo que foi/é marginalizado pela sociedade é
construir subsídios contra práticas contra a intolerância religiosa. Cientes da importância que
esse grupo possui na construção da história das religiões no Brasil, acreditamos ser
indispensável que se busque agora pelo viés acadêmico, dar voz a esse importante grupo que
compõe o mosaico religioso de nossa sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,


DF: Senado, 1988.

CORRÊA, Norton F. O Batuque do Rio Grande do Sul. 2.ed. São Luiz. Cultura&Arte
Editora, 2006. 201
CUMINO, Alexandre. História da Umbanda: uma religião brasileira. São Paulo – SP. 2.ed.
Madras Editora, 2011.

DANTAS, Beatriz G. De feiticeiro a Comunista: Acusações sobre o Candomblé. Revista do


Museu de Arqueologia e Etnografia da USP, 1984.

DIAS, Renato H. G. Revendo a História do início da Umbanda. IN: LINHARES, Ronaldo A.


Memórias da Umbanda no Brasil. São Paulo – SP. 1. ed. Ícone Editora. 2011.

ORO, Ari Pedro. Religiões Afro – Brasileiras do Rio Grande do Sul: Passado e Presente.
Revista Estudos Afro-Asiáticos. ano 24, nº2. Textos & Formas. 2002.

ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: Umbanda e Sociedade Brasileira. São
Paulo-SP: 2.ed. Editora Brasiliense, 1991.

SANTOS, Erivaldo P. Formação de Professores e Religiões de Matrizes Africanas: Um


diálogo necessário. 1.ed. Nandyala. Belo Horizonte - MG. 2010.
ISSN: 2525-7501

202
ISSN: 2525-7501
VIDA DE SANTO DO ESPIRITISMO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROJETO
IDENTITÁRIO NA LITERATURA DE FERNANDO DO Ó*99

Renan Santos Mattos**100

RESUMO

O espiritismo é uma alternativa religiosa típica de camadas médias urbanas, que enfatiza o saber
letrado e a formação erudita, com intensa valorização das práticas de estudo e leitura
(LEWGOY, 2000), nessa lógica, no Brasil, assistiu a emergência de um intenso movimento
literário a partir dos anos de 1930. Em nossa pesquisa de doutorado vinculado ao Programa de
Pós-Graduação em História da UFSC, tencionamos investigar a trajetória de Fernando do Ó
no recorte de 1930-1960, tendo por referência as noções de campo religioso de Pierre Bourdieu,
e história da leitura de Roger Chartier, com o intuito de delinear a interpretação acerca de
espiritismo por parte do mesmo bem como suas estratégias de inserção no cenário literária
espírita, e a decorrente construção simbólico de agente autorizado a falar em nome do
espiritismo na cidade de Santa Maria. Diante disso, nesse artigo, analisa-se a obra “Uma Luz
no meu caminho”, escrita de 1961, e editada pela Federação Espírita Brasileira, em que se
evidencia um modelo ideal de espírita a partir da noção de vida de Santo, tão caros ao projeto
espírita de inserção e conexão com a cultura católica brasileira, encabeçada pela instituição.
203
Palavras-Chave: Espiritismo. Práticas de leitura e escrita. Romance Mediúnico.

INTRODUÇÃO

A pesquisa histórica sobre a trajetória de Fernando Souza do Ó argumenta-se no sentido


de vislumbrar a trajetória de sujeitos que se engajaram, e, estiveram imbuídos em fazer o
espiritismo, e, portanto, sistematizá-lo na prática social. Nesse ponto, pretende-se percorrer a
noção de projeto de vida em que a divulgação e defesa do espiritismo consubstanciam a prática
do historiador. O espiritismo que mencionamos refere-se à doutrina elaborada por Allan Kardec
cujo plano teórico é recorrentemente associado ao paradoxo de se definir ao mesmo tempo
científico, filosófico e religioso, características que permitiram sua difusão sobre as classes
médias urbanas e intelectualizadas em fins do século XIX e início do século XX.

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria. Não
desejo publicar nos anais
** Doutorando em História UFSC, Professor substituto UFSM, renansnatos@gmail.com
ISSN: 2525-7501
Diante dessa apresentação geral, dedicar-se em torno trajetória de Fernando do Ó
evidencia-se nuances, os pormenores, as táticas e estratégias assumidas no interior de tensões e
negociações operadas no campo religioso brasileiro e em particular o espiritismo, indícios sobre
o processo de construção da noção da intelectualidade espírita, definido por Célia Arribas
enquanto o especialista que “age especialmente no sentido de criar, recriar e/ou manter a
doutrina; são sujeitos autorais que dedicam sua vida ou parte dela à manutenção teórica do
espiritismo”, e como tais elementos são negociados, difundidos e de certa forma, como sugere
Giovani Levi (1996), ressalta-se a importância biográfica ao desconstruir o sentido coeso e
pleno de grupos e coletividades.

Frente a tal esclarecimento, o artigo organiza-se em analisar o livro “Um luz no meu
caminho”, escrito por Fernando do Ó, e publicado pela Editora da Federação Espírita do Brasil,
tendo como eixo norteador o modelo ideal de espírita imbricado na constituição da vida de
santo, ou seja, a perspectiva enunciada na obra da construção de um ideal espírita, em que
inferimos as aproximações estabelecidas pelo escritor espírita com o catolicismo tão singular
na cultura brasileira e as diretrizes encaminhas pela cultura Livresca Febiana.
204

Capítulo I - A literatura espírita como missão – Fernando do Ó e o espiritismo

A noção das identidades religiosas enquanto projetos coletivos impelem a


problematização do seu teor prescritivo, logo, é possível perscrutar os percursos dos agentes
sociais em instituir verdades (ISAIA, 2016). Nesse sentido, o ponto central da pesquisa em
desenvolvimento corresponde em pensar como se dá a inserção de Fernando do Ó no cenário
literário do espiritismo dimensionando os campos de disputa, as hesitações e os caminhos
teóricos assumidos no âmbito de campos sociais e historicamente delimitados.

O espiritismo é uma alternativa religiosa típica de camadas médias urbanas, que enfatiza
o saber letrado e a formação erudita, com intensa valorização das práticas de estudo e leitura
(LEWGOY, 2000). Nessa lógica, no Brasil, assistiu a emergência de um intenso movimento
literário a partir dos anos 30, com o intuito de suprir as demandas da organização dos grupos
de estudo e divulgação do espiritismo, assim, é possível pensar tal prática a partir “das técnicas
de multiplicação dos textos e de novos agentes de difusão cultural à partir do Setecentos,
ISSN: 2525-7501
sobretudo com o estabelecimento de uma nova relação entre quem lê e quem escreve [..]. Esta
nova relação cultural conquistou um público leitor cada vez mais vasto, dando ao livro o sentido
moderno”. (SILVA, 1997, p.14.

Assim, a literatura espírita e sua variedade convergiam no âmbito das disputas religiosas
e nas estratégias do campo religioso e sua pluralização em fins do século XIX. Para Lewgoy
(2000), o espiritismo kardecista não é apenas uma “Religião do Livro”, mas uma religião dos
livros, da leitura e da escrita. E, segundo o autor, o investimento em torno de práticas letradas
é fundamental para constituição do capital simbólico, decorrente de conciliação fé e ciência,
logo, há o investimento em torno do saber erudito. (LEWGOY, 2000).

Em trabalho bastante instigante, André Cunha (2015), tendo por base os aportes da
história da leitura e do livro, percorre a construção em torno da literatura mediúnica, focando
na história mítica de Chico Xavier, assinala para emergência do modelo editorial febiano no
âmbito de um processo histórico. Se inicialmente o regime de escrita seguia o status
convencional, tal aposta de regime de autoralidade é tida como eficaz na consolidação de um
projeto de literatura comprometido com a configuração religiosa do Espiritismo no Brasil e em 205
consonância da atuação ativa de intelectuais, de esclarecimento e salvação da sociedade em que
se inserem. Legitimadora de um capital social, Cunha ainda ressalta a quebra convencional
autoralidade indicada pelo romance mediúnico, que tem como apogeu a trajetória do médium
Chico Xavier, ressaltando a invenção do romance mediúnico a partir de uma estrutura autoral
compartilhada, na escrita psicográfica. Assim, autores, espíritos, mensagens dimensionam a
produção de bens simbólicos fundamentais para a consolidação da imagem pública do
espiritismo.

Ana Loryn Soares em tese “O livro como missão: a psicografia como prática letrada a
partir da coleção “A vida no mundo espiritual” - 1944-1968” (2016) ressalta o teor plural da
literatura mediúnica, e infere a importância de Chico Xavier e da Coleção A vida no mundo
espiritual para a consolidação do projeto institucional (e ideológicorreligioso) da FEB na
produção de livros. Dessa maneira, em sua análise, ressalta que tal empreendimento decorreu
tanto das oportunidades que o cenário nacional oferecia em termos de produção e consumo de
livros quanto de circunstâncias internas – como a parceria entre Chico Xavier e FEB, o
protagonismo de Wantuil de Freitas, o uso instrumentalizado de vários gêneros literários, o
ISSN: 2525-7501
investimento na construção da crença na legitimidade do projeto editorial dentre outros – que
possibilitaram a concretização de um projeto editorial sem precedentes no espiritismo. Assim,
conclui que a literatura psicográfica “encarna e veicula não apenas uma forma ou, até mesmo,
um modelo literário, mas, no mesmo movimento, um discurso religioso e um projeto
institucional que impõem certa relação com os textos, configurando seus modos específicos de
produção, de circulação e de recepção(SOARES, 2016, p.16)”.

Assim, nesse cenário de fluidez identitária do espiritismo brasileiro, o olhar em torno


da trajetória de Fernando do Ó configura-se no intuito de entrever nuances, os pormenores, as
táticas e estratégias assumidas no interior de tensões e negociações operadas no campo religioso
Brasileiro e, em particular, o Espiritismo, indícios sobre o processo de construção da noção da
intelectualidade espírita. Nessa lógica, ressalta-se a intelectualidade de Fernando do Ó e sua
familiaridade com o livro quando se afirma que: Fernando do Ó foi um autodidata. Estudava
tudo o que o podia, sua sede de saber era interminável. Ele gostava de escrever e trazia uma
“inata” propensão à literatura. (CORRÊA, 2004, p.35). A autoria de Fernando do Ó, sem a
atribuição a espíritos superiores, e legitima-se a sua jornada a serviço de uma causa, cuja
performance do autor soberano, representa uma estratégia de angariar capital simbólico por
206
parte do movimento espírita na cidade de Santa Maria.
Fernando Souza do Ó nasceu em 30 de maio de 1895 na cidade de Campina Grande no
estado da Paraíba. Diante desses fragmentos, nos remontamos a 1911, quando Fernando com
15 anos de idade, ingressou na companhia de Caçadores no estado do Mato Grosso, escolhas
que o colocaram em situação migratória, deixando Campinha Grande e chegando a Santa Maria
na graduação de 3º Sargento em 1913, sendo designado para a tradicional Organização militar
– o 7º Regimento de Infantaria.

A situação solitária, numa cidade distante, implicava no dia-a-dia de Fernando do Ó.


Um exemplo refere-se ao fato que Fernando realizava todos os dias suas refeições na pensão da
Dona Honorina Nunes Pereira. Nesse ambiente, conhece Maria Altina, uma das filhas da Dona
Honorina, que servia as mesas no estabelecimento. Logo, o casal teria sua vida modificada. Em
1913, enfim, Maria Altina e Fernando do Ó oficializam o compromisso mediante o noivado. E,
logo após disso, Fernando deslocou-se para região do Contestado no intuito de combater tal
movimento juntamente com 2º Sgt João Batista Alburquerque.
ISSN: 2525-7501
O 1915 também trouxe outro evento marcante de sua trajetória. Ainda Sargento, passou
a fazer parte da Loja Maçônica Luz e Trabalho. Como já destacado anteriormente a polarização
e tensão inseriam-se nessa lógica de atuação no movimento Maçônico de cunho anticlerical.
Por fim, outro aspecto da trajetória de Fernando do Ó incita algumas considerações. Sua
formação acadêmica e inserção no cenário intelectual dos anos de 1930-1940.

Nesse sentido, em 1932 redimensiona sua inserção social no espaço da cidade. Após a
conclusão do curso de direito na faculdade de Pelotas, surgia então, o Doutor Fernando do Ó.
Essas variedades de espaços sociais repercutem sobre a construção em torno da vida do
biografado. Por outro lado, é sua função de propagador de ideias relacionadas ao moderno-
espiritualismo que destacamos nesse trabalho.

A importância da presença de Fernando do Ó na sociedade santa-mariense pode ser lida


partir das homenagens registradas nas páginas do jornal Diário do Interior, em 14 de dezembro
de 1932, em virtude da conclusão do Bacharelado em Direito. Houve uma comoção gerada por
parte de leitores e amigos. Nesse sentido, o jornal ressalta as inúmeras cartas e felicitações
recebidas por Fernando do Ó e a entrega simbólica de uma lembrança por amigos do Hospital 207
da Guarnição de Santa Maria.

Por ocasião da festividade, o Capitão-médico Salúcio Brenner de Moraes discursou.


Tomado de emoção em tom de despedida, dirigia-se ao ilustre formando da seguinte forma:

[...] Quando após anos de convívio, em que nos foi dado apreciar as qualidades de
inteligência e coração, que te exortam a personalidade, ontem, nos deixaste, para te
lançares na senda que teu espírito de combatividade elegeu, fizemos a propósito a
guisa de despedida e aplauso, de nos congregar para te oferecer o anel simbólico, a
fim de que tivesses uma prova de nossa amizade e de nós guardares uma imperecível
lembrança.[...] (Diário do Interior, 7/12/1932, p.4)

O Doutor Salúcio Brenner de Moraes, em suas palavras, resgatou a trajetória de lutas,


abnegações e desafios que compuseram a vida de migrante de Fernando do Ó. Logo, enaltecia
a trajetória de superação, suas qualidades de perseverança demonstradas na concretização do
seu maior objetivo, vencendo etapa por etapa. Ao final do discurso proferiu palavras de
incentivo, desejando votos de felicidades e a certeza que a mesma fé que o tinha conduzido até
ali iria possibilitar novos horizontes e realizações. Enfim, concluiu olhando para o futuro, e que
um dia teriam orgulho de dizer: aquele era dos nossos.
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Iniciava-se, assim, segundo Corrêa (2004), uma trajetória de sucesso na “ciência do
Direito”. Após seu licenciamento e transferência para a reserva em 1934, no posto de 1º
Tenente, atuou principalmente nas áreas civil e criminalista. Em 1940, participou da fundação
da Sociedade Rio-Grandense de Criminologia, sendo presidente da 6ª Subseção da Ordem dos
Advogados nos anos de 1940.

Ao tomarmos como referência o argumento de Corrêa, há um enquadramento de


memória. Nesse sentido, Corrêa nos esclarece sobre a carreira do mesmo:

“Fernando do Ó lotava as galerias do Fórum quando atuava nos júris, dada a sua
oratória e sua eloquência que o tornava como um gigante na tribuna. Como advogado
primava só por defender causas justas. Combatia com veemência o crime, mas não o
criminoso, pois dizia que o crime sempre é uma circunstância e que a criatura humana,
por essa condição e pela ignorância está sujeita a errar e a delinquir. Embora seu
brilhantismo profissional, não fez fortuna, porque doava quase tudo que recebia e a
maioria dos casos defendia gratuitamente.” (CORREA, 2004, p.36)

Não obstante, tal inserção no mundo jurídico, oculta uma trajetória de presença no
cenário cultural e letrado da cidade de Santa Maria. Como jornalista, colaborou com diversos
jornais do Rio Grande do Sul e de outros estados, além da atuação permanente na imprensa
espírita. Em nosso trabalho, por inserirmos dentro do contexto de Santa Maria, optamos pela
208
colaboração junto ao periódico Diário do Interior no contexto de 1930 a 1939.

Sua produção literária é vasta: sete romances espíritas entre 1930-1960: A dor do meu
destino, E as vozes falaram, Almas que voltam, Marta, Apenas uma sombra de mulher, Alguém
chorou por mim e Uma luz no meu caminho. Peças teatrais101 e críticas literárias faziam parte
de seu cotidiano. Por outro lado, o cruzamento das fontes e questionamentos acerca dessa
memória constituída reforça sua vivência peculiar para a divulgação, defesa e experiência de
viver a doutrina espírita em Santa Maria. Como constatamos em texto de Edmundo Cardoso:

O Espiritismo lhe deve, sobretudo, uma faceta de rara importância e robustez


indizível: doutrinador vigoroso, firme e inabalável, dono de convicções admiráveis e
contagiantes, numa perenidade de propósitos que lhe dava uma posição ímpar e
brilhante na doutrina de Kardec. Respeitado, consultado, atuava como árbitro fiel,
justo e apontador dos rumos. Legítima e incontrastável figura apostolar, para melhor
identificação do homem dentro de sua religião. (1978, p.233)

101
Participou da fundação da Escola de Teatro Leopoldo Fróes em 1943, juntamente com Edmundo Cardoso.
Atuou, inclusive, como crítico de peças teatrais.. Ver Corrêa (2004)
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Logo, denominando-se como “propagandista”, participou, juntamente com Otacílio
Aguiar, na fundação de diversas instituições espíritas, Sociedade Espírita União Luz e Caridade
(1929), Sociedade Espírita Discípulos de Jesus (1940), Sociedade Espírita Oscar José Pithan
(1949). Assim, compreender o livro como um ponto crucial da trajetória de Fernando do Ó e
seu alinhamento ao projeto febiano edificam o capital social construído em torno de Fernando
do Ó e decodificam a dimensão de voz autorizada no interior do campo religioso brasileiro.

Capítulo II - O ideal sacrossanto e a exegese identitária: o espírita e o espiritismo


de Fernando do Ó
O livro escrito por Fernando do Ó se passa no início da década de 1960. Fins de um
novo século, nas palavras do narrador do livro. Nesse sentido, é oportuno conectar o momento
dos personagens com os sinais do esgotamento da política populista, visivelmente retomados
no livro a partir das relações de trabalho vividas na fábrica de bonecas onde se passa o enredo,
e a ação dos espíritas são diagnosticados como primordiais no curso da história humana tendo
por referência preceitos de reforma moral e de esclarecimento, característico do projeto
educacional da doutrina elaborada por Kardec. Assim, a última obra assinado pelo autor e
209
editada pela Federação Espírita do Brasil em 1962, segue a estrutura dos romances anteriores,
capítulos sem título, com um pequeno detalhe, nele é evidente uma perspectiva utópica,
carregada de um diagnóstico moral, tendo como eixo pontos como o casamento, a relação amor
e sexualidade, bem como o papel do espiritismo enquanto motor da história humana, e o
alinhamento do autor a uma perspectiva soteriológica de espiritismo.

É justamente esse ponto indiciário do que denominamos epistemologia de Fernando


do Ó e que, de forma bastante inicial, vamos explorar alguns elementos nessas primeiras
considerações da obra “Uma luz no Meu caminho”. O enredo romanesco responde às
exigências dos personagens que se cruzam a partir da problemática do espiritismo e das
reencarnações. Narrado em terceira pessoa, somos conduzidos a encontros e desencontros de
uma leitura prosopográfica acerca do espírita, e as redes de afetos em que se estabelecem, tendo
como referência duas personagens femininas centrais: Lisiane e Consuelo. Tecendo as
múltiplas vivências, experiências de seus personagens, o narrador descortina a essência que
marcaria o espiritismo, designado pelo evidenciar das práticas, sob a referência da caridade
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como fundamental na subjetividade do espírita. Por isso, ler as minúcias do romance espírita é
de tamanha dificuldade, e centramos nossa análise em torno do que os personagens
denominaram de ideal sacrossanto, tido como a revelação do limiar do novo século, e a missão
a que estarão engajados os personagens centrais, e tem como pano de fundo a cidade do Rio de
Janeiro.

O capítulo inicial é uma sumária apresentação e descrição do mundo espiritual, e


Sileno e Lisiane transitam em torno de sua projeção reencarnacionista no desenrolar da década
6, Em meio à conexão dos personagens Sileno e Lisiane, Fernando do Ó conduz a narrativa
bastante peculiar sobre as concepções do além, edificados e demarcados pelos ideais de
cientificidades:

O último pavilhão da direita, onde funcionava, anexo ao Instituto de Pesquisas


Espirituais, o Departamento Especializado de preparação Reencarnatória Superior.
No conjunto, o majestoso edifício, que demorava em sublime região espiritual, dava
a impressão de um gigantesco bloco de um Hospital de Clínicas. (Ó, 1995, p.7.

Paradoxalmente, a narrativa assume tons de sacralidade, ao transitar entre imagens, sons


que endossam o sentido de missão e desígnios divinos dos personagens, selando a junção de 210
almas frente à eternidade, e marcado por propósitos denominados de santidade:

Vibravam no ar, tocadas de doces claridades, suavíssimas harmonias que lhes


chegavam aos corações, como um murmúrio de vozes siderais, num celeste concerto
indefinível, em que se cassassem sons de harpa e violinos de encantados ao cântico
de artistas invisíveis que falassem de um amor que é a suavidade e encantamento, um
sublime movimento da alma que gravita para a essência da vida, pelos sacrossantos
caminhos da perfeição (Ó,1962, p.8.

Sileno e Lisiane ao tomarem ciência de sua missão, compatível às exigências e


dificuldades que o autor denomina de modernidade, ficamos diante do chamado projeto
sacrossanto de Sileno e Lisiane, que consistia em viajar para terra na tentativa de vencer a mais
árdua das provas simbólica para a instituição de nova forma de viver o amor, e a partir da
exemplaridade, construir uma nova civilização. Sob o auxílio de Irmã Consuelo, descrita como
uma alma a serviço de Deus estavam unidos “para uma missão de elevada significação
espiritual” (Ó,1962, p.12..
a abnegação e renuncia dos personagens, permeados de elementos que perscrutam
a constituição de um tipo ideal espírita é indiciário da aproximação com o mundo católico e
cristão. Em cena emblemática, Irmã Consuelo é alçada à condição de santidade por um
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mensageiro Celeste que colocou uma coroa de luz, confirmando o dever e a ligação de um
investimento de forças superiores, incutindo a coragem necessária para enfrentar as
dificuldades para a realização do ideal sacrossanto.
Entre narrativas que trazem o passado de Lisiane, Consuelo e Sileno, evidenciam-se
debates e discussões que enveredam a compreensão do presente e do que o autor chama de
civilização do início da década de sessenta. A leitura realizada de um local privilegiado endossa
o horizonte de expectativa e de compreensão por parte dos personagens sobre a civilização, e
os problemas que circundam o mundo. Acalorados debates são empreendidos entre os
envolvidos na iminência da revelação do significado em torno do ideal sacrossanto.
Ademais, diante da declaração de Sileno sobre a civilização pecaminosa e sem
esperança que abate o mundo de Deus, Irma Consuelo, por sua vez, em tons de repreensão,
afirma o sentido de presença divina e espaço de reeducação, redenção que o tempo histórico
evoca. Corroborando com Consuelo, Lisiane acrescenta que o mundo é um campo de luta contra
si mesmo, contra seus instintos, dimensionando a reencarnação como o método de atingir o
progresso, dimensionando o ponto educativo a que Fernando do Ó se engajara:
211
“e se soubessem fazer perdoando, amando, servindo, o clima espiritual do mundo se
modificaria, em função da espiritualidade do homem, a casa planetária não seria o que
é – um lugar de luta sangrenta e de desesperadas competições subalternas, onde
apenas tomam parte os instintos mal orientados, sem freios nem disciplinas. (Ó, 1995,
p.19.

Essa apresentação pragmática do primeiro contato com os personagens revela a


proeminência de Consuelo e Lisiane na narrativa do autor. E, em meio a questionamentos e
hesitações da parte de Sileno, é revelada de vinda a terra com fins educativos de um amor de
alma, e uma união conjugal sem contato sexual capaz de indicar uma “Nova Era” frente ao
planeta marcado pelo sofrimento e pela dor.
A minuciosa descrição do além, retomado de embates e debates acerca da perspectiva
conciliatória entre ciência e religião, o caráter moral e religioso assume a direção do
pensamento do autor, os missionários para fins de concretização do plano superior fica claro
quando Fernando do Ó apropria-se da exemplaridade, abnegação e renúncia de nomes como
Francisco de Assis,Teresa d’Ávila, Vicente de Paulo, Joana de Cusa, Estevão, nas palavras do
autor, enviados de Deus para redimir a terra.
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Logo, em meio à preparação reencarnacionista, Fernando do Ó apresenta a “metrópole
dos Sacrifícios”, cidade espiritual de elevado teor cuja tradição envolvia de vultos imbuídos de
missão de santidade, e constituída de pensadores, místicos, “portento de beleza”, cujas ideias
de organização e hierarquia conectam-se a princípios de modernização característicos do século
XX, indicando a sensibilidade sobre a noção de espaço e organização urbana, e denotam a
conquista do conhecimento e cientificidade:

As universidades, escolas, faculdades, Institutos, conservatórios de música e canto,


Centro de Artes e cultura, laboratórios, onde não são estranhos experimentos de
ciência sideral aplicada, seu gigantesco bloco de Estudos Universais, onde reponta,
com certo destaque, o Esperanto, compreendendo a Terra e todas as Zonas que lhe
são afins, seus veículos de excursões de estudo, de socorro, e de assistência, na sua
mais sublime modalidade, que lembram helicópteros terrestres, mas de construção
que evocam os chamados “discos voadores”, sua população, constituída de homens e
mulheres cuja beleza espiritual se expressa no seu todo harmonioso, seus templos de
construção diáfanas, dada formação dos elementos utilizados em sua estruturação –
tudo lembra ao nosso pobre espírito um pedaço do céu. (Ó, 1962, p.25-26.

Esse detalhar inicial é fundamental para ressaltar uma série de diálogos e apropriações
que confirmam a exegese de espiritismo, a autoralidade indicada nos meandros da sociedade
em que o escritor espírita está em dialogo. Fernando do Ó traduzindo um conjunto de saberes
212
e práticas, ideais e posicionamentos de sua experiência enquanto porta voz autorizada na cidade
de Santa Maria, interpretamos, assim, tais possibilidades em que uma imposta imagem de si e
do outro são dimensionadas na narrativa do autor, tendo como fio condutor elementos de uma
sistematização do que se refere o espiritismo, o espírita e o dimensionar do elogio ao progresso
e a nova era.
Os capítulos seguintes organizam-se no sentido de revelar uma espécie de prosopografia
do grupo espírita, em que Lisiane, Sileno e Consuelo serão elementos chaves para desvendar
os mistérios das relações humanas estabelecidas, sendo desse modo, o espiritismo considerado
a chave de leitura de conexão e conflito entre os envolvidos. Já nas primeiras linhas do
intitulado capítulo II, a leitura das demandas sociais dos personagens são descritos a partir da
crise financeira de Dona Gervásia, tia de Lisiane, e a discussão em torno do aumento salarial:
Você precisa pedir aumento, Lisi, porque o que ganhamos não dá para atender as
nossas despesas- aconselhava, em tom enérgico. Não há dinheiro que chegue nesta
casa. Só de aluguel pagamos seis mil cruzeiros. Os gêneros estão pela hora da morte
(Ó, 1995, p. 27.
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Os problemas financeiros são tangenciados com o eixo central da discussão do livro: o
casamento e o papel da mulher, em que Lisiane em várias passagens do livro trava difíceis
debates com seu pai Demenciano e a tia Gervásia. Um exemplo significativo dessa perspectiva
ocorre com o retorno do pai, após anos de afastamento, o que justifica o fato de Lisiane ter sido
criada por sua tia, em que o público e o privado são fortemente referenciados. Assim, com o
intuito de rebater o casamento arranjado projetado por seu pai, Lisiane posiciona-se ao
assinalar: “Acho que casamento é coisa muito séria, de muita responsabilidade, para quem,
como eu que só tem um ideal na vida: trabalhar e servir a Deus e ao meu próximo” (Ó, 1995,
p. 27.
Demenciano intercala tais explicações com um sentido de compreensão do matrimônio
e do papel feminino. Fernando do Ó utiliza-se dos paradoxos para lançar críticas atrozes ao seu
tempo, em que casamento é visto como negócio e arranjo, asseverando suas posturas críticas
aos dogmas católicos. Assim, a partir de Demenciano, o tradicional e o novo tempo indicado
pela ação no mundo social dos espíritas são permeados. Demenciano encarna o tipo-ideal do
homem sofrido, marcado pelo vício, pela jogatina e pelo desajuste em que tais posicionamentos
são indicados. Lisiane responde entre uma postura controvertida, bem distinta do servir a Deus 213
antes mencionado, comprometida com ideias de emancipação e de conquista de direitos
femininos: Você pode ter carradas razões, mas de momento, não quero comprometer-me com
quer que seja. Não tenho medo do trabalho, paizinho, nem tenho vocação para ser boneca em
minha própria casa (Ó, 1995, p. 57. E conclui em tons proféticos: “O amor paizinho nunca
vem antes ou depois. Ele está sempre em nós, porque é alma, é coração, é sentimento. Não é
mercadoria” (Ó, 1995, p.6.
O trabalho também é outro ponto recorrente e se articula a proposta de cidadania
e reabilitação do projeto espírita. Como afirma Artur Isaia (2012), o pensamento social de
Kardec relaciona-se a uma ética cívica, onde o trabalho aparece como condição fundamental
para o "progresso". E o autor complementa que, ao estar veementemente vinculado ao ideal de
cidadania burguês, o “trabalho ganha feições naturalizadas, intrínsecas a natureza humana e
conforme os desígnios divinos” (2012, p. 104). Esse ponto fica claro por ocasião da conversão
e reabilitação de Demenciano, e seus percursos de redenção após se envolver com outra operária
da fábrica de seu Aprígio chamada Lívia., e o amor capaz de esquecer de uma vida de desatinos,
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demarcado pela ajuste a partir do trabalho: Era urgente conseguir trabalho honesto,
abandonando, desde logo, todo o passado (Ó, 1995, p. 105.
Por outro lado, é a feição consoladora e permeada de princípios morais que configuram
o denominado ideal sacrossanto, que coloca a caridade como angular ao espiritismo, o cuidado
com as crianças e a orfandade basilares de uma proposta educativa e reformadora do mundo.
As sessões espíritas perfilam os personagens envolvidos, aqueles denodados de suas mais
plurais missões e à mercê da lei de causa-efeito. As reuniões ocorriam na residência do Major
Gabriel, um homem de bem, encarnando a referência para os iniciantes na doutrina espírita, e
simbolizando uma espécie de voz autorizada a falar em nome do espiritismo, capaz de amenizar
a insegurança dos homens e mulheres, imbuídos da missão sacrossanta. Major Gabriel perscruta
os ensinamentos da sublime doutrina, e encarna uma tradição do espírita, elencados por
Fernando do Ó nos seguintes termos:

O major era um homem baixo, gordo, míope, extramente simpático e bom. Dirigia a
sociedade espírita que fundara, havia anos, com dedicação, devotamento e amor. Em
todo o rio era conhecido por sua bondade, espírito de sacrifício e, sobretudo, por sua

214
poderosa mediunidade. Receitista e curador, ao mãos a medir, no afã de atender a
quantos recorriam às suas faculdades medinímicas. Não raro o surpreendiam, em suas
andanças de caridade, madrugada ao alto ou amanhecer, em plena rua, estugando o
passo para atender a todos, no devido tempo, com o passe, a palavra de bom ânimo
ou a receita homeopática que lhe sugeria, pelo conduto mediúnico, o incansável
apóstolo da Caridade, que é o bom Dr. Bezerra de Menezes. (Ó, 1995, p.68.

A narrativa sobre o Major Gabriel revela o sentido caritativo do espiritismo, em tempo


em que são ressaltados elementos da abnegação e ajuda ao próximo. Em meio à distribuição de
agasalhos e gêneros aos pobres, em que os ensinamentos do bom Cristão e a figura de Jesus
norteavam condutas e práticas do espiritismo cristão, propagado e defendido pelos mesmos.
Assim, o Major Gabriel “Era sublime no incansável serviço de assistência aos necessitados”
(Ó, 1995, p.69.
A instituição de Major Gabriel, no curso da trajetória do livro, é o estopim do processo
de descoberta e inserção dos personagens principais sobre o teor missionário a que estarão
engajados. Entre revelações de vidas passadas ligadas à experiência da 1ª Guerra, em que
Consuelo e Lisiane aturam como irmãs de caridade, o ideal de santidade traduz no abraçar da
causa espírita a partir da criação do Lar de Maria, notificados na sessão espírita, pelo Seu
Aprígio:
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Na bela construção, que é obra de todos, abrigaremos crianças de todas as raças,
crenças, e cores. Temos capacidade para quinhentas criaturinhas. Nosso amigo
Miguel- que Jesus curou por acréscimo de misericórdia, por intermédio de uma santa
que hoje ilumina esta casa – supervisionará os trabalhos, assessorado por uma
plêidade de companheiros abnegasos. A inauguração se dará no Natal de Nosso
Senhor Jesus Cristo. (Ó, 1995, p.183.

A inauguração também coincidia com casamento dos espíritas, em que dois dos casais
Sileno e Lisiane, Consuelo e Sérgio, a partir do que o autor chama de casamento espiritual,
incitavam o questionamento sobre as fronteiras do amor e do sexo. A união espiritual e
missionária, marcada pelo sacrifício e entrega aos desígnios divinos de serviço e ajuda aos
necessitados, edificados pelo lar de amparo às crianças. Uma leitura clara sobre o papel do
espírita no mundo: “O espírita deve ser uma criatura de sua época, ensinou-nos o grande
missionário que foi Allan Kardec. O Espiritismo não é doutrinaa das tristezas. Antes, pelo
contrário, é uma religião da paz e da luz” (Ó, 1995, p.271.
É nesse ponto da narração dirige-se ao ápice da narrativa, em que para os personagens
espíritas compreendiam o seu papel, e traziam um horizonte de expectativas, obviamente uma
luta de reforma marcada pelo sofrimento, abnegação e dúvidas:
215
lançarmos a semente de uma nova civilização, onde o verdadeiro amor universal dará, conosco
os primeiros passos no sentido de uniões minimante espirituais. Não seremos mulheres no
sentido carnal da palavra; seremos apenas esposas, embora aquelas sejam tão dignas quanto nós,
no rigor do compromisso biológico da perpetuação da espécie. Elas servirão num setor da
evolução, e nós, do outro; mas ambos os grupos, serviçais do senhor, empenhados no esforço
titânico de fazer a terra um planeta de regeneração do amor. (Ó, 1995, p.299.

Tal dúvida é aguçada diante da discussão sobre o controle e disciplina dos desejos,
Consuelo atribui para a questão da missão a que estão designadas como um ponto crucial, de
trabalhadores e colaboradores da reforma moral, o início de uma nova era, traduzidos quando
afirma uma soteriologia do progresso, revigorados por ideias de disciplina, mérito e resignação
da maternidade , explicitados no diálogo em que Lisiane esclarece:

Daí convocar-nos para o serviço da redenção da humanidade, assinalando-nos o deve,


o trabalho de ascese espiritual, mediante a labuta de ajudar e servir. Precisa de nós
porque quer ofertar-nos a suprema glória de sermos seus colaboradores, de fazer-nos
participes de seu reino. Que Jesus nos revelou. (Ó, 1995, p.312.

A vida de Santo do espiritismo era tomada de dispositivos e controle de conduta. A


literatura e o romance mediúnico transitam no projeto de instituição e normatização de práticas.
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Se por um lado, Fernando do Ó apropriava-se de modelos de santidade e tais personagens
transitavam no que Michel de Certeau chama de itinerários de santidade, inferimos tal projeção
com pontos de afinidade com a Federação Espírita e seu investimento em torno de Chico
Xavier, que segundo Lewgoy, corresponde a uma construção de uma noção original de pessoa
espírita na fronteira entre um ethos católico de santidade, “graça” e “caridade” na relação com
o próximo e um sentido meritocrático e militar na relação consigo próprio, no sentido de busca
individual por melhoramento e progresso característicos da seara espírita. O entre-lugares,
mediador entre universos distintos, o fenômeno Chico Xavier assume a consolidação clara de
um Espiritismo à brasileira.

Chico Xavier, nas palavras de Lewgoy, pode ser lido como um Santo popular espírita
revestido tanto de elementos da moral cristã quanto de valores da espiritualidade. Assim, a
trajetória de Chico cumprindo as ordens do plano superior seria caracterizada por renúncias no
plano material, como matrimônio, dívidas ou aceitação de favorecimentos pessoais. Tal
disciplinarização relacionaria uma “ordem discursiva” acerca da mediunidade. O médium
enquanto um cumpridor de ordens disciplinado, norteado por uma ética humanista,
conciliadora, sob o preceito “dai de graça aquilo que de graça recebeste”, com força simbólica
216
capaz de possibilitar a respeitabilidade do movimento espírita na sociedade brasileira, em
detrimento do “baixo espiritismo”, prática desde sempre suspeita de “charlatanice” e
“exploração da credulidade popular” (LEWGOY, 2001, p. 83).

No mesmo sentido, Sandra Jacqueline Stoll (2003), ressalta também a influência de


Chico Xavier nesse processo de inserção na cultura religiosa brasileira. A partir da noção de
“itinerário de santidade” proposto por Michel de Certeau, a autora afirma que Chico Xavier
segue uma noção de santidade tal qual São Francisco de Assis, que se manifesta pela linha geral
de uma vida totalmente exemplar. Logo, tais práticas, segundo Stoll, possibilitam pensar a
santidade como modo de vida, cuja realização dá-se a partir do preceito de uma doação. Assim,
“o santo é aquele que acumula gestos e práticas de doação aos outros”.

O ideal sacrossanto de renuncia ao sexo e dedicação a servir ao próximo emerge no


esforço escriturístico de legitimação e projeto hegemônico no âmbito das disputas intestinas do
espiritismo brasileiro. É nesse esforço para impor o consenso que o ideal de santidade aparece
para incutir valores familiares e limites do espiritismo em que a ideia de missão, a caridade e
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busca de bem comum assinalam para a legitimação do espírita, o que nos remete ao que Lewgoy
chama de “santo popular e modelo de virtude cristãs”. Se a vida de Santo transitava em tal
perspectiva, é sob a dimensão do casamento e a expectativa em torno das mulheres que
vislumbramos a inflexão do pensamento de Fernando do Ó, obviamente desenhado dentro de
um plano de conciliação com a moral judaico-cristã. As irmãs santas transfiguradas em
cooperadoras na instituição de caridade espírita na tentativa dessa aproximação.
Cabe ainda, como ponto de conclusão, pensar as aproximações empreendidas tanto no
deslocar de sentidos e reapropriação para o casamento/união espírita e o papel feminino. Nessa
lógica, a reapropriação do casamento vem reforçar a mescla entre trabalho religioso e trabalho
mundano presente na obra. Consuelo, Lisiane, Miguel e Sileno deixam de prestar serviços na
fábrica, e passam a dedicar-se exclusivamente à vida do orfanato: o lar de Maria. Assim, a união
espírita do ideal sacrossanto cumpria desígnios de Deus e o projeto construído no plano
espiritual, oferecendo o consolo prometido às crianças sem lar, sem amor e proteção.
É nesse ponto que a proeminência feminina assume a leitura de Fernando do Ó, já que
a partir de Consuelo e Lisiane que o intelectual espírita reinventa sua compreensão de feminino,
apropriando-se de virtudes cristãs, em que a leitura de mulher é voltada para o lar, para “o 217
cuidar”, responsável pela unidade da família, abnegada, altruísta, encarando valores como a
humildade, a pureza, e a evolução espiritual sob os quais dos demais personagens gravitam e
aprendem. A santidade feminina é o caminho da luz evocado pelo texto, instituído por uma
nova forma de viver o amor, e o inaugurar de uma nova era.
Diante desses aspectos, é importante situar que tal narrativa literária relaciona-se a
produção do campo literário espírita e envolve um tipo de experiência literária ligada à
cosmologia própria do kardecismo (LEWGOY, 2000), e, portanto, a ordem discursiva do
religioso e seu viés de propaganda. Fernando do Ó projeta o futuro em uma “Um luz no meu
caminho” traduzido pela projeção de uma nova era, essa marcada pela caridade, por
experiências de amor atrelado a designar de um amor espírita. Essa apropriação de sentidos
insere o discurso de Fernando do Ó no interdiscurso espírita, dotado de teores educativos,
carregado de uma mensagem de aprendizado, e como, escreve Eliana Moura Silva, funda a
literatura como prolongamento do mito, capaz de buscar a origem, o sentido e o fim para
existência humana.
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REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas – O que falar quer dizer. São Paulo:
Edusp, 1998.
BORIN, Marta Rosa. Por um Brasil católico: tensão e conflito no campo religioso da
República. (Tese) Programa de Pós-Graduação em Estudos Históricos Latino-Americanos,
UNISINOS, 2010.
CORRÊA, Fernando A. R. Fernando do Ó: a caminho da luz. Santa Maria. 2004
CUNHA. André. A Invenção da imagem autoral de Chico Xavier: uma análise histórica
sobre com o jovem desconhecido de Minas Gerais se transformou no médium espírita mais
famoso do Brasil (1931-1938).. Doutorado em História, UFC, Fortaleza, Brasil, 2015.
ISAIA, Artur Cesar. Chico Xavier: de bem simbólico do Espiritismo ao panteão da Umbanda.
Literatura umbandista e identidade religiosa. Revista Brasileira de História das Religiões, v.
8, p. 113-133, 2016.
LEWGOY, Bernardo. O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasileira. Bauru: EDUSC,
2004.
_________________. LEWGOY, B. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre
cultura escrita e oralidade no espiritismo kardecista. Doutorado em Antropologia, FFLCH -
USP, São Paulo, 2000. 218
SOARES, Ana Loryn. O livro como missão: a psicografia como prática letrada a partir da
coleção “A vida no mundo espiritual” - 1944-1968. Tese (Doutorado em História, UFRJ, Rio
de Janeiro, 2016.
MATTOS, Renan Santos. Que espiritismo é esse? Fernando do ó e o contexto religioso de
Santa Maria- RS (1930-1940). 187 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade
Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2014.
Ó, Fernando Souza do. Uma Luz no meu caminho. 7.Ed. Rio de Janeiro: Editora FEB, 1995.
[1962].
SILVA, E.M. Fé e Leitura: A Literatura Espírita e o Imaginário Religioso. In: Gêneros de
Fronteira. Cruzamentos entre o histórico e o literário. São Paulo: Xamã, 1997.
ISSN: 2525-7501
O DISCURSO CATÓLICO SOBRE O ESPIRITISMO NA REVISTA RAINHA DOS
APÓSTOLOS (RIO GRANDE DO SUL, DÉCADA DE 1950)*102

Bruno Cortês Scherer**103

RESUMO

Em meados do século XX, o campo religioso brasileiro assistiu a expansão do protestantismo


e das religiões mediúnicas (espiritismo, umbanda e candomblé). Ameaçada em sua hegemonia,
a Igreja Católica reagiu com a adoção de uma postura combativa, sobretudo em relação ao
espiritismo com a instituição da Campanha Nacional contra a Heresia Espírita. Enquanto parte
das reflexões de uma pesquisa que tematiza a repercussão desse movimento no Rio Grande do
Sul, este artigo delineia aspectos relativos ao posicionamento católico em relação ao espiritismo
a partir das publicações da revista Rainha dos Apóstolos ao longo da década de 1950. As
perspectivas apresentadas pelo periódico indicam uma postura igualmente combativa, atrelada
às perspectivas da referida campanha e com a mobilização de argumentos semelhantes no
sentido de desqualificar a doutrina espírita, bem como advertir os fiéis católicos sobre os riscos
e as consequências de seu envolvimento com o espiritismo.
219
Palavras-chave: catolicismo; espiritismo; campo religioso;

INTRODUÇÃO

As tensões entre espiritismo e catolicismo no Brasil remontam a década de 1860,


período em que a doutrina kardecista, já conhecida na Corte do Rio de Janeiro, projetou-se mais
amplamente na Bahia através de uma intensa campanha de divulgação promovida pelo

* Trabalho apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM),
em novembro de 2016.
** Mestre em História. Doutorando em História. Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM). Linha de Pesquisa “Cultura, Migrações e Trabalho”. Email: brunocs.hist@gmail.com.
Orientação: Profa. Dra. Beatriz Teixeira Weber. Pós-doutorado COC/FIOCRUZ. Docente do Programa de Pós-
Graduação em História – UFSM. E-mail: beatriztweber@gmail.com.
ISSN: 2525-7501
jornalista Luís Olímpio Telles de Menezes104. De fato, o crescente interesse pelo espiritismo
logo suscitou a oposição da Igreja Católica que passou a considerar as interpretações religiosas
espíritas como ameaças aos dogmas estabelecidos (ARRIBAS, 2010).

Segundo Célia Arribas (2010), foi justamente o ato da Igreja em contrapor o espiritismo
que possibilitou o espaço para sua visibilidade e entrada no campo religioso brasileiro. Na
verdade, até esse momento seus adeptos e propagandistas não o encaravam como uma nova
religião105, posto que para os primeiros espíritas brasileiros, em sua maioria de formação
católica, o espiritismo não deveria significar uma ruptura radical com o catolicismo, mas antes
uma adequação aos novos tempos. Esse ideal, no entanto, não se concretizou, uma vez que os
debates e as tensões entre as duas perspectivas se desenvolveram em torno de suas divergências
doutrinárias de modo a acentuar a incompatibilidade entre ambas.

De acordo com Flamarion Costa (2001), essas dissensões seriam motivadas pelas
interpretações espíritas dos evangelhos, bem como a adoção do princípio reencarnacionista, a
negação dos dogmas católicos e a prática de comunicação com os mortos. Com base nesses
argumentos teria se constituído entre fins do século XIX e início do XX um discurso que se 220
concentrava na condenação do espiritismo como heresia e prática diabólica. Assim, procurava-
se alertar e intimidar os fiéis católicos para que não mantivessem contato com a doutrina
kardecista a qual se procurava desacreditar e associar à magia, à bruxaria, às crenças africanas
e também à insanidade mental (COSTA, 2001).

Todavia, na década de 1950, foi justamente o crescimento do espiritismo e a penetração


de suas ideias entre os católicos que o caracterizou como uma ameaça a ser enfrentada pela

104
Em 1865, ele fundou a primeira agremiação e o primeiro jornal espírita do país, respectivamente, o Grupo
Familiar do Espiritismo e o Eco d`Além Túmulo, em torno dos quais se reuniu um grupo seleto da sociedade baiana
formado por aristocratas, médicos, autoridades, políticos e intelectuais. No mesmo ano, Telles de Menezes
elaborou uma publicação intitulada O Espiritismo: introdução ao estudo da Doutrina Espírita, contendo páginas
traduzidas de O Livro dos Espíritos, obra fundadora do espiritismo, publicada pela primeira vez em 1857 pelo
pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido pelo pseudônimo Allan Kardec (ARRIBAS,
2010).
105
Allan Kardec não a definiu essencialmente como uma religião, mas antes como um sistema teórico e prático de
caráter científico, filosófico e moral, fundamentado na ética cristã e em certos princípios das religiões orientais,
tais como as ideias de carma e reencarnação. Essa consideração deu margem para que o espiritismo fosse
interpretado de diversas maneiras e posto em diálogo com outras formas de pensamento, o que permitiu a seus
adeptos e lideranças no Brasil adequá-lo às possibilidades apresentadas pela realidade do país em fins do século
XIX e nas primeiras décadas do XX.
ISSN: 2525-7501
Igreja, além da expansão da umbanda, do candomblé e do protestantismo pentecostal
(GIUMBELLI, 2012). O combate sistemático foi oficializado com a promulgação da
Campanha Nacional contra a Heresia Espírita, em 1953, por iniciativa da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), sendo sua direção conferida ao frei Carlos José
Boaventura Kloppenburg que então se destacava no combate a doutrina espírita como redator
da Revista Eclesiástica Brasileira (COSTA, 2001; GIUMBELLI, 2012).

De acordo com Costa (2001), a deflagração da campanha nesse contexto representaria


uma mudança de postura em que se manteriam as acusações de heresia e prática diabólica,
porém, dentro de uma ação organizada de esclarecimento, orientada por um padrão teórico
doutrinário atrelado às deliberações da CNBB e que também buscava argumentos nos campos
médico, jurídico e científico. Assim, através de pastorais, periódicos, livros e outros materiais
informativos, a campanha buscaria orientar o clero, esclarecer e prevenir os fiéis católicos
contra as ideias espíritas, seus riscos e as consequências para aqueles que frequentassem as
reuniões e/ou aderissem ao espiritismo.

Tendo em vista tais elementos, este artigo apresenta as reflexões iniciais de uma 221
pesquisa que tematiza os embates entre espiritismo e catolicismo no Rio Grande do Sul em
meados do século XX. Mais especificamente, delineiam-se aspectos relativos ao
posicionamento da Igreja católica em relação à doutrina espírita mediante a análise das
publicações da revista Rainha dos Apóstolos durante a década de 1950. Desse modo,
problematiza-se em que medida as percepções acerca do espiritismo denotariam as ações e
estratégias católicas no campo religioso sul-rio-grandense.

Capítulo I – A Rainha dos Apóstolos

Fundada em 1923, por iniciativa dos padres palotinos sediados na região de Vale
Vêneto106, a revista Rainha dos Apóstolos107 tinha por objetivo a divulgação e defesa das ações

106
Situada a cerca de 40 km da cidade de Santa Maria, a localidade de Vale Vêneto foi um dos núcleos da Quarta
Colônia de Imigração Italiana na região central do Rio Grande do Sul. Atualmente é um distrito do município de
São João do Polêsine.
107
Entre os anos de 1923 e 1926, a revista foi publicada com seu nome em latim (Regina Apostolorum), adotando
em seguida a denominação em português pela qual é editada e conhecida atualmente. Seu primeiro diretor foi o
ISSN: 2525-7501
missionárias católicas108. Com efeito, a organização do periódico está atrelada a atuação da Pia
Sociedade das Missões (PSM), congregação religiosa italiana fundada por Vicente Palloti, em
1835, cujos membros chegaram ao Brasil em 1886 e se estabeleceram na Quarta Colônia de
Imigração Italiana, na região central do Rio Grande do Sul (BIASOLI, 2010).

De acordo com Vitor Biasoli (2010), a PSM foi um importante agente na difusão e
implementação da orientação teológica e política conhecida como ultramontanismo109. Assim,
entre fins do século XIX e primeiras décadas do XX, a PSM expandiu sua atuação a partir da
região conquistando diversos curatos e paróquias através de uma série de ações, tanto na esfera
especificamente religiosa, quanto nas áreas da educação, saúde e assistência social.

A criação da revista na década de 1920 pode, portanto, ser compreendida como parte
dos esforços de difusão das ações clericais e das perspectivas que visavam a reafirmação da
autoridade da Igreja Católica no Rio Grande do Sul. No entanto, há que se considerar que a
implementação desse projeto foi marcada por disputas e tensões com outros agentes religiosos
igualmente atuantes no Estado, tais como as igrejas luteranas, anglicanas e metodistas, o
espiritismo, a umbanda e também as agremiações maçônicas de postura anticlerical. 222
Nas disputas do campo religioso, a imprensa periódica vai se constituir como importante
instrumento empregado pelos agentes envolvidos, assim, também é preciso considerar a Rainha
dos Apóstolos na sua função de porta-voz e defensora do catolicismo. Posto que a análise
proposta objetiva problematizar o embate entre espiritismo e catolicismo a partir do ponto de
vista de suas instâncias oficiais de representação, o referido periódico se apresenta como uma
fonte privilegiada para análise do discurso católico.

Nesse sentido, cabe destacar que o tratamento metodológico da fonte se desenvolve por
um viés problematizador que através de uma “leitura intensiva”, almeja localizar e compreender

padre Rafael Iop, que coordenou a edição do periódico a partir de uma pequena tipografia instalada no Seminário
Palotino de Vale Vêneto, a qual foi transferida, em 1934, para a cidade de Santa Maria (MARIN, 2014).
108
Regina Apostolorum. Vale Vêneto. n. 1. abr. 1923.
109
Decorrente das resoluções do Concílio Vaticano I (1869-1870), o movimento ultramontano almejava recuperar
e fortalecer a autoridade e a unidade da igreja, através da reiteração dos princípios católicos, tais como o papel
mediador da igreja e de seus ensinamentos para a salvação dos fiéis, o valor das indulgências, o culto dos santos e
da Virgem Maria. Tendo Roma como orientação, também visava a disciplinarização e o reordenamento das ações
do clero, bem como o afastamento dos leigos dos assuntos considerados de competência eclesiástica (BIASOLI,
2010).
ISSN: 2525-7501
a revista dentro de seu contexto de produção e circulação. Secundada por referenciais
bibliográficos e teóricos, procura-se, enfim, identificar seus usos, agentes produtores,
intencionalidades e interlocutores em diferentes contextos (ELMIR, 1995; ESPIG, 1998;
LUCA, 2005).

Sob a direção dos padres Artur Stefanello e Francisco Roggia, na década de 1950, a
Rainha dos Apóstolos mantinha a mesma periodicidade mensal de sua fundação, com os
recursos de edição provindo dos valores de assinaturas e de anúncios comerciais. Também
persistia o formato inicial de revista, porém com capas coloridas e maior utilização de imagens
(em preto e branco) junto dos textos, compondo-se edições na média de 32 páginas e com
circulação em âmbito estadual, mas, sobretudo na região central do Estado.

Não visando exclusivamente à divulgação das ações palotinas, nesse período a revista
delineava a família católica como seu público privilegiado, preocupando-se com a difusão dos
valores cristãos através de publicações que versavam sobre o matrimônio, a educação dos
filhos, os papéis dos indivíduos na organização familiar e na sociedade, bem como seus
compromissos com a religião. Outras publicações traziam dissertações e esclarecimentos 223
doutrinários, além de posicionamentos da Igreja Católica em relação a temas então em voga na
sociedade, tais como o controle de natalidade, a expansão do comunismo e de outras religiões,
bem como os avanços da ciência e a difusão dos meios de comunicação.

Especialmente em relação à imprensa, a revista posicionava-se de maneira crítica


denunciando o que considerava a abordagem de temas que atentavam contra a moral cristã, a
decência e os bons costumes. Haveria também pouco espaço para a Igreja Católica na imprensa
leiga, o qual muitas vezes seria compartilhado com outras religiões que teciam críticas ao
catolicismo110. Diante desse quadro, a revista Rainha dos Apóstolos alinhava-se a uma
tendência mais geral da Igreja Católica brasileira na defesa da “boa imprensa”, isto é, o
fortalecimento da presença do catolicismo em jornais, revistas e no rádio a fim de difundir os
valores e as ideias que consideravam adequados e de orientar as leituras dos católicos.

Tal perspectiva converge diretamente para o esforço de combater os grupos religiosos


concorrentes que, sob a ótica católica, proliferavam neste contexto. Esse era o caso do

110
Rainha dos Apóstolos. Santa Maria. n. 1. jun. 1950. p. 166-167.
ISSN: 2525-7501
espiritismo que desde sua introdução no Brasil fez da imprensa um importante instrumento de
divulgação e de organização institucional, o qual contribuiu para sua difusão entre diversos
grupos sociais (SCHERER, 2015). Assim, no próximo item analisam-se os posicionamentos
católicos veiculados nas publicações da revista, de modo a se identificar as percepções, críticas
e divergências em relação à doutrina kardecista.

Capitulo II – O espiritismo na visão católica

A primeira referência ao espiritismo no período analisado aparece na edição de março


de 1951, num artigo intitulado Católico Espírita, que procura esclarecer os fiéis católicos sobre
a incompatibilidade entre as duas doutrinas. Para tanto, argumenta-se que ao assumir um
discurso caritativo, evangélico e científico, além de empregar nomes de santos em suas
instituições, o espiritismo causaria uma confusão nociva entre os católicos que por essas
aparências acreditariam ser lícito e sem prejuízos frequentar, ao mesmo tempo, as missas e as
sessões espíritas111. Tal ideia é categoricamente refutada nos seguintes termos:

224
Pois saibam que o Espiritismo é seita condenada pela Igreja, que comete pecado grave
quem frequenta sessões espíritas mesmo a pretexto de curiosidade. O espírita não
pode ser católico, nem o católico espírita. Há contradição doutrinária radical entre
catolicismo e espiritismo. Portanto, nada de confusões. 112

Note-se que o autor, Vigário Brandão, traz à tona o aspecto doutrinário como fonte de
divergências irredutíveis entre a doutrina da Igreja Católica e o espiritismo que é referido
pejorativamente como uma “seita” e não como uma religião estabelecida, semelhante à católica.
Por fim, o artigo conclui com a afirmação de que o “espiritismo grassa de modo assustador e
impressionante entre nós”113, remetendo-se a constatação da Igreja de que as ideias espíritas
estariam penetrando entre seus fiéis.

O artigo Espiritismo parte dessa constatação e retoma a tarefa de alertarmento


pontuando os “frutos” da dita “nova religião” a fim de estabelecer se a mesma deveria ser
apoiada ou proscrita. De acordo com o articulista, A.R.L. Machado, seriam eles: a loucura, os

111
Rainha dos Apóstolos. Santa Maria. n. 3. mar. 1951. p. 86.
112
Ibid., p. 86.
113
Ibid., p. 86.
ISSN: 2525-7501
homicídios, os suicídios, além de fraudes, imoralidades e confusões religiosas que tinham por
objetivo “arredar os católicos da verdadeira religião”.114

Não prolonguemos mais a enumeração dos frutos. Basta os que vimos. Êles são
suficientes para nos mostrar o que é a doutrina de Allan Kardec - e por certo ninguém
duvidará que são bastante maus! – Logo a conclusão se impõe: o espiritismo é mau, e
ainda mais, é a verdadeira religião do diabo. Sua doutrina negando a divindade de
Cristo, a virgindade de Nossa Senhora, os anjos, o batismo, a penitência, o céu, o
purgatório, o inferno, em resumo, negando tôdas as verdades ensinadas por Cristo, é
a prova mais evidente de seu caráter diabólico.115

Esse artigo traz uma riqueza de elementos constituintes do discurso católico, a começar
pela imputação à doutrina espírita de uma série de malefícios com o intuito de proscrevê-la
perante os católicos. Além disso, o catolicismo, concebido enquanto “verdadeira religião” é
contraposto ao espiritismo, considerado uma religião maligna e diabólica, em razão dos
prejuízos que causaria e de sua recusa em aceitar os dogmas católicos.

O intento de desqualificar a prática espírita prossegue em Doidices Espíriticas, que


questiona a ideia de reencarnação. Nesse sentido, cita uma declaração do médium escocês
Douglas Home na qual ele refuta o princípio reencarnacionista proposto por Kardec e aponta
inconsistências históricas nas revelações dos espíritos sobre suas vidas passadas. Em suma, o
225
espiritismo não seria capaz de fornecer nenhuma “prova experimental, científica, irrecusável”
da reencarnação, de modo que a crença na mesma estaria baseada em suposições e nas
revelações duvidosas dos espíritos.116

Publicado em sequência ao artigo acima, o texto Condenação ao Espiritismo apresenta


uma série de penas impostas pela Igreja à doutrina e seus praticantes com base no Código de
Direito Canônico, nas resoluções do Santo Ofício e do Concílio Plenário Brasileiro. Dentre elas
destacam-se: a excomunhão, a impossibilidade de receber os sacramentos, a proibição de os
espíritas atuarem como padrinhos de batismo, a perda do direito à missa de sufrágio e de
sepultura eclesiástica.117

114
Rainha dos Apóstolos. Santa Maria. n. 8. ago. 1951. p. 229.
115
Ibid., p. 229.
116
Rainha dos Apóstolos. Santa Maria. n. 11. nov. 1951. p. 339-340.
117
Ibid., p. 340.
ISSN: 2525-7501
Esses pontos serão reproduzidos em outras edições ao longo da década de 1950, no
entanto, observe-se que as ideias expostas pelas publicações acima já delineiam as
preocupações e os argumentos que irão justificar e fundamentar a ação da Campanha Nacional
contra a Heresia Espírita. Nessa perspectiva, a partir de 1953, encontram-se artigos mais
extensos e desenvolvidos com a mesma pretensão de refutar a doutrina espírita e desencorajar
o contato dos católicos com a mesma.

É o caso de Pensando certo: por que não sou espírita, com autoria de Antônio Esteves,
o qual enumera uma série de razões de ordem doutrinária que distanciariam o espiritismo do
catolicismo e, por conseguinte, o tornaria uma doutrina condenável. Fundamentando-se em
passagens bíblicas diversas, o articulista procura rebater as interpretações espíritas, sobretudo
a negação da divindade de Cristo e sua consideração como um grande médium, que animou um
corpo material e cuja ressurreição física teria sido apenas uma metáfora118.

Igualmente, a série intitulada A Verdade sobre o Espiritismo, publicada em 1957, por


ocasião das comemorações espíritas relativas ao Centenário da Codificação do Espiritismo. Seu
autor, padre Olivo Cesca, redator da revista nesse período, esclarece que a série tinha o objetivo 226
de “dar aos nossos leitores uma vista de conjunto sôbre essa nova e perigosíssima heresia que
se vem alastrando assustadoramente pelo mundo e, muito particularmente pelo nosso Brasil”.119

Desse modo, o primeiro artigo é dedicado a constituir um panorama sobre as origens do


espiritismo, remontando-se a emergência do Moderno Espiritualismo com as manifestações
mediúnicas das Irmãs Fox. Acerca desses episódios, o articulista enfatiza seu caráter
fraudulento, reproduzindo declarações das referidas médiuns nas quais elas admitiam as
fraudes. Em relação a Kardec, emprega-se um testemunho sem referência que o descreve como
um homem “de inteligência medíocre, mas reto e trabalhador. De temperamento romântico e
sonhador, de imaginação fácil e arrebatada, taciturno, mas ardoroso, com vagos sentimentos de
religiosidade”.120

Já o segundo artigo da série atém-se aos fenômenos espíritas classificando-os como


“espontâneos”, os quais ocorreriam sem a intervenção humana, e “provocados”, produzidos

118
Rainha dos Apóstolos. Santa Maria. n. 1. jan. 1956. p. 3-5.
119
Rainha dos Apóstolos. Santa Maria. n. 2. fev. 1957. p. 106.
120
Rainha dos Apóstolos. Santa Maria. n. 4. abr. 1957. p. 106-109.
ISSN: 2525-7501
pela intervenção humana. Estes últimos estariam subdivididos em “falsos” e “verdadeiros”,
sendo os primeiros aqueles que “têm por causa a fraude (lôgro) e o emprêgo de forças naturais
e psíquicas pouco conhecidas”.121

Quanto aos “verdadeiros” fenômenos, considera-se que seriam raros e cuja causa estaria
relacionada à intervenção de algum espírito, no entanto, argumenta-se que isso não estaria
totalmente claro nem mesmo entre os espíritas. Indaga-se então se não ocorreriam por ação de
Deus, de anjos ou, de fato, pelas almas das pessoas mortas, ao que se responde negativamente.
Questiona-se, por fim, se os mesmos não estariam relacionados à ação do diabo, o que se
considera perfeitamente possível, ainda que sua ação direta fosse pouco frequente, sendo mais
comum que os fenômenos observados nas sessões espíritas fossem meramente fraudes. 122

Apesar disso, reitera-se a influência diabólica exercida sobre o espiritismo em razão dos
malefícios causados por sua prática.

Se, porém, como agente físico, o demônio intervém poucas vêzes no Espiritismo,
como agente moral está sempre presente. Sob êsse aspecto, o Espiritismo é
totalmente diabólico. As sessões espíritas estão cheias de mentiras, enganos,
obscenidades, impiedades, heresias, chocarrices e zombarias as mais deslavadas. Ali 227
muitos fatos se desenrolam em detrimento do pudor e da moral. Nega-se a doutrina
católica e os espíritos substituem a Cristo.123

Por fim, o terceiro artigo trata dos motivos pelos quais a Igreja Católica condenou o
espiritismo, partindo do argumento de que a oposição entre as duas doutrinas seria mais
irredutível do que a que existiria entre catolicismo e protestantismo. Enumeram-se então uma
série doutrinas proscritas e/ou consideradas heréticas pela Igreja, tais como o evolucionismo, o
racionalismo, o liberalismo, o arianismo, o teosofismo, o docetismo, o gnosticismo, o
materialismo, entre outras, cujos traços poderiam ser encontrados no sistema doutrinário
espírita.124

Assim, o espiritismo é tomado não apenas como uma doutrina herética, mas um
repositório de heresias, devendo a Igreja esclarecer seus fiéis sobre o fato de que “não podem
aderir ao Espiritismo, nem frequentar suas sessões, nem ler seus livros (as obras de A. Kardec

121
Rainha dos Apóstolos. Santa Maria. n. 5. mai. 1957. p. 137.
122
Ibid., p. 138-140.
123
Ibid., p.140. O destaque em negrito é da própria fonte.
124
Rainha dos Apóstolos. Santa Maria. n. 6. jun. 1957. p. 170-173.
ISSN: 2525-7501
foram postas no Índice), revistas ou jornais, ouvir seus programas radiofônicos ou tomar
remédios receitados nas sessões espíritas”. 125 Finalizando o texto, o articulista reforça o caráter
de heresia prescrito ao espiritismo e seus praticantes pelo Episcopado brasileiro.126

Os três artigos supracitados encontram fundamentação na bibliografia de divulgação da


Campanha Nacional contra a Heresia Espírita, notadamente, as obras O que é o espiritismo,
do padre Álvaro Negromonte; As fraudes espíritas e os fenômenos metapsíquicos, do padre
Carlos Maria Herédia; e Por que a igreja condenou o espiritismo, do frei Boaventura
Kloppenburg127, além de artigos publicados pelo frei na Revista Eclesiástica Brasileira. A
articulação das publicações da revista Rainha dos Apóstolos com a campanha também pode ser
identificada considerando-se a publicação de textos de Kloppenburg no período.

Esse é o caso do artigo Os espíritas respeitam todas as crenças? onde Kloppenburg


refuta o caráter de tolerância religiosa do espiritismo utilizando como argumento as críticas
espíritas movidas contra a Igreja Católica e seus dogmas.128 Igualmente, a divulgação de seus
livros e fitas cassete com gravação de suas palestras de esclarecimento sobre a doutrina
kardecista129. E, finalmente, sua visita à cidade Santa Maria, em janeiro de 1960, justamente 228
130
com o objetivo de ministrar um curso sobre a atuação diabólica no espiritismo .

Diante dos elementos expostos, podem-se considerar as posições do catolicismo dentro


da lógica de concorrência e disputa do campo religioso que, de acordo com Pierre Bourdieu
(2011), opõe diferentes agentes especializados no atendimento às demandas dos leigos, visando
o monopólio da gestão dos bens de salvação. Nesse sentido, o caráter plural e dinâmico do

125
Ibid., p. 173.
126
Rainha dos Apóstolos. Santa Maria. n. 6. jun. 1957. p. 173.
127
Além de diretor, Kloppenburg foi também um dos principais nomes da campanha. Eis algumas de suas obras:
Por que o católico não pode ser espírita (1951), Porque não admito a reencarnação (1952), Por que a Igreja
condenou o Espiritismo (1953), Material para Instruções sobre a heresia espírita (1953), Resposta aos Espíritas
(1954), A reencarnação: Exposição e crítica (1955), O livro negro do Espiritismo (1955), O Reencarnacionismo
no Brasil (1957) e Cruzada de defesa da fé católica no I Centenário do Espiritismo (1959). Cabe destacar também
suas publicações voltadas para outras frentes de enfrentamento para o catolicismo neste período: O católico
perante a Umbanda (1952), Posição católica perante a Umbanda (1954), A Maçonaria no Brasil. Orientação
para os católicos (1956), Ou católico ou maçom (1956), As Sociedades Teosóficas (1957) e O Círculo Esotérico
da Comunhão do Pensamento (1957). In: SCHIERHOLT, José Alfredo. Frei Boaventura Kloppenburg - 80 Anos
por Cristo em Sua Igreja. Lajeado - RS: O Autor, 1999. p. 186-187.
128
Rainha dos Apóstolos. Santa Maria. n. 9. set. 1957. p. 262-263.
129
Rainha dos Apóstolos. Santa Maria. n. 8. ago. 1959. p. 263.
130
Rainha dos Apóstolos. Santa Maria. n. 2. fev. 1960. p. 67.
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campo religioso brasileiro em meados do século XX, colocou em xeque a posição hegemônica
desfrutada pela Igreja Católica junto à sociedade.

O catolicismo então reagiu com investimentos no sentido de manter seus adeptos em


suas fileiras e de combater os concorrentes, encarados como inimigos na arena religiosa.
Especificamente em relação ao espiritismo, considerava-se que sua expansão estava
relacionada ao elevado consumo de literatura espírita no país e a penetração de suas ideias entre
os católicos que mesmo sem renunciar à Igreja frequentavam as sessões espíritas, liam seus
livros e aderiam a suas práticas de cura (GIUMBELLI, 2012; COSTA, 2002).

Assim, compreendem-se os esforços dos articulistas católicos e da Campanha Nacional


contra a Heresia Espírita no sentido de esclarecer os fiéis enfatizando as radicais e irredutíveis
divergências doutrinárias entre espiritismo e catolicismo, minando qualquer possibilidade de
conciliação ou amálgama. Todavia, esse esclarecimento não se constituía na simples exposição
das diferenças, mas também na emissão de críticas e juízos de valor em relação à doutrina
espírita.

A desqualificação do outro é uma prática recorrente nas disputas do campo


229
religioso e no caso em questão elucida tanto o choque entre concepções distintas sobre a religião
e o cristianismo, como também a necessidade de delimitação das fronteiras entre espiritismo e
catolicismo. É nesse sentido que se mostra pertinente o conceito de representações, capaz de
articular três registros de realidade:

[...] por um lado, as representações coletivas que incorporam nos indivíduos as


divisões do mundo social e organizam os esquemas de percepção a partir dos quais
eles classificam, julgam e agem; por outro, as formas de exibição e de estilização da
identidade que pretendem ver reconhecida; enfim, a delegação a representantes
(indivíduos particulares, instituições, instâncias abstratas) da coerência e da
estabilidade da identidade assim afirmada. (CHARTIER, 2002, p. 11)

Os diferentes grupos que integram a sociedade produzem e compartilham


representações próprias que os definem, e, em diferentes graus, os aproximam ou opõem
tenazmente. Acredita-se que este também seja o caso das oposições entre espíritas e católicos
no campo religioso brasileiro e sul-rio-grandense durante a década de 1950, configurando o que
Roger Chartier (1990) denomina de “lutas de representações” que se processariam entre
ISSN: 2525-7501
indivíduos, grupos e instituições no espaço social e das quais as afirmações de identidade
também tomam partido.

Com efeito, ao passo que criticava a negação dos dogmas católicos pelo espiritismo, a
Igreja Católica defendia essas representações como os fundamentos de sua doutrina. Por outro
lado, empenhava-se em abalar as bases de seu adversário, refutando a ideia de reencarnação,
questionando a veracidade dos fenômenos e das revelações dos espíritos, além de criticar e
contrapor suas interpretações religiosas.

Já a preocupação em combater as “confusões” causadas pelo espiritismo, evidencia o


intento católico de delimitar claramente as fronteiras entre as duas perspectivas. Daí o recurso
a uma estratégia de distinção aliada a atos de classificação e autoclassificação, denotando o que
Denys Cuche (1999, p. 184) descreve como “a negociação de uma "auto-identidade" definida
por si mesmo e uma "hetero-identidade" definida pelos outros”.

Com efeito, era preciso elucidar os católicos que a despeito do caráter cristão

230
reivindicado pelo espiritismo, este não apenas divergia da doutrina católica por incorrer numa
série de erros, mas também por causar grandes malefícios. Daí a constituição e enunciação de
um discurso impregnado de categorias como “seita”, “religião diabólica”, “religião satânica”,
“falsa religião”, “heresia”, “fraude” e “superstição”, bem como associações depreciativas, tais
como as que relacionavam o espiritismo à loucura, homicídios, suicídios e fraudes.

CONCLUSÃO

Este artigo almejou delinear o discurso da Igreja Católica em relação ao espiritismo no


Rio Grande do Sul em meados do século XX. Definido dentro de um contexto de concorrências
e disputas no campo religioso, o posicionamento católico assume um caráter explicitamente
combativo em relação ao espiritismo, expresso pela mobilização da Campanha Nacional contra
a Heresia Espírita, que deveria conter e reverter a penetração das ideias espíritas entre os
católicos brasileiros.

Por sua vez, a revista Rainha dos Apóstolos vai atuar como um instrumento de difusão
dessas perspectivas no Rio Grande do Sul, no sentido de esclarecer e alertar os católicos quanto
ISSN: 2525-7501
à incompatibilidade entre espiritismo e catolicismo, bem como as penas impostas pela Igreja
àqueles que aderissem ou tomassem contato com as práticas espíritas. Sob a perspectiva de
condenação herética, o discurso católico também procurava demonizar e desqualificar o
espiritismo associando-o a uma série de malefícios. Assim, o catolicismo almejava reafirmar
sua autoridade e posição hegemônica no campo religioso.

Dados os limites deste texto, os aspectos elencados apenas esboçam um panorama geral
e preliminar sobre o embate entre espiritismo e catolicismo, o qual suscita reflexões mais densas
com a consideração de outros elementos documentais da imprensa espírita, católica e leiga.
Procedimento que, aliado a uma reflexão teórica mais profunda, possibilitará uma melhor
compreensão acerca das questões e estratégias colocadas em disputa por esses agentes e sua
repercussão na sociedade sul-rio-grandense.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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233
ISSN: 2525-7501
PALCO DE PODER E CARIDADE: A COMPOSIÇÃO SOCIAL DA DIRETORIA DA
SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE JUIZ DE FORA (1854 - 1897)131

Maciel Antonio Silveira Fonseca132

RESUMO

O presente estudo tem como propósito investigar as ações do campo médico-filantrópico em


Juiz de Fora na transição do século XIX para o século XX. Neste período, estas ações se
consolidaram através da institucionalização da saúde que, no presente caso, será observado a
partir da ótica da Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora, cuja Casa de Caridade fora criada
em 1854, por iniciativa do Comendador José Antônio da Silva Pinto, visando promover o
auxílio aos mais necessitados ao passo que consolidava suas relações na política local. Neste
contexto, então, o presente artigo propõe compreender o posicionamento da elite responsável
pela gestão da Casa de Caridade, composta em parte por um grupo de políticos, e outra parte
por grandes proprietários cujos esforços possibilitaram a promoção da assistência. O propósito
é perceber qual é a trajetória geral destes indivíduos, através da prosopografia, tendo em vista
suas profissões e ocupações. Importa para esta investigação o local de origem, formação,
carreira política, carreira profissional, participação em outros institutos da sociedade. 234
Palavras-chave: Modernização; assistência; elite.

INTRODUÇÃO

Inicialmente, este trabalho tinha por objetivo uma análise da composição política e
social dos membros dirigentes que compuseram a primeira mesa administrativa da Santa Casa
de Misericórdia de Juiz de Fora, na ocasião conhecida como "Casa de Caridade" que era gerida
pela irmandade Nosso Senhor dos Passos. A princípio intentou-se fazer uma análise
prosopográfica, como fez LOPES (2003, p.203-274), na Misericórdia de Coimbra. Contudo, a
pesquisa se deparou com dois grandes obstáculos: primeiramente, nestes meses destinados à
elaboração deste artigo, não foi possível encontrar quaisquer documentos que fizesse menção
destes indivíduos, por menor que fosse. Isso não significa que não exista, nem também que haja

131
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
132
Mestrando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Email: maciel.s.fonseca@gmail.com
ISSN: 2525-7501
tais documentos. Fato é que neste período, mesmo que com incessantes buscas diárias, nada foi
encontrado sobre estes atores nos fundos arquivísticos do arquivo municipal no período
referente ao estudado, salvo o daqueles com grande atuação e relevância para a sociedade
juizforana, como Halfeld e Bertioga. Em segundo lugar, infelizmente, tivemos grande recusa e
desamparo por parte da administração da Santa Casa de Juiz de Fora que em momento algum
se mostrou interessada e disposta a disponibilizar os documentos e arquivos referentes às atas
e livros de reuniões dos irmãos nos primórdios da instituição. Sabemos que estes documentos
existem pois são citados por Miriam Travassos na sua obra jornalística sobre a instituição,
elaborada sob os auspícios do então provedor Dr. Juracy Neves, que a contratou exclusivamente
para essa finalidade e publicou, em 1993, este trabalho que fazia menção à existência destes
documentos, mas que por não ter sido elaborado com um rigor historiográfico, infelizmente
pouco temos contato com o conteúdo destas fontes.

Em vista destas impossibilidades, mantive a proposta de analisar a composição dos


dirigentes, mas agora dando um enfoque nos provedores que assumiram a administração da
Santa Casa no período de sua criação, 1854, até 1897, quando a instituição deu início à um
processo de ampliação e modernização dos serviços prestados, até então sendo feito de forma
235
precária e dispondo de poucos recursos e gestores que se mostraram despreparados para
conduzir o nosocômio.

Capítulo I - Contexto de criação da "Casa de Caridade" de Juiz de Fora

Entre o segundo e terceiro quartel do século XIX, no local onde viria a se tornar o
município de Juiz de Fora, foi protagonizado uma série de transformações decorrentes do
aumento populacional que encontrou na exploração cafeeira solo fértil para a prestação de
serviços e investimento na crescente comunidade. No percurso entre a lei que separou a cidade
de Paraibuna do município de Simão Pereira, em 1839, até a lei que transformou este município
em Juiz de Fora, no ano de 1865, foi perceptível um aumento significativo na população,
decorrente da expansão cafeeira que se tornava predominante na região da Zona da Mata
mineira.
ISSN: 2525-7501
Com o amplo crescimento econômico da cidade, foi possível perceber maior
mobilização da política local em diálogos referentes à projetos de modernização e ampliação
do centro urbano. Conforme menciona LESSA (1985, p.81) no ano de 1860 o engenheiro
Gustavo Dodt fez um levantamento das residências e o projeto do alinhamento das ruas, até
então inexistentes, com o intuito de evitar a construção de edificações que pudessem interferir
em algum projeto futuro de construção da cidade. A principal avenida, atual Avenida Rio
Branco, contava com apenas 2 quilômetros, em vista dos atuais 6,4 km. Nela, havia espalhado
57 casas no lado par e 45 casas no lado ímpar, além de alguns outros projetos de edificações,
como a cadeia municipal e outras casas da elite. Sobre este crescimento, Lessa (1985, p.84)
conclui: "Total de construções da planta de Dodt: 177. Quatro praças e dezessete ruas". Esta
estimativa desconsiderava os casebres localizados na região onde atribui-se a origem da cidade,
já tomados pela vegetação por conta do abandono de seus moradores que se concentraram nas
fazendas locais e ofereciam mão de obra no centro urbano (OLIVEIRA, 1953, p.11).

Goodwin Jr (1997, p.121-127) nos aponta as discussões na Câmara Municipal a partir


das atas produzidas em suas reuniões, tanto ordinárias quanto extraordinárias, mostrando os
altos índices de temas relacionados à modernização urbana, por meio de obras e propostas de
236
ampliações. Isso se deve às implantações propostas na capital imperial do reinado de Dom
Pedro II, repercutindo em Juiz de Fora que buscava seguir o modelo da capital, uma vez que o
intercâmbio cultural entre as duas localidades era intenso e a incorporação deste projeto pelas
elites locais era de singular importância para que lançasse o município na "europeizante" Rio
de Janeiro.

Esse projeto de modernização da cidade que era discutido pelas elites, estava
diretamente atrelado à ações que visavam o aperfeiçoamento e incursão de mecanismos
sanitários e de assistência, que abarcava o escoamento de águas até algumas fontes, a
construção da cadeia mostrada no projeto de Dodt, a construção de hospitais para oferecer
assistência aos pobres e enfermos e, por fim, a tão necessária transferência do cemitério que se
encontrava no adro da Matriz e cada vez mais demandava atenção no que diz respeito ao
translado dos corpos para uma região mais afastada (BARRETO, OLIVEIRA. 2015, p.3-4).
Um cemitério na região central e próxima às casas e aos transeuntes confronta diretamente o
modelo modernizante da cidade, por se tratar de uma prática insalubre que sujeitava a população
ISSN: 2525-7501
aos pútridos miasmas e à contaminações de cadáveres acometidos de moléstia contagiosa. O
iminente surto de cólera que acometeu a cidade em 1855, que acelerou o processo na Câmara
que sucedeu com os donativos dos vereadores e beneméritos para concluir o cemitério
municipal em 1864 (OLIVEIRA, 1953, p. 32-35).

Com o projeto de inserção nos moldes da modernidade, o Estado passava a assumir e a


desempenhar papéis de responsabilidade social, tendo em vista que cada vez mais a assistência
se afastava da tutela religiosa, em contrapartida buscando o amparo em entes estatais que
solucionavam a questão com a institucionalização da assistência, oferecendo uma adequação
no espaço urbano e a adesão por parte dos agentes prestadores da caridade (DAVIS, 1990, p.25-
41).

Neste cenário, a institucionalização da caridade vai permitir o que BOURDIEU (1973,


p.100-105) chama de "sistema de troca simbólica", que ocorrerá quando o filantropo pratica a
caridade visando uma retribuição simbólica, intangível; neste caso, almeja-se alcançar uma
posição de destaque ante seus pares na busca pela obtenção de privilégios sociais e uma posição
elevada nesta sociedade. Ao doar, ambas as partes tem seus anseios e necessidades supridas 237
pelo sentimento da caridade. Ao doador, a pratica cristã da doação e a benevolência que ela
proporciona alivia os seus pecados e o coloca em um pedestal que irá reverberar nos círculos
sociais o qual este indivíduo participa, além de estabelecer com quem recebe a dádiva uma
relação de obrigação de retribuição, não sendo necessariamente de forma material, como mostra
GODELIER (2001, p. 46-68); já quem recebe o dom, sente-se atendido momentaneamente e
que desempenhou uma função de possibilitar o doador a expurgar seus pecados praticando a
caridade.

Como aponta BOURDIEU (2000, p. 23-48) não há ação sem pretensão de algo em troca
e, portanto, nenhum ato é desprovido de algum interesse que não vise algum tipo de retribuição,
o que reforça a ação dessa elite que buscava consolidar seu domínio e reforçar o seu poder
através da caridade. Talvez esta idéia se justifique no fato de durante o período trabalhado, as
doações se obras se concentram nas mãos de uma pequena parcela de políticos locais ou
comerciantes que buscavam se inserir no espaço locais, a fim de circular nos mesmos ambientes
que a os grupos já estabelecidos na região.
ISSN: 2525-7501

Capitulo II – A composição social da provedoria da Santa Casa de Misericórdia de


Juiz de Fora (1854 - 1897)

Apesar de ter se estabelecido como Santa Casa de Misericórdia, e a despeito da tradição


de ser gerido pela irmandade da Misericórdia, em Juiz de Fora este fato fugiu à regra. A
instituição foi gerida pela irmandade Nosso Senhor dos Passos, fundada em 1854 por iniciativa
do comendador José Antônio da Silva Pinto, o Barão da Bertioga. Muito embora apresente essa
diferença, a irmandade mantinha as características em sua estrutura e finalidade, que era a
prática da caridade. Diferente de outras confrarias que estabelecia um parâmetro horizontal da
caridade, as Misericórdias se operavam de modo a promover uma assistência verticalizada, que
abrangia a terceiros que não necessariamente fossem irmãos, apesar da assistência privilegiada
a qual era submetida um irmão (SÁ, 1997, p. 65-69). Assim consta no artigo 1º do Compromisso
da Irmandade Nosso Senhor dos Passos - Freguesia de Santo Antônio do Paraibuna133: "Foi
criada a Irmandade na capela do Senhor dos Passos que se propõe a promover o culto religioso
e a socorrer os pobres134." 238
Franco (2015, p.23-26) nos mostra que a caridade institucionalizada se mantinha como
um privilégio que competia a grupo seleto da sociedade, decorrente da elitização a que estava
submetida as Santas Casas de Misericórdia, dado o grande prestígio que era a participação em
cargos da direção desta instituição. O ingresso na irmandade estava condicionado a uma série
de restrições, como previsto no artigo 2º do Compromisso da Irmandade:

Para integrar a Irmandade tem que ser católico, de condição livre e de


reconhecida moralidade e de bons costumes poderá ser [ilegível] a esta
Irmandade, assinando o livro do termo de entrada e de obediência ao
presente compromisso.135
E complementa no artigo 3º referente à jóia: "Na entrada, todo irmão pagará a
quantidade de oito mil réis e taxas anuais de hum mil réis. Não poderá recusar-se a pagar sem

133
Nome do município de Juiz de Fora até 1865, quando a cidade passou a ser chamada Juiz de Fora.
134
Arquivo da Cúria Metropolitana de Juiz de Fora. Compromisso da Irmandade Nosso Senhor dos Passos, 1854
135
Arquivo da Cúria Metropolitana de Juiz de Fora. Compromisso da Irmandade Nosso Senhor dos Passos,
1854.
ISSN: 2525-7501
136
justificativa [ilegivél]." Logo, é esperado que para o ingresso na irmandade era necessário
gozar de posição social e deter bens, uma vez que estima-se maior população escrava na região
durante o período, além de uma população que se instalavam em casebres por falta de recursos
financeiros, o que impossibilitava o pagamento das jóias e das anuências (OLIVEIRA, 1953,
p.11-13).

O compromisso não se submeteu à reformulação, sendo o mesmo desde a sua


elaboração no ano de 1854. Nota-se que todos os seus provedores se adequaram aos parâmetros
estabelecidos no compromisso, observando sua religiosidade e sua idoneidade perante a
sociedade. Vale ressaltar que nenhum deles apresenta indícios de professar outra fé, se não a
cristã católica, podendo ser observada a participação de alguns deles em outras confrarias ou
ordens religiosas compostas por leigos e de relevante valor moral, como é o caso do fundador
da irmandade, José Antônio da Silva Pinto, posteriormente Barão da Bertioga.

Era Comendador da Ordem da Rosa e da Imperial Ordem de Cristo,


Irmão das seguintes Irmandades: Ordem Terceira do Carmo do Rio de

239
Janeiro, Ordem São Francisco de Paula do Rio de Janeiro, Santa Casa
de Misericórdia do Rio de Janeiro, do Santíssimo Sacramento da
Freguesia de Santa Rita, Nossa Senhora Mãe dos Homens de
Barbacena, do Caraça, do Senhor Bom Jesus de Matosinhos de
Congonhas e Instituidor Perpétuo da Irmandade de Nosso Senhor dos
Passos de Santo Antônio do Paraibuna (TRAVASSOS, 1993, p. 35-36).
Silva Pinto, vereador de Juiz de Fora, participou ativamente da construção da cidade,
com uma série de generosas doações para a modernização e melhoria no espaço urbano. A ele
atribui rico donativo para a construção de uma coluna hidráulica em seu terreno, que destinou
gratuitamente à população (TRAVASSOS, 1993,p.29-32); doou generosa quantia para a
construção do cemitério municipal, criou a Capela Nosso Senhor dos Passos e o Hospital de
Caridade (LESSA, 1985, p. 93-96). Suas benemerências lhe conferiu a posição de Provedor
perpétuo da Irmandade, conforme descrito no artigo 9º do compromisso da irmandade:

O irmão Comendador José Antônio da Silva Pinto de sua [ilegível]


espontaneidade é o provedor perpétuo da Irmandade e seu Benfeitor , e

136
Arquivo da Cúria Metropolitana de Juiz de Fora. Compromisso da Irmandade Nosso Senhor dos Passos, 1854
ISSN: 2525-7501
durante [ilegível] a vida não se procederá a eleição para preencher
aquele cargo.137
Sua gestão durou pelos próximos dezesseis anos, até a sua morte em 1870. Sem deixar
herdeiros, o Barão e a Baronesa destinaram uma boa quantia de sua fortuna à Santa Casa de
Misericórdia, e outra parte à seus sobrinhos, futuros provedores da Santa Casa, Elias Antônio
Monteiro da Silva e José Vieira de Figueiredo e Silva, respectivamente o sucedendo entre 1870
e 1871 e o segundo entre 1873 e 1874 (TRAVASSOS, 1993, p.47-70).

A despeito das provedorias no mesmo período em outras regiões do país, como a de


Pelotas, em Juiz de fora as administrações foram por relativamente curtos períodos, com a
média de 32 meses para cada provedor, contra os 51,6 meses no mesmo período de 1854-1897
na Santa Casa de Pelotas. Neste caso, segundo Tomaschewski (2015, p. 64-66), dado a
importância de se ocupar o cargo mais alto e importante, o de provedor, muitos indivíduos
monopolizavam estes cargos, o que explica o acentuado período de permanência no exercício
da provedoria. Em Juiz de Fora o cargo de provedor conferia uma série de responsabilidades

240
ao indivíduo, conforme disposto no artigo 19º do compromisso da Irmandade:

Do Provedor
- O Provedor é o primeiro funcionário da
Irmandade.
- Dará a jóia na quantia de cem mil réis no dia
de posse de seu cargo.
- Compete-lhe, entre outras coisas, convocar a
Assembléia quando julgar conveniente ou quando lhe for requerido.
- Controlar os empregados da Irmandade para o
fiel cumprimento de seus deveres.
- Fazer com que sejam prestados socorros aos
irmãos indigentes.
- Representar a Irmandade junto ao poder
138
público.

137
Arquivo da Cúria Metropolitana de Juiz de Fora. Compromisso da Irmandade Nosso Senhor dos Passos, 1854
138
Arquivo da Cúria Metropolitana de Juiz de Fora. Compromisso da Irmandade Nosso Senhor dos Passos, 1854
ISSN: 2525-7501
Importante destacar que em nenhum momento que abarca o recorte cronológico
estudado a provedoria a provedoria foi assumida por um médico; o primeiro relato de um
médico na direção foi no ano de 1909, na ausência do provedor, e Juiz, Dr. Braz Bernardino
Loureiro Tavares, que se ausentou no decorrer do ano para uma viagem à Europa. Dos 16
provedores no período entre 1854 e 1897, metade deles ocuparam o cargo de vereador. Alguns
antes de sua gestão na Santa Casa de Misericórdia, outros depois, conforme nos mostra o quadro
a seguir:

Provedor Ocupação Cargo Político Período de Gestão

Comendador Cafeicultor Vereador 1853- 1854 - 1870


Antônio José da 1856
Silva Pinto

Elias Antônio Cafeicultor X 1870 - 1871


Monteiro da Silva

José Vieira de Cafeicultor X 1873-1874 241


Figueiredo e Silva

Cristóvão de Cafeicultor e X 1874-1876


Andrade Comerciante

Gervásio Monteiro Cafeicultor Vereador 1877- 1876-1877


da Silva 1880

Coronel João José Cafeicultor e X 1877-1886


Vieira Investidor
Mobiliário

Geraldo Augusto Cafeicultor Vereador 1869- 1887-1888


de Miranda 1872
Resende - Barão do
Prefeito 1880-1889
Retiro
ISSN: 2525-7501
Presidente da
Câmara

José Joaquim X X 1888-1889


Fernandes Torres

Lindolpho de Assis X X 1890

Joaquim Martins Empresário, X 1891


Ferreira Investidor
Imobiliário

Comendador X Vereador 1881- 1891


Manoel José 1884
Pereira da Silva

José Caetano de Advogado Vereador 1860- 1891


Morais e Castro 1864/ 1873-1878
242
Manoel Antônio X X 1892
Lopes

José Caetano de Advogado Vereador 1860- 1892-1893


Morais e Castro 1864/ 1873-1878

Francisco Cândido X Vereador 1895- 1893


da Gama Jr 1898/1901-1904

Coronel Francisco X Vereador 1895- 1894-1895


Pereira Sygmaringa 1898

Capitão Antônio X Vereador 1892- 1895-1896139


Pinto Monteiro 1895/1895-
1898/1901-1904

139
PROCÓPIO Filho, José. Salvo erro ou omissão. Gente Juiz-Forana. 1979.
ISSN: 2525-7501

O quadro nos mostra uma seleção bastante criteriosa para a escolha do Provedor. De
cargo importante e notório destaque, ser um provedor não somente necessitava de forte
influência política, como também exigia alguma posse por parte do candidato. Não dizendo que
era necessariamente obrigatório atender a estes padrões; mas como nos mostram os dados, é
possível inferir que as escolhas não foram aleatórias ou despropositais, cada indivíduo estava
inserido em algum pedestal da sociedade e isso era importante para elevar o nome da instituição
e passar a devida credibilidade para, assim, haver maior promoção da doação.

CONCLUSÃO

Dentre as ocupações elencadas, predomina a de cafeicultores, maior fonte de riqueza da


época e que movimentava não só o capital, como a compra de escravos na época. Aos demais,
advogados seguidos de investidores imobiliários, também ocupações de crescente destaque,
uma vez que a cidade estava inserida em um amplo projeto de expansão e novos investimentos
deveriam ser feitos para estimular a instalação nos centros urbanos.
243
Outro fator notório é a presença de três membros da família do Barão da Bertioga,
fundador da Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora. Com sua morte, sucedeu o seu sobrinho
Elias Antônio Monteiro da Silva; em seguida, seu outro sobrinho e herdeiro José Vieira de
Figueiredo e Silva e, dois anos mais tarde, o irmão do Barão e vereador Gervásio Monteiro da
Silva. Em sua grande maioria, os vereadores exerceram seu mandato político durante ou
anterior à Provedoria. Este fato dá a idéia de que alcançar o cargo de Provedor não somente era
restrito a determinados grupos como também estes deveriam ser potencialmente indivíduos
ligados à política local, apesar de não ser uma regra definida.

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Antonio Augusto D. Berni141

RESUMO

O presente artigo visa tratar sobre as estruturas de poder inerentes ao período da


Ditadura Civil-Militar brasileira expressas principalmente na prática de tortura contra aqueles
que se opunham, de forma sistemática, ao Estado autoritário que se instalou em 1964 no Brasil.
Para tanto nos valemos, como ponto de partida, do estudo da trajetória de Balthazar Mello,
principal líder ferroviário na cidade de Santa Maria-RS ele próprio preso e torturado ao longo
dos primeiros três anos da referida Ditadura. A pesquisa baseou-se em levantamento de fontes
primárias como jornais e revistas da época, de literatura específica sobre o tema, bem como
entrevistas orais com as filhas de Balthazar, Anita e Geisa e com antigos companheiros de
trabalho.
Palavras-chave: Tortura; Ditadura Civil-Militar; Santa Maria, RS.

246
INTRODUÇÃO

O objetivo principal do artigo é analisar, do ponto de vista histórico, a tortura sofrida


por Balthazar Mello, principal líder ferroviário da cidade de Santa Maria-RS. Sua prisão
ocorreu alguns dias após o Golpe Civil-Militar de 31 de março de 1964. Para tanto, fizemos uso
dos depoimentos fornecidos por suas filhas. Elas vivenciaram aqueles momentos
historicamente tensos, os quais findaram por transformar suas trajetórias de vida para sempre.
Por tortura, compreendemos o estabelecimento do domínio sobre o outro, que visa reduzi-lo à
noção de objeto. Conhecer e analisar essas narrativas foi, para nós, um exercício de
desnaturalização dessa prática histórica, procurando compreendê-la em suas ramificações e
manifestações. Essas narrativas foram por nós analisadas enquanto memórias. Baseamo-nos na
perspectiva de Halbwachs (1990), para quem as memórias são sempre leituras sobre o passado
elaboradas no presente, por meio de seus quadros sociais mais amplos e coletivos.

140
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
141
Mestre em Ciências Sociais, Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: aadberni2009@hotmail.com.
ISSN: 2525-7501
Compreendemos, igualmente, que essas narrativas estão sempre em disputa (vide
Pollak, 1989), opondo versões e construções sobre o passado. As entrevistas realizadas
seguiram o roteiro daquilo que se convencionou chamar de “entrevista semidirigida”, a qual se
mostrou para nós como a mais profícua entre as outras formas, em termos de resultado final.
Houve, por parte dos entrevistados, consentimento para que suas narrativas fossem objeto de
análise acadêmica. Durante o transcorrer da pesquisa, evitamos a aplicação de questionários
escritos. Chegou-se a formular um modelo que foi aplicado em uma espécie de pré-teste, mas
que resultou em um retorno totalmente insatisfatório, pois ficou “reduzido a respostas
monossilábicas” (THOMPSON, 1995, p. 257), que pouco ou quase nada acrescentaram ao
desenvolvimento da pesquisa. Utilizamo-nos também de pesquisa bibliográfica, com obras já
consagradas sobre o tema, além de pesquisas em fontes primárias, tais como jornais e revistas
da época, principalmente no Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria. Nessa instituição,
efetuamos um levantamento dos fatos principais que dizem respeito diretamente ao tema
estudado no jornal local A Razão, dos anos de 1964 a 1968.

O presente artigo está dividido em duas partes. Na primeira, intitulada “Definindo o


indefinível: a tortura como instituição do Estado”, procuramos estabelecer como as
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organizações que lutam pela preservação e defesa dos direitos humanos, como a Anistia
Internacional e a Organização das Nações Unidas, entre outras, conceituam “tortura” e como
essa ainda sobrevive e se estabelece enquanto prática do Estado, tomando forma de uma
instituição.

No segundo momento, abordamos o tema do artigo em si, trazendo os depoimentos das


filhas de Balthazar Mello sobre a prisão e tortura do pai, além de outros temas que dizem
respeito diretamente àquela violência imposta pelo Estado autoritário.

Capítulo 1 - Definindo o indefinível: a tortura como instituição do Estado


Diferentemente do que se costuma afirmar, a tortura foi prática recorrente do Estado
ISSN: 2525-7501
brasileiro desde os primeiros momentos da instalação da Ditadura Civil-Militar142, em 1964.
Ela se tornou uma prática comum em nosso país, uma “herança maldita”, como afirma Maria
Victoria Benevides Soares (2010), introduzida pelos portugueses que a trouxeram da Santa
Inquisição, tendo atravessado todos os momentos da nossa história, desde a Colônia até a
atualidade, se tornando uma instituição no interior do Estado e expondo todas as imperfeições
e deformidades deste.

As vítimas dessa violência institucionalizada são, necessariamente, as mesmas, isto é,


as classes ou grupos sociais que não se enquadram nos sistemas hegemônicos (ADORNO,
2002), os não-cidadãos, representados por índios, escravos, trabalhadores, internos em
manicômios e instituições totais em geral e, mais recentemente, os subversivos em potencial e
os pobres em geral: “Para punir, disciplinar e purificar, arrancar confissões e informações,
intimidar, ‘dar o exemplo’, vingar, derrotar física e moralmente o suposto inimigo ou,
simplesmente, o indesejável” (SOARES, 2010, p. 20). A aplicação de qualquer tipo de tortura
ou violência física é tipificada como crime contra a humanidade. A Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948 condena-a de forma enfática, em seu Artigo V, quando afirma que
“ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
248
degradante”143.

Em 10 de dezembro de 1984, a Organização das Nações Unidas (ONU) adotou a


“Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou
Degradantes”, também conhecida como Resolução 39/46, definindo, em seu Artigo Primeiro,
o que é tortura:

Para os fins desta Convenção, o termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual uma
violenta dor ou sofrimento, físico ou mental, é infligido intencionalmente a uma
pessoa, com o fim de se obter dela ou de uma terceira pessoa informações ou
confissão; de puni-la por um ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou

142
Utilizamos a expressão “Ditadura Civil-Militar” seguindo as orientações de Octávio Ianni (1981; 1985), que,
além desta, vale-se também das expressões “Ditadura burguesa” e “Ditadura do grande capital”, para se referir ao
período em estudo.

143
Disponível na internet: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm. Acesso:
24/01/2013.
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seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir ela ou uma terceira pessoa; ou
por qualquer razão baseada em discriminação de qualquer espécie, quando tal dor ou
sofrimento é imposto por um funcionário público ou por outra pessoa atuando no
exercício de funções públicas, ou ainda por instigação dele ou com o seu
consentimento ou aquiescência144.

O Brasil aprovou, em 1991, essa Convenção e, em 07 de abril de 1997, promulgou a Lei


9.455, a “Lei Contra a Tortura”, em que, no seu Artigo 1º, Parágrafo 6º, afirma que o “crime de
tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia”145. Logo, “tortura é sempre crime e
seus agentes e responsáveis são criminosos, passíveis de condenação no País e nos tribunais
internacionais” (SOARES, 2010, p. 25).

A tortura passa assim a ser condenada através da aprovação destas leis e acordos porque
até então, e principalmente a partir dos anos 1960, expressava-se como prática dominante de
violência naqueles países governados sob a égide do que se convencionou chamar Doutrina de
Segurança Nacional146, especialmente os do Cone Sul. Tal prática não ocorria apenas pela
crença individual dos executores em sua eficácia, mas porque era uma instituição interna ao
Estado, subvertendo o objeto essencial deste, que é o resguardo “das liberdades individuais e a
promoção do bem comum”. A tortura passa a ser “parte integrante do sistema repressivo 249
montado pelo Estado, a fim de sufocar os direitos e as liberdades de seus opositores”
(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p. 11). Faz “parte da estratégia de manutenção do
poder”(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p. 11), e sua “eficácia e rapidez” é o pré-
requisito básico para que se utilize esse método nas investigações sobre supostos crimes
cometidos contra a segurança nacional.

144
Disponível na internet: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-
apoio/legislacao/tortura/convencao_onu.pdf . Acesso: 02/01/2013.
145
Disponível na internet: http://www.planalto.gov.br/ccivil/Leis/L9455.htm . Acesso: 24/01/2013.

146
A Doutrina de Segurança Nacional foi um conceito desenvolvido após a II Guerra Mundial que tinha como
preceito básico a defesa das fronteiras nacionais contra ataques externos. No final dos anos 1950, passou a ter
outro formato e abarcou, principalmente, o chamado “inimigo interno”. No Brasil, foi desenvolvido e aperfeiçoado
pela Escola Superior de Guerra (ESG) e teve em Golbery do Couto e Silva seu grande ideólogo (Ver MARTINS,
1986). Ao ligar segurança interna com bem-estar social, Golbery afirmava que este último fator poderia (e deveria)
ser sacrificado em favor do primeiro. Isso estaria expresso na “limitação da liberdade, das garantias constitucionais,
dos direitos da pessoa humana” (COIMBRA, 2002, p. 32).
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Capítulo 2 - A Ditadura Civil-Militar em Santa Maria: tortura de um líder ferroviário

A deflagração da “Operação Limpeza” e a suspensão de algumas garantias


constitucionais pelo Ato Institucional nº 1 (AI-1), logo após a consolidação do Golpe Civil-
Militar, possibilitaram que as forças repressivas comandassem uma verdadeira operação de
guerra, tanto na prisão de opositores declarados do novo regime quanto de todo aquele que se
enquadrasse na condição de “suspeito”. À arbitrariedade das prisões seguiram-se as denúncias
da prática de tortura e maus-tratos, sempre negadas pelo governo.

Em Santa Maria147, o longo braço da Ditadura se fez sentir logo nos primeiros dias e
atingiu os principais líderes ferroviários, entre eles Balthazar Mello, pessoa assumida no meio
operário como comunista. Preso no dia 5 de abril de 1964, era tomado como o inimigo número
um dos setores conservadores da cidade. Na época, foi considerado o principal líder operário
no meio ferroviário do Rio Grande do Sul, sendo respeitado pelos adversários, os quais tinham

250
reconhecimento não apenas por sua figura pessoal, mas também pela sua inserção proativa na
entidade maior da categoria, a União dos Ferroviários Gaúchos (UFG)148, esta tratada
pejorativamente por “Soviete”. Tanto o respeitavam (ou o temiam), que foi um dos primeiros a
ser feito prisioneiro em Santa Maria. A ideia que o Gal. Mario Poppe de Figueiredo, à época
comandante da 3ª Divisão de Infantaria do Exército (3ª DI) sediada em Santa Maria, fazia do
líder sindical era a de um subversivo contumaz, uma pessoa que, segundo a sua visão, estaria a
serviço do comunismo internacional, tendo em vista, entre outros fatos, sua trajetória histórica,
pois havia feito, inclusive, cursos de atualização política e sindical na União Soviética.

Existia na Viação Férrea, sem exagero de expressão, um soviete chefiado pelo


ferroviário Baltazar de Mello, do qual se dizia ter feito curso especializado de guerra

147
A cidade de Santa Maria, localizada no centro geográfico do Rio Grande do Sul, era considerada, à época, o
principal polo ferroviário do estado e um dos principais em nível nacional, concentrando uma grande massa de
trabalhadores extremamente politizada, que primava pelo forte sentido de união de classe.
148
A União dos Ferroviários Gaúchos (UFG) foi fundada em 31 de agosto de 1952, em Santa Maria, por
funcionários que, em sua maioria, pertenciam às oficinas da Viação Férrea e que possuíam uma representatividade
muito forte entre a “classe ferroviária”. Com o Golpe de 31 de março, a União ficou proibida de exercer as
atividades principais para as quais havia sido fundada, ou seja, defender os direitos dos trabalhadores, vindo a
encerrar suas atividades em 1965.
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revolucionária na URSS. Este soviete exercia poder discricionário, sem contestação,
sobre os ferroviários. Toda a cidade temia a atuação desses elementos subversivos nos
momentos de crise, acostumados que estavam aos “quebra-quebra”, “fecha-fecha” e
correrias por eles provocadas (FIGUEIREDO, 1970, p. 31).

Logo após a consolidação do Golpe, foi expedida ordem para que as principais
lideranças fossem presas e, entre elas, Balthazar Mello. Graças aos depoimentos de seus
familiares (duas filhas, cujos nomes foram preservados), podemos reconstruir os momentos
dramáticos vividos não apenas pela família, mas por toda a população da cidade. Balthazar
Mello foi preso no dia 5 de abril de 1964, às cinco horas da manhã, na frente de seus familiares,
em sua residência, quando saía para o trabalho.

Anita – A casa ficou sitiada, a gente não podia sair para fora. Tinha militares por todos
os lados e [também] na frente [da residência] (...). Prenderam ele de madrugada na
hora em que estava saindo para o serviço, às cinco horas da manhã. (...). Ele estava
saindo de casa, de manhã. (...) É horrível, horrível. É como tu vês nesses filmes de
guerra. Eles botaram aquelas metralhadoras...

Entrevistador: De tripé...

Anita – De tripé, exatamente. Botaram na frente do nosso portão ali. (...).

Anita – Foi uma coisa bem marcante. A gente ficava dentro de casa e eles não
deixavam nem pegar, por que naquela época a gente tinha leiteiro que trazia leite em 251
casa (...) os militares que pegavam o leite para nós. (...).

Anita – A rua eles trancaram. Era quantidade de militar, eram caminhões militares,
fora os jipes.

Geisa. – Parecia aquela entrada da favela do Alemão [no Rio de Janeiro]. Era mais ou
menos isso.

Anita – Fora os que estavam dentro do nosso pátio, que passavam a noite inteira
caminhando.

Por esse depoimento inicial, se pode observar que a relação feita pelas depoentes da
ação que resultou na prisão de Balthazar mescla a dialogia entre dois tempos: um passado,
representado pela rememoração dos fatos, e outro presente, em que procuram uma correlação
com acontecimentos que se assemelham em muito àqueles momentos tensos vividos no
passado. A comparação com um “filme de guerra” (que será feita em vários momentos da
entrevista) remete ao plano ficcional uma situação inaceitável, que só poderia acontecer com
os “outros”, distante tanto no espaço quanto no tempo: os horrores de uma guerra que, de
repente, são transportados para a realidade e atingem diretamente a vida das pessoas, a qual
será transformada para sempre, por meio desses acontecimentos. A comparação com a
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ocupação da favela do Alemão no Rio de Janeiro, em fins de 2010, apenas justifica a difícil arte
do esquecimento, até porque os sistemas mudam, mas não mudam seus métodos de ataque
àqueles que representam um perigo para o establishment.

Outro ponto importante diz respeito a alguns fatores que comprovam a forma como os
militares agiam, seu modus operandi, que incluía a prisão arbitrária, por meio de operações que
tinham por objetivo, justamente, aterrorizar os familiares e também seus vizinhos e conhecidos,
pois as ruas e acessos principais à residência eram fechados e tomados, literalmente, de assalto
pelas tropas. Em uma clara violação do direito básico do cidadão de ir e vir, também era comum
a figura da “prisão domiciliar”, que se impunha à família.

Logo após o golpe militar, uma vasta campanha de busca e detenção foi desencadeada
em todo o país. O Exército, a Marinha e a Aeronáutica foram mobilizados, segundo
técnicas predeterminadas de contra-ofensiva, para levar a efeito operações em larga
escala de “varredura com pente-fino”. Ruas inteiras eram bloqueadas e cada casa era
submetida à busca para detenção de pessoas cujos nomes constavam de listas
previamente preparadas. O objetivo era “varrer” todos os que estiveram ligados ao
governo anterior, a partidos políticos considerados comunistas ou altamente
infiltrados por comunistas e a movimentos sociais do período anterior a 1964
(MOREIRA ALVES, 1984, p. 59).
252
As residências eram violadas em busca, principalmente, de armamentos bélicos que,
segundo os militares, seriam provenientes dos países comunistas. A vizinhança sofria junto,
pois, dada a criminalização já em andamento, todos os que compartilhavam do círculo mais
próximo do acusado eram também criminosos e subversivos em potencial, mesmo que a
maioria fosse totalmente alheia às questões políticas.

Anita – Depois disso, eles entraram dentro de casa, entraram e reviraram toda a casa.
O pai tinha um armário grande assim. (...). O pai sempre caçou perdiz desde guri e
naquela época o pai...

Entrevistador. – Tinha arma em casa...

Anita – O pai tinha arma em casa (...). Eles tiraram, um sargento tirou o casaco, botou
no chão, botou as armas todas assim no chão e encheram de cartucho que o pai
carregava nas caixinhas, tinha todas as caixinhas organizadas e eles tiraram
fotografias e botaram no jornal: ‘Um forte armamento russo preso dentro da casa do
Balthazar Mello’. Depois o pai viu, pois a gente levou lá na prisão pro pai e o pai disse
assim: “Mas se eu tivesse armamento russo, vocês [os militares] não entravam na
minha casa!”.

Balthazar Mello ingressou na Viação Férrea do Rio Grande do Sul no ano de 1941. Em
1946, foi promovido à conferente e eleito secretário do Movimento Unificador dos Ferroviários
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(MUF), entidade classista que antecedeu à UFG. Foi demitido em 1947, após participar e liderar
uma greve, tendo ficado sete meses afastado da empresa, retornando posteriormente, amparado
por uma lei de anistia. Após sua volta, permaneceu até 1964 na então RFFSA (Rede Ferroviária
Federal Sociedade Anônima), quando foi preso pela Ditadura que se iniciava e, novamente,
excluído dos quadros funcionais da Rede. Em 1979, com a Lei da Anistia, conseguiu ser
aposentado. Ideologicamente, foi definido pelos familiares como comunista convicto, mas
como membro de uma coletividade e representante dos interesses desta, lutava pela categoria,
o que era a característica principal do movimento ferroviário brasileiro no século passado.

As prisões se sucederam em um período de três anos, entre 1964 e 1967. Uma das
características básicas dos regimes ditatoriais, em geral, e dos métodos de tortura, em especial,
é a de que essa prática não se refere apenas à tortura física e, de forma particular, àquele
indivíduo que está sendo perseguido, mas atinge também o aspecto psicológico e envolve toda
a família e amigos próximos. O objetivo é espalhar o terror, demonstrar ao suspeito e às pessoas
próximas a ele que o sistema e os órgãos de repressão detêm a propriedade sobre seu corpo.
Daí a ideia de prender e soltar repetidas vezes durante um determinado espaço de tempo, efetuar
prisões “cinematográficas”, de preferência na frente da família e em horários específicos, como
253
almoço ou jantar, sem falar na tortura psicológica a que o sujeito era submetido como forma de
“quebrar” sua resistência.

Anita – No começo foi horrível, a gente ficou assim [dias] sem saber nada, não podia
sair no portão (...). Ele já estava preso. O pai teve preso três anos em 64... foi três
anos. Ele ficava preso uns três, dois, três meses e largavam. Daí dava assim (...), a
gente tava em casa, assim, ele ficou meio abalado psicologicamente porque ele (...)
saiu de lá e olhava assim para as paredes [reproduz gestualmente o olhar parado do
pai, AADB], não conhecia a casa, não conhecia [a gente] (...).

Anita – Largavam e mandavam prender de novo. Estava muito bem e quando via
chegava, entrava dentro de casa e prendia de novo. (...). Às vezes, a gente tava
almoçando, sentada na mesa, eles batiam na porta, a gente abria a porta, era aquele
caminhão enorme; assim e entravam porta adentro assim, e já levavam ele.

As consequências das torturas e da pressão a que o indivíduo era submetido levavam,


muitas vezes, a tentativas de suicídio, como ocorreu nesse caso. As condições subumanas das
prisões também eram um fator preponderante na tortura psicológica e física, à qual tanto o preso
quanto os familiares eram submetidos.
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Martín (2005), em estudo sobre as sequelas da tortura, aponta vários problemas
decorrentes dessa prática aviltante, entre eles, problemas identitários, angústia, ansiedade,
dificuldades de relacionamento social e com a família, transtornos de memória e de atenção,
etc. O autor assinala, ainda, um aumento na taxa de suicídios “entre 16% e 23% maior que na
população normal”, praticado por pessoas que sofreram algum tipo de tortura física ou
psicológica (MARTÍN, 2005, p. 440).

As tentativas de suicídio são lembradas com forte dose de emoção pelos familiares, pois
é evidente que ocorreram devido às sequelas resultantes das torturas e das pressões psicológicas
cometidas durante o período da prisão. Por melhor que tenha sido tratado, o fato de ter sido
retirado do convívio dos seus, de forma ilegal e ultrajante, já é o suficiente para exercer sobre
o indivíduo uma pressão considerável.

Geisa – Não me lembro se quando o “vô” [Balthazar Mello] tentou se matar a segunda
vez ele já tava livre, quando ele tomou veneno.

Anita – Tava, mas foi a primeira vez.

254
Geisa. – Não, a primeira vez ele se degolou, a primeira vez, com a navalha do barbeiro
[na prisão], isto no quartel.

Entrevistador. – A outra vez, veneno, também no quartel?

Geisa – Não, foi na Rede, tomou veneno e se atirou na frente do trem. E aí um


compadre dele bem fraquinho, não sei como é que ele conseguiu tirar... .

A primeira tentativa de suicídio149 aconteceu no dia 29 de dezembro de 1964, e foi assim


noticiada pelo jornal local A Razão:

BALTAZAR ESTÁ FORA DE PERIGO

Ontem às 13 horas, foi distribuída uma nota oficial firmada pelo major Médico Dr.
Rafael Teodorico da Silva, Chefe do Serviço de Saúde do Exército, nesta cidade,
dando conta de que o preso político Sr. Baltazar Melo, havia tentado suicidar-se.
Aduzia a nota que o preso havia sido atendido convenientemente, de imediato, e que
apresentava melhoras, tendo sido operado.

149
A notícia da segunda tentativa não foi localizada, devido ao fato de os familiares não se recordarem
corretamente da data em que ocorreu.
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A nota inicial limitou-se a estes informes.

À tardinha, a redação do jornal comunicou-se com o Hospital Militar da Guarnição e


obteve a informação de que o Sr. Baltazar Melo continuava apresentando melhoras e
que estava fora de perigo (Jornal A Razão, 30/12/1964).

A informação de que não sofreu maus-tratos, nesse período em que esteve preso em
Santa Maria, foi dada pelo próprio Balthazar. No entanto, são muitos os fatores que se somam
à pressão psicológica exercida sobre o sujeito. Ainda que Balthazar negue qualquer relação da
prisão com sua tentativa de suicídio, um exemplo, nesse sentido, é a morte, por maus-tratos e
tortura, de um de seus colegas de Rede, o também líder sindical Onofre Ilha Dorneles150.

BALTAZAR MELLO FAZ PRONUNCIAMENTO SOBRE SUA PRISÃO MILITAR: NOTA

O Comando da 3ª DI e Guarnição de Santa Maria, através de seu serviço de Relações


Públicas divulga para conhecimento da população santamariense [sic], a íntegra da
entrevista concedida pelo Sr. Baltazar Mello à Rádio Santamariense.

É preciso esclarecer que tal entrevista foi motivada em consequência das notícias
transmitidas, como é do conhecimento público nas emissoras de São Paulo – Rio de 255
Janeiro e alguns jornais daquelas mesmas cidades dando ciência de que os presos
políticos de Santa Maria estariam sofrendo espancamentos e coações por parte das
autoridades militares, em consequência das quais teria falecido o Sr. Onofre Ilha
Dorneles e tentado o suicídio, o Sr. Baltazar Mello. (...).

Eis as suas palavras, pronunciadas ao repórter da Rádio Santamariense:

Eu posso informar aos ouvintes desta Rádio que quanto às notícias referentes a
espancamentos, posso afirmar que ONOFRE ILHA DORNELLES não sofreu
espancamento; quanto a mim, posso informar que nunca fui maltratado pelo Exército
desde o momento de minha prisão que ocorreu em 5 de abril, na minha casa. Posso
informar que fui bem tratado pelo Exército até no decorrer do interrogatório; no
decorrer do tempo que estive preso posso informar que muita cousa aprendi – aprendi
muita coisa da vida com os interrogatórios tanto no QG como no Regimento Mallet,

150
Onofre Ilha Dorneles faleceu em 28 de dezembro de 1964, logo após ter sido colocado em liberdade, devido a
complicações no seu estado de saúde. Até há pouco tempo, não havia certeza para a causa de sua morte, mas a
inclusão do seu nome no livro da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos esclarece os reais
motivos do seu falecimento. “De abril a outubro de 1964 esteve preso em vários quartéis de Santa Maria (RS),
dentre os quais o 7º Regimento de Infantaria e Batalhão de Carros de Combate Leves. Como decorrência das
torturas e das condições de prisão, teve sua saúde abalada, sendo libertado em outubro, após pressão dos seus
companheiros de prisão, vindo a morrer na Santa Casa da cidade em 28/12/1964” (BRASIL, 2007, p. 461).
Tentamos vários contatos com os familiares de Onofre, que residem atualmente em Porto Alegre, através das redes
sociais e via correio eletrônico, no intuito de esclarecer melhor o fato, mas não obtivemos retorno dos mesmos.
ISSN: 2525-7501
com o Sr. Maj. Alexandre e os interrogatórios a que fui submetido foram sempre com
dignidade; nunca houve, vamos dizer assim, coação ou espancamento. Posso informar
que também estive quatro meses preso, de abril a fins de julho e durante este período
estive recolhido ao 3º BCCL; naquela Unidade o Exército sempre me tratou bem,
tanto a mim como a minha família. O Sr. Cmt. daquela Unidade, Cel. Ito do Carmo
Guimarães foi para mim e demais presos políticos um grande conselheiro e um
grande, pode-se dizer até um amigo; e também naquela Unidade conquistamos a
admiração; (...). posteriormente, estive um mês e meio em liberdade. Fui preso
novamente em 15 de setembro, recolhido à Cia. de Manutenção de Apoio. (...). Devo
também acrescentar que depois que fui recolhido àquela Unidade, 3º BCCL, aliás,
Cia. de Manutenção e Apoio é que fui acometido de um esgotamento nervoso e
cheguei ao ponto sem maiores... sem saber o que fazia, tentando o suicídio. E, devo
informar que fui muito bem atendido pelo Exército que salvou a minha vida, me
levando para o Hospital Militar e onde me foram dispensados, despendidos todos os
esforços no sentido de que eu não viesse a falecer; (...)” (Jornal A Razão, 31/01/1965,
em caixa-alta no original. Grifos nossos).

O depoimento atesta, além do fato de o tratamento dispensado aos presos políticos em


Santa Maria diferenciar-se, em tese, do que ocorria em outros lugares, o já exposto pelos
familiares de que o tempo de prisão era de alguns meses. Porém, esses meses se intercalavam
entre prisão e liberdade, de forma consecutiva. O último período na prisão, até a data da nota,
estendeu-se de setembro até nove de janeiro, quando Baltazar Mello foi posto em liberdade,
segundo notícia do jornal A Razão, de 12 de janeiro de 1965. 256
RELAXADA PRISÃO PREVENTIVA DOS PRESOS POLÍTICOS

Encontram-se em liberdade desde sábado último os presos políticos que se


encontravam recolhidos à 3ª Cia. de Apoio que são:

Jorge Achutti Mottecy, Balthazar Mello, Arthur Pereira da Silva, Augusto Galmarine
Flores, Francisco Paulo dos Santos Lemes, Guilherme Jardim Nunes e Ervandil da
Rosa Santos.

A decisão foi tomada na manhã de sábado passado, pelo Conselho Permanente de


Justiça, que funcionou sob a presidência do major Danilo do Couto Camino e sob a
orientação jurídica do Dr. Sady Fagundes Ramos, auditor-substituto.

No mesmo dia (sábado), foi expedido alvará de soltura, tendo o mesmo sido
comunicado ao QG da 3ª D.I., que imediatamente mandou pô-los em liberdade.
(Jornal A Razão, 12/01/1965).

No entanto, ainda permanecem certas dúvidas, especialmente por ser outra a versão dos
seus familiares, que apontaram terem existido tortura e pressão psicológica, inclusive como um
dos fatores, se não o maior, para a tentativa de suicídio.
ISSN: 2525-7501
Geisa – Eu acho que [houve] tortura psicológica muito forte... tentou duas vezes o
suicídio.

Anita – A primeira vez foi na prisão, foi lá no 29 [BIB – Batalhão de Infantaria


Blindada]. Era o coronel Ito lá, era bom o coronel Ito, não sei o sobrenome dele. Era
uma pessoa muito boa e lá tinha quinze presos juntos 151.

Se as relações na prisão de Santa Maria eram provavelmente mais humanizadas, o


mesmo não se pode dizer da cidade de Bagé/RS, para onde Balthazar foi transferido
posteriormente. As condições subumanas do cárcere e a tortura psicológica e física somente
fizeram cumprir com o objetivo já citado de aumentar a dor e o sofrimento, não apenas do
recluso, mas também, e principalmente, da família, que, ao envolver-se no clima de terror
patrocinado pelo sistema, via-se impotente na tentativa de resolver aquela questão.

Anita – O pior lugar onde esteve preso foi Bagé. Bagé foi o pior lugar, lá ele ficou
numa cela, ele ficou com 50 quilos, tu olhava e parecia aqueles da Alemanha, lá do
Hitler. Lá ele não foi bem tratado, foi horrível. A gente foi visitá-lo, a gente levou
uma sacola (...). Quando a gente entrou no quartel foi revistada, tinha sacola que eles
nos tiraram, alimentação eles tiraram (...), eles tiraram tudo. Ele tava numa cela
horrível, uma cela assim (...), dormia num colchão no chão. Foi horrível, e a hora que
a gente chegou eles abriram pro pai ir no banheiro e o pai tava magro, sujo e eles
levaram o pai no banheiro daquele jeito e com o pijama que aparecia só a “ossamenta”
[sic] dele assim. Olhava assim e aparecia só os ossos. (...). Ele ficou um bom tempo, 257
quando ele foi no banheiro, ele atado e daquele jeito assim, coisa bem de filme, sabe.
Só a gente vendo assim. A gente saiu de lá arrasada.

Aqui, mais uma vez, encontramos a confusão entre dois tempos, fabulação e
acontecimentos, passado e presente. A ideia de que os acontecimentos parecem se manifestar
apenas no plano ficcional, expressa nas frases “parecia aqueles lá da Alemanha, lá do Hitler” e
“coisa bem de filme”, demonstra uma dificuldade de apreensão da realidade e uma certa
incapacidade de localizar no aqui/agora os acontecimentos. A visão do pai magro e abatido
também contribui para essa relativa “fuga” e não aceitação do que está ocorrendo. As memórias,
como construções sobre o passado, mas elaboradas no presente, permitem essa complexificação
em suas formulações. São construções clivadas por aspectos variados, que dialogam com
elementos coletivos e também individuais do rememorador.

151
Aqui a depoente comete um equívoco, já que, segundo as próprias palavras de Balthazar, o fato ocorreu na 3ª
Cia. de Manutenção e Apoio.
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Esse tipo de humilhação retratado no depoimento também era característico e comum
nessas situações, pois terminava por fragilizar ainda mais as pessoas envolvidas, indicando não
apenas a desumanidade com que eram tratados os presos políticos, mas, principalmente, como
esses fatos atingiam os laços familiares, fragilizando-os. Um exemplo é a situação revelada a
seguir, que ocorreu quando houve a transferência para Bagé:

Anita – E foi quando eles levaram para Bagé, eles levaram de noite, aí fizeram ele
descer do carro em que estavam, fizeram ele descer e disseram: “corre!”. Mandavam
correr, paravam na faixa e mandavam ele correr (...). Diziam: “corre!, corre!” e
apontavam e davam tiro em volta dele, como quem diz: “corre que nós vamos te
apagar!”. E de noite, na faixa, na estrada... .

Falsos fuzilamentos ou tentativas de assassinato, também faziam parte do aparato de


tortura, procurando desestabilizar o máximo possível ao prisioneiro, demonstrando não apenas
para ele, mas para a família em geral, quem estava no comando, ao mesmo tempo em que
escancarava a situação de impotência, de mero objeto do torturado. Além da família, o coletivo
profissional e a população da cidade como um todo eram foco das mensagens latentes e
manifestas desse processo de violência. Muitos desses torturados serviam como exemplos,
numa pedagogia da opressão. 258
Um fator que chamou a atenção nos depoimentos é que, muitas vezes, durante a
rememoração de alguns aspectos negativos, fatos corriqueiros do passado eram introduzidos no
meio da fala, como a lembrança da casa de infância, das pescarias e caçadas com o pai, etc.
Durante a exposição, em várias ocasiões, a fala era interrompida ou entrecortada, melhor
dizendo, por expressões como: “lembra, mana, da nossa casa em Jaguari, tinha dois pisos, era
muito bonita”. Isso também ocorria quando relembravam das atividades em família, o carro, o
álbum de fotografias que foi confiscado pelos agentes, a relação amorosa que o pai tinha com
as filhas, entre outras. Segundo Pietrocolla (1997), essa mistura de sentimentos ou lembranças
é natural e até normal, porque, em momentos tensos como o da rememoração de fatos
extremamente negativos e que mexeram com toda a estrutura familiar para sempre, as imagens
positivas tendem a se sobrepor às negativas, marcadas por momentos de tensão e medo do
futuro.

O isolamento social da família é outro ponto bastante comum nesse período. Devido à
criminalização da sociedade que foi imposta pelos militares desde o início do movimento, todos
ISSN: 2525-7501
aqueles que conviviam no entorno das famílias que possuíam algum membro preso por questões
políticas também corriam o risco de serem presos ou taxados de subversivos. Essa é outra
consequência direta da repressão que pode encaixar-se como uma forma de tortura. Quando
questionada sobre esse problema, Anita, a filha mais jovem, com 13 anos na época, afirmou
que sofreu esse tipo de rejeição, principalmente na escola, onde os colegas evitavam uma maior
proximidade. “Sabiam que eu era filha do Balthazar, então...”.

Mas a tortura psicológica e a destruição da vida familiar atingiam também outro lado.
Quando um cidadão perdia seu emprego ou era demitido por envolvimento em atividades ditas
subversivas, imediatamente ele era colocado em uma “lista negra”, que o impedia de exercer
sua profissão, tendo que, a partir de então, viver de favor na casa de amigos ou parentes ou,
então, viver de “bico”, trabalhando informalmente, muitas vezes, em atividades totalmente
distintas daquelas para as quais ele havia se profissionalizado. No caso de Balthazar Mello,
após 1967, ele trabalhou por vários anos com revenda de carros, tendo, inclusive, aberto uma
empresa nesse ramo de comércio, na cidade de Cacequi, para onde se transferiu após a Anistia.

Foram muitos os operários que tiveram seus direitos políticos cassados, ou que
passaram a ter grandes dificuldades para encontrar emprego, devido ao fato de os seus
259
nomes estarem incluídos nas “listas negras” que as empresas passaram a organizar
com a colaboração da Polícia (IANNI, 1981, p. 69).

José Ricardo Ramalho (RAMALHO, 2001), ao entrevistar operários e militantes


políticos daquela época, que trabalhavam na Fábrica Nacional de Motores (FNM), também
descreve as situações dramáticas que viveram quando da perda do emprego e, pior, quando do
banimento interno que essas pessoas sofreram com relação, principalmente, à sua cidadania e
dignidade pessoal. Eles passaram a ser estrangeiros dentro do seu próprio país.

Depois de 1964 eu passei aqueles anos todos amargurado, sem ajuda de ninguém.
Comi o pão que o diabo amassou. Fui até certo ponto humilhado por alguns
companheiros e também ninguém me ajudou nesse período. Essa é que é a verdade.
Até 1979. A ajuda que eu tive foi de um padre, que não me conhecia antes. Quando
me conheceu eu estava trabalhando escondido (Depoimento reproduzido em
RAMALHO, 2001, p. 126).

Mais adiante, outro depoente ratifica como se apresentava a situação:

O problema maior era esse. Você não conseguia trabalhar. Não sei se você viu lá na
Associação um moreno alto, o Barnabé. Ele tinha sido promovido a torneiro e ele
chegou numa firma, pediu emprego e tudo mais, numa retífica de motores. Deram
emprego a ele de manhã cedo. Quando foi duas horas da tarde, chegaram dois caras
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da FNM. Quinze minutos depois, o cara da firma foi lá e disse: - Você me desculpe,
mas você não pode trabalhar aqui, porque você é da turma do A.J. da FNM. E mandou
o rapaz embora (Depoimento reproduzido em RAMALHO, 2001, p. 126).

Quando um militar ou funcionário público era preso, condenado por subversão, ou tinha
seus direitos políticos cassados, todas as vantagens adquiridas ao longo da carreira eram
suprimidas: pensões, salários, gratificações, auxílios de toda espécie, como auxílio-saúde,
seguros de vida, etc,. e ele era dado, oficialmente, como “morto”. As “viúvas” passavam então
a perceber uma pensão referente àquilo que o “falecido” recebia “em vida”. Essa situação
surreal e quase inacreditável é confirmada pelos familiares de Balthazar Mello e por João
Castro, ex-ferroviário ao ser entrevistado por nós; o percentual é que variava. Segundo as filhas,
era um salário mínimo; enquanto o outro depoente afirmou se tratar entre 40 e 50 por cento do
salário real.

Geisa – Castelo Branco deu a pensão para a vó.... lembra? Tinha aquela pensão pras
mulheres, foi a única coisa [boa] que aquele infeliz fez. Antes [da Anistia] ela [a
esposa] recebia, eu acho, um salário-mínimo... a única coisa boa que o Castelo Branco
fez foi a pensão das “viúvas”... .

Já para o ferroviário aposentado João Castro, que conviveu diariamente com Balthazar
e outros líderes sindicais, o valor era diferente, mas confirma que era pago às mulheres daqueles
260
que haviam sido expurgados da Rede por motivos políticos.

João Castro – Quando eles retornaram, que eles foram assim, readmitidos, que a
maioria deles era funcionário, como te falei, do Estado, então eles retornaram a ser
funcionários do Estado, mas como a maioria já tinha tempo de serviço, então ele foi
aposentado. Aí ele voltou a perceber o salário dele normal como aposentado, porque
enquanto ele tava expurgado quem recebia, eu não recordo lá se era 40 ou 50 por cento
do salário dele, era a esposa; ela recebia aquilo como uma pensão.

Maria Helena Moreira Alves (MOREIRA ALVES, 1984) refere-se apenas aos militares,
mas, como já foi apurado, funcionários públicos também eram atingidos pela lei. Era mais um
caso de banimento interno152, em que a pessoa simplesmente desaparecia oficialmente, o que
trazia sérias consequências para a adaptação à nova realidade.

152
Para melhor esclarecer essa noção de banimento ou “exílio interno”, Enrique Serra Padrós utiliza-se do
neologismo inxílio. Criado pelo sociólogo uruguaio Pérez Pinto, inxílio significa “a expressão do isolamento do
indivíduo que não se reconhece mais onde está, nem naquilo que faz, nem nas relações que mantêm com os demais
indivíduos, que sofre o tempo indefinido e congelado do exilado, mas com a peculiaridade de que a mudança não
está no distanciamento geográfico e cultural, e sim na falta de reconhecimento do seu meio social mais imediato”
PADRÓS, 2006, p. 20).
ISSN: 2525-7501
Por força dos Atos Institucionais, o mecanismo de cassação foi utilizado contra
oficiais do “público interno” como uma circunstância agravante: ao ser punido por
um Ato Institucional ou qualquer de seus respectivos Atos Complementares, um
militar era legalmente declarado “morto”. Isto significava que perdia
automaticamente todas as vantagens adquiridas ao longo da carreira – pensões,
aposentadorias, soldos de promoção, salários de saúde e família, etc. A mulher de um
militar “morto” passaria a receber pensão como “viúva”, capacitando-se às vantagens
normalmente concedidas a viúvas com filhos. Havia, com isso, considerável perda na
renda, pois a pensão de uma viúva é muito menor que o soldo de um oficial de carreira.
Além disso, cassado e afastado de suas funções, o militar encontrava muitas
dificuldades para obter trabalho como civil (MOREIRA ALVES, 1984, p. 65-66).

As consequências de toda essa situação, criada a partir do Golpe Civil-Militar, foram


dramáticas para a sociedade, em geral, e para os ferroviários, em particular. Como vimos ao
longo do artigo, a violência com a qual o regime se voltou contra seus opositores tinha como
objetivo expulsar dos sindicatos e do meio operário as principais lideranças, despolitizando as
instituições e diminuindo ao máximo qualquer tipo de influência do movimento sindical nos
rumos da política nacional. Considerando-se a força histórica de mobilização dos trabalhadores
ferroviários no cenário político local e nacional, pode-se melhor compreender porque atingi-los
foi um fator de eficácia simbólica desse tipo de violência. Tratava-se de enfraquecer, também,
um passado de lutas trabalhistas. 261

CONCLUSÃO

Falar, escrever ou discutir sobre tortura no Brasil durante o período da Ditadura Civil-
Militar é ainda uma tarefa extremamente difícil. De um lado, porque os militares ainda
continuam, passados quase meio século de um processo que custou ao país uma perda imensa
não apenas em vidas, mas também em termos de desenvolvimento econômico e social,
negando-se a fazer a mea culpa tão necessária para que um processo realmente honesto de
reconciliação nacional seja estabelecido. De outro, temos os familiares das vítimas que foram
torturadas, mortas, sequestradas e desaparecidas, que continuam peregrinando pelos órgãos
burocráticos do Estado, em uma luta quase inglória não apenas por reparação financeira, mas,
principalmente, por justiça e dignidade.
ISSN: 2525-7501
Vimos como a tortura e a violência manifestada em suas múltiplas formas foi uma
prática legitimada pelo Estado brasileiro, ainda presente em seus aparelhos executores da ordem
(ADORNO, 1999). É uma cultura da violência que foi introduzida ainda no período colonial e
que atravessou os séculos, modificando-se apenas o grupo ao qual é destinada: escravos, índios,
pobres, trabalhadores, estudantes, subversivos e, hoje em dia, dependentes químicos e membros
de movimentos sociais, entre tantos outros não hegemônicos e hierarquicamente
desqualificados. Tudo sob nosso olhar complacente e indiferente, acostumados que estamos a
uma violência que se banaliza e termina por se tornar “norma de conduta e ao mesmo tempo de
valor” (DEJOURS, 2005, p. 110).

Apesar de toda a violência que a família sofreu durante todos aqueles anos, não existe
mágoa ou ressentimento (KONSTAN, 2004), apenas o sentimento de injustiça, da qual não
apenas o personagem principal de nosso estudo foi vítima, mas também toda a sua família e as
pessoas mais próximas a ele. Preso e torturado, tentou o suicídio duas vezes, sofreu transtornos
psíquicos, teve sua residência invadida e pilhada, perdeu amigos, sua família sofreu o
isolamento social que lhes foi imposto pelo estigma de ser filha/esposa de comunista, mas
superou tudo isso e seguiu adiante. A impunidade presente no trato jurídico brasileiro incomoda
262
e machuca, fazendo constantemente do passado uma ferida aberta nas trajetórias familiares dos
torturados (ADORNO; PASINATO, 2010). Trata-se de uma tortura que extrapola os limites
espaço/temporais do acontecido. Ela acompanha as famílias.

Para Sartre (1959, p. 25, prefácio), “a tortura é este ódio erigido em sistema, que cria
seus próprios instrumentos”. Certamente, ainda há muito a ser investigado para a atualização
da memória desses tempos difíceis, não apenas para a cidade de Santa Maria, mas,
principalmente, para todos aqueles que militaram nos movimentos sociais, principalmente no
meio ferroviário. O que este trabalho procurou apresentar apenas adentra a superfície desse
imenso manancial de conhecimento e pesquisa a ser realizado continuamente. São experiências
humanas à espera de serem conhecidas e ouvidas com dignidade e respeito.

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265
ISSN: 2525-7501
FAVELA REPRESENTADA NA IMPRENSA CARIOCA: UMA FRONTEIRA
DENTRO DO URBANO?*153

Leticia Sabina Wermeier Krilow**154

RESUMO

O presente trabalho objetiva analisar a forma como a imprensa carioca, através dos jornais
Correio da Manhã e Última Hora, representou as áreas habitacionais chamadas favelas durante
o Segundo Governo Vargas (1951-1954). Em 1950, o Brasil está em meio a um grande processo
de transformação, com a consolidação do processo de industrialização e a transição
demográfica do rural para o urbano. Período em que ocorreu um crescimento descontrolado das
áreas habitacionais chamadas de favelas, sendo um dos elementos propulsores o forte êxodo
rural. Em menos de duas décadas, a população carioca iria dobrar, com um afluxo intenso e
impactante de populações nordestinas e mineiras, em sua maior parte de cor negra e parda.
Mudança que não iria passar despercebida pelos grandes jornais, que notificaram essa enorme
ampliação das áreas de habitação precária em detrimento das áreas mais “nobres da cidade”.
Desta forma, a ampliação das zonas habitacionais chamadas de favelas passa a ser percebida
como uma verdadeira expansão da fronteira que separa a Cidade Maravilhosa das reformas de
Pereira Passos – urbanizada, higienizada, europeizada - de um mundo negro, mestiço, afro-
266
brasileiro, em suma, “não civilizado”, bárbaro até. Assim, pergunta-se: como os grandes jornais
representaram esse processo? Houve confluência de opiniões entre os diferentes jornais? Quais
propostas foram sugeridas para se lidar com a questão?

Palavras-chave: Favela; Imprensa; Fronteira.

INTRODUÇÃO

Na década de 1950, o Brasil está em meio a uma fase de grandes transformações, com
acelerado processo de industrialização e urbanização. Segundo o economista norte-americano
Werner Baer, durante esta década ocorre a consolidação do processo de industrialização do
país, ou seja, se completou a passagem do sistema agroexportador para o industrial (BAER,

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Mestranda na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, bolsista CNPq, e-mail:
leticia.krilow@acad.pucrs.br.
ISSN: 2525-7501
1996)155. Entretanto, tal mudança ocorreu baseada no forte intervencionismo estatal, sendo o
projeto industrializante de Vargas fundamental nesse processo, “a partir de uma campanha que
propunha continuar os esforços de criação de uma infraestrutura para o desenvolvimento
econômico” (LEOPOLDI, 2000, p.31). Dessa forma as cidades deixam de ser apenas polos
administrativos e comerciais para se constituírem “o locus da atividade produtiva” (PATARRA,
1986, p.260).

Ligado ao processo de acelerada industrialização, tivemos a intensificação da


urbanização, que segundo Singer (1987), ocorreu de forma desordenada. As informações do
IBEG156 revelam que, nos anos 1940, o Brasil estava dividido entre 30.826.243 (74,75%)
habitantes considerados como rurais e 10.410.072 (25,24%) como urbanos; porém, em 1960,
esses números já seriam respectivamente de 38.767.423 (55,32%) e de 31.303.034 (44,77%) e,
em meados dos anos 60, os residentes nas cidades seriam a maioria da população brasileira.

Um fator importante para esta urbanização acelerada foi a influência do crescente êxodo
rural. Chegando, no período compreendido entre 1950-1960, a “ser responsável por 17,4% do
crescimento populacional das cidades” (ALVES, SOUZA e RENNER, 2001, p.81). Entretanto, 267
diferentemente dos países ditos desenvolvidos, onde a população que migra do campo para a
cidade consegue ser absorvida, em sua grande maioria, pela indústria, nos países
subdesenvolvidos, essa capacidade de absorção é diminuta, em decorrência da própria
dimensão reduzida da indústria (FURTADO, 2003, p.12), mas também, pela falta de instrução
desses migrantes, de conhecimento sobre o manejo das tecnologias empregadas nas fábricas.
Fazendo com que parte dessa população se dirija para os setores de serviço, gerando a
hipertrofia do setor terciário, para setores informais da economia, ou mesmo ficando
desempregados (MORAES, 2011). Por seu turno, com nível de renda baixo, sem condições de
arcar com moradias em lugares com infraestrutura adequada, nem como pagar o transporte nas
localidades distantes onde existe melhor suporte infra estrutural, essa população egressa do

155
Singer (1974) salienta, que para além da mudança estrutural de agroexportador para um país industrial, houve
uma mudança na participação dos diversos setores na economia devido à intensificação do processo de substituição
de importações. “De um modo geral a participação dos 5 ramos mais importantes que produzem bens de consumo,
cai de 47,3% em 1949 para 34,9% em 1959, ao passo que a participação dos 6 ramos mais importantes que
produzem bens de produção sobe de 34,9% em 1949 para 42,7% em 1959” (SINGER, 1974, p.59).
156
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
ISSN: 2525-7501
campo acaba se instalando nas favelas, em sua grande maioria localizada próximas do trabalho
(ABREU, 1987, p.106).

Nessas condições, não é difícil imaginar que muitas consequências relacionadas a este
processo de acelerada industrialização e urbanização não foram somente positivas, o que
colocou muitas vezes em xeque tal projeto. Sendo um dos fatores mais impactantes o aumento
das áreas de habitação precárias chamadas favelas.

Capítulo I - Ampliação das favelas

Neide L. Patarra (2003) destaca que o desenvolvimento econômico territorialmente


concentrado nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro levou ao aumento expressivo da
migração interna com destino a estas regiões, gerando o incremento populacional no meio
urbano (PATARRA, 2003). Este foi muito impactante, principalmente nas grandes cidades,
como foi o caso do Rio de Janeiro.

Entretanto, esse aumento populacional estimulado pelas migrações, principalmente do


campo para a cidade, gerou, entre outras consequências, uma crise habitacional, que aliada aos 268
fatores acima mencionados, fez como que muitos indivíduos tornassem as favelas a solução
para o seu problema habitacional (ABREU, 2014, p.424), ampliando as já existentes, ou criando
novas. Fator bem ilustrado pelo recenseamento das favelas de 1950, quando apenas 38,6% da
população favelada era do Distrito Federal157. Essa situação, segundo Botega (2008), foi
agravada pela lógica utilizada pelo Estado frente às políticas urbanas158, que, desde o início da
República, privilegiaram o embelezamento das grandes cidades, o que era “extremamente
incompatível com as necessidades das classes populares, gerando uma sociedade urbana
excludente e uma estrutura de cidade fortemente segregada” (BOTEGA, 2008, p.13).

157
27,5% do estado do Rio de Janeiro; 16,5% de Minas Gerais; 7,1% do Espírito Santo; 8,4% dos 9 estados do
Nordeste (IBGE. As Favelas do Distrito Federal e o Censo demográfico de 1950/ Documentos censitários, série C
– número 9. Rio de Janeiro, 1953).
158
Botega, em sua análise histórica da realidade urbana brasileira, observada do ponto de vista das políticas urbanas
adotadas, demonstra que, desde a adoção da política do encilhamento, a lógica de subordinar a política urbana e
habitacional aos interesses da reprodução das relações capitalistas de produção tem orientado a ação do Estado
(BOTEGA, 2008, p.13).
ISSN: 2525-7501
Na década de 1950, ficam cada vez mais visíveis as diferenças numéricas entre as
moradias populares e as das classes mais abastadas. É quando os grupos populares passaram a
fazer parte da modelação do espaço urbano de uma forma mais significativa, o que pode ser
observado no mapa abaixo (mapa 1) sobre a distribuição das favelas em 1948/1950. Neste
mapa, fica nítido como essa áreas de habitação precárias estão próximas das áreas tidas como
as mais valorizadas do Rio de Janeiro, isto é, na Zona Sul, próximas à Lagoa Rodrigo de Freitas
e à praia de Copacabana. Segundo Maurício Abreu, a Zona Sul e a Tijuca registram um
acréscimo de 51 a 100%, no número de favelas, entre 1950 e 1960. Neste mesmo período, a
população favelada, passou de 169.305 para 335.063, o que significa um crescimento de 98%
(ABREU, p.125 e 126). Isso sinaliza um aumento proporcionalmente superior das áreas de
habitação precária em detrimento das demais áreas habitacionais do Distrito Federal. Logo, este
processo não passou despercebido pela elite carioca, que presenciava a emergência de uma nova
morfologia urbana, de novas formas de sociabilidade, ligadas a uma população até então
marginalizada destes processos.

Mapa 1 – Município do Rio de Janeiro: distribuição das favelas em 1948/1950


269

Fonte: CAMPOS, 2012, p. 75.


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Diante deste cenário, pode-se supor que a elite estava apreensiva com a possibilidade
de que as iniciativas públicas e privadas não pudessem mais conduzir a morfologia urbana com
base nos mesmos ideais higienistas e de embelezamento, vigentes nas décadas anteriores,
resinificando o espaço urbano. O que torna as favelas foco de interesse e discussão pelo poder
público, intelectuais, partidos políticos e os grandes jornais.

Considerando a imprensa não apenas como inserida no Campo de Produção Ideológica,


mas com posição privilegiada neste campo, que é o lugar por excelência onde as tomadas de
posição são criadas/difundidas (BOURDIEU, 2015), a análise da forma como o Correio da
Manhã e a Última Hora representaram esse espaço urbano mostra-se fundamental, pois, ao
trabalhamos na perspectiva chartiniana de que as representações são uma forma de
hierarquização e valorização do mundo, com isso construtoras deste mundo, estas podem
legitimar ou deslegitimar ações públicas.

Capítulo II - A favela representada

Quando analisamos as representações sobre a favela elaborada pelo jornal Correio da 270
Manhã e pelo jornal Última Hora, observamos muitas convergências e algumas diferenças
importantes.

Inicialmente, é perceptível uma visão fortemente negativa acerca da favela. No Correio


da Manhã encontramos uma ênfase na construção dessa áreas urbanas como uma “terra sem
leis”, que por serem “infestadas de indivíduos desclassificados, que vivem à margem da lei, são
verdadeiras escolas de crimes, onde facadas, navalhadas e tiros não faltam”159. A perspectiva
de a favela ser uma “escola do crime” aparece nos dois jornais. Embora, esse elemento seja
mais sensível no CM, encontramos a mesma posição em uma crônica na Última Hora, onde
lemos que nas favelas faltam escolas públicas, “mas em compensação sobram vagas e estão
abertas as escolas do vício e do crime”160.

159
“Duzentos mil brasileiros entregues à própria sorte...”, Correio da Manhã, 25 de novembro de 1951, 4º caderno,
p.1.
160
Coisas da vida e da morte: Há vagas nas escolas do crime... - Crônica assinada por L. C. Última Hora, 09 de
março de 1954, p.6.
ISSN: 2525-7501
Disso decorre, uma grande preocupação com as crianças que vivem nesse mundo, pois,
segundo a mesma crônica da Última Hora, é na promiscuidade das ruas e na “miséria das
favelas infectas onde milhares de menores abandonados, de meninos sem escolas aprendem
todas as lições da degradação moral e da ruina física”.161 O CM mostra a mesma preocupação,
pois “é nesse ambiente que vão crescendo os pequenos brasileiros, moradores das favelas.
Dessa forma, no futuro, nada poderão produzir de útil para si e para a pátria” 162. Em
consequência, este periódico conclui que “dentro de mais alguns anos a cidade estará cheia de
homens desajustados, formados que foram na escola das favelas, onde aprenderam tudo, menos
a forma de serem úteis à sociedade”163.

O Correio da Manhã constrói a favela como um mundo particular assinalando que


existe “uma atmosfera de favela”164. Sendo que, “uma vez instalada, a favela se desenvolve
com características próprias”165, podendo-se trazer alguns de seus aspectos como a “ausência
de policiamento”, “falta de higiene e assistência médico-social”166, sem “sanitários e água
encanada”167. Ainda, descreve essas áreas habitacionais como “grandes aglomerações de
párias”, como “sinônimo de promiscuidade, doença, miséria física e moral na mais larga
acepção do vocábulo”, e o morro como “muito próximo do inferno, do crime e da perversão”168.
271
Encontramos o reforço da ideia de que a favela é o outro dentro de nós, quando em uma coluna
assinada no CM tem-se a afirmativa de que

A “civilização” brasileira, se existe, existe nas cidade grandes do litoral e estas já tem
no seu ventre a morte, sediada nas favelas e nos mocambos. [...] As favelas e
mocambos – por estarem dentro das cidade, perto dos recursos maiores de dinheiro e
técnica – são um problema que deveríamos forçosamente resolver. Se não

161
Coisas da vida e da morte: Há vagas nas escolas do crime... - Crônica assinada por L. C. Última Hora, 09 de
março de 1954, p.6.
162
“Duzentos mil brasileiros entregues à própria sorte...”, Correio da Manhã, 25 de novembro de 1951, 4º caderno,
p.1
163
“Surge mais uma favela na Zona Sul”, Correio da Manhã, 18 de novembro de 1951, 4º caderno, p.2.
164
“Um conjunto residencial Modelo”, Correio da Manhã, 08 de abril de 1951, 4º caderno, p.1.
165
“A favela, o ‘estilo da miséria’”, Correio da Manhã, 01 de junho de 1952, 4º caderno p.4.
166
“Cresce a favela da paria do Pinto”, Correio da Manhã, 30 de maio de 1954, 4º caderno, p.1.
167
“Favela no Jardim de Allah”, Correio da Manhã, 13 de fevereiro de 1952, p.3.
168
“Os Párias”, reportagem de Sérgio D. T. Macedo, Correio da Manhã, 08 de maio de 1953, p.6.
ISSN: 2525-7501
conseguirmos resolver nem esse em breve não precisaremos nem de um grupo de
bárbaros: desabaremos sozinhos.

Perspectiva reforçada por uma coluna não assinada, também no Correio da Manhã,
onde podemos ler que a favela é o resultado de um tríplice desajustamento (econômico, social
e cultural). O desajustamento social mantém à margem “grande parcela das massas brasileiras,
que vive uma vida a parte, de estilo afro-brasileiro, que tem apenas remotas ligações com os
padrões ocidentais das parcelas ativas de nossa população”169; por seu turno, o desajustamento
cultural que é resultado da concentração da população negra, que causou um “revigoramento
das tradições africanas, divorciando o mundo espiritual desses agrupamentos dos valores que
integram a vida do Brasil ocidental’170.

Nestes trechos, fica nítida a representação da favela como um mundo à parte,


divorciado, não apenas do Rio de Janeiro, mas de todo o Brasil, por estar imersa em tradições
e valores africanos, o que não são compatíveis com a “Cidade Maravilhosa” que se construiu
na Reforma Pereira Passos. Demonstrando um grande contraste, de uma lado as praias, as
belezas do Rio de Janeiro, “as edificações que ainda constituem uma compensadora expressão
estética da capital do país” e, de outro lado – ou sobre eles – “superabundam as favelas, com
272
aglomerações que impressionam pela promiscuidade e pelo total desconforto”171.

Por seu turno, a Última Hora também contribui para formação de uma visão negativa
sobre este fenômeno, assinalando que “é uma subvida a que se leva nas favelas. Contra a
higiene, contra a educação da infância, contra todo e qualquer progresso”172, Auxiliando na
construção da favela como algo distinto, isto é, como “um mundo à parte, intenso, vivo,
humano, mas proibido para doutor”. Entretanto, mesmo, que permaneça o elemento negativo
na representação da Última Hora, este periódico insere algo positivo como o “intenso”, “vivo”
e “humano”. Podendo, indicar que essa atmosfera da favela não seja apenas negativa, como
prega o CM.

169
“As favelas”, Correio da Manhã, 29 de fevereiro de 1952, 1º caderno, página 4.
170
“As favelas”, Correio da Manhã, 29 de fevereiro de 1952, 1º caderno, página 4.
171
“Sistema que falhou”, Correio da Manhã, 12 de julho de 1953, p.4 .
172
“Defender os favelados”, Última Hora, 05 de julho de 1951, p.4.
ISSN: 2525-7501
A possibilidade de ver a favela não apenas como algo negativo é recorrente na Última
Hora, como, por exemplo, em uma reportagem intitulada “Uma favela bem comportada, outra,
barulhenta”173, onde descreve a existência de dois tipos de favela em um mesmo bairro, uma
que

Se caracteriza pela ausência de rebuliços e de barulho. [...] Uma favela com moradores
razoavelmente bem comportados. Quase nunca há briga. E exceto aos sábados,
quando as festanças se prolongam mais um pouco, o comum é todos estarem
tranquilamente dormindo às 22 horas (Uma favela bem comportada, outra,
barulhenta” Última Hora, 23 de abril de 1953, 2ª seção, p.1.)

Em outra reportagem, também afirma que a “favela do Vitém (...) é uma favela diferente
das demais, de ruas largas e casas telhadas”, onde “há muita gente boa, mas há, também os
maus elementos”. Este trecho é relevante, pois, leva-nos a outro ponto que é preciso atentar,
isto é, para a forma como os dois periódicos caracterizam os moradores das favelas, ambos
concordam que existem, nessas áreas habitacionais, bons e maus elementos, trabalhadores e
“vagabundos”, honestos e “malandros”. Para o Correio da Manhã, entre os malandros também
existem trabalhadores, indicando, porém, que os primeiros são numericamente superiores aos
segundos, ao ponto de este periódico não afirmar a sua incompreensão de “como famílias 273
modestas e trabalhadoras que residem no local posam tolerar o ambiente” 174
. De modo bem
diferente, o Última Hora assinala que a maioria dos moradores das favelas “constitui no grosso
de nossos trabalhadores”, indicando, uma proporção inversa à postulada pelo CM. A Última
Hora ainda chama a atenção para o fato de que muitos problemas encontrados nas favelas
também são perceptíveis em outros lugares da cidade pois, “vamos encontrar a cidade cheia de
buracos”, isso não é um “mérito” das favelas apenas175.

Quando nos deparamos com as soluções apontadas, encontramos novamente


convergências e divergências nas abordagens. A principal convergência é na constatação de

173
“Uma favela bem comportada, outra, barulhenta” Última Hora, 23 de abril de 1953, p.1 2ª seção.
174
“Cresce a favela da paria do Pinto”, Correio da Manhã, 30 de maio de 1954, 4º caderno, p.1.
175
Coluna da Cidade: Volte a Feira para a praça José de Alencar, coluna assinada por Gilberto Guimarães,
Última hora, 25 de novembro de 1953, 2ª seção, p.1.
ISSN: 2525-7501
que a questão das favelas precisa ser resolvida imediatamente e, para isso, é necessário a união
de toda a população, do Estado176 e principalmente do governo municipal177.

A Última Hora apresenta basicamente duas propostas, se possível deve-se sanear as


favelas, para melhorar a condição de quem lá vive, argumentando que o incentivo à habitação
serviria para manter a mão de obra concentrada nas cidades, ao mesmo tempo em que impediria
a revolta da população pobre contra o governo ou o aumento da “marginalidade”, fatores
perturbadores da ordem pública.178 Outra proposta é a construção de parques proletários,
próximos das áreas de trabalho.

Já o Correio da Manhã defende a proposta da criação de uma favela única, “com o


terreno distribuído em pequenos lotes residenciais, com água e esgotos, escolas e postos de
assistência médica e social, policiamento e facilidades de transporte e de materiais” 179. Deve
ser localizada nos arredores da cidade, ou, na Linha Auxiliar da Central do Brasil, assim quem
“desejassem construir barracos que fossem para o local indicado pela Prefeitura”180. Ou seja,
há uma clara perspectiva de limitar o local onde a população pobre pode ou não residir. Sendo
necessária a eliminação das favelas para que se preserve a beleza do Rio de Janeiro “que em 274
tempos idos até mereceu o pomposo título de Cidade Maravilhosa” 181
.

CONCLUSÃO

É nítida que os aspectos negativos sobre a favela ganham maior espaço, principalmente,
no jornal Correio da Manhã. Neste periódico, há uma verdadeira construção da favela como o

176
“Defender os favelados”, Última Hora, 05 de julho de 1951, p.4.
177
“Favelado esse pobre esquecido...”, Correio da Manhã, 30 de setembro de 1951, 3º caderno, p.3.

178
Cabe a Prefeitura – e já cabe há muito tempo, sem que seus administradores o compreendam – fazer o censo
dos morros, alagadiços e outros terrenos, onde se instalam as favelas e diligenciar um plano de construções
suscetível de melhorar as condições de moradia desse povo (“Relento”, Última Hora, 09 de janeiro de 1952,
segunda seção, página 1).
179
“Surgem Novas favelas em todos os cantos da cidade”, Correio da Manhã, 29 de agosto de 1954, p.1.
180
“Surgem novas favelas no perímetro urbano da cidade”, Correio da Manhã, 31 de janeiro de 1954, p. 5,
reportagem.
181
“O Mato invade o canal do Leblon”, Correio da Manhã, 27 de dezembro de 1953, p.1.
ISSN: 2525-7501
“outro” dentro da Cidade concebida como Maravilhosa. Principalmente, é a fronteira entre o
civilizado e o não civilizado, entre a cultura afro-brasileira e a cultura ocidental. Caracterizando
uma violência simbólica (BOURDIEU, 2015). Essa posição do Correio da Manhã pode
também expressar certo receio quanto às intensas transformações advindas do projeto de
industrialização acelerada. Perceptíveis no tom de melancolia ao exporem que o Rio de Janeiro
já não é mais a Cidade Maravilhosa dos tempos idos.

Já a Última Hora busca mostrar não apenas o lado negativo da favela, demonstrando
que a maioria de seus moradores são trabalhadores, assim como muitos dos problemas
encontrados nas favelas são perceptíveis em outro lugares do Rio de Janeiro. Esse
posicionamento pode ser melhor compreendido, se levarmos em consideração o fato deste
periódico se colocar como “porta-voz” dos menos favorecidos, com um defensor dos interesses
da classe trabalhadora. Indicando um maior alinhamento com o projeto de industrialização
acelerada, ressaltando, também, a sua vinculação ao Governo de Getúlio Vargas.

275
Na questão das propostas de solução para as favelas, o Correio da Manhã, ao sugerir a
construção de uma favela única, retirada do centro da cidade e dos locais mais nobres, parece
optar por soluções segregacionistas, hierárquica da cidade, com espaços definidos, delimitados
para cada grupo. Construindo um bairro apenas para os favelados, onde possam encontrar tudo
que precisam, para que assim, saiam deste local apenas para trabalhar e depois retornem. As
hierarquias são mantidas sem violência física e com o consentimento dos “dominados”, neste
caso, as hierarquias nitidamente demarcadas, com a construção de prédios padrão. Mesmo que
nesta favela única os seus moradores possam dispor de policiamento (mais para vigiar os
favelados do que para protege-los), escolas, assistência médica e social, eles estão marcados
socialmente pelo simples fato de residirem neste local, sofrendo uma violência simbólica.

Por seu turno a Última Hora abre um espaço maior para a possibilidade de saneamento
e urbanização das favelas e, caso isso não seja possível, a criação de parques proletários, mas
estes devem ser próximos dos locais de trabalho dos seus moradores. O que sugere uma
preocupação maior em integrar socialmente as camadas mais pobres à sociedade e uma visão
mais positivas sobre as mudanças que estavam se processando no período.
ISSN: 2525-7501

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277
ISSN: 2525-7501
“AS POTENCIALIDADE AGRÍCOLAS DE PORTO NOVO”: ANÁLISE DE UM
PROJETO DESENVOLVIMENTISTA NO EXTREMO OESTE CATARINENSE
Douglas Orestes Franzen182

RESUMO

O texto objetiva analisar o Relatório de Desenvolvimento Econômico de Itapiranga, produzido


em 1962 através do engajamento da comunidade local e sob financiamento da instituição alemã
Misereor. Pretende-se estabelecer relações conjecturais desse movimento que se caracterizou
desenvolvimentista num cenário de modernização e integração da economia brasileira,
principalmente em regiões agrícolas. Defende-se a ideia de que esse movimento, mesmo que
de cunho local, esteve atrelado a uma conjuntura mais abrangente, fortalecendo a ideia de que
os espaços regionais se vinculam e são condicionados por lógicas históricas conjunturais.
Palavras-chave: Itapiranga, desenvolvimentismo, Misereor, economia.

INTRODUÇÃO 278
Com o processo de modernização e integração da economia brasileira intensificado a
partir da década de 1950 e a onda do desenvolvimentismo como baluarte para um idealizado
progresso brasileiro, proliferaram-se pelo interior do Brasil projetos que tinham como
finalidade a integração da economia local ao contexto brasileiro. Estimulados por medidas
econômicas governamentais, representados por inúmeros planos de metas, esse espírito
desenvolvimentista se cristalizou sob variadas manifestações e realidades locais no território
brasileiro. Esse contexto foi marcante no setor da agricultura, quando o processo de urbanização
e de produção de bens de consumo, exigiu do setor uma nova dinâmica diante dos projetos de
crescimento da economia brasileira.

182
Doutorando em História, Universidade de Passo Fundo.

E-mail: douglas_franzen@yahoo.com.br
ISSN: 2525-7501
Nesse sentido, o objetivo do texto é de compreender sob quais nuances essa proposta de
se concretizou no município de Itapiranga, diante do cenário de emancipação do município de
1954 e do desejo de algumas lideranças locais em ressignificar os padrões econômicos locais
diante de uma constatação de “atraso” diante de um cenário mais abrangente. Nesse sentido, a
análise buscará compreender a elaboração do Relatório de Desenvolvimento Econômico de
1962, documento norteador que estabeleceu “deficiências” e “possibilidades” locais diante do
cenário da modernização e do ideal de progresso.

Tendo como fonte de análise o referido documento, buscaremos tecer cadeias de


relações buscando entender a realidade local como uma manifestação regional inserida num
contexto mais amplo, de uma perspectiva brasileira diante de um projeto de alinhamento
econômico que respeitou também uma lógica internacional. Para consolidar essa perspectiva,
inserimos na discussão a instituição de cooperação Misereor, da Alemanha Ocidental, como
financiadora do projeto de elaboração do Relatório de Desenvolvimento Econômico de 1962
em Itapiranga. Para tanto, o projeto de desenvolvimento desencadeado localmente na década
de 1960 transnacionalizou-se, alcançando proporções que foram muito além de um interesse
local, consolidando a ideia de que o regional se insere numa perspectiva mais abrangente. A
279
região, por mais isolada ou única, ela está atrelada a uma conjuntura maior, à qual está
condicionada e da mesma forma, condiciona.

As fontes de pesquisa para a constituição da análise são o Relatório de Desenvolvimento


Econômico de 1962, disponível no arquivo da Sicoob Creditapiranga em Itapiranga, e o projeto
de cooperação financiado pela Misereor, disponível no arquivo da instituição em Aachen na
Alemanha.

Capítulo I - Uma leitura do local

A região de Itapiranga, localizada no extremo oeste catarinense, foi palco de um


processo de colonização iniciado em 1926, sob coordenação da Sociedade União Popular,
conhecida como Volksverein. O município emancipou-se de Chapecó em 1954, englobando a
região que atualmente corresponde aos municípios de Itapiranga, São João do Oeste e
Tunápolis, bem como, algumas faixas de terra dos municípios de Iporã do Oeste e Mondaí.
ISSN: 2525-7501
Idealizada para ser uma colonização de caráter étnica e confessional, pois um dos
requisitos para a compra de lotes coloniais era a ascendência alemã e católica, a colônia
alicerçou-se sob a formação de propriedades agrícolas de pequeno porte, que se desenvolveram
sob os alicerces da mão de obra familiar e da produção de cultivos para a comercialização e
consumo do grupo familiar, reproduzindo sujeitos que historicamente no Sul do Brasil se
convencionou denominar de colonos. A atividade comercial esteve vinculada à produção
agrícola, seja pela comercialização dos produtos agrícolas, seja pelo fornecimento de matéria-
prima necessária à atividade, bem como, de produtos de consumo humano. O modesto
desenvolvimento da atividade industrial e fabril esteve nas três primeiras décadas limitada
basicamente à atividade madeireira e também à fabricação de produtos de utilidade humana ou
necessários para prática agrícola, como o beneficiamento do tabaco, por exemplo.

As práticas agrícolas eram determinadas basicamente pelos ensinamentos que se


acumulavam e eram transmitidos pelas gerações. A propriedade era um espaço de recriação de
saberes, adequações espaço-temporais que caracterizaram uma atividade condicionada pelas
estruturas naturais. Nesse sentido, diversas práticas se perpetuavam como técnicas comuns,
como a queimada da roça, por exemplo, atividade antiga que Roche (1969) já relacionava à
280
escassez do potencial produtivo das colônias agrícolas do Sul do Brasil.

Esse contexto atravessa por uma nova lógica a partir da década de 1950, quando se
instaura a demanda conhecida como “revolução verde” e a modernização das cadeia produtiva
agrícola.

Capítulo I - Comissão municipal de desenvolvimento econômico

Diante do contexto do município de Itapiranga na década de 1950, lideranças locais


iniciaram discussões para buscar alternativas econômicas e sociais com a intenção de promover
o que se imaginava como o desenvolvimento ideal. Nesse sentido, como destaca Hahn (2005),
formou-se a Comissão Municipal de Desenvolvimento Econômico de Itapiranga – Comude.

A Comissão Municipal de Desenvolvimento Econômico foi uma entidade


representativa dos diversos segmentos da sociedade: indústria, comércio, agricultura e
administração pública. A Comude nasceu basicamente como consequência do Plano
Econômico idealizado pela Administração Municipal de Itapiranga no ano de 1960. Era função
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da referida comissão, decidir quais os setores estratégicos ou deficientes que necessitavam de
investimentos e, acima de tudo, estimular a sociedade regional a participar ativamente da
execução dos projetos que seriam postos em prática.

A Comude era uma entidade representativa que discutia os projetos de desenvolvimento


para Itapiranga. Em parceria com a Caixa Rural União Popular, uma cooperativa de crédito
local, iniciou o contato com a Misereor visando a arrecadação de recursos para a execução de
projetos de desenvolvimento. Uma das personalidades que pode ser considerada importante
nesse processo de buscar recursos junto à Misereor é Heinrich Lenz, imigrante alemão que
fixou residência em Itapiranga no ano de 1933. A Misereor, percebendo a demanda por projetos
de Itapiranga, indicou uma empresa de assessoria no Brasil para efetuar um estudo das
deficiências e dos potenciais econômicos da região. Esse estudo foi financiado pela Misereor e
resultou no Relatório de Desenvolvimento Econômico de Itapiranga de 1962.

A título de ilustração, o surgimento da instituição Misereor em 1959 na Alemanha


Ocidental deve ser entendido num esforço de entidades governamentais e não governamentais
e da sociedade civil europeia na tentativa de construir um processo de paz e fortalecimento das 281
ações conjuntas visando à promoção da justiça social depois da Segunda Guerra Mundial.
Fortalecidos principalmente pela Declaração Universal dos Direitos Humanos das
Organizações das Nações Unidas, os movimentos de cooperação humanitária proliferaram-se
por diversos países da Europa, muitos vinculados a instituições religiosas cristãs. Obviamente
que o contexto da ação social católica e do Concílio Vaticano II também são fatores a
considerar, mas para efeitos de co-relação com o tema, compreenderemos a particularidade da
consolidação e da expansão da Misereor na década de 1960.

Capítulo II - A consolidação e expansão da Misereor

No ano de 1959 é fundada oficialmente a instituição Misereor, com sede na cidade de


Aachen. A partir de então iniciam os projetos coordenados pela instituição, que, mesmo
vinculada à Igreja Católica Alemã, possui suas próprias diretrizes e linhas de ação. Percebemos
na fala do Cardeal Josef Frings acima citadas, de que mesmo sendo a entidade de caráter
humanitário e de caridade, a instituição Misereor nasceu num contexto conturbado de
geopolítica da Guerra Fria, e por isso, a sua perspectiva e discurso não eram algo de
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extraordinário. Era a mentalidade que se construiu no momento e o discurso de fazer frente à
expansão da União Soviética nos países do Terceiro Mundo era uma diretriz consentida pelo
Vaticano.

Em sua tese de doutoramento, Toscer (1997) aponta que a Misereor surgiu sob os
princípios de ajuda humanitária do povo e da Igreja alemã para combater a fome e a miséria
nas regiões subdesenvolvidas do mundo. No entanto, conforme a autora parece paradoxal que
esse movimento tenha surgido na década de 1950, momento em que a Igreja alemã
preocupacava-se seriamente com quesões internas do catolicismo, com a miséria social e
religiosa dos fiéis, com a reconstrução de uma ordem social cristã e a situação dos católicos em
zonas de ocupação soviética.

A partir da fundação da Misereor em 1959, a instituição passou a organizar campanhas


anuais de mobilização por doações, bem como receber e gerenciar os recursos financeiros para
ações de mobilização humanitária no mundo subdesenvolvido. As regiões de ação da instituição
direcionaram-se ao que se denominou de Terceiro Mundo, ou países subdesenvolvidos, a
destacar: América Latina e Caribe, África e Ásia. 282
Quando foi fundada em 1959, a Misereor surgiu basicamente sob os alicerces da Igreja
Católica Alemã idealizada pela Confederação dos Bispos daquele país e era sustentada com
recursos provindos basicamente de coletas e doações de pessoas da sociedade civil. No entanto,
no ano 1961 com a criação do Bundesministerium für wirtschafliche Zusammenarbeit und
Entwicklung, ou Ministério para Cooperação Econômica e Desenvolvimento do Alemanha
Ocidental, a entidade passou a receber recursos financeiros do Estado como entidade promotora
de cooperação e desenvolvimento. Essa lógica se tornou um instrumental de política externa da
Alemanha Ocidental (ERB, 2003).

Capítulo III - Relatório de desenvolvimento econômico de Itapiranga

A Misereor indicou para a Comude a assessoria de uma empresa que realizava estudos
técnicos para projetos de cooperação no Brasil. A Agro e Hidro Técnica S.A., com sede em São
Paulo, era vinculada à empresa alemã Agrar und Hydrotechnik, que em parceria com a Misereor
desenvolvia projetos de fomento econômico e social em diversos países. Gabriel Keglewich,
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representante da empresa no Brasil, esteve em Itapiranga e iniciou os preparativos para o
recenseamento e também coordenou a execução do projeto junto à Misereor.

O projeto, financiado pela Misereor no valor de 25.000 DM, foi intitulado de “Pesquisa
acerca das potencialidades agrícolas da Colônia Porto Novo”, numa referência ao antigo nome
da colonização. O projeto pode ser acessado na íntegra no arquivo da Misereor pelo código
233-058/003. O recurso foi depositado na conta da Caixa Rural União Popular de Itapiranga.

O Relatório de Desenvolvimento Econômico ajudou a dar alguns nortes para futuros


investimentos para a época, além de ser um documento oficial utilizado para pleitear recursos
de órgãos governamentais e de instituições de fomento. Esse levantamento socioeconômico
representou um estudo abrangente, englobando desde dados geográficos até a identificação
pormenorizada da situação econômica local.

Em artigo publicado num jornal de Itapiranga, Gabriel Keglewich, então professor da


Faculdade de Economia de São Leopoldo e representante da Empresa Agro e Hidro Técnica,

283
argumentava de que era necessário sensibilizar as instituições de fomento da Alemanha com
dados estatísticos e argumentos de que era preciso melhorar as condições de vida da população
de Itapiranga. Conforme Keglewich, “necessitamos comprovar com dados e argumentos
sólidos a viabilidade destes projetos. Todos os habitantes da antiga Colônia de Porto Novo estão
incluídos neste plano.” (KEGLEWICH, 1962, p. 1)

Aprovado o recurso, a empresa iniciou os preparativos para a execução do


recenseamento para a coleta dos dados com a finalidade de elaborar o relatório. Para tanto, foi
mobilizada uma equipe local para visitar as famílias da cidade e do interior, a fim de aplicar um
questionário. O questionário consta do projeto no arquivo da Misereor e inicia com instruções
gerais de como deve ser feita a abordagem junto às famílias. A instrução nos é muito
elucidativa:

A minuciosa análise científica de todas as respostas mostrará o rumo que deverá ser
tomado pela Colônia para alcançar uma melhoria das condições de vida através de um
aumento da produtividade racional e dentro do grupo social determinado. Assim cada
membro da colônia poderá alcançar a finalidade temporária da sua vida: uma vida
mais humana. (PROJETO 233-058/003, Arquivo da Misereor, Aachen)
ISSN: 2525-7501
Constata-se que há um apelo para que se construa em Itapiranga, um ideal de
desenvolvimentismo diante das possibilidades econômicas da região. Esse discurso é
característico do período. No questionário engendram-se a concepção de desenvolvimento
juntamente com a ideia da dignidade humana, que se tornaria possível através da racionalização
das forças produtivas. A meta da elevação cultural é extremamente simbólica, ou seja, com a
proposta de desenvolvimento idealizada para Itapiranga propunha-se uma perspectiva de
mudança dos valores e das tradições até então vigentes na comunidade local.

Junto às orientações de aplicação do questionário, consta também que é importante


ressaltar junto à população, que era necessária a colaboração de todos para o alcance dos
objetivos de desenvolvimento de Itapiranga. Cabe questionar o fato de que os objetivos de
desenvolvimento já estavam claros para algumas lideranças locais, ou seja, era uma ação que
remeteria a um objetivo já previamente estipulado. O projeto de desenvolvimento de Itapiranga
estava evidente para a Comude e para lideranças políticas e empresariais. Era necessário apenas
achar meios de sensibilizar e engajar a população nesse processo.

Concluído o Relatório de Desenvolvimento Econômico de Itapiranga, ele foi enviado 284


para a Misereor em ofício datado do dia 19 de Setembro de 1962, como pode ser visto no
arquivo da instituição junto ao dossiê do projeto. Junto ao relatório, citam-se decisões tomadas
pela Comude de Itapiranga, a destacar:

Fundação de uma Cooperativa de Leite; fundação de um frigorífico; criação de uma


escola de formação profissional com cursos de açougueiro e fabricação de derivados de leite,
sob a coordenação do Instituto São Canísio (Jesuítas); realização de uma campanha para
combate a parasitas e pestes diversas que afetam a população e os animais; Formas de conseguir
recursos para custeio e ampliação do Hospital; Contatar o Banco do Brasil acerca da
possibilidade de oferecer pequenos empréstimos para os agricultores.

Para compreender melhor as conclusões do documento, analisaremos alguns pontos que


sintetizam o ideal de desenvolvimentismo do projeto.

Capítulo IV - “Situação, descrição e levantamento socioeconômico”


ISSN: 2525-7501
O Relatório de Desenvolvimento Econômico apresenta inicialmente uma radiografia
detalhada das condições de Itapiranga no ano de 1962, englobando aspectos como orografia,
hidrografia, elementos meteorológicos, clima e revestimento florístico. O documento pode ser
consultado no arquivo da Sicoob Creditapiranga, em Itapiranga (SC)

Destacamos um fragmento do documento que aborda o aspecto do relevo. Conforme o


Relatório, em Itapiranga o solo pode ser classificado em categorias, a destacar os vales, as
ladeiras com declives suaves, as ladeiras com declives acentuados, inclinações íngremes e
rochosas. O estudo aponta que, apesar da atividade agrícola ser desenvolvida em maioria nas
duas primeiras categorias, nos últimos, “lamentavelmente”, a região estaria iniciando devido
ao aumento da população e a vontade de aumentar a produção o cultivo nos espaços com
declives acentuados. Essa conclusão nos é muito pertinente, pois comprova que no final da
década de 1950 a agricultura estava sendo praticada de forma extensiva em Itapiranga.

Conforme a distribuição por sexo, no ano de 1962 a população era composta de 54,1%
de homens e 45,9% de mulheres. O texto aponta um desequilíbrio na faixa etária de 14 a 21
anos, onde haveria 12% a mais de homens. O estudo conclui que a razão deste fenômeno 285
encontrar-se-ia na maior fuga das moças das atividades agrícolas, mais penosas nas suas formas
primitivas para o físico e o espírito feminino.

Em relação à questão da formação educacional, apesar dos altos índices de educação


básica, o estudo destaca a baixa porcentagem (1,7%) da população que teria uma formação
profissional sendo um dos maiores males da população. “Este fato alarmante comprova a
estagnação, se não o retrocesso em comparação com a formação cultural dos chefes de família.
Falta completamente o ensino profissional.” (AGRO E HIDRO TÉCNICA, 1962, p. 7). Com
base nesta conclusão, inicia na década de 1960 a discussão quanto à necessidade da construção
de uma escola técnica profissionalizante na área da agropecuária, aspecto que abordaremos
mais adiante.

No quesito acesso à informação, o estudo aponta que grande parcela da população teria
acesso a livros em suas residências, principalmente de cunho religioso. Destacamos o quesito
da leitura de jornais e revistas, sendo que 51,9% da população leria jornais ao menos cinco
vezes por mês. Este dado é muito interessante para o nosso estudo, pois os jornais locais foram
ISSN: 2525-7501
utilizados para levar ao agricultor, através de artigos e reportagens, o discurso da necessidade
da modernização das atividades agrícolas.

A distribuição da população quanto à atividade econômica aponta que a predominância


é do setor da agricultura, englobando 82,78% da população economicamente independente.
Estranhamente o estudo conclui que essa realidade é caracterizante, e reuniria todos os
problemas de ordem econômica-social da região. Ou seja, com base nos apontamentos do
estudo, as condições de vida e trabalho da maioria da população supostamente agrícola seriam
as causas do atraso social da população.

Dos 17,2% das demais atividades econômicas, destaca-se o magistério representando


no período 3,6% da população economicamente ativa. Conforme o estudo é ressaltante a quase
ausência da atividade industrial, apontando também que 44% da população era
economicamente ativa, o que refletiria a laboriosidade da população. O estudo aponta também
a ocupação de menores de idade nas unidades agrícolas e a falta de previdência social.

286
Em relação à distribuição da população, o estudo aponta que 25,3% da população vivia
no espaço urbano (cidade de Itapiranga e vilas de São João, Sede Capela e Tunas), e 76,7% da
população vivia no espaço rural.

Para finalizar o aspecto socioeconômico, o estudo concluiu que a maioria da população


de Itapiranga vivia da agricultura em pequena escala com condições precárias, “praticamente
isoladas da cultura e da civilização, constituindo um grupo consciente do seu alvo social, porém
com a capacidade econômica atual esgotada. Os conhecimentos e métodos aplicados na
exploração da terra são desatualizados, irracionais e faltaria uma orientação.” (AGRO E
HIDRO TÉCNICA, 1962, p. 15)

Nesse sentido, ganharam força os Clubes Agrícolas e os Clubes de Senhoras, que


discutiam entre seus integrantes hábitos de higiene e limpeza, boa alimentação, cultivo de hortas
e campanhas educativas. Esses núcleos geraram a partir de 1971 os Clubes 4-S, estimulados
pela Acaresc.

Segundo as conclusões discriminadas no Relatório, a formação de novos capitais era


altamente prejudicada devido à inflação e ao alto custo da produção. Detectado o aumento das
ISSN: 2525-7501
necessidades humanas, o crescimento da população, a lei da divisão do trabalho, o estudo
aponta que não se permite mais a concentração das forças produtivas exclusivamente no setor
primário.

A densidade demográfica da população de Itapiranga no período era maior do que a do


Estado de Santa Catarina e três vezes superior a do país. Conforme o Relatório, o crescimento
populacional exigiria providências imediatas para a alocação da juventude excedente, que não
encontra mais a sua existência assegurada dentro do município.

Capítulo V - “Melhoramentos com objetivo econômico”

Como complemento do estudo apresentado pelo Relatório de Desenvolvimento


Econômico, baseado nas potencialidades e deficiências da região, são elencadas propostas de
execução de projetos visando o desenvolvimento socioeconômico de Itapiranga. São
discriminadas diversas possibilidades e áreas de investimento, como na educação e na saúde
pública, no setor de transportes, das comunicações e da energia elétrica. No entanto, o que nos

287
interessa para o momento são as propostas de melhoramento com objetivos econômicos
apresentados pelo estudo.

Como a atividade agrícola era desempenhada pela grande maioria da população no


período, o estudo elencou algumas necessidades para o desenvolvimento do setor. Um dos
aspectos destacados é o número de propriedades agrícolas por superfície. Conforme o Relatório,
das 1.824 propriedades rurais cadastradas, 46,6% eram minifúndios com uma área menor do
que 20 hectares. Acerca disso, o texto chama a atenção para o fato de que no primeiro ano de
colonização de Porto Novo (Itapiranga), o menor lote vendido era de 24 hectares. “É assustador
o desmembramento, resultando com 46,6% das propriedades em minifúndios com menos de 20
hectares.” (AGRO E HIDRO TÉCNICA, 1962, p. 28)

Essa conclusão reforça nossa tese de que na década de 1950 a colonização estava
enfrentando uma grave crise fundiária, afetando diretamente o sistema de herança familiar.
Com a diminuição da superfície da maioria das propriedades, fruto do processo de divisão
histórica entre os filhos que alcançavam a maturidade, menos jovens passaram a ter acesso a
uma propriedade de superfície necessária para desenvolver a agricultura.
ISSN: 2525-7501
Outro aspecto abordado pelo Relatório reflete o baixo rendimento mensal das famílias
dos agricultores no início da década de 1960. Conforme os dados apresentados, o rendimento
médio per capita era de Cr$ 5.268,00 mensais. Este rendimento era considerado muito baixo
para o período se comparado ao salário mínimo brasileiro, que no ano de 1961 era de Cr$
13.440,00.

Em relação à atividade agrícola constatamos que as principais culturas praticadas em


Itapiranga no início da década de 1960 era o milho, mandioca, soja, feijão e fumo. As
deficiências apontadas pelo Relatório em relação a essas atividades são o baixo rendimento por
área, inexistência de sementes de variedades selecionadas e garantidas, técnicas culturais
rudimentares, doenças e pragas, ausência de medidas de conservação do solo e do combate à
erosão, falta do tratamento do adubo orgânico e ausência de uma rotação racional de culturas.

Em respeito à criação de animais, o estudo destaca a suinocultura, com nítido caráter de


monocultura, participando com 73% da renda bruta no ano de 1961. Como maiores deficiências
da suinocultura o estudo destaca a baixa reprodução das porcas, alta relação de varões, criação
de raças para produção de banha considerando a raça Duroc-Jersey não mais adequada com 288
respeito à atual procura de carne, falta de melhoramentos zootécnicos, alimentação irracional,
precário estado de higiene e sanidade, alto grau de verminose com constante perigo de
contaminação de crianças e até adultos, localização e tamanho errados dos chiqueiros, grande
mortalidade dos leitões.

Ou seja, o Relatório de Desenvolvimento Econômico de Itapiranga considerou que a


prática da suinocultura no ano de 1961 estava extremamente atrasada e pouco rentável. Essa
realidade se estendia, conforme o estudo, também a outras atividades como a bovinocultura de
leite, apontando para algumas características gerais da agricultura no período, como a absoluta
falta de orientação ao ruralista, desconhecimento das técnicas e métodos modernos, falta de
conhecimento de diagnose, prevenção e tratamento das doenças mais comuns dos animais.

É preciso destacar que nas décadas de 1950 e 1960 era muito intensa a discussão quanto
à produtividade da agricultura brasileira. As políticas econômicas para esse setor e as
instituições de fomento vislumbravam a necessidade de o Brasil adotar um modelo produtivo
baseado em outras realidades econômicas de países com outros níveis de desenvolvimento.
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Então, se o Relatório de Desenvolvimento Econômico de Itapiranga apontava um determinado
nível de atraso da agricultura na região, temos de ter o cuidado de não legitimar um discursos
que buscava implantar um novo modelo econômico não só na região, mas no Brasil.

Como entender esse discurso de atraso da agricultura regional? De que forma ele se
justifica numa região que possuía uma cooperativa de crédito, no caso a Caixa Rural União
Popular, fundada em recursos advindos de economias financeiras dos colonos, um capital social
sólido e pujante capaz de incrementar a instalação de empreendimentos associativos e
produtivos? A produção do discurso e do imaginário sobre as condições de vida obviamente
são produzidos com intencionalidades. A constituição da realidade se dá com base na
perspectiva que se formata e que é condicionada pelas relações de poder que se cristalizam na
sociedade.

A concepção de desenvolvimento e atraso precisa ser compreendida na dialética do


discurso e sua relação com o poder que se estabelece nas relações sociais. Conforme Foucault,
“o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só
como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma 289
saber, produz discurso.” (FOUCAULT, 1979, p. 8) Nesse sentido, é preciso conceber a noção
de desenvolvimento e atraso na intencionalidade do poder, que se estabeleceu no país de uma
maneira geral com os ideais desenvolvimentistas da década de 1950 e que se enraizou na região
de Itapiranga na concepção de atraso da agricultura no quesito trabalho, produtividade e
lucratividade.

Capítulo VI - “Melhor aproveitamento da produção primária: industrializações”

Como solução das deficiências detectadas na agricultura regional, principalmente no


que tange à geração de renda, o estudo aponta a necessidade de se implantar o processo de
industrialização da matéria prima produzida na região. Conforme o Relatório, a estrutura
econômica e social, a situação geográfica e de transportes, as condições climáticas e a
ISSN: 2525-7501
conjuntura dos mercados nacionais e internacionais predestinam a evolução regional da
agropecuária em duas atividades principais: a suinocultura e os laticínios.

Quanto ao potencial da suinocultura, o Relatório sugere a fundação em Itapiranga de


um matadouro-frigorífico. A conclusão é baseada na matéria prima produzida em larga escala
na região. Conforme o estudo, no ano de 1961 o município de Itapiranga produziu 43.866
porcos para abate, dos quais foram exportados 3.294.120 kg de carne. A exportação de banha
de fraca qualidade foi da ordem de 61.333 kg. Com base nesses dados e na disponibilidade de
matéria prima na região próxima a Itapiranga, o estudo previu um abate diário de 250 porcos,
o que por si só, já justificaria a instalação de um frigorífico. Conforme o Relatório, haveria a
necessidade do melhoramento genético e da implantação de novas raças, com uma disposição
mais moderna e mais aceita pelo mercado consumidor dos centros urbanos.

Foi sugerida a substituição de suínos que produzem muita banha, por raças mais
produtoras de carne, como a Duroc-Jersey, cruzada com Landrasse e Berkshire. Essa conclusão
é fundamentada na potencial capacidade do frigorífico em produzir produtos de maior valor de
comercialização, como o presunto, defumados e outros embutidos. 290
Para a acumulação do capital necessário para a efetivação da obra, o Relatório sugere a
criação de uma cooperativa de suinocultores. No entanto, como o próprio estudo enfatiza,
devido à baixa renda dos agricultores, as poupanças da classe não seriam capazes de satisfazer
as exigências com respeito ao investimento necessário. Nesse caso, a fim de mobilizar todos os
recursos disponíveis na região, foi sugerida uma sociedade por ações. Esse aspecto merece
nossa atenção, pois o frigorífico foi fundado no sistema de sociedade anônima, o que facilitaria
a venda de ações, pois cada investidor dispunha de diferentes somas de capital para investir no
empreendimento (FRANZEN, 2014).

As características previstas para a construção do futuro frigorífico englobavam diversos


fatores, como a localização, o tratamento da água, tanto da potável como a residual. A projeção
era de iniciar o abate de 300 suínos por dia, podendo ser ampliado para 400 suínos/dia. Previu-
se a questão da logística como o estoque em câmaras frigoríficas para 30 dias e estacionamento
com rampas de carga e descarga dos caminhões.
ISSN: 2525-7501
Os investimentos previstos para a instalação de um frigorífico em Itapiranga foram
baseados nos cálculos feitos levando em consideração toda a estrutura necessária para a
primeira etapa do projeto, que seria de colocar o frigorífico em funcionamento com um abate
diário de 300 suínos. A previsão de recursos necessários para a obra foi estipulada em Cr$
130.000.000,00 ou U$ 361.000,00, não somados o terreno para a construção, sistema de
transportes e meios de comunicação.

O Relatório de Desenvolvimento Econômico de Itapiranga também apontou a


possibilidade do aprimoramento da cadeia produtiva do leite. A região, pela tradição agrícola,
possuía considerável produção leiteira, que tinha como função principal o fornecimento de leite
para a alimentação e a fabricação artesanal de seus derivados para o consumo familiar. A
potencialização da produção leiteira numa perspectiva industrial foi um projeto que se tornou
realidade diante da possibilidade do apoio da Misereor.

O Relatório de Desenvolvimento Econômico de Itapiranga apontou um grande potencial


da bacia leiteira no município. Conforme o levantamento foram contabilizadas 4.205 vacas, as
quais produziam para venda 191.235 litros de leite ao mês, 30.795 quilos de nata, 7.737 quilos 291
de manteiga e queijo. Conforme o relatório, a média era de 0,54 litros de leite por vaca/dia,
produção muito baixa, reflexo do rebanho de genética “ruim” e do manejo considerado
inadequado.

O levantamento sugeriu que fosse empreendida uma cooperativa de laticínios visando à


industrialização do leite e o aumento da produção através de projetos de melhoramento genético
e de manejo. Para a instalação da indústria, o estudo estipulou investimento de
aproximadamente Cr$ 40.000.000,00 ou U$ 111.000,00, valor captado dos futuros associados
e de possíveis financiamentos junto à instituições de instituições de fomento, como a própria
Misereor e o Banco do Brasil. A Cooperativa de Laticínios Itapiranga foi inaugurada
oficialmente no dia 04 de agosto de 1962 e sua produção iniciou somente em 1966.

De uma maneira geral, a cooperativa de leite e a fábrica de laticínios foram decisivas na


formatação de um novo padrão produtivo na atividade leiteira local. Novas técnicas de manejo,
melhoramento genético, industrialização da matéria prima, reestruturação das propriedades e
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inserção dos produtores no mercado leiteiro podem ser alguns dos aspectos decorrentes desse
processo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendemos que os processos de modernização e integração da economia brasileira no


pós Segunda Guerra representaram uma tentativa de constituir novos padrões produtivos e
sociais no Brasil. Essa conjuntura se manifestou de diversas formas nos mais variados
segmentos, mas foi singular em regiões agrícolas.

Os discursos e as práticas fluíram para a concretização de um projeto


desenvolvimentista, confundido muito vezes com um ideal de progresso, que afetou as cadeias
produtivas e as relações socioeconômicas locais. Essa realidade expressou-se evidentemente
em Itapiranga. Diante de uma demanda constituída localmente, diversos segmentos participam
ativamente de um projeto de desenvolvimento local, que apontou novos paradigmas para a
região.

Com o apoio financeiro da instituição alemã Misereor, que obviamente se inseria 292
também numa lógica geopolítica, foram concretizadas propostas que visavam instaurar um
novo modelo econômico e produtivo local. A elaboração do Relatório de Desenvolvimento
Econômico de 1962 transformou-se num instrumental para angariar recursos financeiros e
parceiros para efetivar os projetos que tinham como proposta inserir e alinhar Itapiranga ao
modelo brasileiro de modernização da agricultura.

A partir desse Relatório, a comunidade local engendrou-se em buscar financiamentos


para a execução dos projetos desenvolvimentistas nas décadas de 1960 e 1970. O frigorífico foi
posto em prática com base no capital social local, a escola de formação agrícola foi financiada
com recursos da mesma Misereor e com recursos do governo estadual de Santa Catarina, a
cooperativa de leite foi financiada também com recursos da Misereor, da existência do capital
financeiro local e de financiamentos junto a órgãos governamentais brasileiros.

Portanto, a consecução do Relatório de Desenvolvimento Econômico de 1962 e do


estudo de viabilidades econômicas locais abriu perspectivas de modernização das relações
produtivas regionais, inserindo Itapiranga no cenário econômico catarinense e brasileiro através
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de um processo de alinhamento aos novos padrões do que se idealizou para o desenvolvimento
do país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Arquivo da Misereor, Aachen, Alemanha. Projetos consultados: 233-058/003.

AGRO E HIDRO TÉCNICA. Relatório de Desenvolvimento Econômico de Itapiranga.


(Mimeo), 1962.

CONSTRUINDO o frigorífico. Jornal Itapiranga em Marcha, Itapiranga, 31 de Agosto de


1962, nº 76, p. 1.

ELIAS, Norbert. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX.
Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1997.

ERB, Scott. German foreign policy: navigating a new era. Lynne Rienner: Boulder, 2003.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

FRANZEN, Douglas Orestes. Frigorífico Safrita de Itapiranga: um projeto de


293
desenvolvimento regional no extremo oeste catarinense. Letra&Vida: Porto Alegre, 2014.

GOULARTI FILHO, Alcides. A formação econômica de Santa Catarina. Florianópolis:


Cidade Futura, 2002.

HAHN, Mauro. Capital Social e estratégias de desenvolvimento econômico na microrregião


de Itapiranga (SC). 121 p. Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em
Agrossistemas da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2005

KEGLEWICH, Gabriel. Itapiranga vive uma encruzilhada histórica. Jornal Itapiranga em


Marcha, Itapiranga, 30 de Novembro de 1962, nº 82, p. 01.

PEREIRA, José Maria Dias. Uma breve história do desenvolvimentismo no Brasil. In:
Cadernos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, v. 6, n. 9, p.121-141, jul.-dez. 2011.

TOSCER, Sylvie. Les catholiques allemands à la conquête du developpement. Paris, França,


L´Harmattan, 1997.
ISSN: 2525-7501
WERLE, André Carlos. A revista de tropas do exército católico alemão: Congresso Católicos
na Alemanha e no Sul do Brasil. 218 p., Tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós
Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina, 2006.

294
ISSN: 2525-7501
DIREITO A TERRA E CONDIÇÃO DE TRABALHO NO SUL DO MARANHÃO A
PARTIR DA LIDERANÇA DE MANOEL DA CONCEIÇÃO ¹
183

SILVA, Ronísia Mara Moura ²

RESUMO

A forma como se organizou o espaço maranhense, traz em sua história a presença de forças
desfavoráveis ao seu desenvolvimento de modo pacato. Pois de um lado se tinha o trabalhador
rural, o posseiro, lutando por suas condições de sobrevivência, ou seja, o pequeno proprietário
na figura do lavrador, lutando contra o acréscimo das forças capitalistas, e em contrapartida
tinha os grandes proprietários de terras ligados aos latifúndios e as forças capitalistas do Estado
do Maranhão. Diversos conflitos no estado surgiram principalmente pela posse de terra,
especialmente na região de Pindaré Mirim, no qual havia muitas áreas devolutas e que
começaram a ser ocupadas a partir da década de 1950 por trabalhadores rurais do médio Mearim
e migrantes do Ceará e Piauí, que ao adentrarem no território maranhense foram abrindo novas
fronteiras produtivas, formando povoações e originando municípios. Nesta localidade onde se
tinha matas com grandes plantações de arroz, também se tornou notório às ameaças feitas por
latifundiários a trabalhadores rurais, que se recusava a sair das terras que estavam e que foram 295
ocupadas pelos mesmos. Nesse contexto e período destaca-se o camponês maranhense Manoel
Conceição Santos, na região do Pindaré, que juntamente com outros camponeses, passam a
organizar os trabalhadores rurais daquela região. Mesmo com todas as dificuldades enfrentadas,
inclusive as torturas do exílio, Manoel persistiu na caminhada de despertar nas pessoas a
coragem e garra por melhores condições de vida e trabalho e transformou a cultura da maioria
dos trabalhadores que viam a terra apenas como mercadoria e não como moradia e trabalho. No
Sul do Maranhão, várias ocupações de áreas foram efetivadas com a participação de Manoel,
muitas vezes sofrendo ameaças; mesmo com as dificuldades, seu trabalho ajudou na construção
e organização da luta pela terra no Estado.

Palavras-chave: Conflitos; Manoel; Maranhão.

INTRODUÇÃO

1 Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


2 Graduada em História pela Universidade Estadual do Maranhão. Bolsista pela Fundação de Amparo a Pesquisa
e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA) 2016. Mestranda em História pela
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: ronisia18@hotmail.com.
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O período da Ditadura civil-militar foi o momento da política brasileira em que os
militares governaram o Brasil. Esta época vai de 1964 a 1985 e caracterizou-se pela falta de
democracia, supressão de direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão aos
que eram contra o regime militar. Tais ações expandiram-se pelo Brasil, resultando em
momentos de tensões, tanto na cidade como no campo.

No Estado do Maranhão diversos conflitos surgiram principalmente pela posse de terra,


especialmente na região de Pindaré Mirim, no qual havia muitas áreas devolutas e que
começaram a ser ocupadas a partir da década de 1950 por trabalhadores rurais do médio Mearim
e migrantes do Ceará e Piauí, que ao adentrarem no território maranhense foram abrindo novas
fronteiras produtivas, formando povoações e originando municípios. Nesta localidade onde se
tinha matas com grandes plantações de arroz, também se tornou notório às ameaças feitas por
latifundiários a trabalhadores que se recusavam a sair das terras que estavam e que foram
ocupadas pelos mesmos.

O Maranhão dos anos 60 é uma representação da pobreza, do abandono da população e


descaso por parte das autoridades como também da fome, tornando-se terreno apropriado para 296
os anseios de melhoria, presente nos discursos políticos. Paralelo a esta realidade tem inicio a
expulsão em massa dos camponeses de suas terras, para darem lugar a essas melhorias,
originando principalmente o inchaço populacional urbano.

Dessa forma os projetos idealizados pela política nacional incluiria o estado do


Maranhão, pois foi o período da criação da infraestrutura onde viabilizava a construção de
estradas que beneficiaria os futuros empreendimentos, que seria a mudança da realidade social.

Em 1967, a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) aprovava a


Companhia Industrial de Desenvolvimento Da Amazônia (CIDA), projeto de exploração da
madeira que, por conveniência da empresa, modificou a estrada da cidade de Coquelândia para
a nova cidade de Cidelândia dando acesso ao extremo oeste do Estado.

Para que os interesses fossem concretizados, foi indispensável o uso da legislação,


instituindo-se durante o governo de José Sarney a “Reserva Estadual de Terras”, pelo decreto
3.831, de 6 de dezembro de 1968, e seus órgãos as Delegacias de Terras no interior do estado
ligadas a Secretaria da Agricultura.
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Em 1968, se teve a criação da Delegacia de terras na cidade de Imperatriz (ao sul do
estado) e a lei Estadual de Terras, ambas tornaram-se instrumentos necessários para facilitar a
ocupação dos grandes latifundiários. Em 1969, abriu-se nas matas virgens do Pindaré a estrada
Açailândia-Santa Luzia, região onde se registraram as mais graves chacinas dos trabalhadores
rurais. Dessa forma precisava-se “limpar a área”, e nada melhor para isso do que inventar a
existência de movimentos subversivos. Era permitido “matar sem que fosse considerado
crime”.

Época em que o maranhense foi despojado do seu patrimônio e também momento


em que o Governo criou a Companhia De Colonização Do Nordeste (COLONE) e a Companhia
Maranhense de Colonização (COMARCO), onde serviriam de supostos projetos de
assentamento de trabalhadores.

Mediante este cenário de conflitos os trabalhadores rurais precisavam ter seus direitos
respeitados, como também o próprio direito a terra. Como detalha Franklin (2008):

297
Nessa verdadeira guerra de disputa do espaço territorial e do direito á terra, surgiu o
primeiro sindicato autônomo de trabalhadores rurais do Maranhão, com mais de oito
filiados, a partir de orientação do Movimento de Educação de Base (MEB), órgão
ligado a igreja já pentecostal Assembléia de Deus, de quem eram usadas as casas de
oração para reuniões sindicais, situação incomum que terminou de forma conflituosa
(CONCEIÇÃO apud FRANKLIN, 2008, p.136).

Nesse contexto e período destaca-se o camponês maranhense Manoel Conceição Santos,


na região do Pindaré, juntamente com outros camponeses organizaram os trabalhadores rurais
daquela região, depois Manoel participou de entidades como a Central Única dos Trabalhadores
(CUT), o Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural (CENTRU) e o Partido dos
trabalhadores (PT).

Conceição também participou do curso de formação sindical e cooperativismo


promovido pelo Movimento de Educação de Base – MEB, o que o afastou da igreja pentecostal
e o aproximou – da Igreja católica, interessando-se cada vez mais pelas lutas sociais;
especialmente as lutas do campo (GALANO, 1982).

Revoltados contra a política de baixos preços que atravessadores e comerciantes


impunham a seus produtos, e contra as investidas dos grileiros que tentavam por todos os meios
expulsá-los das terras, Manoel da Conceição juntamente com diversos companheiros,
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começaram a fundar “escolas sindicais” pela região, onde eram debatidas formas de imposição
de preços justos e a resistência aos latifundiários, além da alfabetização dos camponeses.

Foram esses camponeses, suas famílias e descendentes, que até a década 1970 fizeram
do Maranhão o segundo maior produtor nacional de arroz, utilizando as extensas terras
devolutas do oeste e sudoeste do Estado.

De acordo com Manuel da Conceição (1980) o camponês era a força principal, brigava
pela terra até a última gota de sangue. A questão central era estabilizar o camponês na terra,
fazer a reforma agrária e isso dentro dos moldes de reivindicação reformista não era possível.

Conceição (1980) destaca que: Até então, a policia via aqueles grupos armados no
Pindaré – Mirim simplesmente como defesa dos plantios, do preço da produção: o problema
político estava escondido nisso aí. Mas, no momento que a propaganda da Guerra Popular
apareceu, não teve mais jeito. A polícia foi para massacrar mesmo, logo na primeira assembleia
que foi realizada (CONCEIÇÃO, 1980 P. 157).

Fundador do primeiro Sindicato de Trabalhadores Rurais no Maranhão, em Pindaré- 298


Mirim, Manoel da Conceição juntamente com seus companheiros sindicais, lutaram contra o
latifúndio e, sobretudo contra o golpe civil-militar. Neste momento, Manoel como primeiro
presidente do sindicato, ganha visibilidade frente à luta dos trabalhadores no estado, quando
instaurado o regime militar, o mesmo é considerado pelo estado como “perigoso”, sendo
perseguido, preso, torturado, tendo uma perna amputada e mais tarde sendo exilado na Suíça
até a lei da anistia, final da década de setenta.

Quando retornou do exílio ao país, Manoel continuou participando da organização dos


trabalhadores, ao lado de outras lideranças, encabeçou a lista dos fundadores do PT no Brasil,
sendo o filiado de número 3 (três) e ajudou na criação da CUT. Depois, voltou para o Maranhão
em meados da década de oitenta, onde, até hoje ao lado de trabalhadores e trabalhadoras como
também dos companheiros de luta, milita em organização de sindicatos, movimentos sociais,
cooperativas, associações comunitárias e do próprio Partido dos Trabalhadores.

Esta proposta parte da importância de analisar as condições de vida e trabalho do


camponês no Sul do Maranhão durante o período de 1960 a 1980, despertada pela vontade de
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que a comunidade conheça a realidade do trabalhador do campo, como também os conflitos e
tensões vivenciados pelos mesmos, sendo essa uma parte da história do estado do Maranhão.

Capítulo I - Conflitos no território Maranhense


O Estado do Maranhão foi palco de intensos conflitos ganhando bastante intensidade
entre as décadas de 1960 a 1980, estando relacionados em parte ao fator da grilagem e a posse
da terra. Conforme Victor Asselin (2009), um estudioso da questão agrária, a grilagem de terra
não é um fato isolado, correspondendo a um modelo econômico e uma estrutura sociopolítica
estrutural, sendo planejada e estimulada. Numa perspectiva de mesma direção Pedrosa (2012)
destaca que a partir da década de 1960 tiveram inicio os confrontos a partir da pressão da
grilagem pelas terras devolutas do Estado, assim como expropriações forçadas por grandes
empresas (PEDROSA, 2012, p33).
É na região do Pindaré no estado do Maranhão, aonde a violência da expropriação e da
grilagem chegou primeiro. Ali, desde os primeiros anos da década de 1960, os camponeses
faziam resistências ás investidas de grandes latifundiários, “coronéis” da terra e às vezes
também da politica, que se faziam representar através de capangas pistoleiros ou mesmo
instituições do governo, como a polícia.
299
A região do Pindaré é entendida nesse contexto como um dos primeiros locais para a
difusão da expropriação e da violência que se manifestaram com bastante vigor no espaço
agrário maranhense após a segunda metade do século XX. As ações da grilagem e a violência
rapidamente se expandiram no território maranhense demostrando a versão eficaz dos conflitos
manifestados no campo. . “Quando o campo se esvazia, as cidades se enchem. O mundo da
segunda metade do século XX tornou-se urbanizado como jamais fora” (HOBSBAWM, 1995,
p. 288).
Ameaças, invasões de roças e casas, prisões, aliciamento e mortes faziam parte do
método e do processo de intimidação, expropriação dos posseiros maranhenses. Eram essas
ações rotineiras nos anos de 1970 no sudoeste maranhense, principalmente no Alto Pindaré.
Nesse mesmo período intensificaram-se os problemas referentes à terra no estado.
Esses problemas resultaram de múltiplos fatores, inclusive do processo de migração de
nordestinos para o Maranhão que alcançou seu apogeu até os anos de 1960. Paralelo a este
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momento ocorre o desenvolvimento da malha rodoviária que passa a atrair grupos econômicos
que despertam o interesse pela terra como valor de mercado.
Pedrosa (2012) destaca que, “essas regiões recebiam o fluxo migratório de camponeses
expulsos das regiões de colonização antiga e de outros Estados do Nordeste, nas quais se fazia
mais violenta a pressão pelo pagamento da renda e do foro” (PEDROSA, 2012, p.17).
Entretanto, os conflitos de terra no estado se acirraram de fato quando da implantação
da “Lei Sarney de Terras” (Nº 2.979/ 17-07-1969), também chamada de “Lei de Terras do
Sarney”, que respaldava a privatização das terras públicas do Maranhão e incentivava a
expansão de projetos agropecuários e agro-industriais, excluindo famílias rurais do acesso a
terra.
A “Lei de Terras Sarney” objetivou também a transferência de grandes terras a grupos
empresariais do nordeste e Centro-sul do Brasil, como também eram leiloadas terras entre
amigos, sócios e parentes da família Sarney. Surgindo dessa forma uma reinvenção do
latifundiário moderno.
Azevedo; Alencar; Soares (2014) explica que: A questão fundiária maranhense tem
sua origem na forma como se distribui o acesso aos recursos fundiários, estando relacionados 300
a políticas governamentais que vem se desenvolvendo, sendo acentuada com a “Lei Sarney de
Terras” (AZEVEDO; ALENCAR, SOARES, 2014, p.05).
Cabe destacar também que muitos outros compraram posses e títulos para a formação
de fazendas. Alguns, empresários e fazendeiros de outros estados, com recursos próprios;
outros, através de projetos aprovados por instituições financeiras como afirma Franklin (2008):
A fragilidade dos posseiros se dava principalmente porque a quase totalidade dos que
imigraram para o sudoeste maranhense era de camponeses analfabetos ou pessoas de
pouca instrução, sem noção legal de posse ou propriedade; para quem a terra devoluta,
sem produção e sem reclamante, era território de quem nele se atrevesse a derrubar,
queimar, plantar e colher; que tivesse disposição e coragem para a lida da roça.
Documentação de terra não era objeto de sua preocupação (apud FRANKLIN, 2008,
p.135).

É importante pontuar que essa estrutura gera com frequência os conflitos pela posse
de terras no Estado, entre os antigos ocupantes, e os “ditos proprietários”, na maioria das vezes
oriundas do próprio estado ou de outras localidades, aumentando principalmente o índice de
violência.
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Entretanto esses conflitos produziram uma incipiente resistência politica dos
camponeses frente aos conflitos da terra, que passam a se organizar através dos sindicatos dos
trabalhadores rurais como forma de fortalecer o movimento camponês e lutar pelos seus
direitos.
Dentro deste espaço sindical, destacou-se Manoel da Conceição, um camponês
posseiro, teve sua vida marcada pelas expulsões das terras em que morava e juntamente com
um grupo de trabalhadores rurais em defesa dos interesses dos trabalhadores camponeses
fundaram o primeiro sindicato de trabalhadores rurais da história do Maranhão localizado em
Pindaré- Mirim, no qual Manoel da Conceição foi escolhido como primeiro presidente do
sindicato.
A partir deste momento e por sua atuação a frente do sindicato, Manoel da Conceição
passa a ganhar visibilidade dentro do movimento camponês em Pindaré – Mirim e na região,
como também no cenário maranhense, emergindo como símbolo aglutinador para os
camponeses daquela localidade. Nessa região, em que estava localizado o sindicato, o conjunto
de militantes chegou a aglutinar muitos trabalhadores rurais.
Quando se instaurou o golpe militar, só no sindicato de Pindaré “havia multidões de 301
camponeses que incomodavam bastante os fazendeiros da região”, que não se conformavam
com a concentração das terras e suas consequências. Logo após o golpe militar o governo
manda fechar os sindicatos colocando-o na clandestinidade. Através da resistência, o governo
utiliza vários recursos na tentativa de intimidar os trabalhadores, principalmente a violência
física como as comuns prisões e espancamentos ocorridos.
A partir deste momento, Manoel da Conceição, já pela segunda vez como presidente
do sindicato, passa a ser perseguido, preso, torturado durante o período da ditadura civil-militar,
principalmente por organizar os trabalhadores daquela região do Maranhão. Surgindo um ponto
de partida para vários conflitos entre os trabalhadores e o governo, tanto na esfera municipal,
estadual e federal.
Conforme apresentada pela Comissão Nacional da Verdade (CNV):

De imediato, o Exército ocupou a sede da entidade e ali ficou por 60 dias. Duzentos
lavradores foram presos. Somente no mês de junho daquele ano, Conceição foi preso
cinco vezes na cadeia municipal. Mesmo fechado pela ditadura, o sindicato tinha
quatro mil filiados em 1968, quando a polícia invadiu uma de suas sedes e baleou o
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dirigente na perna direita. Após seis dias preso e sem ser medicado, teve de amputar
a perna. (CNV,12/12/2014).

É importante ressaltar, que a reflexão sobre a luta pela posse da terra requer inúmeras
mudanças principalmente por possuir em sua essência questões culturais, econômicas, sociais
e políticas que precisam, portanto, ser tratadas em conjunto. A luta e resistência camponesa
estão assentadas num conjunto de relações tradicionais, culturais, econômicas e políticas
cultivadas há séculos pelo campesinato que se distendem na construção do território camponês.
Através das práticas de lutas, realizadas no território camponês, o campesinato tem reclamado
e construído o seu lugar social.
De acordo com Barbosa (2008), “na década de 1970, iniciou-se o processo de
cercamentos, quando fazendeiros/grileiros (muitos de outros estados da federação) se
apropriaram de terras cercando-as em grandes áreas (fazendas), sobretudo para a realização de
projetos agropecuários” (BARBOSA, 2008, p.264). O incentivo à pecuária, respaldado pelo
governo do estado, começou a agravar a situação de trabalhadores rurais, uma vez que áreas
agricultáveis passaram a ser substituídas por pastagem.
O espaço rural maranhense apresentou como traço visível à violência generalizada que 302
se difundiu no campo. Foram esses camponeses, suas famílias e descendentes, que até o período
de 1970 fizeram do Maranhão o segundo maior produtor nacional de arroz, utilizando as
extensas terras devolutas do oeste e sudoeste do Estado.
Apesar disso, a política governamental não os amparou legalmente; eles não se
favoreceram com o domínio nem a posse das terras. Com isso, deu- se margem e se incentivou
a disputa pela posse e titularidade das áreas, entre eles e os grileiros, a serviço de empresas,
fazendeiros e de políticos; um embate desigual imperava: a expropriação, a violência e a morte.
Entretanto no sentido de prover terras aos trabalhadores rurais e amenizar as tensões
existentes no estado, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) passa a
atuar na regularização fundiária da área de posse camponesa sob disputa com terceiros,
principalmente no que concede a ocupação de terra realizada por camponeses em movimento
espontâneo ou organizada.
De modo geral e mais objetivo, a Constituinte passa a possibilitar legislativamente o
direito aos camponeses de obterem imóveis rurais de terras públicas e/ou devolutas através da
Reforma Agrária. Com isso o reconhecimento burocrático concedido pelo governo através do
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INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), a estes camponeses sendo até
mesmo assentados na terra, assegura esses direitos, surgindo para os camponeses à
oportunidade da obtenção de créditos fundiários.
Capítulo II - Realidade rural e Memória
Entende-se que o território é uma construção social, resultante das várias relações de
poder estabelecidas e existentes no espaço e que são geradoras de conflitos entre as classes
sociais. Dessa forma, o território é instrumento da luta de classes. Como aponta Oliveira (2007),
“O território é assim, o produto concreto das lutas de classe travadas pela sociedade no processo
de produção de sua existência” (OLIVEIRA, 2007, p.8).
Para Fabrini (2012) esses “enfrentamentos do campesinato ao agronegócio/latifúndio
manifestados nas ocupações de terra, são centrais na construção do território camponês. O
conflito gerado permite ao campesinato a possibilidade de retorno/acesso a terra com a
conquista dos assentamentos, que são materializadas as relações camponesas e construído o
território camponês” (FABRINI, 2012, p.39). O movimento camponês ao abdicar o modelo de
agricultura imposto pelo latifúndio/agronegócio tem se instituído como protagonistas na
recriação e na segurança da existência do campesinato. 303
A partir das reflexões, compreende-se que a ocupação do Cerrado brasileiro ocorreu
principalmente após a instalação da capital federal no centro-oeste do país. Nesta época, no
entanto, uma grande parte da população já morava na região, sendo mais da metade desta,
residente em áreas rurais. Com a edificação da nova capital brasileira, Brasília, surgiram
também novos caminhos, que possibilitaram um avanço ainda maior da ocupação do Cerrado.
Destacam-se, neste âmbito, as rodovias, como facilitadores no processo de ocupação do
Cerrado principalmente no sul do estado do Maranhão.
O processo de ocupação do sul do estado do Maranhão não diverge do processo de
ocupação do Cerrado como um todo no Brasil. Tendo em vista que esse processo foi realizado
com base na “facilidade” do Estado do Maranhão, no quais muitos agricultores principalmente
da região sul do Brasil se deslocaram para a região maranhense por serem atraídos pela
facilidade de crédito e pela oferta dos baixos preços das terras.
De acordo com a reflexão de Rocha (2015):
“para estes migrantes, a chegada ao Maranhão não resolveu seus problemas quanto à
posse da terra. A implantação de rodovias em território maranhense veio contribuir
para a valorização da terra perante o capital, transformando grande parte das áreas de
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lavoura e extrativismo tradicionais num processo de pecuarização apoiado por
políticas governamentais, através de incentivos fiscais que favoreceram a implantação
de grandes empresas. Como consequência, ocorreu a expulsão do pequeno trabalhador
rural (posseiro) que continuou avançando para as áreas devolutas do estado”
(ROCHA, 2015, p.16).

De forma distinta da que ocorria na região sul do Estado do Maranhão, as terras no sul
do Brasil apresentavam já nessa época um aumento expressivo em seus valores, sendo que este
fato era principalmente decorrente da alta concentração fundiária. Rocha (2015) destaca que
“várias foram às ações governamentais destinadas à execução de um desenvolvimento
econômico, que na realidade se apresentam como responsáveis pela expropriação de um grande
número de trabalhadores rurais e que foram propiciadoras de inúmeros conflitos que envolviam
a posse de terra” (ROCHA, 2015, p.17).
A reflexão de Ribeiro (2011) sobre o movimento camponês, aponta que o mesmo
é “uma unidade em processo de construção, caracterizado como um sujeito político coletivo;
constituído por uma diversidade de formas assumidas pelos movimentos sociais populares, que
se organizam para enfrentar os desafios próprios” (RIBEIRO, 2011, p.460). A cultura neste
contexto indica a totalidade daquilo que é aprendido e compartilhado pelos indivíduos como
membros da sociedade, “a cultura consiste nas ideias e nos padrões de comportamento que os
304
integrantes de uma sociedade aprendem através da linguagem e de outras formas de interação
simbólica” (CARMO, 2007, p.101).
Além disso, a cultura produz sentido sobre a nação, através de seus hábitos e valores;
sentido com os quais podemos nos identificar construindo identidades, esses sentidos estão
contidos nas histórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente
com seu passado e imagens que dela são construídas.
De acordo com o pensamento de Pollak (1989):
”Estudar as memórias coletivas fortemente constituídas, como a memória nacional,
implica preliminarmente a análise de sua função. A memória, essa operação coletiva
dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se
integra como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar
sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos
diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc”
(POLLAK, 1989, p.7).

Pensar a história do Brasil, a partir da perspectiva da memória camponesa, ou seja, dos


desvios e das interrupções, significa também lançar o olhar para as vítimas do passado que
ficaram no meio do caminho, presentificar suas ausências e combater seu esquecimento.
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A Comissão Camponesa da Verdade (2014) no relatório final das violações de direitos
no campo faz a seguinte abordagem:

Na luta camponesa por direitos e contra o latifúndio e a propriedade privada, figuram


ações de milícias privadas, jagunços, pistoleiros, e outros, em violências
reiteradamente marcadas como “crimes comuns”. Entretanto, poucos são investigados
os agentes do Estado que participaram ativamente de ações repressoras, por
conivência ou omissão, dos crimes cometidos no campo. Tampouco é aprofundado o
impacto das políticas públicas que se abateu contra a população rural no período. Falar
em memória e verdade no campo deve abrir a possibilidade de reescrever um capítulo
da história brasileira e reconhecer e responsabilizar agentes do Estado por violações
de direitos, cometidos no abuso de suas competências (CCV, 2014, p.26).

Quanto às reflexões sobre memória, Thompson (1998, p.17) frisa que “é preciso
preservar a memória física e espacial, como também descobrir e valorizar a memória do
homem. A memória de um pode ser a memória de muitos, possibilitando a evidência de fatos
coletivos”.
Com relação a isso Amado (1995) explica que:

A memória toma as experiências inteligíveis, conferindo-lhes significados. Ao trazer


o passado até o presente, recria o passado, ao mesmo tempo em que o projeta no 305
futuro; graças a essa capacidade da memória de transitar livremente entre os diversos
tempos, é que o passado se torna verdadeiramente passado, e o futuro, futuro, isto é:
dessa capacidade da memória brota a consciência que nós, humanos, temos do
tempo(AMADO,1995, p.132).

Muitos foram os personagens da nossa história comum que enfrentaram diretamente


os desafios da questão agrária, como também os conflitos e tensões do campo. Para Soares
(2010) “Relembrar significava reencontrar pessoas, tanto aquelas que amavam e admirava
quanto as que desprezavam todas as figuras que o ajudavam a se repensar” ((AZEVEDO;
ALENCAR, SOARES,2010, p.16).
A memória destaca-se, por ser o fio condutor em que a cultura é transportada pelos
tempos, que permite ter a consciência de estarmos no presente e de já termos vivido um antes,
que nos permite a noção do tempo e por meio dela prosseguimos na linha de sucessões e de
aprendizados compartilhados.
CONCLUSÃO

Dentro da temática de analise das Lutas Camponesas no Sul do Maranhão de 1960 a


1980. É importante entender elementos de memória, que são característicos ao Brasil rural,
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ligados pelos relatos de personagens que participaram deste processo de conflito e tensão, das
lutas e dos movimentos sociais no campo.
Diante do exposto, a escolha para realização da pesquisa é a região Sul do Estado do
Maranhão, sendo motivada, pela expansão dos conflitos, ocorrente inicialmente na parte Norte
do estado expandindo-se até a parte Sul.
Através da memória, meu trabalho reconstrói se não em sua totalidade, ao menos de
forma parcial, a história dos personagens camponeses, que em algum momento desse período
da história foram considerados subversivos por suas ações e tiveram suas lutas silenciadas.
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Maranhão: Ética, 2009.

BARBOSA. Viviane de Oliveira. Trabalho, conflitos e identidades numa terra de babaçu.


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FABRINI, João Edmilson. Assentamento Celso Furtado: Da Conquista da Terra às formas


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Publicado em 12/12/2014. Disponível: http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-
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RIBEIRO. Marlene. Educação do campo: embate entre movimento camponês e estado.


Porto Alegre- RS, Artigo Publicado:15/04/2011. 307
SANTOS, Manoel da Conceição. Chão de minha Utopia. Paula Elise Ferreira Soares, Wilkie
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2. Ed.Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1992. Acesso em: 24 set. 2012.
ISSN: 2525-7501
CENÁRIOS DE LUTA: TEATRO, RESISTÊNCIA POLÍTICA E EXPERIÊNCIA
HISTÓRICA NO BRASIL DOS ANOS 60*

Atílio Alencar de Moura Corrêa**

RESUMO

O presente artigo aborda as relações entre teatro e resistência política durante a primeira década da
ditadura civil-militar instituída no Brasil em 1964, tomando como ponto de referência a atuação de
grupos como o Teatro de Arena, fundado em São Paulo em 1953, e do Teatro Universitário de Santa
Maria (grupo do qual derivou o Teatro Universitário Independente, um projeto dissidente que viria a
se consolidar como um dos expoentes do teatro político da cidade em meados da década de 60). Parte
integrante de uma pesquisa em progresso, as considerações tecidas aqui não pretendem oferecer
conclusões sobre o processo histórico em questão, mas sim, abrir uma perspectiva mais panorâmica,
de tom introdutório, para os passos subsequentes na constituição do que virá a ser uma dissertação de
mestrado sobre o tema, em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em História - PPGH da
Universidade Federal de Santa Maria.
308
Palavras-chave: Teatro político; Ditadura Militar; Experiência histórica

_________________________

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de


Santa Maria.
** Licenciado em História pela Universidade Federal de Santa Maria e Mestrando do Curso de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria. Email: atiliomacondo@gmail.com

ABSTRACT

The present article approaches the relations between theather and political resistance during the first
decade of the civil-military dictatorship established in Brazil in 1964. The performance of groups
such as the Arena Theather (Teatro de Arena), founded in São Paulo in 1953, and the Santa Maria
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University Theather (Teatro Universitário de Santa Maria) (group from which derived the
Independent University Theatre, a different project that would become one of the representatives of
the political theatre of the city in the mid 60's) were used as reference point. The remarks made in the
present article are an integrant part of an ongoing research and, therefore, do not intend to offer
conclusions on the historic process in question. Instead, it aims at providing a panoramic perspective,
as an introduction, in order to initiate a dissertation for a Master Degree Program on the current topic,
at the Postgraduation Program in History – PPGH in Federal University of Santa Maria (Universidade
Federal de Santa Maria).

Keywords: Political theater; Military Dictatorship; Historical experience.

INTRODUÇÃO
Nos primeiros anos pós-1964 no Brasil, quando a Ditadura Civil-Militar recém imposta ao 309
país operava a gradual remoção dos direitos individuais e de liberdade de expressão, numa
antecipação da forma ainda mais austera que assumiria na virada dos anos 60 para os 70, os grupos
que se dedicavam a contestar o regime utilizando a arte como ferramenta puseram em prática uma
série de experiências que fundiam orientação nacionalista, estética socialista e mensagem
revolucionária.

No teatro brasileiro, a novidade foi a ruptura com padrões estabelecidos pelo filão comercial
da área, rompendo com a tradição consagrada de representar clássicos do drama mundial e deslocando
o foco narrativo para o autor brasileiro. Nesse contexto, profundamente influenciados pelas ideias do
dramaturgo alemão Bertolt Brecht, grupos como o Teatro de Arena e o Teatro Opinião (ambos,
criados no início dos anos 60, passaram a adotar uma linguagem progressivamente mais radical em
seus espetáculos à medida em que a ditadura ia se consolidando no poder) serviram de modelo para
outras experimentações com a linguagem do teatro político em várias regiões do país.

Dessa forma, foi possível que surgisse o Teatro Universitário de Santa Maria (TUSM), que
articulava no mesmo período propostas equivalentes à ação proposta pelo Arena e pelo Opinião.
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Levando em conta que a produção dramatúrgica desses grupos tomava como referência as revoltas e
levantes do povo brasileiro para compor alegorias, com a finalidade de provocar na plateia a reflexão
crítica - e a organização da resistência contra a ditadura -, tentaremos relacionar as estratégias
adotadas pelo Teatro de Arena (e, por conseguinte, do TUSM) com o conceito de experiência
histórica, formulado pelo historiador inglês Edward Palmer Thompson, um dos pensadores marxistas
mais influentes do século XX. Ainda que em caráter de esboço, a intenção do presente artigo é abrir
as linhas de conexão que permitam, em pesquisa futura, aprofundar e delinear com maior precisão as
correspondências e contradições da relação entre as estratégias do teatro político brasileiro na busca
por despertar a consciência de classe e a elaboração thompsoniana sobre experiência social.

Capítulo I - Teatro, resistência política e experiência histórica no brasil dos anos 60.
No panorama contemporâneo de debates sobre a história abordada desde uma perspectiva
cultural, a obra de Edward Palmer Thompson ocupa um espaço de singular importância. Desde
meados da década de 70, quando o trabalho do historiador inglês passou a repercutir no Brasil, a
divulgação de suas formulações e metodologias historiográficas - de extrema contundência no meio 310
em que originalmente se estabeleceu, ou seja, o ambiente de pensadores neo-marxistas ingleses do
século XX - influenciou inúmeras pesquisas, em geral voltadas para o estudo da formação de classe
enquanto experiência intrinsecamente ligada à cultura popular. Nesse artigo, buscaremos relacionar
o conceito thompsoniano de experiência histórica e social com as estratégias de resistência do teatro
brasileiro durante as décadas de 60 e 70, sob plena vigência da ditadura civil-militar instaurada com
o golpe de estado em 1964.

Com o objetivo de apreendermos as estratégias de resistência artística teatral neste período,


destacamos a atuação do grupo Teatro de Arena, criado em São Paulo no ano de 1953 pelo diretor e
dramaturgo Augusto Boal, um colaborador assíduo da arte didática do Teatro Opinião e dos Centros
Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes, que atuavam na mesma trincheira simbólica
do Arena. Sob influência direta das ideias do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, que buscava retratar
em suas montagens os conflitos entre classes sociais e provocar a reação crítica do espectador
(STEPHANOU, 2001, p. 125), o Teatro de Arena viria a servir de modelo para inúmeras iniciativas
em todo o Brasil, incluindo o Teatro Universitário de Santa Maria (TUSM).
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O Teatro Universitário de Santa Maria, criado em 1961 a partir de experiências desenvolvidas
por grupos teatrais de estudantes secundaristas, era um “movimento estudantil e teatral que refletia o
fenômeno que ocorria nos demais estados brasileiros. A busca por uma atuação artística que tivesse
cunho político agregava muitos estudantes, entre secundaristas e universitários” (MAIA, 2011, p.35).
Ainda sobre o TUSM, nas palavras de CORRÊA (2005, p. 32) “havia uma juventude inquieta
sintonizada com a agitação cultural das grandes capitais brasileiras e isso se revelou na organização
dos grupos teatrais”. Também em Santa Maria a experiência teatral em estrutura de arena manifestou-
se como forma ideológica com a finalidade de “fazer um teatro mais engajado politicamente e que
contrariasse o modelo tradicional de se fazer teatro no Rio Grande do Sul”
Já sobre a proposta do Teatro de Arena e seu inconformismo estético e social, segundo as
palavras de um de seus principais organizadores, o diretor Augusto Boal:

O Teatro de Arena de São Paulo elabora outra tendência, a do teatro revolucionário, cujo
desenvolvimento é feito por etapas que não se cristalizam nunca, através de uma coordenação
artística e de uma necessidade social […] (BOAL e GUARNIERI, 1967, p. 13).

Entretanto, para situarmos a atuação do Teatro de Arena em um contexto mais preciso, talvez 311
seja útil levarmos em conta que “o efeito principal do golpe militar em relação ao processo cultural
não se localizou, num primeiro momento, no impedimento da circulação das produções teóricas e
culturais da esquerda”, pois “apesar da ditadura da direita há relativa hegemonia cultural da esquerda
no país” (HOLLANDA, 1970, p.30). Portanto, embora sob forte vigilância, o trabalho do Teatro de
Arena circulou, ao menos em seus primeiros anos, com razoável fluidez nos circuitos estudantis e
intelectuais.

Há de se fazer a ressalva, porém, de que a disseminação de ideias revolucionárias somente


gozou de tolerância relativa quando circunscrita ao meio intelectual; qualquer tentativa de popularizar
as teorias revolucionárias, ou para dizer melhor, de incitar a desobediência civil em larga escala, foi
proscrita e implacavelmente perseguida desde o primeiro momento da ditadura. Como bem assinala
STEPHANOU (2001, p. 46),

[...] nos períodos em que comunicar-se é fundamental, em períodos de combate, contra ou a


favor de regimes autoritários, [...] a arte é considerada inaceitável, caso não possua as
qualidades da Cultura de Massa, devido à necessidade de transmitir uma mensagem.
ISSN: 2525-7501
Partindo desta realidade, grupos como o Teatro de Arena, o Teatro Opinião e outras
companhias influenciadas pelo teatro de agitação política - embora geograficamente distantes do eixo
Rio-São Paulo, como o Teatro Universitário Independente, de Santa Maria, no Rio Grande do Sul -
buscaram lançar mão de recursos dramatúrgicos que permitissem, ao mesmo tempo, transmitir uma
mensagem de revolta popular contra o status quo e burlar a rigorosa vigilância que os militares
impunham à sociedade civil. Para isso, foram buscar na tradição dos levantes históricos do Brasil as
metáforas e o deslocamento cronológico necessários para a elaboração de uma dramaturgia que
convocasse a população à resistência contra a ditadura, sem, no entanto, cair na malha fina dos
censores. Assistir aos espetáculos do teatro de agitação política era uma experiência comparável à
participação em um comício - e, muitas vezes, as duas atividades se combinavam (SCHWARZ apud
STEPHANOU, 2001, p. 120).

Nos espetáculos Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes, em que os protagonistas
coletivos remetem, respectivamente, ao levante quilombola de Palmares e à Inconfidência Mineira, o
Teatro de Arena evocava o drama de duas lutas históricas essencialmente distintas - uma, a de
Palmares, de resistência afro-brasileira contra o sistema colonial escravista; a outra, nas Minas Gerais
do século XVIII, de uma elite local contra os abusos tributários da Coroa Portuguesa - para incutir ou
312
reforçar na plateia os ideias de liberdade e nacionalismo, em franco contraponto ao regime autoritário
dos militares e suas conexões com o governo norte-americano.

Nossa preocupação, no presente artigo, é articular - ainda que na forma de um esboço - as


possíveis relações entre a utilização de materiais históricos na construção de um teatro de agitação
política por parte do Teatro de Arena e do TUI e o conceito de experiência histórica e social posto
em circulação pelo historiador inglês E.P. Thompson. Para esse notório ativista e teórico marxista,
que combateu com todas as forças as vertentes estruturalistas do marxismo, afirmando o
agenciamento humano como fator real das transformações históricas, “a história não é governada por
regras e não conhece causas suficientes” (THOMPSON, 1981, p. 60). No contexto de intenso debate
interno entre as correntes marxistas inglesas em que tal sentença foi proferida, a formulação assumia
tons ainda mais radicais quando postas nas seguintes palavras:

A explicação histórica não pode tratar de absolutos e não pode apresentar causas suficientes,
o que irrita muito algumas almas simples e impacientes. Elas supõem que, como a explicação
histórica não pode ser Tudo, é portanto Nada, apenas uma narração fenomenológica
consecutiva. É um engano tolo. A explicação histórica não revela como a história deveria ter
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se processado, mas porque se processou dessa maneira, e não de outra; que o processo não é
arbitrário, mas tem sua própria regularidade e racionalidade; que certos tipos de
acontecimentos (políticos, econômicos, culturais) relacionaram-se, não de qualquer maneira
que nos fosse agradável, mas de maneiras particulares e dentro de determinados campos de
possibilidades; que certas formações sociais não obedecem a uma “lei” nem são os “efeitos”
de um teorema estrutural estático, mas se caracterizam por determinadas relações e por uma
lógica particular de processo.” (THOMPSON, 1981, p.61)

Por um lado, tal preconização heterodoxa vai de encontro à forma esquemática com que o
teatro de agitação política representava determinados episódios da história do Brasil; por outro,
entretanto, ao buscar estimular a reflexão crítica e transmitir uma mensagem de resistência para a
plateia, lançando mão de textos livremente inspirados nas revoltas populares, as encenações dos
grupos tratados nesse artigo operavam com a expectativa de aproximar a experiência social vivida e
a experiência social percebida (ALVES e ARAÚJO, 2013, p.53) - desdobramentos do conceito de
experiência histórica social elaborado por Thomspon -, despertando assim a consciência de classe
nos espectadores. Daí a coerência da expressão “teatro de agitação política”, comumente utilizada
para definir o tipo de atuação de grupos como o Teatro de Arena.

No espetáculo Arena Conta Zumbi, com direção de Augusto Boal e Gianfranceso Guarnieri,
que estreou no dia 01 de maio de 1965 em São Paulo, o Teatro de Arena tomou como inspiração a 313
saga de resistência do Quilombo dos Palmares, cuja comunidade empreendeu ao longo do século
XVII no sertão da capitania de Pernambuco uma oposição duradoura às investidas do governo
colonial, que objetivava então o desmantelamento da complexa estrutura social estabelecida no
quilombo.

Em forma de teatro musical, Arena Conta Zumbi narrava a luta dos quilombolas rebeldes sob
a ótica marxista do conflito de classes, utilizando elementos da cultura popular e afro-brasileira, como
a literatura de cordel, os batuques e entidades das religiões de matriz africana e o samba de roda. O
tom da narrativa ora recitada, ora cantada pelos atores era didático, e embora essencialmente
alegórico, o espetáculo recorria a analogias óbvias entre o massacre de Palmares e a violência da
ditadura militar. A incitação à revolta social era proferida recorrentemente pelas personagens, que
celebravam as fugas de escravos como atos de resistência em nome da liberdade. A fauna, a cultura
regionalista, o sincretismo religioso e o linguajar trazido pelos africanos eram combinados com a
constante evocação da luta pela liberdade como a mensagem primordial do texto musicado. A forma
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lúdica do musical, fortemente celebrativa, estava a serviço de um conteúdo textual duro, que
lamentava o açoite dos senhores de escravo e clamava pela necessidade de rebelião.

A transposição metafórica, um tanto esquemática, equiparava a metrópole portuguesa do


século XVII ao imperialismo norte-americano contemporâneo, e enquanto o povo negro era definido
pela “verdadeira” cultura popular brasileira (o samba, a literatura sertaneja, a capoeira), o branco
opressor era associado sempre aos elementos ideológicos do estado e à cultura de massa (hinos
patrióticos e canções de iê-iê-iê), preconizando um contraste drástico entre as categorias que
orientavam o debate da esquerda nacionalista da época: de um lado, a cultura popular, potencialmente
libertadora e genuinamente criativa; do outro, a cultura de massa, homogênea e narcotizante (BOSI,
1986, p.77). Entretanto, o fato do próprio elenco original do espetáculo não contar com nenhum ator
ou atriz negra contribui para a percepção da distância entre o ideal projetado pelo Teatro de Arena e
o meio concreto em que sua arte era criada e recebida: o circuito universitário e intelectual da classe
média paulista.

Ao explorar o tema das revoltas históricas que opunham oprimidos contra opressores, o que
314
os artistas militantes do teatro político buscavam, ainda que sob a forma de alegorias muitas vezes
reducionistas, era inculcar no público - ou consolidar nesse, já que plateia e artistas comungavam
geralmente do mesmo ideário - a urgência da adoção de práticas organizadas de resistência na
sociedade civil. Nessa lógica, a educação política se daria pelo exemplo - ou melhor dizendo, pela
percepção do significado das lutas enquanto experiências vividas por comunidades rebeldes do
passado, e transformadas em manifestos através da representação teatral.

Assinalando os momentos de resistência como fatores determinantes na emancipação das


classes submetidas à exploração, os idealizadores do teatro de agitação almejavam adaptar o material
histórico - as revoltas e levantes - ao papel de combustível para a revolução. Era na percepção do
público de sua própria condição de ente coletivo destituído de voz e liberdade que se daria a equação
entre a experiência da opressão e a elaboração da experiência percebida - que aqui equivaleria à
consciência de classe, ou seja, “a reação racional adequada (...) em determinada situação vital”, nas
palavras de “ (LUKÁCS, 2003, p. 142)
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Para melhor elucidar o conceito de consciência de classe (que aqui operamos em sincronia
com a experiência percebida thompsoniana), talvez seja útil remeter à uma breve passagem, em que
Georg Lukács assim o define:

Essa consciência não é nem a soma nem a média do que os indivíduos que formam a classe,
tomados separadamente, pensam, sentem, etc. Entretanto, a ação historicamente decisiva da
classe como totalidade está determinada, em última instância, por essa consciência, e não
pelo pensamento etc, do indivíduo. E essa ação não pode ser conhecida a não ser a partir
dessa consciência (LUKÁCS, 2003,p. 142).

Já em Thompson, “as experiências históricas e suas articulações seriam inevitáveis e


contínuas, tendo a função de exercer pressão sobre a consciência social, determinando a construção
de materiais humanos conscientes de seus papéis na sociedade de classes” (THOMPSON apud
ALVES e ARAÚJO, 2013, p.58).

Embora não sejam conceitos idênticos, a experiência percebida e a consciência de classe,


cada uma a seu modo, pressupõem uma dada racionalidade relativa à situação de um determinado
grupo dentro de uma organização social específica, e constituem, ambas, uma condição fundamental

315
para a auto-determinação da classe e suas subsequentes lutas contra as estruturas que a oprimem.

CONCLUSÃO
Assim, compreendemos que as atividades empreendidas pelo teatro de agitação política no
Brasil dos anos 60 configuraram uma busca evidente pela utilização das experiências sociais
históricas, convertidas em narrativa teatral, com o objetivo de compartilhar com o público uma
experiência percebida para além dos limites impostos pela ideologia de Estado durante a Ditadura
Civil-Militar. Num contexto de rígidas restrições aos direitos individuais e às organizações populares,
o teatro político do Arena, do Opinião e do TUSM, entre outros, apesar das claras limitações
metodológicas e de circulação junto às classes populares, desempenhou um papel importante na
elaboração de uma estética de resistência (ALMADA, 2004, p.22), insubmissa aos ensejos de um
regime vigilante e desapegada dos fetiches da cultura de massa.

Nesse contexto, a noção de experiência social se reveste de uma importância singular, tanto
no que diz respeito aos materiais utilizados na representação teatral, quanto no efeito buscado através
do distanciamento crítico proposto pela elaboração dramatúrgica e cenográfica. Nas palavras de outro
marxista avesso aos dogmatismos doutrinários, o teatro político concebido por Brecht poderia ser
assim dissecado:
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Para seu público, o palco não se apresenta sob a forma de ‘tábuas que significam o mundo’
(ou seja, como um espaço mágico), e sim como uma sala de exposição, disposta num ângulo
favorável. Para seu palco, o público não é mais um agregado de cobaias hipnotizadas, e sim
uma assembleia de pessoas interessadas, cujas exigências ele precisa satisfazer. Para seu
texto, a representação não significa mais uma interpretação virtuosística, e sim um controle
rigoroso. Para sua representação, o texto não é mais o fundamento, e sim roteiro de trabalho,
no qual se registram as reformulações necessárias. Para seus atores, o diretor não transmite
mais instruções visando à obtenção de efeitos, e sim teses em função das quais eles têm que
tomar uma posição. Para seu diretor, o ator não é mais um artista mímico, que incorpora um
papel, e sim um funcionário, que precisa inventariá-lo (BENJAMIN, 1994, p. 79).

Parece-nos que esse percurso de análise sugere possibilidades potentes no que tange as reais
implicações do teatro de agitação política no Brasil dos anos 60, tanto sob uma perspectiva estética
quando histórica e cultural.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ALVES, G.; ARAÚJO, R. Thompson, Lukács e o conceito de experiência - um diálogo mais que
necessário. Revista Mundos do trabalho. v. 5, n. 10, jul. – dez. 2013, p. 53 – 70.Disponível em: 316
https://periodicos.ufsc.br/index.php/mundosdotrabalho/article/viewFile/1984-
9222.2013v5n10p53/26751

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São
Paulo: Brasiliense, 1994.

BOAL, A. E GUARNIERI, G. Arena Conta Tiradentes. São Paulo: Sagarana, 1967.

BOSI, E. Cultura de massa e cultura popular: leituras de operárias. Petrópolis: Vozes, 1986.

CORRÊA, R. C. Cenário, cor e luz: amantes da ribalta em Santa Maria (1943-1983). Santa Maria:
Editora da UFSM, 2005.

DICK, K. M. Estudantes na arena: o Teatro Universitário de Santa Maria. 2011. 52 p. Trabalho de


Conclusão de Curso (Licenciatura plena e bacharelado em História) – Universidade Federal de Santa
Maria. Santa Maria, 2011.

HOLLANDA, H. B. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde, 1960 – 1970. Rio de


Janeiro: Rocco, 1992.
ISSN: 2525-7501
LUKÁCS, G. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.

PEPPE, Maria Aparecida. Arena conta Zumbi: a canção engajada no teatro. In: SIMPÓSIO
NACIONAL DE HISTÓRIA, 23., 2005, Londrina. Anais... Londrina: ANPUH, 2005. Disponível em:
http://anais.anpuh.org/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S23.1388.pdf

STEPHANOU, A. A. Censura no regime militar e militarização das artes. Porto Alegre: Edipucrs,
2001.

THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de


Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

317
ISSN: 2525-7501
BRIGADA GAÚCHA: UM ESTUDO DE HISTÓRIA REGIONAL*184

Amanda Siqueira da Silva**185

RESUMO

O estudo da Brigada Militar através da imprensa permite compreender a relação política do Rio
Grande do Sul, principalmente na Primeira República, na qual esta instituição fora garantidora
da hegemonia política do Partido Republicano Riograndense, assim como na década de 1950,
onde esta instituição ainda exerceu um destaque político, reforçando seu papel enquanto agente
histórico. Evidenciamos que a história do Rio Grande do Sul está intimamente relacionada com
a trajetória política e bélica da BM, que fora órgão de sustentação política do Partido
Republicano Riograndense, que exercia função de Exército estadual e caracterizou-se por ser
invicta, causando grande temor nos que pretendessem tornar-se oposição. Esta contribuiu para
a chegada de Getúlio Vargas ao poder, entretanto, como as demais polícias, sofreu o processo
de federalização em 1937, porém seus integrantes, não deixaram de ser agentes políticos. Com
a decretação do Estado Novo, os ânimos políticos no Rio Grande do Sul estavam bastante
exacerbados, o que levou a constantes mudanças nas nomeações realizadas por Vargas, assim
como modificações estruturais dentro da Brigada Militar. Com a saída de Vargas em 1950 e 318
posteriormente com sua volta e de Ernesto Dornelles, ambos com apoio do PTB, os debates
políticos dentro da BM se fizeram constantes, levando à publicação de uma revista oficial, a
Brigada Gaúcha, órgão que acompanha os acontecimentos do Rio Grande do Sul e até mesmo,
nacionais.

Palavras-chave: Brigada Militar. História Regional. Política.

INTRODUÇÃO

Com a renovação da História Política, novos objetos passam a ser buscado pelos
historiadores, entre eles o uso da Imprensa como fonte histórica. A riqueza da fonte periódica
e suas múltiplas possibilidades de abordagens possibilitam ao historiador compreender o

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Doutoranda em História, PPGH-UPF, email: siqamanda@yahoo.com.br
ISSN: 2525-7501
contexto da política no país, assim como as influências externas que este sofre, já que jornais e
revistas não são obras individuais e sim empreendimentos que reúnem um grupo de pessoas
que debatem, divulgam ideias, concepções políticas, etc.

As possibilidades que uma revista oferece como fonte histórica são enormes:
possibilitam pesquisas amplas e variadas, que se utilizam de diferentes teorias e metodologias.
Assim se abre a possibilidade de pesquisa na Revista Brigada Gaúcha, uma revista técnica e
oficial, editada no Comando Geral da Brigada Militar e que tem no seu editorial nomes de
militares que continham ligações com o Partido Trabalhista Brasileiro ou/e líderes deste e que
quando do Golpe de Estado em 1964, acabaram sendo expurgados.

A Brigada Militar se destacou como força militar e política ao longo da história do Rio
Grande do Sul, garantindo o poder para os partidos políticos no período da Primeira República.
Ao final do Estado Novo e todas as sequentes transformações políticas, surgiu o desejo de um
veículo de difusão dos acontecimentos relacionados com a instituição: a revista Brigada

319
Gaúcha.

A revista tem sua data de fundação agosto de 1954, sendo editados 17 volumes desta,
que inicialmente seguia uma ordem de tiragem, porém a partir de 1955 há um possível
rompimento dentro do editorial e esta passa por modificações. Os dois últimos volumes são
bastante espaçados e provavelmente refletem o contexto político do Rio Grande do Sul e do
país, já que falamos de 1958 onde Brizola se elegeu como governador do Estado e 1960 quando
João Goulart foi eleito vice-presidente da República.

Capítulo I – Renovação da história política

A História Política após algumas décadas de marginalização e descrédito teve um


retorno com força total, já que ficou evidente que o econômico, assim como o social por si só
não se explicam, aspectos que tanto foram valorizados pelos annalistas a partir do momento em
que fundam a revista Annales d’histoire économique et sociali em 1928. Esta seria difusora de
uma abordagem nova e interdisciplinar da história, assim como uma liderança intelectual nos
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campos da história social e econômica e que tinha como preocupação a questão do método no
campo das ciências sociais. Seria o início de um movimento que acaba por renovar a história e
seus métodos.

O Movimento dos Annales com sua renovação de paradigmas trouxe para o campo da
história aspectos que até então não tinham sido analisados e também condenou a História
Política a anos de marginalização e desconfiança, como descreve Julliard

A história política é psicológica e ignora os condicionamentos; é elitista, talvez


biográfica, e ignora a sociedade global e as massas que a compõe, é qualitativa e
ignora comparação; é narrativa, e ignora a análise; é idealista, e ignora o material; é
ideológica e não tem consciência de sê-lo; é parcial e não o sabe; prende-se ao
consciente e ignora o inconsciente; visa aos pontos precisos e ignora o longo prazo;
em uma palavra, uma vez que essa palavra tudo resume na linguagem dos
historiadores, é uma história factual. (JULLIARD, 1988 apud HILÁRIO, 2006, p.
144).

Febvre e Bloch criticaram a história política por esta centrar-se no estudo do Estado e
de suas instituições. Porém este não foi o único fator que contribuiu para a crítica, havia também
a historiografia positivista, ou como alguns historiadores denominam a historiografia metódica,
320
que nas palavras de Hilário “trouxe uma contribuição importante para o historiador ao discutir
a veracidade das fontes, assim como apresentar um método para a história” (HILÁRIO, 2006,
p.143, grifo nosso ). Rémond salienta que há uma história da história e que esta carrega o rastro
das transformações da sociedade e, por conseguinte reflete as grandes oscilações do movimento
das idéias, sendo assim as gerações de historiadores que se sucedem não se parecem

o historiador é sempre de um tempo, aquele em que o acaso o fez nascer e do qual ele
abraça, às vezes sem o saber, as curiosidades, as inclinações, os pressupostos, em
suma, a “ideologia dominante”, e mesmo quando se opõe, ele ainda se determina por
referência aos postulados de sua época. Existem portanto modas intelectuais ou
descobertas cuja sucessão desenha a história da disciplina e a configuração de suas
orientações [...]. (RÉMOND, 2003, p.13).

Rémond salienta que a história de fato não vive fora do tempo em que é escrita, ainda
mais quando se trata da história política, já que suas variações são resultado tanto das mudanças
que afetam o político como das que dizem respeito ao olhar que o historiador dirige ao político.
O político tem uma consciência própria e dispõe de certa autonomia em relação aos outros
componentes da realidade social, não podendo ser assim excluída das diversas análises que se
faz da sociedade.
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Como nos coloca Rémond, seria “inevitável que o desenvolvimento da história
econômica ou social se fizesse às custas do declínio da história dos fatos políticos”, entretanto
há duas ou três décadas há os primeiros indícios de um retorno e com o passar do tempo
multiplicaram-se as manifestações de um retorno que veio com força total. A volta ao estudo
da cultura política está profundamente ligado às transformações sociais mais amplas, que
propiciaram o retorno do prestígio do campo político, e a dinâmica interna da pesquisa histórica.
A aproximação da história com as demais ciências, entre elas, a ciência política, a sociologia, a
lingüística e a psicologia, abriram novos campos de estudos.

Assim como a

pressão cada vez mais perceptível das relações internacionais na vida interna dos
Estados lembraram que a política tinha uma incidência sobre o destino dos povos e as
existências individuais; contribuíram para dar crédito à idéia de que o político tinha
uma consciência própria e dispunha mesmo de uma certa autonomia em relação aos
outros componentes da realidade social. (RÉMOND, 2003, p. 23).

Também podemos observar outros elementos importantes para a renovação da história


política (1960-70) que estão relacionados com os estudos das rebeliões políticas e culturais que 321
produziu um tipo de revisão historiográfica, privilegiando estudos sobre movimentos sociais,
grupos minoritários e cultura; e nos anos 1980 a substituição da revolução como ação política
pela democracia contribuiu para que as atenções voltassem para a história política. Carlos Fico
afirma que a história política nunca deixou de ser praticada e que no Brasil esta tem sofrido
uma renovação lenta, entretanto há muitos cientistas políticos que tem certa desconfiança e
desprezo por aqueles que se definem como historiadores do político.

Jacques Le Goff afirma que a “imagem de uma nova história política, diferente da antiga
deve ser dedicada às estruturas, à análise social, à sociologia e ao estudo do poder” (HILÁRIO
apud LE GOFF, 2006, p.145). A denominada nova história política continua a trabalhar com
os mesmos temas: partidos, eleições, guerras, biografias; porém há uma nova perspectiva, com
novos métodos: uso da opinião pública, mídia, discurso, etc. Sem dúvida a renovação da história
política foi bastante estimulada pelo contato com outras ciências sociais e pelas trocas com
outras disciplinas.
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A história política se empresta das noções e interrogações das outras ciências e foi o
contato com a ciência política que a fez se interessar pelos fenômenos sociais que até então
passava despercebido. Com a ciência política,

Conjugando seus efeitos com a sociologia, obrigou o historiador a formular perguntas


que renovam as perspectivas: assim, as noções de representação ou de consenso, cujo
lugar é conhecido na reflexão política contemporânea, quando aplicadas a
experiências antigas, lançam nova luz sobre acontecimentos e fenômenos cujo
segredo se julgava ter descoberto e cuja significação se acreditava ter esgotado.
(RÉMOND, 2003, p. 30).

Com esta renovação, a história política encontrou um meio mais propício que as
estruturas monodisciplinares das antigas faculdades em instituições cuja razão de ser era
aproximar especialistas de diversas disciplinas intelectuais. Rémond (RÉMOND, 2003, p. 36)
aponta que a história política abraça os grandes números, trabalha na duração, apodera-se dos
fenômenos mais globais, procura nas profundezas da memória coletiva, ou do inconsciente, as
raízes das convicções e as origens dos comportamentos, a história política descreveu uma
verdadeira revolução, esta não é a história excludente que por muito tempo fora renegada.
322
Capítulo II – Compreendendo o conceito de região

O debate sobre região e história regional teve início na Academia quando surgiu o
interesse de fazer uma história total. Esta surgia como crítica a essa história que incluía ou
diminuía as particularidades espaciais que acabavam nebulosas atrás da construção política.

História Regional, como passaria a ser chamada com um sentido um pouco mais
específico, surgia precisamente como a possibilidade de oferecer uma iluminação em
detalhe de grandes questões econômicas, políticas, sociais e culturais que até então
haviam sido examinadas no âmbito das nações ocidentais. (BARROS, 2005, p. 108).

O abandono de uma história total repercutiu no entendimento do conceito e


representação da região como parte da construção da história total, a que interessava apenas
para constratar. Por muito tempo o conceito de região foi preocupação da geografia. Para se
entender a organização espacial fazia falta uma noção que se referisse a uma espacialidade
menor, incluída em uma mais ampla. O conceito de região cumpria esse requisito, ainda que
seu entendimento fosse mudando com a sucessão das perspectivas e enfoques da disciplina.
Assim a região foi entendida como um espaço composto por uma natureza marcando o recorte
espacial.
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A geografia francesa conceituou a região como uma construção histórica e incorporada
na paisagem. Numa concepção científica ideográfica os estudiosos regionais com seus modos
de vida. Na qual passou a se observar a ação humana como responsável pela formação do
espaço, na qual Cardoso assinala ser “uma primeira explicação do desenvolvimento da história
regional” (CARDOSO, 1982, p. 75).

Esse intercâmbio interdisciplinar possibilitava reconhecer que todo o espaço teria sua
história, assim como toda história se formava em um espaço determinado. O reconhecimento
da historicidade do espaço regional, como salientado por Maria Rosa Carbonari, interessava
aos bairristas que reagiam as delimitações territoriais dos Estados Nacionais que haviam unido
as particularidades locais em histórias nacionais homogêneas.

[...] Así, el planteo de la región, como sinónimo de región histórica, aportó


fundamento al constructo cultural que destacaba el proceso histórico anterior a lãs
construcciones territoriales del Estado-nación. Como región histórica, preexistente al
Estado nacional, el pasado adquiria densidad explicativa que no estaba contemplada
en la historia nacional y em su pasado glorioso. Los regionalismos [...] pretendían

323
utilizar políticamente estos fundamentos para reforzar sus autonomías localistas
avasalladas por los Estados nacionales. (CARBONARI, 2009, p. 22).

Com o Movimento dos Annales, do estruturalismo francês e do Marxismo Científico,


os estudos regionais deixaram de ser dados da realidade para implicar conceitos que se
explicavam em função de um contexto maior. Sendo a região,

[...] como entidad concreta, se concibe como resultante de múltiples determinaciones


y se carcateriza por una naturaleza transformada por herencias culturales y materiales
y por una determinada estructura social con sus propias contradicciones. Es particular
en el sentido de una especificación de la totalidad espacial de la cual forma parte; es
decir, es la realización de un proceso histórico general en un cuadro territorial menor,
donde se combinan lo general y lo particular. (CARBONARI, 2009, p. 28).

Deste modo cada região deve ser entendida em sua totalidade, a partir da interação do
homem com o espaço em que atua. Trata-se de um espaço dinâmico, que está em constante
transformação e pertence a um contexto mais amplo, que possibilita tais transformações e às dá
sentido, como evidenciado por José D’Assunção Barros:

[...] o interesse central do historiador regional é estudar especificamente este espaço,


ou as relações sociais que se estabelecem dentro deste espaço, mesmo que
eventualmente pretenda compará-lo com outros espaços similares ou examinar em
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algum momento de sua pesquisa a inserção do espaço regional em um universo maior
(o espaço nacional, uma rede comercial). (BARROS, 2004, p. 153).

O regional se propõe a estudar processos históricos que se desenvolvem em espaços que


não necessariamente coincidem com as delimitações político-administrativas. A região é uma
construção do próprio historiador e o estudo desta vem para complementar estudos que o
Nacional tinha como “acabados”, ou seja,

Quando um historiador se propõe a trabalhar dentro do âmbito da História Regional,


ele mostra-se interessado em estudar diretamente uma região específica. O espaço
regional, é importante destacar, não estará necessariamente associado a um recorte
administrativo ou geográfico, podendo se referir a um recorte antropológico, a um
recorte cultural ou a qualquer outro recorte proposto pelo historiador de acordo com
o problema histórico que irá examinar. (BARROS, 2004, p. 152).

Não há como definir de maneira fixa o conceito de região, assim como podemos elencar
diversas definições para este. Entretanto, não podemos confundir História Regional com Micro-
história, Barros explicita que a micro-história faz uma redução de escala de observação para
perceber aspectos que poderiam não ser percebidos na análise macro, enquanto a história
regional faz o estudo da realidade recortada por ela mesma.
324
O regional trabalha com as diferenças, que num contexto mais amplo, não seriam
percebidos, oferece novas óticas de análise de estudo, como os movimentos sociais, a
identidade cultural, as ações do Estado, etc.; a partir do olhar específico, do particular, as
diferenças.

Ao trabalhar com as diferenças, encontramos algumas dificuldades, como o


regionalismo, a totalização e as dificuldades para ligar o regional com outros âmbitos, ou seja,
a contextualização. No caso do regionalismo, o problema deste é quando certas ideias e
sentimentos se sobrepõem, não só para se diferenciar daqueles que não pertencem a essa região,
mas também para desqualificar estes, de modo que

[...] el regionalismo es una deformación de la perspectiva histórica que se sustenta en


el predominio de ciertos intereses que puede llegar a generar actitudes de intolerância
y discriminación. [...] el problema con este tipo de estúdios es que en algunos casos
tienden a fortalecer ideas unívocas sobre esas regiones e incluso, en algunos casos,
sus principales rasgos se han extrapolado a todo el escenario nacional. ( BAJARAS,
2009, p.10).
ISSN: 2525-7501
Dení Bajaras não está afirmando que não se deva realizar o estudo sobre identidades
regionais, apenas alerta para o cuidado de não mudar as características identitárias em recurso
ideológico e político contra os que não compartilham destes traços. É um erro pensar que ao
estudar o regional tem-se de conhecer todos os aspectos que formam uma sociedade, já que ao
realizar esse estudo podem-se iluminar problemas e evidenciar particularidades ou processos
delimitados espacialmente, que ocorrem em âmbitos maiores, não tendo a obrigação de contá-
lo todo, pois se corre o risco de esquecer porque foi que optou pela perspectiva regional.

É preciso estabelecer a ligação do regional com o nacional e até mesmo mundial, para
de tal maneira realizar as devidas análises, já que é impossível que ocorram fatos de maneira
isolada, “es pues necesario en este tipo de estúdios delinear sus conexiones com otras regiones
[...] pues es imposible que existan de manera aislada”( BAJARAS , 2009, p. 10). Um país com
diversidade precisa de estudos históricos que utilizem unidades espaciais e temporais de
análises que permitam captar essa variedade de situações e experiências.

Capítulo III – Revista Brigada Gaúcha


325
A Brigada Militar se destacou como força militar e política ao longo da história do Rio
Grande do Sul, inúmeras foram as vezes que esta garantiu o poder para os partidos políticos,
tendo grande destaque no período da Primeira República. Ao final do Estado Novo e todas as
sequentes transformações políticas, tendo Getúlio Vargas como figura central, surgiu o desejo
de um vínculo de difusão dos acontecimentos relacionados com a instituição, surgindo assim,
a revista Brigada Gaúcha, órgão oficial do comando.
ISSN: 2525-7501

Ao todo foram editados 17 volumes da revista, sendo que diferentes vezes mudou o
editorial, mesmo assim se pode observar um nome em todos os volumes: Cap Emilio João Pedro
Neme. Os assuntos são educação física, assuntos judiciais, inaugurações, vencimentos e até 326
mesmo, temas femininos.

1954 1955 1956 1957 1958 1960

Agosto Fevereiro Janeiro Abril Abril Novembro

Outubro Abril Abril Agosto

Dezembro Julho Setembro Dezembro

Setembro Dezembro

Novembro

A revista se apresenta como uma fonte para pesquisa sobre as relações entre integrantes
da Brigada Militar e o contexto político do país, esta sempre atenta para situações de
policiamento, assim como em investimentos realizados em prol da Força.
ISSN: 2525-7501

CONCLUSÃO

Pesquisar a Brigada Militar significa voltar o olhar para a história do Rio Grande do Sul,
para a memória coletiva, para os momentos de grandes transformações políticas no país, já que
esta instituição militar teve uma atuação de destaque no período da Primeira República. Pode-
se evidenciar que mesmo com o processo de federalização das polícias militares e estas terem
passado a exercer uma função de policiamento, a Brigada Militar não deixou de ter entre suas
fileiras, militares preocupados com as questões políticas do país, tanto que os mesmos tiveram
uma atuação significativa na década de 1960, período de grande instabilidade.

Analisando a História da Brigada Militar criada em 1892, fundamental na manutenção


do poder do Partido Republicano Riograndense (PRR) durante a Primeira República, na qual
desempenhou o papel de exército regional, esta foi a grande força bélica do Rio Grande do Sul,
organizada nos moldes do Exército, a Brigada Militar tinha como principais objetivos, segundo
Moacyr Flores, “zelar pela segurança pública, mantenimento da República e do governo do
Estado, fazendo respeitar a ordem e executar as leis” (FLORES, 2001, p. 107). 327
Desde a sua criação, a Brigada atuou como um exército estadual, ou seja, com um
caráter mais militar do que policial, como atesta Mariante: “seus efetivos permaneciam quase
que integralmente nos quartéis, sujeitos a uma instrução que dizia respeito mais às coisas da
guerra, com exercícios e manobras essencialmente militares” (MARIANTE, 1972, p. 178).
Love assinala que a Brigada possuía “mais rifles que as outras polícias militares estaduais e que
somente após 1930 o Exército nacional passou a ser mais bem equipado que essa força” (LOVE,
1975, p. 123), o que ressalta a potência militar da BM do Rio Grande do Sul. O policiamento
não condizia com o que deveria ser, isto é, um policiamento preventivo, e, na maioria das vezes
era repressivo.

Com o advento do Estado Novo e o processo de federalização das polícias, a Brigada


Militar passa a ter uma função diferenciada, a de policiamento, entretanto, alguns membros
desta, como o Cap Emilio João Pedro Neme vai manter o desejo de ter uma polícia com tradição
e destaque, sendo assim motivado a planejar uma revista que tratasse da técnica policial, ou
seja, a Brigada Gaúcha.
ISSN: 2525-7501

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SIMPÓSIO FRONTEIRA, POLÍTICA E SOCIEDADE MESA 5

UMA ABORDAGEM TEÓRICA PARA UMA ZONA DE FRONTEIRA NO RIO


ARAGUARI, AMAPÁ*186

Carolina de Sousa Santos**187

RESUMO

Zonas de fronteiras são o palco ideal para o estudo dos processos de interação que envolve o
contato entre diferentes grupos. Desde os primórdios das pesquisas sobre a ocupação pré-
colonial do Amapá, dois diferentes grupos parecem bem definidos pelos marcadores
tecnológicos da cerâmica, ocupando diferentes porções do Estado, sendo o rio Araguari o 331
marcador geográfico entre eles. Estudos, em meados do século passado, consideram que ali
havia uma relação conflituosa, porém, hoje, com o incremento das pesquisas na região essa
relação mostra-se diferente. O rio Araguari revela-se um local em processo de interação e de
separação de diferentes populações que a compartem, sendo uma zona de fluxo contínuo de
objetos, ideias e pessoas. As fronteiras étnicas, sociais e políticas são construídas em várias
escalas e passam por vários processos de transmissão de conhecimento e reconhecimento por
um ou mais grupos. A permanência de alguns atributos depende do contexto e das diferentes
histórias individuais e coletivas e as próprias noções de identidade dentro dos grupos tendem a
reforçar as permanências e as continuidades. A continuidade de práticas e ideias no mundo
material não se resume à transmissão de conhecimento de geração, uma forma de
conservadorismo nativo, uma vez que a cultura não deve ser pensada como algo a ser
transmitido de forma inconsciente entre as gerações de um grupo. Compreender as
permanências, as ausências e as alternâncias de elementos estilísticos na cultura material é
entender mais como o processo de separação e interação se dava nessas determinadas regiões
vistas como fronteiras, o que se trata, portanto, de algo construído dentro de um processo
histórico de ocupação de uma determinada região. É algo que vai além do marco geográfico,
sendo uma categoria de análise, um espaço habitado e modificado pelo homem, e onde se
desenvolveram suas relações sociais.

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS),
Pesquisadora Colaboradora do Núcleo de Pesquisa Arqueológica do Instituto de Pesquisas Cientificas e
Tecnológicas do Estado do Amapá (NuPArq/IEPA), carolinasntos@gmail.com
ISSN: 2525-7501

Palavras-chave: Pré-coloniais, História pré-colonial do Amapá, Cultura material

INTRODUÇÃO

A foz do Amazonas no Oceano Atlântico possui a área com maior diversidade cultural
da pré-história tardia da Amazônia (GUAPINDAIA, 2001; NEVES, 2006), sendo que a
proliferação de culturas ocorreu a partir do Holoceno tardio. A região passou a receber uma
atenção especial nas décadas de 1940 e 1950, com as pesquisas desenvolvidas por arqueólogos
como Meggers e Evans (1957) e Hilbert (1957) e, depois, na década 1980 e 1990, com os
trabalhos de Roosevelt (1991) e Schaan (1996).

Em 1948, quando os arqueólogos norte-americanos Betty Meggers e Clifford Evans


visitaram o rio Araguari, o definiram como sendo o limite entre duas culturas arqueológicas: o
grupo produtor da cerâmica da fase188 Aristé na parte setentrional e da cerâmica da fase
Mazagão ao sul (MEGGERS; EVANS, 1957). Ambas teriam origem comum e teriam chegado 332
na região da foz do Amazonas no século XIV, empurrando a cultura Aruã, a primeira cultura
cerâmica do Estado, para as ilhas de Caviana e Mexiana (id.).

Para Meggers e Evans (1957), a região do Rio Araguari seria uma “terra sem homens”
e estaria desabitada devido à baixa frequência de sítios encontrados. Porém, trabalhos recentes,
como as prospecções e os salvamentos na Usina Hidrelétrica (UHE) Cachoeira Caldeirão,
desenvolvido pela equipe de arqueologia do Instituto de Pesquisas Cientificas e Tecnológicas
do Estado do Amapá (IEPA) na região, demonstram que a tese dos arqueólogos norte-
americanos não estava correta. A alta densidade de sítios arqueológicos encontrados nos
trabalhos nas diferentes etapas de construção da UHE coloca em questionamento essa tese. Nós
sítios arqueológicos salvos foram encontrados vestígios de cerâmica das fases arqueológicas
Aristé, Mazagão, e ainda uma cerâmica arqueológica recém descoberta na região do Amapá, a

188
Segundo os parâmetros do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas, desenvolvido na década de 1960
e 1970 sob orientação dos arqueólogos Betty Meggers e Clifford Evans “Fase [seria] qualquer complexo de
cerâmico, lítico, padrões de habitação, relacionado no tempo e no espaço, em um ou mais sítios; [e] Tradição,
grupo de elementos ou técnicas que se distribuem com persistência temporal. ”(DIAS, 2007) E sítios
arqueológicos são espaços físicos onde evidências materiais de sociedades passadas são encontradas.
ISSN: 2525-7501
cerâmica da fase Koriabo. Tudo isso junto a outros vestígios da cultura material como polidores
de machados e as próprias áreas onde aconteciam as oficinas de pré-formas dos machados
possibilitam começar a questionar que tipo de interação estava acontecendo entre os diferentes
grupos ceramistas da pré-história na região do rio Araguari, a qual seria, segundo a tese de
Meggers e Evans (id.), a fronteira cultural de diferentes grupos indígenas do passado.

Capítulo I - Fronteiras na Arqueologia

Desde os primórdios das pesquisas arqueológicas no Amapá, as culturas arqueológicas


parecem bem definidas pelos marcadores tecnológicos da cerâmica. O rio Araguari em
confluência com o Amapari foi definido, no século passado, como marcador geográfico do
contato pré-colonial entre os produtores da cerâmica Aristé e da cerâmica Mazagão. Os sítios
arqueológicos com a cerâmica Aristé, como já dito são encontrados ao norte do Rio Araguari e
os sítios relacionados a cerâmica Mazagão são encontrados ao sul deste mesmo rio. O que
Meggers e Evans (1957) descreveram como uma relação conflituosa, por não haver contato nos
dados coletados por eles em 1948, na verdade, apresentam-se como um lugar de fluxo contínuo 333
de indivíduos, ideias e coisas. A região da Cachoeira Caldeirão é um desses locais distintos,
onde houve uma interação, que pode ser observado no nível econômico, ou podendo ir além, e
é observada nos casos estilísticos cerâmicos, que ainda será melhor observada com o
desenvolvimento de minha pesquisa.

Na arqueologia, interações culturais são comumente debatidas à luz da cultura material


que há muito tempo é usada para tratar a dispersão dos povos do passado (MARTINS, 2012).
Atributos tecnológicos foram utilizados por Meggers e Evans (MEGGERS; EVANS 1957;
MEGGERS, 1961; EVANS, MEGGERS 1960) para propor um modelo de ocupação e definir
áreas culturais na Amazônia que resultou na identificação de quatro horizontes culturais, que
posteriormente foram definidos como Tradições (RAPP PY-DANIEL, 2015; MARTINS,
2012). Argumentos contrários a essa classificação atestam que um pequeno número de atributos
foi utilizado para as seriações e não seriam suficientes e adequados para explicar as mudanças
ISSN: 2525-7501
culturais, as diferentes organizações sociais e suas implicações na cultura material
(MACHADO, 2005-2006). 189

Estudos sobre contato vêm sendo realizados em longa data na Europa em povos
pretéritos. Um dos marcos iniciais foi o “modelo histórico-cultural” de Gustav Kossina, no
começo do século XX (TRIGGER, 2004) que, apesar do caráter negativo, propunha a noção de
difusão de traços materiais e das interações entre as diferentes culturas. O arqueólogo Gordon
Childe foi quem aprimorou o método histórico-cultural, ao elaborar uma nova noção de tempo
e espaço para os dados arqueológicos e históricos, o que o autor chamou de “cultura
arqueológica”. Childe trabalhou também os conceitos de migração, difusão e contato entre
sociedades distintas (id.).

Na arqueologia brasileira, as evidências arqueológicas de contato entre populações pré-


coloniais começaram a surgir efetivamente com o Programa Nacional de Pesquisas
Arqueológicas (PRONAPA), implementado a nível nacional, na década de 1960 e 1970. O
PRONAPA tinha como objetivo produzir informações sobre as rotas e direções das migrações
e difusões que ocorreram em tempos pretéritos. Foi dentro desse quadro e com algumas 334
pesquisas que o antecederam que o quadro de ocupação na Amazônia foi construído (RAPP
PY-DANIEL, 2015, BARRETO, 2009).

Zonas de fronteiras são o palco ideal para o estudo dos processos de interação que
envolve o contato entre diferentes grupos. Mas que tipos de evidências arqueológicas podem
refletir essas situações? Segundo o arqueólogo Rogge (2004), o registro arqueológico é um
registro estático. Para extrair dele seu sentido dinâmico e inseri-lo dentro de um sistema
sociocultural que o produziu, utilizou e descartou e a ele deu significado, é preciso encontrar
um marcador cultural para se começar a visualizar esses processos de interação. Os processos

189
Não discutirei quanto ao uso ou não dos conceitos de fase e Tradição, porém arqueólogos como Neves (2012a)
demostra apesar dessas tradições terem sido elaboradas de forma hipotéticas com o passar dos anos e com mais
pesquisas na região amazônica elas ganharam um caráter permanente pois este quadro serviu como base
explicativa para grande parte da Amazônia. Anne Rapp Py Daniel (2015) aponta, apesar de questionável o uso
dessa terminologia e abordagem teórico explicativa, seria difícil construir um diálogo entre os arqueólogos que
trabalham na Amazônia sem usar os elementos de fase e tradição.
ISSN: 2525-7501
de interação são elementos identitários e a cerâmica por suas características estilísticas visuais
e tecnológicas altamente diagnósticas, pode ser uma fonte extremamente útil para começar a
extrair informações sobre a natureza dos contatos pretéritos.

Recentemente o arqueólogo Fernando Almeida (2013) afirmou que a continuidade de


práticas e ideias no mundo material não pode ser resumida à transmissão de conhecimento de
geração em geração, (uma forma de conservadorismo nativo). Existe uma propensão de imitar
o Estilo de gerações passadas uma vez que a cultura não deve ser pensada como algo a ser
transmitido de forma inconsciente entre as gerações de um grupo. Como o autor aponta, precisa-
se compreender as permanências, as ausências e as alternâncias de elementos estilísticos na
cultura material uma vez que buscar isso é tentar compreender o primordial dos estudos
arqueológicos: o significado da variabilidade da cultura material. Assim, de acordo com
Almeida “Os estudos etnográficos também são essenciais para dar cor e vida ao mosaico
cultural a ser construído” (Almeida, 2013, p. 35). Como Dias (2007) complementa, um dos
principiais objetivos da pesquisa arqueológica, independente do seu enfoque teórico, é
compreender o porquê de certas escolhas tecnológicas e a padronização da cultura material.
Deve se pensar ainda como essas categorias de análise refletem nos aspectos de fronteiras e
335
identidades sociais resgatadas no registro arqueológico.

O arqueólogo Almeida (2013) ainda discute o que seria “cultura”, na busca de tentar
compreender o significado do termo, sua representação, sua transmissibilidade e sua
permeabilidade através de uma análise de conjuntos de vestígios arqueológicos que podem
representar continuidades na cultura material e nos contextos arqueológicos amazônicos.
Almeida aborda em sua tese a produção e decoração do material cerâmico, mostrando que
diferentes modos de fazer podem ser percebidos ao longo dos séculos e podem servir para
aproximar estilisticamente grupos ou para testemunhar diferenças culturais profundas entre
seus produtores.

Segundo Dias (2007), as tecnologias são produtos sociais, e as escolhas tecnológicas


estratégias dinâmicas e que podem ser relacionadas com diferenciação identitária. Seguindo
essa lógica, a arqueóloga afirma que grupos vizinhos tendo a consciência do uso de
determinadas técnicas/traços tecnológicos e ausência de outras são estratégias conscientes de
demarcação e diferenciação social. Os sistemas tecnológicos são, portanto, um recurso e um
ISSN: 2525-7501
produto de criação e manutenção de um ambiente natural e social, simbolicamente constituído.
Técnicas, traços e estilos deveriam delimitar grupos. Baseando-me nesses conceitos, que Stark
(1998) também aponta, os estudos sobre estilos tecnológicos e fronteiras culturais na
arqueologia podem dar à luz as discussões do significado da variabilidade artefatual enquanto
expressão de identidade e enquanto processo de socialização e transmissão de conhecimento.
A luz da arqueologia, situações semelhantes foram tratadas como zonas de interação e de
contato cultural (GARCIA, 2012; ROGGE, 2004; DIAS, 2007 e outros).

A arqueóloga Lorena Garcia (2012) aponta alguns aspectos do trabalho de Sackett (1990
apud Garcia, 2012) que ajudam a entender a problemática, tais como: qual a relação entre
estilos, etnicidade e cultura material; qual estilo representa etnicidade; onde reside o estilo na
cultura material e o que o estilo informa sobre o processo de manufatura, o produto produzido
e a relação entre grupos étnicos e fronteiras culturais. Estilo pode ser percebido em vários
níveis, de um complexo cultural que alcança o indivíduo ou grupo étnico a complexos histórico-
culturais de ampla distribuição espaço-temporal. Perguntas como estas serão levadas a análise
dos dados da presente pesquisa. Outras perguntas, como as já lançadas por Stark (1998) também
farão parte da pesquisa: (1.) Pode, fronteiras sociais, ser identificado no registro arqueológico?
336
(2.) Se existe estes limites, quais os métodos que devemos usar para conseguir respostas através
da leitura da cultura material? (3.) Que processos sociais e grupos sociais serão visíveis através
deste registro arqueológico? (4.) Como podemos melhorar nossa compressão entre escolha
técnica e padrão na cultura material?

Miriam Stark (id.) dá algumas respostas e caminhos para quem vai tentar resolver essas
questões. Primeiro (1.) a natureza das fronteiras sociais é claramente complexa, sendo que
sistemas de cultura material são fenômenos historicamente situados. O arqueólogo, segundo
Stark não pode esquecer de pensar (2.) na linguística para apoiar suas interpretações, uma vez
que a variação de sistemas técnicos mais estáveis e a padronização resiliente dos limites sociais
se apoiam em alguma coisa, e isso é passado através da oralidade. (3) Que processos sociais e
que tipos de grupos sociais que podemos discernir pelo estudar tais distribuições de cultura
material? Fronteiras sociais que identificamos não podem ser equiparadas a limites étnicos
modernos. (4) Como podemos melhorar a nossa compreensão geral da relação entre escolhas
técnicas e padronização cultura material? Muitos dos autores, independentemente da orientação
ISSN: 2525-7501
teórica, tendem suas pesquisas baseados nos limites oficiais, como os autores Dietler e Herbich
e Hegmon (1998 apud STARK, 1998), defendem a adoção de quadros teóricos existentes da
etnografia para facilitar a nossa pesquisa arqueológica.

Uma escolha tecnológica, de estilo, ainda pode ser um elemento político. Como a
arqueóloga Bowser (2000), que apresentou dados etnoarqueológicos para estabelecer uma
ligação entre comportamento político ativo das mulheres na produção de estilos cerâmicos num
contexto de escala doméstica, na Amazônia equatoriana. Na análise das variáveis individuais
de estilo, foi possível verificar que as mulheres Achuar e as mulheres Quichua significam suas
alianças políticas na decoração pintada da cerâmica doméstica. As implicações teóricas desses
achados são discutidas em termos dos princípios subjacentes ao comportamento estilística das
mulheres como parte dos processos políticos envolvidos na construção e manutenção de
identidade social e fronteiras sociais por Bowser (id.). A semelhança na técnica de produção e
em alguns elementos estilísticos na cerâmica da fase Aristé e da fase Mazagão, já foi verificada
por Saldanha190 e Rostain (1994). As mesmas semelhanças também estão sendo verificadas no
material arqueológico dos sítios da Cachoeira Caldeirão. Fica um questionamento para o
prosseguimento da pesquisa, se esse indício pode ser associado a uma aliança política entre os
337
diferentes grupos ou alguma outra forma de interação.

1. Língua, Cultura Material e Fronteiras


Limites de linguagem pré-estatais podem ser igualmente fluidos, onde há interação entre
dialetos locais, ao invés de limites nítidos. Porém, não se pode fazer essa ligação simples entre
tipos de cerâmica arqueológica (fases e tradições) com etnias, uma vez que vasilhas não são
pessoas. Arqueólogos norte-americanos afirmam que cultura material e língua estão
relacionados de algumas maneiras, uma delas é que as línguas tribais que são geralmente mais
numerosas em qualquer região onde algumas culturas materiais estão bem resolvidas
(ANTHONY, 2007). Como o autor aponta, os índios da Amazônia central são conhecidos pela
sua variabilidade linguística e suas culturas materiais similares. Esse ponto é desanimador, pois,
garante que muitas fronteiras de linguagem pré-coloniais devem ser arqueologicamente

190
Comunicação Pessoal realizada em simpósios de pesquisas do NuPArq/IEPA.
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invisíveis. Outra regularidade seria pensar se a linguagem está correlacionada com cultura
material de longa duração.

Mas como definir os limites? Será que é possível identificar fronteiras arqueológicas
através do estudo de línguas antigas? Onde linguagem e cultura material coincidem
geograficamente com as fronteiras etnolinguisticas nós podemos esperar que isso possa ter
durado pouco (ANTHONY, 2007). Língua e cultura material podem variar e mudar por
diferentes razões, em curtos períodos de tempo. Mudanças políticas e sociais podem refletir na
língua e isso pode refletir na cultura material (ANTHONY, 2007; RAPP PY-DANIEL, 2015).

A língua não é uma variabilidade genética, mas é transmitida de geração em geração


através do aprendizado. Uma vez que a língua, em muitos casos, é culturalmente significativa
e por isso pode sofrer influências mais facilmente que as outras características biológicas. As
mudanças linguísticas não são simplesmente “passivas”, ao contrário, são estratégias políticas
conscientes (SANTOS-GRANERO, 2002). Na arqueologia e na linguística, não é possível
identificar a estrutura das línguas preterias e compara-las diretamente às estruturas sociais
vigentes na época em que elas existiam, as reconstituições linguísticas são sempre hipotéticas, 338
mesmo onde havia a escrita. Mas como antropólogos e linguistas já chegaram a um consenso
de que língua e cultura não podem ser dissociadas.

Fronteiras culturais persistentes é outra expressão aplicada na arqueologia, e, muitas


vezes, tem sido ignorada pela própria arqueologia. Se etnias antigas eram efêmeras e as
fronteiras entre elas de curta duração, como podemos entender fronteiras pré-coloniais através
da cultura material? E a linguagem pode ser conectada aos grupos em estudo? Anthony (2007)
acha que sim, uma vez que a linguagem é fortemente associada com a persistência dos limites
na cultura material. Como é o caso do Império Romano na Europa Ocidental, em que a
formação de fronteiras se segue ao seu colapso. Um lugar significativo e persistente é algo
criado pelas pessoas que habitam um determinado lugar ou região através da sua relação com
o meio físico, social e político. Trata-se de um lugar que é reconhecido por meio da memória
de um grupo (ZEDEÑO; BROWSER, 2009). O fato de que a área da Cachoeira Caldeirão ter
sido ocupada no período pré-cerâmico e durante o período cerâmico pode ser um indício de
ocupação de um lugar persistente na paisagem.
ISSN: 2525-7501
A fronteira reconhecida por Meggers e Evans no rio Araguari, na metade do século
passado, dividia o atual Estado do Amapá entre dois distintos grupos do período pré-colonial
mais recente. Porém o que era visto como uma relação conflituosa, pela falta de comunicação
entre a cultura material, tem a perspectiva transformada com achados de novas pesquisas. O
arqueólogo Rostain (1994) sugeriu que as semelhanças nos estilos decorativos de alguns
apliques e da pasta da cerâmica poderiam indicar ou uma origem comum ou sugerir a relação
de contato ou troca entre seus produtores. Rostain (id.), depois de localizar o sítio da fase
Aristé, na Guiana Francesa, e estabelecer uma nova cronologia, passou a acreditar que grupos
produtores da cerâmica da fase Aruã não chegaram a ocupar a região do atual Estado do Amapá,
e que o material encontrado por Meggers e Evans em 1948 (MEGGERS; EVANS, 1957) em,
três sítios na região, seria material intrusivo (SALDANHA; CABRAL, 2010).

Uma quarta fase cerâmica, encontrada recentemente no Amapá, a cerâmica da fase


Koriabo traz novas questões quanto ao povoamento da região. Inicialmente encontrada na
Guiana Inglesa por Evans e Meggers (1960), a cerâmica da fase Koriabo parece ter entrado no
Suriname por volta de 1200 AD, e depois uma penetração no norte do Amapá (MEGGERS;
EVANS, 1957). Em 2004, o arqueólogo Arie Boomert amplia a ocupação desta fase para todo
339
o escudo guianense. Martjin Van den Bel (2010), na tentativa de melhor interpretar a grande
dispersão da fase Koriabo, propõe que esta cerâmica teria um caráter de troca. Isso também
explicaria porque essa cerâmica estaria sempre acompanhada de outro estilo cerâmico nos
sítios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os limites tribais pré-estatais são porosos, e suas fronteiras e limites são


dinâmicos, não se constituindo em fronteiras fechadas, isto é, sem nenhum contato entre elas.
De fato, uma região, numa zona de fronteira, deve ser entendida como algo construído dentro
do processo histórico de ocupação do local. Heredia (2009 apud VICROSKI, 2011) destaca a
importância de concepção de região não apenas como um marco geográfico, mas sim uma
categoria de análise, um espaço habitado e modificado pelo homem, onde se desenvolvem
relações sociais, construindo uma categoria de conhecimento do homem e não da natureza. O
processo de construção de uma região não deve ser entendido como algo espontâneo, ou
ISSN: 2525-7501
desinteressado, mas como uma imagem construída pelos povos que ali habitaram, uma
apropriação de posse e proteção das fontes da sua sobrevivência.

Região de interflúvio de rios, e importantes rios na Amazônia passaram a ser estudados


como um lugar de relação entre os diferentes grupos étnicos (ALMEIDA, GARCIA, 2016). A
análise de elementos da cerâmica que são a materialização de curtos e longos períodos de
contato entre esses grupos. O processo de interação e formação de sítio foi um processo
histórico de mobilidade que deve ser entendida dentro de uma formação territorial dinâmica de
fluxo (pré-colonial) e refluxo (pré-colonial e pós-colonial) de pessoas e da paisagem da
construção ao longo do tempo (ALMEIDA, GARCIA, id.).

O rio Araguari desabitado de Meggers e Evans com as recentes pesquisas vem


demostrando que se ali foi alguma espécie de fronteira, ela não seria do modo fechada, sem
interação de pessoas, ideias e objetos. Desde as primeiras pesquisas na região foi demostrando
a alta diversidade cultural para o Amapá. A relação conflituosa descrita pelos arqueólogos
norte-americanos em 1948 não se verifica. Cerâmicas de fases arqueológicas atribuídas a
grupos distintos estão juntas, num mesmo contexto em mais de um sítio ao longo da região da 340
Cachoeira Caldeirão. Se elas foram ou não usadas como ferramenta política, somente com um
estudo mais detalhado do estilo cerâmico e de outros elementos da cultura material para que se
possa fazer essas afirmativas. Precisa-se, através do estudo da cultura material, compreender as
permanências, as ausências e as alternâncias de elementos estilísticos na mesma, e, assim,
entender o significado da variabilidade da cultura material em uma determinada região. O fato
que esta associação e as incertezas sobre uma quarta fase arqueológica, a Koriabo, descoberta
recentemente no atual Estado do Amapá, mostra que a diversidade do baixo Amazonas ainda é
pouco compreendida. O incremento de pesquisas no Amapá promete trazer à luz novas
informações que possibilitarão uma melhor compreensão das sociedades que habitavam esta
região em tempos pretéritos.

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344
ISSN: 2525-7501
NAVEGANDO EM ÁGUAS TURBULENTAS: O INÍCIO DA CONSTRUÇÃO DA
FRONTEIRA NO VALE AMAZÔNICO. 1636 A 1639.*191

Maicon Alexandre Timm de Oliveira**.

RESUMO

A Amazônia um dos maiores tesouros do mundo, tanto em questões naturais como fauna e
flora, seria descoberta posterior a 1500, passaria a receber desde então outras expedições com
intenção de descobrir as suas potencialidades. Essas viagens produziram ótimas crônicas,
durante o século XVI a região seria apenas explorada, sem haver um plano claro de colonização,
mas o século XVII apresentaria uma forte mudança. Esta região pertencia à Espanha conforme
designa o tratado de Tordesilhas, mas seriam os portugueses a tomar posse dessas terras, isto
se daria por dois fatores, o primeiro a União Ibérica e segundo as invasões estrangeiras. Esta
fronteira que começava a ser delimita sofreia grandes transformações durante os anos seguintes.
Portugal seria autorizado a realizar tal empreitada, por Madri, mas conforme a União Ibérica
aproximava-se de seu fim, começará a surgir um clima de hostilidade entre a população das
possessões espanholas e dos habitantes de território luso, este tensão também passaria para as
autoridades. Seria com a expedição do português Pedro Teixeira que esta hostilidade se
apresentaria de forma mais clara, visto que empreendera uma viagem nunca feita antes, saindo
345
de Belém e indo até Quito no Peru, o grande temor era de uma invasão lusa pelo Peru. A partir
dessa expedição começaram a se intensificar as precauções de ambos os lados para uma disputa
ferrenha pela definição de um espaço fronteiriço, tanto que espanhóis apostavam em missões
religiosas e os portugueses na instalação de fortes militares, desse momento em diante o espaço
fronteiriço mudaria constantemente, ora com maior avanço espanhol ora com avanço português,
conforme o avanço de uma nação ou outra havia uma mudança nas relações com os indígenas.
Quem nos deixaria transparecer este contexto de disputa pelo espaço amazônico foram os
cronistas presentes nesta viagem empreendida entre 1636 a 1639.
Palavras-chave: Amazônia; União Ibérica; Fronteira.

INTRODUÇÃO

A região hoje compreendida como Amazônia brasileira, passou por um intenso processo
de disputa durante o período colonial até se tornar definitivamente território português.

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


**Mestrando, Universidade Federal de Pelotas, maicontimm16@hotmail.com
ISSN: 2525-7501
Contudo antes desse processo essa região passou por diferentes períodos. Conforme
Ugarte:
A região amazônica foi tocada pela primeira vez por europeus em fevereiro de 1500.
Comandava a expedição o espanhol Vicente Yanez Pinzon. Naquele momento,
“iniciou-se uma cadeia de encontros” – seguidos imediatamente de confrontos – com
os nativos (UGARTE, 2003. Pg. 6).

Demorariam exatos quarenta e dois anos sem observar outras expedições de grande
impacto, sendo descoberto o rio em sua totalidade apenas no ano de 1542 pelo explorador
Orellana e o padre Carvajal (CARVAJAL, 1941, p. 8). A partir desse momento o rio seria mais
frequentado por expedições primeiramente de espanhóis depois de portugueses. Todavia essas
expedições eram de pequeno porte não adentrando muito o rio devido os perigos
proporcionados por sua travessia ou pelas tribos indígenas hostis a presença dos europeus. A
História da Amazônia Colonial é algo desconhecida para muitos de nós, porém a História que
foi traçada ali diz muito sobre as políticas das Coroas Ibéricas relativas à periferia do Novo
Mundo. (SILVA, 2008, p.1)

O vale amazônico ganhou maior destaque durante um período bem determinado este foi 346
a União Ibérica isso por dois motivos.
O primeiro motivo tem um destaque maior à União das coroas ibéricas ocasionou
problemas, pois levou a invasão de territórios lusos e hispânico sendo Portugal quem mais
sofrera com isso, perdendo principalmente as colônias do Oriente, e em momentos mais
adiantados parte do Brasil, principalmente o Nordeste.
O território amazônico virou assim uma malha de colônias britânicas, holandesas e
francesas que utilizavam a região de diferentes formas e propósitos, holandeses visavam
dominar a produção do açúcar, ingleses visavam um controle do rio e a busca por novas
mercadorias, já os franceses possuíam um misto de intenções conseguirem uma colônia na
América onde pudesse ser extraídas riquezas, ainda acreditavam estar na região amazônica à
presença do El Dourado, um mito que ainda acompanhava a região da América espanhola.
Portugueses e espanhóis entraram em uma longa batalha com esses estrangeiros na tentativa de
expulsar estes do território amazônico.
Dentre todos os projetos não luso-castelhanos para o Maranhão, a ocupação francesa
foi a que mais obteve a atenção da burocracia hispano-lusa na primeira década do
século XVII. Diferentemente de ingleses e holandeses, que nos primeiros anos
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montam pequenos complexos comerciais e feitorias às margens dos rios, os franceses
organizaram uma ação que, mesmo com limitadas proporções, implicava uma
ocupação militar-civil, entre 1612 e 1615 (CARDOSO, 2011, p. 325)

Com esse projeto de expulsão dos invasores surgiria assim o segundo motivo que foi o
aumento de expedições espanholas e portuguesas sobre a região na tentativa de expulsar os
inimigos, mas também reconhecer o lugar e explorar as suas potencialidades. Os espanhóis
liberaram a entrada dos portugueses no rio Amazonas, esquecendo momentaneamente o
Tratado de Tordesilhas, isso na tentativa de evitar futuros problemas principalmente à perda de
todo uma região que poderia ser produtiva a coroa espanhola.
Ao final do processo de expulsão dos estrangeiros e o termino da União Ibérica surge
um novo problema para a região, a quem ela deve pertencer aos portugueses ou espanhóis a
construção dessa fronteira levaria anos para ser definida, porém uma expedição em particular
deu os primeiros indícios de que essa região teria um longo processo de definição à expedição
de Pedro Teixeira iniciada em 1636, pode ser vista como um possível marco para essa disputa
entre as coroas ibéricas.

347
Capítulo I - A expedição de Pedro Teixeira; vamos disputar esta região

A presença de outras potencias europeias no vale Amazônico estava preocupando em


muito os hispânicos isso porque o temor inicial ocasionado pelos inimigos europeus, em
especial os holandeses grandes inimigos espanhóis na época. O grande temor era que os
estrangeiros que invadiram o Amazonas, realizassem uma possível invasão do território
espanhol e a perda do controle sobre a região produtora de ouro em Potosí. Que esta defesa da
expansão ao norte, assim como maior incremento do nordeste brasileiro visava melhor proteger
o acesso ao Peru por tropas hostis à Espanha via delta amazônico. (PEREGALLI, 1986, p. 34)

Assim os espanhóis liberaram a intervenção militar portuguesa na região para eliminar


a presença desses inimigos europeus, todo esse processo durou alguns anos, mas teve um
desfecho positivo os estrangeiros foram expulsos, após longos anos de lutas em todas as partes
do Amazonas.
Entretanto após a eliminação dos invasores europeus surgiria outro temor. Este seria o
de seu aliado os portugueses representarem agora a ameaça de invasão das terras hispânicas, as
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relações se tornavam cada vez mais prejudicadas devido ao processo de Restauração de
Portugal, que visava acabar com a União Ibérica e restaurar a autonomia dos portugueses. O
temor espanhol estava principalmente no Amazonas onde os colonos e autoridades do norte do
Brasil, aguardavam com grande ansiedade a ascensão de um português ao trono e o final da
União com os espanhóis a quem tal fato fora de extremo prejuízo.
Na geopolítica imperial espanhola, o Brasil se tornara a pedra fundamental do
império, não em virtude de qualquer valor intrínseco, mas por causa da sua localização
estratégica. Planejadores militares em Lisboa, Madri e Amsterdã reconheciam que o
controle holandês da costa brasileira proporcionaria uma base de operações contra os
tendões do império ibérico. Uma força hostil entrincheirada em Recife ou Salvador
poderia atacar os portos das costas do Atlântico e do Pacífico, interceptar as frotas
espanholas carregadas de prata no mar do Caribe {...} Acima de tudo, os forjadores
da política espanhola viam a costa brasileira como a primeira barreira de defesa do
Peru. O Peru e sua prata, e não o Brasil e seu açúcar eram a coroação do Império e
ninguém tinha certeza de quão distante estavam as minas de Potosí do litoral
brasileiro. (Schwartz, 1979, p. 175 - 176)

O que era o pilar da defesa de toda uma região, agora se apresentava como uma lança
apontada para o coração do império Espanhol. Com grande temor e preocupações o monarca
espanhol autoriza no ano de 1636 uma missão religiosa que deveria sair de Quito, com o
objetivo de estender o controle na região próxima à cidade, a intenção era obter apoio dos índios 348
da província dos Encabellados. Contudo estes grupos de indígenas eram extremamente hostis
à presença de qualquer europeu, mesmo os espanhóis que tinham uma relação boa com outras
tribos não eram aceitos, e à tentativa de instalação de uma comunidade religiosa nessa
localidade fracassa, em decorrência de uma rebelião, que ocasionaria a morte de um número
expressivo de religiosos e a divisão do grupo dois frades foram forçados a ir para a direção
oposta de Quito. Eram eles os frades Domingo de Brieva e Andrés de Toledo. Junto a eles se
encontravam outros seis soldados espanhóis. Não tendo condições de retornar para o Peru,
decidiram realizar a decida do rio na esperança de encontrar algo que lhes dessem condições de
sobreviver.
A expedição fracassada dos espanhóis daria início à grande investida dos portugueses
para com a região Amazônica. Durante dias os missionários espanhóis que escaparam da
rebelião indígena, desceram o rio Amazonas e seus afluentes na tentativa de encontrar um local
seguro para se alojarem, mas seu temor era tanto que, desde o ataque indígena, eles não
realizaram nenhuma outra parada e apenas seguiram o curso do rio. (COSTA, 2009) Chegariam
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finalmente a um local seguro no dia 5 de fevereiro de 1636. Esta era a cidade de Belém, posto
avançado dos portugueses na região. Isto traria consequências como nos apresenta Martins:
Em que pese o fato de a Península Ibérica encontrar-se sob a mesma Monarquia, as
autoridades locais sobressaltaram-se com a possibilidade de que o conhecimento da
rota encorajasse outros empreendimentos espanhóis. Por isto, organizaram uma frota
que deveria subir o Amazonas (MARTINS, 2007, p. 37).

Os dois religiosos assim que chegaram a Belém seria levada a presença do Capitão Mor
Jácome Raimundo de Noronha, para prestarem explicações de qual seria o motivo de sua
viagem, ambos passaram por um interrogatório, na tentativa de descobrir qual era intenção por
detrás dessa viagem, tanto Domingo de Brieva e Andrés de Toledo, explicaram a Noronha sua
vinda até a cidade de Belém decorria da rebelião indígena, onde apenas os dois seriam os
sobreviventes, porém o Capitão Mor seguia relutante em acreditar que esta era a causa da
aparição dos espanhóis no território que estava sobe domínio dos portugueses. Ugarte nos
apresenta isso muito bem:
Apareciam, pois, ao mesmo tempo, um grave perigo e uma oportunidade favorável: a
ameaça de expansão dos espanhóis de Quito, rio-abaixo, mas também a possibilidade
de comerciar com eles, por via rio-mar, levando-lhes mercadorias a bom preço, a trôco
da prata do Peru, tão cobiçada pelos portugueses [...] Antecipar-se à Espanha com um
ato solene de posse, em nome da coroa portuguesa, urgia uma decisão rápida e, ao 349
mesmo tempo a segurança de encontrar, quanto menos, no conselho de Portugal o
amparo que o resguardasse das possíveis iras do conselho das Índias, espanhol.
(CORTESÃO, 1950, p. 64 APUD UGARTE, 2003, p. 23).

Como podemos observar Noronha extremamente desconfiado que a vinda desses dois
religiosos espanhóis até Belém fosse uma tentativa de observar a região, e construir um
conhecimento sobre instalações portuguesas para uma posterior invasão espanhola para retomar
o controle da localidade que lhes pertencia segundo o tratado de Tordesilhas, mas também
apresentava interesse em realizar um feito de grande importância para o reino de Portugal que
estava prestes a se libertar da Espanha.
O Capitão Mor decidiria então realizar uma expedição que fizesse o caminho inverso e
subisse o rio até a cidade de Quito, para isso surgiam dois claros objetivos, primeiro realizarem
um mapeamento minucioso da região, destacando locais com potencialidade para a instalação
de fortes militares e a criação de cidades, esse relato deveria ser produzido para gerar um
conhecimento sobre essa localidade visto que os portugueses ainda não haviam navegado em
certos locais, principalmente nas proximidades de Potosí, local que era alvo da cobiça dos
portugueses.
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O segundo objetivo, mas não menos importante era estabelecer um marco divisório
entre os domínios espanhóis e portugueses, essa linha divisória, como destaca Jean Chesneaux
e seu conceito de “fronteira linha” que esta relacionada, a questão de disputa políticas entre
impérios ou posteriormente estados. (CHESNEAUX, 1976, p.82).
Esta deveria ser o mais próximo da cidade de Quito, dando acesso a um novo território
ao rei português, em caso de vitória dos restauradores, já se tinha uma forte ideia de que a União
Ibérica estava com os dias contados, e que Portugal voltaria a ser uma nação independente e
qual o melhor presente que não seja terras e novos súditos, este era a intenção de Noronha.
Para realizar essa expedição era necessária uma pessoa que tivesse conhecimento sobre
a navegação de rios. Além disso, deveria ter uma vasta experiência em combates em
decorrência do histórico da região, devido à presença de europeus ainda em certos locais, e a
forte aversão de algumas sociedades indígenas. Conforme Filho o escolhido seria:

Pedro Teixeira, português, veio para o Brasil em 1607; atuou na defesa do país contra
outros conquistadores europeus que, assim como os portugueses, buscavam se
apoderar da foz do rio Amazonas. Em 1616 Pedro Teixeira participou da expedição

350
comandada por Francisco Caldeira Castelo Branco que fundou o Forte que daria
origem à Santa Maria de Belém do Grão-Pará. Era então alferes e viajou por terra a
São Luís para dar notícia do sucesso da conquista. Lutaria ainda contra o
estabelecimento de fortes holandeses no Xingu em 1625, e contra os ingleses no forte
de Taurege. Pedro Teixeira terminaria seus dias em 1641 como capitão-mor da
capitania do Grão-Pará (FILHO: FERNANDES, 2014, p. 150).

Teixeira sairia de Belém em outubro de 1637, sua expedição seria a mais grandiosa
empreendida até então no Rio Amazonas, iriam nessa viagem também “setenta soldados
portugueses e mil e duzentos indígenas, distribuídos entre quarenta e sete canos.” (HERIARTE,
1874, p. 37). Caberia a Mauricio de Heriarte descrever esta viagem e relatar melhores locais
para a implementação dos objetivos traçados. A expedição não encontrou muitas dificuldades
rio acima, se tratando de conflitos com índios, isto porque não entrou em contato com as temidas
tribos guerreiras que se encontrava na região, o principal problema foi à fuga dos indígenas que
faziam parte da expedição e a forte correnteza do rio amazonas.

Algumas marcações efetivadas pelo capitão português serviriam para, nas décadas
seguintes, sustentar as pretensões portuguesas sobre a região conhecida como
“Grande Omágua” e, desta maneira, alimenta ruma polêmica com os espanhóis
(MARTINS, 2007, p. 38).
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A viagem rio acima durou cerca de oito meses após a saída da expedição. A chegada de
uma expedição comandada por um português há uma cidade espanhola, levou a população da
região a criar um sentimento de medo, principalmente por causa de os lusos terem subido o rio,
algo que nunca havia acontecido antes nem ao menos com a presença dos estrangeiros, o temor
seria mais forte nas autoridades espanholas, que reforçava o medo de um ataque português e a
perda do controle da região produtora de ouro e prata de Potosí.
Assim como ocorrera em Belém onde os padres foram interrogados pelas autoridades
portuguesas, Pedro Teixeira fora intimado a realizar seu depoimento frente à Real Audiência
de Quito, sobre quais eram as intenções de sua viagem até esta cidade. Teixeira não liberava
quais seriam as suas intenções, apenas alegava que realizara a descoberta e a conquista de novas
terras para o rei Felipe IV, contudo isso não deixou as autoridades espanholas menos receosas
e preocupadas com a sua estada na cidade, mas principalmente temiam uma futura invasão, isso
ocasionou na tentativa de evitar ao máximo a presença desses portugueses na região evitando
assim, o possível conhecimento dos pontos forte e fracos da cidade.

As autoridades espanholas, igualmente sobressaltadas, determinaram o regresso de


Teixeira, cumprindo o itinerário inverso daquele que o conduzira até Quito. 351
Estabeleceram, ainda, que ele fosse acompanhado de observadores encarregados de
prestar contas da viagem e relatar dados sobre a geografia, sobre as populações e sobre
as possíveis riquezas da região percorrida (MARTINS, 2007, p.38)

Pelo exposto, os membros da Real Audiência de Quito, não tendo descoberto a intenção
da viagem, acabaram por decidir que seria necessário enviar alguém junto, na viagem de retorna
a Belém, a escolha dessa pessoa teria que passar por dois pontos básicos, o primeiro a ser
destacado deveria ser a sua forte identificação com os espanhóis, já o segundo ponto para a
escolha seria mais complexa, pois visava escolher uma pessoa que não demonstrasse ser um
espião espanhol enviado para observar e relatar ao monarca espanhol qual foram às intenções
de tal viagem empreendida pelos portugueses rio Amazonas acima, a melhor escolha que se
apresentava era de um homem de Deus, visto que um militar ou autoridade administrativa
poderia representar de forma mais clara uma possível observação da viagem. O que não
significa que o religioso não levantasse suspeitas, mas era uma forma de minimizar a
preocupação portuguesa.

No dia 24 de janeiro do ano de 1639, a audiência de Quito expediu, em nome de Felipe


IV da Espanha, uma provisão geral que autorizava os jesuítas Crsistobal de Acuña e
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Andrés de Artieda a seguirem viagem em direção a província do Pará, na companhia
do capitão mor Pedro Teixeira. Tratava-se de um ato de importância política
significativa e não apenas de uma simples, embora fascinante aventura (Acuña, 1994,
p. 5)

Para tal tarefa fora escolhido um jesuíta de destaque na região Acuña que nascera na
Espanha, após entrar para a ordem jesuíta veio para a América de onde não saio mais, atuou em
diferentes localidades ate ser transferido para a região de Quito. A escolha de Acuña se deu
justamente por ser um religioso fiel à coroa espanhola prestando grandes serviços. Seu objetivo
era bem específico, cabia a ele informar qual a real intenção da viagem de Teixeira, para isso
deveria observar tudo e como atividade documental escrever tudo em um relato bem
fundamentado que pudesse servir como base para a elaboração de estratégias políticas e
militares para a retomada do vale Amazônica, em caso de uma futura invasão, além de fazer
uma descrição minuciosa do rio e das suas peculiaridades ressaltando locais para instalação de
forte militares. Como demonstra Martins:

Particular cuidado em descrever com a maior clareza possível, à distância em léguas,


províncias, povoações de índios, rios e lugares específicos que há desde o lugar de
embarque até a referida cidade e porto do Pará, o informando-vos disso com a maior
exatidão [...] para dar a competente notícia de tudo, como testemunho ocular, ao [...] 352
Real Conselho das Índias (ESTEVES, 1994, 129 APUD: MARTINS, 2007, p. 38).

Esta seria a forma que as autoridades espanholas, encontraram para despistar a presença
do jesuíta. Assim a viagem retornaria então a navegar o rio, porém agora no sentido contrario
saindo de Quito e indo para Belém, em fevereiro de 1639. Logo na partida Acuña então daria
início a produção do seu relato já demonstrando, que a intenção da expedição portuguesa não
era apenas para realizar a descoberta da região, visto que logo após a saída de Quito, a expedição
realizaria uma parada. Conforme Souza:

Pedro Teixeira abriu as instruções secretas do governador e cumpriu a misteriosa


ordem. Tomando de um punhado de terra, que lançou ao ar, e perante os
representantes da Real Audiência, disse que tomava posse daqueles rios e mais terras,
rios, navegações e comércios em nome do rei Filipe IV, para a Coroa de Portugal. Os
Autos de Posse foram mais tarde registrados na Câmara de Belém. Os limites do
domínio português agora se estendiam a mil e duzentas léguas da capital do Pará.
(SOUSA, 2009, p. 100 - 101).

Assim pode se observar que Teixeira não se importaria com a presença de espanhóis na
expedição, e assim realizará o seu objetivo de imediato, Acuña observando esse fato traria uma
ISSN: 2525-7501
maior motivação para que o monarca espanhol retomasse a posse da terra que estava sendo
usurpada pelos portugueses.
Entre todos os cronistas utilizados, o que mais nos revela o clima de tensão e a
ambiguidade da aliança proporcionada pela União Ibérica, assim como os objetivos da viagem
e o padre Acuña, pois quando Teixeira dera seu relato despistara em todos os pontos que
considerava críticos, isto segundo Ugarte:

Tendo em vista o delicado contexto político em que atuou, ou seja, participar de um


movimento conspiratório, do qual poderia ser acusado de incorrer no crime de lesa-
majestade – e que fora descoberto por outros meios pelas autoridades castelhanas de
Quito -, Pedro Teixeira não se arriscou em deixar em sua relación o menor vestígio
que pusesse em jogo os planos Jacome Raimundo Noronha. (Ugarte, 2009, p. 109).

Teixeira tinha completo conhecimento que não poderia colocar as intenções


portuguesas de forma aberta, enquanto estivesse perante as autoridades espanholas. Como
observamos antes Teixeira não ficaria com medo da presença de Acuña, quando chegara a
grande hora de realizar seu objetivo central tomar posse dessas novas terras e aumentar com
isso sua fronteira também, isto foi proporcionado pelo fato de já não poder ser mais preso pelo
crime de lesa – majestade. Isso tudo porque a União Ibérica já estava em processo de 353
desmantelamento, mas o temor era perder o comandante dessa expedição em Quito caso as
intenções fossem descobertas fato que não ocorrera e assim poderia prosseguir o avanço luso
na região.
Uma das maiores viagem que percorreria o Amazonas e seus afluentes chegaria ao final
em dezembro de 1639, retornando a Belém, Teixeira daria as notícias a Noronha, da realização
com sucesso da demarcação de uma fronteira entre as coroas, Acuña então também daria
sequência a sua viagem, pois deveria ir até Madri entregar ao monarca espanhol o seu relato,
para que este pudesse tomar as devidas precauções e ações, em relação à região amazônica e a
sua posse.

O avanço dos luso-brasileiros foi uma das principais preocupações ressaltadas por
Rojas e Acuña ao longo de suas obras. No segundo caso, duas ideais principais
atravessam o texto: a necessidade de ocupação efetiva do território pela Espanha, para
deter o avanço português, assim como a de aumentar a presença de religiosos que
atuassem na catequese dos grupos indígenas. (UGARTE, 2009, p.116)
ISSN: 2525-7501
O padre jesuíta fizera o que fora mandado, por seus superiores de Quito, elaborando o
relato que poderia modificar todo o contexto que estava tomando forma em relação à disputa
pelo território amazônico. Para isso Acuña:

Depositava sua confiança de que a Espanha patrocinasse na região “a conversão de


infinitas almas, o enriquecimento da Coroa Real e a defesa e proteção de todos os
tesouros do Peru”, barrando o avanço português pela calha do rio, situação esta que
observou e denunciou (ACUÑA, 1994, p.179)

Porém Felipe IV não dera a devida importância ao relato de Acuña, e a sua


comprovação de uma intenção portuguesa de se apossar das terras que por direito pertenciam à
Espanha, esse descaso para com o Amazonas representaria sua perda para os portugueses após
a Restauração em 1640. Em contra partida parece que o monarca português seguiria as
proposições dos seus súditos em relação às novas terras principalmente de Heriarte:

Advirto a S. Magestade que as não despreze, pois nellas se podem fazer novos reinos
em que se sirva a Deos e tenha a corôa novos acrescimentos. {...} Intentando S.
Magestade conquista-lo e povoa-lo, o hade ajudar a divina magestade do nosso
poderosíssimo Deos e senhor, tomando-o por instrumento para salvar tanta multidão

354
de almas da gentilidade que nessas, partes há. (HERIARTE, 1874, p. 68)

Em comparação as posições dos monarcas fora diferentes o novo rei português se


mostrou favorável a ocupar a região, enquanto a posição do monarca espanhol, não deixa de
demonstrar um temor para com o clima de desconfiança que estava surgindo na região. O certo
e que Felipe IV pensava que poderia reverter a situação a seu favor, isto por ainda estar presente
a União Ibérica é que entendia que poderia forçar os portugueses a recuar em qualquer
momento. Mas esta já não era mais a tônica da situação, isto porque os lusos já estavam livres
do julgo dos espanhóis, e assim não poupariam esforços para expandir suas terras, agora não
mais importando se estavam ou não quebrando o tratado de Tordesilhas ao qual já estava
destruído com a autorização dos espanhóis de avançarem sobre seus territórios com a intenção
de eliminar a presença de outros europeus da América.

Quando a União Ibérica acabou, em 1640, Portugal já havia ocupado grande parte dos
territórios que antes pertenciam à Espanha. Assim, a Amazônia brasileira tornou-se
território português; porém, não sem resistência por parte da Espanha. Foi preciso que
muitos outros acordos fossem firmados entre Portugal e Espanha para que as
fronteiras de seus territórios coloniais, na América, ficassem estabelecidas.
(BENTES, 2006, p. 41)
ISSN: 2525-7501
O processo conhecido com a União Ibérica daria a largada para a ocupação e
colonização das terras do Amazonas, mas estas seriam primeiramente ocupadas não por
ibéricos, mas por outros europeus que contestando o tratado de divisão do mundo, passariam a
buscar uma região para programar as suas colônias, além disso, a união das coroas traria
também consequências graves para Portugal como a perda de suas principais fontes de lucro o
Oriente e o nordeste do Brasil.

CONCLUSÃO

O vale amazônico observou dessa forma o surgimento de um processo que se arrastaria


por anos, ou seja, o surgimento de uma fronteira entre os dois impérios, esse processo teve
origem com a União Ibérica, e as consequências que trouxe para o Amazonas com as invasões
estrangeiras bem como a política colonial de Madri, baseada no temor de invasão de Quito,
fomentaria o avanço luso sobre a região para realizar a defesa do rio Amazonas. Quando da
aproximação do fim da União Ibérica então passaria a surgir um clima de hostilidade crescente
entre portugueses e espanhóis, para com a posse das terras do Vale Amazônico, esse clima se
manteria e aumentaria durante todo o decorrer do século XVII, mas nunca proporcionaria a 355
deflagração de uma guerra na região.

A expedição de Pedro Teixeira demonstra isso tudo, ao mobilizar ambos os lados do


império. Esse conjunto de encontro e desencontro entre os anos de 1636 a 1640, apenas
demonstrariam o quanto essa região estaria no centro de uma disputa fronteiriça que se
arrastaria por anos e mobilizaria diferentes aspectos das sociedades portuguesa e espanhola.
Essa expedição causara um impacto grande nas relações entre os ibéricos juntamente com as
demais questões de fronteira da América. O que iniciou com uma estratégia espanhola na
tentativa de defender seus territórios de uma possível invasão estrangeira terminou por
desembocar em um processo complexo de definição das fronteiras da América Latina.

Acuña, Teixeira e outros pertencentes às expedições são os quem observaram em uma


região até então pouco explorada por suas coroas, a grande chance de entregar ao seu monarca
essa terra que prometia ser uma grande fonte de riqueza, por isso ambos os relatos trazem
indicações do que deferia ser feito, dessas indicações é que o vale Amazônico entraria no foco
das grandes debates políticos da época, a solução sempre fora buscada pela diplomacia, esta
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que daria uma definição apenas em meados do século XVIII em diante, com os tratados que
daria fim à disputa não só no território do Amazonas, mas para todo o Brasil.

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ISSN: 2525-7501
IMIGRAÇÃO E FRONTEIRA: A LEGIÃO ALEMÃ DE 1851*192

Carlos Eduardo Piassini**193

RESUMO

O presente trabalho, vinculado as pesquisas em desenvolvimento no Programa de Pós-


Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria (PPGH-UFSM), na Linha de
Pesquisa “Fronteira, Política e Sociedade”, contando com auxílio de bolsa CAPES/DS, objetiva
apresentar a relação entre a vinda de mercenários germânicos ao Brasil em 1851 e questões
ligadas à Fronteira. Diferente de outros grupos de imigrantes germânicos instalados no Rio
Grande do Sul ao longo do século XIX, a Legião Alemã dos Brummer foi contratada pelo
governo imperial brasileiro para engrossar as fileiras de suas forças militares na Guerra contra
Oribe e Rosas (1851-1852), um conflito envolvendo interesses fronteiriços. Procuramos
relacionar a experiência fronteiriça dos Brummer com o conflito de Schleswig-Holstein contra
a Dinamarca (1848), e com o posterior envolvimento de alguns deles na defesa de uma
identidade teuto-brasileira entre imigrantes germânicos das regiões coloniais do Sul do Brasil.

358
Palavras-chave: Brummer; Fronteira; Imigração Alemã.

INTRODUÇÃO

Landesknecht! Mercenário para servir no Brasil? Brummer! É vergonhoso e digno de


pena ver-se como mercenário de uma nação estranha. Mas quando se segue com
espírito humilde o enrodilhado destino que levou a cada qual a encetar tal caminho,
então se aprende a julgar o seu fazer e agir. Leviandade, gosto por aventura,
desconhecimento, apertos e outros acontecimentos empurram a uns tantos passos dos
quais a gente se arrepende mais tarde. Não era meu desejo vender-me como
mercenário de guerra, quando em 1851 cheguei a Hamburgo. Mas os “prementes
acontecimentos” foi que me fizeram deixar cair nas mãos de um grupo de alegres

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Mestrando, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria, bolsista
CAPES/DS, cepiassini@yahoo.com.br. Trabalho orientado pela Profa. Dra. Maria Medianeira Padoin,
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria,
mmpadoim@gmail.com.
ISSN: 2525-7501
irmãos, que se haviam engajado. E assim me deixei embrulhar e segui também para o
Brasil (LENZ, 1997, p. 15).

As palavras do legionário Cristóvão Lenz ilustram seu engajamento na Legião Alemã


dos Brummer194, recrutada pelo governo imperial brasileiro em 1851 para engrossar as fileiras
das forças militares reunidas a fim de enfrentar a ameaça expansionista de Buenos Aires, então
governada por Juan Manuel de Rosas. Cerca de 1.800 homens vieram para o Brasil, divididos
entre Artilharia195, Infantaria196 e Sapadores197. A atuação desses batalhões foi pouco
significativa nos campos de batalha, e não respondeu às expectativas de sua contratação. O
governo imperial queria soldados exemplares e potenciais colonos após a prestação de serviço
militar, entretanto, reuniram batalhões inexperientes no manejo do armamento trazido do
território germânico, pouco habituados às longas marchas desenvolvidas nos campos rio-
grandenses e uruguaios, e, em sua maioria, desalinhados ao trabalho colonial (LEMOS, 2015;
BENTO 1981).

A missão de constituir a força germânica, autorizado pela Lei nº 586 de 1850, foi dada
ao Tenente-Coronel Sebastião do Rego Barros, Conselheiro de Sua Majestade o Imperador,
Comendador da Ordem de São Bento de Aviz e Veador de Sua Majestade, a Imperatriz, enviado 359
à Europa em fins de 1850. Também recebeu, segundo Schmid (1951), a tarefa de adquirir o

194
Os legionários alemães ganharam uma alcunha singular, foram chamados de Brummer. Não se tratou de uma
denominação oficial dada dentro do exército, mas sim de um apelido extraoficial conferido a eles pelos brasileiros.
Como explica o legionário Cristóvão Lenz (1997), tal nome foi dado aos legionários porque trocavam por um copo
de cachaça grandes moedas de cobre de 40 réis que chamavam de Brummer. Quando chegaram ao Rio Grande do
Sul e as pessoas os ouviram calcular em Brummer passaram a eles o apelido dado as moedas. De acordo com
Juvencio Saldanha Lemos (2015), os legionários teriam chamado as moedas brasileiras de 40 réis de Brummer em
alusão às moedas polonesas da região germânica da Alta Silésia, feitas de cobre, apelidadas de Brummer, ou seja,
“zumbidoras”, pois quando eram atiradas nas mesas das tavernas produziam zunido grave e surdo. Hilda Agnes
Hübner Flores (1997) aponta outro significado para o termo, isto é, o uso de Brummer enquanto sinônimo de
rezingão, ranzinza, característica atribuída aos legionários. A referida alcunha, seja qual for sua real origem,
ganhou expressão a partir do contato dos legionários com os moradores do país onde acabavam de chegar.
Portanto, o uso do termo Brummer para identificar todos os soldados germânicos que compuseram as tropas de
legionários contratados para atuarem na Guerra Grande (1839-1852) a serviço do Império brasileiro, tendo eles
participado efetivamente da campanha contra Rosas ou não, nasceu no Brasil.
195
De acordo com o Dicionário Michaelis, são os soldados encarregados do manuseio de peças, canhões e mais
bocas-de-fogo para atirar projéteis a grande distância. No caso dos Brummer, não chegaram a formar de fato uma
artilharia, pois não tinham cavalos nem canhões. Caxias tinha planos de misturar esse batalhão com os brasileiros,
ao que o capitão Jahn fez oposição.
196
De acordo com o Dicionário Michaelis, é uma das armas militares (exército ou marinha) constituída por
unidades treinadas para o combate a pé.
197
De acordo com o Dicionário Michaelis, são os soldados encarregados da abertura de fossos, trincheiras e
galerias subterrâneas, de minar o ambiente para derrotar um inimigo.
ISSN: 2525-7501
correspondente armamento e equipamento para os recrutados, isto é, armas e uniformes. Como
explica o Capitão Carl Eduard Siber,

A imminencia [sic] da guerra contra o dictador [sic] de Buenos Aires, D. Juan Manuel
de Rosas, cujo poderio era fantasmagoricamente exagerado por adeptos e adversarios
[sic], moveu o gabinete Olinda a mandar aliciar na Allemanha [sic], em meio dos
destroços do exército de Schleswig-Holstein, recentemente licenciado em virtude da
paz de Berlim, entre a Prússia e a Dinamarca, a gente necessária à formação de corpos
de infantaria e de artilharia capazes não só de auxiliarem officazmente [sic] ao nosso
exército, como de lhe servirem de modêlo [sic]” (SIBER, 1915, p. 380).

Os legionários alemães, aponta Leomar Tesche (2014), tinham entre 17 e 50 anos de


idade, e muitos se alistaram mesmo sem conhecimento do serviço militar, além disso, grande
parte dos Brummer havia participado de movimentos liberais ocorridos em território germânico.
Para Schmid (1951), parte considerável dos legionários recrutados por Rego Barros veio da
dissolução do exército de Schleswig-Holstein, que lutara contra a Dinamarca. A
heterogeneidade dos recrutados é exemplificada por Schmid (1951) em uma fala de Karl Von
Koseritz, na qual aponta que havia homens velhos, com experiência de atuação em campanhas
na África, na Índia, na Polônia, e na Espanha, e também muitos jovens, alguns ainda sem
concluir os estudos. Maria Amélia Schmidt Dickie (1989), destaca que a maioria dos Brummer, 360
[...] havia lutado nos movimentos liberais dos anos 46 a 50, nas regiões do Schleswig-
Holstein e Baden. Filhos de famílias abastadas ou nobres, educados e principalmente,
politizados, foram se estabelecendo em Porto Alegre e nas zonas coloniais como
professores, advogados, engenheiros, agrimensores, médicos, etc. Eram, na maioria,
protestantes, maçons e partidários de uma monarquia liberal.

Portanto, esses mercenários198 compuseram parte das forças militares brasileiras no


conflito internacional contra Oribe e Rosas, e tanto experiências anteriores a este processo,
quanto aquelas relacionadas a trajetória dos batalhões de estrangeiros, dizem respeito à
Fronteira. Assim, procuramos a seguir tratar dessa questão.

Capítulo I - A Guerra de Schleswig-Holstein contra a Dinamarca

198
O termo “mercenário”, para Bryère-Ostells (2012, p. 10-11), está vinculado à prestação de serviço militar à um
empregador: “No sentido estrito, o termo latino mercenarius designa um ‘soldado contratado mediante dinheiro’
ou um ‘doméstico que se paga’. Logo adquiriu o sentido de militar que serve a uma organização ou a um governo
estrangeiro mediante remuneração. Poderíamos definir o mercenário como um prestador de serviços que,
independentemente das causas, motivações, acontecimentos, meios de recrutamento e de retribuição, coloca uma
força armada à disposição de um empregador (público ou privado). ”
ISSN: 2525-7501
Parte considerável dos Brummer adveio da dissolução do exército de Schleswig-
Holstein, empregado na luta contra a Dinamarca durante a década de 1840 por questões
históricas relacionados à Fronteira, acirradas após o Congresso de Viena. De acordo com Lemos
(2015), Schleswig e Holstein foram ducados feudais até o ano de 1459, quando passaram ao
domínio da coroa dinamarquesa. Ainda assim, mantiveram sua autonomia local. Essas regiões
ligavam os territórios germânicos à Dinamarca. Schleswig, por exemplo, estava contida
totalmente na Península Jutlândia, que atualmente compõe parte da Dinamarca e o extremo
norte da Alemanha. Em vista de sua localização, grande parte da população desses ducados era
de origem germânica, sendo a população dinamarquesa maioria apenas na parte setentrional de
Schleswig. A aproximação com os reinos de Hannover e Dinamarca levou o Congresso de
Viena a manter esses ducados subordinados à Dinamarca, ignorando os aspectos sociais e
culturais dessas regiões. Dessa forma, permaneceram sem integrar-se à mesma.

Na década de 1840, o reino da Dinamarca passou a adotar uma política oficial de


integração dos dois ducados. Para isso, procurou impor a eles uma nova ordem mediante a
neutralização cultural e administrativa da população alemã residente em Schleswig e Holstein.
Dessa forma, houve a gradual substituição de indivíduos de origem germânica por
361
dinamarqueses em cargos do serviço público e militar. A população majoritariamente
germânica desses ducados não aceitou as imposições do reino dinamarquês em vista da ligação
que possuíam com suas origens germânicas, e sublevou-se. O conflito teve início em 1848,
somando-se aos inúmeros outros levantes que sacudiram a Europa naquele momento,
motivados, sobretudo, por questões nacionais e liberais. Schleswig e Holstein formaram um
governo provisório e buscaram apoio na Confederação Germânica, da qual Holstein já fazia
parte e Schleswig veio a compor assim que o conflito tomou forma (LEMOS, 2015).

Acerca do conflito, o legionário Henrique Schäffer explica,

A situação em Schleswig-Holstein estava cinzenta. O rei da Dinamarca em 1848


decidiu incorporar o ducado de Schleswig a seu Reino, o que resultou em uma guerra
sangrenta. A Alemanha, que defendia os países da população alemã, reforçou o
pequeno exército de Schleswig-Holstein, batendo os dinamarqueses (SCHÄFFER,
1997, p. 53).
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Após derrotas, a Dinamarca pediu à Inglaterra, Rússia e Áustria a intervenção no
conflito. O clamor foi atendido. As potências acionadas exigiram da Prússia o fim da
intervenção militar na Dinamarca, e houve armistício (LEMOS, 2015).

Em março de 1849, as tropas alemãs retomaram a ofensiva, aliados a Schleswig. Em


abril e maio obtiveram várias vitórias sobre a Dinamarca. Também as forças de
Schleswig-Holstein, comandadas pelo Gen. von Gonin, bateram o inimigo duas vezes
na fronteira com a Jutlândia. Inglaterra e Rússia tornaram a assumir posição
ameaçadora. Os diplomatas iniciaram seu trabalho e os prussianos conduziram a
guerra de maneira frouxa, dando na vista que aguardavam por um tratado de paz. O
general prussiano simplesmente deixou que os dinamarqueses batessem as forças de
Schleswig-Holstein (SCHÄFFER, 1997, p. 53).

A partir do momento em que as tropas regulares germânicas se retiraram, houve


campanha em toda Confederação Germânica pedindo voluntários199 para combateram os
dinamarqueses. A convocação teve êxito (LEMOS, 2015).

Em 2 de julho de 1850 foi assinada a paz em Berlim, pela qual o rei da Dinamarca
ficou encarregado de empregar todos os meios para vencer a resistência em Shleswig-
Holstein. Assim as forças desses ducados ficaram sozinhas para combater a
Dinamarca, agora sob novo comandante, Gen. von Wilisen, que possuía mais
conhecimentos teóricos que práticos sobre a guerra. Após dois dias de heroica luta em
Idstedt a 24 e 25 de julho de 1850, e após o assalto inútil em Friedrichsstadt, em 4 de 362
outubro, Áustria e Prússia, em nome da Confederação Alemã exigiram a suspensão
das lutas bélicas, em janeiro de 1851. A força de Schleswig-Holstein foi dissolvida.
(SCHÄFFER, 1997, p. 53).

O conflito acabou com a derrota das pretensões dos ducados de Schleswig e Holstein.
Entre os ex-combatentes ficou a sensação de que haviam sido abandonados e traídos pela
Confederação Germânica. Ciente desse ocorrido, Sebastião Rego Barros encontrou na
dissolução das tropas dos ducados derrotados parte significativa dos mercenários da legião dos
Brummer (SCHMID, 1951). De acordo com Lemos,

[...] esses voluntários desmobilizados, em sua gritante maioria, eram moços alemães
ideologicamente frustrados devido ao arrasador fracasso das revoluções de 1848;
politicamente indignados com o esvanecimento do acalentado sonho de uma

199
“[...] esses heroicos voluntários que constituíram o exército de Schleswig-Holstein, classificado pelos oficiais
prussianos como ‘abaixo da média’ e que chegou a atingir o efetivo de 36.000 homens [...] decididamente não
eram soldados. Gente urbana, artistas, intelectuais, estudantes, boêmios [...]. Além disso, chegaram ao campo de
batalha quando a situação militar já estava praticamente definida em favor da superioridade bélica dos
dinamarqueses” (LEMOS, 2015, pg. 61). As tropas de Schleswig-Holstein foram derrotadas em várias frentes de
batalha. A Áustria, sob o temor da unificação alemã, impôs aos prussianos um ultimato, o “Tratado de Olmütz”,
afastando de vez a Prússia da questão dinamarquesa e exigindo tratar os militares envolvidos na causa dos ducados
como delinquentes revolucionários, ameaçando-os com retaliação militar caso não depusessem as armas. A Prússia
fez cumprir o tratado.
ISSN: 2525-7501
unificação alemã, com a retirada prussiana da Dinamarca; espiritualmente desiludidos
de seus líderes e causas europeias, sentindo-se mesmo traídos e abandonados em seus
ideais. Em suma, almas desorientadas em busca de novos valores. Pior de tudo, com
o sustento pessoal comprometido (LEMOS, 2015, pg. 90).

Rego Barros, o agente encarregado pelo governo imperial de realizar o recrutamento


dos mercenários, encontrou aí os oficiais da tropa legionária que, ao lado de outros soldados de
Schleswig-Holstein, como afirma Claudio Moreira Bento (1981), eram indivíduos bem situados
socialmente, de elevado padrão cultural e moral e muitos deles eram membros da nobreza
alemã. Como Lemos (2015) explica, formaram uma força de voluntários da mais variada
configuração200. Certamente havia soldados experientes, mas ao mesmo tempo o oposto
também existia.

Capítulo II - A Guerra contra Oribe e Rosas

Os Brummer foram contratados pelo governo imperial brasileiro para lutarem na


Campanha contra as forças de Juan Manoel de Rosas, na Guerra Grande (1839-1852). Ao
envolver outros Estados que não apenas aqueles localizados na região do rio da Prata, este 363
conflito adquiriu caráter internacional. Foram protagonistas Buenos Aires, Corrientes, Santa
Fé, Montevidéu, Entre Rios, Paraguai, Brasil, França e Inglaterra. De modo geral, dentre as
motivações dos envolvidos, podemos citar os fortes interesses econômicos franceses e ingleses
no rio da Prata, a existência de planos expansionistas por parte de Buenos Aires, bem como sua
hegemonia econômica sobre os demais Estados da Confederação Argentina, a defesa da
autonomia e independência do Paraguai e do Uruguai, e a intervenção brasileira com o intuito
de combater a ameaça de Buenos Aires (Barran, 1979; Bettel, 1991).

De acordo com Barran (1979), Juan Manuel de Rosas governou Buenos Aires com
poderes ditatoriais e praticou um federalismo peculiar, pois apesar de permitir a autonomia
política das províncias pertencentes à Confederação Argentina, guardou para si o domínio
econômico da região ao negar abrir os portos do litoral ao comércio direto com a Europa e ao

200
Como afirma o legionário Cristóvão Lenz (1997, p. 17), “Os homens da nossa bateria formavam um mapa
demográfico multiétnico, com gente de todos os cantos e recantos de nossa então ainda não unificada pátria. Velhos
e jovens, brutos, grosseiros e mal-educados, mas também polidos e com fina educação. A maioria já conhecia a
vida de soldados por experiência própria”.
ISSN: 2525-7501
nacionalizar as rendas da aduana portenha. Segundo Fradkin e Gelman (2015), Rosas construiu
seu governo explorando a terra como mercadoria ao torná-la instrumento de cooptação política,
perseguindo os unitários, e todos seus demais adversários políticos, formando um exército
regular, enfrentando as pretensões estrangeiras e fazendo uso de eficaz propaganda pessoal
entre a população. O ditador portenho almejava expandir o poder de Buenos Aires anexando à
Confederação Argentina os Estados do Paraguai e Uruguai, a fim de constituir outra vez o Vice-
reino do Rio da Prata.

Nesse cenário, o Uruguai passava por turbulências ocasionadas pelo conflito gerado
pela oposição entre dois grupos, os blancos (enraizados no meio rural; combateram a
intervenção franco-inglesa; permaneceram fiéis a tradição hispânica de ordem autoritária) e os
colorados (ligados ao meio urbano; compartilhavam das ideias das correntes liberais europeias;
contavam com o apoio dos imigrantes da Europa revolucionária e refugiados portenhos). Em
1839, Fructuoso Rivera, integrante do grupo dos colorados, chegou à presidência do Estado
Oriental após a vacância do cargo, deixado através de renúncia por Manuel Oribe, ligado aos
blancos. A mudança no poder havia sido consequência da intensa campanha de Rivera contra
Oribe. A tal ponto comprometido com as forças que o haviam auxiliado (os farrapos rio-
364
grandenses, os emigrados unitários argentinos e a esquadra francesa), foi forçado a declarar
guerra à Rosas (BARRAN, 1979).

A possibilidade de concretizar o projeto de anexação do Uruguai à Confederação


Argentina ganhou fôlego a partir da aliança entre Rosas e Oribe. A maior expressão disso, de
acordo com Ferreira (2006), foi o longevo cerco a Montevidéu, iniciado em 1843 e mantido por
mais de oito anos pelas forças de Oribe. O apoio de Rosas se deu na oferta de soldados e
recursos financeiros. A resistência de Montevidéu durante tanto tempo foi possível, sobretudo,
graças ao auxílio franco-inglês e sua saída para o mar, por onde recebia viveres, mercadorias,
dinheiro e rendas para sua aduana. O apoio estrangeiro refletia o receio frente a possibilidade
de Oribe tomar o poder no Uruguai, pois isso significava o êxito do plano rosista de sua
anexação à Confederação Argentina. Consequentemente, o Rio da Prata perderia seu caráter de
rio internacional, livremente navegável. Os europeus desejavam a negociação direta com o
litoral, o Paraguai e o Uruguai, e não estavam dispostos a suportar a intermediação de Buenos
Aires e os elevados impostos aduaneiros que teriam de pagar.
ISSN: 2525-7501
Quanto ao Brasil, passou a envolver-se efetivamente no conflito contra Oribe e Rosas,
como aponta Doratioto (2014), ao deparar-se com as mudanças do final da década de 1840,
quando rompeu relações com Buenos Aires após longo desgaste diplomático. A consolidação
do Estado Nacional brasileiro estava praticamente completa, portanto já não precisava mais
dedicar tantos recursos e energias para solucionar problemas internos, ou seja, seria mais fácil
olhar para os Estados vizinhos. Ao mesmo tempo, os Conservadores chegaram ao poder,
instalando uma política externa mais agressiva em relação àquela praticada pelo governo
Liberal. A pressão anglo-francesa sobre Buenos Aires caiu por terra quando Rosas firmou
acordos com Inglaterra e França, deixando Montevidéu vulnerável.

Para o governo imperial, segundo Doratioto (2014), Rosas passou a ter grandes chances
de obter a vitória na guerra civil no Uruguai e, sem dúvida, a próxima vítima seria o Paraguai.
Assim, logo chegaria a vez do Brasil enfrentar o ímpeto expansionista do ditador portenho.
Ainda, interessava ao governo brasileiro garantir a livre navegação nos rios afluentes do Prata,
estancada por Buenos Aires, pois a única maneira de chegar a Província do Mato Grosso,
enclausurada por terra, era através dos rios Paraná e Paraguai. Essas questões levaram o Brasil,
em 1851, a auxiliar os colorados sitiados em Montevidéu, ocasião na qual foram assinados
365
cinco tratados que favoreceram o Brasil e debilitaram a autonomia do Uruguai.

A participação do Império brasileiro neste conflito acarretou no recrutamento da legião


alemã dos Brummer. Para Juvencio Saldanha Lemos (2015), com a retirada do apoio das forças
inglesas e francesas à Montevidéu, restou aos colorados pedirem ao governo brasileiro dinheiro
e soldados para a guarnição da cidade sitiada, tanto para a defesa contra os assédios de Oribe
como para a manutenção da ordem pública interna. Frente a um quadro político, militar e
diplomático mal definido, o governo imperial fez uma contraproposta: ofereceu dinheiro para
os sitiados contratarem mercenários europeus para a proteção de Montevidéu. Entretanto, o
governo voltou atrás e mudou a perspectiva da proposta, tomando para si o recrutamento de
mercenários, que seriam incorporados ao exército Imperial. Dessa forma, o Imperador D. Pedro
II enviou Sebastião Rego Barros para a Europa com a finalidade de recrutar mercenários para
atuarem no conflito contra Rosas e Oribe.
ISSN: 2525-7501
Capítulo III - A fronteira manejável

Para Cecília Elisa Kilpp (2012), os Brummer foram de grande importância para o
germanismo201 no Rio Grande do Sul, sobretudo por terem participado de movimentos liberais
na Alemanha e, em sua maioria, terem frequentado escolas, o que lhes garantiu a instrução
necessária para atuarem na reivindicação de direitos políticos para os imigrantes germânicos e
seus descendentes instalados no Rio Grande do Sul. Quando os Brummer se inseriram nas
colônias germânicas, algumas em processo avançado de desenvolvimento, outras ainda sendo
fundadas, a maioria dos imigrantes estava sem um auxílio público adequado. Dessa forma, os
Brummer tomaram a iniciativa de suprir tal deficiência e teriam auxiliado na criação de escolas,
igrejas e sociedades. Ainda de acordo com Kilpp (2012), por meio da imprensa e inserindo-se
no meio político os imigrantes passaram a reivindicar seus direitos. Nos órgãos públicos, os
Brummer tiveram ação decisiva, como foi o caso de Koseritz na campanha de equiparação
política dos teuto-brasileiros aos nacionais, independente do credo e da origem étnica.

Segundo Dickie (1989), os Brummer lutaram pela ampliação real da elegibilidade dos
não católicos e naturalizados. A meta era obter a elegibilidade para a Câmara dos Deputados e, 366
assim, garantir a legitimidade de sua participação no âmbito provincial. Para tanto, agiram
através da maçonaria, fundando várias lojas no interior das colônias, da fundação da Sociedade
Auxiliadora (Deutsches Hilfsyerein) com o objetivo de ajudar os imigrantes germânicos e seus
descendentes na adaptação à nova pátria, e da ideologia do Deutschtum, a qual, esclarece
Seyferth (1976 apud DICKIE, 1989), expressa uma herança cultural garantida pela
descendência, que supõe continuidade, ou seja, a noção do Deutschtum não pergunta a uma
pessoa onde ela nasceu, mas de quem ela nasceu, não só física, mas culturalmente. Dessa forma,
a partir do Deutschtum, os Brummer formularam um discurso que buscou forjar uma identidade
étnica global ao tentar reunir os vários "alemães" através da característica comum da
valorização dos colonos pelo reconhecimento de sua aptidão ao trabalho.

201
Germanismo, de acordo com Gertz (1991) é a tradução literal do vocábulo Deutschtum. É uma ideologia, uma
prática de defesa da germanidade das populações de origem alemã (GERTZ, René. O perigo alemão. Porto
Alegre: ED. UFRGS, 1991).
ISSN: 2525-7501
Uma das principais defesas de Karl von Koseritz em sua trajetória política, segundo
Imgart Grützmann (2007), foi a construção de uma identidade teuto-brasileira para os
imigrantes e seus descendentes, possibilitando o manejo de identidades por parte desses
indivíduos, isto é, quando convinha poderiam ou privilegiar sua origem germânica ou sua
condição de naturalizados.

Para compreender tal questão, são pertinentes as reflexões de Mariana Flores da Cunha
Thompson Flores (2012) sobre a Fronteira, por ela encarada como um espaço de estratégia para
os sujeitos que a habitam ou estão ligados a ela de alguma forma, e enquanto fim e início de
territórios contíguos, proporcionando, simultaneamente, separação e contato. Nesse sentido,
Flores (2012) trabalha com Frederick Barth ao apontar que viver em um espaço de fronteira é
um aspecto computado nas estratégias cotidianas dos fronteiriços e nas redes que estabelecem,
portanto, manejam permanentemente a fronteira. Assim, consideramos pertinente tal reflexão
para compreender uma fronteira identitária, manejável de acordo com as circunstâncias e cuja
construção foi importante para a atuação política de Koseritz.

367

CONCLUSÃO

As questões trazidas neste trabalho nos levam a um aspecto até agora pouco trabalhado,
ou mesmo ignorado pelos autores que trataram da história dos Brummer, ou seja, a relação
destes com a Fronteira. Aqui não convém aprofundar os variados usos do referido conceito,
mas sim trazer alguns aspectos para o compreender. De forma geral, podemos considerar a
Fronteira como uma linha separatória202, um delimitador, responsável, em parte, pela
construção identitária dos grupos existentes nos lados dessa suposta linha, oriunda do contraste.
Ao mesmo tempo, a Fronteira é um espaço de encontro203, portanto, ainda que carregue em si
o crivo da separação, acentuado a partir da consolidação dos territórios dos Estados Nacionais,
constitui-se em um espaço de trocas, contatos e constituição de uma identidade própria aos

202
TURNER, Frederick Jackson. El significado de la frontera en la historia americana. Secuencia Nº 7,
EneroAbril 1987, p. 187-207. Traducción de Ana Rosa Suárez.
203
LOPES, M. A. S. ; ORTELLI, Sara . Fronteiras americanas: entre interações e conflitos, séculos XVIII-XX. In:
Estudos de História, v. 13, p. 13-29, 2006.
ISSN: 2525-7501
habitantes desse espaço, pois compartilham experiências comuns proporcionadas justamente
pelas especificidades da Fronteira. Dessa forma, esse espaço, ao mesmo tempo, não é
exclusivamente delimitador nem congregador, é os dois.

O caso do espaço fronteiriço platino é um exemplo a considerar, afinal, foi ali que a
Guerra Grande tomou forma e onde os Brummer viveram percalços junto ao exército brasileiro.
Como explica Maria Medianeira Padoin (2001), o espaço fronteiriço platino se constituiu
através de relações sociais e econômicas, possuindo caráter de região, onde circularam homens,
ideias, culturas e mercadorias. Não estava associado a delimitações físicas e políticas, pois era
um espaço dinâmico e mutável que compreendeu o atual território de Buenos Aires e províncias
litorâneas da Bacia do Prata, o território atual do Uruguai e a região da Campanha do Rio
Grande do Sul. As relações construídas nesta região permitiram a circulação e a troca de ideias,
como a consciência de autonomia política, de liberdade e de proteção, elementos fundamentais
para a difusão de ideias federalistas durante o conturbado período de construção dos Estados
Nacionais.

Os Brummer circularam nesse espaço, não todos eles204, mas a grande maioria. Foi ali 368
que tiveram contato com uma cultura e um ambiente diferente daqueles com os quais estavam
acostumados. Certamente houve trocas entre eles e os soldados brasileiros, mas também com
os indivíduos do cenário uruguaio que encontraram pelo caminho, como quando estiveram em
Montevidéu e em Colônia de Sacramento. Acentuaram suas diferenças ao conhecer o diferente,
ao conhecer o habitante do espaço fronteiriço platino, descrito por Siber (1915) como hábil
cavaleiro. Ao mesmo tempo, perceberam características de uma determinada identidade
brasileira nos soldados do exército imperial. Essa experiência ajudou a constituir a nova
identidade dos Brummer. Como observa Jorge Schnack (apud FLORES, 1997, p. 94).

Valeu-nos o aprendizado durante os dois meses de ociosidade junto ao la Plata, onde


aprendemos a manejar os recursos disponíveis. Acostumamo-nos, por pura falta de
calçados, a andar de pé no chão, o que facilitou a marcha. A travessia de arroios ou
banhados não constituía mais problema. Também aprendemos a preparar o churrasco
e a tomar mate, que eram mais indicados à nossa saúde que a eterna carne cozida com
sopa.

204
Karl von Koseritz, por exemplo, permaneceu em Pelotas como legionário da Artilharia até junho de 1852, assim
como número considerável de soldados doentes, presos, inválidos e retardatários que ficaram em Rio Grande, e
também os desertores.
ISSN: 2525-7501
Como já afirmamos, parte dos legionários adveio da dissolução do exército de
Schleswig-Holstein. Aí reside o fato de terem participado de um conflito fronteiriço, uma vez
que esses ducados representavam o limite entre o espaço germânico e a jurisdição
dinamarquesa. Questões identitárias teriam gerado a reação da população dos ducados frente a
tentativa da Dinamarca de os integrar administrativa e culturalmente. Além disso, o abandono
de Schleswig-Holstein pelas forças prussianas, pressionadas por Inglaterra, Rússia e Áustria,
reuniu um exército de voluntários de todos os Estados germânicos interessados tanto na defesa
dos ducados, como em fortalecer um movimento de unificação nacional. Portanto, esses
legionários circularam por aquele espaço fronteiriço e tiveram contato com as ideias ali
circulantes, bem como com os diferentes indivíduos e suas culturas reunidos por uma causa
comum. Justamente a dissolução do exército de voluntários, seguida da falta de perspectiva e
da perseguição política aos engajados, levou muitos deles a adesão ao exército brasileiro através
do recrutamento de Rego Barros, vindo a participar de outro conflito fronteiriço, dessa vez no
Prata. Dessa foram, foram duplamente influenciados por experiências fronteiriças ligadas a
conflitos.

Os legionários também tiveram forte relação com a questão da Fronteira na questão da


369
construção de suas identidades, expressa em uma Fronteira entre ser brasileiro ou ser teuto.
Puderam manejar essa identidade de acordo com seus objetivos. Quando lutaram por direitos
civis, por exemplo, lhes conveio assumir uma identidade brasileira, geralmente deixada de lado,
ou pouco expressiva frente a manutenção de uma identidade germânica. Assim, construíram
uma identidade teuto-brasileira, nem totalmente germânica, nem totalmente brasileira, mas as
duas, ou seja, gravitaram em uma Fronteira manejável.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1852. São Leopoldo: Oferta ao Museu Visconde de São Leopoldo, 1981.
ISSN: 2525-7501
BETHELL, Leslie. Historia de América Latina – América Latina Independiente, 1820-
1870. (Traducción de Ángels Solá). Barcelona: Editorial Crítica, 1991. Tomo 6.

DICKIE, M. A. S. Dos “Senhores do Sul” aos Brummer: a trajetória da construção social do


trabalho, RS 1824-1880. In: XIII ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 1989, Caxambu.
Anais... Caxambu: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais,
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DORATIOTO, Francisco. O Brasil no Rio Prata (1822-1994). 2. ed. Brasília: FUNAG, 2014.

FERREIRA, Gabriela Nunes. O Rio da Prata e a consolidação do Estado Imperial. São


Paulo: Hucitec, 2006.

FLORES, Mariana Flores da Cunha Thompson. Crimes de Fronteira: a criminalidade na


fronteira meridional do Brasil (1845-1889). Tese apresentada no Programa de Pós-Graduação
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FRADKIN, Raúl & GELMAN, Jorge. Juan Manuel de Rosas. La construcción de un 370
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GRÜTZMANN, Imgart. Intelectuais de fala alemã no Brasil do século XIX: o caso Karl von
Koseritz (1830-1890). In: História Unisinos. São Leopoldo, vol. 11, nº 1, pg. 123-133,
janeiro/abril de 2007.

KILPP, C. E. O Turnen e o esporte nas associações teuto-brasileiras de Estrela/Rio Grande


do Sul. 2012. 97 f. Dissertação (Mestrado em Ciências do Movimento Humano)-Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.

LENZ, Cristóvão; SCHÄFER,Henrique; SCHNACK, Jorge Julio. Memórias de Brummer.


Trad. Hilda Agnes Hübner Flores. Porto Alegre:Est, 1997.

LEMOS, Juvencio Saldanha. Brummers: A Legião Alemã contratada pelo Império Brasileiro
em 1851. Porto Alegre: Edigal, 2015. 424 p.
ISSN: 2525-7501
HISTÓRIA VISTA DE BAIXO E MICRO-HISTÓRIA – UMA ESCRITA DA
HISTÓRIA POSSÍVEL?*205

Adriano Sequeira Avello**206

RESUMO

O estudo é parte integrante de nossa pesquisa em desenvolvimento no Programa de Pós-


Graduação em História – UFSM na Linha de pesquisa “Cultura, Migrações e Trabalho”. Como
embasamento teórico desta pesquisa temos a história vista de baixo e a micro-história. Nesse
sentido, faremos um apontamento teórico e metodológico de tentar aproximar ambas linhas
reflexivas para uma escrita da história. Com objetivo de proporcionar um debate centralizado
sobre estudos subalternos na história social. Para tanto apresentaremos um panorama
explicativo da história vista baixo a qual permite perceber os sujeitos para além de uma
determinação da ação social (im)posta por uma elite. Isto conjugado com a micro-história que
apresenta uma outra abordagem na escala de análise do âmbito social há a possiblidade de
percepção de elementos que ficam encobertos por noções gerais. Em suma, serão destacados
em quais pontos argumentativos essas teorias da história comungam para a perspectiva da
pesquisa a respeito de subalternos na história. 371
Palavras-chave: Teoria da história, história social, subalternos.

INTRODUÇÃO

No surgimento da primeira geração da escola dos Annales a contribuição das diversas


ciências foi aguda em ambos os fundadores Lucien Febvre e Marc Bloch para que a partir disso
fundassem 1929 a revista Annales d’historie économique et sociale (Análise de história
econômica e social). Havia uma superficial distinção sobre a influência e a linha teórica a ser
seguida posteriormente pelos estudiosos. Se por um lado, Febvre teve influência da geografia
do geógrafo Pierre Vidal de La Blache. No entanto, foi um admirador do medievalista Michelet,
o qual teve interferência no seu interesse por história das mentalidades. Já por outro lado, Bloch

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Mestrando em História, Programa de Pós-Graduação em História - Universidade Federal de Santa Maria,
CAPES/DS, e-mail: adrianos.avello@gmail.com.
ISSN: 2525-7501
não diferia muito da orientação seguida por Febvre. Sobressaindo como destaque pelo interesse
dos estudos sobre sociedade e os indivíduos estreitando laços com a sociologia durkheiminiana.
Talvez, por isso os annales representaram uma transformação na pesquisa histórica
relacionando novas fontes e temáticas históricas.

Sobre as fontes históricas os annales procuraram ir de encontro ao método historicista


que determinava os arquivos em ordem lineares sendo as fontes indiscutíveis e como atestado
final da (in) existência dos acontecimentos históricos. A escola dos annales discorre acerca das
fontes históricas como apenas um fragmento de um todo que necessita ser analisado.

Por isso, o fragmento não é um fim da pesquisa, mas na maioria dos casos o início.
Sendo o arquivo a fonte de discussão para atestar ou não a historicidade de algo, acarretando
numa hipótese para dar surgimento à história-problema. A partir dessa grande mudança de
perspectivas historiográficas com a Escola dos Annales novas formas perspectivas puderam ser
pensadas para a escrita da história. O que Burke (1992, p. 11) denominou de “nova história”
são novas abordagens da história total ou história estrutural e para além destas. “A nova história
começou a se interessar por virtualmente toda a história humana”. Fica evidente que “‘Tudo 372
tem uma história’ [...], ou seja,” tudo tem um passado que pode em princípio ser reconstruído
e relacionado ao restante do passado”. Agora “o que era previamente considerado imutável é
agora encarado como uma ‘construção cultural’, sujeita a variações, tanto no tempo quanto no
espaço” (BURKE, 1992, p. 11).

Assim, como novas abordagens da escrita da História a história vista de baixo e a micro-
história serão o enfoque desse ensaio. Nos cabe aqui mais fazer alguns apontamentos de
problematizações, sobre aspirações, teórico e metodológicas na história vista de baixo do que
lançar um arcabouço completo dos próprios usos no decorrer da historiografia. Uma vez que se
encontra um estudo detalhado sobre no estudo de Jim Sharpe (1992) A História Vista de Baixo
disposto na obra organizada por Peter Burke (1992) A escrita da História – novas perspectivas.
Da mesma forma, cabe a micro-história a qual detém um estudo meticuloso em Micro-história
por Henrique Espada Lima (2010) na obra organizada por Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo
Vainfas (2010) Novos Domínios da História.
ISSN: 2525-7501
Capítulo I – História vista de baixo e micro-história
A busca da realidade histórica a partir das pessoas comuns, classes populares e/ou
classes subalternas é uma intenção uma forma de “ampliar os limites de sua disciplina, abrir
novas áreas de pesquisa e, acima de tudo, explorar as experiências históricas” daquelas pessoas
“cuja existência é tão frequentemente ignorada, tacitamente aceita ou mencionada apenas de
passagem na principal corrente da história” (SHARPE, 1992, p. 41).

Com base na historiografia inglesa de cunho marxista temos Edward P. Thompson, em


1966, divulga a história vista de baixo como conceito no artigo “The History from Below”207 e,
em 1858, com a obra History from Below: Studies in Popular Ideology208 (SHARPE, 1992). Já
no Brasil, o artigo de Thompson sobre a ‘História vista de baixo’ está incluído na obra
organizada em artigos E. P. Thompson - as peculiaridades dos ingleses e outros artigos209
(BARROS, 2003). Ainda o mesmo autor ressalta “que ‘história vista de baixo’ não é bem uma
especialidade da história, senão uma atitude de examinar a História” (2003, p. 168). Contudo,
como afirma Sharpe (1992, p. 42) “a ideia de uma tal abordagem da história é muito sedutora,
mas, como tão frequentemente acontece, os problemas envolvidos no estudo passado 373
rapidamente tornam-se mais complexos do que podem parecer à primeira vista” mesmo assim
“é, portanto, uma perspectiva atraente”. Para Hobsbawm (1998) que reconhece importância da
história vista de baixo nos estudos ingleses com o George Rudé210 também aponta a
historiografia francesa:

A história das pessoas comuns como campo específico de estudo, portanto, começa
com a dos movimentos de massa de do século XVIII. Suponho que Michelet seja o
primeiro grande praticante da história dos movimentos populares: a grande Revolução
Francesa está no cerne dos seus escritos (HOBSBAWM, 1998, p. 218).

207
“History from Below”, The Times Literary Supplement, 7 de abril de 1966, p. 279-280.
208
History from Below: Studies in Popular Protest and Popular Ideology. Oxford: Ed. Frederick Krantz, 1988.
Este livro era uma coleção inglesa publicada primeiramente em Montreal, Canadá, em 1985.
209
NEGRO, A. L.; SILVA, S. (orgs.). E. P. Thompson – as peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas:
Ed. da Unicamp, 2001.
210
RUDÉ, George. A multidão na história - Estudos dos movimentos populares na França e na Inglaterra,
1730/1848. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
ISSN: 2525-7501
Para o autor a temática da história vista de baixo constitui uma área de interesse para
História e, nesse sentido, está sujeita as debilidades de qualquer outra abordagem, pois
Hobsbawm (1998, p. 219) explica que:

E ao rememorar a história da gente comum, não estamos meramente tentando


conferir-lhe um significado político retrospectivo que nem sempre teve; estamos
tentando mais genericamente, explorar uma dimensão desconhecida do passado. E
isso me leva aos problemas técnicos dessa exploração. Todo tipo de história tem seus
problemas técnicos, mas a maioria deles supõe que haja um conjunto de fontes prontas
cuja interpretação levanta tais problemas.

Ao explicar tal situação sobre fontes nesta perspectiva Hobsbawm (1998, p. 219) já nos
indica que enfrentar-se-á uma questão áspera também sobre o que constitui o objeto a ser
pesquisado, porque “a história dos movimentos populares difere de tais objetos e, de fato da
maioria da história tradicional, na medida em que simplesmente não há um corpo de material
pronto a seu respeito”. É o historiador que o traz a superfície da pesquisa através de um
questionamento, antes de ir ao encontro das fontes, um problema de pesquisa, que o norteie
para fontes já que:

Em muitos casos, o historiador dos movimentos populares descobre apenas o que


está procurando, não o que já está esperando por ele. Muitas fontes para a história dos
374
movimentos populares apenas foram reconhecidas como tais porque alguém fez uma
pergunta e depois sondou desesperadamente em busca de alguma maneira – qualquer
maneira – de respondê-la. Não podemos ser positivistas, acreditando que as perguntas
e as respostas surgem naturalmente do estudo do material. Em geral, não existe
material algum até que nossas perguntas o tenham revelado (HOBSBAWM, 1998, p.
220).

A inspiração para orientar-se na escrita da história vista de baixo demanda do


pesquisador atenção não só sobre as suas fontes como também objeto e objetivos de pesquisa
quando investigar o processo histórico.

A Micro-história (Microstorie) é uma prática historiográfica que surgiu na Itália sendo


conhecida através da obra O queijo e os vermes - o cotidiano e as ideias de um moleiro
perseguido pela inquisição, em 1976, de Carlo Ginzburg (2006) e com A herança imaterial:
trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII, em 1985, de Giovanni Levi (2000).
Muito embora ambas as obras são resultado da experiência e expressão científica na revista
Quaderni Storici na qual Edoardo Grendi é autor de de estudos que elaboram o modelo de
historiográfico proposto. A micro-história propõe a redução da escala de observação para uma
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análise microscópica com um estudo intensivo dos documentos. Logo, apresentando “o que
pode ser tido como ‘sistema’ é algo que tem diversas escalas” (ARÓSTEGUI, 2006, p. 214).
Além disso, a micro-história reconstrói a forma de pesquisa e de objetos no campo histórico,
pois:

os historiadores, assim como outros praticantes de ciências sociais, limitam


provisoriamente suas ambições a objetos mais restritos e mais fáceis de serem
manipulados, no interior de campos circunscritos definidos não mais por hábitos
disciplinares ou técnicos, segundo recortes conceituais preestabelecidos, mas sim por
práticas. As ambições certamente diminuem, os discursos tornam-se mais modestos,
pelo menos de imediato. Mas esse tempo de recuo aparente poderia ser o de uma
reconstrução. A micro-história deve ser compreendida como uma tentativa nesse
sentido (REVEL, 2000, p. 14-15).

Na perspectiva da micro-história há uma maneira de se pensar o objeto: “em vez de se


iniciar com uma série de observações e tentativas para impor sobre elas uma teoria do tipo legal,
esta perspectiva parte de um conjunto de sinais significativos e tenta ajustá-los em uma estrutura
inteligível” (LEVI, 1992, p. 141). Pois, pode-se até explanar uma teoria para pesquisa, todavia
Levi alerta que:

A teoria só tem um pequeno papel, como subalterna, para desempenhar, uma relação 375
ao papel muito maior do intérprete. Os sistemas dos conceitos gerais pertencentes à
linguagem acadêmica são inseridos no corpo vivo da descrição densa, na esperança
de dar expressão científica a acontecimentos simples, não para criar novos conceitos
e sistemas teóricos abstratos. Portanto, a única importância da teoria geral é uma parte
da construção do repertório sempre em expansão do material densamente descrito,
tornado inteligível através de sua contextualização, que servirá para ampliar o
universo do discurso humano (LEVI, 1992, p. 144).

Garantida a explicação da teoria, o restante da pesquisa necessita ser consubstanciada


por uma narrativa que fique clarificado as formas do que se pretende e como se procedeu o
processo histórico. Já que “na micro-história, ao contrário, o ponto de vista do pesquisador
torna-se uma parte intrínseca do relato. O processo de pesquisa é explicitamente descrito e as
limitações da evidência documental” e passo-a-passo “a formulação de hipóteses e as linhas de
pensamento seguidas não estão mais escondidas dos olhos do não-iniciado”. Logo, “o leitor é
envolvido em uma espécie de diálogo e participa de todo o processo de construção do
argumento histórico” (LEVI, 1992, p. 153).

Capitulo II – A micro-história como sendo uma história vista de baixo


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Ao subsidiarmos teoricamente um estudo com a história vista de baixo para
problematizar o processo histórico frisamos que nem toda história estaria por completa se
apenas contemplada “vista de cima”. Por isso que Jim Sharpe (1992, p. 60) explica a
necessidade de conhecer a perspectiva do passado a partir do conceito de história vista de baixo,
porque:

A maior parte daqueles que escreveram a história vista de baixo aceitariam, em um


sentido amplo, a opinião de que um dos resultados de terem seguido essa abordagem
tem sido demostrar que, os membros das classes inferiores foram agentes, cujas ações
afetaram o mundo (às vezes limitado) em que viviam.

Isto significa expor que mesmo aqueles que estão excluídos da história numa situação
de infortúnio foram atuantes no ambiente ao redor. Assim, a história vista de baixo
“proporciona também um meio para reintegrar sua história aos grupos sociais que podem ter
pensado tê-la perdido, ou que nem tinham conhecimento da existência de sua história”
(SHARPE, 1992, p. 59). De outra forma o autor explica que:

A expressão “história vista de baixo” implica que há algo acima para ser relacionado.
Esta suposição, por sua vez, presume que a história das “pessoas comuns”, mesmo
376
quando estão envolvidos aspectos explicitamente políticos de sua experiência
passada, não pode ser dissociada das considerações mais amplas da estrutura social e
do poder social. Esta conclusão, por sua vez leva ao problema de como a história vista
de baixo deve ser ajustada a concepções mais amplas da história. Ignorar este ponto,
ao se tratar de história vista de baixo ou de qualquer tipo de história social, é arriscar
a emergência de uma intensa fragmentação da escrita da história (SHARPE, 1992, p.
54-55).

Jim Sharpe (1992) reconhece o estudo de Carlo Ginzburg (1976) com O queijo e os
vermes como sendo um tipo de história vista de baixo. Logo, tal referência nos direciona para
uma aproximação teórica-metodológica com a micro-história quando expressa:

O prefácio de Ginzburg apresenta uma proveitosa discussão dos problemas


conceituais e metodológicos da reconstrução da cultura das classes subalternas no
mundo pré-industrial. Ele foi particularmente insistente para ‘o fato de uma fonte não
ser ‘objetiva’ (para aquele tema, nem um inventário o é) não significar que ela seja
inútil...Em suma, mesmo a documentação escassa, dispersa e obscura pode ter um
bom uso’ e os estudo dos indivíduos neste tipo de profundidade é tão valioso quanto
as abordagens coletivas mais familiares à história social (SHARPE, 1992, p. 49-50).
ISSN: 2525-7501
A micro-história como ressalta Levi (1992, p. 136) “é essencialmente baseada na
redução da escala da observação, em uma análise microscópica e em um estudo intensivo do
material documental”. Ponto este profícuo na pesquisa, pois permite aproximar-se do cotidiano
para entender como coexiste tempo e espaço no processo histórico. Pensamos nessa
possibilidade já que “para a micro-história, a redução da escala é um procedimento analítico,
que pode ser aplicado em qualquer lugar, independente das dimensões do objeto analisado”
(LEVI, 1992, p. 137). Desse modo, a micro-história tange a história vista de baixo na escrita de
uma:

Complexa rede de relações, a multiplicidade dos espaços e dos tempos nos quais se
inscreve. De certa maneira, é o antigo sonho de uma história total vista de baixo que
Ginzburg e Poni encontram e então: ‘A análise micro-histórica tem portanto duas
faces. Usada em pequena escala, torna muitas vezes possível uma reconstituição do
vivido inacessível às outras abordagens historiográficas. Propõe-se por outro lado a
identificar as estruturas invisíveis segundo as quais esse vivido se articula’ (REVEL,
2000, p. 17).

Então, uma forma de subsidiar metodologicamente a pesquisa na procura e análise das


fontes se dá pela investigação micronominal (GINZBURG; PONI, 1989) e pelo paradigma 377
indiciário (GINZBURG, 1989). Com tal base um estudo pode ser desenvolvido por meio da
busca dos nomes em documentos e, também, revisões bibliográficas na tentativa de arrecadar
o máximo possível de dados. Pois, o nome é o fio condutor na investigação micronominal
“compondo uma espécie de teia de malha fina, dão ao observador a imagem gráfica do tecido
social em que o indivíduo está inserido” (GINZBURG; PONI, 1989, p. 175).

Após encontrados nas fontes os nomes imerso nos dados, que podem ser (in)satisfatórios
parte-se para a tarefa do paradigma indiciário de correlaciona-los com objetivo de pesquisa
atentando-se aos sinais e aos indícios, ou seja, não só o dito, mas - principalmente - o não dito
nas fontes. A premissa que endossa esta ideia é asseverada por Ginzburg quando afirma que “o
conhecimento histórico é indireto, indiciário, conjetural” (1989, p. 157).

CONCLUSÃO
ISSN: 2525-7501
Nessa escrita possível das multifaces de uma ampla historiografia possibilitaram a
escolha de trabalho que contemplasse alguns questionamentos sobre elementos balizados pelas
pesquisas em História na atualidade. Desta forma a proposição de entrelaçar duas visões da
realidade histórica poderão fornecer a pesquisas potenciais convergentes tanto teórico quanto
metodológico.

Pois, como apontou Levi (1992 p. 159) não só “estas, então, são as questões e posições
comuns que caracterizam a micro-história” como também “a redução da escala, o debate sobre
a racionalidade, a pequena indicação como um paradigma científico, o papel do particular (não,
entretanto, em oposição ao social)”. Assim, aprimorando o espaço para discussões
historiográficas que possam tornar possível a escrita da história entre a história vista de baixo
e a micro-história. Seja proporcionar ao pesquisador as ferramentas necessárias na construção
do processo histórico como a percepção desta abordagem metodológica com uma concepção
teórica que consiga dar conta daquilo que se encontra e busca-se ao longo das diversas
pesquisas.

378
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Bauru, SP: EDUSC, 2006, p. 213-216.

BARROS, José D’Assunção. História Cultural: um panorama teórico e historiográfico. Textos


de História, vol. 11, n.º 1/2, 2003, p. 145-171.

BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. In: _____. (org.). A escrita
da História - novas perspectivas. São Paulo: Ed. UNESP, 1992, p. 7-37.

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sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p.143-179.
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GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido
pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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Companhia das Letras, 1998, p. 216-231.

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novas perspectivas. São Paulo: Ed. UNESP, 1992, p. 133-161.

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(org.). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 2010, p. 207-223.

REVEL, Jacques. A história ao rés-do-chão. In: LEVI, Giovanni. A herança imaterial:


trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000, p. 7-36.

LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

SHARPE, Jim. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História -
379
novas perspectivas. São Paulo: Ed. Unesp, 1992, p. 39-62.
ISSN: 2525-7501

II GUERRA MUNDIAL EM PELOTAS: O QUEBRA-QUEBRA NOS HOTÉIS


PELOTENSES*211

Caroline Beskow Quintana**212

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar os impactos da II Guerra Mundial, nos hotéis cujos
proprietários eram alemães ou descendentes, analisando o “quebra-quebra” de agosto de 1942,
na cidade de Pelotas. O trabalho se insere no projeto de pesquisa “A História da Hotelaria em
Pelotas na Primeira Metade do Século XX”, do Curso de Bacharelado em Turismo da
Universidade Federal de Pelotas. Para a realização desta pesquisa foi utilizado como fonte
principal a história oral, deste modo, foram utilizadas as narrativas de 4 entrevistados. Foram
identificados 5 hotéis que estavam em funcionamento na década de 1940, cujos proprietários 380
eram alemães, e que foram atacados no “quebra-quebra” em Pelotas. Dos 5 hotéis identificados,
3 foram fechados após os ataques, destes, 1 hotel teve o proprietário preso, e 2 hotéis voltaram
a funcionar, depois das 48 horas de saques e queimas na cidade.

Palavras-chave: Hotelaria; Quebra-quebra; Hotéis alemães.

INTRODUÇÃO

O presente artigo foi elaborado com base no terceiro capitulo da minha monografia,
intitulada “Hotelaria em Pelotas na década de 1940: Proprietários alemães ou descendentes”. O
trabalho também se insere no projeto de pesquisa “A história da hotelaria em Pelotas na
primeira metade do século XX”, financiado pelo edital MCTI/CNPq Nº 14/2014.

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Graduada em Turismo, Universidade Federal de Pelotas, MCTI/CNPq Nº 14/2014,
carolbeskow@hotmail.com.
ISSN: 2525-7501
O objetivo deste artigo é analisar os impactos da II Guerra Mundial, nos hotéis cujos
proprietários eram alemães ou descendentes, analisando o “quebra-quebra” de agosto de 1942,
na cidade de Pelotas. Para isso foram identificados 5 hotéis que estavam em funcionamento em
1942, cujos proprietários eram alemães ou descendentes, e que tiveram seus estabelecimentos
atacados em agosto de 1942, no “quebra-quebra”, em Pelotas.

Foi utilizado como principal fonte a história oral, utilizando a narrativa de 4


entrevistados. As entrevistas foram gravadas e transcritas. A história oral é “uma pratica de
apreensão de narrativas feita através do uso de meios eletrônicos e destinada a: recolher
testemunhos, promover analises de processos sociais do presente, e facilitar o conhecimento do
meio imediato.” (MEIHY; HOLANDA, 2011, p. 18). Este método de pesquisa permite
“recuperar aquilo que não encontramos em documentos de outra natureza: acontecimentos
pouco esclarecidos ou nunca evocados, experiências pessoais, impressões particulares.”
(ALBERTI, 2005, p. 22).

Na pesquisa, utilizou-se também fontes bibliográficas, como as listas telefônicas do


Guia de Assinantes da Companhia Melhoramento e Residência e os Almanaques de Pelotas, 381
onde obteve-se os endereços dos hotéis pesquisados, bem como seus proprietários, e, as fontes
jornalísticas, principalmente o jornal Diário Popular, para a busca de datas, como fundação dos
hotéis, entre outras informações.

As informações foram analisadas de forma qualitativa, descritivamente, utilizando as


falas dos entrevistados, as quais, em determinadas situações, foram transcritas literalmente.

Pelotas recebeu imigrantes alemães durante todo o século XIX, mas principalmente na
segunda metade, após o término da Revolução Farroupilha, em 1845. A região serrana da cidade
foi destinada ao assentamento de imigrantes europeus, entre eles, alemães e italianos, o que
aconteceu, basicamente por capitais particulares (ANJOS, 2000).

As colônias alemãs no sul do Brasil, segundo Fachel (2002, p. 34), “serviram para
valorizar as terras não ocupadas pela pecuária, produzir alimentos para o mercado interno
brasileiro e contrabalancear o poder político da elite latifundiária frente ao governo central.”.
ISSN: 2525-7501
Durante a segunda metade do século XIX e o início do século XX, alemães e seus
descendentes abriram hotéis em Pelotas, contribuindo para o desenvolvimento desta atividade
na cidade. Alguns desses hotéis foram alvos do “quebra-quebra” de agosto de 1942, durante a
II Guerra Mundial. De acordo com Fachel (2002), o “quebra-quebra” ocorreu em
estabelecimentos comerciais e residências de alemães e seus descendentes na cidade de Pelotas.

Capítulo I - O “Quebra-Quebra” nos Hotéis de Alemães em Pelotas

A década de 1940 foi marcada pela II Guerra Mundial, fato que afetou a economia de
todo o mundo, incluindo o Brasil, que entrou na guerra em agosto de 1942. Nesta data, os
imigrantes alemães e seus descendentes residentes no Brasil sofreram com a violência causada
pelos brasileiros. Neste contexto, Pelotas também foi atingida, tendo vários estabelecimentos
fechados. Assim, se faz necessário realizar uma breve descrição do contexto da II Guerra
Mundial.

Serão analisados, de forma breve, alguns acontecimentos anteriores a II Guerra 382


Mundial, quando, em 1930, Getúlio Vargas chega à presidência do Brasil.

Vargas inicia um período da história brasileira marcada pelo crescente


intervencionismo federal em assuntos de diversas esferas da sociedade, pela
centralização do poder nas mãos do presidente e pela tentativa de unidade nacional.
Essas características do governo de Vargas atingem seu auge em 1937 com a
promulgação da nova Constituição e a implantação do Estado Novo (1937-1945), que
apresentava o corporativismo e a promoção da harmonia social dos diferentes grupos
do país gerando a integração para a unidade nacional. (BONET, 2008, p. 2)

De acordo com Vianna (1939, apud BONET; ABREU, 2009):

O período conhecido na história nacional como Estado Novo teve seu início no dia 10
de novembro de 1937, quando o Congresso Nacional foi fechado e uma nova
Constituição foi promulgada. Sob o comando de Getúlio Vargas, essa nova forma de
governo foi imposta e justificada como a mais adequada para a realidade e para as
necessidades do país (VIANNA, 1939, apud BONET; ABREU, 2009 p. 1).

Sobre a nova Constituição, Bonet e Abreu (2009, p. 1) afirmam que “a nova


Constituição centralizava o poder nas mãos do presidente, fortalecia a intervenção estatal na
economia e estimulava a organização sindical em moldes corporativistas.”.

Em 1º de setembro de 1939, quando invade a Polônia, a Alemanha entra oficialmente


na II Guerra Mundial (BONET; ABREU, 2009). E, segundo esses autores, os Estados Unidos
ISSN: 2525-7501
e a Alemanha lutavam por um posicionamento do Brasil. O Brasil representava para os Estados
Unidos e para a Alemanha um grande mercado fornecedor de matérias-primas e consumidor de
produtos manufaturados. Enquanto isso, Vargas negociava vantagens comerciais com os dois
países. Segundo Fachel (2002), um dos motivos do posicionamento de Getúlio Vargas foi:

Sob pressão econômica e militar dos Estados Unidos, precisando de financiamentos


para a construção da Siderúrgica de Volta Redonda, da manutenção das exportações
para os aliados e na eminência de sofrer uma ocupação no nordeste brasileiro, Vargas
foi coagido a se definir. Ao lado da cedência de bases no Rio Grande do Norte e da
posterior subordinação da FEB aos norte-americanos, o governo brasileiro, num
aparente absurdo, decretou violenta repressão aos nazi-fascistas ligados aos governos
do eixo. (FACHEL, 2002, p. 37).

Segundo Bonet (2008), em janeiro de 1942, ocorre a Reunião dos Chanceleres na capital
do Brasil, onde:

O governo estadunidense cobrou o cumprimento dos acordos de solidariedade


continental firmados anteriormente. Dias antes dessa reunião, Getúlio Vargas
escreveu em seu diário: “das minhas conversas, do que observo, fico apreensivo.
Parece-me que os americanos querem nos arrastar à guerra, sem que isso seja de
utilidade, nem para nós, nem para eles.” Apesar dessas divagações de Vargas, no dia
28 de janeiro, no encerramento da Conferência, foi anunciada oficialmente a decisão
de romper relações diplomáticas com o Eixo. Apenas Argentina e Chile não aderiram
ao acordo. Getúlio Vargas, mais uma vez em seu diário, aponta a forte pressão
383
estadunidense para essa tomada de decisão: “A maioria dos países americanos que
adotaram essas soluções de declarar guerra ou romper relações não o fez
espontaneamente. Foram coagidos pela pressão americana”. (BONET, 2008, p. 4).
[Grifos do autor]

Segundo Fachel (2002), para mostrar que o posicionamento do Brasil era firme e
demonstrar sua nova fé, “a polícia do Estado Novo passou a perseguir todas as manifestações
culturais dos alemães, italianos e japoneses ou de seus descendentes.” (FACHEL, 2002, p. 37).

De acordo com o mesmo autor, o governo brasileiro havia decretado uma violenta
repressão aos países ligados aos governos do eixo, e com a política do Estado Novo passaram
a perseguir todas as manifestações culturais de alemães, italianos e japoneses incluindo os seus
descendentes, mostrando uma confusão entre o nazismo e a identidade cultural destes
imigrantes, o que acarretou a indignação brasileira ao povo alemão. Essa confusão não começou
quando o Brasil entrou oficialmente na Segunda Guerra Mundial, como apontado por Fachel
(2002):

Os litígios e os preconceitos contra os teuto-brasileiros foram evidenciados durante a


Primeira Guerra Mundial, quando ainda não havia a justificativa de combate à “Quinta
Coluna” ou ao nazismo. A destruição de estabelecimentos comerciais da etnia alemã
ISSN: 2525-7501
e preconceitos raciais ocorreram em Porto Alegre e na zona sul do Estado,
demostrando que as violências que serão estudadas não foram novidade ou problemas
limitados à região de Pelotas ou à conjuntura da Segunda Guerra. (FACHEL, 2002,
p. 35).

Mas foi com a entrada oficial do Brasil na Segunda Guerra Mundial que a violência
contra os “teuto-brasileiros” se acentuou.

E por coincidência foi sob um governo ditatorial, de nacionalismo exacerbado, guerra


comercial, informações e propagandas manipuladas nos “meios de comunicação de
massa”, que ocorreu a Noite dos Cristais (9-10/11/1938), quando as lojas dos judeus
foram destruídas, seus templos incendiados e confinados em guetos e em prisões na
Alemanha. Os dias dos “cristais”, para os teuto-brasileiros, ocorreram em agosto de
1942, quando suas lojas foram saqueadas e destruídas em várias cidades brasileiras.
Pelotas e Porto Alegre são dois exemplos. Algumas igrejas queimadas, as duas que
existiam em Pelotas (paradoxalmente de religiões distintas), e segregados nas
colônias, de onde não podiam sair sem expressa licença policial. (FACHEL, 2002, p.
35).

Ainda, segundo Pinheiro (1995):

Após o rompimento de relações diplomáticas em janeiro, seguido de crescente


colaboração à causa aliada, o torpedeamento de vários navios brasileiros por
submarinos alemães levou o governo Vargas a, finalmente, declarar guerra à
Alemanha e à Itália com amplo apoio da população. [...] A Conferência de
Chanceleres do Rio de Janeiro (III Reunião de Consulta dos Ministros das Relações 384
Exteriores das Repúblicas Americanas, 15-28 de janeiro de 1942) consolidou a
colaboração latino-americana com os Estados Unidos. (PINHEIRO 1995, p. 2).

Segundo Perazzo (2003), de 1942 a 1945, alemães, japoneses e italianos foram presos,
confinados, por serem “súditos do Eixo” no que denominamos de Campos de Concentração.
No sul do país, a comunidade teuto-brasileira foi “rotulada com a expressão “súditos do Eixo”,
aplicada até mesmo a brasileiros descendentes de alemães, que chegavam a ser presos por causa
de questões culturais (língua, tradições, etc.).” (PERAZZO, 2003 p. 3). E, segundo a autora:

A vigilância e a repressão estenderam-se a todos os estrangeiros do Eixo, mas


variavam de intensidade de grupo para grupo. Os alemães foram os mais visados pelas
perspectivas nacionalistas do governo Vargas e, conseqüentemente, os mais atingidos
pelas medidas governamentais. Somando o maior número de cidadãos encarcerados,
eles representavam uma dupla ameaça: enquanto grupo étnico que insistia em
supervalorizar sua cultura e atuar politicamente nos moldes de um regime estrangeiro,
colocando em risco o projeto nacionalista interno e, como súditos de um chefe com
ambições imperialistas, como era o caso de Hitler, representavam um perigo
internacional. (PERAZZO 2003, p. 2).

No dia 18 de agosto de 1942 é noticiado em jornais que três navios mercantes brasileiros
foram afundados por submarinos do “Eixo” no litoral brasileiro. Essa notícia desencadeou uma
onda de revolta contra a comunidade germânica em diferentes regiões do Estado (FACHEL,
ISSN: 2525-7501
2002). No dia em que o Brasil entra na II Guerra Mundial, contra os países do eixo (Alemanha,
Itália, Japão e países satélites), notícia anunciada pelos jornais Opinião Pública e Diário
Popular, deu início a uma passeata no centro da cidade de Pelotas, conhecido como o grande
“quebra-quebra”, tendo como alvos os estabelecimentos comerciais e residências de alemães e
italianos que residiam em Pelotas.

As manifestações e depredações na cidade deram início às 48 horas de saques,


queimadas e invasão aos estabelecimentos e residências dos teuto-brasileiros. Entre estes
estabelecimentos estavam os hotéis cujos proprietários eram alemães ou descendentes. Obtive
informações de que cinco hotéis foram atacados durante o “quebra-quebra” em Pelotas, em 18
e 19 de agosto de 1942. Foram atacados os seguintes hotéis: o Hotel América, o Hotel do
Comercio, o Hotel Gloria, o Hotel F. Treptow e o Hotel Fiss e Tessmann.

A noite, à medida que a exaltação popular aumentava, uma multidão incalculável,


vibrando de revolta, apedrejou diversas casas comerciais alemãs, num ímpeto
incontido de vingar a infâmia dos assassinatos nazistas que não se apiedam nem as
crianças, nem as mulheres indefesas e inocentes. Indomável e fiel aos seus propósitos
de também colaborar na defesa da nação, o povo atacou os Hotéis do Comércio e
América, de propriedade de alemães, a residência do dentista Tochtrop, a ferragem
Nieckele, Palmeira e Cia, Monti Knabe e mais outras firmas germânicas. (DIÁRIO
385
POPULAR, 19.08.1942, p. 2).

Na notícia acima, do jornal Diário Popular, é relatado que a multidão apedrejou diversas
casas de alemães, entre elas o Hotel do Comércio e o Hotel América. Ressalta-se aqui a
confusão comentada por Fachel (2002) entre a identidade cultural dos alemães e o nazismo,
pois não foram os nazistas atacados na cidade e sim os imigrantes alemães e descendentes de
alemães.

Foram em grande número as casas comerciais e residências, pertencentes a súditos do


eixo, depredadas, ontem, durante a tarde: Hotel América, Hotel do Comércio, Ferragem P. H.
J. Marxen, Fotografia Santos, Igreja São João, Cortume Júlio Hadler, Armazém Fiss e Tesmann,
dr. Tochtropp, Alfaiataria Caprio, G. Keil, Willy Petzold (banca de frios no Mercado e
residência), F. Treptow e Cia., Luiz Gutchow, residência de J. Guadalajara e algumas outras,
cujos proprietários não foi possível a reportagem identificar, em virtude da confusão reinante
no momento. (DIÁRIO POPULAR, 20.08.1942, p. 2).
ISSN: 2525-7501
Nesta notícia, é relatado que um grande número de casas comerciais foram depredadas
no dia 19 de agosto, no período da tarde, dentre eles o Hotel América, o Hotel do Comércio,
que foram citados na notícia anterior e o Armazém Fiss e Tessmann e o Hotel de F. Treptow e
Cia.

O “quebra-quebra” não foi um fator isolado da cidade de Pelotas, pois, conforme Fachel
(2002), aconteceram depredações em Porto Alegre e outras cidades do Sul do estado. O autor
também esclarece que não foi apenas com a entrada do Brasil na II Guerra Mundial, mas que a
partir da I Guerra estes incidentes já ocorriam. Porém, em agosto de 1942 estes ataques
ocorreram de forma acentuada. “Os dias dos “cristais”, para os teuto-brasileiros, ocorreram em
agosto de 1942, quando suas lojas foram saqueadas e destruídas em várias cidades brasileiras.
Pelotas e Porto Alegre são dois exemplos.” (FACHEL, 2002, p. 35).

O Hotel América foi incendiado em 1942, como mostra a Figura 1 e a Figura 2. Após
os ataques, o hotel volta a funcionar, pois, em 1947 estava aberto, mas com outro proprietário,
Florentino Vieira F.

Figura 1: Incêndio ao Hotel América. 386

Fonte: Acervo Pelotas Memória


ISSN: 2525-7501

Figura 2: “Quebra-quebra” no Hotel América.

Fonte: Acervo Pelotas Memória


O Hotel do Comércio também foi atacado, e segundo a entrevistada Erna (2005), em 387
1942 o hotel fecha, pois, o proprietário é preso durante o “quebra-quebra”, não abrindo
novamente com o mesmo proprietário. Em 1943 foi aberto no local o “Novo Hotel do
Comércio”, pelo ex-proprietário do Hotel Rego.

Segundo Perazzo (2003), os teuto-brasileiros foram rotulados com a expressão súditos


do Eixo, e esta era aplicada até mesmo a brasileiros descendentes de alemães, que eram presos
por questões culturais como língua e tradições.

A entrevistada Erna relata o que aconteceu no dia que atacaram o hotel:

Aí houve aquelas quebras e queimas por causa da Guerra Mundial, da II Guerra


Mundial, aí uma noite, eles vinham pela Sete de Setembro e foi tudo assim um
movimento né, havia assim de gente, com pedras nas mãos começaram até a atirar
pedra nas janelas no segundo andar, né aí quebrou vidro e não tinha hóspede quase
assim durante a noite não tinha muitos, muita gente usava aquele hotel para vir fazer
compras, para consultar, São Lourenço, Camaquã, assim de Morro Redondo, paravam
durante o dia, né. Também pediam um quarto né e no momento que aquelas pessoas
saíam aí tinha que ser tudo já trocado a roupa para não, e aquela noite o que que a
gente fez. De repente e tinha o porteiro né, o porteiro não queria deixar entrar ninguém
eles queriam entrar e a tirar tudo para a rua aí não deixou o porteiro velho já, Seu Julio
era o nome dele. Aí veio um soldado e pedia bandeira brasileira, né. Aí eu que
guardava a bandeira junto em um armário de guarda roupa, né aí eu dei a bandeira
ISSN: 2525-7501
para o soldado e ele hasteou a bandeira, aí eles bateram palma, aqueles invasores aí
eles foram embora e o que que nós tinha que fazer no outro dia, né limpar toda vidraça
quebrada né, muitos alguns tinha ali uns viajantes mas foram embora para outro hotel
ficaram com medo aí quando era meio dia, quando a comida estava pronta, embaixo
era as cozinheiras, e eu a camareira, nós trabalhávamos em cima né (Erna Schüller
Weirich, 2005).

A partir da fala da entrevistada pode-se afirmar que a multidão que praticou os ataques
no “quebra-quebra” eram pessoas da cidade, cidadãos comuns, acompanhadas de guardas, que
chegaram atirando pedras e pedindo para hastear a bandeira do Brasil, como símbolo de
patriotismo, negando a identidade alemã dos proprietários. Segundo Perrazzo (2003) a
repressão se estendia a todos os estrangeiros do Eixo, mas variava de intensidade de acordo
com o grupo, sendo os alemães os que mais sofreram com os ataques: “Os alemães foram os
mais visados pelas perspectivas nacionalistas do governo Vargas e, consequentemente, os mais
atingidos pelas medidas governamentais”. (PERAZZO 2003, p. 2).

A entrevistada Erna continua com o seu relato sobre o “quebra-quebra”:

Os quartos eram em cima e eu trabalhava, ajudava na lavação de roupa e nós duas


trabalhávamos em cima né e ela já é falecida agora. Aí quando a gente não tinha ainda
almoçado. Mas aí vieram turma de gente de Pelotas mesmo e aí eles invadiram, eles
atiraram as panelas com comida quente no meio da rua, na rua Sete de Setembro e aí
388
o que que nós tínhamos para fazer? Nós fomos bem para o fundo né tinha até uma
pessoa com duas crianças ela se tratava da, ela estava doente mas não queria ficar no
hospital então ela ficava hospedada lá. Aí eu não aguentei mais a barulhada. O que
vinha pela frente era jogado na rua, aí eu passei num muro, assim do lado do hotel não
era tão alto, tinha até uma caixinha. Mas depois que eu passei do muro era bem alto
para eu [...] eu não aguentei, [...] a gente ouvia a barulhada, as quebras, atiraram as
camas, guarda roupa, bidê, tudo para a rua, lá já naquele tempo já era com tudo, com
pia, quebrando os canos, não ficou um prato, não ficou um garfo eu acho, lá dentro da
cozinha, tudo tudo, tudo, a mesa, as cadeira e fogo né e os bombeiros molhando as
paredes da casa dos outros, para não arder o incêndio e o dono do hotel foi preso.
(Erna Schüller Weirich, 2005).

O hotel foi atacado duas vezes, na primeira pediram apenas para hastear a bandeira do
Brasil, mas voltaram no segundo dia de “quebra-quebra” para destruir, queimar e saquear o
hotel, levando os pertences de quem estava hospedado e dos funcionários do hotel. Segundo a
entrevistada, “não ficou um garfo no hotel, tudo foi levado e destruído e por fim o dono do hotel
foi preso” (Erna Schüller Weirich, 2005).

Ainda, conforme a entrevistada Erna, o senhor Germano Bunde, dono do hotel, era
natural da Alemanha. Sobre a mulher do Germano, também chamada Erna, “a dona não estava
[...] nós tínhamos uma governanta com nós no lugar da patroa. Aquela pobre coitada já velha,
ISSN: 2525-7501
aquela acho deixaram sair pela porta da frente [...]” (Erna Schüller Weirich, 2005). A esposa
do senhor Germano não se encontrava no hotel no momento dos ataques.

A entrevistada Erna retorna ao hotel na tarde do ataque para tentar recuperar os seus
pertences e relata:

Mas aí depois de tarde, eu e a outra guria que trabalhava lá, ela já era de mais idade,
aí nós fomos lá, vamos ver se já sobrou alguma coisa, mas estava só água pingando,
um alagamento e tinha acho que era um PM com o despertador na mão, o despertador
do hotel. E eu disse assim pra Emília, eu disse, “olha o despertador do Seu Germano”
e ele disse “não, você não tem nada que ver aqui” e eu disse “como não, nos
trabalhemos aqui, temos só a roupa do corpo”. Mas, olha, foi, aquilo foi uma tristeza,
quem podia levar, levava, roubava né. Quem queria roubar pegava, ai quando nós
fomos, tinha duas mulheres sentadas em cima dos colchões, no pátio embaixo né, aí
nos descemos pela escada dos fundos e ela disse isso aqui é meu, isso eu vou levar, e
eu disse “Pode levar nós fomos ver se tem alguma coisa nossa”.[...] Aí tu não achava
mais nada na cozinha, aí coisa mais triste eles tinham até uma caixa d’ agua por cima
em um enorme fogão, aquecia pelo fogão a lenha, aquecia aquela caixa para lavar
louça né e até aquilo quebraram mas não tinha nada, nada, nada, aquelas mesas tudo
com coisa branca né, tudo lascado então tu não achou mais nada. (Erna Schüller
Weirich, 2005).

Segundo a entrevistada tudo foi perdido e o público que atacou o hotel recebia apoio
policial. É afirmado por Erna (2005) que a PM (Polícia Militar) estava presente nos ataques. 389
Alguns anos depois, o senhor Germano e a senhora Erna são encontrados por colegas
da entrevistada Erna. “Depois eu já estava casada aí as outras minhas colegas encontraram
eles, eles vieram, foram presos, eu não sei foram para Porto Alegre aí queriam me ver, nos
gratificar, que a gente foi tanto tempo, como é que diz... [Empregado]. ” (Erna Schüller
Weirich, 2005).

O Hotel Gloria também foi atacado em 1942, cujo proprietário era Carlos Bernardo
Neutzling. A entrevistada Luiza Brauner morou neste hotel, como afirma em entrevista “e eu
morava no hotel que eles era Neutzling, eles eram alemães [...]” (Luiza Del Grande Brauner,
2005). A Luiza morou no hotel por dois anos, com seu filho e marido, e saiu quando aconteceu
o “quebra-quebra”, como relata.

Foi quando eu sai, foi coisa horrível né, queriam quebra tudo, mas não quebraram por
que o meu irmão estava junto, um dos meus irmãos e o sobrinho estava junto, não
aqui vocês não vão fazer nada, aqui tem meu sobrinho, e outra minha irmã não tem
nada que ver com isso, não fizeram nada, por que se não estava tudo na rua, muito
mal feito né. (Luiza Del Grande Brauner, 2005).
ISSN: 2525-7501
Como é relatado pela entrevistada, ela estava no hotel no momento do “quebra-quebra”
e só não teve seu quarto atacado, pois o seu irmão estava no grupo que participou do ataque e
disse que ninguém deveria fazer nada com sua irmã e sobrinho, o filho de dois anos de Luiza.

O Hotel F. Treptow também sofreu com as atrocidades do “quebra-quebra”. Em agosto


de 1942 o hotel foi invadido e saqueado. A família saiu correndo e fugiu para a colônia, como
é relatado por Fritold (2016) “chegaram lá de repente assim né [...] chegaram lá para destruí
tudo saquearam roubaram o que podiam”, saquearam e queimaram a casa.

Levaram ele, a minha esposa a Selma pego ele, o Gilberto de dois anos e saiu correndo
com ele né ai eles fugiram, eles fugiram e foram lá para a chácara de um tio né, eles
pegaram lá e foram lá ai e ai esse que eu estava falando antes o capitão Souto ele do
quartel ele estava em casa e não tinha ai ouviu aquilo ele pegou do quartel ele pegou
meia dúzia de soldados que estavam lá de serviço estava de folga e foi lá e toma conta
disse, quem não se vai eu vou manda mata todo mundo, e ele era corujão e assumiu
lá boto todo mundo a corre e olha tinha botaram fogo no deposito e eu sei que aquele
dia eles tinham recebido 200 saco de linhaça de torta de linhaça e estava na garagem
a garagem ó chego, ele pegou, a chega o forro queima uma parte grande do forro assim
e ai mas eles salvaram e na lá no deposito grande a madeira já foi salpicada com fogo
mas conseguiram apaga também e ai o soldado, o capitão tomo conta e diz, olha aqui

390
nem entra e nem sai ninguém ai ele entro e ele mesmo tranco com soldado e guardo
ai o teu pai e não sei quem é que foi [...] chegaram lá e ele disse não eu entrego e
vocês vão toma conta agora é de vocês qualquer coisa vocês me chamam e ai ficaram
lá né ai depois começaram a devagarzinho começaram indo novamente né. (Fritold
Rutz, 2016).

Em agosto de 1942 a família Treptow fugiu para parentes na zona rural de Pelotas, com
medo dos ataques. O prejuízo só não foi maior para a família porque conseguiram fugir a tempo
e receberam auxílio do “capitão Souto” do Quartel Militar. Porém, quando o capitão chegou já
haviam botado fogo no deposito da família, deposito este que estava cheio de linhaça, o que fez
com o fogo se espalhasse rapidamente.

Depois disso, a família voltou e retomou o hotel e o armazém, e, em 1979, recebeu um


ressarcimento da guerra, pago pelo Estado, mas, que segundo Fritold e Gilberto, não valia a
pena retirar, pois o valor não era corrigido.

O Armazém Fiss e Tessmann, que segundo Fritold (2016) possuía hotel nos fundos do
armazém, foi atacado no “quebra-quebra” e o prédio foi totalmente queimado. Depois disso, a
família não retomou o negócio, pois teve perda total e o prédio permaneceu abandonado, em
ruinas, por muitos anos (Fritold, 2016).
ISSN: 2525-7501
Em agosto de 1942 a cidade de Pelotas encontrava-se em meio ao caos e a violência. Os
estabelecimentos e residências de alemães e descendentes foram invadidos, saqueados e
incendiados. Entre estes estabelecimentos estavam cinco hotéis: Hotel América, Hotel do
Comércio, Hotel Gloria, Hotel Treptow e Hotel Fiss e Tessmann. Estes hotéis foram invadidos
fazendo com que os hóspedes fossem embora, seus empregados e proprietários fugissem e, em
alguns casos, seu proprietário fosse preso. Sobre o Hotel Krüger e o Hotel Ness não se tem
informações se foram ou não atacados no “quebra-quebra”.

As lembranças destes dois dias estão presentes na fala dos entrevistados e marcados na
sua memória, como na fala da Luiza.

Foi horrível vocês não têm, eu vi, eu vi com meus olhos, o que eles fizeram [...] Todas
casas de alemães, tudo que era alemão, hotel e família tudo voava, tudo voava, esse
hotel que tu fala foi a coisa mais triste do mundo, triste, triste, eu não vi mas contaram
lá do sobrado que aquele coisa... da casa... mas que voava né, era coisa horrível, não
deviam ter feito isso. (Luiza Del Grande Brauner, 2005).

A entrevistada repete que foi muito triste o que aconteceu: “a coisa mais triste do
mundo”, que era “coisa horrível” e que “não deviam ter feito isso”.
391
CONCLUSÃO

O Hotel Treptow reabriu cerca de um ano depois dos ataques do “quebra-quebra”; o


Hotel Gloria também continuou funcionando posteriormente aos ataques, com o mesmo
proprietário.

O Hotel do Comércio foi fechado, pois o seu proprietário foi preso e não reabriu. Em
1943 foi aberto o “Novo Hotel do Comércio”, no mesmo endereço, mas com outro proprietário.

O Hotel América reabre em 1947 com o mesmo nome e no mesmo endereço, porém,
com outros proprietários. O hotel Fiss e Tessmann teve todo o prédio queimado e nunca mais
voltou a funcionar, pois o estabelecimento foi totalmente destruído no ataque.

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ISSN: 2525-7501
A IDEIA DE CRISE DA CIVILIZAÇÃO E A QUESTÃO DA FINITUDE NO
ENTREGUERRAS: O CASO FREUDIANO*213

Pedro Leal Gomes**

Carlos Henrique Armani***214

RESUMO

No contexto do entreguerras, desenvolve-se, entre os intelectuais da Europa ocidental, uma


ideia de crise civilizacional, sobretudo pelo resultado traumático da Grande Guerra, que levou
uma boa parte de escritores franceses, ingleses e alemães, sobretudo, a rever o que seria a
herança da Europa em termos civilizacionais. A presente pesquisa propõe uma reflexão a partir
da interpretação do pensamento de Sigmund Freud, um autor que viveu nesse contexto, sobre
questões como finitude humana e a perspectiva de crise civilizacional. Em O Mal-estar na
Civilização (1930), Freud afirma que, existindo um instinto à autodestruição, uma
agressividade a priori em cada homem e mulher, a contenção desses impulsos também é uma
razão de existência para a civilização. Ela é criada para ir contra essa natureza; a liberdade
individual não constitui um dom na civilização, e sim impõe restrições à humanidade. Destarte,
a felicidade é contrária à ideia de civilização. O homem civilizado trocou uma parcela de suas
393
possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança, portanto considera falho o atual
estado civilizacional, em que é permitido tanto sofrimento; sofrimento esse representado
faticamente nos conflitos da Grande Guerra. A compreensão teórica e metodológica do texto
será a partir da História Intelectual, mais especificamente a partir de autores Dominick Lacapra,
Reinhardt Koselleck e Franklin Baumer para a contextualizaçao das reflexões da psicanálise,
da literatura e da filosofia do período.

Palavras-chave: Finitude, Civilização, Sigmund Freud.

INTRODUÇÃO

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Acadêmico do curso de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), bolsista PIBIC-CNPq. E-
mail: pedro_leal7@hotmail.com.
*** Professor dos cursos de graduação, mestrado e doutorado em História da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM). E-mail: carlos.armani@gmail.com
ISSN: 2525-7501
Essa pesquisa é proveniente de uma iniciação científica, com orientação do Prof. Dr.
Carlos Armani e coorientação do mestrando Augusto Petter, e está inserida no projeto “História
Intelectual, Historicidade e Processos de Identificação Cultural”.

No contexto do entreguerras215, desenvolve-se, no pensamento europeu ocidental, uma


ideia de crise civilizacional que coloca os problemas e as contradições acerca da própria noção
de civilização. A partir de uma realidade catastrófica, a Grande Guerra, muito se reflete sobre
questões como finitude, civilização, progresso. Nos âmbitos da filosofia, da arte, da literatura e
da psicologia, são propostas reflexões das mais variadas sobre a relação pessimista do ser
humano consigo e com as construções culturais, as quais, apesar de toda a cumulatividade de
experiência adquirida historicamente, não impediram a violência desmedida e a banalização da
morte. Esse período foi presenciado por Sigmund Freud, um psicanalista e intelectual europeu,
que testemunhou, pensou e escreveu sobre tais aspectos em seu livro O mal-estar na civilização
(ou na cultura, como usualmente se traduz do alemão), como também em um texto menor, mas
não menos denso, Reflexões para os tempos de guerra e morte.

O historiador Franklin Baumer afirma que na primeira metade do século XX houve uma 394
revolução incomparável no pensamento europeu, segundo ele, a Grande Guerra tem tremenda
influência nessa mudança

A Primeira Guerra Mundial, fez tremer os alicerces da vida e do pensamento europeu.


É na verdade, inconcebível que um tal holocausto, que apanhou a maioria dos
Europeus de surpresa, não o tivesse feito. A história do impacto da guerra nos
intelectuais, e no pensamento e nos padrões de pensamento, ainda está por escrever e
não será fácil fazê-lo. (BAUMER, 1990, p.170)

A análise das obras se dará a partir da perspectiva da História Intelectual, mais


precisamente de Dominick Lacapra e seu olhar para as relações texto-contexto. Para Lacapra,
a relação “dentro” e “fora” do texto não é uma relação simples e dada, a dicotomia
texto/contexto deve ser problematizada; segundo ele o contexto do “mundo real” em sí já é
“textualizado” de diversas formas. “The context or the “real world” is itself “textualized” in a
variety of ways, and even if one believes that the point of criticism is to change the world, not

215
Período do século XX que se estende do fim da primeira guerra mundial, em 11 de novembro de 1918, até o
início da segunda guerra mundial, em 1 de setembro de 1939.
ISSN: 2525-7501
merely to interpret it, the process and results of change themselves raise textual problems.”
(LACAPRA, p.26)216 Daí a necessidade de uma forma de interpretação que identifique que o
próprio contexto, na medida em que passa pelo crivo da linguagem, é criado e recriado por
textos e relatos do passado, e que o texto está inserido no contexto que o transcende, ainda que
dele dependa para fazer sentido ou permitir que uma memória – neste caso, dos traumas da
guerra -, possa ser compartilhada pelos contemporâneos. Da categoria conceitos antitéticos
assimétricos, de Reinhart Koselleck, para ele “o movimento histórico sempre se realiza em
zonas de delimitação mútua das unidades de ação, que também se articulam conceitualmente.
(...) No mundo da história, quase sempre se trabalha com conceitos assimétricos e
desigualmente contrários” (KOSELLECK, p.193); e dos estudos de Franklin Baumer para
contextualização.

O objetivo desse trabalho é fazer uma reflexão introdutória – porém contextualizada -


sobre o pensamento de Freud, especificamente a partir das obras citadas acima.

Capítulo I - A Civilização (Kultur)

A Civilização (ou cultura), para Freud tem dois fins217, o de proteger a humanidade
395
contra a Natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos. O medo perante a natureza,
que se reflete nessa suposta proteção, vem de uma concepção negativa de natureza humana;
Freud tem uma perspectiva quase hobbesiana nesse aspecto. Para ele, o ser humano em sua
origem é agressivo e sexual, tem as pulsões de vida (Eros) e as pulsões de morte (Thanatos).
Além de ajustar as relações sociais, a civilização tem como principal motivo de existência, a
contenção desses impulsos, da força do Id (es). Freud pensa o civilizado como o oposto
assimétrico de bárbaro, está muito influenciado pelas perspectivas de progresso e racionalidade
do século XIX. Ele enxerga o bárbaro, mesmo no homem civilizado contemporâneo, permeado
de instintos, logo muito mais conectado com o Id218, como o homem primevo e que veio
progressivamente se tornando civilizado por meio de instrumentos criados pelas forças

216
“O contexto ou o “mundo real” é por si só “textualizado” de diversas formas, e mesmo que alguém acredite
que o sentido da crítica é transformar o mundo, não somente interpretá-lo, o processo e o resultado da mudança
por si só levantam problemas textuais.” (LACAPRA, 1983, tradução nossa).
217
Ver o livro de CUCHE (1990), acerca das diferenças entre o conceito de civilização, usado na língua francesa,
para designar o que a língua alemã entende por cultura e vice-versa.
218
O ID, grosso modo, corresponde à parte mais primitiva da personalidade, ligada aos instintos e paixões, ou seja,
a parte mais distante no inconsciente e longe da realidade.
ISSN: 2525-7501
valorativas e morais condensadas no Superego (Über-ich). Então coloca-se o bárbaro, o
irracional e o atrasado na mesma visão negativa em contraposição ao civilizado, racional e a
quem está ligado o progresso, que representa uma visão positiva, se ele fosse conduzido
somente pelos aspectos racionais que supostamente seriam trazidos pela civilização para
domesticar os impulsos destruidores do homem.

Entretanto a civilização, o progresso e a razão são fontes de uma gigantesca infelicidade,


o paradoxo freudiano em que tudo que representa nosso progresso como humanidade é a fonte
da nossa própria infelicidade. A característica desse paradoxo pode ser interpretada como uma
“desilusão radical com a época e ao mesmo tempo uma fidelidade sem reservas a ela”
(BENJAMIN, 2012, p.125). Segundo Freud, são vários os problemas impostos pela civilização
ao indivíduo, primeiramente a repressão das pulsões, que fundamenta a existência da
civilização; se existe um instinto no indivíduo à autodestruição, uma agressividade a priori em
cada homem e mulher, e esses impulsos devem ser contidos, ou seja, o ato de ir contra a própria
natureza humana, o esforço necessário é tremendo. Cria-se, então, uma atitude hostil do
indivíduo perante a civilização, visto que a contenção dos impulsos é uma relação direta com a
criação de restrições e a diminuição das dimensões mais restritivas da liberdade. Ou seja, “a
396
liberdade individual não é um bem cultural. Ela era maior antes de qualquer civilização, mas
geralmente era sem valor, porque o indivíduo mal tinha condição de defendê-la.” (FREUD,
1930, p.41). Em troca há segurança, segundo Freud: o homem civilizado trocou uma parcela de
suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança, ou seja, o controle de suas
relações mútuas em sociedade. Nesse sentido, a civilização, ainda que permeada pela destruição
causada pela guerra, teria de apostar na força da razão para conter seus perenes impulsos
destrutivos.

Capítulo II - A crise da Civilização e a questão da finitude

A ideia de crise civilizacional entra em perspectiva após a Primeira Guerra Mundial,


quando coloca-se em xeque os valores racionalistas e de otimismo em relação ao progresso do
século XIX. Diversos fatores colaboraram para a reflexão existencial e social nesse período,
mas nenhum como a catástrofe da Grande Guerra. A Grande Guerra foi um dos eventos-limite
que mais contribuiu para esse mergulho na reflexão da condição existencial humana, afinal,
nunca uma guerra havia matado, até então, tanta gente (ARMANI, 2006, p. 90). Como sugere
ISSN: 2525-7501
Hobsbawm, 1914 inaugurou uma guerra que foi travada pelas principais potências como um
tudo ou nada, como uma guerra que só podia ser vencida por inteiro ou perdida por inteiro,
simplesmente porque se tratava de uma guerra com metas ilimitadas.

Se toda a repressão aos instintos, toda a infelicidade causada ao indivído seria explicada
pelo ganho de segurança, o advento da Grande Guerra seria uma grande contradição

nas razões pelas quais a civilização existiria. A desilusão proveniente deste acontecimente
permeia todos os âmbitos da vida social européia. De acordo com Freud (1915, p. 215):

A guerra na qual não queríamos acreditar irrompeu, e trouxe a... desilusão. Não é
apenas mais sangrenta e devastadora do que guerras anteriores, devido ao poderoso
aperfeiçoamento das armas de ataque e de defesa, mas pelo menos tão cruel,
amargurada e impiedosa quanto qualquer uma que a precedeu. Ela transgride todos os
limites que nos impusemos em tempos de paz, que havíamos chamado de Direito
Internacional, não reconhece as prerrogativas dos feridos e dos médicos, a distinção
entre parte pacífica e a parte lutadora da população, nem os direitos de propriedade.
Ela derruba o que se interpõe no seu caminho, em fúria enceguecida, como se depois
dela não devesse existir nem futuro nem paz entre os homens. Ela destrói todos os
laços comunitários entre os povos que combatem uns aos outros, e ameaça deixar um

397
legado de amargura que por longo tempo tornará impossível o restabelecimento dos
mesmos. (FREUD, 1915, p.215)

Pensar que todo o avanço tecnológico, das ciências naturais, o domínio humano sobre a
natureza e o poder adquirido em relação ao espaço e tempo, motivo de orgulho para esses
homens, e valores dessa sociedade, não impediram a tragédia anunciada. Para Freud, aquele
que seria um dos objetivos precípuos da história do século XIX não foi realizado: acumular
experiências civilizatórias para garantir um presente e, sobretudo, um futuro estáveis.

Além da desilução, outra característica da ideia de crise civilizacional foi a mudança da


atitude humana perante a morte. Segundo Freud, até a catástrofe que foi a Grande Guerra, a
atitude era de que a humanidade tinha a tendência a colocar a morte de lado, tirá-la da vida, ou
seja, de que ninguém acreditaria na própria morte; sempre que tentamos imaginar a nossa
própria morte, somos expectadores, estamos assistindo a nossa morte, de fora, e não como quem
está sofrendo a ação. Ele argumenta que o inconsciente presume a imortalidade do ser: “no
fundo, ninguém acredita na sua própria morte ou, o que é a mesma coisa, no inconsciente, cada
qual está convencido da sua imortalidade.” (FREUD, 1915, p.19). Com o caos que é trazido
pela guerra, não é mais possível negar a morte, a humanidade está de face a face com ela. As
pessoas não morrem mais isoladamente, mas em grande número e esse acúmulo dá
ISSN: 2525-7501
fim a ideia de acaso e mesmo de uma causa não humana para a morte em termos coletivos219.
Pelo fato de não conseguirmos manter a atitude anterior em relação à morte e não termos
desenvolvido ainda uma nova, sofremos de uma paralisia de capacidade e um desnorteio; a
contradição em que negar a morte não é mais possível, já que a percebemos em todos os
lugares. A exemplo do mal-estar que a cultura experimentava em termos de infelicidade, os
tempos eram, sobretudo, de guerra e morte. Não de uma guerra romântica e libertadora, mas
uma guerra que levava o inconsciente e as dimensões mais destrutivas do ser humano a um
limite até então completamente desconhecido para a psicanálise e para a psicologia.

CONCLUSÃO

Ao retomarmos os conceitos de civilização e de crise civilizacional em Freud, são


notáveis suas relações contraditórias e a força explicativa que ela tem, como também sua
condição de testemunho de um período histórico. A confluência com a perspectiva de finitude
está presente desde o princípio, seja na prerrogativa de existência da civilização, na repressão
das pulsões, seja na perspectiva de crise civilizacional, em que ocorre uma grande mudança na
maneira de relacionar-se com a morte. 398
Refletir acerca do pensamento de Freud, da falência de uma ideia de civilização é pensar
em quem ele se baseou para escrever, dos traumas psíquicos e físicos de milhares de pessoas,
da ausência de sentido e de perspectiva, da violência gratuita e da banalização da morte
implicadas na primeira metade do século XX. Enxergar o caos implícito no pensamento da
época é ter uma pequena ideia do caos vivido pelos sujeitos envolvidos naquele evento, entre
os quais, ainda que não no front, Freud. “Recordemo-nos do velho ditado: Si vis pacem, para
bellum. Se queres conservar a paz, prepara-te para a guerra. No momento atual caberia mudá-
lo: Si vis vitam, para mortem. Se queres aguentar a vida, prepara-te para a morte.” (FREUD,
1915, p.246).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

219
Acaso refere-se à impossiblidade de localizar as determinações de um acontecimento, ou seja, a ideia de acaso
relacionada a morte tem seu fim na frequente exposição humana a ela, percebe-se a morte e suas causas, a morte
aqui é vivida.
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ISSN: 2525-7501
BREVES REFLEXÕES ACERCA DA VIOLÊNCIA EM CURITIBA (1894-1908)220

Matheus Hatschbach Machado221

RESUMO

O presente estudo é pautado por uma análise inicial dos contornos da violência nos primeiros
anos da república velha na cidade de Curitiba. Os primeiros anos da Belle Époque são marcados
pelo desenrolar de um conflito entre um modelo de civilização, que adentrava no pensamento
das elites brasileiras como objetivo de uma cidade moderna e capitalista, e as reminiscências
de um modelo anterior pautado na ordem escravocrata. Os reflexos destas mudanças incluíam
também o fluxo de imigrantes que se estabeleceram na capital paranaense, gerando um aumento
de população, o que inevitavelmente provocava efeitos na percepção da sociedade acerca da
vida em sua cidade. Especificando o contexto, um primeiro esforço de análise da bibliografia
já revela um panorama de Curitiba como a cidade modelo, dotada de um povo ordeiro que
prezava pela paz e a obediência às leis. O estudo, nesse sentido, compreende os limites desse
discurso em contraposição com os relatos presentes na documentação policial das primeiras
duas décadas (1894/1910) da república, haja vista que a descrição da criminalidade detém,
possivelmente, contradições dessa pretensa imagem da cidade. Além disso, essa análise busca
delimitar as nuances da concepção da violência, pensando em vetores de raça e classe. Em 400
suma, as primeiras impressões, ainda que incompletas e parciais, giram em torno de uma
Curitiba que se divide entre sua imagem e uma realidade em que a violência não é vista como
algo efetivamente combatido pelas autoridades policiais visto a falta de estrutura para abrigar e
repreender estes indivíduos. Vê-se, possivelmente, um apelo ao elemento do trabalho como
edificador da sociedade ordeira e consequentemente o repúdio aos elementos da sociedade que
se contrapunham a este modo de vida pautado no trabalho assalariado.

Palavras-chave: Violência; Criminalidade; Curitiba.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho se dedica ao esforço de perpassar algumas noções existentes acerca


da violência e criminalidade. O estudo no tocante à violência traz importantes questões para o

220
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
221
É graduando em História (Licenciatura e Bacharelado) na Universidade Federal do Paraná/BR; no presente
estudo é orientando do Prof. Dr. Carlos Alberto Medeiros Lima. Email: matheushats@gmail.com.
ISSN: 2525-7501
historiador no desbravar do contexto social. Através destas relações da criminalidade são
expostos contradições e limites de determinada sociedade, em que indivíduos etiquetados como
criminosos, muito além de atentarem contra o ordenamento, tratam-se alvos de estigmas e
representações que circulam naquele contexto. Ainda, as fraturas do tecido social, mas
igualmente as continuações do modelo hegemônico são refletidas nas vivências destes
indivíduos criminalizados. É nesse sentido que se conclui fundamental a análise sobre estas
relações de violência, de modo a rememorar as sociabilidades dos indivíduos marcados pelo
controle social. Assim, busca-se realizar as reflexões iniciais sobre a realidade social
impregnada nas relações de violência urbana na cidade de Curitiba durante a Belle Époque,
durante os anos de 1894 e 1908. Trabalharemos, assim, em uma perspectiva dos trabalhos feitos
sob foco em outras regiões brasileiras do período histórico escolhido, para então aprofundar e
relacionar estas reflexões com os trabalhos feitos com base na realidade curitibana. Antes de
tudo, porém, são necessárias algumas questões que darão a orientação de nosso estudo.

O contexto no qual nos fixamos é um período de transição, ou seja, temos a passagem


de uma sociedade pautada no sistema escravocrata para uma república que se queria moderna
401
e civilizada, pautada no trabalho livre como centro das relações. O impasse girava em torno do
processo de reverter o caráter negativo vinculado ao trabalho assalariado para então transformá-
lo no centro regulador da sociedade. O objetivo das classes dominantes demandava uma ação
ampla, haja vista a complexidade das transformações que estavam ocorrendo no período. Desse
modo, a relocação deste trabalhador passava por dois movimentos: criar a nova ideologia
adequada ao capitalismo e ao trabalho assalariado e, concomitantemente, a vigilância dos
aparatos repressores das instituições policias e judiciárias (CHALHOUB, 2012, p. 47). Para
transformar o liberto ou o imigrante sem condições era preciso que a ideologia do trabalho se
vinculasse às relações concretas destes indivíduos, para que uma vez internalizados os valores
como de ordem e civilização ligados ao trabalho, os resquícios do modelo escravocrata fossem
reformulados. O trabalho sob às ordens de outrem constituía como desqualificado, já que
correspondia ao cativeiro. Todavia, a ideologia do trabalho deveria ser aplicada na classe
trabalhadora como um todo para viabilizar o famigerado progresso.

Em suma, na medida em que um novo modelo, como já dissemos, republicano,


capitalista e civilizado se queria instaurar, era preciso preenche-lo com seus valores
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correspondentes. A realidade se mostrava em um processo de instabilidade, como toda
transição, haja vista que se fazia sentir no período as consequências da abolição da escravatura,
além de todo aumento populacional proporcionado pela imigração, de modo que talvez resida
no período a oportunidade de analisar a relação com a violência, teoricamente mais exposta em
seus significados nos momentos de crise. As análises, porém, requerem cuidados ao tratar do
desvio enquanto modelo teórico.

Para isso, utilizamos a abordagem de Gilberto Velho em seu estudo do comportamento


desviante (1999). Deste modo, seriam dois os estágios dos estudos acerca do desvio que
mereceriam distinção, para que a partir dessas perspectivas se pense alguns pontos, a saber,
uma patologia do indivíduo e uma patologia social. A primeira concepção se refere a uma
patologização, dentro de um saber médico, entre sãos e insanos, normais ou anormais, de modo
a colocar o motivo do desvio como um elemento endógeno e psicológico individualmente
considerado. Ou seja, o motivo de uma não adequação as estas classificações do agir normal
seria originário de desordens internas e intrínsecas ao sujeito.

Porém, já haveriam autores que se atentariam ao aspecto cultural, sendo um dos maiores 402
representantes dessa concepção Robert Merton. Segundo Velho, a concepção do autor sobre o
desvio se baseia na tradição durkheimiana com a noção de anomie. A ideia, em suma, seria a
de que uma estrutura social teria dois níveis, um acerca dos objetivos valoradamente positivos
de serem perseguidos, e do outro lado, os meios pelos quais aquela estrutura social e cultura
admitem serem usados para alcança-los. A partir disso entende-se que uma sociedade em que
não há consenso acerca dos meios e dos fins seria uma sociedade, sob a ótica desse
funcionalismo de Merton, mal integrada do modo como deveria. O próprio autor muda, após
críticas feitas a sua teoria, seu modelo. Passa então a distinguir anomie de anomia: enquanto
aquela seria uma estrutura sócio-cultural que não está em harmonia, esta se trata do indivíduo
que não está em conformidade com os meios e fins aceitáveis naquela determinada sociedade.
Entenda-se que estes meios e objetivos são variáveis entre diversas culturas e não
necessariamente uma sociedade em anomie terá demasiados indivíduos em anomia, sendo que
no contrário a independência é mantida, não sendo estritamente determinante a correlação entre
indivíduo e sociedade.
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A perspectiva de Merton, todavia, não se torna problemática pela estática, mas pela
estrutura social não problematizada. Apesar de existirem mudanças nessa sociedade, clarifica
Velho, o problema reside em considerar, a priore, essa estrutura como hipoteticamente em um
bom funcionamento. Ou seja, para basear todo o raciocínio de Merton, é preciso que se aceite
intacta a existência de um modelo de estrutura social bem integrado e funcionando em
harmonia, o que, por óbvio, não existe na materialidade. É preciso, então, estabelecer um
conceito de cultura mais flexível, considerando indivíduo “desviante” como dotado de um
significado diferente para a sua realidade. Passa-se de um caráter deslocado para um
multifacetado, dinâmico nas relações que cercam estes indivíduos. O estudo destes "desviados"
passa a considerar então que diferentes grupos criam o desvio ao estabelecer suas regras sociais,
todavia, este comportamento classificado como desviante nada mais é que uma leitura
divergente dos impostos pelos valores dominantes. É dessa forma, em suma, que se pretende
considerar o fenômeno da violência e da criminalidade, como relações políticas entre grupos
em suas regras e normas sociais.

Capítulo I – A criminalidade no paralelo nacional


403
Postas as precauções iniciais, neste primeiro capítulo parte-se do estudo do cotidiano
das classes trabalhadoras no Rio de Janeiro da Belle Époque, de Sidney Chalhoub.
Primeiramente, as relações de trabalho, ou seja, os casos de homicídio envolvendo o ambiente
de trabalho são analisados. Diante de inúmeros eventos de violência entre trabalhadores na sua
diária laboral, o autor identifica vários momentos de tensão entre grupos de trabalhadores e seus
patrões, pensando em conflitos tanto verticalmente na hierarquia do trabalho, quanto
horizontalmente. Além disso, é preciso que se considere o crime não como o oposto da ordem,
mas sim como parte fundamental desta, ou seja, não como elemento marginal, mas constituinte
desse mesmo mundo, como instrumento de legitimação do controle social.
Neste tom, as relações entre os trabalhadores se mostram separados notadamente pelos
grupos nacionais. O ambiente brasileiro seria então composto por rixas entre esses grupos,
sejam entre imigrantes de diferentes nacionalidades, ou inscrita na antiga oposição entre
portugueses e brasileiros, na representação do modelo senhor-patrão branco e escravo-
empregado não branco (CHALHOUB, 2012, p. 60). Assim, as nuances entre os crimes
analisados são predominantes no sentido de que uma vez instaurado o conflito, esses grupos de
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imigrantes tendiam a se aglutinar em redes de solidariedade durante o inquérito. Demonstravam
o caráter trabalhador e honesto de seu compatriota enquanto o oponente preponderava em sua
vagabundagem e desordem. Para além da constatação óbvia do uso destes signos (trabalhador
e vadio) se nota a posição das próprias classes populares diante desse modelo, de se utilizar
destes significados dentro do conflito pela instauração da verdade no processo como válidos.
Assim, estes conflitos envolvendo o labor demonstram a rixa envolvendo questões étnicas e
nacionais, e a consequente ajuda mútua entre os da mesma identidade.
Chalhoub então passa a descreve os conflitos envolvendo relações afetivas, entre seu
convívio e família. Esse âmbito do cotidiano das classes despossuídas era sinônimo, por entre
a imagem da classe dominantes, de promiscuidade e desordem; ou seja, parte do problema da
"patologia" destes indivíduos era a desagregação familiar que incorria de suas relações
amorosas. Nesse sentido, parte da tônica dos conflitos narrados pelos autos processuais tem
relação a um elemento machista destas relações. Existiriam duas situações elencadas que de
maneira geral abordam essas relações. Em um primeiro cenário, duas famílias obrigadas a
conviver juntas acabam entrando em conflito pela interferência de um dos familiares no
relacionamento do casal, de modo que a situação, assim, é explicada pela competição da posição 404
de chefe da família. Ainda nessa situação, duas famílias não correlacionadas que pela
convivência acabam entrando em conflito, geralmente por uma falta de cumprimentos do que
chama o autor de deveres cotidianos na relação das famílias. No segundo caso, os conflitos se
dão a partir da tentativa frustrada de dominação por parte do homem, que compensava essa
impotência pela violência seja na antiga parceira ou no novo amásio desta. Essa problemática,
clarifica o autor, teria origem pela própria configuração populacional no caso carioca: a
população masculina era consideravelmente maior que a feminina, de modo que arranjar um
novo companheiro seria mais fácil para a mulher, enquanto para o homem perder sua amasia
era voltar a uma competição acirrada para constituir uma família. Assim, a mulher restava em
uma posição mais confortável para abandonar uma relação que não a satisfizesse, sem
menosprezar sua atitude, que a despeito da pretensa dominação masculina, lutava em prol de
sua independência, tanto no trabalho quanto no relacionamento amoroso. Aos olhos das classes
dominantes que observavam estes crimes, restava a impressão da futilidade dos motivos no
ápice destes eventos pelos quais a violência foi levada a cabo. Todavia, esses acontecimentos
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se apoiavam em quebras de condutas anteriores, regras de convivência estipuladas entre estes
atores históricos.
Por último, o autor se compromete com os espaços de lazer entre os trabalhadores, entre
os donos de botequins que zelavam pelo seu estabelecimento e os populares que tinham naquele
espaço parte de seu cotidiano, o que por vezes caia no conflito. Para além de outras mais
especificidades que no mais refletem o já observado nos âmbitos anteriormente descritos, o
interessante no capítulo gira em torno das opções pelas quais os populares tinham diante do
conflito: a privatização ou a repressão. Enquanto esta seria a resolução dos conflitos pelos
elementos do Estado, aqueles significaria dizer que o conflito se resolveria pelas próprias regras
de comportamento deste grupo social. Não há muito esforço envolvido na percepção de que a
privatização dos conflitos eram a escolha preferida. O Estado pelos seus imediatos
representantes não inspirava confiança, tanto pela ineficiência quanto pela violência empregada
por esses agentes. (Ibid, p. 272). Afirmar esse movimento de privatização infere refutar
qualquer perspectiva de patologia social destes indivíduos e reconhecer que estes tinham sua
própria forma de resolver seus conflitos, e ainda mais, que reconheciam na eventual violência
um meio legitimado de comportamento. 405
Ainda pensando o contexto carioca, situa-se o estudo das relações cotidianas da polícia
na primeira república de Marcos Bretas. O autor enfoca outra perspectiva da que Chalhoub
esteve interessado, porém é elucidativo a complementação das considerações. Alguns traços
importantes de seu estudo são sobretudo no comportamento da polícia, a qual por entre os
relatórios de seus chefes de polícias sempre verbalizavam a falta de estrutura para poder abarcar
a função que lhe parecia devida: o controle da ordem. Mais interessante é destacar uma nuance
que o autor atribui às estatísticas. Segundo o autor, os dados de prisões são ambíguos na medida
em que se pese a atividade policial como parte da expressão das preocupações da elite, o que
varia em determinados períodos. Assim, ficaria incerto afirmar se a preocupação da polícia e
da elite são causadas pelo aumento do crime, ou o contrário, se as ocorrências dos crimes
registrados aumentam pelo temor destas classes (BRETAS, 1997, p. 62). Tomando este aspecto,
a atuação da polícia seria então além das estabelecidas nas normas, estas funcionando como um
espaço de atuação que a polícia encaixava determinados comportamentos que merecessem
controle. O método científico, tão em voga pelas ideias da criminologia positivista, era
suplantado pela pressão nos interrogatórios e prisões em massa (Ibid, p. 129). Além disso, o
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autor nota uma diminuição nos casos de prisão na década de 1920, que é atribuído ao gradual
desaparecimento dos casos de ordem pública. Apesar disso, contravenções como vadiagem
continuaram por todo período como uma classificação vaga para enquadrar o modelo das
“classes perigosas”. Até por isso, o número de processos e condenações eram bem inferiores
aos das prisões para averiguações, ou seja, a prisão teria muito mais a função de negar certos
comportamentos do que a condenação propriamente. Por outro lado, não se pode ter certeza
quantas abordagens policiais eram contabilizadas nas estatísticas, ilustrando “o processo de
filtragem que ocorre no trabalho da polícia” (Ibid, p. 108).
Em outro ponto, é importante destacar uma divergência da bibliografia acerca do
contexto do Rio de Janeiro. Enquanto Chalhoub defende o enfoque da população pobre em
“privatizar” seus conflitos, sendo constantemente resistente a incluir a atuação do Estado em
desfavor de uma resolução por uma série de condutas próprias ao seu meio social, Bretas afirma
que “apesar da crítica generalizada à atuação da polícia, a despeito do ódio demonstrado em
algumas ocasiões, indivíduos de ambos os sexos e de todas as idades não hesitavam em recorres
à polícia quando julgavam necessário” (Ibid, p. 120). A discrepância pode se dever por alguns
fatores. O período analisado por Bretas é entre 1907-1930, enquanto Chalhoub se restringe a 406
analisar os dez primeiros anos do século XX, em um ambiente turbulento das reformas de
urbanização e saneamento do governo de Pereira Passos, período em que talvez fossem as
massas desapropriadas mais propensas a desconfiar da atuação policial. Além disso, como
Chalhoub foca em processos de homicídios, nos quais a polícia se via obrigada a dispor de uma
melhor apuração, além da própria natureza do delito, talvez fossem seus envolvidos mais
cautelosos ao interagir com as forças policiais. Tal distinção de modo algum infere diminuir o
possível habito abusivo com a qual essas populações eram abordadas, embora complexifique a
questão.
Ainda neste aspecto, o registro de violências praticadas pelos próprios policiais ocorria
de fato em alguns casos, porém, devido às forças policiais que se dividiam. Clarifiquemos:
embora existia uma solidariedade entre os policiais de uma mesma força, entre a polícia militar,
a guarda civil e a guarda noturna, pela convivência de por vezes terem que trabalhar em
conjunto, tinham algumas rixas que implicava no registro do abuso pelo agente da força policial
oposta, mesmo que qualquer punição se restringisse à procedimentos administrativos. Além
disso, alguns comissários faziam o registro e a acusação de abuso para eventualmente se
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despirem de qualquer culpa que porventura lhe fosse atribuído mais tarde, salvo os casos em
que as acusações eram direcionadas ao seu superior. Assim, os registros de abuso de autoridade
envolvendo policiais da mesma corporação são de rara existência, embora como já pode ser
visto, não fosse devido a retidão das forças policiais (Ibid, p. 46-55). A polícia desenhada por
Bretas até boa parte do período analisado não era de forma algum treinada, e o retrato do
patrulhamento dos agentes nas ruas combina violência com preguiça.
Quando passamos a região de São Paulo, embora permaneçam similitudes, o contexto
claramente é outro. Nesse estudo se debruçou Boris Fausto, pensando nos limites temporais de
1880 até 1924, ou seja, os anos finais do império até o período de consolidação do movimento
operário no país. Como o Rio de Janeiro, as mudanças ocorriam em vários sentidos na capital
paulista, como a imigração e o contingente derivado da abolição. No primeiro capítulo é feita
uma aproximação geral entre alguns recortes através das estatísticas. As fontes criminais
seriam, numa primeira visão, determinadas em sua veracidade de acordo com sua proximidade
do acontecimento real, ou seja, quanto mais os documentos fossem produzidos perto do crime,
mais conteriam em si traços dos crimes cometidos, e, na medida em que se distanciassem, nos
documentos do processo como um todo, mais deturpações seriam suscetíveis em relação ao 407
ocorrido.
Apesar disso, é importante mencionar que alguns crimes, embora julgados, não levavam
de imediato à prisão, como nos crimes sexuais. Assim, inegavelmente, o autor nos transparece
a perseguição do aparato judiciário aos mais pobres, e problematiza uma questão este ponto
para os imigrantes. O período pós-abolição e proclamação da República seria um momento
mais suscetível a prisões pelas mudanças que ocorriam na urbanização da cidade. O período de
1898-1905 seria também pautado pela crise cafeeira e consequente recessão econômica, o que
diminuiu o crescimento demográfico e uma diminuição dos empregos, o que acompanhou uma
atividade policial mais intensa. Outro ponto importante é o fato do número de processos ser
menor que o número de prisões por contravenções como tendência mundial, sendo a ênfase
devido ao papel majoritário da polícia no controle social nas "normas do trabalho, do bem viver,
ou simplesmente pela indefinida figura dos 'suspeitos'"(FAUSTO, 1984, p. 32-33). Pensando
no recorte racial, ponto já tratado por Chalhoub, o tratamento das estatísticas permite, ao
comparar o número de indiciados com a porcentagem da população negra em São Paulo,
constatar a clara atenção aos negros. Além disso, pela leitura dos processos seria notável a
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distinção do elemento racial como degradante, na medida em que o convívio com negros, seja
amorosamente ou não, para as autoridades, tanto policiais como médicas, indicavam uma
diferenciação no tratamento do réu ou da vítima. Quanto ao recorte da imigração, embora o
autor admita um maior número de prisões na última década do século XIX, a razão disso não
seria uma estigmatização, mas por uma questão de desordem provocada pelo estabelecimento
desses indivíduos em outra cultura, já que após o período de grande imigração, quando o
número de novos imigrantes cai, as taxas de prisões acompanham tendência. Todavia, certos
estereótipos seriam percebidos na mídia da época, vinculando determinadas etnias à
criminalidade e mais importante, às desordens. Em suma, "enquanto a correlação
discriminatória entre criminalidade e população de cor constitui um elemento permanente ao
longo de todo o período abrangido pela pesquisa, a correlação criminalidade-estrangeiro é
conjuntural" (Ibid, p. 63). No recorte de gênero a tendência seria a menor quantidade de crimes
praticados por mulheres, sendo que seus crimes seguiriam com características do papel
empregado à mulher na época: quando autoras, tendiam as vítimas serem conhecidas, no mais
das vezes em resposta a alguma ofensa, seja física ou moral; quando vítimas, tendiam a ser seus
algozes majoritariamente conhecidos, porém conjuntamente de estranhos e praticamente 408
sempre homens.
A partir disso, os homicídios são colocados entre esferas de violência não tolerada e a
legítima, como na violência contra crianças e mulheres, as quais, dependendo das
circunstâncias, sofriam agressões físicas sob a égide da "receita pedagógica" (Ibid, p. 93). As
tendências gerais são a mudança de armas brancas para armas de fogo na virada do século, além
de a maioria dos conflitos serem internos aos grupos de mesma nacionalidade. Neste ponto
deve-se indicar uma controvérsia: Chalhoub, no contexto carioca, vê nos grupos nacionais uma
rede de solidariedade que acontece mesmo em casos extremos de homicídio entre compatriotas.
Não necessariamente negando a existência dessa solidariedade entre imigrantes, Fausto coloca
ser exatamente a convivência mais constante entre esses indivíduos a causa desses conflitos,
não os colocando sob os conflitos entre imigrantes de diferentes nacionalidades. Já quando se
coloca os crimes envolvendo familiares, como já dito, a maioria dos crimes se dão por um
agressor masculino contra a vítima feminina, sendo a defesa majoritariamente pautada pelo
suposto adultério e a defesa da honra. Ou seja, uma vez ocorrido o homicídio, a tentativa é se
adequar aos modelos dominantes do papel reservado ao homem na relação afetiva e familiar
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para então a partir disso isentá-lo da culpa. Assim, "os marcos de adequação social da figura
masculina estão dispostos de modo flexível, de tal forma que a transgressão dos limites só
ocorre em situações peculiares. Os marcos da figura feminina são outros e, como é sabido,
muito mais estreitos" (FAUSTO, 1984, p. 110). Além disso, grande parte dos homicídios
aparecem como originários de uma "explosão súbita". Segundo o autor, seria um universo
majoritariamente masculino, entre vítimas e agressores, que entram em conflito por uma série
de razões que é impossível reconstituir.

Capitulo II – A criminalidade curitibana

Postas estas questões acerca da criminalidade tanto no Rio de Janeiro como em São
Paulo, a pequena Curitiba aparece com um ar bem diferente das demais capitais. Como bem
pode-se ver através do trabalho clássico de Maria Ignês de Boni, O espetáculo visto do alto, a
imagem de Curitiba no período analisado é de uma cidade pacata, com um povo ordeiro. Boa
parte dos historiadores da época, como Rocha Pombo e Romário Martins, descrevem a cidade
como portadora de um projeto de civilização, com “democracia, cultura, virtudes, beleza, bem- 409
estar, confraternização, movimento, trabalho, lazer, enfim, ordem e progresso” (BONI, 1998,
p. 14). Segundo a autora, o retrato não necessariamente seria falso, todavia, ameno. Por ela,

não perpassavam as profundas contradições e impasses vividos por uma pequena


cidade que se superpovoava, nem as dificuldades de sobrevivência e moradia em uma
economia precária, marcada pela carestia e desemprego, onde muitas pessoas viviam
na limiaridade do trabalho e do crime; não mostrava a violência policial, as condições
higiênicas propícias a hospedar moléstias epidêmicas ou mesmo endêmicas, o
despotismo sanitário; ocultava as contradições e preconceitos vividos pelos imigrantes,
redenção do trabalho, mas portador de miasmas e odores, e de comportamentos que
deviam ser controlados (Ibid, p. 16). `

Assim, a contradição vivida por esses atores históricos se materializava também pela
violência que permeava suas relações. Pensando neste aspecto, cabe colocar algumas mais
peculiaridades do contexto curitibano. Nos anos de 1870 até 1890 foram criadas várias colônias
de imigrantes em volta da cidade, de modo que o crescimento nesses anos se deveu a esta
imigração e a organização destes em volta de suas colônias. Com a chegada da republica, esta
movimentação para, de modo que o crescimento exacerbado pelo qual passa a Curitiba da
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última década do XIX precisa de outra explicação. Segundo Boni, durante a década de 1890, o
crescimento anual foi de 7,40%, o que praticamente dobrou a população local. Para este
fenômeno, se atribui o crescimento demográfico da própria reprodução das famílias já
assentadas na região. Para além destas questões, a problemática gira em torno de que se a
população dobrou, a economia não acompanhou seu crescimento (Ibid, pp. 17-18). Tendo uma
economia voltada para o consumo interno, com base na extração do mate, juntamente de partes
menores dedicadas a pecuária e exploração da madeira, o café só teria alguma importância a
partir da segunda década do século XX. Assim, a economia paranaense era voltada não para o
mercado externo, mas para o consumo interno e a América Latina, especialmente na região da
platina. Porém, com o fim do século XIX, a atividade ervateira tende a decair, seguido por
momentos de oscilação entre fases de recuperação e baixa. Ou seja, o período economicamente
se via pela crise, que era agravada pelas condições insalubres das partes mais populosas da
cidade, o que gerava desde 1870 correntes de epidemias. Assim, começavam as elites dirigentes
a compor, como em outras cidades do país, seus projetos para higienizar a região. Muitas dessas
doenças então foram atribuídas aos imigrantes que perambulavam pelas ruas (Ibid, p. 24-30).

Dado os limites do trabalho, se faz necessário limitar as considerações acerca das


410
medidas sanitárias nesse breve comentário, de modo que se assegure ao menos a certeza de que
uma grande instabilidade perpassava Curitiba, gerando um momento propício para os discursos
que revelem as relações de violência. As medidas para a urbanização da cidade colocavam na
mira das autoridades os elementos da sociedade que deveriam ser controlados e levados para o
progresso. O imigrante, nesse processo, “de ‘morigerados’ e ‘laboriosos’, passaram a ser
representados no imaginário burguês como preguiçosos, anti-higiênicos, doentes, boêmios,
desordeiros” (Ibid, p. 47). Quando assentados na economia local, seriam anarquistas e
subversivos. Junto deles estarão os demais “desviantes” da sociedade, como libertos,
desempregados, entre outros prejudicados pelas próprias reformas urbanísticas.

Pensando nesses processos de criminalização então, pelas reflexões de Erivan Karvat é


possível ver como se fez a construção do “delinquente” não mais pelo que se fazia, ou seja, por
seus atos, mas sim como por quem era, por futuros comportamentos reprováveis que porventura
teria. Assim como no paralelo nacional, essa lógica será feita com base nas ideias da
antropologia criminal e da criminologia positivista de Lombroso, Ferri e tantos outros. Segundo
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o autor, a cidadania da republica passava pela coletividade civilizada na figura do trabalhador,
disciplinado e o ordeiro. Por sua vez, o trabalho, e sua consequência lógica da ordem pública e
social será então o núcleo da sociedade. Nesse sentido aparecera nos discursos a figura do vadio
ou do mendigo, como anti-norma, uma vez que, para o autor:

Numa sociedade onde o trabalho representa um valor supremo ou a norma da própria


existência, vadios e mendigos, voluntária ou involuntariamente, representam a própria
negação desta norma; numa sociedade onde a cidadania é dada pela inserção no
mercado de trabalho ou pela participação/cooperação do indivíduo no organismo
social, os elementos da negação ao trabalho representam a própria parasitagem, numa
proclamada atitude antissocial (KARVAT, 1996, p. 121).

Assim seriam vistos os demais delitos, ou seja, a partir da visão médico sobre a
degenerescência moral, atávica a certos indivíduos que são atrasados em sua civilidade, o que
permitiria que seus impulsos e instintos o dominassem. Para reprimir estes “desvios” e
“salvaguardar a moralidade pública”, a própria violência da polícia era legitimada pela
imprensa, apesar de seu papel em denunciar abusos da polícia (BONI, 1998, pp. 134-136).

Nesse sentido, embora fossem os curitibanos um modelo de cidadãos comprometidos


411
com a ordem, os mesmos chefes de polícia que nesse sentido alegavam em seus relatórios
atentavam para os índices de criminalidade da capital. Nesse mesmo sentido incorriam as
chamadas da imprensa em relação às estatísticas de crimes, o que contrariava a pacífica cidade.
Pamphilo d’Assumpção teria publicado em 1908 um longo artigo sobre a criminalidade,
defendendo que esta não acharia local propício na população curitibana, e que o crime, em sua
análise entre 1854-1906, não evoluiu, restando às autoridades preocuparem-se das causas que
poderiam fomentar a prática dos crimes, como o alcoolismo e a vagabundagem. Pamphilo
nunca deixará de se mostrar um intenso admirador de Curitiba e de acreditar em seu potencial
enquanto civilização, como bem mostra sua posição no artigo de 1908. Por isso mesmo atribuía
à “índole dos curitibanos” o equilíbrio social. Tal equilíbrio se baseava na noção de
organicidade social, no qual o crime é a anomalia a ser extirpada (GRUNER, 2009, p. 82-89).

Essa posição era contraditória com os relatórios de polícia que notavam um aumento
significativo da criminalidade, embora as causas fossem as mesmas que Pamphilo acusava. Sua
impunidade passava pela insuficiência do aparato estatal em reprimir todos os delitos cometidos
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(BONI, 1998, pp. 54-57). Clamavam, assim, as autoridades curitibanas para que se
aumentassem as instituições que preveniriam os delitos, com leis para a aplicação mais rígida
da punição; com asilos e instituições correcionais e de identificação para vagabundos e
mendigos; e mais policiais para vigiar a cidade. Nesse sentido, foram implementadas medidas
para atenuar a questão da criminalidade. Em março de 1903, foi criado então o Hospício de
Nossa Senhora da Luz, juntamente do Gabinete Antropométrico em 1905 e da revisão dos
regimentos da polícia nos anos subsequentes (GRUNER, 2009, p. 84-85).

Todavia, o problema da incapacidade do aparato policial em dar conta de toda


criminalidade continuava, e embora as autoridades curitibanas estivessem de acordo com as
modernas penalogias, sua precariedade de condições impunham, sob sua perspectiva, a falha
do projeto de recuperação do delinquente. Desse modo,

“essa contradição entre discurso e prática penal propiciou a polícia agir com redobrada
atenção da vigilância da população, principalmente no controle de comportamentos
considerados inadequados ou causadores de delitos. Isso fica explicito, quer na

412
estatística de prisões, quer na determinações e práticas de controle das “causas” de
distúrbios da ordem e da prática de crimes” (BONI, 1998, p. 76).

Boni indica que a incapacidade de conter o crime fosse o fator que aumentasse o foco
da polícia na vigilância, que atuava na prevenção do que possa vir a se tornar um crime. Essa
proposição não parece ser peculiaridade curitibana, visto que Boris Fausto afirma ser uma
tendência que o número de prisões para averiguações ou por contravenções fosse bem maior
que o número acusações de crime e processos (FAUSTO, 1984, p. 33-34). O que se destaca
nisso é que a violência em si não era necessária para a intervenção estatal; precisava-se, antes,
de um elemento que distinguisse o que poderia gerar a temida degenerescência moral. Por essa
razão, festividades locais e lugares de diversão atraiam o olhar da vigilância, que tentava impor
seu padrão de disciplina e ordem.

Nesses lugares, um grande foco da preocupação das autoridades era a vadiagem. Como
indicam Boni e Karvat, o discurso alardeava o problema dos desocupados que vagavam pelas
ruas. Por certo, o que chama atenção é que no caso curitibano é que a ênfase no problema da
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vadiagem não implicou em uma maior atuação policial222. Ao contrário, o ano em que mais se
tiveram prisões para esta rubrica, ou seja, em 1908, não houve qualquer indicação da
contravenção nos comentários das autoridades (BONI, 1998, p. 80). Ou seja, o caráter de todo
alarde envolta da figura do vadio de modo algum representava uma relação real com a
ocorrência da contravenção. Possivelmente, sua representação fosse mais perigosa pela afronta
a toda sociedade liberal que se pautava no trabalho. Por isso a ênfase em instituições como o
Hospício Nossa Senhora da Luz, como um lugar que separasse a parcela da população a qual o
projeto de civilização moderna não incluía.

As maiores porcentagens de prisões, em verdade, serão feitas nas rubricas de


embriaguez e desordem. Como já dito, essas contravenções se limitavam a serem punida com
detenções de um a dois dias, raramente com qualquer processo indo adiante. Os dois tipos de
contravenção se misturavam entre os registros, haja vista que os desordeiros no mais das vezes
podiam estar embriagados. Mais uma vez, as descrições destes comportamentos configuram
como as principais causas da criminalidade (Ibid, p. 96-106).

Em suma, essa inexistência de uma lei especial que punisse as contravenções de modo 413
mais satisfatório abria espaço para a violência policial. Nos relatórios, falava-se da falta de
preparo dos policiais. Na mídia vários relatos de prisões arbitrárias eram publicados nas sessões
“a pedidos” (Ibid, p. 137-138). Apesar disso, é importante destacar as limitações que a polícia
encarava nos primeiros anos da republica, nas quais a própria execução do cotidiano policial
era precária. Além disso, como bem explica Gruner,

imprescindível ao processo de institucionalização da violência e sua incorporação à


máquina estatal, a polícia se constituiu como organização recrutando, para suas fileiras
indivíduos originários dos grupos postos à margem, porque considerados
potencialmente perigosos. Ou seja, o projeto civilizacional posto em curso pelas elites
setecentistas e oitocentistas se apoiou, em um aspecto fundamental – a manutenção da
segurança e da ordem –, justamente naqueles indivíduos que se pretendia civilizar
(GRUNER, 2012, p. 140).

222
Apesar da indicação de Bretas de que a preocupação das elites talvez aumentasse o número de prisões, e não
o contrário, ou seja, a de que a ocorrência maior de crimes gerava um temor maior nas elites que influenciavam a
polícia.
ISSN: 2525-7501
Ou seja, a violência que perpassava as relações dos indivíduos no período e no recorte
em questão era partilhada pela mesma classe. Nos mesmo lugares em que se impunha um
modelo de comportamento (nas classes mais despossuídas), eram recrutados os operadores
destas mesmas violências. Apesar disso, o autor toma cuidado para estabelece que a violência
e a brutalidade policial não são algo inerente a sua instituição, mas de uma rede mais complexa
de relações que imprimiam ao seu cotidiano estas práticas (Ibid, p. 141-142).

CONCLUSÃO

O contexto da criminalidade em Curitiba tem suas especificidades, por óbvio. No


entanto, o paralelismo é possível com o plano nacional. A Sociedade do Trabalho, que Karvat
se dedica a estudar em torno da contradição que representava a vadiagem nessa ordem do
discurso, é um exemplo disso. Por óbvio, o ideário da sociedade moderna e civilizada fazia
parte dos diferentes contextos os quais tivemos contato na bibliografia. Ademais, este ponto
revelava um aspecto fulcro de toda organização que tentava se impor na república: a ordem
pelo trabalho. Se o elemento que ingressava o indivíduo na cidadania era a dedicação ao labor, 414
os dizeres acerca dos outros de fato serviam como a inversão de todo modelo, restando como
anomalias a serem extirpadas em prol do progresso.

Além disso, em Curitiba nos deparamos com uma polícia mal estruturada, sem a
preparação de seus policiais ou uma profissionalização devida, ao menos no recorte escolhido.
Assim, as relações desta com a criminalidade despertam a hipótese de que de modo algum a
intervenção do braço armado do Estado era feito pela reação à violência, mas no mais das vezes
ao que era propenso a ser violento. Os crimes sem vítima, ou seja, as contravenções, tinham
muito mais ênfase nos discursos da mídia e dos chefes de polícia do que crimes mais graves,
estes encobertos pela noção do povo ordeiro de Curitiba. A atuação desta, inspirado no jargão
médico, seria uma profilaxia contra a degenerescência moral e do corpo, prevenindo suas causas
e vigilando a cidade. Esse aspecto se encontra com o próprio papel da instituição. Como bem
salienta Gruner, “parte intrínseca do processo de modernização urbana, ela (a polícia) passa a
ser pensada e apresentada como a instituição por excelência, capacitada e responsável para
regulamentar e organizar a vida cotidiana, articulando as funções social, jurídica e repressiva”
(GRUNER, 2012, p. 118).
ISSN: 2525-7501
Por fim, as relações de violência aparentam, neste estágio inicial de nossas reflexões,
como um fenômeno complexo que perpassa todo o projeto da sociedade, este provindo das
classes mais altas, e uma população que não pode tampouco ser vista como inerte neste
processo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONI, Maria Ignês Mancini de. O espetáculo visto do alto: vigilância e punição em Curitiba
(1890-1920). Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998.

BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na cidade: O exercício cotidiano da autoridade policial no Rio
de Janeiro: 1907-1930. Rio de Janeiro: Ed. Rocco. 1997.

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: O cotidiano dos trabalhadores no Rio de


Janeiros da belle époque. 3ª Ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.

FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1889-1924). São Paulo:
Ed. Brasiliense, 1984.

GRUNER, Clóvis. Paixões torpes, ambições sórdidas: transgressão, controle social, cultura e
415
sensibilidade moderna em curitiba, fins do século XIX e início do XX. 2012. 327 f. Tese
(Doutorado em História) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba. 2012, pp. 118-159.

GRUNER, Clóvis. Um nome, muitas falas: Pamphilo d’Assumpção e os discursos jurídicos


na Curitiba da Belle Époque. Revista de História Regional. UEPG, Vol. 14, n. 1, 2009 – ISNN
14140055. Disponível em:
http://www.revistas2.uepg.br/index.php/rhr/article/view/2283/1770.

KARVAT, Erivan Cassiano. Discursos e prática de controle: falas e olhares sobre a


mendicidade e a vadiagem (Curitiba: 1890-1933). 1996. 167 f. Dissertação (Mestrado em
História) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1996.

VELHO, Gilberto. O estudo do comportamento desviante: a contribuição da antropologia


social. In: VELHO, G. Desvio e Divergência: uma crítica da patologia social. 7ª Ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1999, pp. 11-28.
ISSN: 2525-7501
EDUCAÇÃO CLANDESTINA: MEMÓRIAS DE EXPERIÊNCIAS COMUNISTAS
NA ANTIGA UNIÃO SOVIÉTICA (1955-1974)*223

Amanda Assis de Oliveira**224

RESUMO

Trata-se de um estudo que busca analisar registros de práticas educativas de comunistas


enviados à URSS. Existe ampla documentação sobre o tema, embora pouca produção
acadêmica. É um tema a ser explorado e que está em intersecção entre a História da Educação
e a Nova História Política. Esse trabalho vincula-se ao projeto “Educação clandestina e traição:
uma história da educação dos comunistas no Brasil da Guerra Fria” (PPGEdu UNISC), no qual
participo como bolsista Probic Fapergs. O objetivo desse ensaio é analisar como foram
registradas as experiências educativas de comunistas enviados à URSS. Teoricamente, os
conceitos utilizados para o desenvolvimento da pesquisa são os de Educação, Clandestinidade
e Cultura Política Comunista. A metodologia aplicada se pauta na análise de memórias e/ou
literaturas de viagem de comunistas estrangeiros na URSS. A partir dessa análise pode-se
mapear as práticas educativas desses sujeitos políticos. O conjunto de fontes dessa pesquisa é
composto por três livros de caráter autobiográfico e escritos por militantes que vivenciaram
experiências de educação na antiga União Soviética: “Memórias de um Stalinista”, “Lágrimas
416
na chuva” e “União Soviética ou A U.R.S.S. do outro lado do espelho”. Os registros
apresentados nessas fontes abrangem o período compreendido entre 1955-1974. As duas
primeiras obras são relatos de comunistas brasileiros e, a terceira, diz respeito a registros de
comunistas franceses. A pesquisa ainda está em estágio inicial, porém pode-se perceber que os
relatos possuíam uma variedade de temas: salário, emprego, educação, saúde, moradia e o
cotidiano na URSS. Em seu conjunto elas permitem perceber algumas práticas, formas e
funções de uma educação clandestina relacionada às escolas preparatórias de quadros que,
dentre outros objetivos, visava uma instrumentalização teórica e prática em prol de uma
revolução.

Palavras-chave: Educação Comunista; História da Educação não formal; Clandestinidade.

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria, sob
orientação do prof. Éder da Silva Silveira.
** Graduanda em História pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) com bolsa PROBIC FAPERGS no
projeto Educação clandestina e traição: uma história da educação dos comunistas no Brasil da Guerra Fria,
coordenado pelo prof. Éder da Silva Silveira. E-mail: amandaassis1903@gmail.com
.
ISSN: 2525-7501

INTRODUÇÃO

No campo da História da Educação, pouco foi produzido sobre práticas educativas não
formais de comunistas na clandestinidade. Entretanto, existe uma variedade de fontes ainda a
ser mapeada que incluem livros de memória e/ou caráter autobiográfico, inquéritos policiais
militares e jornais vinculados aos partidos comunistas.

Participo como bolsista Probic Fapergs do projeto “Educação clandestina e traição: uma
história da educação dos comunistas no Brasil da Guerra Fria” (PPGEdu UNISC), que tenta
compreender as formas, mecanismos e funções de práticas não formais de educação de
comunistas brasileiros, principalmente enquanto estes encontravam-se na clandestinidade.

O objetivo desse trabalho é analisar como foram registradas as experiências educativas


de comunistas enviados à URSS durante a Guerra Fria, a partir de um exercício de revisão
bibliográfica e levantamento de fontes de caráter autobiográfico.

Durante a Guerra Fria, houve um confronto ideológico entre os blocos socialista e 417
comunista. No Brasil, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) atuou na ilegalidade por quase
todo o conflito. Como forma de resistência, redes de educação clandestina foram importantes
para viver os períodos de repressão vividos no Brasil e para garantir a sobrevivência de partidos
colocados na ilegalidade. Nesse sentido, o PCB ministrou diferentes cursos, alguns dos quais
também serviram para o ingresso de militantes em escolas preparatórias de quadros na URSS.
Muitos comunistas escreveram suas experiências em livros de memórias relatando as viagens
e atividades desenvolvidas em solo soviético.

A variedade de temáticas tratadas nos relatos de viagens é extremamente ampla. Os


escritores descrevem os itinerários de suas viagens, a vida do povo soviético e
informam sobre o regime implantado. Fala-se, portanto, de uma modalidade de
literatura regida por um código próprio de escrita, na qual o autor opera a
reorganização de grande parte das lembranças da sua viagem (SOTANA, 2006, p. 19)

O conjunto de fontes utilizadas nessa pesquisa constitui-se de três livros de caráter


autobiográfico escritos por militantes e/ou ex-militantes que vivenciaram experiências de
educação na antiga União Soviética: “Memórias de um Stalinista”, de Hércules Corrêa,
“Lágrimas na chuva”, de Sérgio Faraco e “União Soviética ou A U.R.S.S. do outro lado do
ISSN: 2525-7501
espelho”, de Nina e Jean Kéhayan. As duas primeiras obras são relatos de comunistas
brasileiros nas escolas preparatórias de quadros da URSS e, a terceira, diz respeito a registros
de comunistas franceses sobre o cotidiano a as peripécias da propaganda comunista.

O método empregado nessa pesquisa é de cunho qualitativo e bibliográfico. Buscam-se


nas obras supracitadas categorias que levem a compreender as formas, os objetivos e as
narrativas de experiências com as práticas educativas comunistas na URSS. Para compreender
como essas narrativas foram constituídas, “deve-se salientar que o livro de memória é
produzido somente após o autor ter efetuado um balanço do passado por ele narrado. Uma
reorganização do passado, de acordo com a vivência do autor, é operada.” (SOTANA, 2006, p.
24) Além disso, através do método de análise de conteúdo foram feitos fichamentos das fontes
e divididos em categorias sobre as formas, os objetivos e as práticas educativas de comunista
na URSS.

Esse texto é divido em dois momentos: o primeiro discute os conceitos de educação


não formal e cultura política comunista e suas relações com a educação comunista em períodos
de clandestinidade. Já o segundo compreende a análise das práticas educativas de comunistas 418
na URSS, encontradas nas fontes analisadas.

Capítulo I -– Relações entre Educação não formal e cultura política comunista

Sobre educação, não podemos dizer ao certo o que é, afinal de contas, cada grupo social
irá à ressignificar. Além disso, intelectuais de diferentes períodos irão elaborar conceitos sobre
o assunto. Lembramos que todos esses escritos são frutos do seu tempo e do meio social em
que estavam inseridos. Então, se não há unanimidade sobre o que é educação, iremos vê-la
como uma prática social que atua em duas direções “1. No desenvolvimento de suas forças
produtivas 2. No desenvolvimento de seus valores culturais” (BRANDÃO, 2002, p.9).

Dessa forma, é equivocado afirmar que a Educação restringe-se apenas aos âmbitos
escolares, onde há profissionais formados para essa função e métodos específicos de avaliação.
Na realidade, essa educação formal está relegada aos encargos do Estado que, por sua vez,
presta serviços as classes dominantes. As instituições são porta vozes de uma doutrina
ISSN: 2525-7501
pedagógica e, por isso, quando as mesmas se dizem apartidárias, estão de uma forma ou de
outra tomando partido. Ou seja, a educação não é neutra e é política por natureza.

Entende-se que o objetivo da educação é, acima de tudo, um modo de incentivar o


desenvolvimento do educando, sua formação crítica e emancipadora. A práxis “implica a ação
e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (Freire, 1988, p.67).

Segundo Gohn (2006) existem três formas de educação: educação formal, educação
informal e educação não formal. A educação formal está relegada aos encargos do Estado e
possui conteúdos previamente demarcados. A educação informal é feita pelo sujeito em
momentos de socialização com a família, no bairro, com os amigos, etc. Já a educação não
formal é aquela que se aprende através de processos que visam o compartilhamento de
experiências e ações de cunho coletivo, a partir de certas intencionalidades.

A educação não-formal designa um processo com várias dimensões tais como: a


aprendizagem política dos direitos dos indivíduos enquanto cidadãos; a capacitação
dos indivíduos para o trabalho, por meio da aprendizagem de habilidades e/ou

419
desenvolvimento de potencialidades; a aprendizagem e exercício de práticas que
capacitam os indivíduos a se organizarem com objetivos comunitários, voltados para
a solução de problemas coletivos cotidianos (...). (GOHN, 2006, p. 28)

A educação comunista analisada nesse trabalho é um exemplo de educação não formal.


A própria clandestinidade atua como agente educativo não formal. A Educação na
clandestinidade é um processo em que o militante comunista forma-se na mais dura realidade,
capacitando-se para os futuros trabalhos em prol do ideal revolucionário.

Guardar rigorosamente os segredos do Partido e manter sempre vigilância e firmeza


comunista no trabalho clandestino, na atividade legal de massas e diante de qualquer
inimigo de classe do proletariado, dando, se necessário, a própria vida- o ódio de
classe ao inimigo e a fidelidade ilimitada ao Partido são imprescindíveis em todos os
domínios e circunstâncias. (ARRUDA, 2000, p. 17)

A Educação na clandestina acontece em variados aspectos: através da militância política


na ilegalidade, nas experiências cotidianas e através do próprio imaginário comunista. Existe
uma estreita ligação entre a educação não formal comunista e a cultura política comunista.
Entende-se essa segunda como um

conjunto de valores, tradições, práticas, e representações políticas partilhadas por


determinado grupo humano, expressando identidade coletiva e fornecendo leituras
ISSN: 2525-7501
comuns do passado, assim como inspiração para projetos políticos direcionados ao
futuro. (MOTTA, 2013, p.18)

Esse conceito é importante para a pesquisa, pois explica que a cultura política transpassa
os vínculos partidários, oferecendo uma maior explicação sobre os motivos de adesão ao
comunismo e sua intransigível defesa por parte dos militantes. A educação comunista é
considerada um importante veículo para a construção de uma nova sociedade. Essas práticas
educativas expressam uma identidade coletiva e servem de inspiração para novos projetos
políticos.

Capítulo II – Experiências de comunistas na antiga União Soviética

Em relação às viagens de comunistas brasileiros à “mãe-pátria do comunismo”, a leitura


da obra de Edvaldo Correa Sotana (2006) é fundamental. Ele divide essas experiências em duas
partes: a primeira engloba relatos de viagens a uma URSS recém-saída de uma revolução (1920-
1930); a segunda analisa relatos de viagens à URSS durante a Guerra Fria, entre 1945 a 1964,
fase em que os comunistas brasileiros encontram-se na clandestinidade (Estado Novo e início 420
da Ditadura Militar). O autor ainda aborda como foram produzidos esses relatos e quais suas
finalidades. Hércules Corrêa é um dos relatos mais relevantes para entender como funcionavam
as escolas de preparação de quadros na URSS. O autor se vinculou ao partido ainda jovem e
militou até o ano de 1994, escrevendo logo após sua desvinculação a obra autobiográfica
“Memórias de stalinista”.

Para muitos, viajar a União Soviética não era apenas a realização de uma tarefa
partidária, mas a realização de um sonho ou um prêmio oferecido pela dedicação à
militância comunista. (...) Divulgar as realizações do socialismo soviético também era
uma parte integrante da prática de viajar à União Soviética. (SOTANA, 2006, p. 23)

Corrêa relata que participou do chamado “Curso Stálin”, curso clandestino que
aconteceu dentro dos aparelhos do partido comunista brasileiro. Com duração de 60 dias, era
uma espécie de seleção para a ida à URSS. Ele conseguiu se sobrepujar a figuras como Jorge
Amado, intelectual do PCB. O partido estava seguindo novas diretrizes, em um processo de
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obreirização225 do mesmo. A viagem a URSS aconteceu em 1955, deveria durar apenas 60 dias,
entretanto a mesma durou 2 anos, para desalento do autor. Sobre os conteúdos estudados nas
escolas preparatórias de quadros na URSS, Corrêa relata:

Não havendo remédio, o negócio era estudar. Dessa vez, as matérias seriam Filosofia,
Economia Política, Teoria e Tática do Movimento Comunista Mundial, História do
Partido Comunista Russo, História do Movimento Sindical Internacional, Economia
Socialista, Geografia Econômica e Política do Mundo, História dos Povos da URSS,
História da Cultura e Russo. Aliás, todas as aulas eram dadas em russo, com o tradutor
retransmitindo-as em espanhol. Só seis meses mais tarde, foram arrumar um tradutor
espanhol que sabia russo. Com efeito, para mim e muitos outros, as tais aulas se
constituíram num verdadeiro martírio. Eu fazia muitas anotações em classe, mas o
que eu escrevia geralmente não tinha muita ligação com o que era ensinado nas aulas.
Eram divagações, muitas e muitas dúvidas. Entrei em desespero e pedi para voltar ao
Brasil. Negativo, me responderam, até porque na turma havia portuários, ferroviários,
mineiros e tecelões, como eu, com idênticas dificuldades. (CORRÊA, 1994, p.17)

As experiências educativas na URSS são narradas de diversas maneiras, entretanto um


número considerável de relatos autobiográficos está ligado as escolas do Comintem

As escolas do Comitern originaram-se em Lenine quando, desde o início do século


XX, passou a defender a ideia de que o Partido Comunista da União Soviética deveria
formar “revolucionários profissionais”. Na publicação de “Que fazer”, em 1902,
destacou que a tomada do poder através de uma Revolução não se daria apenas através
421
da consequência de um processo econômico. Ela dependeria fortemente da disposição
e atuação de um Partido Revolucionário, solidamente organizado e dirigido por
revolucionários profissionais. (SILVEIRA, 2013, p. 136)

Sérgio Faraco é um ex- militante comunista que foi a uma dessas escolas do Comintem
no ano de 1964. A turma que foi com Faraco é surpreendida com o golpe civil-militar e a volta
ao Brasil torna-se quase impossível: “O curso era de um semestre, terminara no meio do ano, e
a direção do instituto o prorrogou por mais seis meses. Seria uma repetição do que já foi
ministrado, isto é, o ABC do nada.” (FARACO, 2006, p. 75). Faraco iludiu-se com toda sua
experiência na URSS, relatando o governo comunista como extremamente repressor e que não
havia conseguido curar as mazelas da URSS. Na volta ao Brasil torna-se escritor, sendo seu
livro “Lágrimas na chuva: uma aventura na URSS” um relato um tanto romanceado sobre suas
experiências na URSS.

225
Prerrogativa que sustentava que os Partidos Comunistas estavam dominados por uma ideologia pequeno-
burguesa e que faltavam autênticos operários dentro destes. Os intelectuais do Partido serão negligenciados e
perderão cargos hierárquicos.
ISSN: 2525-7501
Outra experiência na URSS é feita por Nina e Jean Kéhayan, dois comunistas franceses
que foram trabalhar na propaganda soviética entre 1972 a 1974. Talvez essa vinculação aos
meios de comunicação os fez desiludir da visão romanceada que tinham em relação ao país.
Seus relatos perpassam por um âmbito de uma educação não formal e uma cultura política
comunista, abordando temas como propaganda soviética, moradia, educação infantil e o papel
da mulher na sociedade soviética. O ressentimento com o lugar é uma grande marca da
autobiografia:

Desde há longos anos, a URSS difunde na maior parte dos países ocidentais os seus
livros, os seus filmes, os seus espetáculos prestigiosos. Qualquer sombra ou reticência
depressa são apagadas por uma demonstração dos Coros do Exercito Vermelho, dos
bailados do Bolchoi ou dos Circo de Moscovo. A gloriosa construção do segundo
transiberiano da lugar a longas reportagens conformando-nos na ideia de que, se a
técnica soviética progride a este ritmo, o resto da vida do país segue fatalmente o
mesmo rumo e que as imperfeições são apenas passageiras. (KÉHAYAN ,1978, p.
19)

Apesar dessa pesquisa ainda estar em desenvolvimento, percebe-se que o comunismo


incentivou inúmeros militantes a deixarem suas famílias e pátrias- afinal de contas o
internacionalismo é um dos principais expoentes da cultura política comunista- para 422
viverem/estudarem na URSS. Embora muitos tenham se desiludido com o que viram, seus
relatos são importantes meios para tentar compreender o imaginário comunista e as práticas
educativas na URSS.

CONCLUSÃO
A utopia comunista, verdadeiramente grandiosa incentivou homens e mulheres,
intelectuais e gente simples e de origem humilde, a darem por um ideal tão elevado,
a melhor parte de suas vidas, a conhecerem prisões, exílios e torturas e, não poucos,
momentos antes de serem sumariamente executados por pelotões de fuzilamento, a
gritarem com entusiasmo, vivas à URSS e a Stálin. (FERREIRA, 2002, p. 16)

Não há dúvida que a cultura política comunista incentivou milhares de comunistas a


deixarem suas terras, suas famílias, para conhecer a experiência soviética. Ferreira (2002)
analisa essa relação quase religiosa que o comunismo exercia sobre seus seguidores.

Os relatos de comunistas e suas práticas de educação não formal na URSS possuíam


uma variedade de temas: salário, emprego, educação, saúde, moradia e o cotidiano na URSS.
Em seu conjunto, as fontes analisadas, permitem perceber algumas práticas, formas e funções
ISSN: 2525-7501
de uma educação clandestina relacionada às escolas preparatórias de quadros que, dentre outros
objetivos, visava uma instrumentalização teórica e prática em prol de uma revolução.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRUDA, Diógenes. A educação revolucionária do comunista. 2. ed. São Paulo: Anita


Garibaldi, 2000.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 2002.

CORRÊA, Hércules. Memórias de um stalinista. Rio de Janeiro: Opera Nostra, 1994.

FARACO, Sergio. Lágrimas na chuva: Uma aventura na URSS. Porto Alegre: L&PM, 2002.

FERREIRA, Jorge. Prisioneiros do Mito: Cultura e imaginário político dos comunistas no


Brasil (1930-1956). Rio de Janeiro: Eduff: Mauad, 2002.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18 ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1988.

GOHN, Maria da Glória. Educação não-formal, participação da sociedade civil e estruturas


colegiadas nas escolas. Ensaio: aval.pol.públ.Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.50, p.27- 423
38, mar. 2006. Disponível em:
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40362006000100003&amp;lng=pt&amp;nrm=iso&gt;. Acesso em 26 agosto de 2016.

KÉHAYAN, N. ; KÉHAYAN, J. Dois comunistas na União Soviética ou A U.R.S.S do outro


lado do espelho. Lisboa: Publicações Europa-América, 1978.

LACERDA FILHO, Mozart. A experiência da clandestinidade política: relatos orais de ex-


militantes de esquerda durante a ditadura militar (1964-1979). 2011. Tese (doutorado em
História). Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humana e Socias-
UNESP- Campus de Franca. Franca, UNESP, 2011.

NAPOLITANO, M.; CZAJKA, R.; MOTTA, Rodrigo P. S. (orgs.). Comunistas brasileiros:


Cultura política e produção cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
ISSN: 2525-7501
SILVEIRA, Éder da Silva. Além da traição: Manoel Jover Teles e o comunismo no Brasil do
século XX. 2013. Tese (doutorado) – Universidade do Rio dos Sinos (UNISINOS), Faculdade
de História, Programa de Pós-Graduação em História. São Leopoldo, 2013.

SOTANA, Edvaldo Correa. Relatos de viagens à URSS em tempos de Guerra Fria: uma
prática de militantes comunistas brasileiros. Curitiba: Aos quatro ventos, 2006.

424
ISSN: 2525-7501
“UM ESTUDO SOBRE O REVISIONISMO HISTORIOGRÁFICO HISPÂNICO NA
REVISTA ESPECIALIZADA EM CULTURA E POLÍTICA “ESTUDIOS
AMERICANOS” (DÉCADA DE 1950)” *226

Yuria Santamaria Pismel**227

RESUMO

O trabalho a seguir visa contribuir para o crescimento das pesquisas acerca do revisionismo
historiográfico e sua relação com a Espanha do segundo período franquista (pós 1946).
Pretendemos analisar os aspectos desse revisionismo na revista de síntese e interpretação
Estudios Americanos, editada pela Escuela de Estudios Hispanoamericanos de Sevilla, entre
os anos 1948 e 1961. Realizamos uma revisão bibliográfica, tendo como objeto de estudo o
revisionismo historiográfico hispânico como instrumento de análise na historiografia. O
trabalho com as fontes dividiu-se no levantamento do conteúdo analisado pela revista,
elaboração de um quadro comparativo com os temas abordados nas seções e os respectivos
autores, arrolamento e análise das fontes. Buscamos compreender o discurso da revista ao redor
do processo de desconstrução da “leyenda negra”, que pode ser compreendida como um
conjunto de interpretações que condenam a presença espanhola no continente americano
destacando as atrocidades e as crueldades com os habitantes autóctones. A manifestação do
425
revisionismo historiográfico na revista considera a “leyenda negra” como um discurso
inventado e sem embasamento teórico ou histórico, em contraposição ao ideal da hispanidade,
que é exaltado, em busca de fortalecer os laços culturais e espirituais entre a Espanha e suas ex-
colônias americanas. Percebemos como é destacada a origem em comum que possuem
revisando aspectos históricos do passado colonial e do indígena, o que abre para a possibilidade
de realizarmos um paralelo com as pesquisas sobre alteridade de Tzvetan Todorov, no que tange
a construção da imagem do "outro" sobre a chegada dos europeus à América. A partir do estudo
do revisionismo historiográfico, foi possível compreender questões relacionadas à teoria da
História, e aos processos epistemológicos da produção do conhecimento histórico.
Palavras-chave: Revisionismo historiográfico; Hispanidade; Revista Estudios Americanos.

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Graduanda em História - Licenciatura e Bacharelado. Universidade Federal do Paraná - UFPR. Email:
yuria.spismel@gmail.com.
ISSN: 2525-7501

INTRODUÇÃO

Após ter realizado uma pesquisa de iniciação científica sobre como se estruturou o
revisionismo historiográfico hispânico na revista Estudios Americanos, editada em Sevilla de
1948 a 1961, constatamos que o projeto editorial revisionista da revista é construído com base
em dois eixos que se contrapõem: a exaltação e propagação da hispanidade, como um princípio
unificador e restituidor dos laços culturais e espirituais entre a Espanha e a América Hispânica,
por um lado, e por outro, a tentativa de desqualificação e desconstrução da "leyenda negra"/
lenda negra, um conjunto de interpretações que propagaram anteriormente na historiografia as
atrocidades desumanas cometidas pelos espanhois contra os indígenas hispanoamericanos no
período colonial.

O ideal de hispanidade, já vinha sendo pensado no decorrer do século XX por diversos


intelectuais, porém encontrou seu amadurecimento e embasamento teórico durante o segundo
período franquista (pós 1946), no qual o olhar para as relações político-diplomáticas entre a
Espanha e a América Latina ganhou visibilidade e centralidade no projeto de nação franquista,
426
aliado a noções como nacionalismo, conservadorismo e catolicismo. O olhar para a América
tem como ideologia unificadora o ideal de hispanidade, sendo muito comum, portanto,
empregar o termo Hispanoamérica para se referir a essa unidade cultural constituída entre
Espanha e América Hispânica fruto de um passado e uma "origem em comum". Nesse discurso
da hispanidade exposto na revista, foi possível perceber na desconstrução da lenda negra uma
preocupação em criar um novo mito, e com isto uma nova visão acerca do passado colonial. O
indígena e os aspectos de sua cultura e arte são discutidos na revista, porém fica clara a
necessidade de estabelecer limites para o papel do seu modo de vida na hispanidade, sendo que
no que tange aos aspectos organizacionais, político-civilizatórios e cultural-religiosos,
predominam as contribuições espanholas. Fica evidente que noções como ordem, progresso e
civilização são atribuídos aos espanhois, como uma contribuição para o desenvolvimento das
sociedades autóctones. Percebe-se uma predominância da cultura hispânica, em uma visão
"hispanocentrada" sobre o passado colonial e o mito da hispanidade, no qual os laços destacados
apontam para uma origem em comum. Os aspectos que estruturam a hispanidade tratam-se dos
ISSN: 2525-7501
modelos políticos e organizacionais de sociedade provenientes de uma tradição europeia que
fundamentam a relação entre Espanha e América.

Levando em consideração a contraposição entre a lenda negra e a hispanidade que


definem o revisionismo historiográfico da revista Estudios Americanos, pretendemos discutir
no presente artigo como a questão da alteridade aparece nessa discussão, tendo em vista a noção
do outro construída pelos hispanistas a respeito do indígena/ passado colonial. Com isso,
pretendemos dar continuidade à pesquisa de iniciação científica realizada anteriormente,
propondo uma nova abordagem do revisionismo ao considerar agora, a discussão da alteridade.

Inicialmente, analisamos brevemente o contexto intelectual espanhol das décadas de


1940-1950, enfatizando o surgimento da revista Estudios Americanos, acompanhado de uma
breve apresentação da materialidade da mesma, bem como dos métodos de trabalho
empregados na pesquisa. Realizamos uma discussão teórica sobre o revisionismo e seus usos
na escrita da história, atrelada a uma discussão das relações entre memória e história, para
compreender mais a fundo as dimensões e as particularidades do revisionismo historiográfico
expresso na revista. Num terceiro momento, buscamos esclarecer os vínculos entre a Espanha 427
e a América Hispânica, atrelados ao surgimento de um revisionismo historiográfico no campo
intelectual hispânico. Por fim, nos atemos à análise da fonte, explicitando como é construído o
revisionismo historiográfico hispânico da Estudios Americanos, pensando na contraposição
entre a hispanidade e a lenda negra, e como podemos inserir nessa discussão a questão da
alteridade, tendo como base para esse quesito a abordagem de Tzvetan Todorov.

Capítulo I - A produção intelectual espanhola das décadas de 1940-1950 e a revista


Estudios Americanos/ Materiais e métodos

O surgimento da revista Estudios Americanos, esteve inserido em um processo de


florescimento de revistas culturais e políticas no segundo período franquista, que se inicia no
pós Segunda Guerra Mundial de 1946, no qual ocorre uma mudança nas políticas norteadoras
do Estado. Reforçando essa ideia, Pedro Carlos González Cuevas afirma que já a partir de 1942,
ocorre gradativamente uma mudança de rumos ideológicos de Franco para se distanciar dos
totalitarismos fascistas, que começavam a se mostrar enfraquecidos (CUEVAS, 2005: 183).
ISSN: 2525-7501
Paralelamente, o florescimento cultural de revistas hispânicas característico desse período
demonstra um aumento do olhar em direção à Hispanoamérica, como uma tentativa espanhola
de legitimar seu papel diplomático internacional através do fortalecimento de antigos laços
existentes com as ex-colônias na América.

Nesse contexto, foi fundada em 1942 a Escuela de Estudios Hispano-Americanos, em


Sevilla, pelo catedrático Vicente Rodríguez Casado, ligada ao Consejo Superior de
Investigaciones Científicas e ao Instituto de Cultura Hispânica. Sobre a sua fundação, o manual
em memória da instituição, publicado em 1994, afirma que:

En la creación de la EEHA no sólo influyó el interés del franquismo en formar


historiadores e investigadores de la obra civilizadora de España en América, sino
también por el deseo de fomentar el contacto científico entre las juventudes de los
países iberoamericanos. (NAVARRO GARCÍA: 1994: 9)

A instituição veio a ser um dos instrumentos de elaboração e difusão do


pensamento intelectual, político e cultural do Hispanismo, através de publicações como o
Anuário de Estudios Americanos, criado em 1944, a revista Estudios Americanos, criada em
1948 e os suplementos de Historiografia y Bibliografia, criado em 1954. Sobre os vínculos
428
intelectuais e a repercussão da revista de síntese e interpretação Estudios Americanos, Marcos
Gonçalves (GONÇALVES, 2014) ressalta que

O diferencial da EA é que ela foi periférica em relação ao investimento, importância


e visibilidade atribuídos às congêneres publicadas pelo Instituto de Cultura Hispânica.
Porém, [...] se pode situá-la como mais um produto que viria reforçar a construção de
determinada visão e realidade históricas favoráveis ao franquismo. Sua importância
reside, sobretudo, pelo fato de emergir na cidade andaluz de Sevilla, local onde
funcionava o Arquivo Geral das Índias, e também porque algumas das suas lideranças
exerceram papel de destaque na fase em que o franquismo esforçava-se em operar
uma metamorfose nas suas diretrizes políticas, ideológicas e jurídicas. (Ibid.: 202)

Dirigida pelo catedrático Octavio Gil Munilla, além de circular em território espanhol,
também foi veiculada em países da América, principalmente nas ex-colônias espanholas. Tal
prerrogativa reforça a presença de uma rede intelectual, cultural e política, que veio se
fortalecendo predominantemente na década de 1950, coincidindo em linhas gerais com o
período de duração da publicação, de 1948 a 1961. A tentativa de reforçar os laços da
hispanidade se fez presente no projeto político da revista, considerando o vínculo dos
intelectuais que compunham o corpo editorial da mesma com a dimensão do projeto franquista
ISSN: 2525-7501
pós 1946, associado a valores conservadores, tradicionais e católicos. Portanto, embora a revista
não cite diretamente o Franquismo, é evidente a sua aproximação com elementos-chave do
regime. Em seu projeto de propagação do ideal da hispanidade, percebemos a busca em recorrer
a uma reinterpretação do passado colonial hispanoamericano que enfatizasse a desconstrução
da "leyenda negra". Nesse sentido é que compreendemos a presença de um revisionismo
historiográfico no projeto político-ideológico da publicação.

No atual artigo, assim como na pesquisa de iniciação científica anteriormente


mencionada, foram trabalhados os exemplares do número 32 (maio de 1954) ao número 111
(novembro/ dezembro de 1961), edições disponíveis para consulta na Biblioteca de Ciências
Humanas da Universidade Federal do Paraná. Tratando dos aspectos metodológicos,
inicialmente realizamos um levantamento e revisão bibliográfica tendo como foco o
revisionismo historiográfico enquanto ferramenta de análise para a historiografia. Relacionando
a teoria e a prática, realizamos o trabalho com a documentação, a partir de um breve
levantamento sobre o histórico de revistas que trabalhavam com o tema do revisionismo
historiográfico e a cultura hispanoamericana. O trabalho com as fontes foi dividido em três
fases: levantamento do conteúdo trabalhado pela revista, a partir da elaboração de um quadro
429
comparativo contendo os temas abordados nas seções; arrolamento, selecionando o material
que seria utilizado; análise, pretendendo compreender a manifestação do revisionismo
historiográfico no projeto editorial da revista, bem como do ideal de hispanidade e da “leyenda
negra”. Aprofundamos a análise nesses dois elementos ao perceber seu aspecto estruturante no
que tange ao revisionismo historiográfico presente na publicação. Porém, para compreender
essa articulação, propomos a seguir uma discussão teórica sobre a relação entre o revisionismo
e as políticas da história e memória.

Capítulo II - Memória, História e Revisionismo

Entendemos que o revisionismo historiográfico como procedimento metodológico de


estudo, relaciona-se diretamente à ciência histórica, se considerarmos que o historiador busca
reconstruir e reinterpretar o passado através da pesquisa historiográfica. Ao trabalho de
(re)escrita da história são agregadas, na maioria dos casos de trabalhos revisionistas, tentativas
ISSN: 2525-7501
de reinterpretação do passado visando legitimar ideologias e valores políticos, e instaurar uma
“política da história”. Fernando Catroga (CATROGA, 2001: 46), ao analisar a memória como
uma “construção selectiva” por tratar-se de uma "re-presentificação" devido à sua
impossibilidade de ser um mero "registro", aponta para a necessidade de compreender a relação
entre memória e a escrita da história, ambas associadas à subjetividade. Podemos acrescentar
também o revisionismo historiográfico como intrínseco a essa questão, por tratar-se de uma
forma de instaurar a disputa pelo passado, em que as dimensões objetivas e subjetivas se
entrelaçam. A subjetividade da escrita da história está associada às relações de poder e
identidade, e à necessidade de através de um discurso, legitimar o presente. Isso pode auxiliar
a compreender as dimensões subjetivas da busca do segundo período franquista em
reestabelecer os laços espirituais e culturais hispanoamericanos. Memória e historiografia
mesclam-se, como é colocado por Catroga, ao descrever simultaneamente a “história “filha” da
memória” e a “memória “filha” da História”. (Ibid.: 56). As inquietações do historiador no
presente estimulam a escrita da história,

produtora (e legitimadora) de memórias e tradições, chegando mesmo a conferir


credibilidade cientista a novos mitos de (re)fundação e de identificação dos grupos
430
sociais, ou da própria Nação (reinvenção e sacralização das origens, dos momentos de
grandeza consubstanciados em“heróis” individuais e colectivos, etc.). (Ibid.: 58)

Podemos, portanto, compreender o revisionismo historiográfico como um recurso


metodológico utilizado para problematizar a historiografia tida como "oficial" e consolidada,
reconstruindo o passado no presente, e legitimando interesses ideológicos e políticos. Nesse
sentido, Vidal-Naquet destaca que as origens do termo "revisionismo" remetem para os
"primeiros revisionistas modernos na França", por serem "adeptos da 'revisão' do processo de
Alfred Dreyfus (1894), mas a palavra foi rapidamente invertida por seus adversários” (VIDAL-
NAQUET, 1988: 117). Fica claro a partir dessa reflexão as diferentes utilidades que a prática
metodológica revisionista pode adquirir de acordo com os interesses que movem os agentes que
o empregam. Diversas correntes interpretativas na academia fizeram uso do revisionismo, que
adquiriu múltiplas facetas e perspectivas, diretamente associadas aos interesses políticos no
trabalho de escrita da história. Atentamos que a particularidade do revisionismo no fazer
histórico consiste na possibilidade de realizar uma reconsideração do passado, sendo esta uma
operação científica e metodológica imprescindível para o desenvolvimento das ciências sociais.
ISSN: 2525-7501
Hector Gabriel Legorreta Cantera (CANTERA: 2006), embora ressalte essa questão, aponta
que o revisionismo historiográfico pode ser usado de duas maneiras: academicamente, no qual
a reinterpretação do passado ocorre a partir do encontro de novos dados documentais; ou
“peyorativamente”, caracterizado pela manipulação da história para fins políticos, deixando em
segundo plano o rigor metodológico que uma pesquisa científica exige. Por outro lado, Catroga
aponta para a necessidade de relativizar essa dicotomia entre uma produção científica e não-
científica, a fim de compreender as subjetividades intrínsecas à pesquisa, fruto de interesses
políticos, sociais, etc., que movem a pesquisa histórica. Por isso torna-se necessário analisar as
peculiaridades e particularidades de cada revisionismo historiográfico, entendendo o seu
processo de formação e desenvolvimento, no que tange aos aspectos objetivos e subjetivos de
construção do conhecimento histórico.
Destacamos em particular um dos temas recentes mais debatidos nas últimas décadas
pelo revisionismo historiográfico, a negação do genocídio judeu, através de interpretações de
agentes associados ao nazismo. A questão é amplamente discutida e criticada por Vidal-Naquet
(VIDAL-NAQUET: 1988) que considera que tais “revisionistas” não se utilizam de
metodologias científicas de pesquisa, e nem sequer têm um compromisso com a “verdade”, pois 431
negam uma ampla gama de documentação apoiando-se em documentos parciais, movidos por
interesses políticos de legitimar uma “mentira histórica” e negar fatos históricos comprovados
pela maioria da documentação. Esclarecemos que ao mencionar a "verdade" o autor se refere
ao compromisso em compreender os fatos históricos, prerrogativa que se opõe ao trabalho dos
“revisionistas”. Ao negar tal documentação já citada, buscam outros documentos que possam
legitimar sua tese, criando uma “falsa verdade” (Ibid.: 124-125): a inexistência dos campos de
concentração e do genocídio judeu. E Vidal-Naquet reforça que “Negar a história, porém, não
é revisá-la” (Ibid: 171). Trazemos brevemente essa discussão desse autor com o intuito de
compreender alguns preceitos norteadores do revisionismo associado a interesses de
legitimação política e ideológica. Porém, mencionamos brevemente os trabalhos Luiz Felipe
Viel Moreira (MOREIRA, 2008: 1-15), que no âmbito do revisionismo na América Latina,
ressalta o caso da Guerra do Paraguai, no qual intelectuais brasileiros buscaram criar uma
“contra-história” do conflito, sendo este um caso manifesto de revisionismo historiográfico
brasileiro que se contrapõe ao revisionismo platino que realizava uma propaganda
antibrasileira. Tratando do caso do revisionismo historiográfico argentino dos anos 1940-50,
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Beired ressalta que foi uma “corrente historiográfica que se desenvolveu em oposição à
interpretação liberal da história argentina” (BEIRED, 2000: 398), valorizando o hispanismo, o
catolicismo e o nacionalismo como ideologias. Considerar tais elementos condutores do
revisionismo historiográfico argentino pode ser a ponte para compreender manifestações do
revisionismo historiográfico hispânico no pensamento intelectual latinoamericano. Explicita-se
a utilização do revisionismo como uma “atividade intelectual de intervenção política” (Ibid.),
no qual encontramos elementos ideológico-interpretativos recorrentes na produção da
intelectualidade hispânica do período, tais como a noção de hispanidade, presente na revista
Estudios Americanos. Essa proximidade do caso argentino com o revisionismo hispano-
franquista é analisada pelo argentino Carlos Rama (RAMA, 1981), que aponta que ao analisar
o revisionismo historiográfico argentino, é possível compreender os principais elementos
formadores do discurso revisionista latino-americano. Um dos elementos mais destacados
encontra-se na reinterpretação do passado colonial, questionando a existência de uma metrópole
opressora e propondo a reescrita da história através da desconstrução da denominada “leyenda
negra”, visão predominantemente hegemônica até então. O discurso dos revisionistas
argentinos representava uma manifestação do hispanismo na América Latina, associado à rede 432
intelectual revisionista espanhola, presente na revista Estudios Americanos.

Partindo dessas questões, Teresa Aguirre amplia a discussão ao defender que o


revisionismo toca em questões mais profundas e estruturais, na medida em que representa uma
crítica à modernidade, no que tange aos métodos historiográficos de pesquisa histórica e ao
confronto com teorias e ideias pré-concebidas. Aguirre estabelece quatro elementos de
comparação entre o revisionismo e a modernidade. O primeiro e o segundo elementos
contrapõem uma característica da modernidade, a “construcción de sistemas explicativos con
base en la razón”, com a “búsqueda de motivaciones subjetivas e identidades culturales como
fuente del cambio”, apontando assim que os revisionistas consideram uma subjetividade ligada
ao mundo cultural-psicológico e aos valores individuais. O terceiro elemento contrapõe a
macrotendência da modernidade, e a particularidade do revisionismo, considerando as
especificidades e relativizando a história. O quarto evoca para a distinção entre a noção de
ruptura/ revolução da modernidade, e a noção de continuidade e evolução, que costuma orientar
várias teorias revisionistas. A partir de tais elementos, é possível compreender como o
ISSN: 2525-7501
revisionismo historiográfico se manifesta ao lidar com o questionamento de “verdades”
históricas pré-concebidas. Ao contrapor tais discursos, o revisionismo historiográfico cria e
difunde novos discursos políticos e ideológicos, que representam interesses subjetivos das elites
e dos intelectuais (AGUIRRE, 2011: 40).

Capítulo III - Vínculos entre a Espanha e a América Hispânica e o surgimento de


um revisionismo historiográfico

Embora já tenhamos contextualizado algumas questões históricas que envolvem o


surgimento da revista Estudios Americanos, atentamos para os vínculos históricos entre a
Espanha e a América, considerando os aspectos envolvidos no processo de construção do
revisionismo historiográfico hispânico, iniciado principalmente no decorrer do século XIX.
Nesse período, passou a ser amplamente discutida e evidenciada pela memória histórica e pela
historiografia o passado colonial, destacando a relação conflituosa presente desde o século XVI.

433
Sobre o processo de emancipação das colônias espanholas na América durante o XIX,
Celestino Del Arenal (ARENAL, 1994) verticaliza as questões sobre a necessidade de
readaptação e reconfiguração das relações pós-independência devido à transformação nos
vínculos entre América e Espanha. Tais mudanças representam o rompimento das relações
políticas e econômicas, mas por outro lado é importante considerar a permanência de ligações
em outros âmbitos, pois

Bien es verdad que, antes de la Emancipación, con dichas iniciativas, lo que se


pretendía era en general mantener de alguna forma la unidad política, que empezaba
a verse amenazada y que, despúes de la Emancipación, perdida la posibilidad de
recuperación territorial, lo que se pretendía era en la mayor parte de los casos
salvaguardar una cierta unidad espiritual, cultural o económica que permitiese a
España recuperar um papel internacional más activo. (Ibid: 13)

A tentativa espanhola de reatar os laços era o elemento chave da sua política externa em
direção à América Hispânica, associada ao projeto político franquista já mencionado. Com a
independência, a política externa espanhola inicial sobre a América foi marcada pelo não
reconhecimento das novas repúblicas, seguida de acordos bilaterais com cada país, no decorrer
da segunda metade do século XIX. Como analisa Arenal (Ibid:15-17), o “panhispanismo” que
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se desenvolve nesse período está associado à tentativa de promover a “unión hispânica”,
fundamentada nos “movimentos reivindicativos románticos de exaltación de los valores
espirituales de la nación” (Ibid: 17).

Portanto, embora esse processo de construção do hispanismo na historiografia


espanhola possa ser visto já no século XIX, encontrou no segundo período franquista seu
momento de florescimento, por se entrelaçar com o projeto político do regime, sendo o ideal da
hispanidade o fio condutor do olhar diplomático-ideológico franquista em direção à América.
A tentativa de reestabelecer laços espirituais e culturais durante esse período fica evidente,
ainda mais se considerarmos a grande quantidade de institutos e publicações baseadas na
hispanidade que se fortalecem nesse período. A própria utilização do termo “Hispanoamérica”
ao invés de “Latinoamérica” ou “América Latina” em diversos contextos na revista Estudios
Americanos, por exemplo, aponta para a busca em enfatizar essa unidade e origem histórica em
comum. A publicação trata-se de uma revista de síntese e interpretação histórica, jurídica
e artística a respeito de temas hispanoamericanos. Através das publicações e de conferências e
congressos internacionais sediados em Sevilla, a EEHA pretendia fortalecer os laços e as redes
entre intelectuais americanos/ americanistas e espanhóis. Gradativamente, os eventos passaram
434
a ser sediados por países americanos, promovendo ainda mais os debates hispânicos na
América. Os eventos eram divulgados na revista em diversas seções, sendo publicadas notas,
artigos e comentários acerca da repercussão e das temáticas abordadas nos mesmos. A partir
desses elementos, poderemos realizar a análise interna da revista entendendo a interconexão
cultural, política e intelectual hispanoamericana.

Capítulo IV - O Revisionismo Historiográfico Hispânico: contraposição entre a


Hispanidade e a “Leyenda Negra” numa possível concepção de alteridade na revista
Estudios Americanos

No contexto de surgimento da revista, abria-se maior visibilidade para um debate que


vinha sendo construído com mais fervor nas últimas décadas, sobre a "leyenda negra". A
necessidade de desconstruir esse discurso sobre a agência espanhola negativa no passado
colonial americano fazia parte do projeto de fortalecimento de ideais nacionalistas,
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conservadores e católicos, através do ideal da hispanidade, pensamento que fica claro na análise
de Rómulo D. Carbia, de 1944, doutor em História Americana e professor titular da
Universidade de Buenos Aires e de La Plata, um dos grandes críticos da lenda negra:

[...] todo se reduce a un juicio inexorable ordinariamente aceptado sin indagar su


origen y según el cual España habria conquistado a América primero y la habría
governado despúes, durante más de três siglos, haciendo alarde de una crueldad
sangrienta y de uma opresión sin medida, cosas ambas que podrían considerarse como
únicas en la história de todo el Occidente. (CARBIA, 1944: 14)

Ao escrever em meio à efervescência desse debate político e ideológico instaurado entre


os intelectuais da hispanidade, que resultou na criação de diversas publicações, dentre elas a
Estudios Americanos, a influência de Carbia consiste em ser um dos primeiros intelectuais a
realizar uma análise pragmática e estruturada sobre a "leyenda negra", apropriando-se de
diversos conceitos históricos para desconstruí-la. Com isso, foi também um dos idealizadores
do projeto da hispanidade, elemento estruturante da revista. O autor aponta para a “leyenda
negra” como um discurso inventado e sem precedentes, desprovido de embasamento teórico ou
histórico. Ao afirmar sobre a falta de questionamento sobre as origens desse “mito”, Carbia
embasou sua análise na desconstrução da “leyenda negra” enquanto um discurso hegemônico 435
sobre a participação da Espanha na história americana carregada de atrocidades e maus tratos
contra os indígenas. A particularidade do revisionismo historiográfico aqui veiculado consiste
na tentativa de construir uma narrativa histórica que ressignifique a presença espanhola na
história do continente americano, partindo da chegada espanhola à América, e aos processos
que se seguiram. O hispanismo pode ser compreendido como parte da política externa
espanhola que espelhava o movimento de defesa do nacionalismo espanhol franquista.

A revista Estudios Americanos, embora fosse uma publicação periférica dentro desse
debate, em comparação com outras revistas, possuía em seu conselho de redação intelectuais
comprometidos com o projeto da hispanidade, associados a valores conservadores e católicos,
tais como: Vicente Rodríguez Casado, presidente; Antonio Muro Orejón, vice-presidente; José
Antonio Calderón Quijano, secretário; Octavio Gil Munilla, redator chefe; Patricio Peñalver
Simó, secretário de redação; e diversos redatores e contribuintes, tais como Mariano Aguilar
Navarro, Ana Maria Gómez Rubio e Francisco Morales Padrón. Tratando-se de uma publicação
mensal na maior parte do período, com alguma frequência eram publicadas bimestral ou
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trimestralmente (duas ou três edições no mesmo mês). São cinco seções principais: artigos,
notas, comentários, informação cultural, e crônica. A crônica é dividida em “Notícias”,
publicando um ou dois textos, e “Ideas Ajenas”, que costuma publicar trechos e informações
de outras revistas, o que mostra a preocupação de dialogar com outros meios.

Os elementos iconográficos estéticos não ocupam papel de destaque, tratando-se de


pequenos desenhos frequentes nas primeiras páginas de cada seção, porém, sendo em grande
maioria símbolos do imaginário católico, tais como cruzes, pombas e terços. Por outro lado, são
significativos os elementos iconográficos contidos em artigos, principalmente sobre assuntos
relacionados à arte, como fotografias e gravuras. Por se tratar de uma revista de síntese e
interpretação histórica, jurídica e artística, os temas recorrentes em todas as seções da
publicação remetem a essas três questões. É nesse sentido que o papel do revisionismo
historiográfico começa a se destacar, na medida em que a abordagem dada aos temas costuma
ressaltar questões reformuladoras dos sistemas vigentes, com destaque para a preocupação com
as reinterpretações do passado colonial, a etnografia dos povos indígenas, e o intercâmbio
cultural, artístico e musical entre indígenas e espanhóis e que plasmaram a cultura
436
hispanoamericana. Um dos trechos que enfatiza essa questão trata-se de uma passagem de um
artigo de Clemente H. Balmori, escrito em fevereiro de 1955, e publicado na edição número 45,
de junho de 1955:

Cada problema cultural de América, es un problema cultural de España y viceversa.


Porque de tal maneira nos enlazó el destino, que ni España puede ignorar las
cuestiones que interesan a los pueblos que provocó al seno de las grandes sociedades
humanas, ni éstos pueden ignorar a España, sin ignorar algo sustancial de sí mismos.

Hoy sabemos los americanos que en el regazo de la madre España hemos de buscar
el aliento de nuestro futuro y el amor en que ha de fraguar la unión de hermanos
llamados a un alto y generoso destino común, y el que ahora voy a exponer debe
interesar profundamente, pues afecta a la génesis misma de la cultura de tres grandes
pueblos: azteca, el maya y el quechua. (ESTUDIOS AMERICANOS, n. 45, 1955:
577)

Se por um lado há a preocupação em destacar uma mudança de perspectiva sobre os


povos indígenas, por outro lado há uma tentativa de justificar o papel civilizador dos espanhóis
na América. Há a presença do elemento civilizatório atrelado à expansão do catolicismo.
Portanto, poderíamos destacar dois elementos constituintes do revisionismo historiográfico
hispânico. Em primeiro lugar, a ênfase no discurso reformulador da visão a respeito do
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espanhol, enfatizando o seu papel de “benfeitor” durante o período colonial em relação aos
indígenas, em sua missão civilizatória e evangelizadora. Não há uma referência direta à
“leyenda negra”, mas fica clara a intenção de desconstruí-la e de destacar a preocupação da
Espanha com a América, através da defesa de uma origem e de um destino em comum, da
ênfase no determinismo histórico que os une. Em segundo lugar, o discurso em torno do ideal
de Hispanidade, que inclusive destaca o papel do indígena no processo histórico e o legado dos
“aborígenes locais” para a civilização hispanoamericana. Há uma preocupação em destacar esse
papel, embora este fique subordinado a uma visão histórica e cultural hispanocêntrica, em
destaque no trecho "Hoy sabemos los americanos228 que en el regazo de la madre España
hemos de buscar el aliento[...]" , no qual a escrita na primeira pessoa do plural tendo como
referência nós, "los americanos", apresenta uma união identitária entre espanhois e americanos,
uma espécie de reconhecimento de Balmori, dessa proximidade cultural. Quase não é possível
discernir os elementos espanhois e americanos desse fundamento, estes parecem se unir em
uma análise híbrida e simplificada, resultando uma mescla através do termo
"hispanoamericano".
437
Poderíamos entender o termo "nós" como uma questão de alteridade, no qual há a
intenção de direcionar um olhar ao "outro", porém isso ocorre vinculado a uma visão muito
específica, no qual se destacam os aspectos culturais da tradição hispânica. E é nesse ponto que
vemos a possibilidade de articulação com as noções de alteridade desenvolvidas por Tzvetan
Todorov. O seu livro "A Conquista da América" (TODOROV, 1982), dividido em quatro partes
principais, destaca o processo de desenvolvimento da visão sobre o "outro" no período colonial,
partindo na primeira parte da análise documental dos escritos de Colombo sobre a chegada na
América. Todorov se pergunta como a visão da alteridade para Colombo pode estar associada
a

[...] dois mitos aparentemente contraditórios, um onde o outro é um "bom selvagem"


(quando é visto de longe), e o outro onde é um 'cão imundo", escravo em potencial?
É porque ambos têm uma base comum, que é o desconhecimento dos índios, a recusa
em admitir que sejam sujeitos com os mesmos direitos que ele, mas diferentes.
Colombo descobriu a América, mas não os americanos. Toda a história da descoberta

228
Destaque em negrito da autora do presente trabalho.
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da América, primeiro episódio da conquista, é marcada por esta ambigüidade: a
alteridade humana é simultaneamente revelada e recusada (Ibid.: 30).

Essa passagem elucida questões que acabamos de expor ao tratar da interpretação do


ideal da hispanidade sobre o indígena, uma vez que para os intelectuais hispânicos, este era,
através do revisionismo historiográfico, "revelado e recusado". Há uma relação ambígua entre
o reconhecimento e o desconhecimento do indígena, no qual a relação de alteridade que pensa
o outro não tira o interlocutor do seu lugar de fala, da intencionalidade de criar um discurso ao
redor do ideal da hispanidade, no qual a origem em comum e todo o aparato ideológico são
sustentados por uma visão hispanocêntrica. Não é por acaso que linguisticamente falando, o
termo "hispanidade" faz uma referência direta à Espanha, embora considere a América dentro
dessa hispanidade. Todorov, ao afirmar que Colombo descobriu a América, mas não os
americanos, aponta para uma questão sensível da subjetividade que fundamenta a observação
visual e escrita sobre o outro, em diferentes espaços e temporalidades. Poderíamos afirmar,
seguindo essa linha de análise, que ao ter como ponto de partida a tentativa de desqualificar a
lenda negra e exaltar o ideal de hispanidade, o revisionismo historiográfico hispânico possui
em si uma ambiguidade no que tange à questão do outro, o indígena americano. A ambiguidade 438
consiste em sustentar um negacionismo sobre a lenda negra e a crueldade espanhola com o
indígena, concentrando a análise na exaltação do papel civilizacional da tradição hispânica na
formação da cultura hispanoamericana. Com isso, o papel do indígena não é negado, pelo
contrário, a visão sobre o outro adquire um caráter fundamental na construção do revisionismo
historiográfico hispânico. Porém, poderíamos nos questionar se, nessa mesma linha de
raciocínio, a Espanha também estaria inserida na América. Ou seja, se há a tentativa de vincular
a história americana diretamente subordinada à espanhola. A partir desse questionamento,
evocamos para o desconhecimento também do projeto hispânico em relação ao indígena, em
uma analogia à interpretação de Todorov, no sentido de que não há uma preocupação em
compreendê-lo em suas particularidades, mas encaixando-o em um modelo interpretativo
hispanocêntrico.

Voltando ao trecho do artigo de Balmori na revista Estudios Americanos, atentamos


para a proposição sobre a naturalização do cruzamento histórico de duas culturas. Não há um
questionamento sobre a presença de um choque cultural, ocorrendo um silenciamento das
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diversidades no que tange à origem e aos modos de vida. A história da América, dentro dessa
visão interpretativa construída através do revisionismo, aparece reduzida a um modelo cultural
hispânico. O ideal de hispanidade como princípio unificador é naturalizado no que chamamos
de revisionismo historiográfico hispânico, concordando com a proposta da revista, que se
coloca como veículo de "síntese e interpretação".

CONCLUSÃO

Retomando o início da presente reflexão, recordamos a observação de Cantera (2006)


sobre a possibilidade de se utilizar o revisionismo de forma não acadêmica, legitimando
interesses políticos e ideológicos, questão que fica evidente ao tratar o revisionismo
historiográfico hispânico da revista Estudios Americanos. As discussões de Catroga (2001) e
Vidal-Naquet (1988), foram exemplificadas a partir da análise documental, no que tange à
instrumentalização do revisionismo historiográfico como mecanismo metodológico que reflete
interesses políticos de uma ideologia do período no qual foi desenvolvido: o franquismo. O
revisionismo historiográfico, enquanto metodologia inerente ao trabalho do historiador, aparece
munido de subjetividades e interesses. O olhar revisionista sobre o passado colonial era 439
estruturado a partir da articulação entre a desqualificação da "leyenda negra" e a exaltação do
ideal da hispanidade. Ao propor uma noção de continuidade histórica, o ideal da hispanidade
não se atém às especificidades culturais e históricas que separam as fronteiras espanholas e
americanas, construindo uma noção de alteridade muito específica e relativa, nos termos de
Todorov (1982). Com isso, é possível compreender os usos do revisionismo, que podem
transcender de um uso estritamente acadêmico e científico, para um uso munido de interesses
ideológicos e políticos que expressam a subjetividade e impossibilidade de neutralidade por
parte dos estudos históricos, seja realizado por historiadores ou não. Os elementos destacados
por Teresa Aguirre (2011) dialogam com essa abordagem, se considerarmos a concepção de
existência de razões estruturais que fundamentam o revisionismo historiográfico, enquanto uma
crítica à modernidade. A contraposição entre a ruptura e a revolução da modernidade, com a
noção de continuidade e evolução da grande parte de teorias revisionistas, aparece na tentativa
de desconstrução da “leyenda negra”, enfatizando a origem e o destino em comum, e os laços
culturais e espirituais que interligam a Espanha e a América pela hispanidade, orientada na
ISSN: 2525-7501
perspectiva da continuidade histórica, pautando a criação de uma comunidade
hispanoamericana da qual a Espanha coloca-se como guia e mestra.

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441
ISSN: 2525-7501
PARCERIA ESTRATÉGICA ENTRE BRASIL E ARGENTINA NOS PROCESSOS
DE INTEGRAÇÃO NA AMÉRICA LATINA: UMA ANÁLISE ENTRE OS ANOS 2002
A 2012229

Jéssica Maria Grassi230


Ademar Pozzatti Junior231

RESUMO

Nos discursos diplomáticos, Brasil e Argentina exaltam a importância da parceria estratégica


entre ambos. Além disso, esses dois países tem grande peso na região e, nos últimos anos,
percebe-se uma maior aproximação entre os mesmos. A partir disso, busca-se compreender se
existe uma parceria estratégica entre Brasil e Argentina nos processos de integração na América
Latina em que ambos participam, tendo como delimitação temporal o período entre 2002 e
2012. Desse modo, a pergunta de pesquisa é: tendo em vista a atuação do Brasil e da Argentina
nos processos de integração na América Latina, existem aspectos que possam demonstrar a
existência de uma parceria estratégica entre os dois nessa esfera? Assim, parte-se da ideia de
que essa estratégica de atuação conjunta entre Brasil e Argentina nos processos de integração
na América Latina, e mais especificamente na América do Sul, seria essencial para a superação
442
de obstáculos e de ganhos tanto regionais como globais para ambos, contudo, ainda precisam
avançar em alguns aspectos de modo a superar divergências existentes. Nesse artigo, pretende-
se, primeiramente, discutir o conceito de parceria estratégica, em seguida, tratar da relação
estabelecida na segunda metade do século XX e, por fim, observar as convergências,
divergências, diálogos e propostas desenvolvidas em conjunto atualmente. Será utilizado o
método hipotético-dedutivo e a técnica de pesquisa a ser utilizada será a bibliográfica e
documental.

Palavras-chave: Brasil. Argentina. Parceria estratégica.

INTRODUÇÃO

229
Trabalho apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
230
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria, RS.
jessicamgrassi@hotmail.com
231
Orientador. Professor Adjunto do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria,
RS. juniorpozzatti@gmail.com
ISSN: 2525-7501
O termo parceria estratégica não é recente, uma vez que já era utilizado em áreas como
economia, marketing e administração para tratar das parcerias estabelecidas entre empresas,
firmadas de modo a torná-las mais competitivas no mercado, sendo, muitas vezes, utilizado
como sinônimo de aliança estratégica. Porém, a partir da Guerra Fria o mesmo passou a ser
usado também para referir-se a certos relacionamentos estabelecidos entre os países em
diferentes áreas, sendo neste sentido utilizado no artigo. No entanto, há diversas interpretações
para o conceito, inclusive, muitos países não deixam claro a forma com que interpretam e
utilizam o termo para definir algumas de suas relações.

No decorrer do século XX, as relações entre Brasil e Argentina foram marcadas por
períodos de rivalidade e cordialidade, tendo momentos de ampla parceria com avanços
significativos para ambos os países bem como momentos de retração. Tal parceria é percebida
de forma mais intensa a partir da assinatura da Declaração do Iguaçu (1985), que marcou a
intensificação das relações entre os dois países, assim como da integração no subcontinente.

Tendo em vista a relação entre Brasil e Argentina e a importância dos mesmos para o
cenário regional, o presente artigo, busca abordar as relações entre os dos países no que diz 443
respeitos aos processos de integração regional no século XXI, destacando o período entre 2002
e 2012. Para isso, o trabalho se divide em três partes: primeiramente, discute-se o termo parceria
estratégica, em seguida, aborda-se a relação entre Brasil e Argentina na segunda metade do
século XX e, por fim, trata-se especificamente da relação entre os dois durante o século XXI,
focando-se no período e 2002 a 2012.

Destaca-se que o trabalho trará resultados parciais, uma vez que a pesquisa ainda
encontra-se em andamento.

Capítulo I - Conceituando parcerias estratégicas

Primeiramente, faz-se necessário esclarecer o significado dos termos parceria e


estratégia. Parceria remonta a ideia de união entre dois ou mais atores, tendo como base um
elemento comum entre ambos. A palavra “estratégica”, consoante Cameron e Yongnian (2007),
vem sendo muito utilizada na política contemporânea, seu significado passou a ser mais amplo,
ISSN: 2525-7501
envolvendo também questões políticas e econômicas, já que, originalmente, vinha associada a
questões militares.

Com o tempo, conforme Danielly Silva Ramos Becard (2013, p. 47), o adjetivo
estratégico passou a ser mais amplo usado para “designar uma nova atitude do ator, mais
reflexiva e proativa perante um parceiro, objeto ou situação desejada". Farias (2013, p. 24; 25)
afirma que:

O termo parceria tem sentido de associação para o alcance de objetivos comuns,


envolvendo a cooperação, associação e colaboração. [...] O termo estratégia qualifica
a noção de parceria [...] Utilizado de todas as formas e em qualquer contexto, sua
vulgarização muitas vezes prejudica sua capacidade explicativa. Ele se refere à
identificação de objetivos relevantes de longo prazo e a existência de interesses e
meios para alcançá-los.

No que diz respeito às relações estabelecidas entre países, para Lessa (1998, p. 31), a
parceria estratégica pode ser entendida como as “relações políticas e econômicas prioritárias
reciprocamente remuneradoras, constituídas a partir de um patrimônio de relações bilaterais
universalmente configurado”. O autor propõe que as parcerias estratégicas demonstram o 444
universalismo pragmático e seletivo do Brasil, que se orienta para a meta de desenvolvimento
do país (LESSA, 1998).

Cameron e Yongnian (2007) definem parceria estratégica como um comprometimento


de longo prazo entre dois atores importantes de forma a estabelecer uma relação próxima em
várias áreas. Entretanto, salientam que isso não impede o surgimento de diferenças entre eles,
mas que os mesmos reconheçam a importância do compromisso mútuo em tentar alcançar
pontos de acordo sempre que possível.

No entanto, Becard (2013, p. 37) esclarece que poucos países deixam claro “o que
entendem por esse tipo de relação ou o que pretendem prioritariamente atingir por meio dela,
dando apenas alguns indicativos de como tais parcerias podem ser discernidas das demais
relações que possuem”.

Por outro lado, para Luis Fernando de Moraes y Blanco (2009), não existe apenas uma
definição para o termo, que possa abarcar toda a abrangência do mesmo, mas deve ser analisado
também o contexto no qual é anunciado e aceito em uma relação bilateral, pois cada parceria
ISSN: 2525-7501
estratégica tem seu caráter específico. Apesar disso, deve-se ter em conta que parceria
estratégica remete à noção de interesse ou objetivo fundamental, sendo que existem certas
condições necessárias para o estabelecimento dessa relação. Dessa forma, o Moraes y Blanco
(2009) apresenta que uma maneira de se compreender o conceito é visualizá-lo como:

[...] um aprofundamento ou formalização de um relacionamento bilateral, de maneira


a se definir formas de ação coordenadas com o objetivo de concretização de
determinados interesses fundamentais partilhados (não necessariamente ou somente
na área de segurança), ou se não partilhados, que ao menos dependem de uma
associação com aquele parceiro em específico para ser alcançados ou preservados. A
ideia de afinidade, portanto, não é um elemento que deve estar presente (MORAES Y
BLANCO, 2009; p. 43).

Entre os principais motivos para a consecução deste tipo de parceria entre Estados,
Farias (2013) destaca a percepção das oportunidades que podem ser aproveitadas ou os desafios
que devem ser superados. Contudo, o autor salienta que a parceria estratégica não evidencia um
estado de harmonia de interesses.

445
Primeiro, é uma sinalização para terceiros países sobre as convergências em ampla
gama de assuntos da agenda internacional. Segundo, uma forma de promover a
interação de áreas estratégicas das economias, reduzindo os custos de interação dos
atores privados. Terceiro, dar suporte aos fluxos originários da própria sociedade.
Quarto, endereçar desafios e problemas comuns que não podem ser trabalhados ou
resolvidos sem uma articulação mais robusta (FARIAS, 2013; p.30).

Becard (2013, p. 61) destaca que nessa parceria dois países estão dispostos a cooperar
para resolver problemas comuns e considerados de "primeira ordem" para ambos, sendo que
alguns países são considerados parceiros estratégicos “ora por serem vizinhos ou países dotados
de valores ou história comuns, ora por serem uma potência central ou emergente, indispensável
na solução de alguns ou diversos problemas setoriais ou globais”.

Capítulo II - A parceria na segunda metade do século XX


A Argentina é, para o Brasil, um parceiro especial, diferente dos demais, sendo que a
diplomacia brasileira vem mantendo um eixo de interação política há muitos anos com o país e
a ideia de parceira estratégica é, muitas vezes, enaltecida por ambos (SARAIVA, 2012).
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Conforme Saraiva (2012), na segunda metade da década de 1950 a relação entre Brasil
e Argentina volta a apresentar traços de cordialidade oficial. Com a ascensão de Arturo Frondizi
na Argentina, e o governo de Juscelino Kubitschek no Brasil, acentuaram-se as convergências
entre os dois países. Em 1958, quando JK propôs a Operação Pan-Americana (OPA), o
argentino deu-lhe todo o respaldo. Segundo Moniz Bandeira (2003, p. 275-276), Frondizi:

afirmou, inclusive, compreender também a necessidade de acordos de


complementação entre a Argentina e o Brasil, que passaram a defender, nas
conferências pan-americanas, a mesma doutrina de que o maior perigo para a
segurança do hemisfério, mais do que a ameaça de potências extracontinentais, estava
no subdesenvolvimento. Esse clima de compreensão, com a Argentina e o Brasil
tratando de harmonizar suas políticas exteriores, foi o que possibilitou, àquele tempo,
a criação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da “ALALC”.

A Associação Latino-americana de Livre Comércio (ALALC) foi criada em 1960,


mediante a assinatura do Tratado de Montevidéu, no entanto, foi perdendo força até ser
substituída pela Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), em 1980, sendo Brasil
e Argentina os países que lideraram também esse processo (CISNERO E ESCUDÉ, 1998).

Um aprofundamento da iniciativa de aproximação bilateral, iniciada a partir da OPA, se


materializou no “espírito de Uruguaiana” (SARAIVA, 2012). Em abril de 1961, Jânio Quadros
446
viajou à Uruguaiana, fronteira do Brasil com a Argentina, onde se reuniu com Frondizi e
debateram diversos temas acerca da relação entre os dois - afastando suas rivalidades - bem
como problemas na América Latina (MONIZ BANDEIRA, 2003). A partir desse encontro, foi
assinado a Convenção de Amizade e Consulta e a Declaração de Uruguaiana.

No entanto, o congresso argentino não referendou os tratados de Uruguaiana. Logo após


esse episódio, um golpe tira Frondizi do poder, interrompendo o “espírito de Uruguaiana”.
Conclui-se, assim, o primeiro ensaio de integração entre Brasil e Argentina. Além disso, a
questão acerca dos recursos hídricos dos rios da Bacia do Prata ocupou o centro da agenda
bilateral por mais de uma década, havendo muitos desentendimentos entre Brasil e Argentina
(SARAIVA, 2012). Saraiva (2012, p. 56) aponta que:

na década de 1970 foi marcada por negociações difíceis sobre a utilização das águas.
Por outro lado, houve um adensamento das relações nos campos militar e nuclear e
um esforço de aproximação intensa por parte do governo argentino. Embora a ideia
de rivalidade e deterioração das relações parecesse estar no ápice e tenha contado com
o incentivo das respectivas imprensas nacionais, paralelamente eram gestadas as
possibilidades de um entendimento entre os dois países.
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A partir de 1976 passa a haver um processo de superação das dificuldades, quando do
advento do novo regime político na Argentina e a ascensão do general Jorge Rafael Videla, o
qual buscou tratar as relações com o Brasil de forma prioritária a fim de superar o problema do
aproveitamento energético dos rios e buscar o entendimento (VIDIGAL, 2007).

Com Videla à frente do governo argentino, em 1977, as negociações tripartites – Brasil,


Argentina e Paraguai - tomaram novo rumo, enfrentando diversos obstáculos e avançando até
que, em 1979, com o governo do general João Figueiredo no Brasil, ocorre a assinatura do
Acordo Tripartite Corpus-Itaipu (VIDIGAL, 2007).

Consoante Miriam Gomes Saraiva (2012), a partir de 1979 a rivalidade foi sendo
superada e procurou-se estabelecer laços cooperativos, de forma que o entendimento avançou
para uma parceria. A autora também indica o apoio brasileiro na Guerra das Malvinas como
uma grande prova para a aproximação entre os dois países. Esse apoio fortaleceu a confiança e
os laços cooperativos. Além disso, Saraiva (2012, p. 68) aponta outros fatores importantes para
o relacionamento dos dois países como a complementaridade no campo econômico, a
“convergência em temas multilaterais como a proposta de abordagem política das negociações 447
da dívida externa no Consenso de Cartagena, e posições comuns em temas regionais como o
exemplo do apoio ao Grupo de Contadora”.

Após a Guerra das Malvinas, segundo Moniz Bandeira (2003, p. 462), “a Argentina
manifestou então o desejo de estreitar ainda mais os laços econômicos e comerciais com o
Brasil”. As conversações voltaram-se no sentido de promover as condições para uma gradativa
integração bilateral, para a criação de um mercado comum, de modo que, mais tarde, outros
países pudessem associar-se para alcançar a unificação da América do Sul e intensificar a
cooperação para avanços científicos e tecnológicos fundamentais ao progresso e não ficarem
marginalizados no sistema produtivo mundial, bem como procurar aumentar seu poder político
e a capacidade de negociação de ambos (MONIZ BANDEIRA, 2003).

Em 1985, foi assinada a Declaração de Iguaçu e a Declaração Conjunta sobre Política


Nuclear que, segundo Saraiva (2012), foi o ponto alto das conversações iniciadas ainda durante
o governo de Figueiredo e um marco para o processo de integração. A partir disso, as
negociações seguiram para, em 1986, os dois países firmarem a Ata de Integração, que levou a
ISSN: 2525-7501
estruturação do Programa de Integração e Cooperação Econômica (PICE), inicialmente com 12
protocolos.

Alfonsín e Sarney convergiram na ideia de ampliar o espaço econômico para além de


Brasil e Argentina, sendo que, em 30 de julho de 1986, no comunicado conjunto à imprensa, os
dois presidentes destacaram “que a vontade política da Argentina e do Brasil era em favor de
um processo de integração que não se limitasse às suas relações bilaterais, porém que estivesse
aberto a outras nações da região” (BANDEIRA, 2003; p. 468).

Consoante Granato (2012), com a assinatura do Tratado de Integração, Cooperação e


Desenvolvimento, em 1988, mais uma vez Brasil e Argentina demonstravam o seu papel
incentivador e estruturador das relações regionais. Além disso, “entre 1986 e 1989
intensificaram-se os encontros presidenciais e proliferaram acordos de diversos tipos”
(GRANATO, 2012, p. 80). Segundo Saraiva (2012), os dois países expressaram sua decisão de
acelerar o processo de integração bilateral e buscar um espaço econômico latino-americano.

448
Assim, em 1991, é assinado o Tratado de Assunção entre Brasil, Argentina, Paraguai e
Uruguai, que cria o Mercado Comum do Sul (Mercosul). Moreira, Quinteros e Silva (2010)
destacam que a formação do Mercosul foi uma resposta à marginalização dessa região na
década de 1980, tendo o objetivo do fortalecimento desses países (principalmente Brasil e
Argentina) no sistema internacional.

A formalização do bloco trouxe muitos ganhos para o processo de aproximação entre


Brasil e Argentina, no entanto, destaca que “a sintonia entre os dois países não foi tão afinada
quanto entre 1985 e 1989, quando era forte o suficiente para iniciar um processo de integração
sem possibilidades de retorno” (SARAIVA, 2012, p. 80). O contexto internacional do momento
foi relevante para o entendimento e o processo de integração entre Brasil e Argentina, bem
como “a transição democrática dos dois governos abriu uma conjuntura sem precedentes para
o avanço do entendimento e para o estabelecimento de uma parceria estratégica entre os dois
países” (SARAIVA, 2012, p. 79-80).

Apesar das divergências entre os dois países, principalmente o que diz respeito ao
Acordo Tripartite, Saraiva (2012) ressalta que o entendimento teve avanços progressivos a
partir de 1979, atingindo na segunda metade dos anos 1980 uma parceria estratégica. A parceria
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trouxe um equilíbrio entre ambos, e o período entre 1985 e 1989 atendeu aos requisitos
apontados por Antonio Carlos Lessa para a definição da parceria estratégica. No entanto, para
Saraiva (2012), tal parceria não foi simétrica.

Do aumento do fluxo comercial; passando pela convergência no campo de política


externa; com destaque para o diálogo político; e, não menos importante, as
perspectivas de projetos de desenvolvimento assinaladas nos Protocolos. A esses itens
pode ser agregada também a aproximação no campo militar e a superação da
possibilidade de conflito entre os dois países (SARAIVA, 2012; p. 80).

Consoante Moniz Bandeira (2003, p. 468), os dois países chegaram à conclusão de que,
isoladamente, “pouco ou quase nada iriam mudar na ordem mundial, mas, unidos, poderiam
influir gradativamente nas decisões de interesse da América Latina”. Nesse período, Moniz
Bandeira (2003) destaca que Brasil e Argentina se propuseram a constituir um novo polo
gravitacional de poder no sistema internacional.

Capítulo III - A parceria nos processos de integração no século XXI 449


A desvalorização do Real, em 1999, atingiu severamente a Argentina. Nesse período,
segundo Moreira, Quinteros e Silva (2010), a crise também atingiu fortemente o Mercosul e
muitos analistas anunciavam seu fim. Dessa forma, surgiram ideias de criar novas prioridades
ao bloco comercial no ano de 2000. Assim, conforme Saraiva (2012), foi aprovado normas que
ficaram conhecidas como “Relançamento do Mercosul” e, em 2001, foi criado o Mercosul
Social, demonstrando a mudança de rumos do bloco. Cortes e Creus (2009) destacam que foi a
vontade política de Brasil e Argentina que evitou o fim do bloco regional.

Percebeu-se nesse momento a ampliação e o fortalecimento da América do Sul, sendo


que, em setembro desse mesmo ano, na primeira Cúpula dos Presidentes Sul-Americanos, em
Brasília, foi relançado o projeto de integração sul-americana (MOREIRA; QUINTEROS;
SILVA, 2010). Nessa reunião, as discussões voltaram-se para a integração econômica e de
infraestrutura e o reforço dos regimes democráticas, bem como a ideia de formar uma
Comunidade Sul-Americana de Nações (SARAIVA, 2012).
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Saraiva (2012) destaca que houve esforços pela unificação das posições entre Brasil e
Argentina em temas referentes à região que até então não eram consensuais. Ademais, segundo
a autora, a parceria estratégica entre ambos esteve sempre presente nos discursos e a relação
com a Argentina seguiu tendo lugar prioritário na política externa brasileira.

Além disso, Saraiva (2012) salienta que, no final de 2001, a Argentina passou por um
momento crítico que levou a renúncia do presidente De La Rúa, sendo que, logo no início de
2002, Eduardo Duhalde assumiu a presidência do país e, partir disso, a Argentina entrou em
um período de grande instabilidade. Diante da crise argentina, o Brasil seguiu com seu apoio,
frisando que a mesma continuava seu parceiro prioritário (SARAIVA, 2012). Cortes e Creus
(2009) ressaltam que a Argentina buscou fortalecer suas relações com o vizinho nesse período
de modo a se sustentar internacionalmente e recuperar algumas de suas capacidades perdidas.

Em janeiro de 2003, o presidente argentino Eduardo Duhalde e Lula da Silva, que


acabara de chegar à presidência do Brasil, se encontram em Brasília, onde se emitiu um
Comunicado Conjunto conhecido como Declaração de Brasília, "destacando a necessidade de
intensificar a consulta e a coordenação política como também a urgência em coordenar políticas 450
macroeconômicas" (CORTES; CREUS, 2009; p. 128, tradução nossa).

Logo após, com a ascensão de Néstor Kirchner na Argentina, criou-se um ambiente


favorável para a construção de uma parceria estratégica sólida, tendo como ponto de partida o
Consenso de Buenos Aires. Durante o governo Lula foi possível recuperar em parte a parceria
estratégica nos moldes da década de 1980, além disso, uma aliança estratégica foi apontada
pelo Brasil como prioritária e essencial para nortear a integração sul-americana (SARAIVA,
2012).

É importante destacar que, durante a presidência de Lula, o Brasil atuou em diferentes


campos e estabeleceu diferentes parcerias. Contudo, para o Brasil havia a importância de manter
laços fortes de cooperação com a Argentina, de modo a evitar comportamentos contrários da
Argentina que pudessem criar obstáculos para as iniciativas brasileiras tanto regionais como
internacionais (SARAIVA, 2012).

Saraiva (2012, p. 141) propõe que:


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nesse período a parceria estratégica [...] fez-se sentir em um maior número de
dimensões. Os investimentos cresceram muito e a expansão das empresas brasileiras
em território argentino reforçou os laços econômicos; os canais de diálogo político
foram incrementados; os projetos de desenvolvimento comuns seguiram a trajetória
definida em 1991, embora haja havido um retrocesso nas pesquisas nucleares. Embora
as atuações conjuntas em foros multilaterais tenham sido mais difíceis, houve mais
proximidade que as ocorridas durante os anos 1990, com destaque para a Operação
de Paz no Haiti.

De acordo com Cepik, Jornada e Borba (2012, p. 149), a partir de 2003, com as eleições
de Lula e Kirchner, “ocorre o revigoramento das relações bilaterais e um novo ímpeto à
integração regional é dado, com o relançamento da parceria estratégica entre os dois países e
do MERCOSUL”. Além disso, Brasil e Argentina atuam em conjunto para fortalecer os
processos de integração na América do Sul como um todo.

Entre as iniciativas bilaterais que visam ao relançamento do MERCOSUL e da parceria


estratégica entre Brasil e Argentina, Cepik, Jornada e Borba (2012) destacam a assinatura do
Protocolo de Olivos (2002); do Consenso de Buenos Aires (2003); da Ata de Copacabana, que
relança a parceria estratégica entre Brasil e Argentina (2004); em 2004, é criado o Parlamento
do MERCOSUL e o Fundo para a Convergência Estrutural do MERCOSUL (FOCEM); em 451
2006, o Instituto Social do MERCOSUL; e é estabelecido o Mecanismo de Integração e
Coordenação Brasil-Argentina, em 2007. Todas essas iniciativas foram essenciais para o
aprofundamento da integração regional (CEPIK; JORNADA; SILVA, 2012).

Conforme Saraiva (2012, p.137), “o eixo bilateral Brasil-Argentina teve peso


importante enquanto base política do reordenamento do Mercosul”, esse passou a agregar as
dimensões política e societal, as quais não estavam previstas no Tratado de Assunção. Contudo,
Cortes e Creus (2009) salientam que não há consenso entre os dois quanto ao modelo
institucional para o Mercosul, enquanto a Argentina aposta em um modelo supranacional,
Brasil não abre mão do modelo intergovernamental.

Com relação ao Mercosul, Granato (2012, p. 86) destaca:

os presidentes Lula e Kirchner convergiram no que dizia respeito à necessidade de


contar com uma visão multidimensional. De modo que sob tal ordem de ideias, não
somente era enfatizada a intenção de aperfeiçoar a união aduaneira, impulsionar a
competitividade e o tratamento das assimetrias, promover e proteger os investimentos,
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avançar sobre a coordenação macroeconômica, mas também, visava-se a considerar e
favorecer o trabalho nas áreas sociais e produtivas.

Em outubro de 2003, durante a visita do presidente Lula à Argentina, foi firmado o


Consenso de Buenos Aires, no qual os países entenderam que:

a integração regional constitui uma opção estratégica para fortalecer a inserção de


nossos países no mundo, aumentando a sua capacidade de negociação. Uma maior
autonomia de decisão nos permitirá enfrentar de maneira mais eficaz os movimentos
desestabilizadores do capital financeiro especulativo, bem como os interesses
contrapostos dos blocos mais desenvolvidos, amplificando nossa voz nos diversos
foros e organismos multilaterais. Nesse sentido, destacamos que a integração sul-
americana deve ser promovida no interesse de todos, tendo por objetivo a
conformação de um modelo de desenvolvimento no qual se associem o crescimento,
a justiça social e a dignidade dos cidadãos (BRASIL; ARGENTINA, 2003).

Com relação ao Mercosul, coincidiram que o bloco não se restringe apenas a questões
comerciais, “mas que constitui um espaço catalisador de valores, tradições e futuros
compartilhado, sendo necessário seu fortalecimento, o aperfeiçoamento de suas instituições, a
promoção da participação da sociedade civil e a incorporação de novos países" (CORTES;
CREUS, 2009; p. 129, tradução nossa). Além disso, reiteraram a disposição de buscar acordos
equilibrados para incrementar as ligações do Mercosul e convergiram em continuar as 452
negociações da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) por meio do Mercosul
(BRASIL; ARGENTINA, 2003).

A relação dos dois países também apresentou algumas dificuldades. O fortalecimento


econômico e a projeção brasileira internacionalmente trouxeram outras áreas de atuação para o
país, as quais não foram acompanhadas pela Argentina, bem como algumas existiram algumas
divergências no campo comercial. Apesar disso, a relação estratégica com a Argentina persistiu
como política de estado, pois novas rivalidades entre os dois seria corrosivo para a ensejada
liderança brasileira (SARAIVA, 2012).

Durante a formação da CSN (2004), a diplomacia argentina demonstrou seu


descontentamento quanto à formação do bloco com liderança brasileira (SARAIVA, 2012).
Segundo Cortes e Creus (2009), a Argentina considerou a iniciativa brasileira uma estratégica
que demonstrava a intenção do Brasil de liderar a região. Ademais, “o governo argentino
também criticou o protagonismo outorgado pelo Brasil à CSN em detrimento do Mercosul”,
bem como “não houve um tratamento diferenciado para seu aliado estratégico no momento de
ISSN: 2525-7501
repensar a nova estruturação regional, simplesmente Argentina foi um país mais no esquema
diplomático brasileiro” (CORTES; CREUS, 2009; p. 136, tradução nossa; grifo do autor).

Já nas negociações acerca da criação da Unasul o governo argentino apoiou a iniciativa,


bem como foi a favor da proposta brasileira de criação do Conselho de Defesa, sendo que
“funcionários de Argentina e Brasil, ligados às áreas militares e de defesa, mantiveram reuniões
nos últimos meses a fim de coordenar posições e construir um pensamento estratégico comum”
(CORTES; CREUS, 2009, p. 137, tradução nossa).

O Compromisso de Puerto Iguazú – Desenvolvimento, Justiça e Integração, celebrado


quando do aniversário de 20 anos da Declaração de Iguaçu, destaca que a aliança entre
Argentina e Brasil “é a chave para o êxito do projeto comum de integração, dentro do qual se
destaca a importância do aprofundamento do MERCOSUL, da consolidação do Mercado
Comum e da construção da Comunidade Sul-Americana de Nações” (BRASIL; ARGENTINA,
2005). Além disso, salienta que ambos os países pretendem continuar o aprofundamento da
integração para que cada vez mais os benefícios da integração possam ser vividos pelos
cidadãos. 453
Em 2006, Brasil e Argentina assinaram o acordo Mecanismo de Adaptação Competitiva
(MAC) no âmbito do Mercosul (Paraguai e Uruguai decidiram não aderir). Segundo Cortes e
Creus (2009), tal acordo previu restringir as importações se um país se considerasse afetado
pelas exportações do outro, buscando solucionar as controvérsias e evitar sua politização
(CORTES; CREUS, 2009).

Nesse sentido, para Cortes e Creus (2009), outro avanço nos marcos do Mercosul foi a
decisão argentino-brasileira de utilizar as moedas nacionais, o Peso e o Real, nas transações
comerciais entre ambos países. "A presidenta Cristina Fernández considerou a eliminação do
dólar para as operações comerciais entre ambos os países como um símbolo cultural. Pela sua
parte, Lula classificou o convênio como o passo inicial do que denominou uma futura
integração monetária regional" (CORTES; CREUS, 2009; p. 133, tradução nossa).

Na Declaração Conjunta à Impressa, em fevereiro de 2008, dentre outros assuntos


tratados, os presidentes reiteraram “seu compromisso com uma integração regional que
fortaleça o diálogo político e os laços econômicos e comerciais entre os países sul-americanos,
ISSN: 2525-7501
com ênfase na interconexão física, nos projetos de infraestrutura e nos assuntos energéticos”
(GRANATO, 2012; p. 89).

Logo após, em setembro do mesmo ano, a presidente Cristina Fernández de Kirchner


visita o Brasil para participar como convidada de honra nas comemorações do Dia da Pátria,
bem como manter reunião no âmbito do Mecanismo de Integração e Coordenação Brasil-
Argentina com o presidente Lula. Nessa ocasião, ressaltaram a importância da associação
estratégica entre os dois países, bem como sua disposição de dar continuidade às negociações
extrarregionais do MERCOSUL e aprofundar as negociações Sul-Sul (BRASIL;
ARGENTINA, 2008). Além disso,

reiteraram seu compromisso com o aprofundamento do MERCOSUL e, nesse sentido,


salientaram a importância de eliminar a dupla cobrança da Tarifa Externa Comum
(TEC) como um passo fundamental para a consolidação da união aduaneira.
Saudaram a plena implementação do Fundo Estrutural de Convergência do
MERCOSUL (FOCEM), instrumento de grande importância para a correção das
assimetrias entre os Estados membros do bloco e reiteraram o compromisso de
instrumentar um sistema de garantias como um primeiro passo no estabelecimento de
um Fundo Mercosul de apoio às pequenas e médias empresas envolvidas em
iniciativas de integração produtiva. [...]
454
Cortes e Creus (2009) salientam que tanto no governo de Néstor quanto de Cristina há
a identificação da relação estratégica com o Brasil. Segundo Cortes e Creus (2009, p. 123,
tradução nossa), “durante o primeiro ano da gestão de Cristina Fernández e o segundo mandato
de Lula, as relações entre Argentina e Brasil pareceram ser cordiais, com uma intensidade,
denominada pelo governo argentino como inédita”. Além disso, em 2008 mantiveram contatos
políticos de alto nível e percebe-se a convergência em várias questões no nível regional, como
aspectos relacionados à integração (CORTES; CREUS, 2009).

Na Declaração Conjunta de novembro 2009, os presidentes reafirmaram seu


compromisso de impulsionar os trabalhos do Plano Estratégico de Ação Social do
MERCOSUL, assim como adotar programas e medidas no âmbito social que reduza os efeitos
da crise financeira internacional. Também “reiteraram a importância da consolidação da
UNASUL, que deve transformar-se em fator de unidade e de cooperação na América do Sul”
(BRASIL; ARGENTINA, 2009). Ademais, na referida declaração, os países ressaltaram

o interesse de ambos os países em acelerar a execução dos projetos prioritários para a


integração física sul-americana, em especial nas áreas de infraestrutura, transportes e
ISSN: 2525-7501
telecomunicações que integrem os países, atendendo a critérios de desenvolvimento
social e econômico sustentável e preservando o equilíbrio dos ecossistemas. [...]
Renovaram o compromisso de avançar em direção da plena incorporação do âmbito
de trabalho da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana
(IIRSA) no marco do Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento da
UNASUL. [...] Decidiram seguir estudando a proposta de avançar na direção de uma
instância regional para a América Latina e o Caribe como espaço político de expressão
da unidade regional com base na experiência de concertação política no âmbito do
Grupo do Rio e nos temas que estão sendo propostos na Agenda de Integração,
Desenvolvimento e Cooperação promovida no âmbito da CALC (BRASIL;
ARGENTINA, 2009).

De acordo com Cepik e Silva (2012, p. 23), em 2011, os países da região, principalmente
Brasil e Argentina, passaram a observar os recursos naturais como assunto estratégico para a
integração sul-americana e reconheceram que a defesa dos mesmos só seria possível por meio
de ações conjuntas, sendo necessária a criação de políticas que visassem à proteção desses
recursos do subcontinente, no âmbito do Conselho de Defesa Sul-americano (CDS), órgão da
UNASUL inaugurado em 2009.

Em 31 de janeiro de 2011, as presidentes assinaram o Memorando de Entendimento


entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República Argentina para a
promoção comercial conjunta. Nesse documento, ambos os países convergiram em buscar
455
coordenar ações conjuntas de promoção comercial, promover intercâmbio de informações e
cooperação técnica, projetos que visem a complementação e à integração industrial, comercial
e tecnológica de modo a otimizar os recursos disponíveis, estimular o turismo, aproximar os
setores privados a fim de melhorar a produtividade e competitividade. Tudo isso em nome da
integração bilateral e do aprofundamento do MERCOSUL, sempre mencionando os demais
países do bloco e destacando que o presente Memorando viria a “facilitar a execução das
decisões dos Coordenadores Nacionais da Reunião Especializada de Promoção Comercial
Conjunta do MERCOSUL” (BRASIL; ARGENTINA, 2011).

Nesse dia, na Declaração Conjunta de Imprensa, as presidentes Cristina Fernández e


Dilma Rousseff demonstraram manter as conversações que vinham ocorrendo durante o
governo de Néstor Kirchner e Lula da Silva, reforçaram a importância de uma aliança
estratégica entre os dois países, como eixo constitutivo da integração regional e reinteraram o
compromisso com o processo de integração bilateral (GRANATO, 2012).
ISSN: 2525-7501
Cepik e Silva (2012) também destacam que durante a Cúpula da CELAC, em dezembro
de 2011, Brasil e Argentina desaprovaram a agenda anti-estadunidense articulada pelos países
contrários às propostas norte-americanas para a América Latina. Nesse sentido, Cristina
Fernández salientou em seu discurso a necessidade de não tomar a integração como uma briga
contra algum fator externo, mas usá-la como um instrumento positivo para todos os países,
utilizando-se de políticas concretas e não apenas por meio de discursos (CEPIK, SILVA, 2012).

Além desses, diversos outros encontros foram realizados para debater questões da
agenda bilateral nesse período, questões que, muitas vezes, podem ser levadas para o âmbito
regional. No entanto, ressalta-se que a pesquisa intenta abordar diálogos realizados entre os
dois países no que diz repeito aos processos de integração regionais existentes no período
estudado.

CONCLUSÕES

A pesquisa ainda está em andamento, no entanto, podem-se destacar algumas 456


conclusões preliminares. O termo parceria estratégica é visto de diferentes prismas e ainda é
considerado um termo abstrato, visto que muitos países não deixam claro o que compreendem
por esse tipo de relação ou o que pretendem com elas. No entanto, entende-se que o conceito
está associado a relações prioritárias entre países, as quais são estabelecidas a partir da
percepção de ganhos mútuos.

Assim, os autores convergem que durante a década de 1980, principalmente entre os


anos 1985 e 1989, Brasil e Argentina intensificaram suas relações, convergindo em diversos
aspectos e percebendo que juntos poderiam influenciar mais fortemente as decisões que
dissessem respeito à América Latina. Desse modo, alcançaram uma parceria estratégica, a qual
foi crucial para a criação do Mercosul.

Destaca-se que a partir do governo de Lula da Silva e Néstor Kirchner, Brasil e


Argentina aumentaram significativamente seus encontros e reuniões, convergindo em diversos
temas de sua agenda bilateral, bem como em questões relacionadas à região. Os encontros
ressaltados evidenciam a tentativa de trabalhar conjuntamente em temas regionais, bem como
ISSN: 2525-7501
demonstram a prioridade dada para a América do Sul, apesar de uma maior inserção na América
Latina e Caribe nos últimos anos, com a Celac, por exemplo. No entanto, percebe-se que ainda
existem pontos de divergências e desconfianças que devem ser superados.

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ISSN: 2525-7501
QUESTÃO DA PALESTINA: CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL NA
ORDEM INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEA*232

Cecília Maieron Pereira**233

RESUMO

A ordem internacional para as Relações Internacionais pode ser compreendida como uma série
de valores, instituições e atividades comuns aos atores internacionais, vigente em uma
determinada época. Dessa maneira, o mundo contemporâneo dividido em Estados soberanos
possui uma rede de princípios, como a soberania, a territorialidade e legitimidade, que
impactam nas estratégias e desafios de povos aspirantes ao status de Nação e da categoria de
Estado que querem se integrar nessa ordem. Os Estados do Sul Global, ou mais comumente
chamados de “Terceiro Mundo”, são exemplos de desafios para a construção do Estado que
tentam se adequar aos princípios da ordem. Dentro deste cenário, a questão da Palestina é um
importante símbolo desta aspiração visto que os palestinos buscam o estabelecimento de um
Estado e tem obtido o reconhecimento internacional à sua soberania externa, embora
internamente sua soberania não esteja consolidada. Além disso, há um grande número de
refugiados e migrantes palestinos que lançam questão sobre a manutenção da identidade deste
povo. Dessa maneira, este trabalho pretende analisar quais são as estratégias de construção e
460
manutenção da identidade nacional palestina na ordem internacional contemporânea. Parte-se
da hipótese que a identidade nacional palestina sobrevive na transnacionalidade. Ela não está
limitada ao território e precede o Estado, embora valorize e objetive a consolidação territorial.
O objetivo deste pesquisa é compreender como a ordem internacional contemporânea determina
os desafios e estratégias da Palestina para sua identidade nacional e consolidação do Estado. A
pesquisa realiza um estudo descritivo que utiliza o método de abordagem hipotético-dedutivo
e fontes bibliográficas como técnica de pesquisa. Pode-se concluir que o grande número de
refugiados e migrantes palestinos contribuem para a reivindicação dos direitos e interesses do
seu povo. De fato, a questão da Palestina constitui uma luta histórica e um dos principais
conflitos na região do Oriente Médio.
Palavras-chave: Ordem Internacional, Identidade Nacional, Questão Palestina.

INTRODUÇÃO

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e bolsista de
extensão no Grupo de Estudos em Capacidade Estatal, Segurança e Defesa (GECAP) pelo Fundo de Incentivo à
Extensão (FIEX). E-mail: cecilia_maieron@hotmail.com.
***A pesquisa ainda está em andamento.
ISSN: 2525-7501
A ordem internacional nas relações internacionais corresponde a certos padrões e
práticas comuns aos Estados e demais atores do sistema internacional. Dessa forma, espera-se
que os atores das relações internacionais sigam certo padrão de comportamento, certas regras e
princípios. Nesse sentido, os princípios da ordem internacional contemporânea, em que o
Estado é um dos principais agentes, são a soberania, a territorialidade e a legitimidade. Dentro
deste cenário, a construção dos Estados no Terceiro Mundo estão submetidos as dinâmicas da
ordem internacional contemporânea. A Palestina, sendo uma grande referência na busca por
consolidar um Estado próprio está submetida a essa ordem, que impacta em suas estratégias e
desafios não só para o estabelecimento do Estado, mas também na sua identidade nacional.

Dessa forma, o presente trabalho procura compreender quais são as estratégicas de


construção e manutenção da identidade nacional palestina na ordem internacional
contemporânea. Parte-se da hipótese de que a identidade nacional palestina sobrevive na
transnacionalidade. Ela não está limitada ao território e precede o Estado, embora valorize e
objetive a consolidação territorial. O presente trabalho tem por objetivo geral compreender
como a ordem internacional contemporânea determina os desafios e estratégias da Palestina
para sua identidade nacional e consolidação do Estado. Para isso, cabem dois objetivos
461
específicos. Em primeiro lugar, busca-se compreender as características da ordem internacional
contemporânea, suas instituições formais e informais, qual o papel das grandes potências e
como isso impacta na formação dos Estados no Terceiro Mundo. Sem segundo lugar, objetiva-
se compreender o desafios e estratégias para construção e manutenção da identidade nacional
palestina na ordem internacional contemporânea. Nesse sentido, este estudo descritivo parte
de método de abordagem hipotético-dedutivo e utiliza fontes bibliográficas como técnicas de
pesquisa.

Capítulo I - A ordem internacional contemporânea: suas instituições, grandes


potências o impacto na construção dos Estados no Terceiro Mundo.

O caos e a ordem sempre foram foco de estudo na disciplina de Relações Internacionais.


Pressupor que há ordem em algo é assumir que determinados padrões devem ser seguidos e que
atividades e práticas são recorrentes. Nesse sentido, a ordem em nível internacional refere-se a
ISSN: 2525-7501
elementos comuns, bem como instituições formais e informais. Uma das grandes referências
sobre o estudo de ordem internacional, o livro A Sociedade Anárquica (2002) de Hedley Bull,
o autor conceitua ordem como sendo “um padrão de atividades que sustenta os objetivos
elementares ou primários da sociedade dos estados, ou sociedade internacional” (2002, p.13).
Por “sociedade de estados” entende-se que um determinado grupo de estados se consideram
interligados por valores, regras, interesses e instituições comuns (BULL, 2002, p. 19). Os
objetivos primários de uma sociedade de estados é a sua preservação, a independência dos seus
membros e a manutenção da paz (BULL, 2002, p.23-24).

Por outro lado, para Robert Cox, expoente da Teoria Crítica das relações internacionais, a
ordem mundial se refere às configurações de forças que regem as relações de cooperação e
conflito no sistema de Estados234. As ordens mundiais compõem a tríade proposta pelo autor,
formadas pelas: forças sociais, as formas de Estado e as ordens mundiais (1981, p. 138). Estes
elementos funcionam da maneira interdependente, ou seja, a alteração nas organizações de
produção levam a novas configurações do Estado e que afetam, por fim, as dinâmicas de
cooperação ou conflito na ordem internacional (1981, p. 138). O conceito de ordem para Robert
Cox vai um pouco além do domínio do Estado para enquadrá-lo nas estruturas históricas
462
vigentes em uma determinada época.

Para A.Organski em seu livro World Politics (1968), a ordem no sistema internacional
existe

Porque os laços entre as nações são mais fortes e de maior duração do que costumavam ser
podemos dizer que as nações mundiais estão organizadas dentro de sistemas ou ordens
internacionais que persistem por um relativo período de tempo. Uma nação poderosa tende a
estabelecer um sistema de relações com menos estados que podem ser chamadas de “ordem”
porque suas relações são estáveis. Dessa forma, todos conhecem os comportamentos a serem
esperados dos outros, hábitos e padrões são estabelecidos, e certas regras de como essas relações
devem ser seguidas vão sendo aceitas por todas as partes. [...] O comércio é conduzido através
de canais familiares de acordo com procedimentos largamente aceitos. As relações diplomáticas
também possuem padrões reconhecidos. Certas normas são esperadas serem cumpridas pelos
outros. Cada minuto de cortesia se toda padronizado: há regras para diplomacia e há regras para
a guerra. (ORGANSKI, 1968, p.353-354)235

234
Tradução da autora. No original: “[...] the particular configurations of forces which successively define the
problematic of war or peace for the ensemble of states” (1981; p.138)
235
Tradução da autora. No original: “Because the ties between nations are much stronger and of longer duration
than they used to be we can say that the nations of the world are organized into systems or international orders
ISSN: 2525-7501
A Ordem internacional, portanto, pressupõe a existência de certo padrão de atividades,
direitos e deveres que impactam e são impactados pelas ações dos Estados nas relações
internacionais.

Nesse sentido, as grandes potências constituem parte importante da ordem internacional


contemporênea. Isso decorre do fato de possuírem status diferente, seja econômico, político ou
militar, em relação aos demais Estados do sistema internacional. De acordo com Jeffrey Legro,
as relações internacionais não são moldadas somente pelo poder dos Estados, mas também da
maneira que os Estados exercem esse poder (2005, p.3). Em consequência disso, as grandes
potências possuem direitos e deveres distintos, como a manutenção da sociedade internacional
e a presenvação do seu status (ASLAM, 2013, p.10). De acordo com Robert Gilpin, é a
distribuição de poder no sistema que determina quem o governa e quais os interesses que serão
favorecidos (1981, p.29). Como consequência da desigualdade de poder no sistema
internacional, somente alguns conflitos podem ser resolvidos, sobretudo se são demandas e
interesses dos estados mais fortes. Por outro lado, questões dos estados mais fracos são
colocadas em segundo plano, caso não sejam de interesse das potências dominantes (BULL,
2002, p.236).
463
Além disso, valores, ideias e regras comuns são elementos que constituem as instituições
na ordem internacional contemporênea. A exemplo disso, as instituições podem ser formais ou
informais, ou seja, a religião e a Organização das Nações Unidas são instituições do sistema
internacional. De acordo com Kalevi Holsti, uma instituição internacional pode ser identificada
pela existência de práticas rotineiras ou padronizadas, ou seja, por atividades comuns aos atores
na ordem internacional (2004, p.21-22). O direito internacional e a diplomacia são instituições
da sociedade internacional contemporânea, pois são práticas que estabelecem “regras básicas
de coexistência” ou funcionam como um instrumento de comunicação e negociação entre os

which persist for a relatively long time. A powerful nation tend to set up a system of relations with lesser states
that can be called an “order” because the relations are stabilized. In time, everyone comes to know what kind of
behaviour to expect from the others, habits and patterns are established, and certain rules as to how these relation
ought to be carried on grow to be accepted by all the parties. [...] Trade is conducted along familiar channels
according to generally agreed upon procedures. Diplomatic relations also fall into recognized patterns. Certain
norms are expected to give deference to others. Even the minute courtesies come to be standardized: there are rules
of diplomacy; there are even rules of war.” (ORGANSKI, 1996, p.353-354).
ISSN: 2525-7501
estados (BULL, 2002, p. 163; p. 206). As instituições também reúnem um conjunto de ideias e
crenças comuns em uma determinada época (HOLSTI, 2004, p.21-22). De acordo com Holsti,
as ideias também são uma forma de poder que podem estar presentes em discursos e tratados
(2004, p.21-22). Por fim, as instituições da ordem internacional refletem em normas e deveres
que regulam ou impactam no comportamento dos estados, como o respeito a soberania
(HOLSTI, 2004, p.22). Nesse sentido, Holsti identifica três instituições importantes da ordem
internacional contemporânea: soberania, territorialidade e direito internacional (2004, p.26).
Para fins deste trabalho, o direito internacional não será tratado especificamente, mas na sua
forma mais primária, com o princípio da legitimidade.

Primeiramente, a soberania é uma instituição primordial das relações internacionais pois


se refere diretamente a criação e manutenção do Estado (HOLSTI, 2004, p.113). O princípio
da soberania, desse modo, é uma prática da ordem internacional contemporânea sobretudo com
sua expressão máxima que é o Estado Nação Moderno. De acordo com Robert Jackson, dentre
as diversas maneiras de status internacional, a soberania estatal é a predominante atualmente
(1999, p.33). O autor propõe duas concepções sobre o conceito de soberania. A primeira, a
soberania negativa se refere ao direito de não interferência nos assuntos internos por outro
464
Estado e reconhecimento da sua independência (1999, p.11). Por outro lado, a soberania
positiva diz respeito à capacidade interna de um Estado de agir e coagir por meio de suas
instituições (1999, p.11). A soberania, nesse sentido, é considerada uma norma constitutiva de
um Estado, com status jurídico distinto e o torna um ator legítimo nas relações internacionais
(HOLSTI, 2004, p.114). Dessa maneira, uma entidade soberana, enquanto parte importante da
ordem internacional, também implica em certas práticas e comportamentos. O reconhecimento
a outros Estados, a diplomacia e a imunidade quanto a intervenções externas são alguns
exemplos (HOLSTI, 2004, P.116). A soberania, portanto, é a instituição primordial na ordem
internacional, pois determina as características e ações dos Estados.

Em segundo lugar, a territorialidade também é uma instituição da ordem internacional


contemporânea. Um dos elementos do estado soberano, a territorialidade é um fenômeno
relativamente recente (HOLSTI, 2004, p.73). A preocupação em delimitar o espaço de uma
comunidade política não era tão contundente nas comunidades antigas onde as fronteiras eram
fluídas e não demarcadas (HOLSTI, 2004, p.73). De fato, as fronteiras são uma invenção
ISSN: 2525-7501
moderna e relacionada com a ideia de Estado e soberania (HOLSTI, 2004, p.75-76). Já no
século XVIII, com a ascensão dos nacionalismos e do romantismo, o território no qual a história
de um povo se desenvolve ganhou um novo significado atrelado à identidade desse povo
(HOLSTI, 2004, p.86). Nesse sentido, o surgimento dos nacionalismos impulsionou para que o
território se tornasse propriedade estatal (SASSEN, 2006, p.146).

Em terceiro lugar, a legitimidade é um princípio e não uma instituição de fato, contudo,


tem grande influência ordem internacional contemporânea. A legitimidade de acordo com
Robert Cox, é a condição para uma ação, para a implementação de normas e direitos, bem como
é o elemento que permite uma autoridade exercer seu poder (COX, 2010, p.92). De acordo com
Ian Hurd, a legitimidade se refere à percepção de um ator de que determinadas instituições,
práticas e normas devem ser obedecidas (1999, P.381). Dessa forma, os usos da legitimidade
na ordem internacional contemporânea são diversos (FALK, 2012, p.17). Dessa forma, a
legitimidade é o princípio que auxilia na sustentação das instituições internacionais, como no
caso do direito internacional (HOLSTI, 2004, p.176). De acordo com Kalevi Holsti, a
legitimidade é a força dos Estados que lhes concedem o direito de governar (2004, p.56). A
legitimidade no processo de construção do Estado reforça o direito de uma nação à auto-
465
determinação, a garantia da sua independência e integridade territorial de um povo
(BUCHANAN, 2007, p.265). Dessa maneira, o princípio da legitimidade reforça as estratégias
de construção dos Estados a se enquadrarem nos princípios da soberania negativa e da
territorialidade. A legitimidade, portanto, perpassa todas as dinâmicas da ordem internacional
contemporânea e é necessária para sua estabilidade.

Dessa forma, a Ordem Internacional contemporânea impacta com suas instituições e pelo
papel das grandes potências na construção do Estado no Terceiro Mundo. Estes impactos vão
desde a implementação das instituições, como a soberania e territorialidade, até a determinação
da agenda internacional e quais demandas são consideradas legítimas nessa ordem.

A partir do século XX, o mapa político mundial passa a adquirir novas fronteiras e estar
divido em vários estados-nação modernos. De acordo com Robert Jackson, o processo de
formação de estados no século XX foi predominantemente normativo, visto que as
descolonizações não dariam lugar à soberania positiva e autogovernos, mas sim ao
reconhecimento internacional baseado no princípio de igualdade entre os estados (1999, p.15).
ISSN: 2525-7501
De acordo com Robert Jackson, os “quase-Estados” possuem estruturas de poder deficientes,
embora sejam formalmente independentes (JACKSON, 1996, p.168). Embora os estados
estivessem no mesmo patamar em termos legais, na prática, as desigualdades e hierarquias no
sistema internacional ainda estavam presentes (JACKSON, 1999, p.18). A soberania negativa
dessa maneira, esconde o fato de que internamente muitos estados tanto em termos de tamanho
e capacidades não conseguem controlar seu território e salvaguardar sua população
(CLAPHAM, 1996, p.11). De fato, a soberania negativa tem sido o mecanismo e argumento de
Estados mais fracos para se protegerem de Estados mais capazes (CLAPHAM, 1996, p.17).

O princípio da territorialidade também se mostra como um dos principais problemas para


a construção dos Estados no Terceiro Mundo. De fato, esse modelo ideal de separação de
fronteiras pode ser problemático em sua prática, por incluir diferentes identidades, às vezes
rivais, dentro de um mesmo território. A exemplo disso, os processos de descolonização no
século XX deu origem a uma série de novos estados, mas cujas fronteiras, sistemas legais e sua
nação não coincidiam (HOLSTI, 2004, p.98). Estes preceitos favoreceram o estado territorial
em detrimento da existência de povos ou nações, pois “centenas de reinvidicações de grupos
minoritários e movimentos separatistas pelo direito de criar seus próprios estados sob o
466
princípio de auto-determinação tem caído em ouvidos surdos pela comunidade
internacional”236. (HOLSTI, 2004, p.100).

A problemática da legitimidade também perpassa os Estados do Terceiro Mundo. De


acordo com Christopher Clapham, quanto mais fraca for a legitimidade interna de um Estado,
maior vai ser sua dependência em relação a apoio externo (1996, p.21). A legitimidade dos
governos de muitos destes Estados podem ser frágeis em decorrência de suas instituições não
serem fortalecidas (1996, p.19-20). Muito da dificuldade de se consolidar a soberania negativa
decorre do desafio de se implantar estruturas políticas legítimas. Por outro lado, o autor
acrescenta que a legitimidade territorial de muitos destes Estados reside mais no
estabelecimento de fronteiras por acordo internacional do que em um sentimento nacional e de
identidade comum de um povo com seu território (1996, p.19).

236
Tradução da autora. No original: “[...] the hundreds of claims of minority groups and secessionist movements
for the right to creat their own states under the norm of self-determination have fallen mostly on deaf ears in the
international community” (HOLSTI, 2004, p.110).
ISSN: 2525-7501

Capitulo II – A identidade nacional palestina: desafios e estratégias na ordem


internacional contemporânea

O moderno sistema de Estados foi introduzido no Oriente Médio com o final da Primeira
Guerra Mundial e o desmembramento do Império Otomano (HALLIDAY, 2005, p.81). Durante
cerca de quatro séculos, uma extensa região que ia do norte africano ao Oriente Médio era
dominada pelos turcos, que apesar de reformas e tentativas de modernização, sucumbiu com as
mudanças trazidas pelo século XX (ANDERSON, 1987, p. 5). Dessa maneira, a introdução e
construção do Estado soberano moderno redesenhou as fronteiras na região, instituiu novas
formas de governo e organização burocrática (ANDERSON, 1987, p.6). De acordo Fred
Halliday, as mudanças ocorridas nesse período tiveram longo impacto na região do Oriente
Médio, sobretudo pela importação do sistema político e econômico europeu e sua combinação
com elementos autóctones (2005, p.76). É dentro deste cenário que surge a Questão da
Palestina.

A região conhecida como Palestina, dominada pelos turco-otomanos, era lar de uma
467
população predominantemente árabe, mas também cristã e judaica. Com o advento do
nacionalismo judaico, o sionismo, durante o século XIX, aumento a migração judaica para a
Palestina, terra sagrada para essa religião, e a demografia da região se alterava aos poucos.

De acordo com Luiz Salgado Neto, durante esse período, pode-se notar que havia uma
identidade local palestina conectada a ideia da terra e do local, embora não em termos de uma
identidade nacional com um projeto político próprio (2010, p.126). Alterações neste cenário
surgiram com o estabelecimento do Mandato britânico na Palestina. Embora a criação do
Mandato só foi legitimada pela Liga das Nações na década de 1920, desde 1916 com o Tratado
de Sykes-Picot, o Reino Unido e a França tinha interesse em dominar a região sendo que os
últimos ficaram com a Síria e o Líbano. O mandato britânico estabeleceu as fronteiras na região
palestina e foi a partir disso que o movimento nacionalista palestino tomou forma (NETO, 2010,
P. 136).

A partir disso, a fundação do Estado de Israel em 1948 teve grande impacto na


identidade nacional palestina uma vez que este momento ficou conhecido como Al-Nakbah, a
ISSN: 2525-7501
grande catástrofe. Isso decorre do fato de que um grande número de palestinos se tornaram
refugiados, dispersos para outros países árabes ou dentro do próprio território israelense
(SA’DI, 2002, p.175-181). A Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da
Palestina (UNRWA), que foi criada em 1950, auxilia até hoje a comunidade refugiada palestina
que já some mais de cinco milhões de pessoas (PAPPE, 2007, p.236).

A longo do século XX e os conflitos entre árabes e israelenses aumentou ainda mais o


número de refugiados e migrantes palestinos, cuja possibilidade de retorno e estabelecimento
em um território está sendo cada vez mais dificultada pela ocupação israelense. Dessa maneira,
pode-se perceber que a identidade nacional palestina, mesmo visando a consolidação territorial
que é um dos princípios da ordem internacional contemporânea, sobrevive na
transnacionalidade.

CONCLUSÃO

Nesse sentido, a Questão da Palestina desde o seu surgimento submetida às dinâmicas


468
da ordem internacional contemporânea. Seu impacto vai além dos desafios de estabelecer uma
soberania interna, consolidar sua soberania externa por meio do reconhecimento internacional
e estabelecer um Estado. A ordem internacional contemporânea impõe desafios para a formação
e manutenção da identidade nacional palestina. O grande número de migrantes e refugiados
palestinos demonstra o desafios imposto pela ordem internacional para a identidade nacional
palestina que adquire sobrevivência em outros locais. A Questão da Palestina constitui um dos
grandes focos de instabilidade no Oriente Médio e é um conflito que se prolonga por décadas.
Embora a pesquisa ainda esteja em andamento, lançar novas visões sobre o conflito permite
perceber novas maneiras de se pensar a paz.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SASSEN, Saskia. Territory, authority, rights: from medieval to global assemblages.


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470
ISSN: 2525-7501
CULTUAR E DIFUNDIR NOSSA HISTÓRIA, NOSSA FORMAÇÃO SOCIAL,
NOSSO FOLCLORE, ENFIM, NOSSA TRADIÇÃO [...]. NOTAS INICIAIS DE UM
ESTUDO DE CASO DO MTG EM ALEGRETE - RS (1954-2008).*237

Luciano Nunes Viçosa de Souza**238

RESUMO

Neste trabalho pretende-se abordar de maneira mais geral a temática do gaúcho e a História do
Rio Grande do Sul, a partir de uma retomada historiográfica de ambos os temas, principalmente
a partir da ocorrida dos anos 1970/1980, tanto em nível nacional quanto aqui no Estado.
Discutindo na sequência a historiografia que se tem produzida sobre o lócus de estudo em
questão, apontando o que se tem os períodos e as problemáticas que envolvem o tema em
questão, assim como as dificuldades para análise. Optou-se como baliza o ano de 1954,
fundação da primeira entidade gauchesca da cidade de Alegrete (RS), e 2008 por ser a última
data que em que foi possível mapear as entidades gauchescas. A partir de um banco de dados
no programa Excel for Windows, se agrupou essas entidades de 10 em 10 anos, e filtrando suas
informações, onde se conseguiu: os nomes das entidades; as datas de fundações; suas filiações
(quando há); seus respectivos lemas e nomes dos sócios fundadores, pessoas importantes na
História da cidade, assim como de membros das atuais gestões e/ou anteriores. Identificou-se
471
89 (oitenta e nove) entidades gauchescas, das quais 67 (sessenta e sete) possuem data de
fundação, 36 (trinta e seis) seus respectivos lemas e, finalmente, cruzando data de
fundação/lemas se chega ao número de 34 entidades. Para finalizar, este trabalho que se
encontra em fase inicial, se faz a análise de um livro intitulado “Enciclopédia Personagens
Tradicionalistas Brasil Sul”, que apresenta uma listagem sobre os Centros de Tradição Gaúcha
(CTGs), os Departamentos de Tradição Gaúcha (DTGs), os Grupos Tradicionalistas (GTs) e os
Piquetes (Pqt.) da cidade, em que se levantam alguns apontamentos e possibilidades de estudos,
sem nunca se perder de vista o cruzamento bibliográfico.

Palavras-chave: Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG); Historiografia; Alegrete.

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Graduando em História, UFSM, luciano_souza94@hotmail.com.
ISSN: 2525-7501
INTRODUÇÃO: Primeiros estudos e momento de ruptura com a ideologia do
gauchismo239

Durante os anos 1970/1980, com a inserção dos cursos de pós-graduação no Estado do


Rio Grande do Sul, tanto no Estado quanto em nível nacional se passou por um momento de
testes e revisões da historiografia até então vigente, a partir de uma maior profissionalização da
prática historiográfica, voltando para a análise empírica, das mais variadas formas. Naquele
contexto, se encontra a retomada do estudo do gaúcho e da própria História do Estado do Rio
Grande do Sul.

A historiografia havia cristalizado uma visão da temática que buscou consolidar um


mito fundador, a partir da interpretação de que no Estado desde sempre, ocorreu uma
democracia, criando o mito da produção sem trabalho,240 a qual buscava negar a realidade
escravista em nosso Estado, demonstrando que essa democracia sui generis desde sempre
esteve presente em nosso Estado e que, portanto, se tivesse havido escravidão, num primeiro
momento, seria impossível pensar esse tipo de trabalho nas estâncias e posteriormente, nas
charqueadas no estado. E quando se trata de regiões nas quais não se pode negar esse tipo de
mão-de-obra, ela teria sido de caráter brando.
472
Mas como sabemos,

a historiografia oficial do Rio Grande do Sul subestimou a presença da mão


de obra negra na área rural, dominada pelas grandes estâncias criadoras de gado, em
formação a partir do século XVII. Essa postura representava uma visão
preconceituosa e ideologizada do Rio Grande do Sul, que começou a ser contestada
nas últimas décadas em estudos de historiadores, sociólogos e antropólogos.
(GIANEZINI, 2014, p. 27).

Acrescentaria ainda, no que diz respeito à historiografia recente, que Gianezini


apresenta e contextualiza, o trabalho organizado pela Regina Célia Lima Xavier no livro

239
Por ideologia entende-se o “conjunto de ideias acerca do mundo e da sociedade, que correspondem a interesses,
aspirações ou ideias de uma classe num contexto social dado, que guia e justifica o comportamento dos homens
de acordo com estes interesses, aspirações ou ideias”. (VÁZQUEZ apud PESAVENTO, 1980, p.61). Os primeiros
estudiosos que se debruçaram ao estudo dessa temática foram o antropólogo Ruben Oliven e o historiador Tau
Golin, trazendo análises de grande fôlego empírico e teórico para a análise da temática, o título do grande trabalho
do último, A ideologia do gauchismo, influenciou este trabalho e o pensar sobre o gauchismo, emprestando o nome
ao subtítulo.
240
Para saber mais a cerca da discussão da criação desse mito e da desconstrução dele, ver FREITAS, 1980.
ISSN: 2525-7501
intitulado História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional em que traz o que há de
mais atual na historiografia sobre a presença e a importância dos negros enquanto povo parte
constitutiva do nosso Estado.

Assim como Luis Augusto Farinatti com sua tese Confins Meridionais: Famílias de
elite e sociedade agrária na fronteira sul do Brasil (1825-1865) e a tese de Jonas Moreira
Vargas Pelas Margens Do Atlântico: um estudo sobre elites locais e regionais no Brasil a partir
das famílias proprietárias de charqueadas em Pelotas, Rio Grande do Sul, que desenvolvem
um trabalho empírico de fôlego, se utilizando das mais variadas abordagens e demonstrando,
por fim, que aquela historiografia que mostrava que a escravidão no Rio Grande do Sul foi
praticamente nula e branda (eles demonstram a partir de análises seriais combinadas com o
método da micro-história italiana e/ou prosopografias) que essas afirmações não se sustentam
quando se vai para a análise de fontes.

2. Capítulo I – A historiografia sul-rio-grandense e o Movimento Tradicionalista


Gaúcho.
Neste capítulo pretende-se desenvolver uma análise da historiografia do estado do Rio 473
Grande do Sul, buscando problematizar o que é o ser gaúcho (ou como nos tornamos), assim
como buscar entender o surgimento e consolidação do Movimento Tradicionalista Gaúcho
(MTG), demonstrando as produções bibliográficas produzidas sobre os temas.

a. “Amamos a tradição, o Rio Grande e o Brasil.”241


Nessa mesma perspectiva de renovação historiográfica para a História do Rio Grande,
ocorreram os mesmos questionamentos para a historicidade de nossa cultura, ou seja, para o ser
gaúcho, e como os trabalhos anteriormente citados demonstram, como outros, o que ocorre é
que

no final do século XIX e início do século XX, surgem diversos discursos a


respeito da “figura do gaúcho” que contribuem com a formação do tradicionalismo.
Ieda Gutfreind (1998, p.148) aponta o período entre os anos de 1920 e 1970 como
sendo aquele que “privilegia a construção do mito do gaúcho brasileiro”. Destarte em
1930, com a ascensão de Getúlio Vargas, surge a necessidade de “construir um novo
gaúcho”, que representasse a imagem de um Rio Grande do Sul brasileiro, forte,

241
Lema do CTG Vaqueanos da Fronteira – Alegrete/RS, fundado em 03 de julho de 1960.
ISSN: 2525-7501
pujante e com líderes capazes de governar uma nação. E esta tarefa coube a
intelectuais e historiadores do Estado, que vão transformar aquele gaúcho histórico,
praticamente um excluído social, em um homem aristocrata, com virtudes civis e
militares (GUTFRIEND apud GIANEZINI, p. 37)

Como bem nos mostra Gianezini apoiada em Ieda Gutfriend, ocorre todo um trabalho
de mudança de mentalidade, ou idéias. Para ser mais preciso, um trabalho ideológico para a
positivação da figura do gaúcho, que durante todo o século XVIII e XIX foi visto como um
vadio, ladrão e desprendido, o qual não possuía laços familiares, tornando-se o exemplo de
homem, de moralidade que é capaz de gerir uma nação por que sempre lutou pela sua gente,
pela sua “nação”. Assim houve todo esse trabalho intelectual de construção da imagem do
gaúcho, que se positiva e que, por mais que o Estado, segundo eles, tenha tido uma formação
sui generis a parte da nação, “nós” optamos por fazermos parte dessa nação, de origem
portuguesa, se afastando mais da história platina e da própria figura do gaucho. 242

Pensarmos na tradição, na nação é problematizar a mentalidade e as idéias do período a


ser discutido. E como Eric Hobsbawn e Terence Ranger apontam para o primeiro, é tradição
inventada, enquanto Benedict Anderson e Anne-Marie Thiesse defendem que a segunda é 474
imaginada. Não concluirmos de forma mecânica, pois a toda uma discussão teórica que envolve
os conceitos se trata da disputa pela memória de uma sociedade, pois memória é poder.

1.2 “Facilitar e cooperar com a evolução e o progresso”.243

Começo esse subitem, a partir deste subtítulo, para demonstrar como o contexto de
surgimento/formação e institucionalização do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG244)
influenciou e influencia em suas práticas até os dias de hoje, como demonstra Pesavento

242
Historiadores como Andrius Estevam Noronha e Antônio Manuel Elíbio Junior escreveram excelentes textos
sobre a temática, onde realizam um mapeamento e historicizam os principais autores do período que produziram
sobre o Rio Grande do Sul. Ver NORONHA, 2008; ELIBIO JUNIOR, 2011.
243
Artigo IV da Carta de Princípios do Movimento Tradicionalista Gaúcho.
244
O MTG se estrutura no Estado a partir de Regiões Tradicionalistas (RT), num total de 30 (trinta), em que são
tirados coordenadores regionais, que terão voz, vez e voto nas assembléias da gestão em exercício do MTG, assim
como fiscalizá-la. Responsáveis por articular e regular o movimento em nível regional esses coordenadores
encaminham, por exemplo, os processos de filiações das entidades ao MTG, em que, geralmente os Centros de
Tradição Gaúcha (CTGs) e Departamentos de Tradição Gaúcha (DTGs) são filiados diretamente ao MTG; os
Grupos Tradicionalistas e os Piquetes são geralmente filiados a um CTG, em função que essa filiação direta ao
MTG tem como um pré-requisito um número bem expressivo de sócios da entidade. Para se associar uma entidade
geralmente, além do pagamento das mensalidades que varia pra cada entidade, ainda há o pagamento da jóia para
ISSN: 2525-7501
A República Velha Gaúcha tinha, pois, nos proprietários de terra, gado e
charqueadas a sua classe dominante, ou seja, aquela que detinha a primazia econômica
dentro do bloco histórico, controlando os meios de produção fundamentais. Os
pecuaristas exerciam a hegemonia no contexto sulino, possuindo a preeminência da
direção ideológica, cultural e também política da sociedade. Neste sentido,
preeminente tanto no plano econômico como no superestrutural, os pecuaristas
convertiam-se na verdadeira classe dirigente da República Velha Gaúcha. [...] Os
partidos políticos constituídos eram de conotação tipicamente oligárquica; apesar de
propor-se a um “desenvolvimento econômico global”, o Estado republicano sulino de
feição positivista e autoritária beneficiava mais a pecuária do que a outro setor.
(PESAVENTO, 1980, p. 65)

Ou seja, a formação educacional, social, cultural que os grandes nomes do


Tradicionalismo anos mais tarde vão ter é de feição positivista, em função dos Governos de
Julio de Castilhos e Borges de Medeiros, os quais colocam essa ideologia em prática em nosso
estado, por exemplo, a partir da Constituição Estadual de 1891 e com o Partido Republicano
Rio-Grandense (PRR).

Os teóricos Pró-MTG245, tendem a buscar as origens do movimento em passados 475


longínquos246, como nos mostra Paixão Cortês que

Na história do Rio Grande do Sul, distintas iniciativas de criação de clubes


sociais e a primeira tentativa de se institucionalizar o “culto à tradição” foi a fundação
do Grêmio Gaúcho, em 1898. No entanto, em 1857, foi fundada a Sociedade Sul Rio-
Grandense no Estado do Rio de Janeiro, com o objetivo de receber todos sul-
riograndenses que se encontravam na corte e que, por qualquer motivo, tinham que
sair de seu estado. Em 1899, foi fundada em Pelotas, a União Gaúcha. Seis dias mais

ser aceito na entidade (que hoje deve estar em torno de cinqüenta reais), o que dificulta e reforça a hierarquia do
movimento. Ressaltando também que os CTGs ganham porque as entidades filiadas devem lhes pagar uma taxa
anual de filiação, e os Patrões de CTGs tem direito a voto na escolha do Coordenador Regional. O DTGs
geralmente são entidade vinculadas também as escolas das cidades, por isso da nomenclatura de ser um
Departamento. GTs e Piquetes a partir dos anos 2000, ganham uma maior autonomia e há um maior número de
fundações. Se tornam, de fato, entidades, pois até então funcionavam como uma extensão dos CTGs em que eram
filiados, tendo como função basilar ser um Departamento Artistico-Cultural ou, principalmente, um Departamento
Campeiro dos CTGs, com datas e eventos pré-determinados para participação e funcionamento. Todos esses níveis
organizativos, possuem gestões de dois anos, em geral.
245
Aqui optei por não trabalhar com as categorias Tradicionalismo e Anti-Tradicionalismo, em função das
imbricações conceituais que os termos levam, e tendo a concordar com Tau Golin sobre a problematização do
tradicional associado ao sufixo ismo, trazendo a ideia de tentativa de pertencimento a um movimento que aparenta
ser linear e impossível de datação histórica na sua origem.
246
FAGUNDES, 1994, 1992; LAMBERTY, 1989.
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tarde foi fundado em Bagé, o Centro Gaúcho. Em 1901, em Santa Maria, foi fundado
o Grêmio Gaúcho. Constam ainda nos arquivos do MTG, a fundação de “sociedades
gauchescas” em São Lourenço, Rio Grande, Uruguaiana, Alegrete, Dom Pedrito e
Livramento (PAIXÃO CORTES apud GIANEZINI, 2014, p.37)

Discordo dessa visão que o Movimento tenha surgido ainda lá no Império, de forma
incipiente. Para nós seria mais um daqueles tantos regionalismos que afloraram durante o
Império, principalmente, como já foi apontado, quando as pessoas precisavam sair de seus
estados para estudar, acabam por criar agremiações para cultuarem suas culturas regionais.
Concordo com Tau Golin que

Historicamente, tratou-se de um dos tantos rebentos singulares do impacto da


modernidade industrial que se universalizou com sua força formatadora. Não foi por
outro motivo que os esquecidos e singelos “Grêmios Gaúchos” da passagem do século
XIX ao XX caducaram em seu tempo de preodminância agropastoril e, depois,
afloraram timidamente na versão do movimento tradicionalista no pós-II Guerra. Na
nova forma, inclui-se na esfera capitalista sem contradições substanciais, pois todos
os seus elementos de hábitos e costumes foram incorporados também como
mercadorias. (GOLIN, 2004, p. 14) 476
Com isso entendemos que Tau Golin explicite, assim como Ruben George Oliven, que
este movimento “desde seu começo, teve caráter urbano e que procurou recuperar os valores
rurais do passado” (OLIVEN, 1992, p.75-76). Porque é movimento dessas elites rurais que
estão indo para as urbes estudarem e que ao se depararem com uma realidade totalmente
diferente das deles, criam uma comunidade própria.

A partir disso, discordo somente de Tau Golin quando coloca que o Movimento teve
duas fases. A partir de nossa análise, essas duas fases são coisas distintas, pois a primeira se
trata de uma elite agrária que detêm todas as formas de “controle” (ideológico, político, estatal)
e quando essa elite entra em crise esse primeiro momento cai, ruindo assim os grêmios e
associações gauchescas. Na segunda fase, é de certa forma uma elite agrária, mas já desconexa
da zona rural e muito mais atrelada a zona urbana, que cresce já sob a influencia do IHGRS que
já traz um saudosismo em relação ao campo e que vai procurar resgatar isso, muito em função
de um período pós guerra, como traz Tau Golin mas, também, que estão saindo da ditadura do
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Estado Novo (1937-1945)247 de caráter nacionalizante, e que possibilita o acesso de outras
classes no Movimento, como nos mostra Pesavento que

Para os demais setores econômicos sociais não-pecuaristas, o grupo positivista


acenava com a meta do “desenvolvimento econômico global”, com o objetivo da
“auto-suficiência econômica”, que devia ser implantado no estado, bem como com a
solução dos transportes, que atenderia a toda a economia estadual. Para as “classes
médias” urbanas, o positivismo cativava com a sua fachada de austeridade,
moralismo, ideal de “sã política, filha da moral e da razão” e, porque não dizer, com
a ampliação do corpo do funcionalismo e da burocracia, oportunizando ascensão
social para camadas urbanas emergentes. (PESAVENTO, 1980, p. 66-67)

E como eram “em sua maioria, filhos de pequenos proprietários rurais de áreas pastoris
de latifúndio, ou de estancieiros em processo de descenso social e que vieram à capital para
estudar” (OLIVEN, 1992, p. 75-76). Citando novamente Gianezini,

O tradicionalismo gaúcho, tal como é reconhecido nos dias de hoje, tem seus
registros iniciais em dois momentos: o primeiro em 1947, quando um grupo de
estudantes do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, criaram o
Departamento de Tradições Gaúchas do Grêmio Estudantil, organizando a primeira
477
Ronda Gaúcha, de 7 a 20 de setembro daquele ano. E o segundo em 1954, com a
realização do I Congresso Tradicionalista, na cidade de Santa Maria, onde os centros
de tradição passaram a se reunir anualmente, incluindo o primeiro Centro de
Tradições Gaúchas urbano, o 35 CTG, fundado em Porto Alegre, em 1948, pelo grupo
de estudantes do Colégio Júlio de Castilhos. Nesses congressos, foram apresentadas
propostas e tomadas decisões sobre questões relacionadas ao tradicionalismo no
Estado (GIANEZINI, 2014, p . 37-38).

O Movimento se fortalece mais ainda com a Carta de Princípios do Movimento


Tradicionalista Gaúcho, em que um dos artigos da nome ao título do subitem, elaborada por
Glaucus Saraiva e aprovada no VIII Congresso Tradicionalista248, em 1961, na cidade de
Taquara, passando a constituir o artigo décimo do Regulamento do MTG, a partir do XI
Convenção Tradicionalista, em 1977, na cidade de Santana do Livramento.

247
Ver KONRAD, 1994.
248
O primeiro Congresso Tradicionalista é de 1954.
ISSN: 2525-7501
3. Capitulo II – “Não me perguntes onde fica o Alegrete, segue o rumo do teu
próprio coração.”249
Com esse verso do “Canto alegretense” entro no foco deste trabalho, destinando esse
capítulo para situar a cidade e para tornar o trabalho mais didático, mas não que o local esteja
desconexo do contexto. Alegrete encontra-se situada na Região da Campanha, no estado do Rio
Grande do Sul, na Fronteira Oeste, próxima ao Uruguai e a Argentina, quase 500 km de
distância da capital do estado, Porto Alegre.

Segundo Gianezini,

Suas origens datam de 1626, provenientes das missões Jesuíticas espanholas,


sendo que as cidades de Alegrete, Uruguaiana, Itaqui e Quaraí pertenciam à missão
de Yapeju. Naquela época, sua sede encontrava-se à margem direita do rio Uruguai,
até 1801, quando os sul-rio-grandenses Borges do Canto e Santos Pedroso,
conquistaram o território para a coroa portuguesa (ALEGRETE, s/d apud
GIANEZINI, 2014, p. 31)

478
Na sequência, se baseando nas informações da Secretaria de Turismo, Esporte e Lazer
da Prefeitura do município, ela demonstra a trajetória da cidade no âmbito político-
administrativo, quando,

Em 1812, foi semeada a primeira povoação, com o intuito de defender a


fronteira brasileira dos constantes ataques uruguaios, mesmo assim, índios e
portugueses, seguidores do general uruguaio José Artigas, invadiram e queimaram o
lugarejo mais conhecido hoje como “Capela Queimada”. Posteriormente, o decreto
regional de 25 de outubro de 1831, elevou Alegrete à categoria de Vila, dando-lhe
autonomia política e demarcando seus limites. Na década de 1840 (mais precisamente
no período de 1842-1845) do século XIX, poucos anos após a sua instalação, foi a
terceira capital da República Sul-rio-grandense ou capital farroupilha como era
usualmente conhecida. E em 22 de janeiro de 1857, foi elevada à categoria de cidade.
(ALEGRETE, s/d apud GIANEZINI, 2014, p .31).

Na sequência Gianezini faz as devidas considerações em relações de se tratar de fontes


oficiais, esta que acaba por omitir os sujeitos históricos, que termina reproduzindo aquele tipo

249
Verso da música “Canto alegretense”, de autoria de Nico Fagundes e Bagre Fagundes, de 1983. Pela força da
canção na cidade, através do próprio Movimento Gaúcho, tornou-se Hino da cidade.
ISSN: 2525-7501
de história oficial dos heróis, demonstrando, em seguida, trabalhos que relativizam aquela
historiografia tradicional discutida acima, que comprovam a existência de escravidão na cidade,
por exemplo.

Mapa 1. Da “evolução” administrativa de Alegrete e do processo de desmembramento de municípios da


cidade desde o século XIX, apresentando a delimitação atual do município na área sombreada.

479
Fonte: Blog O Bairrista de Uruguaiana250.

A partir dessa contextualização do local a ser estudado, começamos a se deparar com


alguns problemas da própria pesquisa a ser desenvolvida.

Ao se pesquisar sobre a cidade há um número considerável de trabalhos produzidos


especificamente sobre o município, mas muitos dos estudos se dedicaram ao século XIX,
focando bastante na questão agrária, na escravidão, estudo de elites, na criminalidade251; no que
se refere ao estudo da República, ou final do século XIX e início do XX, temos na pauta a
questão operária e análise de discurso252, trabalhos que não ultrapassam o período de 1930.

Trabalhos que façam uma análise do MTG de forma mais macro existem muitos, como
os já citados acima, destacando ainda um estudo sobre as prendas no imaginário

250
Disponível em http://obairristadeuruguaiana.blogspot.com.br/2012/07/uruguaiana-origem-da-musica-
canto.html Acessado em 30/06/2016.
251
FARINATTI, 2007; GARCIA, 2010, 2005; MATHEUS, 2012; THOMPSON FLORES, 2012, 2007;
PANIAGUA, 2003; SÔNEGO, 2009;
252
CORRÊA, 2010; DA SILVA, 2010;
ISSN: 2525-7501
tradicionalista253; assim como reconstrução de trajetórias e biografias dos intelectuais do
movimento254.

Apenas um trabalho foi encontrado no sentido de análise da influência do movimento


em um município especifico, voltado para a questão da cultura, trabalhando com a ideia de
trocas culturais ou transculturação, trabalhando com a influência do gauchismo em uma
comunidade italiana255.

CONCLUSÃO

Ao nos encaminharmos para o final deste texto pretendemos apresentar algumas


considerações à titulo de conclusão. O próximo passo, agora, no que concerne as fontes, é
recorrer aos jornais da época e procurar por fotos, mapear autoridades mo movimento local e
ver seus posicionamentos quanto ao contexto a ser verificado.

O único fichamento que se conseguiu realizar foi do livro “Enciclopédia Personagens


Tradicionalistas Brasil Sul”256, que já suscitou alguns questionamentos, fora as análises dos
discursos e idéias presentes nas entidades, a partir dos lemas, por exemplo, sobre a questão das
480
fundações das entidades. A partir do fichamento do livro se conseguiu mapear 89 entidades
gauchescas, das quais se conseguiu identificar 67 entidades com suas respectivas datas de

253
DUTRA, 2002.
254
ZALLA, 2010.
255
CALVI, 2015.
256
Outras questões que se colocam são do tempo da publicação desse livro, e das situações conhecidas na região.
Isto por que muitas dessas entidades podem já se encontrar desativadas, outras só funcionam em datas
comemorativas e há aquelas que se utilizam da mesma estrutura de uma entidade anterior, mas que modificaram
o nome, em virtude de questões internas, principalmente, nos GTs e Piquetes. Por mais que pareça que o livro já
esteja ultrapassado, e assim desatualizado, pois já fazem quase dez anos de sua publicação, há de ponderar que o
MTG, por exemplo, só disponibiliza em seu sítio, uma listagem de entidades a partir das regiões tradicionalistas,
mas que só constam as entidades diretamente filiadas a ela, em geral, CTGs e DTGs, e mais raros os GTs. Ou seja,
não existe uma listagem dos piquetes existentes no Estado, ou no caso, em Alegrete, o que esse livro nos possibilita,
pois as listagens que constam no livro foram fornecidas pelos CTGs, únicos detentores dessas informações de
entidades associadas. Outra coisa que deve ser levada em conta é que, quando esse livro foi pensado e proposto
aos tradicionalistas da cidade, havia uma taxa de pagamento para que as informações das entidades fossem
inseridas nos livros, assim como muito dessas entidades se indicaram pra participar. Assim, pela dificuldade de
mapeamento que já foi citada, é muito provável que existissem ainda mais entidades no período de formulação do
livro as quais acabaram por não serem contidas nessa cartografia (não que essa fosse a intenção do livro, na
realidade a intenção do livro é bem um livro de memórias dessas pessoas, e essas, geralmente, colocam sua gente
lá em cima, em um pedestal).
ISSN: 2525-7501
fundação e 36 com seus lemas. Cruzando ambas as listagens apenas 34 possuem data de
fundação e seus respectivos lemas.

Tabela 1. Nº de entidades fundadas e seus respectivos períodos.

Períodos Nº de entidades fundadas

Década 1951-1960 2
Década 1961-1970 5
Década 1971-1980 2
Década 1981-1990 14
Década 1991-2000 21
2001-2008 23
Total 67

Fonte: Tabela produzida a partir das informações contidas no livro citado acima.

A partir dessa tentativa de quantificar os dados obtidos a primeira conclusão a que se


chega é que o trabalho a ser desenvolvido não conseguirá se apoiar na análise serial, mas um 481
caminho, talvez, a ser percorrido, seja a micro-história ou trajetórias, se aproveitando de
algumas biografias, onde se poderá desenvolver algumas temáticas, havendo ainda uma maior
necessidade no aprofundamento da literatura produzida pelos próprios integrantes e/ou
ideólogos do movimento, assim como da historiografia. Abaixo , as propostas possíveis para
aprofundamento:

Proposta 1: realizar uma análise/contraponto dos ideólogos do MTG com seus


debatedores, como, por exemplo Antonio Augusto Fagundes e Tau Golin, respectivamente.

Proposta 2: aprofundar os estudos sobre a cidade no período anterior a sua constituição,


enquanto tal e enquanto missão jesuítica espanhola.

Proposta 3: para aprofundar o trabalho, ainda é necessário um estudo mais detalhado


dos livros produzidos por memorialistas sobre o Município.

Proposta 4: como se visualiza na tabela, estudar em primeiro momento o processo de


formação das entidades tradicionalistas em Alegrete, a partir da década de 1950, mais
ISSN: 2525-7501
especificamente 1954, com a fundação da primeira entidade tradicionalista da cidade, o Centro
Farroupilha de Tradições Gaúchas (CFTG), mais conhecido como CTG Farroupilha, sendo que
até o início da Ditadura Civil-Militar, 1964, só vão ser fundados mais duas entidades. Durante
esse período, na cidade, ocorrerá à fundação de mais 07 (sete) CTGs e 01 (um) GT, filiado
diretamente ao MTG; mais 01 (um) GT, mas filiado a um CTG; 03 (três) Piquetes. Se
chegarmos a 1989 mais 2 (dois) sendo fundados. Durante os anos 1990, serão fundadas mais
53 entidades (sendo 28 Piquetes, 18 GTs e 4 DTGs).

Objetiva-se realizar, ainda, um mapeamento das entidades após 2008, a fim de ver essa
questão de fundação de novas entidades gauchescas; entender esses processos de fundação nos
seus contextos, e como, por exemplo, o as entidades tradicionalistas irão se articular com a
Ditadura Civil-Militar e como se deu esse processo de apoio e/ou resistência. Entender esse
boom dos anos 1990 (principalmente dos Piquetes), relacionados a esse contexto neoliberal, e
tendo como hipótese se esse não seria um período que ocorrerá uma maior mercantilização da
cultura gauchesca (sendo através das entidades ou difusão cultural, como as invernadas de
dança) baseadas nessa liberdade do indivíduo em que o Estado não pode intervir, onde e quando
alguém quiser, pode fundar uma entidade para benefício próprio. Será que os CTGs caíram em
482
descrédito na redemocratização? Se sim, por quê? Porque que com o entrar dos anos 2000, os
Piquetes passaram a reivindicar maior visibilidade e espaço de tanto de atuação quanto de
representação dos movimentos, já que estes hoje são os grandes responsáveis pela manutenção
e existência de muitos CTGs, e estes cobram algumas contrapartidas dos Piquetes para
filiações? Qual o motivo que levou e que acabou sendo necessária a criação de um Sarau de
Prendas dos Piquetes e Grupos Tradicionalistas da cidade? São perguntas e indagações que
ainda precisam de um estudo empírico mais aprofundado, para quem sabe respondê-las.

Proposta 5: Trabalhar com uma perspectiva de mapear quem são essas pessoas, através
de uma história demográfica, buscando saber, etnia, gênero, classe, assim como da distribuição
dos CTGs na cidade e no campo, buscando entender essas relações do movimento com o urbano
e o rural, em função do próprio tamanho do município.

Concluímos assim, que ainda há muito que fazer, no que se refere à História, e esses
propostas ainda podem ter mais desmembramentos que podem vir a ajudar a compreender
processos que desaparecem nessas tentativas de interpretação do MTG em um contexto mais
ISSN: 2525-7501
macro, acabando por generalizar todo o processo de difusão do mesmo, e estudos mais locais
podem contribuir nesse sentido de mostrar e testar essa idéias mais gerais. Há ainda muito que
fazer no que concerne à produção do conhecimento histórico.

O não aprofundamento de alguns temas aqui se deve a já extensa literatura sobre os


mesmos, pois procurou-se, após a explanação inicial, se voltar para uma análise mais local, mas
não desconexa do macro. Assim após uma maior empiria deve-se testar as teses mais gerais e
ver o que se aplica à realidade alegretense ou não. Estudos mais monográficos sobre a temática
são de fundamental importância para uma maior verificação sobre a teorização já realizada até
então sobre as temáticas.

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486
ISSN: 2525-7501
HOMOEROTISMO NO PRINCIPADO ROMANO: REPRESENTAÇÕES SÁTITICAS
NOS POEMAS DE JUVENAL (SÉCULO I D.C.)
Henrique Hamester Pause**

RESUMO

Trabalhar com o conceito de homoerotismo no contexto do Principado Romano é trabalhar


questões complexas do horizonte da cultura latina. Diante disso, este trabalho tem como
objetivo analisar as obras de Décimo Júnio Juvenal, poeta romano do século I d.C., a fim de
compreender as representações do homoerotismo entre homens. Os poemas de Juvenal, escritos
em forma de sátiras, tinham como objetivo atacar a corrupção dos costumes da época,
denunciando-os e levando o leitor à crítica, ou seja, funcionavam como meio propagador de
moral. Este gênero da poesia, defendido pelo próprio Juvenal como a forma que melhor
retratava sua sociedade (Sátira I), no caso do homerotismo, atacava a hipocrisia e a dita
decadência moral da aristocracia romana pelos comportamentos afeminados dos homens. A
Sátira IX, por exemplo, possibilita um campo fértil para interpretações sobre as práticas de
desejo e amor entre homens, pois nela temos importantes cenas homoeróticas. Nessa sátira a
“persona” satírica dialoga como o cliens Névola sobre suas reclamações contra o patrono Virrão
referentes ao não pagamento e a falta de atenção e carinho por seus afetos e serviços sexuais.
Assim, a sátira em questão denuncia a inversão do Vir romano – cidadão romano (varão) – na
posição de agente “passivo” numa relação sexual. Visamos, desta forma, perceber como os 487
grupos aristocráticos da cidade de Roma, pensavam as relações sexuais e afetivas entre homens
e as categorias de gênero relacionadas ao status social e ao poder. Os poemas de Juvenal serão
analisados à luz dos métodos e conceitos da Nova História Cultural, que relaciona aspectos
culturais com o poder e ordenamento social, em especial nos utilizaremos do conceito de
representação de Roger Chartier e o conceito de gênero de Joan Scott. Neste sentido, estamos
concebendo que as representações eróticas, sexuais e de categorias de gênero também faziam
parte da ordem social romana.

Palavras-chave: Homoerotismo; Juvenal; Sátiras.

INTRODUÇÃO


Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
Pesquisa vinculada ao projeto “Fronteiras Culturais na Busca por Antiguidades Plurais: Gênero, “Sexualidades”,
Magia e Identidades”, sob coordenação e orientação da Profa. Dra. Semíramis Corsi Silva (Departamento de
História da UFSM).
* *
Graduando do Curso de História pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Membro do Grupo
de Estudos sobre o Mundo Antigo Mediterrânico da UFSM - GEMAM/UFSM. E-mail:
henriquepause@hotmail.com
ISSN: 2525-7501
Desde o século XIX diversos escritores, como literatos, psicanalistas e historiadores,
buscaram escrever e também compreender sobre o universo das relações sexuais entre homens
na Antiguidade Clássica. Como observa Jean-Paul Thuillier (2013), as reflexões sobre a
sexualidade entre homens na Antiguidade grega e na Antiguidade romana sempre foram muito
problemáticas, pois, como acreditamos, estiveram, e ainda estão em muitos casos, marcadas
por olhares e juízos de valor contemporâneos. É preciso, dessa maneira, desligar-se de padrões
atuais para poder compreender historicamente as representações e as práticas sexuais antigas,
especialmente no que tange às relações afetivas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Assim,
ao escolher tal temática para estudo é preciso, primeiramente, trabalhar com conceitos
diferentes dos que atualmente costumamos usar para definir as práticas sexuais e afetivas entre
iguais.

Neste sentido, um primeiro termo a ser definido é o conceito de homoerotismo, termo


que tem sido utilizado por pesquisadores que trabalham com a Antiguidade Clássica para
substituir as palavras "homossexualidade" e "homossexuais". Sobre o uso deste conceito
podemos nos remeter ao que apresenta Michel Foucault, um dos primeiros estudiosos a
problematizarem as relações afetivas e sexuais entre homens na Antiguidade Clássica conforme
488
suas próprias regras e padrões, embora Foucault tenha se voltado para tais contextos a fim de
melhor compreender a criação de um discurso normativo sobre a sexualidade durante o século
XIX.

Segundo Foucault (1999), desde o século XIX, o que ele chama de campo discursivo
vem tentando interpretar e organizar o ser humano dentro de padrões a partir de suas
experiências, comportamentos e identidades, os resumindo a discursos ideológicos. O referido
campo discursivo criou, desta forma, duas esferas de identidade dentro da modernidade, o
heterossexual e o homossexual. Seguindo as observações de Foucault, para Jurandir Freire
Costa:

Teoricamente, como procuro mostrar, homoerotismo é preferível a


“homossexualidade” ou “heterossexualidade” porque tais palavras remetem
quem as emprega ao vocabulário do século XIX, que deu origem à idéia do
“homossexual”. Isto significa, em breves palavras, que toda vez que as
empregamos, continuamos pensando, falando e agindo emocionalmente
inspirados na crença de que existem uma sexualidade e um tipo humanos
“homossexuais”, independentemente do hábito linguístico que os criou.
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Eticamente, sugiro que persistir utilizando tais noções significa manter
costumes morais prisioneiros do sistema de nominação preconceituoso que
qualifica certos sujeitos como moralmente inferiores pelo fato de
apresentarem inclinações eróticas por outros do mesmo sexo biológico.
(COSTA,1992, p.11).

Portanto, o uso dos termos homoerótico e homoerotismo torna-se mais adequado para
explorarmos um horizonte amplo e complexo de subjetividades que recobre temporalidades
anteriores ao século XIX (SANTOS, 2009). Ou seja, permite-nos observar e estudar práticas de
desejo e comportamentos humanos dentro de suas próprias significações, desvinculando, desta
forma, da criação de uma identidade ao homem que mantinha relações sexuais e/ou afetivas
com outros homens enquanto homossexual, por exemplo, o que de fato não existia nos mundos
grego e romano da Antiguidade.

A fim de compreender as representações do homoerotismo entre homens usaremos o


conjunto de poemas de Juvenal, intitulado Sátiras, que consta de dezesseis poemas que, aqui,
cabe mencionar, estão todos traduzidos do latim para o português e do latim para o espanhol
(em edição bilíngue) em edições que citamos na bibliografia. Nos poemas satíricos de Décimo
Júnio Juvenal estão contidos importantes cenas das práticas homoeróticas. Além disso, o poeta 489
viveu na efervescente e tumultuada Roma do século I d.C., no contexto do chamado Principado
Romano. Este autor, portanto, tinha uma visão sobre o cotidiano da cidade onde essas práticas
de desejo e amor entre homens ocorriam com grande frequência.

O contexto histórico que o poeta viveu foi um importante período de formação e


construção de valores morais, éticos e identitários do Império Romano, ou seja, de ordenamento
do que seria o Império conquistado pelos romanos, que englobava diversos tipos de povos e
culturas diferentes. Sendo assim, analisar a temática do homoerotismo nesses poemas é uma
oportunidade de compreender como os romanos criaram regras morais e identitárias que, assim
como as regras militares e políticas, também foram úteis para o ordenamento e identidade do
Império.

Os poemas serão analisados à luz dos métodos, técnicas e conceitos da Nova História
Cultural (NHC), que relaciona aspectos culturais com aspectos de poder e ordenamento social.
Observamos que os elementos trazidos nos poemas sobre gênero e homoerotismo são
representações da realidade feita pelo seu autor, são reflexões que, como acreditamos, partem
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do real, mas o real compreendido pelo escritor, sob sua ótica e anseios. A formulação que
compreendemos aqui como representações, segue a ideia proposta pelo historiador Roger
Chartier (1988), um dos pilares da NHC, sendo, para ele, a representação uma espécie de mapa
mental no qual o autor/produtor do documento organiza a realidade. Cabe ao historiador
desconstruir o discurso destas obras por meio da análise da compreensão de mundo do autor,
analisando seus anseios nas representações, ou seja, compreendendo essas representações no
campo do poder e da ordem social. São, assim, lutas de representações. De acordo com
Semíramis Corsi Silva (2014, p.), Chartier vê as representações como “apreensões de mundo
particulares que nos fornecem informações sobre os grupos sociais, pois, visando a estabelecer
uma comunicação social, os indivíduos classificam, ordenam e hierarquizam a sociedade a sua
volta.” Assim, quando Juvenal representa o homoerotismo de determinada forma, está
ordenando o que é certo e o que é errado nesta sociedade e, ao mesmo tempo, o que é próprio
de homens e o que é próprio de mulheres conforme sua visão de mundo, sua inserção social e
a lógica de seu grupo social.

Diante disso, também utilizaremos o conceito de gênero de Joan Scott, para, nesse
sentido, conceber como as representações eróticas, sexuais e de categorias de gênero também
490
faziam parte da ordem social romana.

Capítulo I - “Roma como Sátira”: as transformações da República para o


Principado Romano

O período, ou melhor, o contexto de nossas fontes e poemas, é o Império Romano,


entendido aqui dentro do arco cronológico do século I d.C., ou seja, o chamado Principado
Romano, período anterior a oficialização do cristianismo.

Essa “fase” da tradicional separação da história romana, entre Monarquia, República e


Império tem início, como nos apresenta Norma Musco Mendes (2006, p. 22) “com o
crescimento do Império Romano durante o período republicano que, gradualmente, faz Roma
se transformar numa cosmópolis, ultrapassando os limites institucionais e espaciais
característicos das cidades-Estado clássicas, principalmente, diante da prática de concessão da
cidadania romana.” Entendemos, portanto, e concordando com a autora supracitada, o fim do
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período republicano como um processo que se iniciou com a morte dos irmãos Graco (133/121
a.C.) cuja reformas são o primeiro marco visível das forças, já em andamento, da desagregação
do sistema republicano. As obras de Juvenal do período do Principado seguirão uma tendência,
no entanto, herdade da autores do contexto do final do período republicano, ente eles
destacamos os historiadores Políbio, Salústio e Tito Lívio e o orador Cícero, que, nas
observações de Mendes (2006, p. 24):

[...] associa as crises políticas da República com as mudanças


dos costumes e a corrupção dos mores. Tais afirmações devem
ser entendidas como explicações totalizantes na medida em que
para os romanos o termo mores engloba a politica, religião, a
vida familiar, moralidade pública e privada.

Podemos citar, nesta mesma linha de ataques aos costumes como forma de perceber
uma mudança na sociedade romana devido às expansões territoriais, os poemas de Horácio
(SILVA, 2003).

Ou seja, “a expansão do império, o aumento do fluxo de dinheiro e do luxo, a influência


da cultura helenística e a mudanças no estatuto do casamento, por exemplo, estariam entre as
491
causas da desmoralização dos costumes romanos no final da República e início do
Império.”(FEITOSA; SILVA, 2009, p. 216).

Uma historiografia mais contemporânea, inclusive, considera esse momento de


transição da República para o Principado não só um momento de “revolução” econômica, social
e política, mas também como um momento de revolução cultural que é consagrado em 31 a. C.
na batalha de Ácio257, como apresenta o historiador Andrew Wallace-Hadrill (1997).

O Principado, enquanto modelo político, fundado por Otávio Augusto, após a morte de
Júlio César se dá na construção de um novo sistema politico, fora do antigo sistema republicano,
porém em torno das práticas de poder já existentes, ao redor da figura do princeps, mas
mantendo as elites como sua base material e as ideias da res publica ampliadas para o conceito
de Imperium, numa tentativa de afastar os abusos do tempo das guerras civis (MENDES, 2006).

257
Teve lugar perto de Áccio na Grécia, durante a guerra civil romana entre Marco Antônio e Otaviano. A
frota de Otaviano era comandada por Marco Vispsânio Agripa e a de António apoiada pelos barcos de guerra da
rainha Cleópatra do Egito. O resultado foi uma vitória decisiva de Otaviano, que findou a oposição ao seu poderio
crescente. Esta data é por isso usada para marcar o fim da República e início do Império Romano.
ISSN: 2525-7501
Unindo o comando militar, o poder de tribuno e o pontificado, Otávio passa a ter
máxima soberania sobre o Império. Renegou o Senado a condições inferiores nas decisões
políticas e econômicas que, repercutiu para a redução e praticamente anulação das Assembleias
eleitorais e a redução da participação popular. Resumindo, a participação legislativa do povo
foi extinta. Inicia-se, portanto, em síntese, um período de governo de um só, apoiado pela
prática do gabinete governamental que empregava senadores e militares, garantindo seu apoio
e estendendo o controle por todo o Império.

Porém, muito mais que todas as medidas políticas e econômicas reformuladas por essas
mudanças no imperium temos a formação, dentro do âmbito do discurso e da representação, a
divulgação de uma nova mentalidade, de um “novo tempo”, de uma Roma predestinada, sob
tutela do princeps, não havendo uma clara demarcação entre o fim da República e o começo do
Império, mantendo uma certa noção de continuidade política e institucional, percebida na
permanência do Senado e certa revitalização em postos políticos e religiosos antes desativados.
A característica geral que vai reger a sociedade, desde a relação Imperador e povo, no âmbito
familiar será o Patronato, junto aos novos discursos de moralidade/costumes/prazeres
propagados pelos e para os cidadãos romanos.
492
São essas relações, de poder e de discurso, que Décimo Junio Juvenal será um dos
propagadores através de suas Sátiras.

Juvenal nasceu entre 60 e 70 d.C. em Aquinio, atual Itália. Existem muitas histórias
sobre a sua vida, porém, a mais aceita é que foi declamador e professor de retórica até os 40
anos, pra depois começar sua atividade literária, exercida entre 92 e 128 d.C., nos reinados dos
imperadores Trajano e Adriano. Pobre que enriqueceu em Roma, graças a um pai adotivo ex-
escravo que enriquece e lhe deixa sua herança, foi, possivelmente discípulo de Quintiliano.258

258
Foi um orador e professor de retórica romana. Nascido em Calagurris (Espanha), em 35 a.C. Estudou em
Roma, onde primeiro exerceu a atividade de advogado. Tornou-se conhecido por ter sido professor de retórica e
teve como alunos várias personalidades romanas, dentre as quais o orador romano Plínio, o Jovem.
ISSN: 2525-7501
Foi também Tribuno militar da 1º Coorte da Dalmácia e sacerdote de Vespasiano. Publicou
suas Sátiras na época de Adriano.

De seu corpus documental, totalizou cinco livros e dezesseis poemas nos quais ataca
os vícios, os abusos e o que considera desajustes da vida cotidiana romana, sempre com um
humor irônico e expressões impiedosas. Tem ódio aos ricos e uma severa condenação ao sexo
feminino. Juvenal consegue demostrar bem, que apesar dos esforços de propagação de um
discurso patriarcal e moral iniciado por Augusto no Principado, Roma continuava em desvio
da mores.

Em relação ao gênero de seus poemas, os escritos em forma de sátiras tinham como


principal pretensão atacar a corrupção dos costumes da época, denunciando-os e levando o
leitor à crítica, ou seja, funcionava como meio propagador de moral. Este gênero da poesia,
defendido pelo próprio Juvenal como a forma que melhor retratava sua sociedade (Sátira I),
atacava a hipocrisia e a dita decadência moral da aristocracia romana. Dentro dessas críticas,
segundo Juvenal, Roma passava por um momento de “reatividade” à introdução de costumes
estrangeiros e aos modos afeminados dos homens. A Sátira II e a Sátira IX, por exemplo, 493
possibilitam um campo fértil para interpretações do que seria, segundo o pensamento do autor,
os motivos para a falta de moral, dentre esta falta de moral estavam as práticas de desejo e amor
entre homens. Em especial na Sátira IX, vemos importantes cenas das práticas homoeróticas,
percebendo como essas cenas estão inseridas dentro do contexto romano do Principado, quais
são suas repercussão e como dialogam com as relações de poder e status social dentro do âmbito
publico e privado, ou seja, como dialogam com o âmbito da ordemtanb social ao mostrar o que
para o autor era uma desordem, passível de crítica já que estava ambientada no meio
aristocrático masculino da cidade de Roma.

Portanto, pela análise das Sátiras de Juvenal vemos a capital cosmopolitana desse
grande império como uma grande sátira, ou melhor, como passível de grandes sátiras. A cidade
que havia se tornado a maior capital do mundo antigo, atraindo estrangeiros e diversos
costumes, atraia também, aos olhos dos poemas, uma decadência moral digna de riso e escárnio.
Mas a cidade devia ser o modelo para o Império, precisava se moralizar e é rindo que Juvenal
pretende ganhar representar o que é necessário de mudanças. A seguir apresentaremos um
pouco desta temática no que tange às práticas homoeróticas.
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Capítulo II – A crítica de Juvenal na Sátira IX

A Sátira IX, encontrada no Livro III, conta com cento e cinquenta versos nos quais o
autor irá criticar três coisas para ele consideradas como vícios: o sexo, o dinheiro e os
estrangeiros. Estes três vícios, em nossa leitura, são elementos que aos olhos do poeta Juvenal,
foram trazidos para a cidade de Roma com as expansões e com a “revolução cultural” que
caracterizam a transição da República para o Império.

Nesta sátira, Juvenal usa da “Persona satírica”, tratada aqui como sujeito-satírico, para
estabelecer um diálogo entre ele e um puer ativo chamado Névolo. Puer pode ser considerado
aqui como tanto como o jovem que exerce a função de passivo na relação, como de escravos.
Ainda neste diálogo Juvenal insere um terceiro elemento que será o cidadão romano Virrão,
patrão do puer Névolo.

Névolo é representado logo no começo, quando sujeito-satírico questiona o ânimo e a


aparência física do puer que, nos dá a entender, estava diferente e passava por cuidados de uma
pessoa alegre e avarenta.
494
Scire uelim quare totiens mihi, Naeuole, tristis
occurras, fronte obducta ceu Marsya uictus.
Quid tibi, cum uultu, qualem deprensus habebat
Rauola, dum Rhodopes uda terit inguina barba?
Nos colaphum incutimus lambenti crustula seruo.
Non erit hac facie miserabilior Crepereius

Quisera eu saber, ó Névolo, porque tu te


aproximas, triste, de mim tantas vezes, com a fronte franzida assim como
Mársias, vencido. O que há contigo com este semblante, tal qual o possuía
Ravola quando surpreendido, enquanto esfregava as virilhas de Ródope com
a barba úmida? Damos uma bofetada no servo que lambe o doce.
Não será mais miserável do que esta face a de
Crepereio Polião
(JUVENAL, Sátiras, Sátira IX, 1-6).
ISSN: 2525-7501
O sujeito-satírico apresenta-nos que Névolo passou por uma mudança drástica de vida.
É ai, então que o puer começa seu verdadeiro desabafo contra o patrão Virrão. Sua principal
reclamação é sua atual condição de vida. Sem receber o dinheiro correto de seu pagamento
pelos favores sexuais realizados ao seu patrão, ele o acusa de ser um mesquinho e ingrato por
tudo que já havia feito para lhe agradar até mesmo para salvar pele de seu senhor. Mesmo
gabando-se do patrão possuir um grande membro viril, acusa-o de não ser o ativo da relação e
de que, apesar de ser rico, não o pagar em dia e nem agradá-lo com presentes, reclamando que
seus esforços para agradar seu patrão são injustos e até desagradáveis.

Vtile et hoc multis uitae genus, at mihi nullum inde operae pretium. Pingues
aliquando lacernas, munimenta togae, duri crassique coloris et male
percussas textoris pectine Galli accipimus, tenue argentum uenaeque
secundae. Fata regunt homines fatum est et partibus illis quas sinus abscondit.
Nam si tibi sidera cessant, nil faciet longi mensura incognita nerui, quamuis
te nudum spumanti Virro labello uiderit et blandae adsidue densaeque
tabellae [sollicitent].

Este gênero de vida é útil para muitos, mas daí meu trabalho não tem nenhum
prêmio. Algumas vezes, recebo as capas espessas, proteção da toga, de cor 495
lamacenta e desagradável e mal tocadas por um pente de um tecelão gaulês, e
pequena prata de mineral de segunda qualidade. O destino rege os homens e
àquelas partes, que parte da roupa esconde, há destino. Pois se os astros
desistem de ti, nada fará a medida ignorada do teu longo membro, ainda que
Virrão com o lábio espumante tenha-te visto nu e que assiduamente solicitem
cartinhas meigas e profundas (JUVENAL, Sátiras, Sátira IX, 27-36).

No verso trinta e oito, o próprio puer explica que não há nada mais vergonho do que ser
efeminado e avarento, mas que se condicionava a essa situação pelo dinheiro em troca de seus
favores.

Como indica Cinthya Sousa Machado (2015, p. 37): “É digno de nota que a persona
satírica censura os vícios de Névolo quanto ao dinheiro, já que este se prostitui para se manter,
e de Virrão, quanto ao sexo, por ser passivo; e Névolo, por sua vez, crítica a avareza de seu
amante.”

Ou seja, Juvenal usa do sujeito-satírico para fazer a crítica aos dois principais vícios da
época, o sexo por dinheiro, que desmerecia o homem o colocando em situação até mesmo contra
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as leis romanas e a passividade na relação sexual, que ia contra a ideia do vir romano, palavra
que remete a vitus, que é entendido como padrões de comportamento dos cidadãos romanos,
entendido aqui, não só como padrões sociais e comportamentais do homem em sociedade, mas
no próprio âmbito sexual (THULLIER, J. P. 2013). Assim, pelo que percebemos aqui, o
comportamento sexual dos romanos denota claramente as relações de poder da própria
organização social romana: a ideia da penetração é tida como a “atividade” e o ser penetrado é
tido como aquele que tem a “passividade”. São ditadas, desta forma, as regras gerais na questão
da virilidade e do domínio. Ser ativo é coisa do cidadão, do vir/viril/virtuoso e ser passivo é
coisa de inferiores.

O fato de um homem livre romano não poder exercer a função passiva em uma relação
sexual emitia um valor social sobre ele. Em Roma, sexo tinha a ver com dominação, com poder,
logo ser dominado não era aceito, a não ser que fossem escravos, libertos, estrangeiros ou
mulheres. Um cidadão romano só poderia ser agente (ativo), não submetido (passivo). Em
complemento, usando as palavras de Pierre Grimal (1991, p. 119):

[...] o homem podia contrair “essa mácula de sangue” – quando renunciava à


sua função viril e, como mulher, submetia-se ao desejo de outro homem. Isso
496
levanta todo o problema da pederastia. Quanto a ela, a moral romana era
severa, diferentemente dos costumes gregos.

Entendida a complexidade da relação homoerótica entre homens no contexto romano e


suas configurações nas relações de poder, percebemos então que Juvenal usa desta Sátira não
para criticar a relação homoerótica em si, mas a função passiva exercida pelo cidadão romano
no ato sexual.

Seguindo a sátira, Névolo continua a revelar o quanto seu senhor lhe deve:

Verum ut dissimules, ut mittas cetera, quanto meritis pretio, quod ni tibi


deditus essem deuotusque cliens, uxor tua uirgo maneret? Scis certe quibus
ista modis, quam saepe rogaris et quae pollicitus. Fugientem saepe puellam
amplexu rapui; tabulas quoque ruperat et iam signabat; tota uix hoc ego nocte
redemi te plorante foris; testis mihi lectulus et tu, ad quem peruenit lecti sonus
et dominae uox. Instabile ac dirimi coeptum et iam paene solutum coniugium
in multis domibus seruauit adulter. (70- 80)
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Que tu dissimules na verdade, que envies vários outros, quanto valor aos meus
méritos, porque se não tivesse me dedicado a ti eu, cliente devoto, tua esposa
permaneceria virgem? Tu sabes certamente essas más coisas com que modos,
quão frequentemente é pedido por ti e o que foi prometido por ti. Muitas
vezes, arrebatei com abraços a menina esgueirando-se; também tinha
quebrado as mesas e já a marcava apenas durante toda uma noite a
recompensei, e tu chorando lá fora; meu leito é testemunha e tu, para quem o
som da cama e a voz da “domina” alcançam. O adúltero salvou, em muitas
casas, uma união instável e começada a se desfazer e já quase desunida. Para
onde te voltarás? (JUVENAL, Sátiras, Sátira IX, 70-80).

É a partir do verso setenta que Névolo:

[...] deixa claro que são dele os filhos da domina e, se o efeminado passa-se
por uir, este mérito também é do puer. Além de afastar os boatos sobre a
passividade sexual de Virrão, o adúltero também favorece financeiramente o
amante, uma vez que, devido à lei de Augusto, os bens de sucessão só eram
concedidos aos herdeiros que possuíssem filhos. Assim, são três os préstimos
do amante: satisfazer o efeminado; salvar o casamento dele e manter a herança
dele. Também nesta sequência, há uma gradação crescente de favores
prestados (MACHADO, 2015, p. 38).
497

Mas, mesmo com os avisos e críticas do sujeito-satírico, que repreende Névolo (Sátira
IX, 95 e 118), este está mais preocupado com a retomada de sua vida, ou que seu patrão o pague.

Portanto, a questão da relação sexual, em nossa leitura, não parece ser um problema
para o puer, na visão de Juvenal, já que Névolo pouco se importa com isso, sua preocupação
está mesmo no dinheiro que quer receber. A crítica do poeta em relação a Névolo recai somente
em relação a ele se prostituir para se manter, mas não ao comportamento sexual em si. O
comportamento sexual, desta forma, recai como crítica ao aristocrata romano, quem deve tomar
sua posição de ativo na sociedade e no ato sexual.

CONCLUSÃO

Concluímos que a Sátira IX de Juvenal, assim como alguns outros escritos


contemporâneos a ele, como o Satyricon de Petrônio e os Epigramas de Marcial, por exemplo,
ISSN: 2525-7501
podem servir como lentes, com suas devidas ressalvas e sob métodos de análise, para
percebermos como as relações e papéis culturais de gênero trazem-nos as relações próprias de
poder, tão bem elucidas por teóricos como Joan Scott e Michel Foucault. Tais relações faziam,
portanto, parte da sociedade e do cotidiano romano, pois ao fazer o papel de passivo na relação,
o aristocrata Virão se coloca na situação de tipos considerados em tal cultura como inferiores:
escravos, libertos, estrangeiros e mulheres. Assim, o poder não está apenas nas instituições
administrativas e políticas, mas no próprio corpo e nas corporalidades, nos trejeitos e
performances e na ordenação dos papeis de gêneros.

Na sátira analisada temos invertidas inúmeras regras e normas sociais. Compreender


tais inversões é também perceber a sociedade romana para além das regras e dos modelos
normativos, percebendo que por trás da leitura moralizante dos poetas estão os desvios que
podem, talvez, terem sido muito mais comuns do que nossa historiografia consegue, devido à
natureza das fontes, analisar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
498
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500
ISSN: 2525-7501

“MAS A PALAVRA DE DEUS NÃO ESTÁ ALGEMADA”: A IMPORTÂNCIA DA


ORALIDADE NA DIFUSÃO DO CRISTIANISMO PRIMITIVO*259

Débora Faccin**260

RESUMO

Mesmo com a introdução da escrita no século VII a.C na Grécia, a tradição oral continuou
sendo um dos principais instrumentos de manutenção da cultura politeísta. Assim como a
oralidade foi essencial para que os poemas épicos tomassem parte da formação do imaginário
religioso grego, ela também foi pilar da construção e da disseminação da tradição cristã na
comunidade romana do século I que, em sua maioria, era iletrada. A pregação de Jesus e a
continuidade do seu movimento após a sua morte se deram, predominantemente, de forma oral,
inclusive depois da escrita do Evangelho, devido às características tanto de cunho íntimo quanto
público que a oralidade permite. Dessa forma, este trabalho objetiva analisar a importância da

501
transmissão oral da ideologia cristã nas comunidades romanas do primeiro século, bem como
sua influência e utilização como instrumento do processo de cristianização das mesmas. Para
tanto, serão utilizados os conceitos de oralidade de Walter Jackson Ong e Paul Zumthor, além
de bibliografias auxiliares para que seja possível uma análise contextualizada e crítica das
passagens do Novo Testamento, dentro das possibilidades da Nova História Cultural.

Palavras-chave: Oralidade; Novo Testamento; Difusão do cristianismo.

INTRODUÇÃO

Para os gregos, o sagrado estava presente de forma intrínseca no cotidiano, como uma
ordem coletiva. Ele regia a polis e todos os elementos que fundamentavam as relações entre
seus membros. Grande parte dessa construção cultural se deu pela oralidade que foi estrutural

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Graduanda na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), bolsista PIBID e membro do Grupo de Estudos
sobre o Mundo Antigo Mediterrânico (GEMAM). Email: de.faccin@hotmail.com.
.
ISSN: 2525-7501
na manutenção dos valores sociais, mesmo após a introdução da escrita, em VII a.C. Na cultura
helênica se destaca, dentro da oralidade, a poesia épica. (SANTOS, 2010)

Os poemas cantados ocupavam lugar ímpar na vida social da Grécia. Acompanhados


ou não de instrumentos, eram cantados por aedos ou rapsodos em locais públicos como
banquetes, concursos, jogos ou festas. Mantinham uma memória para aquela sociedade,
promovendo a conservação e a comunicação do saber, bem como dos relatos míticos sobre suas
divindades, fundamentando uma cultura comum, um imaginário religioso. Sandra Ferreira dos
Santos (2010) pontua a transmissão oral como um fator importante na formação e manutenção
das tradições religiosas gregas e cristãs261. Observar ambas as tradições de forma comparativa
é um método interessante de abordagem, já que, como lembra John Dominic Crossan (2004), o
cristianismo se desenvolve a partir de fortes influências judaicas e helenísticas. No entanto,
como aponta Santos (2010), há também diferenças cruciais, como as distintas relações com o
divino. O caráter dogmático e revelador, com um Deus “formal e todo poderoso” (SANTOS,
2010. p.261) característico do cristianismo, contrapõe ao politeísmo grego, onde “o culto não
precisa de outra justificativa além de sua própria existência” (SANTOS, 2010. p. 244) e os
deuses são íntimos aos homens.
502
A comparação entre ambas, dessa forma, se justifica pelo uso e pela funcionalidade da
oralidade na construção dessas tradições (e, mais tarde, na sua perpetuação pela escrita dos
Evangelhos e da Odisséia e Ilíada), com suas morais e seus ensinamentos sobre modos de vida.
Assim como na transmissão da cultura helenística há séculos de poesia oral, para o cristianismo,
contar com o recurso oral foi fundamental. Com a grande incidência de iletrados, a recitação e até
mesmo a leitura em voz alta possibilitaram a difusão de um conhecimento público e da
transmissão da fé e da religiosidade na Antiguidade, mesmo sendo este um período de transição
da cultura oral para a escrita262. Paul Zumthor (1993, p.75) destaca que “todo discurso é ação,
física e psiquicamente efetiva”. Neste sentido, pretendemos discutir o papel da oralidade e seus
reflexos no processo de cristianização da camada camponesa e, mais tarde com Paulo, da

3
É mais adequado, devido a uma questão conceitual, tratar de religiosidade grega, não religião. Santos (2010)
argumenta que na língua grega nem sequer existe uma palavra cujo campo semântico seja equivalente ao termo
“religião”.
262
Essa transição não quer dizer, necessariamente, um predomínio, já que a cultura oral seguiu como veículo
chave da evangelização na cultura cristã.
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população urbana, levando em conta um contexto de alto índice de desigualdade social e
analfabetismo e a ascensão de uma tradição messiânica escatológica e acentuadamente
antiimperialista.

Capítulo I - Um debate acerca da conceituação: Tradição e transmissão oral,


memória e oralidades

Quando Crossan (2004) discute a oralidade no contexto do cristianismo primitivo, ele


destaca uma distinção entre tradição oral e transmissão oral:

A tradição oral, na qual a tradição é recebida oralmente e transmitida oralmente (com


freqüência por analfabetos) dentro da disciplina da execução criativa é um mundo
diferente da tradição escrita transmitida oralmente dentro da disciplina da
memorização exata. (CROSSAN, 2004. p.91.)

Assim, o autor define como tradição oral o que é passado sem o auxílio da escrita ou de
uma fórmula pronta apta para a repetição, pois “a memória é criativamente reprodutiva em vez
de precisamente recordativa” e “a oralidade é estrutural em vez de sintática” (p.94). Walter Ong
(1987) caracteriza as comunidades orais como homeostáticas e, estas, guardam as memórias
que lhes são pertinentes de forma atual. Nesse sentido, é necessário definir as particularidades 503
da estrutura oral e do que compete à memória. Zumthor (1993) separa a oralidade em três tipos:
a oralidade primária e imediata, que não possui nenhum contato com a escritura; a oralidade
mista, que sofre certa influencia externa; e a oralidade que coexiste com a escritura e vai
sofrendo um esgotamento da voz, sendo substituída pela escrita. Já Ong (1987) trabalha com o
conceito de culturas verbomotoras, que se referem às comunidades que podem ter acesso à
escrita, mas que continuam orais em sua estrutura e se utilizam predominantemente dela para a
interação, como as antigas culturas aramaicas e hebraicas.

Dentro da estrutura oral, nos deparamos com uma gama de possibilidades que permitem
a transmissão do conteúdo proposto. Crossan (2004, p. 111) aborda o desempenho da tradição
a partir de três elementos estruturais: “Histórias gerais ou narrativas totais”, “temas” e por
último as “formulae” que compreenderiam frases estereotipadas. Já Zumthor (1993) fala em
“produção”, “comunicação”, “recepção”, “conservação” e “repetição” dentro da estrutura da
obra poética. O autor vai além dessa perspectiva e afirma também que “toda palavra não é só
Palavra”. Há a “palavra ordinária”, que é banal e superficial e a “palavra força”, que é versátil
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e rica no sentido de sua fixação, que possui uma ação e geralmente é proferida por pregadores,
chefes ou santos em locais privilegiados e públicos. Ele destaca que os ensinamentos e os rituais
das religiões populares se transmitiam da boca ao ouvido, e a verdade se ligava ao poder vocal
dos que sabiam e perpetuavam-se por seus discursos, com retalhos do evangelho sabidos de
cor, lembranças de histórias santas, fábulas, receitas dentre outros. Há uma profundidade em
que se inscreviam no psíquico individual e coletivo os valores próprios e o significado dessa
voz. Ong (1987) ressalta que, para as comunidades predominantemente orais, as palavras
possuem poder (também em um sentido mágico) e, por isso, todo som, essencialmente o da
enunciação que tem origem de um organismo vivo, é dinâmico. Como exemplo, o autor cita a
passagem do Velho Testamento em que Adão dá nome aos animais e às coisas e desta forma as
mesmas adquirem um sentido, um poder.

Pode-se observar que há uma concordância entre estes autores quando explicitam a
importância do caráter sócio-cultural da transmissão oral e como esta prática se insere no
cotidiano, público e privado, das pessoas dessas comunidades.

. Zumthor (1993) afirma que tanto a liturgia quanto a pregação têm por objeto de 504
transmissão um saber privilegiado, e que isso é indispensável para a conservação do que ele
chama de “pacto social” e também para a realização individual e coletiva dentro dessa
comunidade. Dentro do ambiente familiar, a transmissão desses saberes se daria a caráter de
voz e gesto. Para o autor, ainda há outros saberes que seriam menos dignificados, mas que têm
uma importância para determinar o funcionamento desse grupo, e isso estaria intrínseco no
cotidiano através de técnicas e procedimentos. No cristianismo popular, por exemplo, vemos
um contato particularizado com o divino, um “diálogo feito de palavra e de ouvido”. Neste
ponto, difere da oralidade do paganismo, onde esse contato não é de salvação individual, mas
de caráter comunitário. Mesmo assim, essas comunidades orais, como explica Ong (1987),
formam estruturas de personalidade mais exteriorizadas e comunitárias em relação às
“escolarizadas”, ou seja, a comunicação oral une essas pessoas em grupos, a sociedade é um
reflexo dessa estrutura e vice-versa. A palavra oral, diferente da escrita, existe dentro de um
contexto mais profundo que está diretamente ligado às “modificações de uma situação
existencial” e, por isso, com a atividade corporal. Qualquer gesto dentro de uma articulação
verbal oral é representativo de algum poder ou significado.
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Com relação à memória, Crossan (2004) afirma: “A memória é tanto ou mais
reconstrução criativa do que recordação exata e, infelizmente, muitas vezes é impossível dizer
onde termina uma e começa a outra”. Podemos lembrar alguns fatos e esquecer-se de outros,
ou confundir os detalhes. Memórias são construções complexas que dependem de uma série de
fatores e, por isso, não devem ser encaradas com um senso comum. O autor dá alguns exemplos,
como quando uma história fictícia se transforma em fato, ou um não fato se transforma em fato,
pois nossas lembranças se dão por processos reconstrutivos e muitas vezes o que recordamos e
o que criamos ou associamos se misturam e formam a situação. Desta forma, há métodos como
a mnemônica ou o estabelecimento de pontos fixos que, dentro da narrativa oral, auxiliam a
memorização e a transmissão desses ditos.

“Mas, para uma tradição oral, não há uniformidade, há só multiformidade oral. Há


múltiplos modos, igualmente válidos, de dizer e redizer essa frase. Uma única matriz ou
estrutura central nos dá a multiformidade de execução” (CROSSAN, 2004. p. 128). Aqui
Crossan explica sobre a matriz, também uma forma de memorização, que consistiria em
encontrar alguns pontos principais de uma história e, a partir deles, poder recontá-la. Quando
ele cita a uniformidade, refere-se à cultura escrita e, sobre esse aspecto, cabe a seguinte reflexão:
505
Podemos hierarquizar a importância da cultura oral ou da escrita? Crossan afirma que essa
dicotomia é prejudicial, porque por mais que haja cultura oral sem alfabetização, a alfabetização
não se sustenta sem a cultura oral. Zumthor (1993) cita a autoridade do verbum diante da
scriptura apesar de recordar que, mais tarde, a Igreja oficial vai tomar o monopólio da escritura.

Ong (1987) argumenta, em sua obra, que a oralidade está destinada a produzir a escrita,
mas também cita Saussure, que defende que a escrita é um complemento da fala oral e atua
como transformadora da articulação. Nessa questão surge uma grande crítica à Havelock, que
considera a escrita como a grande transformadora da mentalidade e dos processos cognitivos.
O autor argumenta que a alfabetização massificada no século V a.C foi responsável por um
novo tipo de consciência, que seria capaz de processar os avanços lingüísticos. Como explica
Evandro Luis Salvador (2014), Havelock considera que a oralidade não permitiria um
pensamento mais complexo, já que o armazenamento desse conhecimento tinha como objetivo
transmitir e preservar a cultura dessa sociedade ágrafa, não abrindo, desta forma, espaço para
modificação ou revisão desse conteúdo, fazendo da abstração um domínio exclusivo da escrita.
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Havelock (1995) coloca a escrita como parte de um processo evolutivo cultural, enquanto a
oralidade pertenceria ao natural e, assim, um não suplantaria o outro. Essa é uma discussão de
muitos vieses, assim como a influência da oralidade na escrita dos Evangelhos, que
abordaremos adiante.

Portanto, dentro das culturas orais primárias ou verbomotoras, os instrumentos de


memorização, com suas possibilidades e limitações, bem como o uso da oralidade – dinâmica,
multiforme e homeostática – constituem instrumentos de poder e influência na vida psíquica,
de transmissão de saberes privilegiados e até mesmo de coerção. Estes instrumentos carregam
um significado social e também privado. Possuem influência na sociedade através da difusão
dos valores, parábolas e na formação das culturas religiosas e identitárias, além da perpetuação
da memória de suas figuras heroicas.

Capitulo II – O papel da oralidade na escrita dos Evangelhos

É consenso entre quase todos os historiadores que a relação de Jesus com seus

506
seguidores era oral. Como lembra Pedro Lima Vasconcellos (2003), a figura de Jesus está
associada diretamente com a palavra falada, não à escrita. Mesmo seus seguidores possuíam
hábitos orais e o contato com a cultura letrada era muito tênue. Na Galileia da Antiguidade as
relações eram predominantemente orais mesmo por pessoas letradas e, quando havia escrita, a
mesma estava a serviço da comunicação oral ou então restrita à elite. As primeiras comunidades
cristãs foram estruturadas e organizadas segundo os ditos orais de Jesus. Grande parte da
população era iletrada e as parábolas foram essenciais para o entendimento e transmissão de
morais e valores entre os seguidores. Segundo Leandro Seawright Alonso (2012, p.31), há uma
“ritualização da oralidade própria aos cristãos, com base na Palavra, na documentação viva, na
memória coletiva, na subjetividade, na conotação, nos mitos, e, sobretudo, na disciplinaridade
da história oral autônoma”. O que não é consenso entre os pesquisadores são o papel e o nível
de influência da oralidade na escrita dos Evangelhos. O objetivo aqui não é buscar uma resposta
ou mesmo analisar esse fator, mas discorrer sobre as opiniões de alguns pesquisadores a fim de
que não ocorra uma lacuna temporal e a discussão a respeito da oralidade no seguimento do
movimento cristão se torne inteligível.
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O primeiro ponto de discordância se dá em relação à influência do Evangelho Q, que
seria usado como fonte primeira para redigir os Evangelhos. Lair Amaro Faria (2009) traça um
panorama abordando as pesquisas de autores como Bailey, Gerhardsson, Culley, Kepler e
Horsley e, a partir de uma análise crítica dos mesmos, faz uma história comparada entre o
Evangelho Q e o Evangelho de Marcos como performances orais. A exemplo dessa série de
pressupostos, o autor cita Gerhardsson e Bultman. Enquanto o primeiro frisa a memorização, o
segundo afirma que não há características de oralidade dentro do Evangelho ou ainda, que pode
ser estudado como uma coletânea de peças independentes, segundo Schmidt. Como conclusão,
Faria lista algumas suposições e, entre elas, que os seguidores de Jesus e disseminadores de
suas palavras o faziam de forma oral, já que eram em sua maioria iletrados. Assim, para a
conservação desses ditos, estabeleceram-se formas padronizadas de narrativas e enquanto
duraram as campanhas não houveram registros escritos de suas pregações, assim, de modo que
quando surgiram as escritas, já haviam narrativas completas e não textos em pedaços. O
material sinótico teria sido produzido por situações típicas, vivenciais da comunidade, não
meramente por indivíduos. Além disso, se houvessem anotações das pregações, é bem provável
que os Evangelhos teriam assumido caráter distinto. 507
Santos (2010) afirma que os Evangelhos não foram escritos sem antes terem passado
por um complexo período oral, onde houve uma seleção natural de relatos, uma metamorfose
na imagem de Jesus e na concepção de suas histórias, algumas provenientes de uma imaginação
popular e não necessariamente de uma memória recebida. Essa cultura de oralidade, tanto
individual como coletiva, influenciou o rumo das comunidades cristãs.

A gênese desse processo de redação e composição dos manuscritos cristãos, em geral,


e dos evangelhos intra e extracanônicos, em particular, é alvo de diferentes hipóteses
explicativas. Difícil é negar, porém, que os materiais pré-evangélicos circularam, por
algum momento, como tradições orais constituídas a partir das memórias
fragmentadas de diferentes testemunhas oculares. (FARIA, 2009. p.13)

Dentro da oralidade, há uma série de vieses e serem considerados para, por fim, analisar
sua influência definitiva na escrita dos Evangelhos. Desta forma, a análise aqui proposta não se
concentra nos Evangelhos, nos ditos de Jesus, nem em julgar qual foi a influência da oralidade
sobre a escrita dos mesmos. A idéia é apenas mostrar que a oralidade é uma peça essencial para
compreender a transição do Jesus Histórico para o cristianismo primitivo e que as conclusões a
respeito da atuação dessa tradição oral na escrita estão longe de ser homogêneas.
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O próximo capítulo analisa, no contexto do cristianismo primitivo, os Atos dos
Apóstolos e as Epístolas do Novo Testamento, quando o movimento de Jesus de Nazaré é
continuado por seus seguidores e a evangelização é encorajada de forma oral.

Capitulo III – As evidências da oralidade como instrumento de evangelização no


Novo Testamento

Em Atos dos Apóstolos, há uma passagem que narra um dia de Pentecostes, onde os
apóstolos foram tocados pelo Espírito Santo e se tornaram inteligíveis a um grande número de
pessoas de diversas regiões, de línguas e costumes diferentes. “Todos ficaram repletos do
Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que
falassem” (At, 2: 4) Em outra passagem, é relatada a irritação das autoridades diante da
anunciação e ensinamento público de Pedro e João, com a seguinte finalização “Todavia,
muitos daqueles que tinham ouvido o discurso acreditaram” (At, 4: 4). Nesses relatos, fica

508
evidente a representatividade que a palavra, em forma de anunciação, tem para essas
comunidades, o que ratifica a explicação de Zumthor a respeito da palavra como detentora de
poder e de verdade. Ao longo do livro dos Atos dos Apóstolos, há diversas ocasiões em que o
sentido da palavra e da anunciação é invocado. Observa-se um encorajamento no sentido de
ensinar, repassar ao povo os ensinamentos e as mensagens e, a partir deles, espalhar a notícia
de um determinado acontecimento. Encontra-se com frequência frases como “e todos ouviram
falar”.

A capacidade de cada um para a comunicação oral e pública também detinha


importância (como se vê em Atos 22:7, onde cita o quanto Moisés era poderoso ao falar).
Destaca-se, nesse sentido, a Primeira Carta de Paulo aos Coríntios, onde Paulo contrapõe a
cultura grega quando diz que não recorre à sabedoria da linguagem, nem busca a sabedoria
como os gregos, pois a comunidade não era composta por grandes intelectuais ou poderosos e
Deus havia escolhido o que todos tinham por vil ou desprezavam. Ele argumenta: “não me
apresentei com o prestígio da oratória ou da sabedoria, para anunciar-lhes o mistério de Deus”
(At, 2:1) e ainda: “minha palavra e minha pregação não tinham brilho nem artifícios para
seduzir os ouvintes” (At,2:4), artifícios esses, muito presentes nos poemas épicos. Ainda nessa
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epístola, Paulo aconselha a importância de transmitir a palavra, de aprender e depois repassar
esse ensinamento quando os membros da comunidade estão reunidos.

Outra preocupação que notamos em Paulo, como na Segunda Carta aos Coríntios, na
Carta aos Gálatas e na Carta aos Efésios, é separar os verdadeiros dos falsos profetas e, logo,
notamos uma “hierarquização”. Assim, nem todos teriam o direito de memorizar e transmitir a
Palavra, ou seja, esse conhecimento é restrito a privilegiados. Juliana B. Cavalcantti (2014)
separa o movimento de pregação em dois grupos: os líderes itinerantes carismáticos e os
comunitários. Os líderes itinerantes possuiam um movimento forte na Palestina, devido à
vivência de mudanças religiosas e sociais e um sentimento antiimperialista. Deste movimento
participavam mendigos, bandidos, profetas ou missionários. Já as lideranças comunitárias eram
predominantes no Mediterrâneo e tinham um caráter autárquico, neste segundo grupo
carismático Paulo estaria inserido. O autor explica que apesar do caráter autárquico, essas
lideranças contavam com ajudas financeiras. Podemos observar um exemplo disso em Gl 6:6
quando Paulo escreve: “Aquele que recebe o ensinamento da palavra deve repartir todos os
bens com o catequista”. No entanto, Paulo pregava a pobreza carismática e o sacrifício como
um privilégio. Há uma demanda por uma reinterpretação das palavras de Jesus e uma tradição
509
apostólica que define quem é autorizado ou não a lembrar e falar sobre ele. Por mais que as
comunidades tenham seguido uma posição contrária ao poder romano, havia uma configuração
hierárquica na sua estruturação e uma rivalidade entre as lideranças. Nesse sentido, estabeleceu-
se a crítica dos historiadores e teólogos em relação ao chamado “Paulinismo”, já que os
ensinamentos de Paulo são predominantes na Igreja Católica e, em alguns pontos, diferem
significativamente daqueles encontrados nos Evangelhos.

“Os escritos tidos como oficiais por estas lideranças comunitárias justificavam a sua
autoridade e discursos levantados. Aqueles que não se enquadravam nesta linha
oficial, eram tidos como ‘falsos profetas’, não detentores da verdade, entre outras
alegorias.” (CAVALCANTTI, 2014. p. 07)

Nesta perspectiva, defende-se o conceito de cristianismo plural. Como explica Faria


(2016), o cristianismo primitivo era bastante diverso. Havia escolhas quanto ao tipo de
cristianismo que se pretendia transmitir, não havendo uma uniformidade em seus discursos nem
consenso sobre o que disse ou não Jesus, mas traçando uma fronteira entre a diversidade
aceitável e o que, mais tarde, seria considerado heresia.
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Outro exemplo, dentre os diversos encontrados nas cartas de Paulo, de aconselhamento
à evangelização, está presente na Segunda Carta a Timóteo. Paulo encoraja Timóteo a seguir
na missão evangelizadora, apesar de sua prisão: “Mas a palavra de Deus não está algemada” (2
Tm, 2:9). Ainda nessa carta, Paulo aconselha que o ensinamento seja claro, de forma que se
evite um palavreado inútil e questões sem importância e, mais uma vez reforça que esse não é
um papel para todos, a transmissão do que se ouviu deve ser feito por poucos: “O que você
ouviu de mim na presença de muitas testemunhas, transmita-o a homens de confiança que, por
sua vez, estejam em grau de ensiná-lo a outros” (2 Tm,2:2). Durante as conversões, Paulo envia
alguém de sua confiança, ou vai a encontro dessas comunidades, e lá busca hospedagem na casa
das famílias. São muito presentes os relatos de famílias convertidas dessa forma, assim como a
evangelização nas refeições compartilhadas, mostrando o caráter íntimo que a oralidade permite
nesse tipo de pregação, ou seja, um contato face a face que estabelece outro tipo de estrutura
oral e psicodinâmica.

CONCLUSÃO 510
No presente artigo, foram apresentados alguns exemplos em que a oralidade se fez
imprescindível para a disseminação dos ideais cristãos. Para que fosse possível a transmissão
e a manutenção destes ideais nas comunidades através do tempo, foram essenciais os métodos
narrativos, sejam eles parábolas, palavras-força, histórias ou salmos recitados, em um ambiente
familiar ou público.

Por fim, cabe destacar a complexidade que envolve a tradição oral e,


concomitantemente, sua relevância para a inteligibilidade das comunidades cristãs primitivas.
Oralidade, esta, presente em todo o processo de evangelização, auxiliando na formação da fé e
da doutrina cristã, sendo essencial para a difusão de seus valores e de suas morais, de suas
figuras santas e heróicas e para a construção da sua própria identidade. Essas práticas não só
estiveram intrínsecas na cultura dessa população, predominantemente analfabeta, como
também se mantiveram parte da tradição cristã ao longo dos séculos, atestada em seus sermões.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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512
ISSN: 2525-7501
REPRESENTAÇÕES DE GENSERICO, REI DOS VÂNDALOS, NOS PANEGÍRICOS
DE SIDÔNIO APOLINÁRIO (SÉCULO V D. C.)263
Gabriel Freitas Reis264

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar as representações do rei vândalo Genserico por Sidônio
Apolinário, um membro das elites do Império Romano de origem gaulesa que viveu entre as
décadas de 430 e 480 e se mostrou um observador atento de seu contexto e das transformações
que o Império Romano do Ocidente estava passando no século V. Utilizaremos como
documentação três Panegíricos escritos por Sidônio Apolinário, são eles: Panegírico de Ávito,
Panegírico de Majoriano e Panegírico de Antêmio. Os Panegíricos romanos eram formas de
discursos laudatórios, originários da Grécia, que conheceram grande popularidade no período
da Antiguidade Tardia. Nos três Panegíricos estudados, Sidônio justifica a ascensão dos
imperadores Ávito, Majoriano e Antêmio, através da possibilidade desses imperadores
vencerem povos considerados “bárbaros”, como os vândalos liderados por Genserico e, da
mesma forma, tece considerações sobre como percebe os povos de origem germânica. Nossa
análise se vinculará aos estudos da Nova História Cultural, em especial utilizando o conceito
de representação de Roger Chartier.

Palavras-chave: Império Romano do Ocidente; Sidônio Apolinário; Genserico; Vândalos; 513


Panegíricos.

INTRODUÇÃO
Conforme as pesquisas arqueológicas, os vândalos, subdivididos em vândalos asdingos
e vândalos silingos, se originaram na região da antiga Escandinávia e cruzaram o Mar Báltico
no século II d.C., se estabelecendo nas terras da atual Silésia (região entre a Polônia, a República
Checa e a Alemanha) por volta de 120 d.C.
Em 406, como nos mostra o historiador Danilo Gazzotti (2013, p. 89) através da análise
da obra de Paulo Orósio, os vândalos se aliaram com outros povos de origens germânicas: os
suevos, os alanos e os sármatas, com o objetivo de penetrarem na região da Gália, parte do

263
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria. Pesquisa
vinculada ao projeto “’Barbaridade’: identidades e alteridades em representações do ‘outro’ por escritores do
Império Romano’”, sob coordenação e orientação da Profa. Dra. Semíramis Corsi Silva (Departamento de História
da UFSM).
264
Graduando do Curso de História pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM e bolsista FIPE de Iniciação
Científica. Membro do Grupo de Estudos sobre o Mundo Antigo Mediterrânico da UFSM - GEMAM/UFSM. E-
mail: gabriel_knollys@hotmail.com.
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Império Romano, enfrentando ali os francos numa sangrenta batalha. Segundo Renan Frighetto
(2012, p. 161), os francos já viviam em algumas áreas das províncias romanas da Gália, Bélgica
e Germânia desde o século II d.C., e a fixação de algumas dessas tribos nos territórios romanos
como aliados data deste período, daí o enfrentamento entre vândalos e francos no limiar do
século V. Descendo a região da Gália, os vândalos passam também a ocupar partes da Península
Ibérica neste mesmo contexto, como aponta Gazzotti (2013, p. 89). Nessa região, os vândalos
silingos ocuparam as regiões da Bética, os alanos a Lusitânia e a Cartaginense, e os suevos e os
vândalos asdingos dividiram a Gallaecia.
Neste contexto de ocupação dos vândalos de partes do Império Romano, destacamos a
participação de Genserico. Este líder vândalo nasceu aproximadamente em 389 numa região
próxima da Dácia (atual Hungria), filho do rei vândalo silingo com uma escrava. Genserico
acompanhou seu povo durante todo o trajeto de ocupação de partes de províncias do Império
Romano do Ocidente, estando entre os vândalos quando eles penetraram na região da Gália,
juntamente com os alanos e com os suevos, e, posteriormente, na região da Hispânia. Tornou-
se rei dos vândalos e dos alanos em 429, após assassinar seu meio irmão Gunderico. Entrou na
África romana através de Ceuta a fim de conquistar esse território que se encontrava naquele 514
momento desprotegido por conta de um atrito entre o procônsul romano Bonifácio e Gala
Placídia, a regente do Império Romano do Ocidente (EGEA, 1997, p. 108).
Em regiões africanas, as forças vândalas de Genserico dominaram, primeiramente, a
Mauritânia. Em 435 o imperador romano Valentiniano III considerou os vândalos como
federados do Império Romano do Ocidente e lhes concedeu a Numídia. Em 439, o rei Genserico
dominou a cidade de Cartago e a transformou na capital do seu reino. Em uma aliança política
ocorrida em 442, Genserico acertou os termos do casamento de seu filho Hunerico com
Eudócia, a filha mais velha do imperador Valentiniano III. Os vândalos dominaram a África
romana até a primeira metade do século VI, quando foram derrotados pelas forças do imperador
romano Justiniano, imperador do Império Romano do Oriente (FRIGHETTO, 2012, p. 156).
Genserico e os vândalos saquearam e dominaram a Sicília em 440 e a Sardenha em 455
e combateram os diversos imperadores e mestres militares que se sucederam no Império
Ocidental durante o período turbulento que seguiu entre 455 e 476, posteriormente ao que veio
a época da dominação hérula sobre a Itália (FRIGHETTO, 2012, p. 157). Em 455 levou seus
soldados a saquearem Roma, assassinando o imperador usurpador Petrônio Máximo. Por meio
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de diversas alianças intercaladas por períodos conflituosos com o Império Romano do Oriente,
Genserico conseguiu manter a Sicília sob seu domínio até sua morte em 477 (EGEA, 1997, p.
114).
A fim de compreender melhor como as forças vândalas foram sentidas pelos romanos
naquele contexto, nos propomos aqui a analisar as representações de Genserico por Sidônio
Apolinário, um membro das elites provinciais de origem galo-romana que viveu entre as
décadas de 430 e 480 e se mostrou um observador atento de seu contexto e das transformações
que o Império Romano estava passando no século V, com as invasões germânicas e com as
formações de diversas monarquias romano-germânicas no território imperial.
Cumpre mencionar que como representações estamos compreendendo o que apresentou
Roger Chartier (1988), um dos principais historiadores da Nova História Cultural. Assim, o
conceito de representações é tomado por nós como uma espécie de mapa mental no qual o autor
organiza a realidade. Cabe ao historiador desconstruir o discurso destas obras por meio da
análise da compreensão de mundo do autor, analisando seus anseios nas representações. Diante
disso, para Chartier (1988), o homem, por meio das representações, mostra seus anseios, suas
revoltas e suas vitórias, construindo representações como se fossem verdades. Entendemos 515
ainda que “as representações são sempre resultado de motivações e necessidades sociais”
(BARROS, 2005, p. 134). Portanto, as imagens construídas por Sidônio Apolinário sobre
Genserico e os vândalos serão percebidas como construções do autor que demonstram sua visão
de mundo e seus anseios.
Estruturamos nosso texto da seguinte forma: inicialmente, daremos um panorama geral
da documentação textual tardo-antiga que chegou até nossos dias e que menciona os povos
vândalos e seu rei Genserico, a fim de mostrar ao leitor o material documental escrito disponível
para estudo dos vândalos. Feito isso, faremos uma apresentação sobre o autor por nós escolhido
para o estudo, Sidônio Apolinário. Por fim, apresentaremos a análise documental dos textos de
Sidônio escolhidos para análise, os panegíricos.

Capítulo I - Considerações sobre Sidônio Apolinário e seus Panegíricos


Sobre o autor, Caio Sólio Modesto Sidônio Apolinário nasceu em uma propriedade rural
na região da cidade de Lugduno (atual Lyon, na França), capital da província romana da Gália
Lugdunense. Seu avô havia sido Prefeito do Pretório das Gálias sob o governo do usurpador
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Constantino III (407-411) e seu pai havia ocupado o mesmo cargo sob o imperador Valentiniano
III (GOLBERG, 1995). Kindler (2005, p. 21) diz que por parte de mãe, Sidônio era parente da
casa arvernesa dos Ávitos, uma importante família de aristocratas galo-romanos originários da
Arvérnia ou Auvérnia (em francês, Auvergne), de descendência céltico-romana.
O parentesco de Sidônio com os Ávitos foi reforçado por conta de seu casamento com
Papianilla, filha do cônsul romano Ávito, que na época ocupava o cargo de mestre dos soldados
(magiter militum) das legiões itálicas. O casamento deu origem aos possíveis quatro filhos do
casal: Apolinário, Roscia, Severiana e, provavelmente, Alcima. Por conta do casamento,
Sidônio recebeu como dote a propriedade rural de Avitacum, na Arvérnia (região no centro-sul
da atual França).
Conforme Kindler (2005, p. 21-22), Sidônio assistiu a aulas de gramática em Lugduno
e de retórica na cidade de Arelate (atual Arles, na França). Nosso autor aprendeu a fé cristã com
a família e formou-se nos distintos ramos da filosofia: aritmética, geometria, astronomia e
música. Tornou-se bispo em 469.
Quanto à obra sidoniana, sabemos que o autor galo-romano escreveu em diferentes
estilos literários: cartas e poemas, sendo que dentre os últimos encontramos os panegíricos . 516
Centremo-nos neles.
Antes de se tornar bispo, Sidônio publicou, em 469, vinte e quatro poemas. Dentre os
primeiros oito poemas que nosso autor escreveu, figuram os três panegíricos que iremos
analisar, dispostos na edição por nós utilizada da Editora Gredos, em ordem invertida em
relação à época em que foram escritos. Segundo Ana Paula Franchi (2009, p. 34), os panegíricos
são um tipo de poema que surge no período conhecido pela historiografia como Dominato e foi
uma forma de elogiar um soberano. Ainda que os temas dos panegíricos não sejam
especificamente as conquistas dos imperadores, as usurpações e posteriores formas de
legitimações de governo, os panegíricos tradicionalmente falavam sobre estes episódios na vida
do governante elogiado. Segundo Franchi, os panegíricos vêm de uma tradição grega e
encontraram grande prestígio literário principalmente na época estudada por ela, ou seja, nos
séculos III e IV. Desta forma, os panegíricos tornam-se uma fonte histórica imprescindível para
os estudiosos do Império Romano, em especial aos que estudam a Antiguidade Tardia.
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Para escrever os panegíricos, Sidônio se baseou no autor Cláudio Claudiano, que, em 404 e em
395 a. C., compôs e recitou três panegíricos em verso, em hexâmetros (KINDLER, 2005, p.
34).
Kindler (2005, p. 22) aponta que Sidônio declamou o seu primeiro panegírico em Roma
em janeiro de 456, e o motivo do panegírico foi a honra a seu sogro Ávito, que havia se tornado
imperador em 455. Por causa dessa declamação, Sidônio foi honrado com uma estátua erguida
no Fórum imperial de Trajano. Cumpre ressaltar que Ávito tinha sido elevado ao cargo imperial
pelos visigodos de Tolosa, reino esse que ficava perto da Arvérnia, terra de Ávito. Tal fato
parece ter ocorrido mediante uma comunhão de interesses entre a nobreza visigoda e a
aristocracia galo-romana no momento em que o trono imperial estava vago devido ao
assassinato do usurpador Petrônio Máximo pelos vândalos (KINDLER, 2005, p 22). Os
interesses de Sidônio ao compor esse panegírico parecem ter sido fazer com que seu status e
seu prestígio aumentassem no momento de sua juventude, o que, como vemos, parece de fato
ter acontecido. Além disso, como vemos, o panegírico em questão foi escrito em honra de seu
sogro, com quem o autor já mantinha uma aliança política claramente estabelecida pelo
casamento com Papianilla. 517
Quando declamou o seu segundo panegírico, em dezembro de 458 em Lyon, em honra
do imperador Majoriano (457-461), Sidônio recebeu o título de conde, embora atualmente não
tenhamos informações sobre o que isso significou na época para ele. Posteriormente ao
assassinato do imperador Majoriano, Sidônio retirou-se de Roma e passou a viver em sua
propriedade rural na Arvérnia, dedicando-se a escrever cartas a amigos em prosa e em verso
(KINDLER, 2005, p. 24). Também devemos compreender os interesses possíveis por trás da
declamação desse panegírico por parte de Sidônio. Majoriano, o imperador homenageado,
castigou a cidade de Lugduno com um pesado tributo. O motivo do castigo deu-se porque a
aristocracia da Gália Lugdunense, descontente com a deposição e o assassinato de seu
conterrâneo, o imperador Ávito (455-456), e com a subida de Majoriano ao trono imperial, se
aliou aos povos burgúndios e cedeu terras para estes povos germânicos a fim de que eles,
anteriormente federados na Saboia (entre os Alpes e o Ródano), ajudassem a depor o imperador.
O objetivo do panegírico de Sidônio, ao que nos parece, era fazer com que Majoriano livrasse
a capital da Gália Lugdunense daquele pesado tributo (KINDLER, 2005, p. 23).
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O terceiro panegírico sidoniano foi declamado em Roma em janeiro de 468, em honra
do novo imperador Antêmio (467-472), que possuía origens orientais. Por causa dessa
declamação, Sidônio tornou-se prefeito de Roma e, naquele ano, ainda durante o governo de
Antêmio, em 469, recebeu o título de patrício, o maior título honorífico que se poderia ter na
época (KINDLER, 2005, p. 24, 25). Nesse mesmo ano ele se tornou bispo da Arvérnia
(GOLGBERG, 1995).
Como bispo, Sidônio agiu no mesmo sentido que Idácio de Chaves na Galícia ante os
suevos: lutou com todas as suas forças contra as tentativas de Eurico, rei visigodo, de anexar a
Arvérnia ao seu reino, o Reino Visigodo de Tolosa. Entretanto, as ações de Sidônio, àquelas
alturas dos acontecimentos, pareciam historicamente em vão, uma vez que todo Império
Romano do Ocidente sucumbia ante o poderio bélico dos povos germânicos, muitas vezes
realizando alianças, mas também diante de pesadas guerras. Kindler (2005, p. 27, 28) nos
informa que Sidônio armou o povo da Arvérnia e lutou contra o rei visigodo de Tolosa
juntamente com seu cunhado Ecdício, irmão de Papianilla. O nosso autor foi preso em 475 na
Fortaleza Lívia, próxima à cidade de Cárcaso (atual Carcassone, na França), perto de Tolosa,
na Gália, e de lá só saiu em 477 por interseção do bispo Leão I. Parece que Sidônio aceitou a 518
situação e viveu em sua sede episcopal até sua morte entre 482 e 487.

Capítulo II - As representações de Genserico nos Panegíricos de Sidônio


Apolinário

No princípio do Panegírico de Ávito, Sidônio se refere três vezes à presença dos


vândalos na África romana. Segundo Sidônio, desde a origem de Roma lhe foi assinalado seu
destino, o de crescer à base de males. De acordo com a interpretação de Kindler (2005, p. 166),
o último desses males aos quais Sidônio se refere foi o saque da cidade em 455 pelos vândalos,
mesmo ano em que o panegírico foi composto e que Ávito ascendeu ao poder.
Na sequência do panegírico, Roma é transformada em uma personagem na forma de
uma deusa. Neste momento, vemos que o autor faz alusão às três Guerras Púnicas. Assim, em
um discurso a Júpiter, Roma pede ajuda ao deus para que a salve da desgraça em que havia
caído nos últimos tempos, da qual Genserico parece ser o principal culpado: “A ponta de minhas
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lanças semeou o terror no céu líbico e subjuguei por três vezes o perjuro cartaginês” (SIDÔNIO
APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 70-75).
Devemos perceber que Genserico, assim como os púnicos, também vinha de Cartago,
antiga capital do Império Cartaginês e então capital do Reino Vândalo desde 439. Em nossa
interpretação, desta forma, poderíamos acreditar que Sidônio faz Roma implorar a Júpiter, o pai
dos deuses na mitologia romana, para que a livre novamente dos desmandos dessa cidade
mediterrânica, uma vez que mais adiante o autor mencionará o saque da cidade itálica em 455,
causa da morte do imperador Petrônio Máximo (455-455), episódio que Sidônio chama de
Quarta Guerra Púnica.
Na continuação do seu discurso a Júpiter, Roma se queixa do fato de que antes ela
reclamava dos estreitos limites do mundo que desejava dominar, mas agora nem mesmo tem
um muro para si, ou seja, lhe falta proteção, como podemos compreender. Segundo Kindler
(2005, p. 170), com quem concordamos, Sidônio parece fazer aqui novamente uma alusão ao
saque ocorrido em 455.
Na sequência, o deus Júpiter se pronuncia dizendo que surgirá um salvador para Roma
vindo da região da Arvérnia, e, ao elogiar esta região, faz questão de dizer que a Líbia 265 se 519
curva diante da região gaulesa onde Ávito nasceu . Ou seja, Sidônio expressa claramente que o
imperador Ávito, seu sogro, derrotará o rei vândalo por causa da fertilidade e riqueza de sua
terra em comparação com a Líbia de Genserico.
Ainda no discurso de Júpiter, Sidônio o faz falar a Roma que ela conhece suas desgraças,
iniciadas no momento em que Placídio266 eliminou o general Flávio Aécio, que mantinha o
Império do Ocidente a salvo, por ocasião de um ataque em setembro de 454, semelhante ao
ataque dos godos no começo do século V sobre a cidade eterna.
No entanto, em nossa análise, a passagem mais interessante desse panegírico com
relação aos vândalos está entre os hexâmetros 440 e 455, quando Júpiter recorda Roma do saque
ocorrido em 455, fazendo referência ao fato como uma Quarta Guerra Púnica, como já
mencionamos.
Crime hediondo! De novo as pérfidas trombetas de Birsa, a fenícia, recrudescem as calamidades
de uma quarta guerra. Destinos, que desgraça haveis alimentado? O exército macílio havia
tomado ao assalto a fortaleza de Evandro, os soldados marmáricos acossavam os montes de

265
Sidônio representa a região dominada pelos vândalos de Genserico na África como Líbia.
266
Um dos nomes do imperador Valentiniano III.
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Quirino e a cunha dos Barcas recuperou os tributos que uma vez havia tido que entregar ao ser
conquistada (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 340-355).

Como podermos ler, a passagem acima é repleta de metáforas. Todavia por meio dela
podemos compreender a essência do que Sidônio tenta expor: Cartago retorna a Roma e
reivindica o que a cidade itálica havia lhe tomada no tempo dos generais cartagineses Barcas,
agora através dos vândalos de Genserico.
Por fim, a última menção sobre os vândalos no Panegírico ocorre entre os hexâmetros
585 e 590, quando Sidônio faz Júpiter falar que a Gália recuperará a Líbia para Roma, através
do novo Augusto que surgiu para salvar o Império, ou seja, seu sogro Ávito.
No começo do Panegírico de Majoriano Roma é representada como uma deusa
guerreira por Sidônio. A deusa então se senta para receber as oferendas das províncias e a
África, transformada também em uma personagem, faz uma intervenção, pedindo que Roma
faça algo para livrá-la dos males que estão lhe assolando nos últimos tempos, todos eles
causados pela dominação vândala que devora todas as suas riquezas.
Sidônio representa a forma desarmônica pela qual Genserico havia se relacionado com
a aristocracia africano-romana e com o clero ortodoxo daquele continente, que se opunha à fé 520
ariana dos vândalos.
Na sequência, entre os hexâmetros 85 e 100, a mesma África se desculpa com Roma
porque os vândalos lhe obrigam a empreender guerras contra a sua ama, falando de maneira
metafórica que apesar da fraqueza do rei vândalo, ele se sente protegido por trás das ondas
como um javali que se esconde atrás de bosques profundos. Sidônio representa a nobreza
guerreira vândala como uma manada de cães coagindo seu dono a lutar em campo aberto,
embriagados de raiva pela voz do dono, esquecendo a dor das feridas.
Que culpa tenho eu? Os destinos me obrigam a empreender guerras contra ti, queira ou não
queira. O inimigo que agora te ameaça, tomba ele mesmo, mas se sente seguro atrás do refúgio
das ondas, a maneira do javali peludo que se esconde atrás dos bosques profundos e, ali
encerrado, afia as brancas defesas das que está dotado seu negro focinho; uma matilha de cães
lhe rodeia com seus latidos; lhe desafiando a lutar em campo aberto, mas ele, por trás da
barreira de espinhos, se enche de orgulho, débil em forças, mas forte por sua posição, até que,
ai! O caçador de perto da um grito desde a colina. A conhecida voz do dono reaviva o furor dos
cães fatigados e então a raiva cega menospreza a dor das feridas (SIDÔNIO APOLINÁRIO,
Panegírico de Majoriano, 85-100).

Percebemos que a metáfora acima aproxima os germânicos, tidos como bárbaros pelos
romanos, dos animais e mostra-nos claramente como um galo-romano que se considera
ISSN: 2525-7501
civilizado enxerga o inimigo da única sociedade que ele considera “civilizada”. Vemos como
para Sidônio os seus ideais de humanidade estão ligados aos greco-romanos, em contraposição
aos “bárbaros” animalescos. É o ideal de humanitas, componente central da autodefinição da
cultura romana durante o Império versus a ideia de feritas, a irracionalidade dos povos
considerados bárbaros (WOOLF, 1998, p. 60), que os condiciona a um estado de animais.
Posteriormente, a personagem África insistirá em suas críticas ao rei, falando, entre os
hexâmetros 325 e 335, que os vícios de Genserico arruinaram a força de sua raça e suas virtudes
citas. A personagem África dirá ainda, nas palavras de Sidônio, que a vida luxuosa que o rei
Genserico leva retira-lhe sua virtude, ligada ao vigor e à força que ele detinha quando não
possuía tantas riquezas ou poderes. África queixa-se que Genserico arma seus filhos contra ela,
que está cativa há uma infinidade de anos, desgarrada em benefício do rei vândalo e reclama
que sua fertilidade lhe atrai desgraças, sendo ela obrigada a dar a luz a quem as lhe inflige.
Na sequência, antes do hexâmetro 345, a personagem África dirá que Genserico não é
capaz de lutar com suas próprias armas, o chama de covarde, e diz que ele coage diversos povos
da África, que ela lista, a lutarem juntos. Sobre Genserico, a personagem ainda dirá:
Tem a cor pálida de quem abusa do vinho, uma gordura fofa e seu estômago, cheio pelas 521
contínuas comilanças, nem sequer é capaz de dar um arroto azedo, apenas deixa escapar uma
respiração fétida. A vida dos seus é parecida (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de
Majoriano, 335-345).

No final do discurso, a personagem África implora a Roma por um guia que a vingue
de Genserico para que Cartago pare de lutar contra a cidade eterna.
Roma acalma a África dizendo que o atual imperador, Majoriano, é capaz de corrigir
todos aqueles males, e que depois de resolver os problemas de sua querida Gália e combater
em outras campanhas, ele certamente se dirigirá a África e a salvará, e que o mais difícil,
naquele caso, não era vencer, mas pôr-se em movimento, pois Majoriano chegava e logo vencia.
Observemos que Sidônio faz questão de deixar claro no panegírico que é mais importante
resolver os problemas da Gália do que da África, porque a sua província, por sua vez, encontra-
se assolada pelos desmandos de outros povos “bárbaros”, a saber, os burgúndios e os visigodos.
A parte mais densa da representação vândala nesse panegírico ocorre entre os
hexâmetros 385 e 441, quando Sidônio narra uma batalha ocorrida na Campânia entre os
exércitos romanos, liderados por Majoriano, e os vândalos, liderados por Genserico. Sidônio
exaltará a bravura e a habilidade guerreira dos romanos em contraposição à covardia dos
ISSN: 2525-7501
vândalos e seu desespero ao se verem vencidos. Nessa passagem, Genserico receberá alguns
adjetivos depreciativos: como inimigo feroz, gordo e pirata (SIDÔNIO APOLINÁRIO,
Panegírico de Majoriano, 385-441).
A batalha entre as forças de Majoriano e as forças de Genserico é comparada por Sidônio
com a guerra contra Pirro, que sofre uma derrota semelhante a que o rei dos vândalos havia
acabado de sofrer, tendo de fugir de volta a Épiro com o que havia sobrado de sua armada,
como Genserico que também teve de fugir com seus guerreiros de volta à África.
Entre os hexâmetros 441 e 469, Sidônio narra a preparação da frota de Majoriano para a
campanha decisiva contra Genserico, exaltando no imperador as virtudes do desapego virtuoso
pelo resultado material do combate, em contraposição ao que ocorreu na África quando
Cleópatra ostentou no Egito o tesouro de Ptolomeu. Desta forma, o autor compara Genserico à
Cleópatra, uma vez que o rei vândalo ostentava o butim de suas vitórias. Sidônio prevê para o
Reino Vândalo um destino semelhante ao do Egito de Cleópatra: sucumbir ante as forças de um
César poderoso.
Na sequência, Sidônio escreve que de nada adianta a Roma não ter medo dos povos
africanos que acompanham Genserico nas batalhas se ela não os tem mais como súditos, como 522
antes os tinha. Então, Sidônio narra a travessia dos Alpes pelas legiões romanas comandadas
por Majoriano, citando o momento em que um soldado reclama do frio que sofre na neve e
Majoriano o repreende dizendo que o frio é causado pela falta de movimento, o coagindo a
continuar andando, prometendo-lhe um verão sob as Sirtes267, isto é, na África, lutando contra
Genserico. Nessa passagem podemos perceber como nosso autor honra o imperador Majoriano
por sua valentia, virtude e coragem guerreira.
Por fim, Sidônio trata Genserico como o novo Boco268 africano, ao profetizar que logo
estará escrevendo que Majoriano havia reconquistado a Líbia e as Sirtes, assim como os Alpes
e o Mar Mediterrâneo por inteiro, após haver resolvido os problemas da Gália. Como vemos,
para Sidônio, Majoriano é um grande conquistador, mas antes precisa resolver os problemas da
Gália.
A primeira alusão aos vândalos e a Genserico aparece em uma parte já bem avançada
do Panegírico de Antêmio, quando a deusa Itália, novamente personificada no texto, pede ao

267
Montanhas de areia existentes no norte da África.
268
Rei da Mauritânia, sogro do general Jugurta.
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rio Tibre que convença Roma a ir ao palácio da deusa Aurora, que ficava além da Índia, onde
acreditavam ser o lugar em que nascia o sol. Desta forma, essa deusa, a soberana de todo o
Oriente, do Império de Constantinopla até a Índia, deveria atender aos apelos de Roma e
conceder Antêmio para ajudá-la a fim de que ele a livrasse do perigo vândalo que todos os anos
assolava o solo itálico.
A personagem Roma diz que Genserico invertia a ordem do mundo ao fazer Cartago
lutar contra si, ou seja, de conquistadora de Cartago, agora ela é conquistada por Cartago. A
deusa Roma explica que Genserico, quem ela menciona como pirata, evita o combate ao fugir
assim que vê em suas mãos o butim que deseja, e que se nega a fazer qualquer aliança com
Ricímero, o então mestre dos soldados da Itália, filho de um príncipe suevo e de uma princesa
visigoda. Roma diz que Genserico odeia Ricímero porque o rei dos vândalos era filho de uma
escrava e fruto de um adultério entre sua mãe, a escrava, e o rei, ao passo que Ricímero era
comprovadamente filho de um príncipe suevo e de uma princesa visigoda, e que poderia vir a
ser proclamado rei de dois reinos. Ao mesmo tempo, o avô materno de Ricímero era o visigodo
Valia, que havia combatido os vândalos e os alanos na Hispânia antes de criar o Reino de Tolosa.
Além disso, a personagem Roma diz que Ricímero dava provas de ser neto daquele homem que 523
havia derrotado violentamente vândalos e alanos, uma vez que ele também era capaz de fazer
Genserico recolher a espada.
O que temos na passagem acima é uma comparação de dois “bárbaros”, o que nos
mostra como Sidônio negocia suas representações dos estrangeiros conforme seus interesses e
necessidades. Genserico, o inimigo em potencial, é mais “bárbaro” que Ricímero, também
“bárbaro”, mas que não se mostrava com o potencial inimigo do momento.
A última frase escrita por Sidônio nesse panegírico diz: “Vê adiante, afortunado pai da pátria
e, sob auspícios propícios, libera aos prisioneiros antigos, tu que encadearás outros novos”.
(SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Antêmio, entre os hexâmetros 545-549).

De acordo com Kindler (2005, p. 116), com a frase acima, Sidônio demonstra que
almejava uma pronta derrota de Genserico pelas forças de Antêmio, uma vez que naquele ano
de 468, quando o panegírico foi escrito, as duas partes do Império Romano, o Império Romano
do Ocidente e o Império Romano do Oriente, iriam somar suas forças para lutar contra
Genserico. O historiador supracitado acredita que essa batalha não teve êxito para os romanos,
possivelmente, pela astúcia do rei dos vândalos, mas também pela inaptidão do comandante das
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legiões do Império Romano do Oriente, Basilisco. Já para a historiadora Egea (1997, p. 124), é
possível que o chefe militar oriental Basilisco tenha tido interesses em sua própria derrota e de
seus aliados, uma vez que ela possibilitaria que o poder de Leão, o imperador de
Constantinopla, se enfraquecesse e ele, como chefe militar, tornasse-se imperador em seu lugar.
Opiniões historiográficas sobre o resultado da batalha entre romanos e Genserico à
parte, acreditamos que o que deva ser considerado nessa situação é que no final do panegírico
Sidônio se mostrou confiante na derrota de Genserico, colocando suas esperanças no honrado
imperador Antêmio e mostrando-nos como o rei vândalo era temido e necessitava ser vencido.
Para além do que está na obra de Sidônio Apolinário, cabe apresentar que Genserico assinou
em 476 um tratado com Odoacro, rei dos hérulos, povo também de origens germânicas que
ocupava a Itália neste contexto. Neste tratado os vândalos teriam a posse nominal sobre a região
da Sicília, mas não continuariam a dominá-la efetivamente (EGEA, 1997, p. 129). Genserico
morreu em janeiro de 477, seus sucessores vândalos continuaram governando o reino ao norte
da África durante o primeiro quartel do século VI, quando, enfraquecidos por nunca terem um
poder sólido no interior do reino, foram derrotados por Justiniano, imperador do Oriente
(FRIGHETTO, 2012, p. 156). 524
CONCLUSÃO
Apesar de os Panegíricos de Sidônio Apolinário estarem dotados de uma linguagem
poética e metafórica, a fim de deleitar a aristocracia leitora sedenta por beleza e arte, eles
deixam transparecer interesses de um aristocrata galo-romano, membro da aristocracia
imperial, no caso aqui analisado, de ter de novo a África sob a égide de Roma. Através dos
recursos estilísticos e retóricos da poesia do século V, vemos expressos nos Panegíricos de
Sidônio, que ainda se almejava retornar a um contexto em que os imperadores romanos eram
os senhores de todo o Mediterrâneo aliados às elites provinciais, como era o caso da própria
família de nosso autor, como mostramos ao apresenta-lo. É assim que Sidônio representa o rei
Genserico apenas com características extremamente negativas, pois ele, como líder vândalo,
era um entrave para o poder de Roma e das elites que governavam o Império.

Devemos salientar que não consideramos estas representações, seguindo os passos de


Chartier (1988), como simples abstrações do autor, mas como uma forma de ação política, um
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artifício usado por Sidônio para denigrir alguém que representava um perigo eminente ao poder
imperial de Roma e fazer seus leitores apoiarem o imperador que ele elogia como capazes de
vencer os temíveis vândalos.

Entretanto, é importante percebermos que Sidônio Apolinário não representa todos os


povos de origens germânica da mesma forma. Nosso autor apresenta características muito mais
negativas àqueles que ameaçam à ordem e poder imperial romano, mostrando esses
personagens como dotados de características animalescas, como mostramos nos trechos
apresentados sobre Genserico e os vândalos nos Panegíricos. É assim que povos como os
visigodos, que já possuíam um reino constituído dentro dos limites do Império e já colaboravam
com o poder romano, são representados, por sua vez, de forma distinta dos vândalos. Será dessa
forma que Sidônio representará os “bárbaros”, de acordo com o papel que eles cumpriam
naquela sociedade e de acordo com a maneira como se relacionam com o poder imperial
romano.

REFERÊNCIAS 525
Referências documentais
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ISSN: 2525-7501
A ALQUIMIA NO REINADO DE FELIPE II269

Sabrina Rodrigues Costa270271

RESUMO

Este trabalho tem em vista apresentar fontes primárias referentes ao período do reinado de
Felipe II, rei da Espanha de 1556 até 1598, para discutir a relevância das práticas de magia e
alquimia que ocorreram neste reinado e como elas estiveram ligadas diretamente a Felipe II. A
alquimia é uma prática que combina desde elementos da química e da medicina até elementos
esotéricos. As práticas alquímicas e outras atividades de cunho esotérico tiveram grande
notoriedade na Espanha, no período do governo de Felipe II, onde esse interesse sobre as
crenças ocultas, sobre os ‘’conhecimentos proibidos’’ passou a se tornar presente entre os
‘’homens de saber’’ da época. E, apesar de Felipe II ter sido grande defensor do cristianismo
em seu reinado, ficou conhecido por ser um líder adepto de práticas esotéricas, pois não hesitou
em ter contato com as práticas alquímicas e mágicas, onde os motivos para essa procura podem
ser encontrados em causas referentes à economia e a saúde. Então, este trabalho visa refletir
sobre o lugar da alquimia e suas práticas no reinado de Felipe II.
Palavras-chave: Alquimia; Felipe II; Esoterismo. 527

INTRODUÇÃO

O presente artigo visa fazer uma análise de fontes primárias e secundárias que estão
sendo utilizadas para a produção deste projeto de pesquisa. A pesquisa está em seus momentos
iniciais, e tem como objetivos finais observar a figura de Diego de Santiago como sujeito,
alquimista, e como se inseria no contexto da época; analisar a importância da alquimia e sua
notoriedade naquele período; analisar aspectos da medicina tradicional e da alquimia em si;
perceber a importância das figuras de Diego de Santiago e de Felipe II para entender o
esoterismo na Espanha do século XVI. A fonte primária de mais relevância que será utilizada
para a produção deste projeto data o ano de 1598, publicada na cidade de Sevilla, na Espanha,

269
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria
270
Graduanda do curso de História na Universidade Federal de Santa Maria – RS/Brasil. E-mail:
sabrina_rodrigues_costa@hotmail.com
ISSN: 2525-7501
e escrita por Diego de Santiago, alquimista do El Escorial do período, denominada de: Arte
separatoria y modo de apartar todos los Licores, que se sacan por vía de Destilación: para que
las Medicinas obren con mayor virtud y presteza. Também como fonte primária, irei me utilizar
da obra Opera omnia medico-chemico-chirurgica, de Paracelso, que foi publicada no ano de
1658. Como fontes secundárias, serão utilizados artigos do professor da Universidad de Buenos
Aires, Juan Pablo Bubello, que estuda e investiga representações, práticas, objetos e agentes
que explicam o esoterismo ocidental. Autores como Antoine Faivre, Peter Burke e Roger
Chartier também serão utilizados para uma análise do esoterismo ligado a história cultural.

Capítulo I - Esoterismo, alquimia, Felipe II, Diego de Santiago e paracelsismo

O esoterismo é um campo de estudo não muito abordado e, definir este termo não é uma
tarefa fácil. A partir do livro O Esoterismo de Antoine Faivre, podemos perceber que, somente
"no início do Renascimento, começou-se a reunir uma variedade de materiais antigos (...) e

528
acreditava-se na época que estes poderiam constituir um conjunto homogêneo". (FAIVRE,
1994, p. 12). Materiais esses encontrados nas regiões greco-latinas medievais, ligados a "formas
de religiosidade helenísticas (estoicismo, gnosticismo, hermetismo, neopitagorismo) e mais
tarde às três religiões abraânicas". (FAIVRE, 1994, p. 12). E, segundo Faivre, é a partir do
Renascimento que se começa a entender que esses estudos podem ser considerados
complementares um do outro, passando a serem sinônimo de esoterismo e compondo a
chamada “Tradição Esotérica Ocidental”.

Faivre nos traz que o esoterismo ocidental é formado por “seis características
fundamentais ou componentes, distribuídos de acordo com uma dosagem variável dentro de
seu vasto contexto histórico e concreto”. (FAIVRE, 1994, p. 17). Os seis elementos que Faivre
elenca são: as correspondências; a natureza viva; imaginação e mediações; a experiência de
transmutação; a prática da concordância e a transmissão. Dentro do elemento “transmutação”,
no contexto trabalhado pelo autor, podemos perceber uma direção a alquimia onde o autor vai
trazer que:

(...) o objeto de uma parte importante do corpus alquímico, em particular desde o


início do século XVII, é menos descrever experiências de laboratório do que
apresentar de modo figurativo essa transmutação de acordo com um percurso
ISSN: 2525-7501
balizado: nigredo (morte, decapitação da matéria-prima ou do velho homem), albedo
(a obra em branco), rubedo (a obra em vermelho, pedra filosofal). Foi possível
sugerir a aproximação das três fases da vida mística tradicional: purgação,
iluminação, unificação. (FAIVRE, 1994, P. 21-22)

E, dentro da alquimia é que se insere meu foco da pesquisa. A partir do século XVI, as
práticas esotéricas na Espanha vão começar a surtar interesse e:

Sin embargo, la clara parcelación observable entre la ciencia más o menos


institucionalizada y la cultura extraacadémica se pierde, en cierta medida, en el
Renacimiento y, a pesar de que el siglo XVI es, en el aspecto médico, eminentemente
galénico, se aprecia una apertura a otras corrientes intelectuales: el neoplatonismo, el
atomismo clásico, la filosofía natural estoica, la astrologia, la tradición hermética y la
alquimia. (BARONA, 1993 apud GÓMEZ, 1999, p. 229).

As buscas pelas práticas esotéricas podem ser ligadas a questionamentos em relação ao


cristianismo. Quando se tem duvidas sobre a “pureza” do cristianismo, se busca a alquimia, o
eretismo, para se “purificar” o cristianismo. Essas buscas também estão ligadas a crença em
relação a alquimia, que prometia resultados muito satisfatórios como, por exemplo, o elixir da
juventude. 529
Neste sentido, entra o rei Filipe II, que foi uma figura de muito poder. Além de rei da
Espanha, também foi imperador do sacro-império, rei de Portugal e Algarves e exercia grande
influência como apoiador do cristianismo. Mas, apesar de ser cristão, não deixou de lado seu
interesse pelo esotérico e, desta forma, acabou fazendo com que a Espanha fosse um dos centros
de práticas alquímicas do século XVI na Europa. Felipe II, ao criar o castelo El Escorial, tinha
o interesse de montar um centro onde pudesse juntar todos os conhecimentos possíveis sobre
práticas que envolvessem o esotérico e que tais conhecimentos pudessem servir para atender
suas necessidades.

Familiarizado desde la adolescencia con el humanismo, lector asiduo de Erasmo y un


gran aficionado a los libros de magia y ocultismo. (...) Seguía con interés los
procedimientos para conseguir plata y oro, y la labor desarrollada en la Botica de este
Monasterio de El Escorial es un testimonio fundamental de su interés por las técnicas
de destilación, la obtención de esencias, aceites, magisterios, tinturas, soluciones,
coagulaciones y sales para diversos usos, entre otros el medicinal. (BARONA, P. 181-
182)
ISSN: 2525-7501
E, para que as práticas esotéricas entrassem em ação, Filipe II contratou alquimistas,
químicos e estudiosos e, dentre estes, estava a figura de Diego de Santiago. Figura fundamental
para entendermos o contexto de práticas alquímicas da Espanha do século XVI.

Diego de Santiago foi um destilador contratado pelo rei Felipe II para atuar nas
dependências do El Escorial, mais especificamente em um centro destilatório que havia no
castelo:

En el Laboratorio de destilación de El Escorial trabajan extranjeros como el flamenco


Francisco Holbecq, el más antiguo de los «Destiladores de Su Majestad»; el ya citado
Juan Vicencio Forte, Richard Stanyhurst, católico exiliado de Inglaterra, y los
españoles Juan del Valle, Juan de Ausnero, Juan de Sancten, Justo de Frave y, el más
importante de todos, Diego de Santiago. (GÓMEZ, 1999, P. 233).

Em 1598 publicou sua obra mais notória, conhecida como Arte Separatória. Nesta obra,
Diego de Santiago vai trazer seus experimentos, suas experiências como destilador: "libro
intitulado Arte separatoria, que tratava de muchos experimentos, y observaciones naturales,
importantes a la salud y a otras materias tocantes a la comodidad publica"272. (SANTIAGO,

530
1598, p. 6).

A obra de Diego de Santiago foi escrita em espanhol e não em latim. Foi a primeira obra
que tratava sobre conhecimentos científicos escrita em língua vulgar, já com o sentido de
difundir esses conhecimentos:

Diego de Santiago escribe en lengua vulgar y no en latín; en la España científica del


siglo XVI se escribe en latín y en romance y aunque los que lo hicieron de esta manera
recibieron ataques de los primeros, es obvia la existencia de un fuerte movimiento en
favor de la lengua vulgar para difundir los conocimientos científicos. (GÓMEZ, 1999,
P. 228).

O professor Juan Pablo Bubello, em seu artigo denominado Arte separatoria e hijos del
arte en las prácticas y representaciones de Diego de Santiago (Sevilla, 1598) y el lugar de
España en el Esoterismo Occidental, traz um questionamento pertinente. O que significava a
Arte Separatória para Diego de Santiago neste período?

Ya en el título de su tratado, encontramos una alusión que nos introduce


paulatinamente tanto en el sentido de sus prácticas como en el significado de sus
representaciones: un arte “separatoria” consistente en la “destilación” de ciertas

272
Grafia original: “libro intitulado Arte feparatoria, que trataua de muchos experimentos, y obfernaciones
naturales, importantes a la falud y a otras materias rocantes a la comodidad publica”.
ISSN: 2525-7501
sustancias para que “las medicinas obren con mayor virtud y presteza.
(...)Paralelamente, descubrimos lo que quizás sea uno de los objetivos más importantes
de su Arte: mantener la juventud y vivir sin enfermedad .(...) En síntesis. De Santiago
esta presentado un Arte Separatoria que, basado en la destilación y estando vinculado
a una medicina “espiritual”, permite mantener la salud en el cuerpo humano sin
enfermedad alguna y “sustentar la juventud”. (BUBELLO,2015, P. 82).

Em a Arte Separatória, Diego de Santiago vai trazer suas experiências como destilador
do El Escorial:

(...) recordemos en primer lugar que numerosa evidencia histórica permite afirmar que
la palabra destilación tenía en España bastante antigüedad para fines del siglo XVI.
(...) Pero nuestro caso merece mayor atención. Pues, en segundo lugar, relacionó em
numerosos pasajes a su destilación con las transmutaciones de elementos en el marco
de su medicina espirituosa. (...) Así, es claro que el significado de esta destilación se
vincula con la obtención de lo que ya los alquimistas medievales llamaban elixir (del
árabe al-iks¯ır) para mantener la juventud. Por ende, debemos retrotraernos desde
1598 no a mediados de la centuria del 1400, sino, más atrás, hasta el siglo XII.
(BUBELLO,2015, P. 83).

Diego de Santiago relaciona a destilação dos chamados espíritos do vinho com algumas
técnicas para dissolver ouro. (BUBELLO, 2015, p. 88).

Por ende, es claro que los términos destilación, quintaesencia y espiritus del vino 531
integraban un horizonte cultural particular que vincula a Diego de Santiago con
prácticas y representaciones alquímicas específicas, cuyos significados, si bien remiten
a antecedentes tardo-medievales, son coherentes con los desarrollados en la Europa
central, en un horizonte de significados alquímicamente paracelsista difundido desde
la segunda mitad del siglo XVI. (BUBELLO,2015, P. 87).

Juan Pablo Bubello também vai trazer que Diego de Santiago se vincula com a tradição
esotérica ocidental, campo de pesquisa de Bubello:

(...) Diego de Santiago sí se vincula con la tradición esotérica occidental, tanto del
período tardo medieval como el del temprano-moderno, cuando hace referencia a las
dificultades, persecuciones, críticas, debates y cuestionamientos que ha sufrido su Arte
y cuando, frente a ese universo de sentidos, construye su apología para defenderlo.
(BUBELLO,2015, P. 91).

Ainda partindo de Bubello, temos a noção de que a Arte Separatória pode ter significado
para Diego de Santiago, indo além de apresentar suas experiências como destilador:

(...) sus prácticas y representaciones adquirían un sentido que iba mucho más allá de
lo alquímico-destilatorio, o lo medicinal, o lo astrológico. A partir de sus palabras y
labores, entendemos que el “Arte separatoria”, junto a la destilación, la quinta
esencia, los espiritus del vino, la cura de enfermedades, el preparado minucioso de
vidrios y vassos y la astrologia se integraban, por un lado, con un horizonte cultural
ISSN: 2525-7501
de significados cristianizado, neoplatónico y, sobre todo, paracelsiano -coherente con
las características específicas de la alquimia de la segunda mitad del siglo XVI-; por
otro, pero paralelamente, convergían discursivamente en su texto para defender y
legitimar, en el marco antialquímico imperante dentro y fuera de España, a las
prácticas y representaciones de los “hijos del Arte”. (BUBELLO,2015, P. 95).

Na obra de Diego de Santiago, também vemos grande influência de Galeno e Paracelso,


uma vez que a teoria que a obra traz é de uma medicina não tradicional, e compactua de
pensamentos de Galeno, tais como:

La terapéutica galénica se basaba en: a)la naturaleza de la enfermedad: carácter de


la misma, tipo, violencia, etc.; b)la naturaleza del órgano donde se asienta, ya que los
hay secos, húmedos, fríos y calientes en diferentes grados; c)la constitución biológica
del enfermo y d)los agentes extemos nocivos, principalmente el aire ambiental y los
sueños. (GÓMEZ, 1999, P. 238).

A figura de Paracelso, com o chamado “paracelsismo”, foi uma figura de muita


importância para a cena alquímica. Paracelso ia contra os saberes tradicionais da medicina da
época e tinha como maior inspiração Galeno. Seu foco principal de trabalho foi a medicina e
relacionou-a com outros saberes como alquimia, filosofia e religião. (GÓMEZ, 1999, p. 230).
A obra de Paracelso, Opera Omnia, conhecida no Brasil como A chave da alquimia, será uma
532
fonte primária de grande importância para a produção deste trabalho. Nesta obra, ele vai teorizar
a alquimia trazendo suas ligações com a medicina não tradicional. Paracelso acreditava que a
alquimia devia estar contida na medicina:

Paracelso considera que la alquimia debe impregnar a la medicina: el médico debe


ser un alquimista y éste no debe de buscar la obtención del oro y de la plata, sino
preparar remedios curativos. (...) Según su teoría, hay una perfecta relación entre la
vida humana y la del Universo y así, los tres elementos alquímicos, la sal, el azufre y
el mercurio, las tria prima, se relacionan con el espíritu, alma y cuerpo humanos.
(GÓMEZ, 1999, P. 130)

CONCLUSÃO

Como já indicado no começo deste artigo, o presente trabalho está em seus momentos
iniciais e este artigo teve o intuito de explanar algumas das fontes de maior importância que
serão utilizadas e analisadas para a produção do projeto.

A fonte primária que será meu ponto de partida para a proposta do projeto de pesquisa,
que data o ano de 1598, está em bom estado, com uma tipologia de fonte razoável e fácil de
ISSN: 2525-7501
entender. A obra Opera Omnia de Paracelso também está em bom estado, com facilidade para
a leitura. Antoine Faivre também vai ser um autor de grande importância pois traz a base do
que é o esoterismo, a partir de seu livro O Esoterismo. Artigos de professores como Juan Pablo
Bubello, Francisco Teixidó Gómez, Josep Lluis Barona serão de grande importância, para um
entendimento sobre a figura de Felipe II, de Diego de Santiago, do El Escorial e seus centros
destinados a práticas esotéricas, sobre a medicina não tradicional, enfim.

Então, se conclui que a partir das fontes primárias citadas e de fontes secundárias, como
artigos dos professores citados e leituras que possam surgir posteriormente, irá se fundamentar
este trabalho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
533
BARONA, J. L. El Escorial y las nuevas corrientes de la medicina renacentista. p. 155 -
187. Universidad de Valencia.

BUBELLO, J. P. Arte separatoria e hijos del arte en las prácticas y representaciones de


Diego de Santiago (Sevilla, 1598) y el lugar de España en el Esoterismo Occidental.
Universidad de Buenos Aires/Universidad Nacional de La Plata. Anales de Historia Antigua,
Medieval y Moderna: 2015.

FAIVRE, A. O esoterismo. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1994.

GÓMEZ, F. T. Aspectos Médicos Del Arte Separatoria de Diego de Santiago. Revista


Asclepio: 1999.

PARACELSO. Opera omnia medico-chemico-chirurgica. Genevae: 1658.


ISSN: 2525-7501
SANTIAGO, Diego de. Arte separatoria y modo de apartar todos los Licores, que se
sacan por vía de Destilación: para que las Medicinas obren con mayor virtud y presteza.
Sevilla: 1598.

534
ISSN: 2525-7501
ANTIGUIDADE TARDIA OU PRIMEIRA IDADE MÉDIA? A DISCUSSÃO
HISTORIOGRÁFICA E AS “FORMAS” DA HISTÓRIA

Luiza Batú Rubin

RESUMO

O trabalho objetiva apresentar a discussão historiográfica sobre as denominações de


"Antiguidade Tardia" e "Primeira Idade Média", muito utilizadas por antiquistas e
medievalistas para referir-se ao momento de transformação das estruturas do Império Romano
à formação das estruturas feudais. É um período apresentado com diferentes marcos temporais,
variando segundo a opinião de cada historiador e a região estudada. Utilizaremos a ideia de
continuidades da Antiguidade presentes no documento De correctione rusticorum, de Martinho
de Braga, datado do século VI d.C., para defendermos a utilização do termo "Antiguidade
Tardia". Discussões teóricas e conceituais são sempre benéficas para a historiografia, que
sempre se transforma, e esse é um debate muito atual e importante de ser apresentado, sobre
uma área de estudos que tem crescido no país. Pretendemos finalizar com a ideia de "forma"
histórica do historiador Norberto Guarinello, que explica como as nomenclaturas dos períodos
são morfologias simbólicas e que servem para obtermos uma compreensão histórica no espaço
e no tempo. Na prática o rumo da história não segue uma linha rígida, as continuidades e
535
rupturas dos períodos caminham juntas, sento tal percepção mais importante do que apenas
debater sobre qual nomenclatura seria a mais correta.

Palavras-chave: Antiguidade Tardia; Primeira Idade Média; Martinho de Braga; De


Correctione Rusticorum; Morfologia da História.

INTRODUÇÃO


Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria. Pesquisa
vinculada ao projeto “Fronteiras Culturais na Busca por Antiguidades Plurais: Gênero, “Sexualidades”, Magia e
Identidades, sob coordenação e orientação da Profa. Dra. Semíramis Corsi Silva (Departamento de História da
UFSM).

Graduanda do Curso de História da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Membro do Grupo de
Estudos sobre o Mundo Antigo Mediterrânico da UFSM – GEMAM/UFSM.
ISSN: 2525-7501
Um dos objetivos de se fazer uma história científica é que ela possa ser transformada
em um conhecimento compreensível para a atualidade. Uma condição para que essa história
científica exista, é supor que haja uma ordem no passado a ser estudado. Cada historiador pensa
o passado de acordo com uma determinada teoria ou modelo, e não é possível que isso não
transpareça no trabalho de interpretação das fontes (GUARINELLO, 2003, p.45).

Quando falamos na escrita da história é improvável que não pensemos em documentos,


no entanto, trabalhamos com o que restou deles e não com a sua totalidade. Para a história
antiga e medieval, a falta de documentos e vestígios é bastante comum, e os especialistas de
cada área convivem com isso no dia a dia das pesquisas.

Retornando ao resultado esperado de uma história científica, construir uma história


inteligível no presente, para a história antiga é comum que o historiador faça a união de
documentos desconexos para por ordem nas informações. Segundo Norberto Guarinello, é para
isso que criam-se as “formas”:

536
Para estabelecer essas relações, têm que pressupor que fazem parte de uma mesma
realidade, que estão dentro de uma mesma unidade de sentido. É assim que impõem
ordem ao caos da documentação, assumindo coerência e continuidade do que é, por
si mesmo, incoerente e descontínuo. O procedimento básico para relacionar
informações extraídas de documentos no universo incoerente dos vestígios do passado
é um processo de generalização que cria formas ou, em outras palavras, grandes
contextos (GUARINELLO, 2003, p. 45).

Muitas generalizações precisam ser feitas, infelizmente, na pesquisa em história antiga.


Como dar sentido a fragmentos ou quando nos faltam informações essenciais? Como
Guarinello (2003) explicita, denominar um período é apenas uma das fases de todas as
generalizações a serem feitas.

Unimos documentos com características comuns, de épocas e localidades próximas, os


relacionamos e colocamos dentro da forma histórica criada, é isso que o historiador citado
chama de morfologia da história, tão essencial quanto os métodos e quanto às teorias no
trabalho historiográfico. Essa subjetividade é necessária, precisamos das formas, mas, acima de
tudo, devemos utilizá-las sempre tendo em mente a sua invenção e arbitrariedade. Elas “não
podem ser consideradas como puros fatos, elementos concretos da realidade.”
(GUARINELLO, 2003, p. 50).
ISSN: 2525-7501
É nessa linha de raciocínio que os dois conceitos discutidos nesse trabalho serão
analisados. Ambos criados por historiadores com teorias diferentes, especialistas ou em
antiguidade ou em idade média, que analisam a história segundo critérios válidos, porém
imbuídos da subjetividade de cada pesquisador e de sua maneira de pensar a história, segundo
métodos e teorias que são escolhas. É importante frisarmos que o caráter científico da história
não está em questão, pois acreditamos serem essas discussões sempre benéficas para o saber
em nossa área de estudos, e, de forma alguma, resultam em algum descrédito para a disciplina.

Capítulo I – Antiguidade Tardia e Primeira Idade Média

O conceito de Antiguidade Tardia apareceu pela primeira vez no vocabulário alemão,


Spatäntike, citado pelo arqueólogo Alois Riegl, em 1901. Johannes Straub, Arnaldo
Momigliano, Henri-Irénée Marrou, Jean Michel Carrié e Peter Brown são nomes importantes
para essa historiografia que vai de encontro com a ideia de Baixo Império e os preconceitos que
a acompanharam por muito tempo na escrita da história tradicional. No Brasil, temos como uma
das pioneiras em defender o termo, a antiquista Maria Margarida de Carvalho, com o seu livro
537
Paideia e Retórica, e o também antiquista Renan Frighetto, com o livro Antiguidade Tardia:
Roma e as monarquias Romano-Bárbaras numa época de transformações (séculos II – VIII).

Ao uso da expressão comum “queda do Império Romano” podemos referenciar


diversos historiadores e escritores de épocas passadas até os dias de hoje, no entanto esta seria
uma tarefa excessivamente extensa que não está nos nossos objetivos deste trabalho. Contudo,
para defendermos o conceito de Antiguidade Tardia, precisamos relembrar que por muito tempo
se falou no fim do Império Romano e em um período posterior de decadência e de estruturas e
cultura inferiores, acompanhadas de dois elementos chave: o cristianismo e os “bárbaros”.
Muitos desses autores, dos quais cabe um destaque ao historiador iluminista Edward Gibbon
em sua obra Declínio e queda do Império Romano, possuíam uma imagem do período
completamente pessimista, majoritariamente influenciada pela sua contemporaneidade do
século XVIII. Gibbon foi influenciado pelo anglicanismo, e “extraiu poesia das ruínas, tão
característico do pré-romantismo europeu” (CARRIÉ, 1999, p. 3).
ISSN: 2525-7501
Os preconceitos eram múltiplos para o fim do período greco-romano e início do
período da Antiguidade Tardia, muito tempo sinônimo do período das “Trevas”. Os reinos
bárbaros contra a civilização foram tema bastante discussão no século XIX, e as mesmas
“exprimiam em realidade a própria inquietude das nações ou de classes dominantes pouco
seguras delas próprias” (CARRIÉ, 1999, p.3). Além disso, a historiografia pós 1ª guerra
mundial também representou muito do contemporâneo, sendo pessimista e retratando o “Baixo
Império” como o legítimo fim do mundo. A ideia de uma Antiguidade Tardia surgiu no início
do século XX, mas ainda podemos repensar os preconceitos em relação ao período, desconstruir
os mitos históricos difundidos, revisar a historiografia, reler os textos mal interpretados, além
de usufruir das novas fontes que já há algum tempo o historiador considera legítimas, como as
arqueológicas, literárias, fontes não oficiais de governos e governantes, etc.

Jean Michel Carrié (1999) acredita em mais de uma crise do Império Romano, e que
a palavra “crises” não soa como a ruptura de uma civilização. Além do mais, a Antiguidade não
tem seu termo cronológico no Império Romano se pensarmos na continuação nos bizantinos e
na sua influência nos reinos bárbaros. Para ele, a concepção de Antiguidade Tardia não deve
ser a de um período de transição, e sim como um original, que se prolongaria até a conquista
538
muçulmana no oriente e na África do Norte, quando Bizâncio distancia-se mais do passado
romano para cuidar de seus interesses vitais.

As pesquisas sofreram mudanças com a influência de novas ciências sociais na


história, e com isso, Carrié (1999) acredita que a transição do mundo antigo aos mundos
medievais tornou-se mais atraente do que a problemática de “queda do Império Romano”. Com
isso, é um dos importantes historiadores que nos ajudam a trabalhar o período com esse tipo de
perspectiva da qual compactua:

Apresentar a nova visão de uma Antiguidade Tardia desembaraçada de seu imaginário


negativo e catastrófico: de um período da história que não é nem o fim de um mundo,
nem o começo de outro, mas tudo isto ao mesmo tempo, principalmente, um período
possuidor de sua própria identidade, de sua irredutível singularidade, que se deve
estudar por ele próprio (CARRIÉ, 1999, p.11).

Entre 1990 e 2000, Carrié defendeu a ideia de uma mutação do mundo clássico para o
medieval, considerou a Antiguidade Tardia um período localizado entre os séculos II e VIII.
Contrário ao pessimismo comum relativo ao Baixo Império, propôs analisar a Antiguidade
ISSN: 2525-7501
Tardia de uma forma inovadora, e tratá-la como um período único, “portadora de continuidades
mutáveis em relação ao mundo romano dos tempos da República e do Principado”
(FRIGHETTO, 2009, p. 23).

Apesar de o uso desse conceito ter iniciado com Alois Riegl, foi com Johannes Straub
e seus estudos sobre os séculos III e IV que ele ganhou força, quando por meio da filologia ele
tentava apresentar a tradição clássica e helenística revigorada e reinterpretada nesse período. Já
o historiador Arnaldo Momigliano considerava a Antiguidade Tardia como um momento
autônomo e particular, em que características antigas foram transformados e reelaborados, o
que não exclui a importância da tradição clássica. Um dos exemplos que podemos usar para
mostrar essa “interação cultural” da qual ele falava seria a “utilização de informações e
perspectivas pagãs por parte dos autores cristãos, uma característica que nos demonstra a
profícua interação cultural específica da Antiguidade Tardia e um de seus mais significativos
exemplos” (FRIGHETTO, 2009, p. 21).

Henri-Irénée Marrou, em 1979, foi contrário a uma decadência romana e a favor do


termo Antiguidade Tardia, período original e distinto dos anteriores, capaz de inovar tanto em 539
invenções técnicas como em mudanças de valor e hábitos mentais em longo prazo, como
percepção moral do corpo humano, por exemplo. Alguns estudos de Marrou sobre Agostinho
e Jerônimo nos mostram como o Cristianismo e sua ascensão não estiveram livres de problemas
internos.

Na década de 1970, o historiador Peter Brown publicou uma das obras clássicas para
aqueles que desejam estudar o período da Antiguidade Tardia, apesar de muitas coisas terem
sido revistas desde então, no português chamada O fim do Mundo Clássico. De Marco Aurélio
a Maomé. Na obra, Brown debateu sobre o contexto de mudanças e continuidades que foi a
passagem do mundo clássico para o contexto da Antiguidade Tardia e Idade Média.

Renan Frighetto (2012), antiquista brasileiro, divide cronologicamente a Antiguidade


em quatro períodos, sendo o último deles a Antiguidade Tardia, que abarcaria do século III ao
VIII d.C. Para ele, os estudos e novas abordagens para esse período histórico têm uma
predominância:
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[...] da ideia de permanências, continuidades provenientes do mundo clássico e
helenístico que se mantiveram vivas na Antiguidade Tardia. Mas devemos recordar e
ter sempre em consideração que novas concepções ideológicas, representadas pelo
pensamento neoplatônico e cristão, acabaram por transformar as ideias características
e oriundas dos tempos clássicos e helenísticos. Assim, podemos dizer que se tratava
de uma tradição transformada que mantinha a sua característica legitimadora,
agregando as novas criações provenientes do pensamento tardo antigo, inclusive sob
o ponto de vista político (FRIGHETTO, 2012, p. 23),

Com isso, podemos dizer que assim como os outros autores citados acima, Frighetto
fala em uma transformação e não em ruptura, como fazia a historiografia tradicional para contar
a história do fim da civilização e da cultura romana e o início da barbárie e do cristianismo
hegemônico durante as “trevas medievais”.

Em sua obra Antiguidade Tardia: Roma e as monarquias Romano-Bárbaras numa


época de transformações (séculos II – VIII), Frighetto nos apresenta a mudança em quatro
conceitos quanto a sua concepção na Antiguidade Clássica e na Antiguidade Tardia, sendo eles:
império, reino, cidadão e cristão.

O poder do Império desde o século II a.C. tem uma conotação personalista e sem condição
divina, fator que se transformará a partir do século III d.C., já na Antiguidade Tardia. A 540
sacralização da imagem do imperador implica no conceito de império diretamente, que será
agora militar e sagrado.

A ideia de reino sempre foi considerada como “bárbara” na República e Principado


romano, inclusive na Antiguidade tardia pensadores romanos e pagãos reforçavam como o reino
era algo ilegítimo. Os cristãos do século IV e V pensavam diferente, e retiraram essa carga
negativa do termo reino. Ambos os termos transformados na antiguidade tardia, “inserem-se
num ideário político-religioso elaborado com a clara intenção de apresentá-los como portadores
e, ao mesmo tempo, receptores de poderes concedidos” (FRIGHETTO, 2012, p. 28).

Os conceitos de cidadão e cristão também sofrem mudanças. Cidadão na época clássica


e helenística era aquele que “participava de forma ativa nos desígnios políticos de sua
comunidade cívica” (FRIGHETTO, 2012, p. 28). Suas condições econômicas e jurídicas eram
essenciais para que pudesse exercer politicamente alguma função, o que limitava o número de
pessoas aptas a isso. Na Antiguidade Tardia a cidadania Romana já teria sido estendida a todos
os habitantes livres do Império, no entanto, o historiador nos mostra que a noção de cidadão
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apesar de mais ampla a partir do século III, perde espaço para concepções que define como
regionais.

O cristianismo na Antiguidade Tardia era um representante do mundo civilizado, a


manutenção e legitimação do poder, e um “elemento ideológico essencial para alcançar-se a
unidade política” (FRIGHETTO, 2012, p. 31), portanto, a “barbárie” e os pagãos precisavam
ser convertidos e integrados na civilização cristã por meio da evangelização, fator que
poderemos observar com Martinho de Braga e sua obra De Correctione Ruscticorum. Frighetto
ao longo de todo seu livro irá demonstrar o período anterior a Antiguidade Tardia, no qual para
ele já se encontram sinais das transformações das realidades clássicas e helenísticas inerentes
ao mundo da Antiguidade Tardia. O livro se divide para falar do Principado e alguns dos sinais
da crise romana, a regionalização e fragmentação do poder político imperial no século III, a
nova configuração do Império Romano Tardio e a integração dos bárbaros e a sua integração
no mundo imperial dos séculos IV ao VIII.

Recentemente, outros historiadores criticaram alguns dos preceitos do conceito de


Antiguidade Tardia, como é comum no andamento e transformação da historiografia. Alguns 541
deles, como Bryan Ward-Perkins em A Queda de Roma e o fim da civilização, e os brasileiros
Gilvan Ventura da Silva, Carolline da Silva Soares, Hilário Franco Junior e Paulo Duarte Silva,
escrevem a respeito de suas ressalvas para esse termo e suas interpretações de qual deveria ser
a denominação mais adequada para esse período que resulta em tanto debate.

Hilário Franco Junior, grande medievalista brasileiro, em entrevista dada ao também


medievalista Ruy de Oliveira Filho (2005), opta pela nomenclatura de Primeira Idade Média
para o período compreendido entre os séculos IV e VIII d.C. Não seria mais um período de
Antiguidade pois muitas características basilares desse período estariam mudando. O Estado
estava mais fraco, a dinâmica social enrijecida, o cristianismo tornando-se hegemônico, ocorria
uma miscigenação lenta, mas marcante, entre romanos e germanos, e a vida e economia das
cidades estava retrocedendo, o que para Franco Junior significa uma nova fase, e não uma
continuação da Antiguidade. Outro elemento destacado nos argumentos de Hilário Franco
Junior é o latim. De acordo com seus estudos, o latim desapareceu entre IV e VIII como língua
falada, e só existia nos escritos eclesiásticos. É importante lembrar que esse termo, Primeira
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Idade Média, é aplicado para o ocidente europeu, não é compatível com o mundo bizantino ou
mundo árabe, e Franco Junior deixa esse limite bem claro.

Paulo Duarte Silva (2013), medievalista brasileiro a favor do conceito de Primeira


Idade Média, aprecia que Antiguidade Tardia tenha quebrado com a noção pessimista da
historiografia sobre o período, no entanto, também a critica. Para Silva, é visível sua dificuldade
de precisão cronológica, considera a argumentação sobre as “continuidades” genérica, apenas
baseadas em fontes dispersas. Também afirma que os defensores do termo negligenciam os
processos desenrolados no Ocidente, “correndo-se o risco de criar um panorama de exotismo
religioso e cultural” (SILVA, 2013, p. 82) e portanto, o uso de Primeira Idade Média não
exageraria no otimismo como a antiguidade tardia nem na ideia de trevas, da “Alta Idade
Média”.

Gilvan Ventura da Silva e Carolline da Silva Soares (2013), também historiadores


brasileiros, argumentam que o conceito de Antiguidade Tardia não engloba todas as facetas da
história da passagem da Antiguidade à Idade Média. Mesmo que se enfatizem as continuidades
e as criações de uma “Antiguidade Tardia” isso não faz deixar de ter ocorrido uma fragmentação 542
intensa do mundo romano. Segundo ele, houve sim um colapso e a perda de complexidade
social e se faz necessário novos termos que possam incluir tanto as mudanças quanto as
permanências desse período que anuncia a Idade Média.

Bryan Ward-Perkins em A Queda de Roma e o Fim da civilização, de 2006, considera


que houve sim um declínio da civilização romana na passagem entre os séculos IV e V. Para o
historiador, a visão da Antiguidade Tardia como repleta de realizações culturais positivas tem
raíz nas atitudes modernas em relação ao mundo. O império Romano não é mais
particularmente apreciado, e seu fim não é profundamente lamentado. Uma vez que a cultura
greco-romana já não é mais tão prestigiada, os séculos pós a extinção do mundo romano não
são mais automaticamente interpretados como Idade das Trevas. Apesar de aplicarmos a
palavra neutra “culturas” em vez de falar em “civilizações, e de aceitarmos que todas as culturas
são iguais e não mais ou menos importantes que outras, Ward-Perkins acredita que abandonar
por completo o conceito de uma civilização é arriscar impor uma visão excessivamente
horizontal sobre as culturas do mundo. A transição da época romana para o período pós-
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romano, foi, para ele, uma dramática deslocação da sofisticação para uma simplicidade muito
maior.

Ward-Perkins acredita que o problema maior da nova forma de pensar o fim do mundo
antigo é que todas as dificuldades e complicações são suavizadas numa transformação da
sociedade contínua e essencialmente positiva. Os invasores germânicos são pacificamente
acomodados, a cultura de Roma evolui lentamente, nada nunca ocorre demasiadamente mal.
Ele conclui que o século V assistiu a uma profunda crise militar e política, causada pela violenta
tomada de poder e de muita riqueza pelos invasores bárbaros. Também acredita que os séculos
pós-romanos assistiram a um declínio dramático na sofisticação e prosperidade econômicas,
com impacto em toda a sociedade. Frighetto afirma ser inquestionável as rupturas apontadas
por Ward-Perkins, no sentido político-institucional, no entanto afasta a ideia de que isso
significou uma decadência (FRIGHETTO, 2012, p. 24).

Para adentrarmos nesse complexo e interessante debate faremos algumas considerações a partir
de nossa própria leitura de um documento escrito na época, a obra De Correctione Rusticorum,
do bispo Martinho de Braga. 543

Capitulo II – O De Correctione Rusticorum e as permanências da Antiguidade


Clássica na Antiguidade Tardia.

O documento que analisamos é uma carta-sermão, escrita por volta de 572 d.C. por
Martinho de Braga. Por volta do ano 550 d. C. Martinho se dirigiu ao noroeste hispânico, logo
após a conversão dos suevos do arianismo para o catolicismo, fundou um mosteiro em Dume,
alcançou a posição de abade-bispo, e identificado com o processo de reorganização da igreja
local e acabou assumindo a liderança do episcopado na região, como bispo de Braga. Foi
considerado mesmo pelos seus contemporâneos um homem culto, conhecedor do grego e dos
autores clássicos, como Sêneca e Cassiano.

Sua ação pastoral e evangelizadora aparece em todas as suas obras, como o De


Correctione Rusticorum e também nos concílios os quais Martinho foi responsável de redigir
as atas, o I e II Concílios de Braga, que trataram das questões dogmáticas, disciplinares e
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litúrgicas. Sua ação não é individual, é uma tentativa que se enquadra nas atividades pastorais
que aconteceram não só na Hispânia, mas também na Gália e outros territórios em que o
cristianismo acabou se tornando uma doutrina dominante. Então além de difundir a cultura e o
modo de vida cristão, suas obras buscaram também firmar uma ortodoxia, mesmo esta não
estando completamente definida na época. Seus escritos mostraram essas tentativas e foram
diretrizes para um projeto de unidade e fortalecimento eclesiásticos, nem mesmo os clérigos
estavam plenamente organizados nessa época, muitos não seguiam a ortodoxia e mesmo não
sabiam diferenciar do que agora era considerado sagrado e o que era pecado.

Martinho foi uma personagem ativa na cristianização do regnum que buscará a


incorporação e identificação de um amplo público aos preceitos cristãos que estão sendo
definidos naquele contexto. É importante ressaltar, além de o caráter religioso, o caráter político
dessas ações pastorais em geral, que foram as necessidades da monarquia, uma instituição que
se reorganizava, buscava apoio econômico e político entre as elites suevas e que usava a religião
como uma nova via de legitimação do rei.

O texto será escrito então em 19 “parágrafos”, realmente curto e simplificado. 544


Martinho o denomina como um Sermo Rusticus, mas não porque ele era traduzido para uma
língua vulgar ou bárbara, e sim porque ele usou de um recurso teórico para ganhar a atenção e
cumplicidade dos ouvintes, usando uma linguagem a eles acessível (a obra foi usada para outros
clérigos em suas pregações), mesmo a escrita sendo em latim.

Esse título é dado pela tradição e pelos editores e estudiosos do texto, ele é uma carta-
sermão, uma resposta ao bispo Polêmio, sendo assim, não possui um título específico. A
tradução para o português do termo rustici será “gentes rurais”, mas não eram as pessoas do
campo as que Martinho referia-se. Houve uma mudança no conceito de rustici, antes sendo
sinônimo de paganus, gente do campo, mas essa palavra acaba sendo associada posteriormente
àqueles que não são cristãos, os pagãos ou os cristãos que fazem práticas consideradas erradas,
os “cristãos de nome”. Auditório de adesão instável ao cristianismo, nada ou pouco
cristianizado ou em regresso a antigos cultos.

Percebemos no De Correctione Rusticorum a tentativa de ensinar a postura correta de


um cristão para o povo. Martinho conta a história do mundo segundo o ponto de vista bíblico e
ISSN: 2525-7501
tenta encontrar explicações cristãs para demonizar os deuses que muitos ainda adoravam e as
práticas mágicas, augures e sacrifícios que eram frequentes tanto para os antigos habitantes do
Império Romano do ocidente quanto aos suevos não convertidos à ortodoxia católica. Eis
alguns exemplos do que Martinho percebia em sua sociedade do século VI d.C:

Esquecendo-se outra vez de Deus, criador do mundo, abandonaram o


criador e começaram a prestar culto às criaturas. Uns adoravam o sol,
outros a lua ou as estrelas, uns o fogo, outros a água profunda ou as fontes
de água, julgando que todas estas coisas não tinham sido criadas por Deus
para os homens dela se servirem, mas que elas próprias, criadas por si
mesmas, eram deuses. (Martinho de Braga, DCR, 6).

Como é que alguns de vós, que renunciaram ao demónio... Agora voltam


ao culto do diabo? Pois acender velinhas a pedras, a árvores e a fontes,
pelas encruzilhadas... Observar adivinhações... Vulcanálias e Calendas,
ornar mesas, pôr louros... Invocar Minerva no tear, observar o dia de
Vênus para o casamento... Encantamentos de ervas, para malefícios...
Que outra coisa é se não cultuar o diabo? (Martinho de Braga, DCR, 16).

O detalhe mais importante que essa obra deixou para a posteridade não foi uma
simples catalogação das práticas e cultos pagãos ainda existentes nesse período, apesar de ser
545
um dos bons exemplares que nos mostram isso. Com o De Correctione Rusticorum e outras
obras da Antiguidade Tardia podemos perceber que a instalação da religião cristã não foi tão
fácil nem rápida, as circunstâncias demoram mais tempo para afetar diretamente a mentalidade.
À vista disso, essas práticas antigas faziam sentido ainda no século VI d.C., por muitos
considerado parte de uma Alta Idade Média, em que o cristianismo já estaria consolidado e
exercendo o poder na vida e no imaginário das pessoas sem nenhum contratempo.

A expressão “sobrevivências pagãs” respaldaria a ideia de um cristianismo


hegemônico, que aparece no relato de vários do período, a ideia de que o paganismo se restringe
a resquícios de crenças, práticas e ritos, formas vazias que a ação pastoral se encarregaria de
tentar apagar, quando não fossem obliterados ou desnaturados e incorporados pelo cristianismo.
A historiografia mais antiga tenta concentrar a observação dessas práticas como sendo quase
exclusivas do noroeste peninsular, na Galécia e na região basco-cantábrica, realmente, a maior
parte dos casos que relatados nos documentos são dessas regiões que foram menos romanizadas
no princípio e depois menos cristianizadas. Tentarão também associar o paganismo unicamente
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aos camponeses “como a população de nível cultural mais baixo”. Todavia, precisamos
perceber que para muitas pessoas ainda não era claro qual a ortodoxia correta a se seguir, nos
campos e nas cidades, inclusive a aristocracia laica, os monarcas, e os integrantes do clero que
eram flagrados consultando magos e adivinhos, oferecendo leite no lugar do vinho, rezando a
missa dos mortos para pessoas vivas, entre outras práticas consideradas de “adoradores do
diabo”. Portanto a ideia de “sobrevivências pagãs” não deveria ser empregada, e segundo Ruy
de Oliveira:

[...] os ritos e as práticas pagãs não se restringiam a meras “sobrevivências”;


tampouco seriam simples gestos ou automatismos conservados de forma vazia, mas
implicavam uma sensibilidade ativa, uma realidade viva e vivenciada de forma
coerente pela religiosidade da época em que foram notadas e apontadas pelos autores
cristãos. (OLIVEIRA, 2012, p. 58).

CONCLUSÃO

As pregações de Martinho não parecem estar dotadas de uma intenção apenas


preventiva ou lutando contra lembranças residuais e obscuras, “meras impurezas”. O 546
paganismo foi um fato normal e habitual na península e no resto do ocidente medieval, sem
estar restrito a algumas áreas ou grupos sociais. Cristianização não é sinônimo de uma
conversão efetiva e imediata. A questão religiosa é um dos argumentos que se usa para falar
numa Antiguidade Tardia, o cristianismo é sim considerado um marco para a Idade Média,
contudo, como foi dito, há vários problemas enfrentados pela Igreja durante a instalação dessa
religião.

O ponto de vista religioso é apenas um dos focos que pode se dar a uma análise
historiográfica. Para que um conceito como o de Antiguidade Tardia se estabeleça é preciso
que outros ângulos sejam observados, como a política e a economia, por exemplo. Apesar de
considerarmos o termo mais adequado para o nosso objeto de estudo precisamos admitir que
há uma prevalência de que os antiquistas prefiram a Antiguidade Tardia e que os medievalistas
prefiram a Primeira Idade Média. É pressuposto que todos os historiadores trabalhados nesse
texto tenham apresentado critérios válidos para as suas preferências teóricas, contudo, a
subjetividade se encontra mesmo nas diferentes especialidades de cada um. Como Franco
Junior observa, “nenhuma classificação é neutra” e “cada nível do saber histórico tem seu
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próprio ritmo e não se pode estabelecer uma cronologia ampla a partir de apenas um ponto de
observação” (FRANCO JUNIOR, 2005, p. 233). Além disso, há que se considerar o século
estudado em cada trabalho historiográfico trabalhado para a adoção de uma ou de outra
nomenclatura, a região tratada e, especialmente, o aspecto: cultural, social, político, econômico,
etc.

Discussões como essa sempre serão importantes para a historiografia e para o modo
que escrevemos a história, e com esse pequeno texto tentamos demonstrar que apesar das
opiniões diversas a respeito desse período pós Antiguidade Clássica, acreditamos que o mais
importante é perceber como as mudanças não são imediatas, e sim graduais, não apenas para o
período Antigo, mas para todos os outros períodos históricos para os quais estabelecemos
marcos e datas iniciais e finais. A história não tem um ritmo rígido e, apesar de empregarmos
as “formas” para a sua explicação, é necessário que essa transposição de elementos de uma
forma para a outra seja percebida com clareza durante a pesquisa e a interpretação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 547

FONTE DOCUMENTAL

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comentários de Aires A. Nascimento. Lisboa: Edições Cosmos, 1997.

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548
Kingdom. Washinton D.C.: The catholic University of America, 1938.

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ISSN: 2525-7501

“NENHUMA MULHER PODE SER RETA”: O MALLEUS MALEFICARUM COMO


AGENTE DE DEMONIZAÇÃO E SUBJUGAÇÃO DO FEMININO273

Angélica Cicconet274

RESUMO

A magia como manipulação de poderes para influenciar e/ou transformar o curso natural de
eventos está presente em diferentes cenários e contextos históricos, influenciando e sendo
influenciada por outros saberes sociais. O presente trabalho visa analisar um contexto específico
no qual se apresentam esses poderes: o século XV, em um cenário de perseguição e intolerância
acerca dos mesmos. Nesse momento histórico, é possível observarmos várias formas de
imposição e justificação de um poder, principalmente perante as mulheres (devido ao fato de
que estas eram a grande maioria acusadas e condenadas pela prática de bruxaria). Esse poder
se apresentava tanto na atividade prática (os processos e condenações), quanto na teoria (a

549
publicação de diversos manuais inquisitoriais). No que diz respeito aos manuais, o Malleus
Maleficarum – Martelo das Feiticeiras, escrito por Heinrich Kraemer e James Sprenger e
publicado pela primeira vez em 1484 na Alemanha, é um bom exemplo de como o papel da
mulher na prática da bruxaria é constantemente reforçado. Pensando o Malleus como um guia
para os inquisidores na busca e punição de bruxaria, pretendemos analisar de que forma foi
construído o discurso demonológico do feminino forjado por Kraemer e Sprenger, que se
apoiam tanto em leis canônicas, quanto seculares, para a elaboração de um discurso dotado de
aversão à mulher. Também faremos considerações e apoiaremos nossa análise a partir do
conceito de gênero enquanto categoria de análise histórica apresentado por Joan Scott. Palavras-
chave: Demonização do feminino; Poder; Malleus Maleficarum; História de Gênero.

INTRODUÇÃO

A magia é um tema que muito inquieta pesquisadores e, em igual medida, se muito se escreveu
sobre ela no âmbito, inicialmente da Antropologia e mais tarde da História. Relacionando-a

273
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria, sob
orientação da Profa. Dra. Semíramis Corsi Silva (Departamento de História da UFSM).
274
Graduanda do curso de História – Licenciatura e Bacharelado da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Bolsista PIBID. Membro do Grupo de Estudos do Mundo Antigo Mediterrânico da UFSM – GEMAM/UFSM. E-
mail: angelicacicconet@gmail.com
ISSN: 2525-7501
com a religião ou com a ciência ou, ainda, com algum grupo social em específico, dependendo
do contexto em que viveu o observador da magia. Diversos pesquisadores, como Lévy-Bruhl,
se questionaram “por que as pessoas acreditam na magia” e as possíveis respostas abarcaram
desde uma “tentativa ilusória de intervir na ordem do mundo”, até a existência de uma
“mentalidade primitiva” (MONTERO, 1990). Para alguns antropólogos, porém, como
Durkheim ou Marcell Mauss, a pergunta a ser feita não era “por que as pessoas acreditam na
magia” e, sim, “qual o sentido da crença na magia” e, na tentativa de responder a esta questão,
surgiu a compreensão da magia como um sistema de pensamento com eficácia simbólica
(MONTERO, 1990). Esse sistema de pensamento que é a magia, refletido nas práticas mágicas,
se faz presente e é observável em inúmeras sociedades ao longo da História, com diferentes
crenças e práticas. Desde sociedades pré-estatais e suas práticas xamânicas, até a Roma Antiga,
com suas placas de maldição, e se prolongando muito antes ou muito depois destas duas, a
magia persiste. Apesar de persistir, porém, a magia não é sempre bem vista pela sociedade em
que se encontra e, incontáveis vezes, os praticantes de magia foram perseguidos, condenados
e/ou excluídos da vida social. O contexto da transição do século XV para o século XVI, na
chamada Europa Ocidental nos apresenta um aspecto peculiar para as reflexões sobre a magia, 550
suas representações e condenações ligadas ao que se acreditava, no âmbito da Igreja daquele
contexto, serem tais práticas: o grande número de pessoas perseguidas e julgadas, do qual a
gritante maioria era mulher. E, não bastasse isso, durante o período se produziu diversos
manuais inquisitoriais para auxiliar a perseguição: o Malleus Maleficarum é um destes que
varreram a Europa, e mais além, trazendo-nos suas ideias sobre a “natureza feminina”.

Capítulo I – A caça às bruxas na Europa Ocidental


“Então Javé Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele dormiu. Tomou então uma
costela do homem e no lugar fez crescer carne. Depois, da costela que tinha tirado do
homem, Javé Deus modelou uma mulher, e apresentou-a para o homem. Então o
homem exclamou: Esta sim é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será
chamada mulher, porque foi tirada do homem!” (Gênesis 2: 21-23)

Durante um período onde a religião estava intimamente conectada com todos os outros
aspectos da vida (social, cultural e política) e onde a mulher era constantemente sujeitada ao
homem, essa espécie de discurso, que justifica e legitima a sujeição, não era algo extraordinário.
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Porém a acusação, julgamento e execução de milhares de pessoas, principalmente mulheres,
durante os séculos XV, XVI e XVII, ultrapassa esse âmbito do discurso.

Brian Levack (1988) estimou um número de cerca de pouco mais de 100 mil processos
e 60 mil condenações pelo crime de bruxaria, mas os contemporâneos do processo e,
principalmente, os próprios inquisidores, estimaram um número várias vezes maior que chegou
a, por exemplo, 9 milhões de execuções. É importante, porém, diferenciar o número de
acusações e processos do número de execuções. Segundo Levack (1988, p. 20), “na maior parte
das regiões, a taxa de execuções foi inferior a 70 por cento”. Outro ponto a ser considerado,
porém, é a questão de que muitas pessoas não foram formalmente julgadas ou mesmo
formalmente acusadas, mas viviam sob a suspeita de bruxaria e, dessa forma, tiveram de
aguentar a mesma marginalização na sociedade daqueles que o foram.

Os números finais, no entanto, não revelam a dimensão total ou a intensidade dessa


grande caça às bruxas seja no que diz respeito a cidades e vilas individuais ou no que concerne
na intensa suspeita de tudo e de todos que pairou pela Europa durante os três séculos. Levack
afirma também que para “os habitantes do século XVI e XVII, a principal questão estatística, 551
no que tange à bruxaria, não era quantas bruxas haviam sido executadas, mas quantas
continuavam soltas” (LEVACK, 1988, p. 23).

Para chegar ao fim, à execução de uma bruxa, havia um processo a ser seguido, processo
esse descrito nos diversos manuais inquisitoriais que circularam na Europa durante a Caça às
Bruxas. Tudo se iniciava com a acusação e/ou com um rumor, que podiam ser levados a sério
pelos juízes e/ou inquisidores, ou não; para uma acusação se tornar um processo judicial, seja
pelos tribunais eclesiásticos ou pelos tribunais civis, muitas vezes era investigada a “moral” dos
acusados. Caso a acusação fosse suficiente, a acusada (trataremos com o sujeito no feminino
devido à grande maioria dos acusados terem sido mulheres) é levada para interrogatório,
geralmente a cargo dos inquisidores, onde a tortura não é somente permitida como também
incentivada.

Os interrogatórios eram realizados entre uma sessão de tortura e outra por motivo de
que, caso a acusada confessasse, ela não o faria enquanto estava sendo torturada e, portanto, a
confissão seria legítima; essas confissões são um dos grandes motivos para a formação de um
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“conceito cumulativo de magia”, definido por Levack, e que conta com várias características e
descrições de como é uma bruxa e do que ela faz como, por exemplo, pactos com o Diabo,
sabás, voos noturnos, entre outros (LEVACK, 1988). Depois do interrogatório, caso a acusada
confessasse, a decisão do tribunal era comunicada em praça pública, antes da execução, e esse
era outro motivo da perpetuação das características.

Capitulo II – O Malleus Maleficarum


O Malleus Maleficarum é apenas um de muitos tratados de bruxaria que circularam na
Europa entre os séculos XV, XVI e XVII, levando suas ideias e suas práticas desde as capitais
até os cantos mais remotos das colônias. Este manual, em específico, tem uma visão
extremamente misógina acerca da suscetibilidade das mulheres para o crime da bruxaria. Ele
foi escrito por dois dominicanos e professores de teologia que, para tal, se basearam em uma
longa tradição que vincula o mal à mulher. São eles Henry Kramer (?1430 - ?1505), inquisidor
em áreas da Alemanha do Norte e tido como o principal, senão único, elaborador da obra, e
James Sprenger (1436 – 1496) que foi inquisidor em áreas que margeiam o Reno e é
considerado colaborador do manual (LIEBEL, 2004, p. 28). Os dois autores foram permitidos,
552
pela bula Sumis desiderantes affectibus emitida pelo papa Inocêncio VIII em 1484, a agirem

“conforme as normas da Inquisição contra quaisquer pessoas de qualquer classe ou


condição social, corrigindo-as, multando-as, punindo-as, na proporção de seus crimes
– e aos que forem considerados culpados que a pena seja proporcional à ofensa”
(BULA Summis desiderantes, 1484).

Devido à sua organização e a maneira ordenada e sistemática que consolidou as


diferentes crenças sobre bruxas em uma única obra, o Malleus Maleficarum “serviu portanto
como ‘enciclopédia da bruxaria’ e, dessa forma, transmitiu todo um conjunto de crenças cultas
a uma audiência maior” (LEVACK, 1988, p. 51). A obra é composta por três partes: “Das Três
Condições Necessárias para a Bruxaria: O Diabo, a Bruxa e a Permissão de Deus Todo-
Poderoso” que atribui poderes imensos ao Diabo e o liga à prática da bruxaria, através do pacto
com as bruxas (que é resultado, principalmente, da fraqueza feminina, segundo os autores), mas
isso tudo ocorrendo com a permissão de Deus; “Dos Métodos Pelos Quais se Infligem os
Malefícios e de que Modo Podem ser Curados” que mostra como se firma um pacto com o
Diabo e incorpora diversos exemplos de malefícios praticados pelas bruxas; e, finalmente “Que
Trata das Medidas Judiciais no Tribunal Eclesiástico e no Civil a Serem Tomadas contra as
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Bruxas e Também Contra Todos os Hereges” onde são apresentadas as penas correspondentes
para cada malefício como, por exemplo, “Do Segundo Método de Pronunciar a Sentença,
quando a Acusada só e Difamada” (Terceira parte, Questão XXI), “Da Quinta Maneira de
Pronunciar a Sentença, no Caso de Forte Suspeita de Crime de Heresia” (Terceira parte,
Questão XXIV) ou “Do Método de pronunciar a Sentença contra Bruxas que Anulam
Malefícios causados por Bruxaria; e contra as Bruxas Parteiras e os Magos-Arqueiros”
(Terceira parte, Questão XXXIV) (KRAMER; SPRENGER, 1484).

Uma consideração pertinente a ser feita é o fato de que a crença em bruxas, a partir desse
momento, é uma das crenças da Igreja Católica e todos deveriam admitila como tal, caso
contrário, eram considerados hereges passíveis de julgamento e punição, assim como as bruxas,
nas quais não acreditavam.

Capítulo III – Gênero e relações de poder


A autora Joan Scott quando formula seu conceito de gênero enquanto categoria de
análise histórica afirma que a “história das mulheres” não pode ser retirada da história como 553
um todo, por que não se pode pensar esse aspecto separado do todo social no qual está inserido,
assim como não se podem negligenciar as especificidades de cada contexto. Desse modo, o
gênero como “constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os
sexos” (SCOTT, 1989, p. 21), implica em quatro elementos, relacionados entre si: 1. Símbolos
culturalmente disponíveis que evocam representações múltiplas, e geralmente contraditórias; 2.
Conceitos normativos que colocam em evidência interpretações do sentido dos símbolos que
tendem a limitar e conter suas possibilidades metafóricas, expresso em doutrinas religiosas,
políticas etc. e tipicamente como oposição binária (masculino versus feminino) – porém a
posição que emerge como dominante é declarada a única possível e a escrita da história
posterior tende a ser escrita como se essas posições fossem produto de um consenso e não de
um conflito, como o são; 3. Inclusão de uma noção do político, tanto quanto uma referência às
instituições e organizações sociais, de forma que é necessária uma visão mais ampla que analise
o gênero além do âmbito do parentesco, mas que abranja também o mercado de trabalho, a
educação, o sistema político etc.; 4. Identidade subjetiva, onde o gênero fica implicado na
concepção e na construção do poder em si, e sua função de legitimação funciona de várias
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maneiras e, quando os historiadores e historiadoras começam a procurar as maneiras como essa
legitimação e construção das relações sociais encontra o conceito de gênero, pode-se
“compreender a natureza recíproca do gênero e da sociedade” nas palavras de Joan Scott.

Através desse conceito, podemos observar a construção do discurso do Malleus


Maleficarum, de tal maneira que fica muito claro a preocupação dos autores em justificar e
legitimar a sujeição da mulher – tanto ao homem quanto à Igreja. Uma das maneiras que isso
acontece é pelo uso da Bíblia, mais especificamente do livro do Gênesis, onde, segundo os
teóricos do período, a maneira com a qual Eva foi criada, a partir da costela de Adão é um sinal
claro do desvio e da perversidade que existe no espírito da mulher, pois a costela é um osso
recurvo e, portanto, nenhuma mulher pode ser reta.

Segundo Kramer e Sprenger, convém observar que

“houve uma falha na formação da primeira mulher, por ter sido ela criada a partir de
uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito, cuja curvatura é, por assim dizer
contrária à retidão do homem. E como, em virtude dessa falha, a mulher é animal
imperfeito, sempre decepciona e mente” (Primeira parte, Questão VI).

Ainda segundo Scott (1989), utilizar o conceito de gênero na análise histórica é mostrar 554
como as sociedades se organizam, se classificam e se orientam também por meio de divisões e
classificações de gênero, em geral binárias e normativas. Portanto, como o gênero está ligado
ao poder e a manutenção de status quo. Liebel (2004, p. 68) descreve a maneira sob a qual os
religiosos vincularam a tentação à mulher e afirma que “a destacada separação entre carne e
espírito promoveu o distanciamento teórico entre os gêneros, procurando-se, na prática,
subordinar o ‘segundo sexo’”. Para tanto, o Malleus Maleficarum apresenta um modelo de
mulher, e tudo que foge àquele deve ser punido, dedicando vários momentos do livro para
mostrar de que maneira a mulher se entrega ao Diabo, especialmente na Primeira Parte, Questão
VI: “Sobre as Bruxas que copulam com Demônios. Por que principalmente as Mulheres se
entregam às Superstições Diabólicas”.

A princípio é enfatizada a inferioridade feminina: “Existem três coisas na natureza – as


Línguas, os Eclesiásticos e as Mulheres – que, seja na bondade, seja no vício, não conhecem
moderação” (Malleus Maleficarum, Primeira Parte, Questão VI). Depois disso, usa-se da Bíblia
para legitimar a perversidade natural destas: “Da perversidade das mulheres fala-se no
ISSN: 2525-7501
Eclesiástico, 25: [...] ‘Toda a malícia é leve, comparada com a malícia de uma mulher’”
(Malleus Maleficarum Primeira Parte, Questão VI).

Os autores atribuem à Eva o Pecado Original pelo qual todas as mulheres são culpadas,
teoricamente até hoje; porém, depois disto apresentam o ideal de mulher que está canalizado da
figura de Maria:

“É verdade que no Antigo Testamento as Escrituras têm muito a dizer sobre a


malevolência das mulheres, e isso em virtude da primeira mulher sedutora, Eva, e de
suas imitadoras; depois, contudo, no Novo Testamente, há uma mudança do nome de
Eva para Ave (conforme nos diz S. Jerônimo), e todo o pecado é expungido pela bem-
aventurança de Maria.” [...] Mas para as mulheres de boa índole são muitíssimos os
louvores, e lemos que têm trazido beatitude aos homens e têm salvado nações”
(Malleus Maleficarum, Primeira Parte, Questão VI).

Para justificar a gritante maioria de mulheres nos processos de bruxaria, os autores citam
diversas razões para a existência de uma maior superstição entre elas: “Assim como em virtude
da deficiência original em sua inteligência, são mais propensas a abjurarem a fé, por causa da
falha secundária em seus afetos e paixões desordenados também almejam, fomentam e infligem
vinganças várias, seja por bruxaria, seja por outros meios” (Malleus Maleficarum Primeira
Parte, Questão VI). 555
Para finalizar, pelo menos essa parte do discurso, eles definem quais são os “tipos de
mulher” que são mais propensas a realizarem o pacto com o Diabo em troca de poderes: “Três
parecem ser os vícios que exercem um domínio especial sobre as mulheres perversas, quais
sejam, a infidelidade, a ambição e a luxúria. São estas, portanto, mais inclinadas que as outras
à bruxaria, por mais se entregarem a tais vícios” (Primeira Parte, Questão VI). Curiosamente,
as mulheres com disposição para a prática de bruxaria são o total inverso do modelo cristão de
mulher.

Como vemos, portanto, há um modelo de mulher baseado na virgem e pura Maria e um


modelo de mulher propensa à bruxaria, baseado na pecadora Eva; é sobre esta mulher que foge
ao modelo normativo e correto que o Malleus Maleficarum dedicou suas páginas e seus
processos.

CONCLUSÃO
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Utilizando-se do conceito de gênero apresentado por Scott (1989) como sendo o gênero
constituidor da organização social e das relações de poder, podemos pensar na construção e
manutenção de um poder que foi legitimado através de livros como o Malleus Maleficarum,
onde a mulher é vista, constantemente, como uma “presa fácil” do Diabo devido a sua
“tendência natural” para o mal.

Neste sentido, analisando o discurso do período em questão presente deste manual de


Inquisição, podemos notar que existe um caráter específico nesse processo: a afirmação e
justificação, por meio de discursos de teóricos, da predisposição biológica da mulher ao mal. A
mulher que não segue o sistema normativo imposto pela Igreja Católica e que ousa se levantar
contra seus senhores é vista como uma aliada do Diabo, para espalhar o mal na Terra e inverter
a ordem e a moral cristã. Com três séculos de doutrinação sobre o Diabo que habita a mulher,
não é difícil perceber o porquê milhares delas foram executadas em fogueiras, como se fossem
um espetáculo.

O Malleus Maleficarum se mostra, assim, como o epítome de uma muito antiga tradição
de inferiorização do feminino, e como representante do auge da misoginia de seu período 556
(LIEBEL, 2004, p. 68).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes documentais: Inocêncio VIII: BULA Summis desiderantes, 5 de Dez, 1484. Bullarium
Romanum: Taurinensis, 1484.

Bíblia Sagrada: Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1990

KRAMER, H. SPRENGER, J. O martelo das feiticeiras – Malleus Maleficarum. Rio de Janeiro:


Rosa dos Tempos, 2015. Tradução: Paulo Fróes.

Fontes bibliográficas: SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Nova York:
Universidade de Columbia, 1989. Tradução: Christine R. Dabat e Maria B. Ávila.

LIEBEL, S. Demonização da mulher: A construção do discurso misógino no Malleus


Maleficarum. 2004, 74 f. Monografia (Graduação em História) – Universidade Federal do
Paraná, Curitiba, 2004.
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LEVACK, B. P. A caça às bruxas na Europa no limiar da Idade Moderna. Rio de Janeiro:
Campus, 1988. Tradução: Ivo Korytowski.

MONTERO, Paula. Magia e Pensamento Mágico. 2 ed. Série Princípios. São Paulo: Ática,
1990

557
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O DIABO ESTÁ NOS DETALHES: A FIGURA DO DEMÔNIO E SUA ASSOCIAÇÃO
COM PRÁTICAS MÁGICAS ATRAVÉS DOS MANUAIS DE INQUISIÇÃO

Daniela da Silva Martins*275


Eduardo Leote de Lima**

RESUMO

Este trabalho apresentará uma reflexão sobre a associação das práticas mágicas à figura do
demônio nos manuais de Inquisição. Pretendemos discutir como essa relação foi construída
nessas fontes, de que maneira a associação do demônio ao conhecimento irá influenciar a
ameaça representada pelas práticas mágicas, quais foram os agentes envolvidos, e quais os
fatores contextuais que influenciaram na percepção da feiticeira como uma ameaça, o que nos
ajuda a entender as motivações que levaram a caça às bruxas no período moderno. Para isso,
iremos nos pautar inicialmente na análise de um dos mais famosos manuais de Inquisição, o
Malleus Maleficarum. Esta obra fora escrita em 1486 por monges dominicanos, mas seria ao
longo dos três séculos seguintes que se converteria em um dos manuais indispensáveis para a
Inquisição na perseguição às bruxas. Assim, trabalharemos nosso objeto de pesquisa dentro do
recorte em que fora produzido o documento e refletindo sobre os impactos dessa produção
durante o período de caça às bruxas. Contudo nossa pesquisa ainda encontra-se em estágio 558
inicial, e no momento temos apenas resultados parciais mais voltados ao embasamento teórico
das relativas questões que pretendemos resolver. Além disso, consideramos ser interessante o
diálogo entre a problematização dessas questões também nos processos inquisitoriais, a fim de
ampliar o leque de possíveis representações encontradas nessas fontes.

Palavras-chave: Demônio; Práticas mágicas; Manuais de Inquisição.

INTRODUÇÃO

O período medieval foi cenário da interação e coexistência de várias tradições culturais


diferentes, ainda que a tradição judaico-cristã tivesse a tendência de ser hegemônica e de
assimilar, em seu interior, elementos das outras culturas, nem que para demonizá-los. O
imaginário medieval, que pode ser entendido também como o maravilhoso, é daí decorrente:
nada mais é do que o produto da “costura” de diferentes culturas, da mescla de tradições

*Acadêmica do Curso de História, UFSM, danielaa_dasilvamartins@hotmail.com


** Acadêmico do Curso de História, UFSM, eleotlima@hotmail.com
ISSN: 2525-7501
culturais que partem do clássico greco-romano, passando pelo paganismo nórdico e chegando
ao judaico-cristão. Portanto, o maravilhoso caracteriza-se como herança, herdada pela
sociedade medieval cristã, de culturas diversas, antigas, ricas, em uma lógica em que, segundo
Le Goff, “qualquer sociedade alimenta-se do maravilhoso anterior”, tornando o maravilhoso
exclusivamente cristão algo bastante limitado. É importante frisar que a noção de maravilhoso
aqui tem relação com a noção desenvolvida por Tzvetan Todorov ao diferenciar o “estranho”
do “maravilhoso”: estranho seria aquilo que é incomum à ordem “normal” das coisas, mas
detém uma explicação lógica, científica, biológica, enquanto o maravilhoso seria aquilo
relacionado ao sobrenatural que, contudo, está devidamente assimilado pelo cotidiano e pela
normalidade. E este é um ponto central da noção de maravilhoso na obra de Le Goff, ou seja, a
ideia de que ele pouco incomoda ou perturba a regularidade cotidiana, de que ninguém se
preocupa, questiona ou incomoda com sua existência, que não está relacionado com o cotidiano,
mas, ao mesmo tempo, está totalmente nele inserido. José Carlos Rodrigues dialoga com essa
noção e nos auxilia a compreender porque elementos que hoje consideramos estranhos e/ou
mágicos eram tidos, no período medieval, como elementos pertencentes à normalidade e ao
cotidiano: afinal, tanto seres quanto coisas não passavam de uma continuidade. Ou seja, uma 559
noção de que tudo estava tão intrinsecamente conectado, indissociável e inseparável, de modo
que plantas, animais, humanidade, terra, céu, tinham tamanha relação entre si (e uma relação
que nossa mentalidade fragmentária atual encontra imensas dificuldades em compreender) que
o entendimento dos astros como agentes intervencionistas na vida cotidiana das pessoas era
algo perfeitamente aceitável e natural, por exemplo. Talvez a relação mais emblemática que o
autor nos apresente seja dos vivos com os mortos: o mundo medieval tinha uma convivência
muito mais estreita com os mortos, a noção de morte e elementos afins do que hoje nossa
mentalidade atual seria capaz de permitir. Os mortos, seus corpos, não eram dejetos a serem
descartados, mas ocupavam um papel importante naquela sociedade. A própria morte não era
uma interrupção da vida: era a continuidade dela, e, portanto, não devia ser lamentada ou
temida, mas aguardada com certa indiferença. No fim das contas, é essa visão de continuidade
e interlocução que faz com que o elemento maravilhoso esteja tão facilmente inserido numa
concepção de naturalidade cotidiana. Essa relação do imaginário medieval com o sobrenatural,
contudo, não se finda na noção de maravilhoso. Além deste, proveniente do termo mirabilis,
relacionado ao maravilhoso com origens pré-cristãs, existem outras duas “categorias” que tem
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relação com o sobrenatural: magicus, que inicialmente poderia ter apenas a noção de magia,
independente de boa ou ruim, mas que acabou ficando conhecido como magia ruim, do lado do
Diabo, o sobrenatural de cunho maléfico e satânico; e miraculosos, ligado diretamente à ideia
de milagre. Podemos notar, contudo, que estas duas últimas ideias contém em seu interior certo
“juízo de valor” aliado a “estranheza”, ou seja, tanto magicus quanto miraculosos são elementos
atípicos do cotidiano, e que são ou ruins ou bons, algo totalmente diferente do que é entendido
como maravilhoso, este tão “normal”, “natural”, “cotidiano”, que não é estranho, nem ruim,
nem bom. É simplesmente parte da paisagem do imaginário medieval tanto quanto árvores,
montanhas e rios são partes da paisagem física.

Contudo é importante frisar que a pesquisa aqui demonstrada está ainda em estágio
inicial, e as reflexões aqui apresentadas são, em grande parte, elementos que buscamos
compreender no decorrer da pesquisa.

560
Capítulo I - A Igreja no período medieval

No início do período medieval a Igreja estava organizada hierarquicamente e


representava uma Instituição totalitária, num momento em que a sociedade encontrava-se
consideravelmente estática, sem muito tempo para debates intelectuais (RICHARDS, 1993, p.
53). Uma série de transformações ocorridas a partir de uma busca pela revitalização espiritual
ocorrida na Idade Média em fins do século XI contribuiu para o surgimento e disseminação de
diferentes formas de heresias. Entre essas transformações podemos mencionar o Renascimento
do século XII, mudanças na estrutura social e econômica, a exemplo do aumento populacional,
que acabaram contribuindo para movimentos de migração, o que por si só já alterava aquele
modelo estático estabelecido na chamada Idade das Trevas:

Fora construída em torno de funções e papéis aceitos e reconhecidos, com


grupos de parentesco, comunidades aldeãs, monarquia e senhorio mantendo a
sociedade unida e propiciando as estruturas de suporte necessárias. A religião
medieval dos primeiros tempos encaixava-se nesse sistema, endossando
tradição e estabilidade, sancionando a autoridade estabelecida e lidando com
o pecado e o sobrenatural através das práticas rituais. (RICHARDS, 1993, p.
79)
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Embora muitas das heresias tenham surgido como respostas às expectativas e
preocupações das pessoas com a salvação de suas almas, a maior parte delas passou a ser
perseguida pela Igreja conforme suas estratégias de conter sua disseminação não funcionassem.
Assim, o objetivo das heresias não tratava de se rebelar contra Deus ou mesmo deixar de ser
cristão, mas sim de revitalização espiritual na tentativa de recuperar a essência religiosa através
da vida apostólica. Ao passo que as primeiras estratégias de reformulação da própria estrutura
da Igreja e mesmo repressão desses grupos heréticos não vinha gerando muitos resultados
positivos, muitos deles passaram a ser acusados e estigmatizados como adoradores do Satã. O
que faz bastante sentido, já que a lógica dessa acusação se pauta na clássica vinculação do
Diabo às orgias sexuais (RICHARDS, 1993, p. 68-69). Esse é um ponto de acusação é
fundamental pra entendermos de que forma essa associação ao Diabo foi sendo construída como
a ameaça central, e que nas acusações de feitiçaria fará do pacto o ponto fundamental da
ameaça, levando também em consideração o simbolismo das representações de orgias sexuais
realizadas no sabás.

561
Capítulo II - As práticas mágicas e a problemática do conhecimento

As práticas mágicas, embora anteriores ao próprio cristianismo, contendo várias


referências nos gregos (SOUZA, 1986) e mesmo fazendo parte de um universo do maravilhoso
medieval, constituíam se a partir de práticas que iam além dos rituais permitidos pela Igreja, e
que principalmente exigiam conhecimentos esotéricos. Essa divergência vai ser fundamental
para entendermos a intolerância da Igreja frente às práticas mágicas e sua também constante
acusação de vínculo ao Diabo. O que como já mencionamos também foi elemento fundamental
em grande parte das acusações feitas pela Inquisição. Isso porque:

A fronteira entre a magia natural e a magia diabólica, entre virtude e


superstição, é tênue e fluida, dependendo em muitos casos não de diferenças
de conteúdo nem sequer de forma, mas dos processos de legitimação
consagrados pela Coroa. (BETHENCOURT, 2003)

Em primeiro lugar cabe relembrar a questão já mencionada sobre a configuração da


Igreja dentro da sociedade medieval que até certo momento condizia muito com as
características daquela organização. A Igreja, como representante de Deus tinha o importante
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papel de salvação das almas, ela era a intermediária entre os fiéis e Deus. Além disso, também
a Igreja era a detentora dos conhecimentos escritos produzidos até então. Contudo deve-se
ressaltar que esse conhecimento podia ser censurado de acordo com seu conteúdo pois estava
sujeito à própria doutrina da Igreja (BETHENCOURT, 2004, p. 172-173). Neste ponto entra a
problemática das práticas mágicas. As práticas mágicas consistem no uso de conhecimentos
esotéricos, alternativos ao padrão social normal e muitas vezes ligado ao considerado
supersticioso:

O conhecimento do oculto, na perspectiva da elite religiosa, só pode vir de três


fontes: do estudo e do saber humano( limitado à cultura escrita); revelação
divina (reservada aos santos, beatos, homens piedosos tocados pela Graça); da
intervenção diabólica (à exceção da profecia e da visão de origem divina, toda
adivinhação é uma arte demoníaca). (BETHENCOURT, 2003, p.173)

Contudo é preciso ponderar as divergências entre religião cristã e certos elementos das
práticas mágicas, já que como aponta o autor na seguinte passagem, há elementos cristãos

562
presentes em vários casos:

Como se verifica, os santos invocados pelas feiticeiras são, na esmagadora


maioria dos casos, do período do Império Romano, sendo valorizados pelo
exemplo da vida virtuosa, pela resistência ao martírio e pela exibição de
poderes extraordinários (BETHENCOURT, 2003, p. 142).

Assim, o sujeito que prática magia acaba se tornando um intermediário que tem contato
com conhecimentos e práticas que ultrapassam os limites estabelecidos pela Igreja. Assim
sendo, embora represente uma prática específica, as práticas mágicas não necessariamente
divergiam por completo dos elementos cristãos. O que será crucial na construção da
negatividade dessas práticas é o pacto com o demônio. Isso nos leva ao ponto fundamental
dessa discussão. Pois levando em conta a etimologia da palavra demônio “daemon, onis;
daemonium, ou sabedoria” já caminhamos em direção ao significado que o vínculo ao
conhecimento, de determinado conhecimento, pode ser representado por determinado grupo
como relacionado ao demônio. Esse é o ponto fundamental que pretendemos discutir e
problematizar através das fontes com que estamos trabalhando. Além disso, Lúcifer é
constantemente representado como aquele que sabe muito, pois há muito está nesse mundo, e
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sempre manteve um desejo imoderado do saber, o que poderia ter sido segundo alguns, a sua
própria ruína (BETHENCOURT, 2004, p. 176-177). Assim concluímos que essa percepção e
associação do demônio ao conhecimento pode em muito ter contribuído para um olhar negativo
sobre as práticas mágicas. Olhar negativo para uma específica forma de saber e prática, que
quando vinculado ao demônio, tendo suas ações poderes transmitidos pelo Demônio e não por
Deus (como o pedido de milagres ou questões desse gênero que são requeridas por intermédio
da Igreja) se torna maligna.

Muitas práticas mágicas poderiam mesmo estar mais relacionadas a determinadas


práticas de saúde, desenvolvidas, sobretudo, por mulheres276. E nesse tipo de ocorrência
verifica-se uma ameaça aos praticantes daquilo que seria os primórdios de uma medicina. E
uma ameaça que partia sobretudo de mulheres. Mulheres que de acordo com o padrão social
considerado normal e naturalizado desse período eram vistas como meros "acessórios" naquelas
sociedades. Seu papel não condizia com fortes atuações sociais, seu espaço se limitava
sobretudo a vida familiar, e no caso das freiras, aos conventos. Mas isso não quer dizer que
todas as mulheres nesse período seguiam esse padrão. Muitas eram curandeiras e inclusive
tinham o curandeirismo como profissão, como podemos encontrar exemplos em alguns
563
processos inquisitoriais no período277. E isso poderia se tornar problemático em certos casos, já
que a mulher pela própria condição de mulher era vista como uma ameaça. Essa representação
da mulher enquanto ameaça é resultado de uma série de fatores que vão construindo uma
imagem negativa da mulher, associada ao demônio, sua curiosidade ao pecado, a ruína da vida
humana como podemos observar através do mito de Adão e Eva. Foi Eva e não Adão quem não
resistiu a tentação da serpente e experimentou o fruto, desobedecendo a Deus e torna-se dessa
maneira cúmplice do demônio (MARTINS, 2008).

Capítulo III - A ascensão de Lúcifer

276
CASTELL-GRANADOS P. E cert te molt gran fama de bruixa e se fa metgessa e fa medecines. La
demonización de las prácticas mágico-medicinales femeninas (siglos XIV-XVI). Studia Historica. Historia
Medieval [Internet]. [citado 10 Oct 2016]; 31(0): 233-244. Disponible
en:http://revistas.usal.es/index.php/Studia_H_Historia_Medieval/article/view/11738
277
Exemplo disso no processo de Maria Gonçalves. Disponível em
http://digitarq.arquivos.pt/details?id=2358736
ISSN: 2525-7501
Inicialmente, nos primeiros séculos da Idade Média, a imagem de Satã (bem como a dos
demônios no geral) não estava muito bem definida: o imaginário em torno de tal figura era
pontuado por ideias esparsas, muitas vezes contraditórias, até mesmo abstratas e limitadas ao
campo da teologia. Com o passar do tempo, contudo, e principalmente por volta do século XII,
este conjunto irregular de elementos passa a ser reunido e sistematizado em uma doutrina
dogmática, processo este estreitamente ligado às próprias manifestações de heresia, correntes
no período, e que influenciou no modo como o Diabo era visto e percebido pela doutrina cristã
católica.

Isso não significa, porém, que a imagem então construída do Demônio fosse homogênea
e que as contradições acerca de suas características e relações tivessem cessado de existir. Ao
contrário, é provável que tenham até mesmo se intensificado. O debate que se fez presente, a
partir daquele momento, sobre a origem do Diabo, suas caraterísticas, a extensão de seus
poderes, os limites de seu raio de ação, em grande medida, parece ter caído mais em contradição
do que se aproximado de consenso. E ainda que alguns destes elementos recebessem versões
de maior aceitação (as características físicas do demônio, como chifres e asas, ou seu grande
poder em transfiguração, são exemplos), talvez a dificuldade de dimensionar claramente aquele
564
que era considerado “o inimigo” tenha sido responsável pelo crescimento como ameaça que
este representava para a sociedade cristã nos séculos que se seguiram.

Pois parece inegável que, a partir do século XII, não só passou-se a se dedicar à
construção da imagem de Satã, mas, principalmente, a construí-lo com ares profundamente
ameaçadores. A perseguição aos hereges e às bruxas resguarda em seu âmago o combate à
ameaça que o Diabo representa, já que estes grupos eram “[...] como os membros de um corpo
no qual Satã seria a cabeça, réplica negativa do corpo da Igreja, no qual Cristo é o chefe”
(BASCHET, 2006, p. 386) ou “[...] membros de uma seita diabólica que, no sabá, participam
de um verdadeiro rito de adoração de Satã” (BASCHET, 2006, p. 386).

Desse modo, saber as características do Diabo seria essencial para conhecer o inimigo
na guerra que este e suas hordas demoníacas arquitetaram contra a humanidade. De fato:

Convencidos de que a sociedade cristã está exposta a uma ofensiva de Satã


sem precedentes, os poderes eclesiásticos, monárquicos e urbanos rivalizam
em zelo e desencadeiam, a partir dos anos 1430, e principalmente durante a
época moderna, vasta perseguição, em uma escala inédita, contra aqueles que
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considera seus inimigos mortais. Satã aparece, então, como o adversário
contra o qual se funda e reforça o poderio das instituições. (BASCHET,
2006, p. 386, grifo nosso).

A Inquisição, portanto, estaria inserida nessa lógica: uma resposta das instituições,
sobretudo Igreja, à ofensiva que Satã empreendeu contra a humanidade. E os manuais de
inquisição, como o Directorum Inquisitorum ou o Malleus Maleficarum nos mostram que tal
resposta foi extremamente virulenta, violenta e implacável.

Os manuais de inquisição são elementos interessantes e importantes deste processo. Para


além das análises do “sadismo” propagandeado por estes, através da defesa de métodos de
tortura em busca da confissão de atos heréticos ou de bruxaria, e da visão de tais manuais como
“fruto nefasto” de uma sociedade (e, sobretudo, de uma instituição) violenta, eles também são
reflexos do imaginário do momento acerca da figura do Diabo e das bruxas. O Malleus, por
exemplo, dedica suas duas primeiras partes em dissecar a figura do demônio, seus poderes, seu
raio de ação e sua relação com o conhecimento, magia e as bruxas, por um lado, e por outro, a
própria figura da bruxa e suas características. Ou seja, os manuais funcionam também, dentro 565
do contexto de reação à ameaça demoníaca, de sistematizadores dos elementos constitutivos
das figuras de seus inimigos.

Estudar os manuais de inquisição, portanto, nos abre possibilidade de compreender uma


série de elementos sobre a figura do Diabo após o século XII. Nesse sentido, intenciona-se
buscar, nestas fontes, compreender como o Demônio é representado, e levando em conta a já
explicitada relação entre os manuais como representações de um imaginário maior, que permeia
a sociedade, compreender, portanto, como o Demônio é visto no período.

Para além disso: se é sabido que, inicialmente, o Demônio era algo abstrato, e, portanto,
pouco ou nada ameaçador, mas que a partir do século XII sua imagem vai se consolidando no
imaginário e adquirindo tons ameaçadores, entender o que levou a esta mudança de atitude
frente à figura diabólica parece-nos pertinente. Por que o Demônio tornou-se o inimigo nº 1 da
sociedade cristã? O que ocorreu, afinal, na sociedade e na Igreja, para que o medo das investidas
satânicas se tornasse quase palpável? Por que os poderes do Diabo e seus asseclas, sobretudo
as bruxas, foram cada vez mais incrementados e codificados, a ponto de eles poderem ser
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responsabilizados por uma capacidade de exercer qualquer malefício humano ou sobre-
humano?

Este último ponto evoca a polêmica relação entre Demônio e Deus. Polêmica porque a
atribuição de poderes cada vez maiores ao primeiro fazia parecer que este estava equiparado ao
segundo. Contudo, com exceção de poucas correntes, consideradas heréticas, e que defendiam
o dualismo Diabo/Deus: “Todos concordavam que qualquer poder do Diabo estaria limitado
pela autoridade de Deus” (RUSSEL, 2003, p. 99). Ainda assim, se na teoria Satã estava
subordinado à vontade de Deus, na prática, as ações desenfreadas do Demônio poderiam
levantar dúvidas quanto a isso. Se ele estava de fato subordinado, suas ações cada vez mais
ameaçadoras seriam vontade de Deus? Ou teria o Diabo relativo raio de ação, sendo apenas
limitado pelo Criador? Ou teria ele, ao menos na prática, tanto poder que poderia ser
considerado independente, uma ameaça não só à cristandade, mas também ao próprio Deus?
Compreender isso parece fundamental para a compreensão da figura de Satã no período.

CONCLUSÃO

Finalmente, tanto o imaginário sobre o Diabo e as bruxas quanto a reação da Igreja


566
contra sua ameaça eram elementos não dissociados do cotidiano das populações da época.
Portanto, traduzir o impacto que a suposta ameaça das forças diabólicas teve nessa população,
e, ao mesmo tempo, medir a violência da reação que as instituições empreenderam e como essa
violência foi perpetrada sobre camadas significativas dessa população (sobretudo mulheres,
vale lembrar) se apresenta como elementos importantes. Pois nos parece que, se de um lado
existia uma figura maléfica, pronta para leva-lo direto para o inferno, e, de outro, uma
instituição que estava disposta a tudo (até mesmo a perpetrar as mais hediondas torturas) em
nome do combate ao inimigo maior, o horror, confusão e medo das populações devem ter se
manifestado de diversas formas e nos auxiliariam a entender melhor o panorama geral da época
sobre o assunto.

Nesse sentido, pretendemos responder ao longo dessa pesquisa, ainda não concluída, de
que forma essa associação vai ser construída no Malleus Malleficarium, buscando
problematizar com processos inquisitoriais, de forma a averiguar as particularidades teóricas e
práticas dessa ação, não deixando de considerar as especificidades de produção e elaboração do
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próprio processo. Partindo do viés da História Cultural278, consideramos os manuais como
construção de uma elite cristã e reconhecemos nos processos inquisitoriais a oportunidade de
encontrar uma mais ampla gama de representações279 de diferentes agentes históricos sobre um
determinado sujeito (a feiticeira).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASCHET, Jerome. A Civilização Feudal: do Ano Mil à Colonização da América. São Paulo:
Editora Globo, 2006
BETHENCOURT, F. O imaginário da magia. Feiticeiras, adivinhos e curandeiros em
Portugal, no século XVI. Companhia das Letras: 2004.
BURKE, Peter. O que é história cultural? RJ: Zahar, 2008.
CASTELL-GRANADOS P. E cert te molt gran fama de bruixa e se fa metgessa e fa medecines.
La demonización de las prácticas mágico-medicinales femeninas (siglos XIV-XVI). Studia

567
Historica. Disponível em:
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CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre:
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MARTINS, Nereida Soares. A Maldição das Filhas de Eva: Uma história de culpa e
repressão ao feminino na cultura judaico-cristã. 2008. Disponível em:

278
Vide referências: BURKE, Peter. O que é história cultural? RJ: Zahar, 2008.
279
Para isso utilizaremos o conceitos de representação e apropriação de Roger Chartier. CHARTIER, Roger. O
Mundo como Representação. In: CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes.
Porto Alegre: UFRGS, 2002. p.61-78.
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568
ISSN: 2525-7501

ASPECTOS AUTOBIOGRÁFICOS NO CARMINA BURANA: O CASO DO


ARCHIPOETA DE COLÔNIA280

Helena Macedo Ribas281

RESUMO
O trabalho aqui proposto tem por objetivo analisar, a partir dos estudos da historiografia sobre
as formas de escrita de si, os possíveis aspectos autobiográficos dentro do cancioneiro medieval
Carmina Burana, em especial as canções atribuídas ao personagem que ficou conhecido como
Archipoeta de Colônia, que foi um Goliardo notável e que esteve presente na corte de Frederico
I, imperador do Sacro Império, sob a proteção do arcebispo Rainaldo de Dassel. Num contexto
de profundas transformações para a cristandade latina que caracteriza os séculos XII e XIII, no
qual podemos perceber o reavivamento das cidades medievais e o crescimento das relações
comerciais e da monetarização da sociedade, vemos surgir um segmento que será chamado por
Jacques Le Goff de Intelectuais, homens de letras dedicados à leitura e comentário dos textos
da Antiguidade. Nessas cidades, as escolas que se tornarão universidades abrigam um tipo
peculiar de homem de letras, o Goliardo, que enquanto um grupo fica conhecido por suas
canções profundamente críticas aos desvios da igreja e por serem enaltecedoras de um
569
naturalismo cuja máxima é o Carpe Diem, utilizando-se largamente dos autores clássicos, como
Ovídio e Virgílio. Partindo das discussões propostas por pesquisadores como Verena Alberti e
François Dosse, que estão pensando sobre os gêneros de escrita de si tais como a autobiografia
e a biografia nos propomos pensar a consciência individual demonstrada pelo Archipoeta nas
suas canções em um contexto medieval no qual a coletividade é o traço predominante. Para
tanto, utilizamos o conceito de poesia de experiência proposto por Luiz Antonio de Villena que
consiste na ideia de que o poeta goliardo representa sua experiência concreta através dos
recursos retóricos da poesia, transformando sua subjetividade em um elemento de narração
objetiva buscando uma identificação com o leitor.

Palavras – chave: Goliardos; Carmina Burana; Poesia Medieval

280
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
281
Universidade Federal do Paraná - PPGHIS/NEMED. helena.galadriel@gmail.com
ISSN: 2525-7501
As escritas de si são gêneros textuais que existem e são praticadas desde a antiguidade
e perpassam todos os períodos da História. Por muitas vezes vemos em diversos períodos
históricos trajetórias individuais se mesclarem com o desenrolar dos acontecimentos; quanto
maior a importância atribuída a certa personagem histórica, mais biografias dela são
produzidas, discutidas e revistas. A autobiografia, por outro lado, é um fenômeno que se
acentua na modernidade. Segundo o que nos aponta Sheila Dias Maciel, a prática autobiográfica
se intensifica no século XVIII, num contexto pré-romantismo no qual tanto a religião quanto a
ciência já não mais ofereciam conforto para as questões humanas. É uma época em que vemos
a burguesia se voltar para si mesma, na busca do eu e da subjetividade, que se intensifica durante
o Romantismo e que também está ligada à questão da privacidade, uma vez que com o
crescimento populacional que vem ganhando força na modernidade, cada vez mais se valoriza
o individuo, e o íntimo, o privado, exercem um grande fascínio nas pessoas. Para a autora, é o
século XX que vê o auge da escrita autobiográfica, na qual as pessoas, como voyeurs, exprimem
seu interesse nos segredos da vida alheia, buscando identificar-se com essas trajetórias de vida
(MACIEL, s/d: 3-5).
570
Podemos dizer então que as escritas de si mudam de tom conforme as concepções, as
motivações, os valores e as necessidades das sociedades se transformam, de acordo com o
público - alvo desses escritos. Desde obras edificantes, como as Confissões de Santo Agostinho,
voltada para aqueles que, como ele, passou pelo processo de conversão ao cristianismo; ou
propaganda política como o De Bello Gallico de Júlio César, texto de caráter autobiográfico
escrito em terceira pessoa com intenção de demonstrar a competência militar do próprio César;
até as autobiografias produzidas hoje, que visam contar uma história de vida que desperte o
interesse e o sentimento de identificação nas pessoas em meio à vida acelerada dos nossos
tempos globalizados.

No que concerne aos estudos da historiografia sobre os relatos de vida, o pesquisador


francês François Dosse aponta que, conjuntamente com o interesse do público em geral,
também cresce o interesse da academia nas escritas de relato de vida dos indivíduos, que não
são os “grandes homens” como imperadores ou reis, mas sim o relato do indivíduo comum, o
imigrante, o presidiário, o operário, etc. O aumento do interesse da historiografia nessas fontes
se dá nos anos de 1970, mas Dosse aponta que esses relatos já vinham chamando a atenção da
ISSN: 2525-7501
sociologia e da antropologia desde o início do século XX. Relatos de vida vinham fazendo um
enorme sucesso com o público nos anos 1970, como uma forma de “salvar” as experiências e
tradições de outros tempos, num sentido mais nostálgico. Porém a Escola de Chicago (fundada
em 1892) já trabalhava com relatos de vida, desenvolvendo o que ficou conhecido como
“ecologia urbana”, ou seja, utilizar a cidade como espaço para estudar a marginalização,
segregação e violência dos indivíduos. Durante os anos 1960, esses estudos ganham um caráter
mais militante, num esforço de se dar “voz ao oprimido” e é nesse período que os relatos de
vida começam a despertar o interesse da historiografia. (DOSSE, 2009: 240-46)

Com a autobiografia sendo uma fonte tão diversa e complexa, algumas considerações
acerca da forma de se pensar essa escrita são necessárias. A pesquisadora Verena Alberti traz
vários pontos interessantes para se refletir sobre a construção dos relatos de vida, que nos
ajudam a pensar sobre a inserção do sujeito (autor) em sua narrativa. No momento em que
analisa o sujeito e a ficção, Alberti tem a preocupação de diferenciar a obra ficcional da obra
autobiográfica, apontando que a construção do imaginário no qual a obra ficcional se passa não
é uma fantasia (pois esta representa o desejo, estando, portanto no mesmo plano do real), mas
571
sim uma “irrealização”, uma transgressão dessa realidade sem anular seu plano. Ou seja, o
imaginário não é uma “mentira”, mas um produto da mistura entre o plano da realização e da
irrealização, do que foi e do que poderia ter sido. O imaginário, no campo do “eu”, transcende
a ideia de “ângulo de refração”, na qual os personagens fictícios seriam apenas reflexos de
contrapartes reais do “eu”, mas expandem-na tornando possíveis as criações de personagens
que nada tem a ver com o autor. A autobiografia, no entanto, se dá de uma maneira diferente:
ao contrário da ficção, ela não se multiplica em diversos “outros de si”, mas busca reafirmar
uma unidade. Apoiando-se nas reflexões do pesquisador francês Phillipe Lejeune, Alberti
aponta que

apesar de não se ‘concretizar’ no imaginário, a autobiografia tampouco constitui


‘reflexo’ do real, pois admite senão um ‘ângulo de refração’ em que o sujeito se
dissipa, ao menos um certo espaço de movência desse sujeito, na medida em que a
relação entre personagem e autor é apenas de ‘semelhança’ e não de identidade. [...]
Assim, é apenas no espaço limitado espaço da semelhança entre aquilo que é e aquilo
que cria, que o escritor da autobiografia pode ‘imaginar-se’ outro de si mesmo.
(ALBERTI, 1991: 77).
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Ainda segundo o que Alberti nos traz de Lejeune, essa semelhança se dá na
transformação da experiência em narração, pois esta narração nunca é capaz de transmitir a
experiência em sua totalidade, pois ocorrem omissões, relatos que se sobrepõem a outros, a
inescapável síntese; a significação do relato ocorre no momento em que é escrito (pois o autor
atribui, através da ordem e de outros fatores, significados às experiências que tenta reconstruir).
Logo, a autobiografia é a “fixação” do eu. (ALBERTI, 1991: 78)

Devemos, é claro, ressaltar que tanto Alberti quanto Lejeune baseiam seus estudos nas
autobiografias modernas, e o “pacto autobiográfico” de Lejeune somente é aplicável a obras
que seguem uma série de requisitos, que o autor usa para distinguir a autobiografia de outros
gêneros de escrita de si. Ainda assim, os autores trazem pontos interessantes que suscitam a
reflexão sobre textos de caráter autobiográfico ou de escrita de si que foram produzidos em
períodos mais recuados. Por exemplo, o pesquisador francês Michel Foucault aponta que desde
a tradição ascética cristã antiga existe esse impulso pelo registro da memória individual, como
a recomendação de Atanásio para que se escrevessem todos os pensamentos a fim de evitar
cometer os pecados pretendidos, pelo medo e vergonha de que tais pensamentos fossem lidos
572
por outros; para filósofos como Sócrates e Pitágoras, a escrita de si era uma forma de auto-
adestramento, e essa concepção continua na época imperial com Sêneca e Epíteto. Foucault
ainda nos fala dos hypomnemata, espécie de caderno de anotações que os mais cultos usavam
para escrever sobre a vida, que “constituíam uma memória material das coisas lidas, ouvidas
ou pensadas” (FOUCAULT, 1992: 131), destinados a serem lidos e relidos, não sendo apenas
um auxiliar da memória, mas também um suscitador de reflexão, um “meio para o
estabelecimento de uma relação de si consigo próprio tão adequada e completa quanto possível”
(FOUCAULT, 1992: 132).

No entanto, será possível falar sobre gêneros de escrita de si durante a Idade Média? A
primeira vista a resposta seria não, uma vez que a autobiografia, enquanto impulso para resgatar
e preservar acontecimentos de uma vida, por exemplo, só se torna uma prática possível com o
advento da noção de indivíduo como temos na modernidade. Além disso, ao voltarmos nosso
olhar para as sociedades medievais, logo vemos que as estruturas sociais giram em torno do
coletivo: o poder político pulverizado e a presença das figuras dos senhores feudais e dos abades
como detentores de poderes locais, a existência de famílias ampliadas e vastas redes de
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influência caracterizadas pelas relações entre senhores e seus vassalos, pelos casamentos, etc.
O grande projeto ideológico da Cristandade, a Trifuncionalidade, é um projeto coletivo, no qual
cada indivíduo tem seu papel a cumprir para com o todo. Cabe aos nobres guerreiros
defenderem e guerrearem por todos, aos camponeses plantar e colher para alimentar a todos, e
aos clérigos rezar e zelar pela alma de todos. Não há espaço para a individualidade.

Até o século XII. Sabemos que o século XII marca uma série de transformações que
vinham ocorrendo dentro da Cristandade Latina, que se deve a uma serie de fatores. Segundo o
que nos traz Georges Duby, um período de fartura, tanto no campo quanto com relação ao
aumento dos nascimentos, vem atrelado com a ascensão de uma aristocracia leiga e da própria
burguesia, que buscam instrução nas cidades e que ganhando um espaço cada vez maior nessas
sociedades, obrigando a uma mudança que culmina no declínio do modelo trifuncional que não
os comportava. Além disso, esses novos extratos operam uma mudança no sistema de valores
da época, que passa de uma visão pessimista na qual o homem está fadado a decadência pela
sua natureza pecadora (proveniente da tradição ascética) para uma visão otimista, de uma
“tomada de consciência do progresso” na qual cada geração alcança um nível maior de
573
perfeição do que a anterior, num processo de conquista. Há também uma preocupação em
promover a cultura letrada, que ganha cada vez mais espaço e importância, saindo dos mosteiros
e representando um símbolo de legitimidade e poder, e é através das escolas que esse saber
deixa de ser exclusivamente eclesiástico e passa a se abrir para a aristocracia leiga, como um
saber laicizado. (DUBY, 1989: 143-160)

Esses dados são importantes para entendermos o contexto no qual as cidades medievais
retomam sua importância e principalmente, o papel dessa cultura letrada que está em expansão,
porque é exatamente neste ambiente citadino e letrado que surgem nossos personagens
principais, os Goliardos. Homens de letras, clérigos andarilhos, versados em latim e nos
Grandes Textos, tanto as Escrituras quanto os textos da Antiguidade, buscavam conhecimento
de maneira autônoma nas escolas que lhes interessavam, levando em paralelo uma vida alegre
e boêmia regada a vinho e jogo nas tabernas. Através de suas canções, que foram cristalizadas
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em diversos códices, sendo o mais famoso e extenso deles o Carmina Burana 282, os Goliardos
exprimem suas opiniões com relação aos desvios cada vez mais comuns da igreja, suas
experiências amorosas e no jogo e aspectos de suas vivências, de forma diferente de outras
obras também consideradas como “autobiográficas”, como as de Agostinho ou César como
citamos acima. A poesia goliárdica parece não ter outra função além de narrar as aventuras
cotidianas de um grupo de clérigos dados à vida boêmia. Nada além disso.

Ainda que essas transformações do século XII tenham possibilitado essas mudanças e
criado um ambiente propício para o surgimento desses homens de letras que são mais adeptos
da vida mundana, ainda não podemos dizer que havia uma concepção de indivíduo como vemos
surgir séculos mais tarde e que é essencial para entendermos o impulso pela escrita
autobiográfica. Não como uma concepção generalizada pelo menos. Porém os Goliardos e sua
poesia, ainda que protegidos pelo anonimato em grande parte das vezes representam essa
consciência de si e das próprias experiências e suas canções frequentemente trazem o uso da
primeira pessoa, como se o eu-lírico remetesse, a todo o momento, ao autor.

Tal fenômeno é explicado por Luiz Antônio de Villena através do conceito de poesia de 574
experiência. Segundo o autor espanhol em seu estudo dedicado aos goliardos, Villena reafirma
a todo o momento o caráter único do movimento goliárdico e de seus protagonistas, dos quais
sabemos alguns poucos nomes e dados biográficos, quando estes estavam ligados a posições de
poder dentro da Cristandade. Suas canções representam uma rebelião do corpo, sem querer
dizer que agiam através de uma ideologia estruturada para efetivamente mudar aquilo com o
que não concordavam dentro da sociedade, mas uma rebelião no sentido de ousar ir contra todo
um sistema de normas morais impostas por Igreja e sociedade e glorificar aquilo que era imoral
- o corpo, o erotismo, a alegria. Para Villena, os Goliardos,

por encima de toda norma creen en la libertad de su espíritu,en su propia capacidad


de decisión. Pero su vivencialismo – por eso no son revolucionarios – no les hace
utopizantes. Tratan de vivir sus días alegre y plenamente, pero no creen que el

282
Carmina Burana, também conhecido como Cancioneiro de Beuren, é um códice que contém cerca de 230
canções em latim e 47 em médio-alto alemão que são atribuídas aos clérigos conhecidos como Goliardos.
Atualmente se encontra na Biblioteca de Munique, sob a classificação CLM4660.
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mañana vaya a ser substancialmente mejor que el hoy o que el ayer. (VILLENA,
2010: 67).

Ou seja, em suas canções os Goliardos não estão preocupados em fazer um esforço


consciente para mudar a sociedade em que vivem, mas sim em representar seus próprios pontos
de vista com relação a essa sociedade, em narrar suas próprias experiências de maneira
“realista” e ligada à noção de Carpe Diem, tão presente em seu modo de vida.

Villena defende que o que os Goliardos fazem é a “poetização da experiência”, um


recurso comum na poesia moderna, mas que estaria presente nessas canções do século XII, uma
vez que o poeta representa sua experiência concreta através dos recursos retóricos da poesia,
transformando sua subjetividade em um elemento de narração objetiva buscando a identificação
do leitor. A poesia de experiência seria uma tentativa de objetificação do sujeito através do
poema, tendo como base um eu concreto, “absolutamente consciente de sí mismo y de su
singularidad como persona” (VILLENA, 2010: 73). Essa manifestação do indivíduo através da
poesia é uma marca do Romantismo e que perdura na poesia contemporânea, que demonstra a
necessidade de objetificação da experiência pessoal através da arte e da poesia. Porém, Villena 575
aponta que essa prática possui precedentes na poesia clássica, desde Safo e Catulo, e também
na Idade Média, com os Goliardos.

Tal afirmação tem suporte na poesia goliárdica se olharmos para o ambiente no qual o
Goliardo se insere e também no conteúdo de suas canções. Como dissemos anteriormente, como
homens de letras, esses clérigos tinham acesso não somente às escrituras e ao saltério, mas
também às obras de pensadores gregos e latinos que tinham sido preservadas pelos monges
copistas, como o próprio Catulo, Júlio César, e Ovídio, cujos Amores influenciam largamente
a lírica amorosa goliárdica. Ou seja, é muito provável que os Goliardos estivessem
familiarizados com essas “poesias de experiência” da antiguidade, tanto é que suas próprias
poesias as trazem, na presença da primeira pessoa, principalmente nas canções de temas
báquicos ou eróticos. Dessa forma, as canções dos Goliardos seriam uma forma análoga de
escrita ou de representação de si, com a intenção de partilhar essas experiências, apenas por seu
teor erótico ou humorístico, com seus pares, pessoas também letradas que poderiam apreciá-las
mais profundamente.
ISSN: 2525-7501
Talvez um dos casos mais proeminentes dessa poesia de experiência seja o caso do
Archipoeta de Colônia, ao qual nos deteremos. Um dos mais notórios Goliardos dos quais
conhecemos um nome (ou, nesse caso, um pseudônimo), juntamente com Hugo Primas (ou O
Primado) e Gaultier de Lille, o Archipoeta de Colônia têm atribuídas a si algumas canções do
Carmina Burana, dentre as quais a famosa Estuans Intrinsecus Ira Vehementi283, considerada
uma das principais peças do cancioneiro, na qual o Archipoeta narra seus pecados de forma
irônica, inicialmente se mostrando arrependido, para em seguida exaltar essas falhas, como
analisaremos mais adiante.

Segundo Villena, Archipoeta significa “poeta entre os poetas”, epíteto dado a este poeta
de Colônia que desconhecemos o nome verdadeiro, uma vez que ele mesmo adota essa alcunha
em alguns de seus versos. Seu protetor foi Rainaldo de Dassel, arcebispo de Colônia e
arquichanceler de Frederico I, imperador do Sacro Império Romano Germânico. Sabemos que
o Archipoeta seguiu a corte do imperador durante suas campanhas militares, estando presente
em Pavia, Salerno e Viena, voltando para Colônia eventualmente.

Apesar de o Archipoeta estar envolvido com a corte, as questões políticas não o 576
interessavam ao compor suas canções, ainda que fizesse críticas duras às práticas da Igreja de
maneira sarcástica e sutil. Prova desse desinteresse se dá quando Rainaldo de Dassel pede para
o Archipoeta compor uma epopeia sobre o imperador Frederico e sua incursão sobre a Itália em
uma semana, ao qual o Archipoeta responde dizendo que seu mecenas quer o impossível, uma
vez que ele quer feito em uma semana o que custou a Virgílio sete anos para compor. Além
disso, como ele, um “poeta empobrecido” seria capaz de cantar sobre feitos militares, se a luta
o assusta? (WADDELL, 1955: 165). Como se não bastasse a recusa, o Archipoeta ainda
aproveita a oportunidade para pedir ao seu mecenas que suas necessidades sejam cobertas (“não
posso escrever pobre e mendigo/ sobre as façanhas no Lácio do César Frederico” – VILLENA,
2010: 83). Ainda assim, o Archipoeta consegue compor um poema com 34 estrofes em 1163,
(enquanto morava em Pavia e presenciava o auge dessas conquistas do imperador Frederico)
número que é muito inferior comparado tanto às canções épicas clássicas quanto suas
contemporâneas canções de gesta, que chegam a contar com mais de seis mil versos. Nas

283
“de ira veemente ardo por dentro”, em tradução livre.
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incursões ao lado de seus protetores, o Archipoeta adoece e termina seus dias enfermo e pobre
no mosteiro de São Martim, em Colônia, no final da década. (VILLENA, 2010: 79-83)

Estuans Intrinsecus Ira Vehementi é considerada uma das mais célebres canções do
cancioneiro Carmina Burana, é a canção mais célebre já composta pelo Archipoeta das que
sobreviveram aos nossos dias, pois trata da “confissão” do nosso personagem frente a sua vida
de excessos e seus pecados. Essa canção é interessante para pensarmos a inserção da primeira
pessoa como recurso de representação de si, porque se trata de uma confissão irônica: o
Archipoeta inicia a canção parecendo arrependido, e antes de tudo, sem rumo na vida, mas
conforme as estrofes se desenvolvem, vemos que na verdade o Archipoeta não se arrepende de
suas falhas, mas que de certa forma se orgulha de cada uma delas, ou as retrata como
“inevitáveis” devido à sua própria personalidade e valores. Essa canção teria sido motivada por
uma “fofoca” feita ao arcebispo de Colônia sobre o comportamento devasso do Archipoeta, e
este então se defende por meio da canção. (VILLENA, 2010: 80)

Nas primeiras estrofes, o Archipoeta parece desolado e confuso, pois diferentemente


daquele que constroi sua base sob o cimento, ele tolamente se comporta como um rio, em 577
constante mudança. Como uma ave errante, procura seus iguais e por isso “anda com os
infames”, para quando o “peso da alma” for demais para ser suportado, possa então buscar
alívio junto à Vênus, que “não habita os corações preguiçosos”, ou seja, aqueles que ficam
estagnados em um só lugar. A presença de Vênus é latente em toda a canção, ou como uma
espécie de bálsamo para os corações errantes como o do Archipoeta, ou como uma força ou
entidade capaz de manipular os homens para que estes se entreguem ao amor.

Em seguida, diz que como a juventude, prefere o “caminho largo” ao contrário do que
sugere o evangelho de Matheus, no qual o caminho mais largo é o que leva à perdição, logo o
justo escolhe o caminho mais tortuoso e cheio de provações, pois somente esse pode levar à
salvação; mas o Archipoeta não está interessado na salvação dos justos, mas sim na morte doce
proporcionada pela presença das mulheres jovens, às quais ama com o corpo e quando isso não
é possível, ama com o coração, porque os jovens não podem seguir a “lei dura” –
presumivelmente a castidade – e perder a chance de apreciar essas figuras femininas. Vemos
que nesse momento, não há nenhuma intenção de perdão ou arrependimento, mas sim uma
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defesa por parte do Archipoeta dessa “vida do caminho mais largo” como um comportamento
tipicamente juvenil. A culpa desse comportamento é colocada pelo nosso personagem em sua
presença em Pavia, que seria uma cidade na qual Vênus “caça” os jovens e os imbui desse
espírito despreocupado, na qual nem mesmo Hipólito284 seria capaz de sair ileso ao poder da
divindade.

Além do pecado da luxúria, do qual o Archipoeta se esquiva ao culpar as circunstâncias


e a influência de Vênus, o ato de jogar também é mencionado, e deste nosso personagem se diz
inteiramente culpado, porém argumenta que quando está jogando e perde seus pertences para
as apostas, ficando nu em pelo, é capaz de compor melhores versos; bem como quando está na
taberna (já que a atividade de jogar está intrinsecamente ligada ao ambiente tabernário e
também ao consumo de vinho na poesia goliárdica de uma forma geral) à qual nunca renunciará
e da qual só sairá quando chegar a morte:

Tercio capitulo memoro tabernam. En tercer lugar nombro la taberna.

578
Illam nullo tempere sprevi neque spernam, Ni ahora ni nunca renunciaré a ella,

donec sanctos angelos venientes cernam hasta que a los ángeles santos venir vea

cantantes pro mortuis “Réquiem eternam” cantando a los muertos el “Requiera eternam

Meum est propositum in taberna mori, Éste es mi propósito: morir en taberna,

ut sint vina próxima morientis orí. para que esté el vino de mi boca cerca.

Tune cantabunt letius angelorum chori: Y los coros de ángeles cantarán, ya en fiesta:

“Sit deus propitius huic potatori.” “Que a este bebedor Dios propicio sea”.

284
Hipólito de Roma, nascido cerca de 170 d. C. e morto em 236 d. C. foi um importante teólogo dos primeiros
séculos da Igreja, tendo sido responsável por diversas obras, como a Refutação de Todas as Heresias e o
Comentário sobre o Cântico dos Cânticos, ainda em grego, o que contribuiu para seu esquecimento com a
latinização da Cúria Romana. Era conhecido também por sua postura moral ao entrar em conflito como o papado,
que buscava uma flexibilização das penitências para os pagãos recém-cristianizados, coisa a qual era
completamente contra. Morreu no exílio, em Sardenha, causado pela perseguição dos cristãos feita pelo imperador
romano Maximino Trácio.
ISSN: 2525-7501
(PUENTE e MARTÍN, 1994: 40)

Em seguida o Archipoeta fala dos poetas que se esforçam a vida toda para escrever a
poesia que lhes traria a imortalidade e reconhecimento, deixando de comer ou dormir, evitando
os lugares públicos cheios de pessoas e as brigas em prol de sua empreitada, para no final
morrerem de esforço, servos de seu próprio trabalho. O Archipoeta, por outro lado, deixa claro
que não é capaz de produzir nada se está passando fome ou sede, por isso odeia “mais do que
fantasmas” a prática do jejum. Por outro lado, se está bem alimentado e servido de bom vinho,
o melhor da taberna, é capaz de produzir grandes obras: diz que, depois de comer e beber, é
capaz de superar até mesmo Ovídio; uma vez inebriado com a bebida, Baco tomaria conta de
sua mente, e incorporando Febo, seria capaz de compor as mais maravilhosas canções.

Nos cinco versos finais, o Archipoeta conclui sua enumeração dos pecados que cometeu,
ou melhor, das faltas das quais é acusado pelos “servos” de seu mecenas, argumentando que

579
esses servos na verdade têm inveja dele, queriam ser como ele, e são hipócritas de apontar as
faltas dele quando eles próprios não assumem seus próprios desvios. Clama ao “santo bispo”
que julguem e joguem pedras nele aqueles que não têm pecados no espírito, e se diz arrependido
de sua “vida antiga”, pronto para mudar, porque “el hombre verá mi cara, pero el corazón para
Júpiter está claro” (SOLA, 2006: 224). Interessante notarmos que o Archipoeta não se refere
ao deus cristão, mas sim à suprema divindade romana, e isso pode significar tanto que a opinião
daqueles que não gostam do Archipoeta não importa muito, porque o deus reconhece sua
verdadeira natureza, quanto que a “mudança” de que ele fala só ocorre no exterior, para que os
outros não tenham mais motivos para julgar suas faltas, mas em seu interior ele permanece fiel
à sua antiga vida.

O Archipoeta finaliza a canção dizendo que aceitará qualquer penitência que o bispo de
Colônia achar que é justa, pois ele admite sua culpa, porque “sem a doçura, somente resta o
amargo”. Vemos que não há arrependimento sincero; o Archipoeta apenas enumera seus
pecados, reconhece que são faltas passíveis de penitência e diz que cumprirá qualquer castigo
imposto por essas faltas, mas que sem elas tudo o que resta é amargo.
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Essa canção é representativa de vários aspectos da poesia goliárdica presente no
Carmina Burana, desde as constantes referências às divindades latinas, as menções às passagens
bíblicas e a padres importantes da Igreja, a apologia à vida despreocupada, desregrada e vagante
dos jovens estudantes, a presença do vinho, da taberna e de belas mulheres, entre vários outros
pontos. Mas essa canção também é única por apresentar um Archipoeta que reflete sobre seus
pecados e os aponta, os assume orgulhosamente frente a um mecenas que também é um
arcebispo da Igreja, pronto para enfrentar as consequências de seus atos. Um Archipoeta que
tem consciência de si próprio e de seu talento, que usa o epíteto dado por outrem com orgulho,
que ousa se comparar com poetas de uma tradição muito mais antiga, e que se defende ao
defender os excessos por ele cometidos como necessários ao seu ofício e até mesmo ao seu
viver.

É claro que não podemos comparar essa canção, ou até mesmo todas as canções do
Archipoeta, com uma autobiografia. Como dissemos acima, a autobiografia é um relato
organizado, cronológico em grande parte das vezes, que um indivíduo faz de sua própria vida,
atribuindo significados às suas experiências. A poesia do Archipoeta, por outro lado, é
episódica, errática, dotada de outras motivações. Como aponta Villena,
580

Em la cofessio del Archipoeta se pasa revista a todos los temas típicos del
Goliardismo. Y el poeta los narra, acusándose con esse desefado, leve ironia o self-
pity, que suele constituir un rasgo modernísimo em la poesia goliárdica. Cuenta sus
faltas, pero deja siempre como um eco en sordina. Un eco que no permite apagar el
lado rebelde. Es decir que la autoacusación se convierte al mismo tiempo en un
alegato en pro de sua postura vital y de su visión del mundo. (2010: 81)

Ainda assim, podemos dizer que as canções do Archipoeta apresentam traços de escrita de si,
pois nosso personagem nos apresenta um panorama daquilo que vive em seu cotidiano e a forma
como ele se sente dentro de cada ambiente e cometendo cada uma daquelas faltas,
representando a si mesmo como um membro daquela juventude que merece a compreensão dos
mais velhos pela falta de maturidade, ao mesmo tempo em que demonstra um incrível nível de
erudição. Não podemos, é claro, pensar que essa canção é um reflexo do indivíduo que o
ISSN: 2525-7501
Archipoeta foi, pois em toda a extensão da sua poesia ele usa suas experiências e constrói uma
persona para si que não engloba a totalidade de sua vivência, como nos aponta Alberti no início
deste texto. O Archipoeta não menciona sua pobreza a não ser quando lhe é conveniente, ou
seja, quando se dirige a seu mecenas pedindo que este lhe estenda a mão; também não menciona
as desavenças com Rainaldo, das quais sabemos por outros meios. Há ainda a questão de que,
provavelmente o Archipoeta deve ter composto muito mais canções do que as que foram
cristalizadas nos manuscritos que chegaram até nós. Então o que temos é um vislumbre de sua
vida, de suas ideias e de suas experiências, construídas assim, deliberadamente extraordinárias.

REFERÊNCIAS

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históricos, v.4, n.7, p. 66-81, 1991.

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582
ISSN: 2525-7501
FRONTEIRAS IDENTITÁRIAS NO IMPÉRIO ROMANO DE FILÓSTRATO: AS
REPRESENTAÇÕES DA ÍNDIA NA BIOGRAFIA VIDA DE APOLÔNIO DE TIANA
(SÉCULO III D.C)*285

Semíramis Corsi Silva**286

RESUMO

Este trabalho apresenta nossas interpretações das representações da Índia e dos contatos
estabelecidos pelo filósofo Apolônio de Tiana na obra de natureza biográfica Vida de Apolônio
de Tiana, escrita por Flávio Filóstrato em meados do século III d.C. Visamos, com isso, mostrar
como seu autor, um sofista grego inserido nas estruturas de poder do Império Romano na época
da dinastia dos Severos (193-235), período em que a obra foi escrita, percebe a Índia nas
relações estabelecidas por seu personagem, o sábio viajante Apolônio, em viagem por essa
região específica. Em tal viagem Apolônio mantém contato com brâmanes e reis indianos e há
descrições de povos e aspectos geográficos locais. Buscaremos mostrar como nessas passagens
há a construção de fronteiras identitárias e a afirmação da identidade e da paideia grega do
autor, Filóstrato, projetadas no protagonista da obra e em meio a suas representações do outro.
Vinculamo-nos aos estudos da Nova História Cultural, que permitem novas abordagens
centradas nos contatos político-culturais, fronteiras identitárias e representações.
583

Palavras-chave: Império Romano; Filóstrato; Vida de Apolônio de Tiana.

INTRODUÇÃO

A obra de natureza biográfica Vida de Apolônio de Tiana foi escrita em meados do


século III d.C. pelo sofista grego Flávio Filóstrato, intelectual que esteve próximo da corte dos
imperadores romanos Septímio Severo (193-211) e Caracala (211-217). Filóstrato,

285
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
286
** Doutora em História pela UNESP/Franca, Docente do Departamento de História da Universidade Federal
de Santa Maria - UFSM e Coordenadora do Grupo de Estudos sobre o Mundo Antigo Mediterrânico da UFSM -
GEMAM/UFSM, e-mail: semiramiscorsi@yahoo.com.br.
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possivelmente, realizou viagens junto com o cortejo imperial por manter relações intelectuais
com a imperatriz Júlia Domna, esposa de Septímio Severo e mãe de Caracala, quem ele diz ter
lhe pedido que escrevesse a obra sobre a vida de Apolônio de Tiana (VA, I, 3).

A VA, como trataremos a Vida de Apolônio de Tiana, segundo regras de abreviação do


Oxford Classical Dictionary, nos remete a longas viagens durante toda a vida adulta do
protagonista que, conforme Filóstrato, talvez tenha vivido até mais de oitenta anos (VA, VIII,
29).

Apolônio sai da Capadócia, passando pelas províncias da Cilícia, Panfília e Síria. A


caminho da Índia, passa pela região da Armênia, por terras do Império Parto, viaja pela chamada
“terra dos árabes”, pela Císsia e estabelece pouso de um ano na Babilônia. Na volta da Índia,
Apolônio para novamente na Babilônia, volta a uma cidade que talvez seja Nínive (Assíria) ou
Hierápolis (Síria) e depois para em várias cidades gregas. Então, viaja para Roma, Gades
(Hispânia Bética), Egito e Etiópia. Nos últimos livros, Apolônio faz novas viagens para cidades
gregas, Roma e terras itálicas.

O objetivo desta comunicação é apresentar interpretações de passagens da obra que


584
mostram Apolônio na região da antiga Índia. Visamos, com isso, mostrar como o biógrafo
Filóstrato, enquanto um sofista grego inserido nas estruturas de poder do Império Romano na
época da dinastia dos Severos, percebe a Índia nas relações estabelecidas por seu personagem
em viagem por esse espaço.

É importante frisarmos que no contexto da dinastia dos Severos há um grande


destaque do Oriente no Império Romano. A família da imperatriz Júlia Domna era da Síria,
berço dos imperadores severianos Heliogábalo e Severo Alexandre, sucessores de Caracala. Os
Severos também tiveram grande preocupação com as fronteiras, especialmente as Orientais. No
início do período dos Severos há a incorporação de parte da Mesopotâmia ao Império, o reino
de Osroene no Norte da Mesopotâmia, como clientela romana (GRIFFITI, 2004, p. 317) e
guerra entre romanos e partos. Em 211/212 os persas, sob a Dinastia Sassânida, iniciam várias
tentativas de conquistar partes do Império Romano. Em 220 os persas ocupam o reino dos
partos e se tornam uma das maiores preocupações do Império Romano no momento (MILLAR,
1988, p. 345). Em 230 os persas invadem a Mesopotâmia e lançam-se sobre a Síria e a
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Capadócia, necessitando que os romanos intervenham para contê-los (LE GLAY; VOISIN; LE
BOHEC, 1996, p. 408).

Partimos do pressuposto de que o Apolônio de Filóstrato é a representação de um


sábio que exerce várias funções almejadas pelo autor para seu grupo, os sofistas gregos, no
âmbito político-administrativo do Império Romano da dinastia dos Severos.287 Filóstrato
também é autor da obra Vidas dos sofistas, onde ele apresenta oradores como ele em diversos
tipos de funções político-administrativas no Império Romano, especialmente em papéis
próximos aos imperadores. Para nós, nas descrições de viagens de Apolônio, Filóstrato imprime
ao personagem características dos sofistas e sua visão dos contatos entre povos de dentro e de
fora da administração do Império Romano, apresentando-nos fronteiras identitárias em um
processo de ordem e integração imperial, para o qual os sofistas e sua cultura grega teriam
grande utilidade. Lembremos que a cultura grega desde o Império de Alexandre e o contexto
Helenístico era conhecida como a cultura de diplomacia nas regiões orientais.

Logo no começo das viagens apresentadas por Filóstrato na VA, quando Apolônio se
prepara para sair das fronteiras administrativas do Império Romano, menciona que irá “viajar 585
e sair de suas fronteiras” (VA, I, 18), posicionando-se, em nossa análise, como um cidadão desse
Império e tendo o limite entre ele e o outro, além do recebimento da paideia, também as
fronteiras geográficas do Império Romano.288

Dessa maneira, é na visão de um grego, mas um grego inserido no Império Romano e


em seu processo imperialista, e não contrário a esse, que interpretaremos os contatos de
Apolônio na Índia na obra de Filóstrato.

287
Compreendemos representações, conforme proposto pelo historiador Roger Chartier (1988). Para Chartier
(1988) o homem, por meio das representações mostra seus anseios, suas revoltas e suas vitórias, construindo
representações como se fossem verdades. Entendemos ainda que “as representações são sempre resultado de
determinadas motivações e necessidades sociais” (BARROS, 2005, p. 134). Segundo Chartier (1988, p. 17) as
apreensões de mundo particulares nos fornecem informações sobre os grupos sociais, pois, visando a estabelecer
uma comunicação social, os indivíduos classificam, ordenam e hierarquizam a sociedade a sua volta. Desta
maneira, os grupos criam os mecanismos necessários para tentar impor a sua concepção de mundo e seus valores.
288
Entendemos Paideia como a educação pedagógica, política, filosófica e religiosa, recebida pelos cidadãos da
elite greco-romana (CARVALHO, 2010, p. 25). Seria, então, um “modelo de ‘cultura’ retransmitido pelo
sistema educativo visando confortar e justificar a dominação política das elites locais” (CARRIÉ, 2011, p. 20).
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1. A Índia de Filóstrato
Na Índia, Apolônio é bem recebido por todos, desde nômades montados em elefantes
(VA, II, 6) até os sábios indianos (VA, III, 16, 29). Ao chegar à fronteira do reino dos partos
com as terras indianas, Apolônio e seus seguidores se encontram com um sátrapa indiano que
os recebe muito bem por trazerem uma carta de recomendações do rei parto Vardanes, com
quem Apolônio havia estado anteriormente. Conforme Francisco Gusmán Armario (2012) os
partos sempre foram um problema na relação dos romanos com os indianos, uma vez que seu
território ficava nas rotas que ligavam o Império Romano à Índia. Mas, Filóstrato escreve
exatamente o contrário, é o rei parto Vardanes que recomenda Apolônio para o rei indiano. Essa
representação de Filóstrato é significativa e é compreendida por nós como uma afirmação da
cultura grega de Apolônio, facilitadora da comunicação com partos e, por isso, exaltada. Assim,
Filóstrato expõe aos seus leitores o valor da cultura grega até para se chegar à Índia.

O sátrapa indiano oferece a Apolônio e seu grupo um barco oficial e um guia para
acompanhá-los até o encontro com o rei, recomendando ao seu rei que não fosse inferior ao rei
parto no trato com “um homem grego e divino” (VA, II, 17). No caminho até Taxila, a maior
cidade indiana antiga, o narrador apresenta muitos detalhes geográficos sobre o rio Indo, sua
586
fauna, sua flora e as condições meteorológicas no trajeto (VA, II, 18-20). As descrições de
Filóstrato sobre a cidade indiana de Taxila são confirmadas por escavações arqueológicas, os
detalhes mostrados pelo autor são, assim, suficientemente convincentes (JONES, 2001, p. 185).

Há um exotismo na descrição do outro. O narrador nos conta sobre o aparecimento de


homens de quatro cotovelos e de uma empusa, espécie de animal sugador de sangue (VA, II, 4).
Filóstrato menciona as façanhas de Alexandre na região do monte Nisa (VA, II, 9). Nessas
passagens, Apolônio nos parece uma espécie de sombra de Alexandre, sendo o macedônio
conquistador das terras indianas lembrado a todo o momento. Em Taxila, Apolônio encontra
inscrições gravadas nas paredes de um templo, contando as façanhas de Alexandre (VA, II, 20)
e um templo dedicado ao Sol (VA, II, 24). Percebemos como muitos elementos do contexto
severiano em que viveu Filóstrato estão presentes nas narrações. Lembremos que o imperador
Caracala tinha enorme admiração por Alexandre, o conquistador do Oriente (BANCALARI
MOLINA, 2000), além da divindade do Sol ser cultuada pela família severiana, sendo os
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imperadores Heliogábalo e Severo Alexandre, sucessores de Caracala, respectivamente,
sacerdotes do Sol.

Em relação às descrições geográficas e étnicas, consideramos que elas não estão na


VA apenas para ilustrar a narrativa, função que de fato cumprem, mas parece-nos que o
propósito delas pode ir além se considerarmos novamente o contexto severiano, as constantes
guerras no Oriente e a elaboração do Itinerário Antoniniano, um guia de rotas ao Oriente,
possivelmente do mesmo contexto. Segundo Pedro Paulo Funari (2012, p. 09), o historiador
romano Salústio (86-35 a.C.) considerou a geografia e sua apresentação essenciais para as
batalhas. Em nossa interpretação, portanto, as descrições étnicas e geográficas da VA têm o
propósito de demonstrar os conhecimentos de Filóstrato, reforçando nossa hipótese sobre sua
afirmação de que deveriam ser atribuídos papéis aos sofistas junto aos imperadores e ligando o
texto da VA às suas preocupações conforme seu momento histórico. Por meio das viagens,
Filóstrato demonstra que Apolônio tem bons conhecimentos geográficos e étnicos das regiões
orientais do Império em um momento de tensão e conflitos no Oriente, conhecimentos estes
muito necessários aos imperadores em termos estratégicos.
587
Prosseguindo o trajeto, Apolônio chega a Taxila, onde será hóspede do rei indiano,
Fraotes. Ao encontrar Fraotes (VA, II, 26), a primeira observação de Apolônio é que o rei é um
filósofo, o que o alegra muito e, para nós, mostra a importância que Filóstrato confere ao
governante que estuda filosofia. Em conversa com Apolônio, o rei conta como evita a guerra
com seus inimigos, os povos fronteiriços ao seu território, e Apolônio diz admirar o rei por sua
busca pela paz, evitando as guerras.

Filóstrato indica sua visão sobre a importância de os governantes tentarem estabelecer


a paz por meio de acordos e concórdias, evitando ao máximo as guerras, o que podemos ligar
ao papel dos sofistas e de Apolônio como bons intermediadores de conflitos.289 Apolônio e os
sofistas, portanto, são aqueles que cumprem o papel de assessorar governantes na busca pela
concórdia e pela paz.

289
Na obra Vidas dos sofistas, os sofistas aparecem como intermediadores de conflitos e servindo em embaixadas
em diversas situações como em: VS, I, 496, 508, 520-521, 527, 530, 531-536; II, 570, 600.
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Mais de uma vez vemos os cultos ao Sol nas viagens de Apolônio pelo Oriente. O
tianeu se mostra admirado com o respeito de Fraotes ao Sol (VA, II, 26). Apolônio desenvolve
ainda uma longa conversa com o rei sobre os presságios e sobre as adivinhações realizadas por
meio dos sonhos (VA, 36-38). Possivelmente aqui Filóstrato relaciona as práticas desse rei com
os imperadores severianos, sacerdotes do Deus Sol e grandes admiradores das práticas de
adivinhação, como nos relatam Dião Cássio e Herodiano, historiadores do período dos
Severos.290

O rei Fraotes se exercita à maneira grega (VA, II, 27) e pratica a filosofia (VA, II, 29),
pois havia recebido uma educação de gregos junto aos brâmanes (VA, II, 31), possuindo
conhecimentos sobre obras literárias gregas, como as tragédias de Eurípides (VA, II, 32). Por
tais práticas, Fraotes aparece como um modelo ideal de soberano e é elogiado em diversos
momentos durante as conversas com Apolônio.

A partir do momento em que conseguimos estabelecer uma relação dos sábios


brâmanes com Apolônio, pois o próprio se compara aos indianos em seus conhecimentos (VA,
I, 26), e, estabelecemos relações do tianeu com os sofistas, para nós, Filóstrato deixa outra 588
mensagem em sua representação de Fraotes como monarca ideal: ele é um rei sábio justamente
porque teve sábios ao seu lado, presentes em sua educação, sendo esse, portanto, um papel que
os sofistas podiam representar junto aos imperadores de Roma.291 Lembremos que o imperador
severiano Caracala e seu irmão e coregente imperial Geta, quando crianças, foram educados
por um sofista, Antípatro de Hierápolis, amigo de Filóstrato e biografado na obra Vidas dos
sofistas (II, 607).

290
São várias as passagens das obras de Herodiano e Dião Cássio que tratam da ligação dos Severos com a
astrologia, com horóscopos, oráculos, sonhos premonitórios e os chamados omina imperii e omina mortis
(profecias e prodígios sobre ascensão imperial ou morte dos imperadores). Em Herodiano podemos ler sobre esta
temática em: História do Império Romano, II, 9, 5-6; III, 4, 3; IV, 12, 3-6. E em Dião Cássio: História Romana,
LXXV, 3, 1-3; 8, 1; LXXVI, 3, 4; 5, 5, 11, 1-2; 16, 2-5; LXXVIII, 1, 4-6; LXIX, 2,1; 4, 1-4; 7, 1-5; 8, 1-6.
291
Em nossa Tese de doutorado, dedicamos um capítulo para a análise comparativa de papéis desempenhados por
Apolônio de Tiana em suas viagens com papéis desempenhados pelos sofistas na obra Vidas dos sofistas. Também
comparamos alguns discursos e funções dos sofistas Dião de Prusa e Élio Aristides com passagens da VA e a
autodefesa do filósofo e sofista Apuleio, na obra Apologia, com a defesa feita por Filóstrato de Apolônio de Tiana
na VA, diante da acusação que ambos sofrem como praticante de magia.
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Sabemos que era comum nos textos de gregos antigos se diferenciarem dos bárbaros
do Oriente por acreditarem que estes possuíam governos despóticos (NIPPEL, 1996, p. 177).
No entanto, percebemos que Fraotes, ao contrário da tradicional imagem do déspota oriental, é
visto como monarca ideal que recebeu uma educação grega, mesmo reinando em um mundo
bárbaro. Portanto, a construção do outro na VA está ligada aos interesses de Filóstrato. O sofista
trabalha com construções identitárias conforme seus propósitos.

Após partir de Taxila, na busca pela terra dos sábios brâmanes, novamente Apolônio
segue os caminhos de Alexandre, o que não deixa de ser mencionado por Filóstrato, que narra
o encontro de Apolônio com uma estela de bronze que trazia escrito que ali era o limite do
Império de Alexandre, (VA, II, 42). Esse limite, Apolônio, então, ultrapassa.

Durante a travessia pelo rio Hifasis, o narrador nos conta que algumas árvores ao redor
do rio são dedicadas à deusa Afrodite. E novas descrições do outro como exótico aparecem ao
verem uma mulher com uma metade do corpo negro e a outra metade branco, (VA, III, 1-4).
Temos descrições de animais fantásticos como unicórnios míticos (VA, III, 2) e dragões (VA,
III, 8), expondo que mesmo com as relações comerciais mantidas entre o Império Romano e a 589
Índia, essa região ainda permanecia uma terra desconhecida e misteriosa para os escritores.

Segundo Gusmán Armario (2012, p.252-254) há uma série de documentos,


especialmente de natureza arqueológica, que mostram as relações comerciais entre Roma e
Índia no século I. Tais trocas comerciais foram muito intensas, principalmente durante o
período dos imperadores Augusto e Marco Aurélio. Filóstrato nos dá pistas dessas relações
comerciais, e na VA (VI, 16) escreve sobre embarcações que partiam do Egito rumo à Índia. No
entanto, Gusmán Armario (2012, p. 255), indica que as fontes literárias do Principado tratam
muito pouco sobre as viagens rumo ao Oriente e, pelo menos em Filóstrato, a região é mostrada
de forma bem exótica. Mas, mesmo com esse exotismo étnico e da natureza, Filóstrato sempre
descreve como Apolônio encontra elementos da cultura grega nas terras distantes: “Chegaram,
pois, a uma fonte de água que Damis, logo que viu, afirma que se parece com Dirce, na Beócia”
(VA, III, 17). E os sábios brâmanes “entoavam um canto como o hino de Sófocles, que se entoa
em Atenas em honra de Asclépio” (VA, III, 17).
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Tratando ainda das relações comerciais entre Império Romano e Índia, Gusmán
Armario (2012, p. 262) explica que com a ascensão dos persas Sassânidas sob o território do
Império Parto, no período em que Roma era governada pelos Severos, tais trocas são
dificultadas, pois os persas passam a controlar o Golfo Pérsico, local essencial da rota dos
romanos para a Índia. As trocas entre Império Romano e Índia não desaparecem, mas sofrem
alterações. Acreditamos que a escrita da VA, deste mesmo período, indica as pretensões de
Filóstrato em mostrar como a cultura grega, encontrada na Índia, era algo importante para os
romanos também em suas relações com as regiões do Oriente que não estavam sob a
administração imperial.

Um dos momentos mais significativos, em nossa leitura, nas conversas entre Apolônio
e o sábio Iarcas está nesta fala do brâmane ao tianeu:

– Parece que consideras como justiça o fato de não cometer injustiça e o


mesmo, acredito, consideram todos os gregos. Pois como ouvi alguns

590
egípcios que chegaram aqui certa vez, governadores romanos vão
regularmente até vós com suas tochas levantadas, sem saber se vão
governar miseráveis, mas vós, se estes não vendeis vossos veredictos, são
chamados de justos. Ouvi dizer que a mesma coisa fazem traficantes de
escravos ali, pois se chegam trazendo escravos cários, tratam de ponderá-
los em seu modo de ser e estimam com elogios os escravos que não
roubam. Dos governantes que afirmam estar submetidos, vós tendes a
mesma estima e assim que, glorificando com os mesmos elogios dos
escravos, os despedem como dignos de inveja, segundo acreditam (VA, III,
25).

O que Iarcas realça é o fato de a Grécia estar sob o jugo do Império Romano sem que
os gregos questionem isso e ainda considerem os romanos como justos. A atitude de Apolônio,
ou melhor, do narrador Filóstrato, é calar-se após a fala do brâmane. Nada é comentado sobre
isso, mostrando que Filóstrato consente, portanto, com o poder do Império Romano.

Ainda durante a estadia de Apolônio junto ao brâmane Iarcas, temos a descrição da


chegada de um rei indiano de nome não mencionado. O rei chega acompanhado de pessoas em
alvoroço, vestido com fausto e cheio de pedrarias, é considerado desprovido de inteligência,
falando coisas sem sentido, detestando os gregos e não falando a língua grega a ponto de
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precisar se comunicar com Apolônio usando o sábio indiano Iarcas como intérprete (VA, III,
31). Iarcas comenta que caso se tratasse do rei Fraotes, que, como já mostramos, aparece como
uma espécie de monarca ideal na obra, haveria um silêncio e não todo aquele barulho (VA, III,
26).

A apresentação desse rei de nome não mencionado, novamente, nos remete ao


contexto severiano e ao que mostram os historiadores Dião Cássio (História Romana, LXXX,
11, 2; 12, 2. LXXX, 11; 12) e Herodiano (História do Império Romano, V, 3, 6-8. V, 5, 4-6)
sobre o imperador severiano Heliogábalo, que se vestia com roupas orientais e estava sempre
envolto em muitos rumores sobre sua vida. Assim, acreditamos que Filóstrato faz uma metáfora
de Heliogábalo no rei indiano de nome não mencionado, e demonstra concordar com os
historiadores severianos sobre a imagem negativa de Heliogábalo e sobre os valores que eram
esperados de um monarca pelos grupos das elites. O barulho que acompanha o rei indiano
denegrido parece, justamente, a representação dos boatos que rondavam o governo e a vida de
Heliogábalo.

Assim como Fraotes, o rei indiano que conhece a língua grega e admirava os gregos, 591
é honrado e tido como um modelo de rei ideal, este segundo rei indiano, que não admirava os
gregos e considerava que “nada dos gregos é digno de menção” (VA, III, 29), é tido como um
rei menor (VA, III, 27-33). Para nós, possivelmente esses dois reis indianos simbolizam a visão
de Filóstrato sobre os imperadores Heliogábalo e Severo Alexandre e a relação de ambos com
as tradições gregas no Império Romano. Desse modo, a relação desses monarcas com a cultura
grega também é um exemplo sobre o papel que Filóstrato defendia para os gregos,
especialmente para os sábios, o de tornarem seus governantes conhecedores da cultura grega.

Sobre o conhecimento da língua grega pelos indianos. Apolônio chega a se admirar


com o conhecimento dos indianos (VA, III, 12). No entanto, a nosso ver, o sofista apresenta
também sua visão das interações culturais que existiam na Antiguidade, expondo como as
identidades são marcadas pela fluidez das fronteiras, mesmo entre povos considerados
bárbaros. Temos, assim, a autodescrição do rei indiano Fraotes para Apolônio:

– Temia achar que eu fosse atrevido quando ainda não me conhecia por mim
mesmo, e achar que eu era um bárbaro não por decisão da sorte. Mas, após ter
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te conquistado, porque vejo que me aprecias, não posso me ocultar, assim te
demonstrarei em vários aspectos que estou bem preparado em língua grega
(VA, II, 27).

Apolônio conversa em grego com um mensageiro dos sábios que encontra ao chegar
à cidade dos brâmanes: “Dizem que após chegar correndo até Apolônio, lhe dirigiu a palavra
em língua grega e lhes pareceu extremamente estranho que todos da aldeia falassem grego”
(VA, III, 12).

E temos diálogos entre o sábio brâmane Iarcas e o tianeu que mostram que o sábio,
além de falar em grego, estava atento a essa língua, reparando um erro na carta de recomendação
que lhe enviou o rei Fraotes sobre Apolônio. Havia de fato a possibilidade dos governantes
saberem grego pelos contatos desde a época helenística e por ser esta a língua de diplomacia
no Oriente.

Diante dessas informações, indagamos o que diferencia para Filóstrato esses homens
considerados bárbaros na VA, mas conhecedores da língua grega, como o rei indiano Fraotes e
592
os sábios brâmanes – daqueles que receberam a paideia, uma vez que eles sabem falar grego,
interagem com a cultura grega e, como conferimos, não era o local de nascimento elemento
decisivo na identificação como grego no contexto em que nosso autor escreveu sua obra? 292
Além disso, como sabemos, a língua era a melhor forma de distinção entre gregos e não gregos
na Antiguidade, sendo que na origem do conceito de bárbaro estava justamente a ideia daquele
que não fala grego (NIPPEL, 1996, p. 168). O que os diferencia, a nosso ver, é que, além de
eles não terem um passado em comum, não estavam sob a administração de Roma, não estavam
nos limites da cidadania e, por isso, são citados como sábios, mas ao mesmo tempo bárbaros.

Mas, diferentemente de Filóstrato, que vê a possibilidade de comunicação entre


falantes de grego e bárbaros, por mostrar que muitos bárbaros orientais falavam grego, seu
contemporâneo Herodiano não tinha a mesma ideia, ressaltando a fala do rei parto Artabano de

292
Sobre não ser o local de nascimento preponderante para a identificação como grego em Filóstrato, mas o
recebimento da paideia, temos a descrição de Favorino, considerado por Filóstrato como tendo uma mentalidade
de grego, mesmo procedendo da Gália (Vidas dos sofistas, I, 489).
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que não poderia haver harmonia no casamento de sua filha com o imperador Caracala
justamente por ambos não falarem a mesma língua (História do Império Romano, IV, 10, 5).

Dessa maneira, embora existisse de fato uma comunicação em grego no Oriente


romano e não romano, especialmente para fins diplomáticos, percebemos que Filóstrato
exagera em sua apresentação justamente como forma, frisamos, de afirmação identitária,
afirmação essa que não deve ser descontextualizada do momento em que ele vivia e das relações
estabelecidas por ele com os homens e mulheres poderosos do Império Romano dos Severos.

CONCLUSÃO

Compreendemos que as representações do outro são resultados de uma


autocompreensão e autoafirmação daquele que representa. É através dos contrastes
estabelecidos que se constrói e se afirma uma imagem de si próprio.

Desta forma, percebemos a caracterização dos gregos perante os indianos como uma
forma de Filóstrato demonstrar como a cultura grega podia ser um elemento importante nas 593
negociações e nas interações com povos de fora do Império, essencialmente nas partes orientais
em relevância no contexto severiano. As viagens de Apolônio são a ferramenta utilizada por
Filóstrato para expor a onipresença da cultura grega dentro e fora do Império Romano. Nessas
viagens há uma afirmação da cultura grega em diálogo com a cultura do outro. Assim sendo,
Filóstrato alega papéis para Apolônio neste processo de comunicação, papéis este que
acreditamos ser uma projeção das possibilidades de inserção de si e seu grupo, os sofistas, nas
estruturas político-administrativas do Império Romano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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596
ISSN: 2525-7501
PIRATAS DO CARIBE NO XVIII: O CONTEXTO DE UM GRADUAL
DESAPARECIMENTO293

Nicássio Martins da Costa294

RESUMO
Podemos afirmar que o século XVIII foi à época áurea da pirataria caribenha, contudo, não em
termos ligados ao sucesso dos piratas em suas empreitadas, mas sim, de um auge do combate a
atividade o que fez com que seus praticantes se mobilizassem no intuito de sobreviver sem o
apoio que já haviam tido em outros momentos, principalmente oriundo da Coroa Inglesa. Uma
série de mudanças políticas e econômicas acarretadas por uma sucessão de conflitos iniciados
ou terminados durante o Setecentos. Dentre estes conflitos podemos citar a Revolução Inglesa,
ainda no XVII, a Guerra dos Sete anos e o início do processo de revolução industrial, porém, o
estopim foi a Guerra da Sucessão Espanhola que, em seu tratado final, direcionou o monopólio
do comércio ultramarino com as colônias americanas para a Inglaterra. Desta forma, o apoio
inglês para a atividade dos piratas teve seu fim e as embarcações inglesas responsáveis por este
comercio ultramarino na região do Caribe passaram a ser os principais alvos de ataques piratas.
Com isto os piratas passaram a serem perseguidos de forma ferrenha pela Marinha Real
Britânica (Royal Navy) e, mesmo que em alguns momentos do século XVIII tenham construído
fama não tiveram forças para se equipararem a força naval de seus perseguidores.
597

Palavras-Chave: Piratas; Inglaterra; Royal Navy.

Se nos fosse solicitada uma caracterização do século XVIII, por certo não poderíamos
prescindir de afirmar que o período foi de significativas mudanças no sistema geopolítico e
econômico mundial. Essa marca tão característica do Setecentos se justifica pelo término de
alguns conflitos antigos e pelo início de outros, que envolveram as grandes potências políticas
e econômicas do período, levando-as a enfrentar sérios períodos de crise. Dessas crises surgiu
um novo arranjo de forças políticas e, consequentemente, uma nova geopolítica na Europa.

293
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
294
Mestre em História - Unisinos, nmcnicassio@terra.com.br
ISSN: 2525-7501
Há quem diga que o século XVIII representou a época áurea da pirataria. Entretanto,
podemos afirmar que esse período áureo não tem relação com a prosperidade ou com a boa
sorte dos piratas, mas sim, e exclusivamente, com a fama e com a aura romântica que envolvem
esses personagens e suas histórias. Essas se propagaram, em sua maioria, posteriormente à
captura, morte ou mesmo sumiço de alguns desses indivíduos.

É, no entanto, correto afirmar que o maior número de ataques piratas ocorridos na região
do Caribe se concentra nas primeiras décadas do século XVIII e que eles se constituem em uma
tentativa de sobrevivência de Bucaneiros, Flibusteiros e Corsários, que se viram dispensados
pelas grandes potências políticas e econômicas e, por isso, foram vitimados por uma gradual
marginalização, que tinha o intuito de forçar seu desaparecimento. As descrições romantizadas
dos piratas podem ser postas na conta dos literatos, já que foram eles que elevaram suas
aventuras a feitos quase heroicos (se não fossem tratados como vilões) e, anos depois,
valorizaram as tentativas desses grupos de se manterem ativos durante este século de amplas
mudanças.

Foram cinco os eventos principais que causaram, ao longo do século XVIII, a ruptura 598
gradual das grandes metrópoles com a pirataria e seus protagonistas. A Guerra da Sucessão
Espanhola (1702 – 1714), a Guerra dos Sete Anos (1756 – 1763), a Revolução Americana (1775
– 1783), a Revolução Francesa (1789 – 1799) e o início do processo de Revolução Industrial
(iniciada por volta de 1760, se desenvolvendo ao longo do século XIX). Deslocadas do século
XVIII, mas de importância no processo que vamos narrar, estão a Revolução Inglesa (1640 –
1660 e 1688 – 1689) e a Guerra da Secessão (1861 – 1865), nos Estados Unidos. Nesses eventos
não encontraremos piratas envolvidos de forma central ou protagonizando situações decisivas,
como nos casos de Richard Hawkins ou Sir Francis Drake, mas cada um dos acontecimentos,
como procuramos mostrar, contribuiu para que as opções de ação desses sujeitos diminuíssem,
de forma que, em meados do século XIX, se tornasse inviável ser um pirata e ter sucesso com
as atividades de assalto a embarcações.

Quando falamos em pirataria caribenha nos referimos, principalmente, a ingleses,


franceses, espanhóis e, em menor instância, a holandeses, representantes das nações que se
aventuraram na expansão marítima, na disputa territorial e na colonização das Américas. Cada
uma delas promoveu, consoante a seu nível de avanço econômico, mudanças políticas e sociais,
ISSN: 2525-7501
lançando mão de mecanismos diversos para a contenção e a eliminação das atividades de
pirataria nas regiões coloniais que se encontravam sob seu domínio. Pode ser encarado com
estranheza o fato de que os ingleses foram os que mais se valeram de piratas para o atendimento
de seus interesses, uma vez que se leva em consideração o fato de que foram os primeiros a
criar medidas drásticas para a sua perseguição e para a contenção de suas atividades.

A evolução marítima inglesa enfraqueceria vertiginosamente até meados do


século XVII, durante os reinados de Jaime I (1603-1625) e Carlos I (1625-
1649), respectivos sucessores da Rainha Elisabeth. A assinatura do Tratado de
Londres (1604) no qual Jaime I decretava a paz com a Espanha, negando-se a
apoiar a ação de corsários ingleses contra embarcações estrangeiras, abriu
espaço para que marinheiros oriundos das Províncias Unidas do Norte
(Holanda), em pleno desenvolvimento comercial, invadissem as rotas
marítimas dominadas pela Inglaterra. (LISBOA, 2012, p. 96).

Vale lembrar que a Revolução Inglesa – mesmo não estando diretamente ligada ao
recorte temporal deste trabalho – promoveu a primeira grande mudança estrutural em uma das
grandes potências europeias do período moderno. A partir desse evento, a Inglaterra passaria
por grandes mudanças, sobretudo econômicas, das quais resultaram um êxodo rural acentuado 599
e um crescente aumento demográfico nas cidades. Essas consequências sociais, ligadas à
expansão colonial inglesa no Novo Mundo, impulsionaram, devido a algumas vitórias sobre a
Espanha, drasticamente o crescimento do comércio ultramarino em direção às colônias do Novo
Mundo, cujas rotas passavam frequentemente pelos mares do Caribe. (PERRY, 2002).

O desfecho da Revolução Inglesa também conduziu a Inglaterra a um processo de


revigoramento de seu poderio naval, pois segundo Rodney Lisboa:

A autoridade naval inglesa tomaria novo impulso nas mãos de Oliver Cromwell,
general que liderou as forças parlamentares durante as Guerras Civis Britânicas
(1642-1650). Com a queda da monarquia e o estabelecimento de república da
Comunidade Comum (Commonwealth), Cromwell reestruturou completamente a
Marinha Real, eliminando a política de favorecimento e a burocracia instaurada no
almirantado, construindo arsenais de guerra para suprir a demanda de navios,
estimulando a construção de embarcações para compor e reforçar a frota, melhorando
a autoestima e o soldo dos marinheiros. (LISBOA, 2012, p. 97).

O crescimento do comércio ultramarino acarretou, primeiramente, o desinteresse na


manutenção das atividades de piratas e corsários que vinham, até então, desfrutando de
ISSN: 2525-7501
incentivos – e de recursos – da Coroa Inglesa e, posteriormente, sua desestabilização, com o
crescimento gradual das escoltas, fortemente armadas, que acompanhavam os navios
mercantes, dificultando os assaltos por parte de piratas. Começava assim a se formar um
poderio bélico naval de difícil combate para as normalmente frágeis embarcações piratas.

Se o século XVII constitui-se no ponto de partida para a transformação da Inglaterra em


uma potência ultramarina, desencadeando-se, a partir de então, o processo que resultaria na
gradativa marginalização da pirataria, pode-se dizer que as duas primeiras décadas do XVIII
foram o grande divisor de águas desse processo. A Guerra da Sucessão Espanhola não somente
enfraqueceu a Espanha, principal alvo dos ataques de piratas patrocinados pela Inglaterra e
França, como também mudou drasticamente as estratégias e as políticas comerciais desses
países com as colônias do Novo Mundo.

O século XVIII iniciou-se e foi marcado pela deflagração da Guerra da Sucessão


Espanhola. O conflito, que se estendeu entre 1702 a 1714, envolveu a maioria das
nações da Europa ocidental, e foi resultante do confronto entre os Bourbons e os
Habsburgos pelo trono da Espanha. Sob seu pano de fundo, no entanto, várias outras

600
questões emergiam: a rivalidade entre a França e a Inglaterra pela hegemonia
mundial, as disputas das nações europeias pelo controle dos espaços coloniais e pelo
comércio transoceânico, especialmente os auferidos com o tráfico de escravos.
(FURTADO, 2011, p. 68-69).

Como já citamos, a Espanha foi o inimigo, ou pelo menos um alvo comum, para as
nações fortes durante boa parte do período moderno. Esta posição obrigou a Coroa Espanhola
a tomar medidas protecionistas não somente na região do Caribe, onde se concentravam os
ataques de piratas, mas também em outras regiões do continente americano durante os dois
séculos de tensão que antecederam a deflagração da Guerra da Sucessão Espanhola, como foi
o caso da região de Bío-Bío, localizada no sul do atual Chile, e que, segundo Francismar Alex
Carvalho, tratava-se de uma região “estratégica para a navegação e o comércio dos mares do
Pacífico Sul e constantemente alvo da cobiça de piratas e corsários das nações inimigas (...)”.
(CARVALHO, 2006, p. 59). Sobre essa mesma questão, o autor ainda reforça:

Os piratas foram o suplício dos espanhóis, sobretudo no Caribe e no Pacífico Sul,


durante os séculos XVI, XVII e XVIII. A fronteira de Bío-Bío adquire, nesse contexto,
importância central, pois é onde estão os primeiros portos dos barcos que navegam do
Atlântico ao Pacífico, pelo estreito de Magalhães. As nações inimigas da Coroa
espanhola firmavam acordos com as populações nativas que habitavam o vale do rio
ISSN: 2525-7501
Bío-Bío, de modo que se tornou urgente a criação de um exército para vigiar e
defender a linha de fronteira. (CARVALHO, 2006, p. 59).

Essa política de intensificação da presença em algumas áreas do vasto império colonial


espanhol se manteve durante e, também, depois do conflito. Como se pode constatar no caso
de Santo Domingo (1702), ocasião em que a Espanha procurou não só estabelecer boas relações
com os estados fronteiriços como também se firmar no território através da construção de fortes,
tais como o de Dajabón (1727), ao norte, Mirabelais (1736), na região central, e de Pedernales
ou Anse-à-Pitre (1741), mais ao sul (QUEIROZ, 2011).

Com o vertiginoso enfraquecimento da Espanha devido aos efeitos da Guerra da


Sucessão Espanhola, a França incrementará a prática da navegação e do comércio na América
com o intuito de tomar posse e defender as possessões coloniais espanholas que, a partir daquele
momento, já se encontravam sob o domínio de Filipe de Anjou (PAREDES, 2013).

Abaixo podemos ver um mapa político europeu do período do desenvolvimento do


conflito.
601
Figura 17: Mapa da Guerra da Sucessão Espanhola

Fonte: www.geografiainfinita.com
ISSN: 2525-7501
Este novo cenário político e econômico acabou por conferir à pirataria um novo
significado na disputa que se estabeleceu entre a França e a Inglaterra pelo controle do comércio
com as colônias americanas, o qual envolvia, necessariamente, a passagem das frotas de navios
pelos mares do Caribe. No período anterior, a pirataria estivera majoritariamente a serviço da
monarquia inglesa295. Por outro lado, é preciso considerar que, diante da fragilidade das duas
nações europeias, a retomada das atividades de pirataria poupavam a Marinha real de alguns
confrontos diretos, os quais podiam desencadear uma ação de guerra. Esta ausência de
supremacia, contudo, passou a se desenhar de modo diferente a partir do desfecho do conflito:

Com a Paz de Utrecht (1713), a Espanha, além de ocupar um claro segundo plano nas
disputas do ultramar, consagrou a posição de aliança continental com França e
concedeu o domínio dos mares à Inglaterra, agora reforçada pela consolidação da
união com a Escócia (1707). A superioridade naval inglesa tinha sido ratificada
durante a Guerra de Sucessão com a circum-navegação do corsário Woodes Rogers
(1708-1711), e a França finalmente percebeu o peso e a importância do desafio que
enfrentaria para enfraquecer o domínio inglês pela aquisição de benefícios navais
indispensáveis. (PAREDES, 2013, p. 98).

A supremacia inglesa, no entanto, era garantida através da exclusividade comercial que 602
mantinha sobre um dos principais e mais lucrativos negócios do período:

O comércio de escravos concedido como resultado da Paz de Utrecht a Companhia


Inglesa da África aguçou o interesse britânico pelo Atlântico Sul, indispensável em
sua rota até o Brasil, o Rio da Prata e o Estreito de Magalhães, novos mercados e rotas
de acesso fundamentais ao litoral americano. (PAREDES, 2013, p. 98).

Neste mesmo sentido, Kenneth Maxwell nos lembra que:

(...) os britânicos estavam aprendendo, assim como os franceses, que era mais fácil
subverter o império espanhol por dentro do que atacá-lo em alto-mar. Era mais
vantajoso usar os créditos dos comerciantes ingleses para assumir controle indireto do
comércio hispano-americano, contrabandear e fazer escambo na costa da América do
Sul e Central do que saquear e destruir clientes em potencial. E os piratas não mais
restringiam seus ataques aos espanhóis. Como a riqueza e poder estavam em novas

295
Em Democracia Pirata (1999), Kenneth Maxwell destaca a exposição “Piratas – Fato e Ficção”, apresentada
no Museu Marítimo de Londres entre 1992 e 1995. David Cordingly, um dos curadores, foi convidado por um
agente literário de Nova York para trabalhar o tema desta exposição na forma de livro. Neste livro, ele destaca
que, baseado em dados da ilha de New Providence (Bahamas), 35% dos piratas eram provenientes da Inglaterra,
25% das colônias norte-americanas, 20% das Antilhas e 10% da Escócia. O restante estava dividido entre suecos,
holandeses, franceses, espanhóis e portugueses.
ISSN: 2525-7501
rotas marítimas atlânticas, os ingleses passaram a ser o alvo de ataques piratas.
(MAXWELL, 1999, p. 85).

A pirataria foi apresentada como um problema desde o estabelecimento das primeiras


rotas comerciais que a Europa mantinha com as colônias americanas. Se a Espanha sempre foi
tida como o principal alvo das ações dos piratas, a Inglaterra sempre foi percebida como o
principal agressor e inimigo. Porém, com o Tratado de Utrecht, esta situação se inverte de modo
abrupto, uma vez que, com a consolidação da supremacia marítima inglesa, os piratas se viram
privados das licenças que possuíam para saquear nos mares próximos ao continente americano.

Figura 18: Mapa do pós-assinatura do Tratado de Utrecht

603

Fonte: iesguadalquivir.es

Para os piratas, iniciava-se um período de riquezas e fama fugazes e de busca pela


sobrevivência, já que passariam a enfrentar uma potência naval incomparável.
ISSN: 2525-7501
Concomitantemente, iniciava-se a temporada de caça aos piratas, resultado da tentativa da
Coroa inglesa de eliminar de vez uma situação que ela mesma havia ajudado a formar, mas que
já não lhe interessava mais manter.

De acordo com Daniel Defoe, apesar da redução drástica dos recursos, alguns piratas
continuaram recebendo subsídios no período após a Paz de 1713:

A ascensão desses vagabundos desde a Paz de Utrecht (1713) – ou, pelo menos, a sua
grande proliferação – pode imputar-se com toda a justiça ao estabelecimento das
colônias espanholas nas Índias Ocidentais. Lá os governantes, muitos deles cortesãos
ávidos, que para ali foram enviados com o fito de fazerem fortuna, ou reconstruí-la,
geralmente empregam todos os procedimentos que costumam acarretar lucros:
pretendendo impedir a intromissão de algum outro comerciante, concedem
autorização a grande número de fragatas para capturarem quaisquer navios ou barcos
que ultrapassem o limite de trinta quilômetros ao longo da costa, coisa que os nossos
navios ingleses não conseguem evitar muito bem quando se dirigem para a Jamaica.
(DEFOE, [1724] 2008, p. 27).

Em 1717, o governo inglês decide pôr um fim à pirataria. Contudo, devido ao grande
número de piratas em atividade, o tempo e o esforço necessários para cumprir este objetivo
foram muito maiores do que os ingleses estavam dispostos a dispensar. Esta parece ser a razão
604
para a inclusão de um parágrafo no Documento da Liberação da Captura, Prisão e Execução
de Piratas no qual a Coroa inglesa se dispunha a conceder o perdão real a piratas que se
retratassem e prometessem cessar suas atividades até a data de 5 de Setembro de 1718. Abaixo,
transcrevemos, na íntegra, este documento que se encontra disponibilizado em A General
History of the Pyrates, de Daniel Defoe:

PELO REI,
PROCLAMAÇÃO PARA A SUPRESSÃO DOS PIRATAS
GEORGE R.
Embora nos tenham chegado informações de que diversas pessoas, súditos da
Grã-Bretanha, vêm cometendo desde o dia 24 de junho do ano de Nosso
Senhor de 1715 diversos atos de pirataria e de roubos em alto-mar, nas Índias
Ocidentais, ou próximos às nossas colônias, que podem e deverão ocasionar
grande prejuízo para os comerciantes da Grã-Bretanha, e de outras nações que
comerciam naquelas regiões; e embora tenhamos designado uma força que
consideramos capaz de suprimir os referidos atos de pirataria, e com a maior
eficácia pôr um fim a estes, pensamos ser apropriado, segundo o parecer do
nosso Conselho do Rei, expedir a presente Proclamação Real, por meio da
ISSN: 2525-7501
qual prometemos e declaramos que no caso de um desses piratas – ou alguns
deles – no dia 5, ou antes, do mês de setembro do ano de 1718 de Nosso
Senhor, pretender ou pretenderem se render a algum dos nossos principais
secretários de Estado na Grã-Bretanha ou Irlanda, ou a qualquer governador
ou vice-governador de qualquer das nossas colônias de além-mar, esse ou
esses piratas que se renderem, como já foi dito, obterão o nosso gracioso
Perdão dos seus atos de pirataria cometidos antes do dia 5 do próximo mês de
janeiro. E por meio da presente, ordenamos estritamente a todos os nossos
almirantes, capitães e outros oficiais marítimos, e a todos os governadores e
comandantes de quaisquer fortes, castelos ou outros locais em nossas colônias,
e a todas as nossas demais autoridades civis e militares, que capturem e
prendam os piratas que se recusarem ou custarem a se render devidamente. E
pela presente, declaramos também que no caso de qualquer ou quaisquer
pessoas que, no dia 6 de setembro – ou antes – do ano de 1718, venham a
descobrir ou a capturar, ou a descobrir ou fazer com que sejam descobertos
qualquer ou quaisquer desses piratas que se recusam ou demoram em se
render, como foi dito antes, fazendo com que estes compareçam perante a
Justiça e sejam condenados pelas referidas ofensas, essa ou essas pessoas,
efetuando assim tal descoberta ou captura, deverão ter e receber de nossa parte
uma Recompensa por isso, ou seja: para todo comandante de qualquer navio
ou barco particular, a soma de cem libras; para todo tenente, comandante,
contramestre, carpinteiro, atirador de canhão, a soma de quarenta libras; para
todo oficial subalterno, a soma de trinta libras; e para todo homem particular,
a soma de vinte libras. E se alguma pessoa, ou pessoas, pertencendo ou
605
fazendo parte da tripulação de algum desses navios ou barcos piratas, no dia
6, ou antes do mês de setembro de 1718, capturarem e entregarem, ou fizerem
com que sejam capturados e entregues qualquer ou quaisquer comandantes
desses navios ou barcos piratas, de forma que estes venham a comparecer
perante a Justiça, e a ser condenados pelas referidas ofensas, tal pessoa ou
pessoas receberão como recompensa por isso a soma de duzentas libras para
cada comandante capturado. O Lorde Tesoureiro ou os atuais Encarregados
do Tesouro têm orientação para pagarem devidamente essas quantias.

EXPEDIDO EM NOSSA CORTE, EM HAMPTON-COURT, NO DIA 5


DE SETEMBRO de 1717, NO QUARTO ANO DE NOSSO REINADO.
DEUS SALVE O REI.
(DEFOE, [1724] 2008, p. 32-33).

Alguns dos piratas ativos agiram em causa própria, pedindo o Perdão Real, e outros,
aproveitando-se do relaxamento da Marinha em relação às suas ações, passaram a praticar a
pirataria de modo ainda mais acentuado. Outros não só ignoraram a oferta, como também
ISSN: 2525-7501
saquearam e aprisionaram os navios responsáveis por levar os mensageiros aos redutos piratas,
como fizeram William Kidd e Edward Teach, o famoso Capitão Barba Negra (DEFOE, [1724]
2008).

Este tipo de ação só agravou a situação, fazendo com que a Coroa inglesa intensificasse
e acelerasse as medidas de contenção e eliminação da pirataria. A partir do final de 1718, eram
poucas as alternativas de resistência que haviam restado aos piratas. Desde 1700, já havia na
legislação inglesa a possibilidade de impor a pena de morte para casos julgados pelos tribunais
de vice-almirantados ultramarinos. Ao final da segunda década do século XVIII, a Marinha
Real contava com 77 navios de carreira, sendo que até mesmo os de menor capacidade
contavam com cerca de 50 canhões, mesma quantidade que possuía o Queen Anne’s Revenge,
navio do Capitão Barba Negra, uma das mais respeitadas e equipadas embarcações piratas do
período. Devido à eficiência da Marinha britânica, foram enforcados cerca de 400 homens
acusados de pirataria entre os anos de 1716 e 1726 (MAXWELL, 1999). Este número refere-se
somente aos piratas executados, excluindo-se dele os mortos em perseguições e combates,
como foi o caso de Edward Teach. Partes de seu navio, encontradas em 1996, foram recolhidas
e se encontram no Museu Marítimo da Carolina do Norte (EUA), em uma exibição permanente
606
intitulada Blackbeard’s Queen Anne’s Revenge 1718.

Ao longo do século XVIII, devido à supremacia do poderio naval britânico, as


dificuldades impostas aos piratas se intensificaram. Na segunda metade do século, a Guerra dos
Sete Anos

(...) envolveu duas coalizões antagonistas lideradas pela França de Luís XV e pela
Grã-Bretanha de George II na disputa pelo controle comercial e marítimo das colônias
na América e na Índia. Mesmo experimentando a perda das colônias americanas no
decorrer do conflito (1783), a Guerra dos Sete Anos evidenciou a superioridade naval
britânica sobre seus adversários diretos (França e Espanha), resultado de um processo
instaurado no começo do século que tinha a finalidade de aprimorar a formação dos
comandantes, treinar e capacitar a tripulação, além de produzir número de
embarcações suficiente para superar o poder de combate das esquadras inimigas.
(LISBOA, 2012, p. 98).

A supremacia naval inglesa não decorria somente da tecnologia das embarcações ou do


poderio do armamento que levavam consigo, mas também da formação e disciplina de seus
quadros, o que assegurava ampla vantagem nos confrontos marítimos:
ISSN: 2525-7501
(...) todas as embarcações que compunham a linha de batalha deveriam desenvolver a
mesma velocidade, ter a mesma capacidade de manobra e poder de fogo equivalente
ao do inimigo, a fim de evitar que a esquadra fosse superada pela capacidade de
combate dos navios adversários. (LISBOA, 2012, p. 98).

Como vimos anteriormente, a partir de 1730, os piratas caribenhos optaram em geral


pela utilização da clássica bandeira pirata com as tíbias cruzadas logo abaixo de um crânio. É
importante destacar que no início dessa década os capitães piratas que haviam marcado época
e que funcionavam como alicerces para as comunidades formadas em redutos como o de
Tortuga não mais existiam. Homens importantes para a comunidade de piratas, tais como
Edward Teach, Bartholomew Roberts, Henry Avery e John Rackam, haviam sido capturados e
executados, mortos em combate ou simplesmente desaparecido, por medo das punições e
sanções aplicadas à prática da pirataria naqueles tempos. A utilização de uma única bandeira
parece representar, além do símbolo, a opção pela união de todos – pela sobrevivência –
dispensando, assim, suas próprias bandeiras, normalmente associadas aos feitos individuais e
às tentativas de supremacia sobre outros piratas.

A supremacia inglesa no século XVIII não foi totalmente uniforme. Os constantes


607
enfrentamentos com a França, mesmo que vitoriosos, acabaram por esgotar o tesouro britânico,
impossibilitando o pagamento de tropas para fazer a proteção das extensões territoriais
conquistadas. Da opção pela utilização de recursos provenientes de sua principal colônia no
continente americano e da adoção de uma nova política de tributação resultou a Revolução
Americana, com a vitória norte-americana e a Declaração da Independência das treze colônias
inglesas, conquistada paulatinamente e obtida definitivamente em 1783, com o auxílio de
capital francês (PERRY, 2002).

A partir de então, a sorte, que havia se mantido ao lado dos piratas por tanto tempo,
parece tê-los abandonado, e, apesar do enfraquecimento do poderio inglês após a Independência
das 13 colônias, não se esboçou nos anos que se seguiram uma volta expressiva à atividade
anteriormente tão intensa. O poderio naval inglês se mostraria revigorado somente nas
primeiras décadas do século XIX:

Durante as Guerras Napoleônicas (1799-1815), a estratégia adotada pela Marinha


Real para enfrentar a França e seus aliados considerava o bloqueio dos portos hostis
onde as embarcações inimigas encontravam-se fundeadas. O objetivo britânico era
ISSN: 2525-7501
manter um esquadrão, equivalente em tamanho e força ao do oponente, patrulhando
as águas próximas ao porto onde a frota adversária estivesse estacionada, a fim de
impedir que ela recebesse provisões ou escoltasse seus navios mercantes. O bloqueio
britânico forçava a França a manter-se distante de suas colônias nas Índias Ocidentais,
impedindo-a de receber produtos oriundos daquela região ou enviar reforços em caso
de assédio ao império colonial francês por forças britânicas. (LISBOA, 2012, p. 101-
102).

Na página da Marinha Real (Royal Navy)296, encontramos o histórico de importantes


batalhas travadas por comandantes de navios famosos, como o HMS Victory, que foi
comandado pelo Vice-Almirante Horatio Nelson, na Batalha de Trafalgar (1805).

Figura 20: HMS Bounty na Batalha de Trafalgar, uma pintura de Joseph Mallord
608
William "J. M. W." Turner, de 1824

296
www.royal-navy.org
ISSN: 2525-7501

609
Fonte: www.royal-navy.org

Figura 21: Foto de 2006 do HMS Victory na Portsmouth Dockyard, aberto à visitação

Fonte: www.royal-navy.org
ISSN: 2525-7501

O mapa abaixo representa a organização das colônias americanas na metade do século


XVIII.

Figura 22: Mapa da Colonização das Américas no ano de 1750

610

Fonte: Wikimedia Commons

Se ao final do século XVIII a situação já era desfavorável para os piratas, a configuração


mundial do início do XIX contribuiu para o aniquilamento completo das possibilidades de
manutenção da atividade da pirataria. A Revolução Industrial se acentuava de modo vertiginoso
e a necessidade de mão de obra assalariada, em detrimento da escrava, crescia. Os norte-
americanos, por exemplo, em 1808, modificaram sua legislação, proibindo o tráfico de
ISSN: 2525-7501
escravos297. A principal fonte de renda para a pirataria, durante todo o XVIII, havia sido a
captura de navios negreiros e sua venda para os senhores de terras nas colônias americanas. Em
1833, foi abolida definitivamente a escravidão em todo o império inglês e, em 1861, após o
desfecho da Guerra da Secessão, foi a vez dos Estados Unidos decretarem a abolição. (PERRY,
2002).

Com a aceleração da industrialização, passaram a ser produzidos navios feitos de metal


e movidos a vapor; gradativamente, as frotas foram sendo trocadas por estas novas máquinas.
Se enfrentar as fortes armadas de veleiros ingleses durante o século XVIII já havia sido uma
tarefa ingrata para os piratas, a partir do momento da adesão às novas tecnologias resistir à
Marinha inglesa acabou por se tornar impossível. Estava decretado o fim, ou pelo menos a
quase extinção, excetuando-se raros casos isolados, de qualquer atividade de pirataria. A partir
de então, os piratas deixaram o mar e passaram a figurar na imaginação e nas páginas de obras
literárias, contribuindo para a visão romantizada que se construiu e se mantém até hoje sobre
aqueles homens e suas atividades nos mares do Caribe.

611
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Francismar Alex. Fronteiras e Zonas de Contato: Perspectivas Teóricas para o
Estudo dos Grupos Étnicos. Revista Dimensões, Espírito Santo, v. 18, p. 50-70, 2006.

DEFOE, Daniel. Uma História dos Piratas. Seleção e apresentação à edição brasileira: Luciano
Figueiredo. Trad. Roberto Franco Valente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008 [1724]. 262 p.

DEFOE, Daniel. A General History of the Pyrates. Edição: Manuel Schonhorn. Nova York:
Dover Publications, 1999 [1724]. 800 p.

FURTADO, Júnia Ferreira. Guerra, diplomacia e mapas: a Guerra da Sucessão Espanhola, o


Tratado de Utrecht e a América portuguesa na cartografia de D’Anville. Revista Topoi, Rio de
Janeiro, v. 12, 2011. p. 66-83.

JOHNSON, Charles. Uma História Geral dos Roubos e Crimes de Piratas Famosos: A Política
Interna, a Disciplina de Bordo, as Façanhas e Aventuras de 19 Criminosos Célebres da Era

297
Joseph C. Miller nos explica que, ao final do século XVII, holandeses e ingleses já estavam aperfeiçoando suas
organizações comerciais a fim de substituir a utilização dos piratas, na execução do tráfico de escravos na região
do Caribe, por firmas comerciais organizadas. (MILLER, 1997).
ISSN: 2525-7501
de Ouro da Pirataria, (1717 – 1724). Trad. Eduardo San Martin. 2ª ed. Porto Alegre: Artes e
Ofícios, 2004 [1724]. 430 p.

LISBOA, Rodney Alfredo Pinto. Royal Navy: Evolução e Superioridade do Poder Naval
Britânico na Era dos Navios a Vela. Revista Navigator, Rio de Janeiro, n. 16, p. 92-104, 2012.

MAXWELL, Kenneth. Chocolate Piratas e outros Malandros: Ensaios Tropicais. Trad. Irene
Hirsch, Lólio Lorenço de Oliveira et. al. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 467 p.

PAREDES, Rogelio C. Relatos Imperiais: a Literatura de Viagem entre a Política e a Ciência


na Espanha, França e Inglaterra (1680-1780). Trad. Jaime Rodrigues. Almanack; Guarulhos, n.
6, p. 95-109, 2013.

612
ISSN: 2525-7501

MESA 9

A DIGITALIZAÇÃO DA HEMEROTECA DA CASA DE MEMÓRIA EDMUNDO


CARDOSO COMO MEIO DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO *298

Fernanda Kieling Pedrazzi**299

RESUMO

Os jornais são importantes fontes para a pesquisa histórica, porém inevitavelmente são
deteriorados pela ação do tempo, tornando-se o seu papel mais ácido e quebradiço. O manuseio
acaba por prejudicar ainda mais o suporte e, por conseguinte, as informações, muitas vezes
provocando perdas irreparáveis. Pensando na fragilidade desse suporte e na riqueza
informacional que contém a Hemeroteca da Casa de Memória, muito pesquisada por estudantes
de todos os níveis de ensino, a Associação dos Amigos da Casa de Memória Edmundo Cardoso
objetivou realizar a digitalização de dois títulos do acervo da Casa, ambos santa-marienses.
Tratam-se de coleções de “O Combatente” e “O Estado’. O período compreendido pelos jornais
é de 1888 a 1904 para “O Combatente” e de 1898 a 1901 para “O Estado”. Um agravante para
613
a conservação destes materiais é que os mesmos têm grandes dimensões e há variação nas
medidas, o que necessita de equipamento apropriado para a sua digitalização visando o acesso
ao representante digital. “O Combatente” apresenta oito medidas diferentes (o maior tem 40 cm
x 61 cm) e “O Estado”, três (42 cm x 56 cm). O trabalho segue as recomendações de
digitalização do Conselho Nacional de Arquivos e iniciou suas atividades na Casa com o apoio
de uma bolsista acadêmica do Curso de Arquivologia/UFSM em junho de 2016. Há a
participação de professores do Departamento de Documentação/CCSH/UFSM e da equipe da
Casa. Os equipamentos utilizados são parte do Laboratório de Digitalização criado para este
fim e que está sendo equipado neste ano. Já foi concluída a digitalização dos exemplares de O
Estado. Ao todo serão digitalizados 1551 exemplares de jornais da Hemeroteca visando a
preservação do patrimônio. O projeto é financiado pelo Fundo de Incentivo à Extensão da
UFSM e pela Lei de Incentivo à Cultura de Santa Maria.

298
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
299
** Doutora, professora do Departamento de Documentação, Centro de Ciências Sociais e Humanas,
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Projeto financiado pelo Fundo de Incentivo à Extensão (FIEX) e
Lei de Incentivo à Cultura (LIC) da Secretaria de Município da Cultura da Prefeitura Municipal de Santa Maria,
fernanda.pedrazzi@gmail.com.
ISSN: 2525-7501
Palavras-chave: Digitalização. Fonte. Hemeroteca.

INTRODUÇÃO

Os documentos arquivísticos são parte do patrimônio cultural da nossa sociedade.


Instituições de guarda de acervos documentais, como os arquivos municipais e as instituições
privadas, são fundamentais no processo de preservação da história das cidades e de seu povo.
Entre as muitas fontes que encontramos também nos arquivos, centros de documentação e casas
de memória estão os periódicos, o que engloba coleções de revistas e jornais.

De acordo com Luca (2014, p. 111) este tipo de fonte era pouco utilizada na década de
1970, por exemplo, pois “era relativamente pequeno o número de trabalhos que se valia de
jornais e revistas como fonte para o conhecimento”. A autora, no entanto, acredita que este
prestígio baixo estava relacionado à ideia de que haveria uma “hierarquia qualitativa dos
documentos” relativa à qual o historiador e toda sorte de pesquisadores deveria atentar.

Com “o processo de alargamento do campo de preocupação dos historiadores” (LUCA, 614


2014, p. 123) houve uma correspondente ampliação das temáticas, abrindo espaço para o
cotidiano e para as pesquisas sobre as mentalidades. Com isso, de acordo com Luca (2014, p.
113), foi alterada “a própria concepção de documento e sua crítica”. O jornal, desse modo,
passa a ser fonte importante nesse novo contexto analítico.

A Casa de Memória Edmundo Cardoso é, de acordo com Simões (2011, p. 6), “um
espaço de cultura e memória da cidade” e está localizada no centro da cidade de Santa Maria,
que fica no centro geográfico do Rio Grande do Sul. Há algum tempo este local, que abriga
documentos das mais diversas espécies, formatos e tipologias passou a ser referência para a
pesquisa sobre a história de Santa Maria e região. A Casa também é considerada um lugar de
memória por excelência devido ao rico acervo que guarda, não apenas em documentos como
em objetos tridimensionais.

Além de várias coleções documentais com Fundos distintos, conta com uma
hemeroteca, com coleções de jornais do município e do estado, entre eles os extintos jornais “O
Combatente” e “O Estado” que circularam em Santa Maria a partir das últimas décadas do
ISSN: 2525-7501
século XIX, entrando nos anos iniciais do século XX. O período compreendido pelos jornais é
de 1888 a 1904 para “O Combatente” e de 1898 a 1901 para “O Estado’.

Estes jornais são fontes informacionais ímpares sobre o cotidiano de Santa Maria
naquele período em que circularam sendo procurados por pesquisadores que estão envolvidos
em diversas temáticas. Grande parte de seus exemplares que ainda existem na cidade estão
mantidos apenas na Casa de Memória Edmundo Cardoso, sendo uma raridade que necessita
cuidados especiais. Nem mesmo o Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria possui o
conjunto que existe na Casa, sendo, por isso, indicado como local de pesquisa por seus
servidores e direção. Na Casa, estes títulos, em específico, são parte do acervo da hemeroteca
mais pesquisado entre seus usuários.

Este artigo busca relatar o trabalho de digitalização oportunizado pela instalação de um


Laboratório de Digitalização na Casa de Memória Edmundo Cardoso após a aprovação de um
projeto submetido à Lei de Incentivo à Cultura da Prefeitura Municipal de Santa Maria em final
de 2015 e o apoio oferecido pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), através do
Curso de Arquivologia, seu corpo técnico, docente e discente. 615

1. Capítulo I – A digitalização de documentos


De acordo com as Recomendações para Digitalização de Documentos Arquivísticos
Permanentes do Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ), entende-se por representante
digital a “representação em formato de arquivo digital de um documento originalmente não
digital” (CONARQ, 2010, p.4).

Ainda conforme as Recomendações do CONARQ, a digitalização de acervos “é uma


das ferramentas essenciais ao acesso e à difusão dos acervos arquivísticos (...) capaz de dar
acesso simultâneo local ou remoto o seu representante digital” (2010, p.4). No ano de 2011 foi
realizado um trabalho de digitalização no Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria
encabeçado pela UFSM, com envolvimento de alunos de seu Curso de Arquivologia com este
pressuposto. Em dezembro de 2012 o projeto foi premiado com o Mérito Extensionista “Prof.
José Mariano da Rocha Filho” na UFSM na área temática Cultura. À exemplo do sucesso obtido
ISSN: 2525-7501
com o primeiro projeto, entendeu-se a necessidade de dar continuidade a este trabalho de
digitalização de documentos em outros lugares de memória da cidade (NORA, 1993).

Dessa forma, pelo intercâmbio entre universidade e sociedade em instituições privadas,


foi proposto um projeto para a Casa de Memória Edmundo Cardoso pela Associação dos
Amigos da Casa de Memória, criada em abril de 2015, para instalar equipamentos que
comportassem este trabalho de digitalização pensando nas dimensões de jornais. Atualmente
pelo menos três professores do Departamento de Documentação, o principal departamento que
serve o Curso de Arquivologia, fazem parte da mesma sendo de sua Diretoria.

Entendeu-se que o projeto proposto se justificaria por estimular a pesquisa social no


acervo da Casa de Memória Edmundo Cardoso mediante a obtenção do representante digital de
jornais mantidos pela Casa, colaborando para o desenvolvimento cultural através do acesso
facilitado ao acervo digitalizado. A proposta é que o projeto seja plenamente executado até
fevereiro de 2017, contribuindo para a preservação o patrimônio cultural.

616
As imagens são obtidas através de digitalização por equipamento fotográfico, em uma
mesa estativa, comprada com recursos da LIC-SM e tratadas em computador específico para
este fim e armazenagem em dois computadores e uma mídia móvel (HD Externo).

Desde que foi aprovado, todo este trabalho vem sendo realizado dentro da própria Casa
de Memória e teve o apoio de recursos humanos da Universidade Federal de Santa Maria, entre
professores, servidores técnico-administrativos, e acadêmicos financiados por recursos do
Fundo de Incentivo à Extensão (FIEX) além da equipe da Casa de Memória. Com isso espera-
se que a instituição possa viabilizar a criação de ferramentas futuras que dêem aproveitamento
a estes subsídios para a pesquisa social no sentido de compartilhar com o público pesquisador
da Casa. Também serão beneficiados os acadêmicos de cursos de graduação e pós-graduação
das instituições de ensino superior de Santa Maria com a disponibilidade deste rico acervo
informacional sobre a nossa história do cotidiano dos séculos XIX e XX.

2. Capítulo II – A hemeroteca e o recorte


ISSN: 2525-7501
A ideia do projeto apresentado à LIC e ao FIEX foi a de digitalizar e dar acesso ao
acervo de dois títulos de jornais: “O Combatente” e “O Estado”, que encontram-se em suporte
papel e que está deteriorado dado a época de produção (séculos XIX e XX). Na Casa há mais
de 30 títulos, porém estes, juntamente com o Diário do Interior, são as coleções maiores de
acordo com o levantamento feito por Simões (2011, p.22) e que consta em seu Guia do Acervo.

De acordo com Romeu Beltrão (2013), “O Combatente” foi criado em 1887 e teve
vários proprietários, entre eles os irmãos Brinkmann, até deixar de circular, em 1911. Dos 25
anos que existiu, a Casa tem exemplares de 13 anos (incluindo os anos de 1888, 1892 e 1893,
e de 1895 até 1904). Já “O Estado” foi criado em 1898 e durou até 1907. Dos 10 anos que
existiu, a Casa mantém exemplares de quatro deles (de 1898 a 1901).

Este material é bastante pesquisado por aqueles que frequentam a Casa de Memória
Edmundo Cardoso na elaboração de seus trabalhos de graduação e pós-graduação nas
universidades existentes em Santa Maria e do Estado. No entanto, nos últimos anos tem-se
verificado que o desgaste dos jornais tem aumentado, pensando-se, até mesmo, o que fez com
que a Casa de Memória, proprietária do acervo, até pensasse em vetar a pesquisa de modo a 617
preservar o que resta dos mesmos.

Atualmente a consulta aos exemplares de “O Combatente” e “O Estado” preservados


na Casa está sendo permitida com uma atenção especial ao manuseio dado que nos últimos anos
têm crescido a deterioração do suporte físico já que os mesmos têm alguns exemplares tem até
127 anos e estão fragilizados, correndo o risco de se perder.
ISSN: 2525-7501

Foto 1 – O Combatente de 1º de janeiro de 1896

Fonte: Reprodução do acervo da Casa de Memória Edmundo Cardoso

A Casa é mantida com recursos próprios da família do falecido Edmundo Cardoso. Ela 618
funciona na antiga residência da família, que hoje não tem mais moradores, à rua Pinheiro
Machado, nº 2712, Bairro Centro, Santa Maria, RS. São responsáveis pelo acervo a viúva
Therezinha de Jesus Pires Santos (segundo casamento) e a filha de Edmundo, Gilda May
Cardoso. A Casa não cobra pela pesquisa mas recebe contribuições espontâneas o que, no
entanto, não seria o suficiente para implantar um processo de digitalização em seu acervo.

Considerando que os acervos são mantidos pela iniciativa privada para que sejam
pesquisados, mesmo que com a preocupação da sua preservação, a Associação dos Amigos da
Casa de Memória Edmundo Cardoso, criada em 2015, propôs, no segundo semestre de 2015,
um projeto denominado “Criação do Laboratório de Digitalização da Casa Edmundo Cardoso:
acervo dos jornais 'O Combatente' e 'O Estado'”, que fora apresentado no Edital da LIC-SM
(Prefeitura Municipal de Santa Maria/Secretaria da Cultura).

A Associação dos Amigos da Casa de Memória Edmundo Cardoso, entidade fundada


em 24 de abril de 2015 para suplementar a Casa de Memória em suas carências, elaborou o
projeto na área de Acervo do Patrimônio Histórico e o mesmo foi aprovado em sua totalidade,
ISSN: 2525-7501
para que seja executado entre 1º/01/2016 a 31/12/2016. No entanto, tal projeto prevê recursos
para compra de equipamentos, permitindo a montagem do Laboratório, o que não inclui pessoal
acadêmico para o desenvolvimento do mesmo. Para este item foi prevista a apresentação de
projeto para a UFSM, especificamente ao Fundo de Incentivo à Extensão (FIEX) de modo a
envolver alunos da Arquivologia, que pratica digitalização de documentos, e com término em
fevereiro de 2017. Ou seja, mesmo depois de concluído o trabalho de equipar a Casa, o projeto
da digitalização continua.

Dada a histórica boa relação da Universidade Federal de Santa Maria com a sua
comunidade, por meio, especialmente, de projetos de extensão, acredita-se que o envolvimento
de professores e alunos do Curso de Arquivologia seja uma forma de aproximar a Instituição
da comunidade, envolvendo-os em temas e problemáticas reais da sociedade, contribuindo para
a preservação do patrimônio cultura e histórico, para as pesquisas. Desde o junho de 2016 o
Curso de Arquivologia tem uma aluna bolsista FIEX/UFSM digitalizando o acervo dos jornais
“O Combatente” e “O Estado” presentes no acervo da Casa. O nome do projeto de extensão é
"Digitalização da Hemeroteca da Casa de Memória Edmundo Cardoso - Santa Maria -RS".
619

3. Capítulo III – Os resultados obtidos com a digitalização

Por meio da execução do projeto aprovado por sua Associação de Amigos, a Casa de
Memória montou um Laboratório de Digitalização, com equipamentos apropriados para esta
atividade. Pensou-se que embora a Casa dê as condições, equipando-se a partir do projeto da
LIC, é a Universidade, através de seu corpo técnico, discente e docente, que pode amparar as
atividades planejadas como essenciais para desenvolver a digitalização por sua característica
de compartilhamento de conhecimento. Assim, a Instituição de Ensino envolveu-se neste
intento e já foram alcançados os seguintes objetivos do trabalho:

1º) seleção da aluna bolsista de Arquivologia;

2º) fornecimento de subsídios teóricos (literatura) sobre digitalização e treinamento da


acadêmica selecionada para desempenhar a tarefa junto ao Laboratório de Digitalização da Casa
de Memória;
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3º) reconhecer o espaço de memória Casa de Memória Edmundo Cardoso e do próprio
acervo de jornais selecionados para a digitalização, fontes importantes para a história; e,

4º) início das atividades da bolsista com a digitalização da primeira parte do acervo.

A higienização dos exemplares, com vistas à preservação dos originais e antecedendo a


digitalização, está sendo feita à medida que estão sendo trabalhadas as encadernações dos
jornais (uma vez que ambos os jornais “O Combatente” e “O Estado” estão em encadernações,
em vários volumes). Um problema importante que teve de ser considerado para a digitalização
e conservação destes materiais é que os mesmos têm grandes dimensões, havendo variação nas
medidas, o que necessita de equipamento apropriado para a captação da imagem do
representante digital.

O jornal “O Combatente” apresenta oito medidas diferentes (o maior tem 40 cm x 61


cm) e o jornal “O Estado” tem três medidas diversas (o maior possui 42 cm x 56 cm). Como o
trabalho segue as recomendações de digitalização do Conselho Nacional de Arquivos, são

620
digitalizados frente e verso. A digitalização está prevista para ser realizada em um material pré-
determinado correspondente a 1551 exemplares. Os equipamentos foram instalados pela equipe
dos projetos, e posteriormente ao término deste trabalho espera-se que o Laboratório montado
sirva para a execução de outros trabalhos na Casa e em parceria com a UFSM.

Já foi concluída a digitalização dos exemplares do jornal “O Estado”. Ao final deste


trabalho estarão digitalizados todos os 1551 exemplares correspondentes a estes jornais da
hemeroteca da Casa visando à preservação do patrimônio da cidade de Santa Maria.

Finda a fase de digitalização, posteriormente deverá ser feita a indexação desses


representantes digitais em um banco de dados, reunindo informações sobre os objetos
digitalizados e será criado um Manual do usuário para facilitar o acesso aos jornais
digitalizados.

CONCLUSÃO

Reunindo esforços da Casa de Memória, sua associação, Universidade Federal de Santa


Maria, Prefeitura Municipal, LIC e FIEX buscou-se digitalizar para preservar a memória. Com
ISSN: 2525-7501
isso busca-se compartilhar de melhor forma o conhecimento obtido e gerado em preservação,
digitalização e patrimônio, divulgando o mais que for possível em eventos esta iniciativa.

Em paralelo a isso, sendo avisada por um de seus associados efetivos da existência de


exemplares de jornais locais na Biblioteca Nacional (BN), no Rio de Janeiro, a Associação dos
Amigos da Casa de Memória Edmundo Cardoso, interessada em defender e preservar a
memória do município e da região, preparou, por intermédio de seus associados, um documento
dirigido ao Setor de Periódicos da BN, solicitando a digitalização das coleções dos jornais
“Diário do Interior” e do próprio “O Combatente” existentes no acervo daquela Instituição.

As coleções são falhadas, mas se forem digitalizados pela BN, os jornais O Combatente
dos anos de 1889, 1890, 1891, 1894 e 1895 e Diário do Interior de 1924 a 1938 poderão integrar
o acervo da Hemeroteca Digital Brasileira sendo um meio de garantir um acesso ainda maior a
este tipo de informação. A Hemeroteca Digital é um meio fácil de realizar pesquisas sobre a
história do país pois disponibiliza o acervo de periódicos de todo o Brasil em um só lugar, sendo
consultado no link https://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/. Acredita-se que esta ação da
Associação em conjugação com a digitalização do acervo que possui a Casa só vem a contribuir 621
para pesquisadores, complementando uma a coleção da outra. O documento redigido para a
BN foi assinado por representantes de instituições de Santa Maria e região, fortalecendo a
solicitação da Associação, envolvendo a administração municipal, seus entes, instituições de
ensino e entidades locais.

O objetivo de manter os registros é superado pelo objetivo maior de manter a memória,


não importante onde esta esteja guardada, o que traz benefícios para a equipe envolvida na
Universidade, na Casa e, principalmente, para o usuário do acervo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BELTRÃO, R. Cronologia histórica de Santa Maria e do Extinto Município de São


Martinho 1787 1930. 3.ed. Santa Maria, RS: UFSM, 2013 [1958].

LUCA, T. R. de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, C. B. Fontes
históricas. 3 ed. 1 reimpr. São Paulo: Contexto, 2014 [2005].
ISSN: 2525-7501
NORA, P. Entre memória e história. A problemática dos lugares. São Paulo: 1993.

SIMÕES, G. D. Guia do arquivo da Casa de Memória Edmundo Cardoso. Santa Maria,


RS: 2011. Disponível em: <https://casamemoriaedmundo.files. wordpress.com/2011/09/guia-
do-arquivo-da-casa-de-memc3b3ria-edmundo-cardoso1.pdf> Acesso em: 08 out. 2016.

622
ISSN: 2525-7501
MEMORIAL DO COLÉGIO MANOEL RIBAS: PESQUISA E EDUCAÇÃO
PATRIMONIAL*300

Marta Rosa Borin301


Maria Helena N. Romero302

RESUMO

A partir do acervo fotográfico e documental do Memorial do Colégio Estadual Manoel Ribas,


Santa Maria, Rio Grande do Sul, propõe-se uma ação educativa em espaço não formal de
ensino. Este acervo contém informações sobre a história da Escola, dos alunos, dos professores
e de populares, bem como de outros agentes sociais. Através da identificação e da
contextualização das fotografias do acervo busca-se, não somente divulgar o Memorial da
Escola, mas também incentivar os estudantes à pesquisa e a produção do conhecimento
histórico-social. Para a identificação das fotografias usamos o recurso da História oral e a
investigação documental, a fim de cruzar informações. Contamos com a colaboração dos alunos
de uma turma do segundo ano do Ensino Médio do Colégio Manoel Ribas e um aluno do Curso
de História da Universidade Federal de Santa Maria.
623
Palavras-chave: História, Educação Patrimonial, escola.

INTRODUÇÃO

O Memorial do Colégio Manoel Ribas, ou Memorial do Maneco, como é conhecido,


está localizado no andar superior da escola. Idealizado pela professora Ceura Fernandes foi
aberto ao publico em 2000, com o intuito de preservar e divulgar a história do Colégio, pois
acervo é composto de documentos, fotografias, jornais, objetos, mobiliário, entre outros

300
* O tema deste trabalho está relacionado a nossa dissertação de Mestrado em Patrimônio Cultural, Universidade
Federal de Santa Maria.
301
Doutora em História, professora do Departamento de Metodologia do Ensino, Centro de Educação,
Universidade Federal de Santa Maria. Programa de Pós-graduação em História, Programa de Pós- graduação em
Patrimônio Cultural – Mestrado Profissional, Universidade Federal de Santa Maria/Brasil, orientadora,
mrborin@gmail.com
302
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural – Mestrado Profissional, Universidade
Federal de Santa Maria/Brasil. Especialista em História do Brasil pelo Programa de Pós-Graduação de
História/UFSM. Professora de História no Colégio Estadual Manoel Ribas/Santa Maria,
romeromariahelena@gmail.com
ISSN: 2525-7501
artefatos que remetem a história do cotidiano da escola. Para sua inauguração foram
desenvolvidas algumas ações de conservação e proteção de seu acervo, principalmente no que
se refere a higienização. No amplo espaço do Memorial do Maneco foram realizadas mostras e
exposições, palestras e oficinas, ações educativas e patrimoniais, voltadas para atender os
estudantes do Ensino Fundamental, Médio e Superior de diferentes instituições de ensino,
quando contou também como a participação da comunidade santa-mariense.

O Memorial do Maneco é uma unidade ligada ao Colégio Manuel Ribas, instituição


pública de Ensino Médio mantido pelo Estado do Rio Grande do Sul. O Memorial está
cadastrado no Sistema Municipal de Museus de Santa Maria (SMMSM), e atualmente esta em
processo de revitalização. Para tanto, a Direção do Colégio, professora Rosangela Freitas,
designou duas professoras concursadas, uma da área de História, Maria Helena N. Romero, e
outra da área das Letras, Maria Thereza Alves, para assumirem a redinamização desde espaço
de ensino não formal. Uma das iniciativas esteve voltada a desinfecção do acervo e a outra, a
qual pretendemos colaborar, diz respeito a pesquisa de identificação das peças e divulgação do
Memorial na própria Instituição, Colégio Manoel Ribas visando promover amplo
reconhecimento desse patrimônio, o que ele representa à sociedade santa-mariense. Assim,
624
nossa proposta de ação educativa terá como suporte fotografias/imagens que compõem o acervo
do Memorial do Colégio Estadual Manoel Ribas. Através da identificação e da contextualização
das fotografias do acervo buscaremos, não somente divulgar o Memorial da Escola, mas
também incentivar os estudantes à pesquisa e a produção do conhecimento histórico-social.
Para a identificação das fotografias usaremos o recurso da História oral e a investigação
documental, a fim de cruzar informações. A principio, vamos trabalhar com alunos de uma
turma do segundo ano do Ensino Médio do Colégio Manoel Ribas e com um aluno do curso de
História da Universidade Federal de Santa Maria, Mario Avelino.

O Memorial do Maneco cumpre um relevante papel para esta Instituição de Ensino


Médio a qual está vinculado, não apenas do ponto de vista educacional, mas, sobretudo do
ponto de vista social, na medida em que organiza e disponibiliza para a sociedade santa-
mariense os testemunhos de sua história e também a memória da cidade, pois a origem da
Escola está relacionada a um segmento social de importante significado para a história do
Estado: as famílias dos funcionários da Viação Férrea do Rio Grande do Sul.
ISSN: 2525-7501
Capitulo I - O Colégio Estadual Manoel Ribas

O Colégio Estadual Manuel Ribas, enquanto instituição de ensino, cumpre até hoje sua
função socioeducativa, é referencia no setor educacional no Estado e, também, disponibiliza à
comunidade escolar e à sociedade um espaço de preservação da memória da escola e da história
da cidade de Santa Maria. Como uma das mais antigas instituições de ensino da cidade, a Escola
retrata o período de apogeu do transporte ferroviário do Rio Grande do Sul e, por se considerada
uma escola modelo no interior do Estado, recebeu alunos das mais diferentes classes sociais,
sendo que muitos destes se tornaram expoentes na política municipal, estadual e nacional, cujos
registros arquivados no Memorial da Escola podem contribuir para compor estes percursos.

O Colégio Estadual Manoel Ribas, até 1954, denominava-se Escola de Artes e Ofícios
Santa Terezinha – Seção Feminina. Esta foi gestada em 1921 para atender as filhas dos
cooperativados da Viação Férrea do Rio Grande do Sul e funcionava numa casa cedida pela
diretoria da Viação Férrea localizada à Rua Ernesto Beck, nº 2144, na Vila Belga.

625
De imediato foram oferecidas matrícula para 60 alunas. Logo o espaço mostrou-se
pequeno, então os cooperativados buscaram construir um novo prédio, que originalmente seria
para uma padaria, no entanto, foi emprestado para sediar a Escola, inaugurado no dia 1º de
junho de 1923, com 121 alunas matriculadas. Diante da enorme procura por vagas, o espaço já
nascia insuficiente (MELLO, 2010, p. 200; BLAYA, 1998, p.137).

O projeto para as aulas e educação das meninas avançava rapidamente e os espaços


físicos pensados até o momento estavam sendo pequenos para atender satisfatoriamente a
demanda feminina por matrículas.

O crescimento da escola feminina superou todas as expectativas. Isto fez com que a
Cooperativa adquirisse um prédio especialmente para a instalação da escola, sendo
inaugurado no dia 11 de junho de 1924. Ele estava situado junto à Praça Cristovão
Colombo e logo em seguida a Cooperativa terminou comprando os terrenos que
ficavam em torno dele e, assim, tornou-se proprietária de todo o quarteirão (BLAYA,
1998, p. 138).
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Assim, os cooperativados decidiram comprar um terreno próximo à Praça Cristovão
Colombo (atual Praça Eduardo Trevisan), na Rua José do Patrocínio, nº 85, para a construção
do prédio que iria abrigar a Escola feminina, prevendo instalações para externato.

Na área adquirida pela Cooperativa de Consumo dos Empregados da VFRGS já


existiam algumas casas e um chalé, os quais passam a ser ocupados pela Escola, a partir de
junho de 1924. Os novos espaços receberam 182 jovens estudantes (KREBS, 1996, p. 10).

O edifício que começou a ser construído em 1927, contava com amplas salas de aulas,
refeitório, lavanderia, padaria, capela e instalações para o internato. Foi inaugurado no dia 14
de maio de 1930 pelo então diretor da Viação Férrea do Rio Grande do Sul, Fernando Pereira.
Instalada nas novas dependências a Instituição de ensino recebe a denominação de Escola de
Artes e Ofícios “Santa Terezinha do Menino Jesus”. Os cooperativados da Viação Férrea
entregam a parte pedagógica e administrativa da Escola às Irmãs Franciscanas do Colégio Sant’
Ana, mas a Escola ficou sob os cuidados da Cooperativa de Consumo dos Empregados da
Viação Férrea do Rio Grande do Sul até 1942, pois no ano seguinte passou a ser administrada
pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul. 626
No ano de sua inauguração a Escola matriculou 343 alunas, destas cinquenta no regime
de internato, distribuídas entre as séries iniciais até o Curso Complementar, que dava direito a
exercer o magistério. Os cooperativados da Viação Férrea buscaram inspiração no modelo das
escolas francesas para administrar a Escola Santa Terezinha. Assim, além do ensino intelectual,
as moças dispunham do ensino profissionalizante. No curso de Música, por exemplo, elas
podiam escolher entre teoria e solfejo, piano, violino e bandolim. Já no curso de Economia
Doméstica, as opções eram copa e cozinha, pintura, corte e costura e bordado. A oferta destes
Cursos de “Trabalhos Manuais” visava preparar as jovens filhas dos ferroviários para as
atividades do lar, preparando-as para serem boas donas de casa. A escola também oferecia um
curso extracurricular, aberto à comunidade feminina, e neste caso, não era exigida uma
formação anterior: o ensino de corte e costura.

Naquele período vigorava a rigidez no ensino, nas questões pedagógicas, e não se


tolerava a indisciplina. A aluna não podia ultrapassar cinco faltas num mês, não justificadas,
pois automaticamente era desligada da escola. As avaliações eram realizadas por bancas de
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exames compostas por pessoas com boa formação, entre professores e outros profissionais. A
aprovação para o próximo ano dependia de ser ou não aprovada pelos avaliadores da banca,
esse sistema funcionou até 1933.

Cada final de ano letivo eram organizadas exposições com os trabalhos feitos ao longo
do ano. Nesta ocasião a comunidade santa-mariense visitava e apreciava trabalhos como,
pinturas, bordados, confecções, doces, conservas, entre outros. Os melhores recebiam o premio
“Viação Férrea”, que consistia numa medalha de ouro. Durante a mostra os produtos/trabalhos
confeccionados pelas estudantes podiam ser adquiridos pelos visitantes.

Nesta época a Cooperativa dos Empregados da Viação Férrea, consciente da


precariedade da oferta de escolas no interior do Estado, criou muitas turmas de alfabetização
em diferentes localidades do interior do Rio Grande do Sul. No entanto, faltavam professores
para essas turmas. A alternativa encontrada foi à própria Escola de Artes e Ofícios passar a
formar essas professoras. Dessa forma, a Escola Santa Terezinha solicitou e conseguiu junto a
Secretária de Educação do Estado, autorização para incluir no seu currículo a habilitação
“Exercício do Magistério”, componente curricular que permitia que as moças, ao concluírem o 627
Curso Complementar, pudessem se dedicar ao ensino. Deste modo, as estudantes formadas
nesta Instituição de ensino eram contratadas pela Cooperativa para ministrar aulas de
alfabetização nas escolas da Rede Ferroviária.

Em 1940 foi ofertado o Curso de Datilografia, com vistas a preparar as jovens para
trabalhar no comércio local. No âmbito da formação geral, havia matérias como português,
aritmética, geometria, geografia, história do Brasil e ciências (FLÔRES, 2008, p. 335). Esse foi
um tipo de ensino-modelo que estava de acordo com os padrões e concepções da sociedade da
época,

Num contexto social limitado para a mulher é fundada uma Escola profissional que
ampliará os horizontes femininos, oferecendo-lhes uma formação intelectual [...]
Transformar jovens em ótimas donas-de-casa e consequentemente em boas esposas e
mães é aparentemente o maior objetivo da Escola de Artes e ofícios (KREBS, 1996,
p. 16, 20).
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No ano de 1940 a Escola Santa Terezinha teve seu maior número de matrículas,
chegando a registrar 1.223 estudantes (FLÔRES, 2008, p. 337). Esta escola funcionou até o
final de 1942, passando no próximo ano, por razões financeiras, a ser de responsabilidade do
governo do Estado do Rio Grande do Sul.

Em sua curta duração, de 1921 até 1943, na escola Santa Terezinha foram efetuadas
mais de onze mil matriculas, um número muito significativo, considerando que
durante este período tudo foi custeado pela Cooperativa sem a participação do
governo ou de qualquer outro órgão (BLAYA, 1998, p.146).

Assim, a partir de 1943 o Estado gaúcho assume a Escola de Artes e Ofícios Santa
Terezinha e, em dezembro de 1945, pelo decreto nº 933, transforma-a em Escola Artesanal Dr.
Cilon Rosa, a qual fica instalada no prédio da Cooperativa, de 1946 a 1965, sendo que o mesmo
decreto extingue a Escola Santa Terezinha. Devido ao seu amplo espaço físico e por possuir
diversas salas de aulas, entre os anos de 1943 a 1974, a escola abrigou outras instituições
escolares menores, como o Grupo Escolar João Belém (escola mista).
628
Dez anos mais tarde, em 1953, é criado o Colégio Estadual de Santa Maria,
posteriormente denominado Colégio Estadual Manoel Ribas, o qual funcionou até 1954, no
prédio da Escola Normal Olavo Bilac. Segundo Foletto (2008, p. 88),

A partir da mobilização comunitária, juntamente com o poder público municipal, foi


criado o Ginásio Estadual de Santa Maria, que passou a funcionar no mesmo prédio
do Instituto Olavo Bilac, em 1953. Logo no ano seguinte, foi trocado o nome para
Manoel Ribas, e a sede, passou a funcionar no mesmo prédio da Escola Cilon Rosa.
Essa, a partir do ano de 1974, tornou-se a única escola a ocupar o local até hoje,
atendendo alunos de ensino médio. O prédio pertenceu à COOPFER até o ano de
1977, quando foi incorporado pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul por
desapropriação.

O Colégio Estadual Manoel Ribas, conhecido como Maneco, teve sua origem pelo
Decreto nº 4.205, de 10 de outubro de 1953, a partir de uma proposição da vereadora Helena
Ferrari Teixeira ao governo do Estado. Neste mesmo ano as atividades do Colégio, bem como
sua administração, passaram a funcionar no prédio da extinta Escola Santa Terezinha, dividindo
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o espaço com o Grupo Escolar João Belém e o Ginásio Cilon Rosa. Somente em 1974, o
Colégio Estadual Manoel Ribas passa a ocupar sozinho todo o prédio, sob a responsabilidade
do governo do Estado do Rio Grande do Sul. A propriedade possui um terreno de 13.604 m² e
6.130 m² de área construída (BEBER, 1998, p.2, RECHIA, 2006, p.263).

Atualmente a sua área está sendo ampliada em 200 m², com a construção do Ginásio
Poliesportivo, conhecido popularmente como “Manecão”, em fase final de conclusão. A partir
de 1954, o Colégio passou a oferecer os cursos Científico, Clássico e Ginasial em três turnos,
chegando a ter ano letivo com mais de três mil alunos, que também se dedicavam a Banda
Marcial do Colégio Manoel Ribas, criada em 1956.

629

Fachada da Escola de Artes e Ofícios “Santa Terezinha” (Seção feminina), localizada em frente à atual
Praça Eduardo Trevisan. (Fonte: Relatório da Cooperativa de Consumo dos Empregados da VFRGS, 1929, Casa
de Memória Edmundo Cardoso).

Devido a importância arquitetônica e cultural do Colégio Manoel Ribas o mesmo foi


tombado como Patrimônio Histórico Municipal, em 1995, através da Lei Municipal nº 3929/95,
e, em dezembro de 2000, juntamente com o Largo da Gare e Vila Belga, foi tombado como
Patrimônio Histórico e Artístico do Estado, conforme consta na Portaria nº 030/00, SEDAC-
14/11/2000 e no Parecer nº21/00, do processo 000548-1100/99-8. O tombamento do prédio do
Colégio indica o reconhecimento dos estilos arquitetônicos de sua fachada: Art Noveau,
Barroco e Neoclássico. Seus muros, com os balaústres que margeiam o pátio lembram a
arquitetura renascentista europeia, e suas portas internas tem um significado especial porque, à
época, foram talhadas pelos alunos da escola de Artes e Ofícios “Hugo Taylor”.
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A relação do Maneco com a história dos ferroviários de Santa Maria justifica a decisão
pelo seu tombamento, pois o complexo ferroviário de Santa Maria, ou seja, a Gare, a Vila Belga,
a Cooperativa, a Escola Hugo Taylor e o Colégio Manoel Ribas, são referencias de uma
coletividade, reconhecida pelo Estado, que gerou identidade à cidade de Santa Maria. Esta
relação de pertença, de reconhecimento dessa Instituição educacional foi o que impulsionou o
seu tombamento como patrimônio da cidade.

Assim, a manutenção do Memorial do Colégio, como um espaço de preservação da


memória é um imperativo para que esse legado possa ser mais bem explorado e reconhecido a
partir da pesquisa histórica, pois “o patrimônio pode ser um fator de orgulho” (VARINE, 2012,
p.1).

Capitulo II – Recursos para Ação Educativa: acervo fotográfico e documental do


Memorial do Colégio Manoel Ribas

No Memorial do Maneco, espaço museológico onde saber e ensino podem ser 630
articulados, são preservadas diferentes experiências humanas registradas nos seus documentos,
fotografias, jornais, objetos e mobiliário que fazem parte do seu acervo. Nesse sentido, nossa
proposta de ação educativa parte do suporte fotografias/imagens do Colégio Manoel Ribas,
documento de registro histórico que oportuniza ao pesquisador e aos estudantes uma releitura
dos acontecimentos históricos a partir do que está representado nas imagens. Levando em conta
a importância do retrato criamos condições pedagógicas para a pesquisa e produção do
conhecimento histórico, com o objetivo de produzir recursos de mediação destinados a
educadores, a fim de ampliar os canais de diálogo entre o museu, a sala de aula e a comunidade.
O acervo fotográfico do Memorial conserva aproximadamente 4.000 imagens.

Se aquilo que se preserva é concebido como suporte de informação e como alguma


coisa passível de ser utilizada para transmitir (ou ensinar) algo a alguém, pode-se
falar em documento e memória. Nesse caso, pode-se também falar em política de
memória (CHAGAS, 2009, p. 160).
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Considerando a importância do acervo fotográfico do Memorial, a história do Colégio
Manuel Ribas e a importância da ferrovia para o desenvolvimento das cidades, têm-se no acervo
do Memorial suporte de informações alternativas aos textos e livros usados em sala de aula,
pois com a pesquisa nos documentos podemos produzir conhecimento. Essa ação educativa
visa dar subsídios pedagógicos por meio da análise e do estudo das fotografias e exposições
temporárias, contribuindo para o desenvolvimento da autonomia de criação de projetos
pedagógicos voltados para a valorização dos bens patrimoniais. Ao articular saber e ensino,
práticas e vivências, o Memorial do Maneco promove outras experiências ao
estudante/pesquisador, pois, a “função social atribuída ao museu, potencializa-o como um
espaço de comunicação que, por sua vez, dinamiza suas ações educativas, que devem ser
pensadas para envolver os diferentes públicos” (BARBOSA, 2012, p. 109).

Segundo Chagas (2010), na atualidade, os museus são explorados das mais diversas
formas, sendo visto, não apenas como espaços de visitas e construção de conhecimento, mas
como lugar de lazer, divertimento, dialogo e reflexão crítica. Dentro dessa nova ótica é possível
que a velha concepção do museu, como uma extensão apenas da educação formal, seja
superada, e, desconstruído o imaginário social negativo dos jovens em relação ao museu:
631

Diferentes formas e usos do museu são explorados na atualidade apontando relações


entre a sociedade e museu cada vez mais profundas. O homem percebe a
potencialidade de comunicação destes espaços e sua influência como instrumento
social (Chagas e tal., 2010, p.53).

O museu não deve apenas ser um espaço de representação do poder, mas um lugar onde
estudante e comunidade, não apenas interpretem a realidade, mas sintam-se como parte dela,
envolvidos em sua história, um espaço de identificação, pertencimento, lazer, entretenimento e
aprendizado para todos que o procurarem. No entanto, Possamai adverte que o museu também
é “um produtor e veiculador de sentidos na sociedade”, e sua exposição está baseada em uma
seleção, uma escolha, do que deve ou não ser exposto, pois o museu produz e transmite uma
narrativa, “o museu opera a construção de um discurso através da disposição de artefatos e
imagens num determinado espaço físico e no ato de selecionar e/ ou descartar aquilo que deve
ou não deve ser considerado peça de museu” (2000, p. 98).
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Para Chagas (2006), o museu e o patrimônio possui uma linguagem poética que são
como pontes que chegam até as pessoas:

Trabalhar a poética do museu e a poética do patrimônio. Eis um desafio que importa


encarar. Para além de suas possíveis serventias políticas e científicas museu e
patrimônio são dispositivos narrativos, servem para contar histórias, para fazer a
mediação entre diferentes tempos, pessoas e grupos. É nesse sentido que se pode dizer
que eles são pontes, janelas ou portas poéticas que servem para comunicar e,
portanto, para nos humanizar (CHAGAS, 2006, p. 05).

É nos museus que os visitantes, ao se apropriarem dos significados das peças, dos
objetos e dados expostos, terão a consciência de que muito deste acervo têm relação direta com
seu cotidiano, sua vida estudantil, de seus familiares, vizinhos e amigos, ou seja, são as
memórias coletivas, a partir das quais o aluno pode se ver como sujeito e objeto do
conhecimento, pois, “o patrimônio cultural se constitui a partir da atribuição de valores, funções
e significados aos elementos que o compõe” (CHAGAS, 2003, p. 17).

Já a ação educacional, que tem por base a questão patrimonial, é essencialmente política 632
e apresenta-se como um forte instrumento de cidadania e de inclusão social. O trabalho no
museu deve estar pautado nos pressupostos metodológico da Educação Patrimonial, que assim
é definida por Horta (1999, p. 6):

[...] um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no


Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento
individual e coletivo. [...] A Educação Patrimonial é um instrumento de
“alfabetização cultural” que possibilita ao individuo fazer a leitura do mundo que o
rodeia, levando-o à compreensão do universo sociocultural e da trajetória histórico-
temporal em que está inserido.

Com a Educação Patrimonial é possível proporcionar ao estudante um processo


inovador de aprendizagem, priorizando-se um viés pedagógico de aproximação entre o museu
e a sua realidade. O museu atua como ferramenta que articula múltiplas temporalidades em
diferentes cenários socioculturais, podendo tornar as práticas educacionais mais estimulantes e
atrativas, auxiliando na aprendizagem do estudante e, principalmente, a despertar sua
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curiosidade, a gostar de aprender. Somado a isso, na medida em que a comunidade é levada a
refletir sobre a sua própria história, a partir das peças do seu acervo, instiga-se no público a
vontade de ser protagonista e até mesmo de construir suas próprias histórias. A Educação
Patrimonial configurar-se numa importante prática de ensino, pois pode privilegiar enfoques
interdisciplinares, integrando diferentes disciplinas. No entanto, nossa proposta ficará restrita a
disciplina de História:

Alguns tópicos são ideais para a abordagem de temas do currículo básico, que
atravessam várias disciplinas: a educação ambiental, a cidadania (pessoal,
comunitária, nacional, incluindo os aspectos políticos e legais), as questões
econômicas e do desenvolvimento tecnológico/industrial/social (HORTA e tal., 1999,
p. 6).

Na educação formal, nos diversos graus da escola, as noções de respeito e conservação


do patrimônio cultural são fundamentais para despertar no estudante uma consciência de
valorização de seu passado histórico, quando ele percebe que cada objeto conta-nos uma
história, revela-nos o cotidiano das pessoas, suas alegrias, preocupações, como viviam, agiam, 633
pensavam e suas relações. Recuperar essas histórias é fundamental para analisarmos o passado
e compreender o presente. “É necessário fazer a história falar através destes testemunhos
materiais do passado, possibilitando que, como documento histórico, o objeto possa transmitir
o maior número de informações possíveis” (POSSAMAI, 2000, p.98).

Assim, fica evidenciado o importante papel educativo e formativo dos espaços de


memória:

Tornou-se relevante a questão do aprendizado em museus, a chamada educação


patrimonial, a ser introduzida no currículo das escolas. A educação patrimonial, ou
seja, o processo permanente e sistemático de educação, tomando o patrimônio
cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo,
vem merecendo a atenção de trabalhos desenvolvidos nas áreas de artes,
comunicação, ciências naturais e história (Oliveira, 2008, p. 147).

A noção de “Educação Patrimonial” vem sendo discutida e recebendo lugar de destaque


desde os anos de 1970. A nova discussão, “permitiu, então, a experimentação de uma nova
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ótica que deixou de privilegiar o objeto em si, passando a tentar compreendê-lo como suporte
de memória e mediador das relações sociais” (BETT, 2015, p.145).

Atualmente, o tema referente à educação patrimonial e a preservação do patrimônio


histórico e cultural nas escolas está cada vez mais presente no debate e nas ações de instituições
públicas e privadas:

A educação patrimonial integra atualmente os planejamentos escolares, e


especialmente os professores de História têm sido convocados e sensibilizados para
essa tarefa que envolve o desenvolvimento de atividades lúdicas e de ampliação do
conhecimento sobre o passado e sobre as relações que a sociedade estabelece com
ele: como é preservado, o que é preservado e por quem é preservado
(BITTENCOURT, 2011, p.277).

Esta nova postura de escolas e professores tem contribuído para a (re) descoberta da
história institucional, fortalecendo os vínculos e a identidade da sociedade com suas
instituições. Antes de querer elucidar conceitos, o ensino patrimonial tem como objetivo
principal conscientizar sobre a importância que o patrimônio cultural possui para as novas 634
gerações, principalmente no que se refere à formação de uma memória social regional e
nacional sem exclusões e descriminações.

Conforme Chagas (2010, p.53) os museus hoje são vistos “como um espaço onde novas
descobertas, e reflexões podem acontecer, estimulando inclusive a criatividade e ampliando as
visões de mundo”.

O esforço de redefinição do papel do museu no campo educativo tem colocado o debate


acerca das especificidades do museu histórico e suas possibilidades de contribuição para a
compreensão da história a partir do contato com objetos da cultura material. Dessa forma, os
elementos do museu passam a ser vistos como documentos históricos, vetores de relações
sociais, capazes de contribuir para a compreensão da realidade social e conferindo a eles um
potencial didático. Essa visão tem estimulado a reflexão sobre o papel dos bens culturais,
coleções, documentos e objetos, na preservação da memória de uma sociedade.

A Educação Patrimonial, a pesquisa e a produção do conhecimento, estão entre os


objetivos de um museu, pois, o “processo de investigação amplia as possibilidades de
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comunicação de um bem cultural e dá sentido à preservação” (CHAGAS, 2003, p.25). E, por
ser o conhecimento e a pesquisa parte natural do universo escolar, é fundamental que também
se constitua nas “atividades basilares do museu” (POSSAMAI, 2002, p. 7).

Ciente da função social e educativa do museu para com a sociedade na qual está
inserido, bem como dos diversos fatores que contribuem para o êxito das ações educativas no
espaço museal, propusemos ações pedagógicas tendo fotografias/imagens como suporte
educativo.

Atualmente, mais do que em qualquer outra época, a imagem tem grande relevância
para as pessoas, e elas até mesmo integram o cotidiano da sociedade. E, ao se tratar de pessoas
que não tiveram acesso à cultura letrada, o uso das imagens pode ser uma alternativa para a
transmissão da mensagem planejada:

Com a fotografia, abre-se uma janela para o mundo. Os rostos das personagens
políticas, os acontecimentos que tem lugar no próprio país ou fora de fronteiras
tornam-se familiares. Com o alargamento do olhar o mundo encolhe-se. A palavra
escrita é abstrata, mas a imagem é o reflexo concreto do mundo no qual cada um vive 635
(FREUND, s/d, p. 107).

A utilização de imagens/fotografias possibilita a representação do que é textual, bem


como uma análise mais detalhada e minuciosa, que algumas vezes pode fugir a percepção de
alguns. “A lente da máquina, ao capturar e fixar imagens tem outro olhar, um enfoque que nos
coloca na terceira margem do rio: revela coisas que até já foram vistas, mas que escapam do
olho em sua dinâmica” (RAMOS, 2004, p. 42).

Conforme Bastos (2014, p. 136, 137) a fotografia também está associada à noção de
“documento”, ela “serve para testemunhar uma realidade e, posteriormente, para recordar a
existência dessa mesma realidade”, e na palavra “documento” “está ainda implícita a ideia de
exclusividade: o seu valor é maior quando ela é única”. Conforme a autora, o uso da
fotografia/imagens foi de extrema importância na propagação da informação,

Até ao século XIX, a informação circulava, principalmente, através da escrita. O


desenho, mais ou menos fiel à realidade, é, frequentemente, fantasista. A pintura é,
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quase sempre, feita por encomenda pelos estabelecidos e, por isso, a sua objetividade
é escassa. A chegada da fotografia vai arrasar todos os modos de registro conhecidos
e utilizados até a data, uma vez que a fotografia é imediatamente considerada objetiva
e autêntica (BASTOS, 2014, p. 137).

Para Mauad (2014, p. 136), a fotografia como documento, no Brasil do século XIX,
“associou-se às práticas de registro social, servindo para documentar as condições de vida de
diferentes setores sociais, os deslocamentos humanos, conflitos e situações-limite”.

De acordo com a socióloga alemã Gisele Freund, o processo de evolução da imagem


fotográfica teve seu inicio na França do século XIX, época do capitalismo moderno, das
maquinas e da ascensão de novas camadas sociais. Ter um retrato feito nessa época era
considerado um “ato simbólico mediante o qual indivíduos da classe ascendente manifestavam
sua ascensão social” (FREUND, s/d, p. 13). Para a autora “a fotografia correspondia às
necessidades do seu tempo”, ou seja, sua trajetória acompanha as mudanças que estão
ocorrendo na sociedade. São tempos de sociedade mais diversificada, com maior consumo e
mais exigente, onde a fotografia vai ter maior alcance, maior produção e com menor custo. Até
mesmo as classes mais populares querem se ver na foto, pois encontram na imagem fotográfica,
636
“um novo meio de auto-representação” (FREUND, s/d, p. 40).

A pesquisadora acredita que a introdução da fotografia na imprensa foi um fenômeno


fundamental para aproximar os populares dos acontecimentos do mundo, do cotidiano das
pessoas, porém, ela lembra o risco de que a fotografia ser manipulada por interesses de grupos
particulares:

A fotografia inaugura os mass media visuais quando o retrato individual é substituído


pelo retrato coletivo. Ela torna-se ao mesmo tempo num poderoso meio de
propaganda e de manipulação. O mundo em imagem é conformado segundo os
interesses daqueles que são proprietários da imprensa: a indústria, a finança, os
governos (FREUND, s/d, p. 107).

Nesse sentido, segundo a autora acima citada, a fotografia nada tem de inocente, elas
são recortes temporais configurados ideologicamente. Como por exemplo, as imagens feitas da
guerra da Criméia encomendadas pelo governo britânico (1855) a Roger Fenton, onde a guerra
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fotografada não aparecia carregada de horrores, “estas imagens dão uma ideia muito falsa da
guerra, pois apenas representa soldados bem instalados por detrás da linha de fogo”. As imagens
não mostram sangue, soldados mutilados e nem corpos espalhados pelo chão, elas foram
produzidas para veicular informação positiva do poder constituído. O fotógrafo foi contratado
na condição de que “ele jamais fotografasse os horrores da guerra, para não assustar as famílias
dos soldados” (FREUND, s/d, p. 108).

Assim, a fotografia ao mesmo tempo em que informa, opera um poderoso campo de


manipulação. O individuo vê-se confrontado por um universo visual dirigido por aqueles que
conduzem os olhares e mantém o mundo das imagens: o poder político e econômico, “a
objetividade da imagem é apenas uma ilusão, e as legendas que a comentam podem alterar
totalmente a sua significação” (FREUND, s/d, p. 154).

Dessa forma, a fotografia possui imenso poder de transformação tornando uma pessoa
“simpática, antipática ou ridícula segundo o ângulo de vista pelo qual se apreende [...]. A
utilização da imagem fotográfica torna-se um problema ético a partir do momento em que
podemos deliberadamente servir-nos dela para falsificar os factos” (FREUND, s/d, p.159). 637
Diante disso, sabe-se que os fatos selecionados/recortes representam momentos, formas
e lugares escolhidos, e diante da importância e significado dessas “heranças” deixadas para a
posteridade (para os estudantes, professores, funcionários e a comunidade santa-mariense), a
fotografia/imagem deverá ser contextualizada e tratada com criticidade.

Segundo Bastos (2014, p.142) a fotografia é “concebida como um meio privilegiado de


controle e de expressão”, ela tem o poder de mostrar:

A relação simbólica entre as pessoas; os objetos e os lugares; a distância entre o


social e o político; e os conflitos e relações de força no interior de uma sociedade. A
partir dela, conseguimos localizar uma época, espacial e temporalmente, assim como
compreender e analisar a sociedade retratada – função de extrema utilidade histórica
(BASTOS, 2014, p.142).

É importante considerar também, que as imagens/fotografias nos remetem a história e


realidade local e regional, conhecendo e valorizando aspectos geográficos, espaciais, sociais,
ISSN: 2525-7501
econômicos e culturais onde vivem e convivem os que nelas estão retratados. Elas também
trazem subsídios para se trabalhar a história local/regional, à medida que podemos estabelecer
relações com o contexto histórico. As fotografias ao materializarem a história local torna a
história mais real para os alunos e pode contribuir para que os estudantes sintam-se sujeitos
responsáveis pela construção da sua história, valorizem a história de sua família e de seus
amigos.

CONCLUSÃO

A proposta de trabalho com as fotografias sobre o Colégio Manoel Ribas atende,


essencialmente, a dois objetivos: por um lado, a divulgação da história do Colégio, mostrando
aspectos da Instituição no passado e, por outro, o uso das imagens como fonte para o exercício
da Educação Patrimonial.

A pesquisa a partir do acervo fotográfico e documental serão ser executados ao longo


dos próximos dois anos no Memorial, visando complementar os currículos e trabalhos da escola
e, ao mesmo tempo, oferecer alternativas de Educação Patrimonial para a comunidade não
escolar. Assim, o museu torna-se um espaço de ensino não formal, onde a sociedade participa 638
e vivencia experiências, tem oportunidade de rever sua vida sócial escolar, e, perceber os
significados da preservação dos bens patrimoniais para a cidade e para os participantes do
projeto.

Neste contexto, as fotografias evidenciam acontecimentos ainda não revelados pela


história escrita sobre a escola, sobre a cultural local e regional, evidenciam aspectos
geográficos, espaciais, sociais, econômicos e culturais onde vivem e convivem os estudantes.

Tendo em mente, que o museu é um espaço, não apenas de transmissão, mas também
de produção de conhecimentos, este projeto visa um público amplo, o que implica uma
multiplicidade de linguagens, inserido numa vertente da Educação Patrimonial que reconhece
a pluralidade sociocultural e histórica, características indispensáveis em qualquer trabalho
formativo, científico e cultural. O Memorial do Maneco, lugar de memória do Colégio e da
cidade de Santa Maria, requer um trabalho sistemático e mediado pelo professor, pois seu
acervo documental fortalece o reconhecimento da cidade de Santa Maria identificada pela
ISSN: 2525-7501
formação de lideranças políticas que estudaram no Colégio, bem como com a memória
ferroviária.

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641
ISSN: 2525-7501
A CONSTITUIÇÃO DO ACERVO FERROVIÁRIO GAÚCHO NA DÉCADA DE
1980*303

Cinara Isolde Koch Lewinski**304

RESUMO

Esta comunicação tem por objetivo analisar o discurso produzido a partir da organização
do acervo no Centro de Preservação do Patrimônio Histórico Ferroviário no Rio Grande do Sul
na década de 1980. O tema surgiu da necessidade de se desenvolver um estudo sobre o
patrimônio cultural ligado ao Museu do Trem, a partir das carências constatadas através do
exame da documentação pertinente ao assunto. Por isso, o Museu do Trem, antiga Estação
Ferroviária de São Leopoldo, será o objeto de pesquisa porque foi escolhido para abrigar o
Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do Sul pelo Programa. Durante a
década de 1980, a antiga estação ferroviária e o armazém de São Leopoldo foram restaurados.
O primeiro prédio abrigou a exposição de longa duração e o segundo foi transformado em
reserva técnica, onde se preservou uma parte do acervo documental, audiovisual e
tridimensional da VFRGS/RFFSA. A partir desse acervo, começou a se problematizar através
da História Cultural a respeito da constituição do Centro de Preservação da História Ferroviária
do Rio Grande do Sul. Assim sendo, está se analisando as documentações dessa instituição
642
museológica, pois se acredita que são fontes profícuas para a reflexão das ideologias,
representações e significados que permeiam a sociedade. Portanto, o Museu do Trem-SL é uma
instituição que se constitui como lugar legítimo de representação, onde as relações entre os
objetos e formas simbólicas conferem significado.

Palavras-chave: Preserve. Patrimônio. Acervo ferroviário.

INTRODUÇÃO

303
* Trabalho apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
304
**Mestranda em História pela Unisinos/Brasil, bolsista/taxa da Capes/Prosup, cinarakoch@gmail.com.
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No Rio Grande do Sul, o Museu do Trem abrigou o sexto Centro de Preservação da
História Ferroviária no Brasil305. Durante a década de 1980, a antiga estação ferroviária e o
armazém de São Leopoldo foram restaurados pelo Preserve306. No primeiro prédio foi colocada
a exposição de longa duração e o segundo foi transformado em reserva técnica, onde se
preservou uma parte do acervo documental307, audiovisual308 e tridimensional309 da Viação
Férrea do Rio Grande do Sul310 /Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima311. O Museu do
Trem312 foi reinaugurado no dia 10 de março de 1985, como Centro de Preservação da História
Ferroviária do Rio Grande do Sul.

Então, como Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do Sul, o


Museu do Trem ampliou o seu acervo. Foram selecionados bens não operacionais da RFFSA
para a exposição ao público e para a composição da reserva técnica nos espaços organizados
pelo Preserve, estabelecida com base nas técnicas e narrativas empregadas no campo da

305
Consta no almanaque da RFFSA que o Preserve/Preserfe instituiu 12 centros de preservação da história 643
ferroviária em todo o Brasil, de 1981 a 1992.
306
Como consta no manual de edificações do governo federal, o Preserve atuou como Programa ministerial até
1986. A partir daí, foi criado um setor, o Preserfe que atuou na preservação do patrimônio ferroviário seguindo as
mesmas diretrizes do programa anterior, através da RFFSA.
307
Conforme Julio Aróstegui (2006), a documentação escrita corresponde a dois grandes campos: a documentação
de arquivo; a documentação bibliográfica e hemerográfica.
308
São fitas de vídeo, slides de retroprojetor, negativos de vidro e fotografias impressas.
309
Esse acervo é composto por objetos em metal, madeira, vidro, porcelana, têxteis, etc...
310
A estrada de ferro gaúcha era administrada por estrangeiros até o dia 29/03/1920 quando o Estado a encampou,
criando a VFRGS (Catálogo do Centro de Preservação da História da Ferrovia no Rio Grande do Sul, p.78- Acervo
do Museu do Trem-SL).
311
A VFRGS foi revertida à União e no dia 30 de setembro de 1957 criou-se a RFFSA. (Catálogo do Centro de
Preservação da História da Ferrovia no Rio Grande do Sul, p.101- Acervo do Museu do Trem-SL).
312
No dia 26 de novembro de 1976, foi inaugurado o Museu do Trem, sendo estabelecido num convênio entre a
R.F.F.S.A. (Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima) e o Museu Histórico Visconde de São Leopoldo. O
Museu ficou instalado na Estação ferroviária de São Leopoldo, que ainda estava em funcionamento. O prédio
tornou-se unicamente sede do Museu em 1980, quando a estação ferroviária foi desativada. Dois anos mais tarde,
a R.F.F.S.A. inicia um longo processo de restauro a fim de recuperar o Museu, já bastante alterado, visando
devolvê-lo a seus moldes originais.
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Museologia coordenada por Maria Elisa Carrazzoni313 com o intuito de divulgar a história
ferroviária. A organização da documentação museológica da instituição seguiu o modelo
adotado pelo Centro de Preservação da História Ferroviária de São João Del Rey, o primeiro
organizado por Carrazzoni como coordenadora do Programa. O acervo constituído era oriundo
de vários municípios do Estado, no entanto, na documentação do Museu do Trem-SL não consta
essa informação. Presume-se que a falta de identificação da origem da maior parte das peças
tenha ocorrido devido à ideia de representação de unidade que se pretendia transmitir no
discurso produzido com a constituição do Centro de Preservação da História Ferroviária no RS.
Além dessa representação, essas narrativas instituíram outros significados que através deste
trabalho serão debatidos. Diante desse assunto, Foucault por meio de vários estudos sobre as
instituições, chama a atenção para importância das pesquisas que relacionam o discurso como
meio de entender as transformações, principalmente na análise de instituições (O’BRIEN, 1992,
p. 59). Chartier também abordou a necessidade de analisar os discursos, dos quais alerta para a
observação imprescindível do relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem
os utiliza (Chartier, 1990, p.17). Sendo assim, partindo principalmente das ideias de Chartier
sobre representação, este artigo desenvolveu um estudo sobre a constituição do acervo no 644
Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do Sul e os sentidos que o discurso
do programa federal ( Preserve) promoveu através da primeira exposição da instituição, em
1985.

1. Capítulo I – A constituição do acervo ferroviário pelo Preserve no RS

Para analisar o discurso da primeira exposição do Preserve no Centro de Preservação da


História Ferroviária no RS (1985) foi necessário perceber de que forma essa narrativa foi
exposta. José Reginaldo Santos Gonçalves (2009), no ensaio “Os museus e a cidade”
314
desenvolveu esse assunto caracterizando os seguintes modelos de museus, o “museu

313
Em 1979, convocada pelo Ministério dos Transportes para organizar o trabalho de preservação do patrimônio
histórico daquela pasta, sugeriu a criação do Programa de Preservação do Patrimônio Histórico do Ministério dos
Transportes, Preserve (CARRAZZONI, 2001, p.186).
314
A intenção do autor não era classificar essas instituições, mas de refletir sobre a forma como os museus
apresentam a sua exposição.
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narrativa” e o “museu informação”. Partindo da diferenciação dos modelos do autor referido, a
primeira exposição do Centro de Preservação da História Ferroviária do RS se aproximou mais
como “museu informação”, pois de acordo com a documentação administrativa da instituição,
as principais funções da instituição eram de pesquisa, comunicação e divulgação com o escopo
de construir uma cultura ferroviária e de difundir a trajetória da ferrovia gaúcha. Para alcançar
tais objetivos, se buscou representar uma história ferroviária única e homogeneizante e por ela
tentou-se fazer entender de que estava incluindo “as memórias de grupos hierarquicamente
inferiores e a memória de indivíduos” (GONÇALVES, 2009, p.180). Isso se deve as
reivindicações de maior participação e de representação cultural de grupos que outrora não
eram contemplados. De acordo com o mesmo autor:

“[...] no discurso museológico desde os anos 1970 parecem indicar uma forte
tendência no sentido de valorizar a dimensão abstrata dos objetos, sua capacidade
de representar valores e ideias de diferentes grupos e categorias sociais”
(GONÇALVES, 2009, p.183-184).

Nesse sentido, o acervo ferroviário cumpria bem o seu papel porque tanto os ferroviários

645
como as comunidades por onde passava o trem reconheciam algumas das peças expostas como
parte do cotidiano que já não existia mais. Então, os objetos nesse modelo referido “costumam
ser considerados por sua capacidade de representar ideias e valores sociais” (GONÇALVES,
2009, p.184) atingindo a todo o público. Porém, o acervo servia de atrativo e suporte material
juntamente com os textos em painéis e álbuns fotográficos para construir uma cultura
ferroviária e história da ferrovia em consonância com os projetos do programa federal. Portanto,
levando em consideração as marcas de quem a concebeu, o caráter de historicidade da
exposição, dos sentidos intencionados pelos autores e das narrativas destacadas pela
museografia315 se pode perceber que não havia nenhuma neutralidade no trabalho desenvolvido
pelo Preserve, conforme veremos no próximo capítulo.

315
Segundo Cícero Antonio Fonseca de Almeida, é a área voltada ao aperfeiçoamento do processo de
comunicação nos museus, viabilizando a fruição dos bens culturais sob o ponto de vista de educação permanente
(ARNAUT; ALMEIDA, 1997).
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Capítulo II - O discurso produzido na primeira exposição Centro de Preservação da
História Ferroviária do Rio Grande do Sul

Primeira exposição do Preserve no Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do Sul, em
1985. (Acervo do Museu do Trem-SL).
646
A partir da perspectiva de que “os museus lidam com memórias coletivas, ou seja, com
representações consolidadas coletivamente.” (SANTOS; CHAGAS, 2007, p.12) ou em
processo de consolidação, como no caso apresentado, se percebe o poder do museu como
espaço que propicia o conhecimento e por outro tem sua capacidade de legitimar discursos
através do seu principal meio de comunicação com o público, a exposição. O discurso
museográfico não tem a possibilidade de ser uma narrativa neutra, pois sempre carrega consigo
os rastros de uma autoridade e/ou autoria. Conforme Santos e Chagas, “as politicas públicas
que se relacionam aos museus não se separam das táticas e estratégias políticas de
desenvolvimento” (SANTOS; CHAGAS, 2007, p. 15). Portanto, deve-se pensar que o Centro
de Preservação da História Ferroviária do RS estava incluído dentro de um programa difundido
nacionalmente. Dessa forma, o discurso produzido pela museografia da instituição seguia os
mesmos padrões dos outros centros e núcleos, onde se cultivava a valorização de objetos e de
personagens, com a finalidade de buscar elementos que os distinguissem no conjunto
ferroviário e no campo do patrimônio. Sendo assim, cumpriam o objetivo de difundir a história
ISSN: 2525-7501
dos transportes, mas também adquiriram a função de edificar uma cultura da preservação
ferroviária, elegendo referenciais significativos de acordo com a memória oficializada, através
de um complicado trabalho de seleção de objetos, monumentos e edificações, pois [...] sabe-se
que o recurso à fetichização de objetos auxilia na edificação de tradições e memórias, o que era
amplamente propagado pelos programas, com respaldo da Secretaria Executiva e da museóloga
Maria Elisa Carrazzoni. (MATOS, 2015, p.119). Assim, todos esses elementos remetiam a
memória pela apropriação do território, ou seja, os vestígios escolhidos recordavam a ocupação
do território, a evolução das cidades, o desenvolvimento tecnológico e da história nacional.

No entanto, é necessário indicar que o patrimônio ferroviário gaúcho passou a pertencer


à RFFSA, em 1957. Da mesma forma, como outras empresas ferroviárias já existentes no
Brasil, a VFRGS também passou pelo processo de estatização e consequentemente houve uma
apropriação patrimonial e em certo sentido também simbólica pelo governo federal. No entanto,
continuaram muito presentes as reminiscências originais de ferrovias regionalizadas, cuja
história e memória são compreensíveis somente do ponto de vista local (FURTADO, 2015).

Ainda hoje, em nosso Estado, estão muito presentes as memórias coletivas sobre a 647
Viação Férrea do Rio Grande do Sul. Possivelmente, as memórias afetivas deles se remetam
mais aos tempos da VFRGS pelo vínculo direto da empresa com a sociedade, pois além de
terem oferecido o serviço de transporte de cargas também embarcavam passageiros nesses
trens, o que deixou de ocorrer gradativamente com a encampação da RFFSA. Porém, no
discurso construído pelo Preserve se manteve a “focalização cultural e homogeneização parcial
das representações do passado, processo que permite supor uma partilha da memória em
proporções mais ou menos grandes” (CANDAU, 2011, p.102). Assim, a história oficializada
pelo programa federal negligencia de alguma forma as memórias coletivas de ferroviários e
principalmente de passageiros que não foram contempladas na sua narrativa. Então, através de
depoimentos é possível conhecer o cotidiano das comunidades onde o trem percorreu e dessa
forma, ir além da história oficializada pelo Estado brasileiro. Conforme, Thompson:

A realidade é complexa e multifacetada; e um mérito principal da história oral é que,


em muito maior amplitude do que a maioria das fontes permite que se recrie a
multiplicidade original de pontos de vista (THOMPSON, 1978, p. 25).
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Nesse sentido, buscou-se acolher os depoimentos de pessoas316 que atuaram diretamente
na constituição do Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do Sul, como
de Hélio Bueno da Silveira que em uma de suas entrevistas fez alusão à importância das
estações em seu depoimento:

[...] a ferrovia [...] chamava atenção do ferroviário era a de que eles davam
assistência a família e aí se tornavam um grupo porque as grandes cidades do nosso
Rio Grande do Sul foi formado através da ferrovia: Santa Maria, Cruz Alta, Rio
Grande, Passo Fundo [...], Ijuí, Santo Ângelo são as cidades que são assim...
marcantes, como era aqui Canela, entendeu. Então, foram [...] cidades que foram
agrupando pessoal em roda da estação e aí foi espalhando o resto 317.

Ou então, de João Antônio Winckler que descreveu a abrangência que os trilhos da


ferrovia atingiam:

(Estação)318 Rio dos Sinos era entroncamento, né, o que iria para Taquara, Gramado,
Canela ia pra Montenegro, também Bento, Caxias, né. E também de Montenegro até
[...] ligação com Barreto que ia para Santa Maria, interior do Estado, e até fora do
Estado. Aqui até a década de 30 todo o tráfego que saía do RS ou vinha passava por
São Leopoldo 319.

Assim sendo, a importância que a ferrovia tomava no cenário econômico local também
648
entrava no imaginário coletivo daquelas sociedades, pois por meio dela muitas cidades se
desenvolveram. O depoimento acima demonstrou o valor que a ferrovia possuía por permitir o
acesso a todas as regiões do Estado por esse modal e conforme a citação da entrevista de Silveira
apresentada anteriormente, ela ainda desencadeou o surgimento e ampliação de várias cidades
gaúchas, sobretudo as do interior. Segundo Furtado, a segunda onda colonizadora de ocupação
do território brasileiro sob o lema do progresso foi impulsionada pelas estradas de ferro,
trazendo consigo elementos originais da modernidade industrial (FURTADO, 2015). Esse
discurso construído ficou materializado no Centro de Preservação da História Ferroviária do
Rio Grande do Sul, do qual se tem registro através de fotos da exposição e do catálogo da

316
Todos os depoimentos escritos neste texto foram transcritos exatamente como foram falados. Os trechos
apresentados são partes das entrevistas que foram feitas nos anos de 2015 e 2016.
317
Entrevista com Hélio Bueno da Silveira, ferroviário aposentado, realizada em 15/12/2015.
318
A palavra entre parênteses não foi dita pelo entrevistado, mas escrita por mim para situar melhor o leitor.
319
Entrevista feita com João Antônio Winckler em São Leopoldo no dia 12/05/2016.
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instituição. No catálogo produzido em 1985, pelo Preserve ficou evidente que o trabalho de
proteção ao acervo ferroviário dava ênfase ao legado histórico, econômico e social deixados
pelas estradas de ferro do Rio Grande do Sul (PRESERVE, 1985).

Portanto, a VFRGS, uma das várias ferrovias revertidas à União, não teve a sua memória
apagada. Ao contrário, tornou-se mais evidente com a crise e a privatização da ferrovia
nacional. Talvez seja por isso, que a primeira exposição da instituição teve a maior parte do
acervo exposto anteriores a 1957. Com isso, a construção da história da ferrovia local dos
tempos mais antigos tomou como história única e oficial a versão divulgada pelo Preserve que
destacou questões pontuais da ferrovia gaúcha, como as ideias de “neutralizar a influência do
Porto de Montevidéu e as razões de ordem militar” (PRESERVE, 1985, p.34) que influenciaram
na maneira de ocupar os espaços, ligando a Capital do Estado às suas fronteiras. Reforçando a
mesma ideia, Marioni Auler revelou em seu depoimento que a ferrovia era uma questão de
estratégia para o governo militar:

A ferrovia durante o governo militar era considerado uma questão de estrategia do


país. Então era muito... para o regime militar ela era muito considerada. Então nesse
período do regime militar a gente pode dizer assim que nunca faltou recursos
649
financeiros para a ferrovia, exatamente por causa disso que eu expliquei literalmente.
Eles tinham como uma questão de estratégia pro país 320·.

Desse modo, o Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do Sul


também salvaguarda objetos, documentos e fotografias que reportavam a importância da
ferrovia no transporte de militares e de armamentos em fatos belicosos, como a revolução
constitucionalista e a revolução de 1930, demonstrando a preocupação que o Estado brasileiro
tinha com a ocupação e a manutenção do território.

Sendo assim, a partir da documentação da instituição e com os depoimentos de várias


pessoas que ajudaram na implementação do Centro de Preservação da História Ferroviária do
Rio Grande do Sul se fez necessário ler por detrás da narrativa da 1ª exposição do Centro de
Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do Sul, considerada como a história oficial
da estrada de ferro gaúcha que apesar disso, oculta seu caráter arbitrário e de combinação com
a manutenção com os sistemas de poder, pois de maneira geral apresentou os tempos áureos da

320
Entrevista de Marioni Auler, jornalista da comunicação social da extinta RFFSA, concedida no dia 03/03/2016.
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ferrovia expondo o seu legado econômico, social e histórico. Porém, o patrimônio ferroviário
ao mesmo tempo em que demonstrava que a estrada de ferro havia cumprido a sua função de
dominar os espaços, ser socialmente apropriada e tornada parte da cotidianidade também
evidenciou de maneira implícita a decadência dos Estados Nacionais e dos sistemas industriais
exauridos, o arruinamento das suas fronteiras e os modos de vida singulares das localidades
diante da globalização, homogeneização e massificação da cultura. Enfim, esse testemunho
material ressignificado como patrimônio serviu para dar evidência ao novo ou renovado e para
se construir uma história ferroviária única, sobretudo quando diz respeito à sua atividade
econômica de transporte, onde se sobressaíram os trens, os trilhos, as oficinas e as estações
(FURTADO, 2015). No entanto, os bens não operacionais da estrada de ferro brasileira se
encontram pulverizados por todo o território nacional e da mesma maneira existem várias
interpretações sobre a sua história espalhadas por nosso país que a história oficializada pelo
Preserve não contemplou.

CONCLUSÃO

Este artigo procurou fazer uma análise do discurso implementado no Centro de 650
Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do Sul pelo Preserve, através da
ressignificação dos bens não operacionais da ferrovia transformando-os em patrimônio cultural.
Como na década de 1980, ainda não havia leis para preservar especificamente o acervo
ferroviário e o SPHAN legalmente não tinha a responsabilidade de salvaguardá-lo, o Programa
governamental teve a função de iniciar o levantamento, de preservar, construir a cultura
ferroviária e difundir a história da estrada de ferro. Os centros de preservação da história
ferroviária do Brasil se tornaram instituições que divulgavam o discurso produzido pelos
agentes do Preserve e por isso, são espaços profícuos para o estudo das representações que
Estado brasileiro, historicamente marcado pela concentração de poderes, fez a partir do uso
político do passado. Assim sendo, o Preserve elaborou para o RS, como em outros estados, um
projeto que privilegiou a preservação de acervos que remetiam a determinados aspectos da
história ferroviária que muitas vezes negligenciavam o ponto de vista das sociedades por onde
o trem passou. Difundiram uma história única e homogeneizante dentro de um contexto com
uma heterogeneidade de memórias compartilhadas que foram silenciadas. De certa maneira,
podemos pressupor que Preserve possuía um caráter elitista e não abriu um diálogo aberto com
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o público, pois não promoveu uma reflexão sobre a diversidade cultural das regiões, a
desigualdade social e econômica do nosso país.

Portanto, o discurso produzido pelo programa federal no Centro de Preservação da História


Ferroviária do RS não problematizou as tensões e as disputas que a história da ferrovia gaúcha
poderia promover, mas teve o mérito de preservar uma parcela pequena do patrimônio
ferroviário e se manteve atuante até o final da década de 1990, diante do avanço da privatização
e das mudanças conjunturais geradas pela globalização. Com o seu fim, em decorrência dos
novos modelos de concessões ferroviárias, criou uma lacuna e deixou muitos lugares no
abandono e correndo o risco de serem destruídos.

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“AQUI JAZ”: LOCAL DE PASSAGEM, ESQUECIMENTO OU EXÍLIO ?*321

Francielle Moreira Cassol*322

RESUMO

O presente trabalho objetiva demostrar a importância do Cemitério Municipal Vera Cruz


enquanto espaço de memória, de sociabilidades, de rituais de passagem, de práticas de devoção,
ou seja, de um patrimônio material e imaterial da comunidade Passo-fundense, enquanto local
de veneração a “santa popular” Maria Elizabeth de Oliveira. O cemitério foi inaugurado em
primeiro de janeiro de 1902 e foi o primeiro cemitério municipal da cidade, o mesmo se
desenvolveu acompanhando o crescimento urbano e afastando os mortos do centro da cidade.
Muitas vezes a “última morada” demonstra em sua arquitetura os interesses e preferências do
finado enquanto vivo, bem como, os de sua própria família, deixando assim registrado seu nível
socioeconômico ou mesmo sua posição social. Nesse contexto, possuir uma sepultura rica em
ornamentos, de grande porte, repleta de esculturas e símbolos sacros pode significar proteção
divina, um descanso eterno, em paz e mesmo sua distinção social, visto que, este cemitério
mesmo sendo um campo santo é também um espaço privado e que despende certo investimento
econômico. Nesse espaço cemiterial conseguir um bom lugar para ser enterrado ou mesmo
adquirir um terreno é uma forma de garantir um patrimônio material, mas também de construir 653
um lugar de lembranças e de práticas de socializações como nos enterros, velórios, um local a
ser visitado e cultuado pelos familiares. O Cemitério, a devoção a Maria Elizabeth, assim como
diversas sepulturas do cemitério Vera Cruz destacam-se enquanto patrimônios locais, lugar
histórico, um local repleto de lembranças, memórias, valor arquitetônico, artístico, devoção e
beleza.

Palavras-chave: cemitério; local de memória; devoção

INTRODUÇÃO

321
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
322
** Doutoranda em História, Universidade de Passo Fundo, FUPF, fran_cassol@yahoo.com.br
ISSN: 2525-7501
A devoção aos santos de cemitério, assim como o temor da morte e do morrer são
práticas que continuam existindo na contemporaneidade refletindo assim o contexto e a crise
social vivida neste. Além disso, deve-se pensar, o que refletem manifestações como esta? um
desabafo da população? o cansaço de tanta exploração ? o medo do desconhecido? ... todas
essas problematizações nos fazem refletir: no porque ainda recorremos a esse tipo de explicação
ou solução ?

E nesse contexto torna-se necessário entender o processo de formação de uma santa,


como se configura como santa e porque a cidade lhes escolheu para ser um ícone de devoção e
assim também o cemitério Vera Cruz, como polo de atração. Para isso, utiliza-se de uma
corrente historiográfica que se inicia no Brasil a partir da década de 1980, a saber, a Nova
História, pois esta se utiliza de novos temas, problemas, objetos e fontes. Nesse contexto, tornou
possível dar voz aos dominados (não vê-los só como dominados), aos que não eram
contabilizados ou enfatizados na escrita da História, a partir do estudo de seus comportamentos
e de suas atitudes diante da sua realidade ou sobre ela.

Philippe Ariés preconizava que desde o século XIX já era perceptível à mudança de 654
atitude e da mentalidade perante a morte, essa se consolidaria no transcorrer século XX,
denominada por ele de a “morte invertida”. Assim, durante o transcorrer do século XX pode-se
presenciar, de certa forma, uma espécie de afastamento do homem da morte e dos ritos que
envolvem o morrer. Norbert Elias, afirma que os rituais fúnebres da atualidade atestam que
estes “foram esvaziados de sentimento e significado”. Na ótica do mesmo autor, isso deve-se
principalmente ao medo da morte, especialmente a morte solitária de uma velhice abandonada,
sem parentes, ou mesmo de alguém que lhes ofereça uma lágrima, uma prece, uma dor. Para
minimizar o temor do desconhecido que é suscitado com o contato ou a proximidade da morte,
o homem tende a se afastar, a evitar e a reprimir os pensamentos que recordam a morte, ou
mesmo incorporem a fé na imortalidade (ELIAS, 2001, p.36). Para Ariés (2003), isso seria um
retrato da prevalência do silêncio e da proibição das questões da morte, onde as manifestações
aparentes de dor, pesar e luto estavam fadados à extinção. Por outro lado, o que se pode levantar
até o momento é que mesmo com todo o empenho em se afastar, diminuir ou mesmo acabar
com o morrer, a dor, a saudade e o crer em algo além da morte, não se extinguiram.
ISSN: 2525-7501
1. Capítulo I – Cemitério Vera Cruz: uma visita ao passado - um museu a céu
aberto

Por volta de 1835, Cabo Neves (figura “ilustre” da História Passo-fundense) cedeu às
terras que seriam o berço de Passo Fundo, construindo a partir daí o primeiro cemitério da
cidade que se tem notícia. Esse primeiro cemitério localizava-se no cruzamento das atuais ruas
Independência e General Netto, ao lado da primeira Igreja que o município acolheu e local em
que foram enterrados os primeiros responsáveis pelo nascimento e desenvolvimento da cidade.
A criação deste cemitério, em acordo com os preceitos vigentes foi destinada somente aos
moradores católicos, mas, por outro lado, motivou a construção de um outro local onde
pudessem ser enterradas pessoas não católicas, localizado em frente ao atual Quartel. Anos
depois, com a Proclamação da República (15/11/1889), o catolicismo como religião obrigatória
foi cancelado no Brasil. Com isso, a necessidade da existência de dois cemitérios
consequentemente se extinguiu. Ao mesmo tempo e, nesse contexto surgiu em Passo Fundo a
construção da Gare com a chegada do trem, em 1898, tornando impossível que o centro da
cidade continuasse a manter o cemitério católico. Nesse contexto, o Coronel Gervásio Annes
655
(PRR), ordenou a desapropriação de parte das terras determinando que os dois cemitérios
fossem transferidos para um único lugar que seria o primeiro cemitério considerado laico.

O cemitério Vera Cruz de Passo Fundo/RS foi inaugurado em primeiro de janeiro de


1902 e foi o primeiro cemitério municipal da cidade, o mesmo se desenvolveu acompanhando
o crescimento urbano e afastando os mortos do centro da cidade. Muitas vezes a “última
morada” demonstra em sua arquitetura os interesses e preferências do finado enquanto vivo,
bem como, os de sua própria família, deixando assim registrado seu nível socioeconômico ou
mesmo sua posição social. Nesse contexto, possuir uma sepultura rica em ornamentos, de
grande porte, repleta de esculturas e símbolos sacros pode significar proteção divina, um
descanso eterno, em paz e mesmo sua distinção social, visto que, este cemitério mesmo sendo
um campo santo é também um espaço privado e que despende certo investimento econômico.
Nesse espaço cemiterial conseguir um bom lugar para ser enterrado ou mesmo adquirir um
terreno é uma forma de garantir um patrimônio material, mas também de construir um lugar de
lembranças e de práticas de socializações como nos enterros, velórios, um local a ser visitado
ISSN: 2525-7501
e cultuado pelos familiares. Mais de um século se passaram desde a inauguração do Cemitério
Vera Cruz e, as práticas fúnebres, assim como, as relações com a morte em muito se alteraram.

Personagens da história de Passo Fundo, como Adão e Ana Schel, Coronel Chicuta,
Coronel Lolico, Lalau Miranda e Wolmar Salton, encontram-se representados no Cemitério
Vera Cruz por meio de suas sepulturas. O presidente do Instituto Histórico de Passo Fundo -
Fernando Miranda, afirma ser o local um museu a céu aberto. “Por meio das construções e obras
de arte, é possível saber como os passo-fundenses lidavam com a morte, sua situação econômica
e política, religiosidade e etnias, entre outros aspectos” 323, explica. Miranda destaca a riqueza
das obras de arte encontradas no Cemitério, principalmente as estátuas de mármore, granito e
bronze. Atualmente o guia tem sido distribuído gratuitamente, promovendo um novo olhar para
a história local, bem como, para a última morada, uma vez que o Cemitério Vera Cruz concentra
amplo patrimônio artístico e histórico.

A proposta do Instituto Histórico de Passo Fundo, em parceria com o Arquivo


Histórico Regional, é propor um novo olhar para o Cemitério Vera Cruz a
partir da criação do Guia de Visitação que apresenta um mapa de um percurso
a ser seguido. “A ideia é que o Cemitério seja visto não com aquele olhar
tradicional, de quem vai no cemitério para fazer uma visita a alguém que
656
faleceu, mas com um olhar cultural e um olhar voltado para história”.
Carregado de simbologia, mensagens e estátuas, o Cemitério Vera Cruz
carrega, também, a história da cidade. O cemitério é uma fonte histórica: os
personagens que participaram da história da cidade e do estado estão
enterrados ali e a própria arquitetura apresenta parte de épocas vivenciadas
aqui324.

Ainda segundo Chartier (2002), deve-se pensar nas lutas de classe por representação e
nos mecanismos utilizados pelos grupos sociais para se imporem uns sobre os outros. Assim,
túmulos, jazigos, objetos, estatuária, imagens, catacumbas, criptas, oferendas, sepulturas e às
vezes cemitérios inteiros refletem quem o morto foi em vida, o que se pensa sobre o além-vida,
ou o que se quer que se lembre deste; com suas consequentes diferenciações sociais. Nesse
contexto, a história é a ciência que pretende dar conta das transformações da sociedade, já a
memória coletiva, esta insiste em assegurar a permanência do tempo e da homogeneidade da

323
Disponível em: http://historiaupf.blogspot.com.br/2014_10_01_archive.html
324
MIRANDA, Fernando. Uma visita ao passado. In: GARBELOTTO, Sammara. Jornal O Nacional. Passo
Fundo: 29/10/2014.
ISSN: 2525-7501
vida, como um intento de mostrar que o passado permanece. Enquanto a história é informativa,
a memória é comunicativa.

***

Capitulo II – Maria Elizabeth de Oliveira: nascida para morrer

Na doutrina católica existe uma área chamada de escatologia. A escatologia, também


chamada de novíssimos325, nos auxilia pensar a morte e o morrer, pois esta fala do destino final
de todos os homens. No Compêndio de catecismo da Igreja Católica encontramos os quatro
novíssimos que nos interessam, a saber, Morte, Juízo, Inferno e Paraíso. No Brasil, desde a
chegada de Portugal e consequentemente da colonização, a doutrina católica guiou e
influenciou no tratamento dos mortos, seus funerais, orações, missas e enterros, assim como,
no imaginário humano sobre os mortos e o além-vida e o temor a estes. Segundo Schmitt (1999),
657
(...) se o corpo de um afogado desapareceu e não pode ser sepultado segundo
o costume, ou ainda se um assassinato, um suicídio, a morte de uma mulher no
parto, o nascimento de uma criança natimorta apresentam para a comunidade
dos vivos o perigo de uma mácula. Esses mortos são geralmente considerados
maléficos. Essa dimensão antropológica e universal do retorno dos mortos está
presente, entre outras na tradição ocidental, desde a Antiguidade, na Idade
Média e até no folclore contemporâneo “.

Nesse contexto, o medo da morte e dos mortos pode ser superado por meio do
intermédio de pessoas com dons extraordinários, assim como Maria Elizabeth de Oliveira – A
santinha de Passo Fundo.

Maria Elizabeth de Oliveira nasceu na cidade de Passo Fundo, no dia 6 de fevereiro de


1951. Entretanto, seus pais, Leda de Oliveira e Alcides de Oliveira eram naturais do município
de Lagoa Vermelha. Em função dos estudos Maria Elizabeth veio morar em Passo Fundo com
seus avós, tendo estudado no Ginásio Menino Jesus e mais tarde no Grupo Escolar Protásio
Alves. A breve vida de Maria Elizabeth segundo registros destacou-se, entre outros, por

325
Mistura a filosofia e a teologia que fala sobre o destino do homem e do mundo, é estudo das profecias
concernentes ao fim desta era e a volta de Cristo.
ISSN: 2525-7501
participar de modo intenso da vida religiosa citadina e da moral pregada pelo catolicismo, visto
que, além de participar de coral religioso, também auxiliava os padres, na Igreja Matriz Santa
Terezinha (FABIANI, 2009).

Em 1965 ano de seu falecimento, também os pais de Maria Elizabeth mudaram para a
cidade, vindo a residir na Avenida Presidente Vargas, avenida esta que viria a ser o lugar onde
a menina sofreria um acidente em 28 de novembro daquele ano. No dia de sua morte, Maria
Elizabeth encontrava-se com um grupo de amigas, na esquina das ruas Padre Valentin com a
Avenida Presidente Vargas, quando em torno das 15hs de um domingo, uma Kombi
(MORENNO, 1994) dirigida por Gentil Lima subiu a calçada desgovernadamente, atropelando
o grupo de jovens que ali se encontravam. Maria Elizabeth chegou a ser levada ao hospital local
São Vicente de Paulo demonstrado em seu corpo externamente apenas um ferimento no pé,
todavia, internamente a mesma encontrava-se com uma séria hemorragia, que a levou a morte.

A morte brusca de uma jovem passofundense, com menos de quinze anos, segundo os
jornais e pessoas contemporâneas ao fato, relatam que este acidente chocou a cidade inteira.
Logo após o ocorrido, a história de que Maria Elizabeth de Oliveira havia previsto sua própria 658
morte, escolhido seu caixão e a roupa que “usaria por toda a eternidade” e a aceitado
abnegadamente espalhou-se rapidamente.

Entre as características destacadas por Barbosa na biografia de Maria Elizabeth há “a


singularidade da menina” enquanto modelo de conduta moral, não só para as moças da época,
mas para todas as futuras gerações de mulheres. Além disso, a primeira edição do livro traz
várias imagens da menina, o relato do momento em que a mesma previu sua própria morte, a
narrativa do dia em que ela escolheu seu caixão e o vestido em que seria enterrada, bem como,
a exposição de alguns dos “milagres” ligados a Maria Elizabeth e que auxiliaram a compor o
quadro de sua suposta santidade (FABIANI, 2014). Não obstante, o próprio Barbosa (padre e
biógrafo de Maria Elizabeth) relata em seu livro ter já em 1966, ou seja, um ano após a morte
da “Santinha”, ter recorrido à intersecção da mesma, inúmeras vezes e, assim recebido graças.
Também, destacamos estar presente, tanto na biografia quanto nos relatos dos jornais locais, o
fato de que, quem recorre a Maria Elizabeth: ganha ou sente o cheiro de rosas, estes é que serão
ISSN: 2525-7501
atendidos326. Essa presença das rosas é bem recorrente nos relatos dos fieis, ora diz-se que a
menina, quando viva, era apaixonada por rosas vermelhas. No contexto das devoções em
cemitérios, “os mortos se tornam os intermediários mais próximos para os quais apelar em caso
de perigo, para levar orações e pedidos, pelo caminho hierárquico, até os grandes santos e a
Madona, de onde virá a intervenção milagrosa” (VOVELLE, 2010, p.35).

Segundo a Igreja Católica327, o termo devoção,

Designa as várias práticas exteriores que animadas pela fé interior manifestam


um aspecto do seu relacionamento com Deus, seus anjos e santos. Exemplos
de devoções são os textos de orações, cantos, as visitas a lugares particulares,
o uso de medalhas, insígnias, hábitos e costumes. Esta descrição, por si só, já
ratifica a denominação da devoção popular às manifestações que ocorrem no
cemitério.

No cemitério Vera Cruz, da cidade de Passo Fundo, a devoção a Maria Elizabeth de


Oliveira realizada diariamente junto a seu túmulo pode-se encontrar a pagação de promessas
por meio da distribuição de preces através de “santinhos”. A promessa estabelece a relação
entre o santo e o devoto. Nesse contexto, a função do milagre é mudar a realidade em um curto
espaço de tempo. Essa relação pressupõe que o devoto deve oferecer algo em troca para receber 659
o que precisa. A Igreja reconhece o ato de distribuição de milheiros de “santinhos” como meio
de promover e propagar as devoções. Nesse contexto, se deve atentar para o fato de que o limite
entre o que é devocional institucionalmente e o que não o é, é bastante tênue.

No que se referem ao uso das imagens, estas são consideradas extremamente


importantes e estratégicas no convencimento do santo e na propagação da fé. As imagens da
“santa” (M.E.) auxilia o devoto a materializar a crença e focar seus esforços no crer sobre o
extranatural. Essas imagens estratégicas não se restringem somente ao santo ou santa, mas
também na arquitetura do próprio cemitério, nos jazigos e nas esculturas presentes nos mesmos,

326
FABIANI, Márcia. Maria Elizabeth de Oliveira: a construção do imaginário, da devoção e da santidade. Passo
Fundo. (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Passo Fundo, 2006.
ZANELLA, Noely da Costa. Uma luz em meu caminho – Maria Elizabeth de Oliveira. 3ª Ed. Esmeralda, 1997;
BARBOSA, Uma estrela no céu – Maria Elizabeth de Oliveira. 7ª, 9ª (versão de bolso) 34ª Ed, EST, Porto Alegre,
2014. ACOSTA, Alexandre Chies. Minha experiência de Deus e os sinais de Maria Elizabeth de Oliveira. Bento
Gonçalves, 2009. Jornais O Nacional.
327
Directorie Sobre la Pledad Popular y Liturgia: Principlos y Orientaciones.
http://www.buenaprensa.com/Content/Images/uploaded/Pdfs/Directorio%20de%20Liturgia.pdf
ISSN: 2525-7501
que são carregados de efígies do Romantismo repletos de emoção e expressividade (a exemplo
das imagens no guia abaixo).

Capa do Guia do Cemitério Vera Cruz 328

A maior forma de expressão, convencimento e estratégia católica encontra-se no culto


as santas. Esse culto serve a instituição como forma de fixar valores por intermédio de modelos
a serem seguidos pelos fieis. Durante boa parte da história do catolicismo o santo mártir é o
principal modelo de santidade, geralmente relacionados a casos de morte bruta, acidentes e
casos de superação. No caso de Maria Elizabeth de Oliveira a sua santidade gira entorno de sua
morte prematura (aos 14 anos), bem como por possuir o dom da previsão. A partir de Chartier
(2002), pode-se compreender como o devoto em boa parte dos cultos a figura do mártir esta
pautada em sua morte e em seu sofrimento demasiado.

Em muitas municipalidades é comum a visita, particular ou em grupo, aos cemitérios e


túmulos, principalmente no dia de finados, a saber, dois de novembro de cada ano. No que se
refere às visitas aos jazigos, 660
“se acercan a la tumba de sus seres queridos para mantenerla limpia y adornada
com luces y flores, esta visita debe ser una muestra de la relación que existe
entre el difunto y sus allegados, no expresión de una obligación, que se teme
descuidar por una especie de temor supersticioso”.329

328
Durante todo o ano de 2014, cerca de quinze pessoas se envolveram na produção do mapa. A partir de visitas,
catalogação de túmulos, escolha de personalidades e registros fotográficos, a produção tomou forma: com o
objetivo de despertar escolas, cursos de arquitetura e de artes, o mapa se concentra na parte mais antiga do
cemitério e apresenta personalidades que ajudaram na formação de Passo Fundo e, ainda, um grande número de
estátuas que cortam parte da história da arte. A proposta é que, mais tarde, esse circuito inicial seja ampliado. Por
agora, o objetivo é estimular a visita ao cemitério como uma visita cultural, histórica e turística. “A cidade já
apresenta um turismo religioso, que é o caso da Maria Elizabeth. E isso já é comum em outras regiões. É um outro
olhar que se abre sobre a cidade. Existem obras, no cemitério, que mereceriam, junto à Prefeitura, o tombamento
desse trabalho que é artístico e cultural. Merecem um estudo mais aprofundado”, explica Fernando. Disponível
em: http://www.onacional.com.br/geral/cidade/55075/uma+visita+ao+passado
329
Directorie Sobre la Pledad Popular y Liturgia: Principlos y Orientaciones.
http://www.buenaprensa.com/Content/Images/uploaded/Pdfs/Directorio%20de%20Liturgia.pdf
ISSN: 2525-7501

Túmulo de Maria Elizabeth de Oliveira

Como este estudo também é voltado para a temática da morte, faz-se necessário pensar,
em o que a Igreja diz sobre este e o purgatório, pois segundo a mesma, parte do imaginário e
do medo da morte encontra-se no que se pensa sobre estes. Isso, porque segundo a Igreja

661
Católica, o purgatório é o lugar que a maioria das pessoas temem e dispensam suas preces. Por
outro lado, quando se trata das devoções às almas de santos e santas de cemitério, o que é o
caso do presente estudo, o que se percebe é que estas preces destinam-se muitas vezes a elevar
a alma da “santa” ao reino do céus junto a Deus e a todo o seu panteão; o que pode ser
comprovado através do texto contido nos “santinhos” encontrados no Cemitério Vera Cruz.

Verso dos “santinhos” a Maria Elizabeth

Segundo Bettencourt (p.136-137), “os cristãos deram continuidade ao que havia


preconizado Judas Macabeu (+ 160 a. C.), que julgava ser útil o sufrágio dos vivos para a
purificação dos mortos antes de chegar ao paraíso”. A partir do que preconizou Macabeu pode-
se pensar nos meios do sufrágio do fiel em relação a seus santos, assim como, a Maria Elizabeth;
talvez um dos mais fáceis seja a distribuição dos “santinhos” já mencionada anteriormente, o
que, entretanto é dispendioso para quem encontrasse em certa classe socioeconômica. Além
dos ditos santinhos, os fieis de cemitério, além do local de culto, não se distinguem dos devotos
de igrejas ou de outras religiões. Na pagação de promessas, ou seja, no selar o pacto com a
ISSN: 2525-7501
“santa” estes utilizam-se da distribuição e entrega de velas, flores, placas, fotografias, bilhetes
e mesmo cópias de orações escritas a mão, estes chamam-se ex-votos. Assim o ex-voto, “é um
objeto oferecido ao santo como resultado de uma promessa e de um favor recebido cuja doação
havia sido prometida anteriormente. Uma das funções do ex-voto é dar a conhecer o favor
recebido, realizado a divulgação dos poderes do santo” (2015, p. 84). Não obstante, para
Andrade apud Scarano (2015, p.111),

Aos olhos humanos, o ex-voto é um legítimo é válido veículo de troca de bens


e apresenta ainda outra variável: é uma paga, paga simbólica, feita, aquele que
recebeu a graça. O pedido, ao partir do crente, ergue-se até a divindade, depois
volta ao crente em forma de graça e ele paga a promessa feita, ofertando-lhe
um ex-voto.

Entre os debates conceituais travados no campo da cultura e que podem se estender ao


pensarmos na organização espacial e arquitetônica do cemitério, nos últimos anos discute-se
sobre o uso dicotômico do termo cultura popular (o que implica na existência de sua oposição
– cultura erudita e também da religiosidade popular versus erudita). Para Certeau (1995), a
cultura popular, nada mais é do que a “cultura comum de pessoas comuns”, ou seja, “uma
cultura que se fabrica no cotidiano, nas atividades ao mesmo tempo banais e renovadas de cada 662
dia”. Essa conceituação pode parecer um tanto reducionista do que seria a cultura popular, e
assim consequentemente, das pessoas que participam dessa cultura, também podem ser
percebidas nas fachadas dos túmulos e na distribuição dos jazigos. Quanto ao termo catolicismo
popular devemos refletir tanto no que diz respeito a sua historicidade quanto nos usos pelos
quais os atores sociais fazem do mesmo. Segundo Solange “uma religião não será percebida
enquanto “popular” senão quando uma religião (dita) “oficial” a declara ultrapassada é não
legítima” (ANDRADE, 2008, p.238). Sendo assim, não se encontrou distinção somente nas
localizações e arquiteturas de jazigos das figuras locais ilustres e as que poder-se-ia chamar de
desconhecidas ou comuns, mas também na própria devoção a Maria Elizabeth, visto que esta
não é reconhecida oficialmente pela Igreja Católica.

No contexto local, no Mapeamento do Patrimônio Imaterial de Passo Fundo330, entre os


patrimônios de cunho religioso podemos destaca: crenças afro-brasileiras,

330
https://www.academia.edu/24251378/Mapeamento_do_Patrim%C3%B4nio_Imaterial_de_Passo_Fundo_RS
ISSN: 2525-7501
Benzedeiras/Curandeiras/Rezadeiras, a Marcha para Jesus, Procissão de São Cristóvão, a
Romaria Arquidiocesana de Nossa Senhora Aparecida e a Romaria e Festa em Honra a São
Miguel Arcanjo. No que se refere ao patrimônio331 material municipal de Passo Fundo, o Jazigo
de Maria Elizabeth de Oliveira é tombado desde o ano de 2007 através do – Decreto n° 183.
Segundo esse decreto,

Art 1º Declara bem integrante do patrimônio histórico-cultural do Município


de Passo Fundo, para fins de tombamento provisório, nos termos da Lei nº
2.997/95, a edificação em alvenaria, com área de 19,55m², conhecida como o
jazigo de Maria Elizabeth Oliveira, localizada na Quadra 1a-20, junto ao
Cemitério Municipal da Vera Cruz. Parágrafo único. As características do
jazigo, incluso a volumetria e fachada principal, devem ser preservados,
observando o seu aspecto original e a Lei nº 2.997/95332.

No caso de Maria Elizabeth, em que a devoção, a expressa do patrimônio (material e


imaterial) e o local de memória é o seu jazigo e o Cemitério Vera Cruz, estes ganham novos
usos e se tornam uma espécie de santuário, visto que, “o santuário é um espaço sagrado, um
lugar separado, delimitado, guardado para evitar uma profanação, uma vez que a divindade se
manifesta nele. O santuário é a morada da divindade” (ANDRADE, 2015, p. 85).
663
CONCLUSÃO

331
Segundo informações repassadas em 2015 pela Arquiteta Marielen Colpani, Coordenadora do Núcleo de
Patrimônio Histórico da Secretaria de Planejamento da Prefeitura os tombamentos já realizados – em caráter
temporário ou permanente - são: Pórtico Nossa Senhora Aparecida – Decreto n° 47/2008; Jazigo de Maria
Elizabeth de Oliveira – Decreto n° 183/2007; Estádio Wolmar Saltom – Decreto n° 108/2007 (não existe mais);
Casa Dipp – Decreto n° 89/2007; Silo – Decreto 236/2006; Casa João Café – Decreto n° 235/2006; Ruína – Decreto
n° 234/2006; Moinho – Decreto n° 233/2006; Edifício n° 378 Av. General Neto – Decreto n° 232/2006; Igreja
Matriz “Nossa Senhora da Conceição” - Decreto n° 231/2006; Casa Morch – Decreto n° 230/2006; Quartel do
Exército – Decreto n° 229/2006; Escola Protásio Alves – Decreto n° 229/2006; Caixa D'água – Decreto n°
227/2006; Casa Della Méa – Decreto n° 226/2006; Hotel Glória– Decreto n° 122/2014; Clube Caixeral– Decreto
n° 123/2014; Banco Popular – Decreto n° 3911/2002 ( não existe mais); Companhia Cervejaria Brahma – Lei n°
3275/1997; Bebedouro – Lei n° 3043/1995; Banco Itaú – Lei n° 2955/1994; Prédio do Texas, do Instituto
Educacional – Lei n° 2937/1994; Igreja Metodista – Lei n° 2906/1993; Capela São Miguel – Lei n° 2696/1991;
Prédio da Antiga Gare – Lei n°2671/1991; Escola Municipal Padre Vieira – Lei n° 2535/1989; Cemitério do
Capitão Fagundes dos Reis – Lei n° 7481/1957; Conjunto Arquitetônico ( Academia Passofundense de Letras,
Museu, Teatro) – Lei n° 2608/1990.
332
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ISSN: 2525-7501
A memória coletiva é o processo social de reconstrução do passado vivido e
experimentado por um determinado grupo, comunidade ou sociedade (Halbwachs). Assim os
marcos da memória podem ser divididos em marcos temporais e marcos espaciais. Os marcos
temporais são fatos e períodos que são considerados socialmente significativos, como por
exemplo, o culto e a devoção a Maria Elizabeth a cada dois de novembro, uma espécie de festa,
sua morte, mas também nascimento, onde uma recordação é reconstruída. Já os marcos
espaciais da memória coletiva mantêm a memória viva por mais tempo, pois é caracterizado
pela lembrança ou recordação a partir de lugares de memória; locais que funcionam como um
gatilho para a memória, um lugar específico assim como o cemitério e seu túmulo.

É importante lembrar que um dos requisitos para a canonização de alguém é sua a


passagem pela morte, dia ao qual ele será lembrado. Bernard des Graviers e Thierry Jacomet
(2008, p.159.) lembram que “para um cristão a data de sua morte é a data do seu verdadeiro
nascimento”. Portanto, os cemitérios podem ser vistos como lugares onde descansam possíveis
santos, aqueles que ultrapassaram a barreira da morte, mas também, de pessoas comuns que ora
são esquecidas, ora são lembradas. Ao se analisar o processo de formação de um santo popular,
664
bem como seu local e memória fica explicito que todos os gestos e objetos da “santa” foram
revestidos de sacralidade e caráter sobrenatural. A criação da imagem da santa, bem como sua
propagação é diferente da real imagem da pessoa, que também é diferente do que o imaginário
social vê na mesma. Assim, recordar a história de uma pessoa qualquer, um ente querido ou
santa é construir uma memória.

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666
ISSN: 2525-7501
TUMBAS TRANSI DA INGLATERRA MEDIEVAL: MEMÓRIA E COMUNICAÇÃO
DOS MONUMENTOS FUNERÁRIOS*333

Amanda Basilio Santos**334

RESUMO

Este trabalho é um recorte da pesquisa em desenvolvimento no mestrado em Memória Social e


Patrimônio Cultural (PPGMP-UFPel), das representações mortuárias do século XV na
Inglaterra, conhecidos como tumbas transi, ou tumbas cadáveres335, pretende explorar uma
nova percepção da experiência representativa da morte, assim como analisar a função memorial
destas fontes tumulares. Pretendemos destacar que as tumbas cadáveres possuem uma dupla
instância memorial: ao mesmo tempo em que servem à memória do falecido representado em
sua gisant336, ao mesmo tempo ela serve aos vivos como um apelo à memória da mortalidade.

667
É assim, a lembrança dos que se foram, e a lembrança da morte daqueles que ficam, desta forma
sendo um veículo de comunicação entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos que as
contemplam. É um patrimônio que ao mesmo tempo atua como memorização do passado,
através da manutenção da memória dos falecidos, porém ativam constantemente a memória dos
indivíduos que as lobrigam de sua própria condição fugaz.

333
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
334
** Especialista em Artes (PPGA-UFPel), mestranda em História (PPGH-UFPel) e em Memória Social e
Patrimônio Cultural (PPGMP-UFPel), membro do LAPI (Laboratório de Política e Imagem da UFPel). Bolsista
CAPES. E-mail: amanda_hatsh@yahoo.com.br.
335
Tumbas que possuem efígie recumbente que se encontra em leve ou avançado estado de decomposição. Embora
nos preocupamos aqui com as tumbas inglesas, elas podem ser encontradas em bom número na França e na Itália,
e em menor quantidade na Alemanha e nos países Baixos.
336
Segundo a Encyclopaedia Britannica: “Gisant (French: 'reclining): in sepulchral sculpture, a recumbent effigy
representing the person dying or in death. The typical gisant depicts the deceased in 'eternal repose', awaiting the
resurrection in prayer or holding attributes of office and clothed in the formal attire of his social class or office."
Disponível em: <http://global.britannica.com/art/gisant>, acessado em 27 de setembro de 2015.
ISSN: 2525-7501
Palavras-chave: Medievo. Iconografia. Tumbas Transi.

INTRODUÇÃO

Nossa intenção nesta apresentação é discutir as questões concernentes a manutenção da


identidade social e da memória destes indivíduos durante o medievo, analisadas através do
estudo iconográfico das tumbas cadáveres ou tumbas transi337, concentrando-se nos elementos
pictóricos de ambas as efígies, tanto as políticas, quanto as que trazem o indivíduo em estado
de putrefação.

As Tumbas Cadáveres são parte integrante da produção do espaço urbano, ocupando


um local de prestígio na disposição de sua malha, assim como no ambiente eclesiástico em que
se encontram. A produção simbólica, vista através de seus elementos iconográficos, representa
um importante momento histórico, assim como as escolhas efetuadas por um determinado
grupo de pessoas para se colocaram diante da sociedade, estabelecendo relações e provocando
reações. O espaço urbano é composto pela disputa de sujeitos e de suas respectivas memórias,
668
conseguir preservar-se dentro deste espaço, através dos mais variados dispositivos, no caso
desta pesquisa através da cultura material e artística, é parte de uma intenção de preservação de
status e poder. A análise destes objetos, considerando-os como parte de uma disputa por
visibilidade, nos auxilia a compreender a sociedade em que se deu sua produção:

Cada objeto encontrado, e o lugar que ocupa no conjunto, lembram-nos uma maneira
de ser comum a muitos homens, e quando analisamos este conjunto, fixamos nossa
atenção sobre cada uma de suas partes, é como se dissecássemos um pensamento
onde se confundem as relações de uma certa quantidade de grupos
(HALBWACHS, 1990, p. 132).

337
Tumbas que possuem efígie recumbente que se encontra em leve ou avançado estado de decomposição. Embora
nesta pesquisa sejam analisadas as tumbas inglesas, elas podem ser encontradas em bom número na França e na
Itália, e em menor quantidade na Alemanha e nos países Baixos.
ISSN: 2525-7501
Halbwachs também destaca que quando um grupo se insere em um determinado meio
este o molda de acordo com a sua imagem. Portanto não é apenas uma imagem individual, mas
do indivíduo em relação ao seu grupo (HALBWACHS, 1990, p. 133).

As tumbas pertencem sempre a pessoas que possuem grande influência social, sejam
clérigos ou nobres, havendo alguns exemplos raros de homens que possuem origem burguesa
e são economicamente bem-sucedidos, sendo o caso de uma das tumbas a serem analisadas
nesta pesquisa (Tumba de John Barton e Isabella Barton).

Devemos considerar o quão dispendioso seria a encomenda de tais tumbas, não apenas
pelo local em que se encontram, pois elas são normalmente encontradas dentro de catedrais e
algumas em igrejas paroquiais, mas elas também exigem um maior número de esculturas se
formos considerar as de duplo nível, custando, portando, o dobro do preço de tumbas
convencionais. O fato de tais tumbas serem alocadas no interior de edifícios religiosos denota
o poder social e aquisitivo de tais indivíduos, pois eram espaços de exposição disputados.

669
Na Inglaterra há restante em torno de 150 exemplos, embora muitas tenham se perdido
ou sido depredadas. O monumento mais antigo, preservado na Inglaterra, pode ser visto na
Catedral de Lincoln, pertencente ao Bispo Richard Fleming, e o monumento mais moderno em
solo inglês, nesta linha artística seria a tumba do poeta John Donne, construída no século XVII
(KING, 1987).

As tumbas em questão são repletas de elementos alegóricos, demarcadores simbólicos


do status social ocupado, e possuem, em geral, um epitáfio. Pretendemos analisar estas tumbas
como um todo, e não privilegiar apenas a gisant338, mas sim efetuar uma análise do conjunto,
permitindo um entendimento do alegórico ao social, deste modo nos afastando de tendências
de estudos clássicos, que se focam em partes das composições tumulares em detrimento de
outras (HOLLADAY, 2003).

338
Segundo a Encyclopaedia Britannica: “Gisant (French: 'reclining): in sepulchral sculpture, a recumbent effigy
representing the person dying or in death. The typical gisant depicts the deceased in 'eternal repose', awaiting the
resurrection in prayer or holding attributes of office and clothed in the formal attire of his social class or office.”
Disponível em: <http://global.britannica.com/art/gisant>, acessado em 27 de agosto de 2016.
ISSN: 2525-7501
1. Uma questão contextual: a Mortandade e a Arte
As tumbas cadáveres são um fenômeno temporalmente muito específico: sua floração
deu-se após a Grande Mortandade, mais comumente conhecida como Peste Negra. A peste
chegou à Inglaterra no outono de 1348, provavelmente através do Porto de Melcombe em
Weymouth, Dorset339. Há relatos conflitantes sobre o ponto de chegada da Peste. Porém, o mais
citado em todas as fontes do período seria o porto de Melcombe, como podemos ver na crônica
da Abadia de Malmesbury: “em 1348, perto da festa de [...] São Tomás, o Mártir [7 de julho],
a cruel pestilência, detestável a todas as eras futuras, chegou de países de além-mar na costa sul
da Inglaterra, no porto chamado de Melcombe, em Dorset” (KELLY, 2011, p. 219).

Ao estender suas asas mortais sobre à Inglaterra, a peste chegou ceifando um número
assustador de vidas, uma estatística que não pode ser determinada com precisão. Mas é
estimado hoje pela historiografia seria de em torno de 25 milhões de mortes, o que equivale a
33% da população europeia do período. Alguns autores chegam a indicar que o índice se
aproximaria de 60% da população (KELLY, 2011, p. 30). A grande pestilência já vinha
afetando a Europa desde 1347, de modo que o governo inglês teve um período de adaptação
antes de ser atingido, já definindo políticas de ações para lidar com a calamidade.
670
O fato é que a Peste atingiu uma Inglaterra que se encontrava em ritmo de ascensão
bélica e econômica, causando um forte impacto no contexto inglês. Por ser uma nação com
recursos e estabilidade, foi possível um gerenciamento mais organizado diante da mortandade.
Em 1348, a demanda por lã inglesa era tão grande que é estimado que haviam 8 milhões de
ovelhas para uma população de 6 milhões de pessoas (KELLY, 2011). Havia também sinais de
um princípio de uma economia industrial e com intensa atividade de exportação:

Na região rural do oeste, na Ânglia Oriental, onde se fabricava tecido, e em Gales e


na Cornualha, onde havia a extração de carvão e estanho. Enquanto isso, ao longo
dos litorais, as zonas portuárias arborizadas de Bristol, Portsmouth, Londres e
Southampton estavam cheias de navios de mastros altos originários de Flandres, da
Itália, da Gasconha e das cidades alemãs da Liga Hanseática (KELLY, 2011, p.
217).

339
Ainda hoje há uma placa no Porto de Melcombe, demarcando a entrada da Peste na Inglaterra.
ISSN: 2525-7501
Com a chegada da Peste, esta maré de prosperidade foi abalada, assim como a moral do
povo inglês, pois em dois anos é provável que 50% da população inglesa tenha morrido em
decorrência da Peste Negra340. Diante deste cenário, dominado por uma doença cuja a medicina
da época não possuía controle, e de uma imensa devastação da vida como se conhecia, criou-
se uma atmosfera subjugada pela ideia de fim de mundo e da Morte que está presente em todas
as esferas da vida, algo que influenciará profundamente a arte da época.

Na arte, registraram consequências severas e o surgimento de um protagonista que


ganha constância: a Morte. Como bem coloca Veríssimo:

Durante os séculos XIV e XV, este tema [morte] sofre modificações, apresentando-se
a Morte, não ataviada como nos séculos precedentes, mas nua e atacando os vivos
com o seu instrumento ceifador. Agora é uma força destruidora, prefiguração do
destino humano, imagem da efemeridade das alegrias e da própria vida terrena. [...]
É evidente que foi o primeiro surto de Peste Negra, que tantas vítimas fez, mostrando
a todos o horror da decadência física, da podridão orgânica, aquele aspecto do corpo
purulento e cheio de nódulos negros, que proporcionou aos artistas as imagens do
destino material do homem e do que resta de seu corpo martirizado depois da morte
(VERÍSSIMO, 1997, p. 61). 671

O reflexo que a mortandade acarretou no campo das artes excede a representação da


Morte, afeta também as temáticas representadas nas igrejas. Na Inglaterra, após o primeiro surto
de 1348, St. Christopher começou a figurar constantemente nas pinturas parietais, sendo hoje o
santo mais ordinário que é identificado nas pinturas murais medievais.

Os efeitos também se estenderam para os recursos direcionados ao patrocínio da arte na


Inglaterra, de modo que as igrejas inglesas após a Grande Mortandade não teriam mais o
esplendor anterior, pois com a morte de uma quantidade expressiva da mão de obra camponesa,
e com o grande déficit de artesãos, não seria mais possível o mesmo investimento pregresso a
1348. Por um lado, tornou-se mais difícil para a nobreza manter a sua receita, obrigada a pagar
um valor jamais requisitado pelo campesinato. De outro, os artistas experientes se tornaram

340
Como todas as estimativas sobre a quantificação de perda populacional no período, esta é apenas a mais aceita,
proposta pelo medievalista Christopher Dyer através da análise dos indícios históricos do período. O historiador
John Hatcher (1977, p. 25) sugere uma cifra entre 30% e 45%.
ISSN: 2525-7501
muito mais custosos, e surgiu uma nova leva de artistas não tão capazes, cujos trabalhos eram
também caros. A requisição artística decaiu na Inglaterra após a primeira pandemia (PLATT,
1997, p. 137).

A pestilência ainda voltaria a assombrar a Inglaterra por diversas ocasiões, havendo a


segunda epidemia em 1361, cujos índices de mortalidade beiram os 20% da população. Porém,
desta vez, a peste parece ter tido uma preferência por jovens, algo devido, provavelmente, a
uma nova geração que não possuía resistência à bactéria, em contraposição aos mais velhos, já
sobreviventes da mortandade de 1348.

Embora hoje tenhamos todas estas informações técnicas341 sobre a pestilência, no


período medieval ela foi tratada como um imenso flagelo que se debruçou sobre a humanidade,
e seus efeitos foram avassaladores, tanto em termos políticos e econômicos, como nos assuntos
da fé.

Neste sentido, nossa visão aponta na mesma direção apontada na tese de doutorado de
Shilliam. Segundo ele, “the form of the tomb was moulded by contemporary cultural, temporal
and spiritual innovations, as well as by the force of artistic personalities and the directives of
672
patrons”342 (SHILLIAM, 1986, p. 3).

2. Memória: uma visão medieval e ferramentas de análise

341
Apenas no século XIX a medicina conseguiu compreender o agente causador e a estrutura de contágio da Peste
Negra. Foi denominada cientificamente como Yersinia Pestis, levando o nome do bacteriologista que a
diagnosticou. Alexandre Yersin (1863-1943) foi capaz de isolar a bactéria causadora da doença em 1894, em um
surto que estava ocorrendo em Hong Kong, onde pesquisou juntamente com Shibasaburo Kitasato (1852-1931).
Yersin havia nomeado a sua descoberta como Pasteurella Pestis, homenageando seu mentor, Louis Pasteur.
Porém, em 1944 a nomenclatura foi alterada para homenagear Yersin, já após a sua morte. A descoberta deu-se
através da observação de que onde havia pessoas morrendo de peste, também havia um grande número de ratos
mortos (KELLY, 2011).
342
Tradução da Autora: “A forma do túmulo foi moldada por inovações culturais, temporais e espirituais
contemporâneos, bem como pela força das personalidades artísticas e as diretrizes dos patronos”.
ISSN: 2525-7501
A memória no medievo possui um estatuto próprio que difere das discussões traçadas
nos parâmetros atuais, e muito do modo como os medievais (em um sentido generalizante)
foram entendidos nos tempos modernos deriva de uma falta de compreensão da complexidade
de pensamento do período. A memória era vista e utilizada em diferentes vieses, de modo que
não há um consenso entre os estudiosos sobre o próprio conceito:

The subject of memory provides a fitting topic for an interdisciplinary enquiry into
medieval cultural history in the widest sense. Memory is, on the one hand, related in
a close and intricate way to history and the past in general. On the other hand,
mnemosyne was considered the mother of the Muses by the Ancients, and is thus often
perceived in connection with arts and literature. Finally, memory can pertain
specifically to memorization, that is, storing and recuperating knowledge, which was
an important part of medieval education and culture343 (DOLEŽALOVÁ; VISI,
2010, p.1).

Jacques Le Goff destaca em seu livro História e Memória a situação específica da


sociedade medieval, cuja memória encontra-se dividida entre a oralidade e a escrita, em um
modelo proposto por Leroi-Gourhan344 (LE GOFF, 1990). Todavia, destacamos o importante
papel dos meios iconográficos e materiais para construção e manutenção memorial neste
período. 673
Le Goff nos traz apontamentos gerais sobre os aspectos que a memória adquire durante
o medievo que são importantes para sua compreensão:

Cristianização da memória e da mnemotecnia, repartição da memória coletiva entre


uma memória litúrgica girando em torno de si mesma e uma memória laica de fraca
penetração cronológica, desenvolvimento da memória dos mortos, principalmente
dos santos, papel da memória no ensino que articula o oral e o escrito, aparecimento
enfim de tratados de memória (artes memoriae), tais são os traços mais
característicos das metamorfoses da memória na Idade Média (LE GOFF, 1990,
p. 443).

343
Tradução da Autora: “O tema da memória fornece um tópico adequado para uma investigação interdisciplinar
na história cultural medieval no sentido mais amplo. A memória é, por um lado, relacionada de forma estreita e
intrincada com a história e o passado em geral. Por outro lado, mnemosyne foi considerada a mãe das Musas pelos
antigos, e é, portanto, muitas vezes vista em conexão com as artes e a literatura. Finalmente, a memória pode
referir-se especificamente à memorização, ou seja, armazenar e recuperar o conhecimento, que era uma parte
importante da educação e da cultura medieval”
344
Leroi-Gourhan divide a história da memória em cinco etapas básicas: a memória que é transmitida por via oral,
a que é passada através de tábuas ou índices, as fichas simples, passando ao meio da mecanografia e enfim a
seriação eletrônica (LE GOFF, 1990, p. 427).
ISSN: 2525-7501

Neste contexto, a lembrança se apresenta enquanto uma tarefa religiosa que é


imprescindível. É necessário recordar dos atos divinos, desde os benevolentes aos coléricos, é
fundamental a lembrança da vida e dos exemplos dos santos, e com o Novo Testamento, a
memória construída em torno de Jesus Cristo, e a redenção humana diante de um sofrimento
que deve ser sempre rememorado, e desta forma, mantido vivo.

Embora a memória institucional se consagre através da lembrança de Cristo, da teologia,


dos marcos religiosos, e seja praticada nas datas determinadas a relembrar tais acontecimentos
e personagens, no mundo popular, a memória “cristalizou-se sobretudo nos santos e nos
mortos” (LE GOFF, 1990, p. 446). Os mortos são centrais na memória social medieval, e
aqueles cuja memória é nutrida estão nos centros das igrejas através de seus monumentos
tumulares e registrados nos libri memoriales345. Esta lembrança feita através do registro nos
libri, anda de mãos dada ao esquecimento imposto aqueles considerados indignos, pois a
excomunhão é aliada desta damnatio memoriae.

Neste sentido, as tumbas possuem um forte papel memorial, e mais, as tumbas cadáveres
674
possuem uma dupla instância memorial: ao mesmo tempo em que servem à memória do
falecido representado em sua gisant, ao mesmo tempo ela serve aos vivos como um apelo à
memória da mortalidade. É assim, a lembrança dos que se foram e a lembrança da morte para
aqueles que ficam. Elas são memorização do passado (através do falecido) e memorização do
tempo presente e do futuro inevitável (através do apelo aos vivos, lembrando-os de sua
transitoriedade).

Deste modo, salientamos o fato destas tumbas serem sempre atuais, pois por mais que
elas sejam parte da manutenção da memória dos mortos representados, elas estão sempre
atuando sobre os vivos que as contemplam, pois pretendem comunicar e lembrar a condição
humana, e a mortalidade é um atributo atemporal.

345
Livros das paróquias nos quais constam os nomes daqueles sujeitos considerados importantes e dignos, que
tinham uma dupla função: manter a memória destes falecidos e dedicar-lhes orações, auxiliando a passagem pelo
Purgatório e a chegada aos Céus.
ISSN: 2525-7501
Esta dupla instância memorial deve ser problematizada, e argumentamos que as tumbas
cadáveres são veículos de comunicação e manutenção dos que se foram com aqueles que os
contemplam. O apelo, feito através da dramaticidade visual e da humildade e fragilidade
expostas através da efígie cadavérica, permite a empatia do expectador, cumprindo parte dos
objetivos destes elementos tumulares que necessitam angariar rezas para a alma do falecido.
Deste modo, há a manutenção da memória do falecido, a ativação da memória dos observadores
de sua própria fragilidade e estado de igualdade ao morto, e, por fim, a comunicação através do
apelo dramático, que deve gerar a reação de oração e contemplação. Assim sendo, as tumbas
cadáveres são patrimônios ativos dentro dos espaços que ocupam.

Para tanto, nos apoiamos no conceito de imagem memorial (Memorialbild) de Horch


que define que para que se constitua em tal deve cumprir quatro funções: estabelecer uma
comunidade entre os vivos e os mortos; indicar a presença do morto na sociedade; lembrar dos
deveres recíprocos entre os vivos e os mortos; garantir que se dê a performance de tais deveres
no futuro (HORCH, 2001).

Este conceito de Horch aproximamos do conceito talhado por Candau, de 675


sóciotransmissores, que é definido enquanto “todas as produções e comportamentos humanos
que estabelecem uma cadeia causal cognitiva social ou cultural entre pelo menos duas mentes-
cérebro [...] Vários objetos desempenham um papel fundamental na sócio-transmissão”
(CANDAU, 2009, p. 8). Candau também salienta sobre os sóciotransmissores:

Pocos objetos patrimoniales responden tan bien a su vocación de memoria como los
lugares importantes, los monumentos y las estatuas. Los ‘difusores’ de la memoria
por excelencia son los monumentos a los muertos, las necrópolis, los osarios, etc. y,
de manera más general, todos los monumentos funerarios que son el suporte de una
fuerte memoria afectiva346 (CANDAU, 2002, p. 92-93).

Através da análise iconográfica, intencionamos no decorrer da pesquisa que ainda se


encontra em fase inicial, identificar esta quádrupla função nas tumbas transi que são nossa fonte

346
Tradução da Autora: “Poucos objetos patrimoniais respondem tão bem a sua vocação memorial como os
lugares importantes, os monumentos e as estátuas. Os transmissores de memória por excelência são os
monumentos aos mortos, as necrópoles, os ossuários, etc. e, de maneira mais geral, todos os monumentos
funerários são suportes de uma forte memória afetiva. ”
ISSN: 2525-7501
de pesquisa, nos utilizando do terceiro nível analítico proposto por Erwin Panofsky, a
iconologia.

Pensando esta fonte dentro de seu contexto de elaboração, e observando este potencial
de Memorialbild e de sóciotransmissão, questionamos concepções generalizantes sobre a arte
medieval. Tradicionalmente se analisa a imagem medieval como veículo de ensino347 em uma
concepção embasada por Mâle (1910), baseado em Gregório Magno.

Em 600 d.C. O Papa Gregório Magno escreveu uma carta348 ao Bispo Sereno de
Marselha que influenciou profundamente a ideia da função da arte medieval que temos até os
dias atuais. Nesta carta ele destaca a função didática do uso das imagens, permitindo à massa
de iletrados compreender a doutrina,
ensinando-os através de imagens o
que eles não podem ler349. Embora na
própria carta ele destaque outras
funções para a imagem - elas servem
de lembrança dos dogmas, e possuem 676
um poder sobre os fiéis, pois
cumprem um papel de sensibilização
destes e fazem com que eles se Figura SEQ Figura \* ARABIC 1: Pintura na tumba transi de Alice de
la Pole. Fonte: HYPERLINK "https://www.flickr.com/"
arrependam de seus pecados - o papel https://www.flickr.com/, autor RichardR. Acessado em 30 de maio de
didático acabou se sobrepondo aos outros, na literatura, colocando a iconografia medieval como
a bíblia dos iletrados (SCHMITT, 2006).

No entanto, se a função fosse puramente ensinar a doutrina aos fiéis não haveria
necessidade da abundância de imagens circunscritas nos coros e na abside das igrejas, locais de
acesso restrito do clero, que na sua massiva maioria era letrado, ou mesmo imagens que não

347
Sobre esta questão ver: MÂLE, Émile. L'art religieux au XIIIe siècle en France. Étude sur l’iconographie du
Moyen Âge et ses sources d’inspiration. Paris: Armand Colin, 1910.
348
GREGORIO MAGNO, Epistulae ad Serenus, XI, 13, (Patrologia Latina 77, col. 1128-1130).
349
"A pintura é usada nas igrejas, para que as pessoas analfabetas possam ler, pelo menos nas paredes, aquilo que
não são capazes de ler nos livros." (Epistulae, IX, 209: CCL 140A, 1714).
ISSN: 2525-7501
estão à disposição do expectador, como por exemplo uma pintura que se encontra na tumba de
Alice de la Pole350, exclusiva aos olhos da escultura de seu cadáver (Figura 1).

Outra questão para pensarmos e questionarmos esta noção taxativa de didatismo


imagético, é olharmos para a totalidade da composição das tumbas transi. Utilizando aqui, como
exemplo, a tumba de John Baret351, onde podemos ver em grande destaque o seu corpo em
estado avançado de decomposição (Figura 2). Ao contrário de muitas tumbas transi, a de John
não nos apresenta uma escultura superior com seus atributos terrenos, apenas uma grande figura

677

350
Duquesa de Suffolk, viveu entre 1404-1475. Era neta de Thomas Chaucer, escritor do The Canterbury Tales.
Fora casada quatro vezes, dado ao falecimento de seus maridos. Em seu quarto casamento tornou-se Dama de
Companhia de Margarida de Anjou e fora Patrona das Artes.
351
Influente mercador na indústria têxtil, viveu em Chequer Square, faleceu em 1467. Fora casado com Elizabeth
Drury, também pertencente a outra influente família de mercadores. Ao centro da tumba há uma pequena escultura
que representa John ainda vivo, e usando o Collar of Esses, símbolo de que fora agraciado pelo monarca. Esta
pequena escultura ainda segura uma faixa a sua frente onde lemos “Me”, de modo que esta apresenta o falecido
através de uma pequena escultura de si mesmo.
ISSN: 2525-7501
cadavérica. Em conjunto com esta cena lamentável de seu estado, há as palavras escritas “He
that wil sadly beholde me with his ie, May se hys owyn merowr (and) lerne for to die”352

Há, portanto, uma construção da memória de si mesmo através desta escultura, ao


mesmo tempo há uma tentativa de comunicação e associação com aqueles que estão a olhar a

678
Figura SEQ Figura \* ARABIC 2: Tumba transi de John Baret. Fonte: HYPERLINK
"https://www.flickr.com" https://www.flickr.com, autor Tudor Barlow. Acessado em 4 de setembro de
2016.
sua tumba e presenciar a triste realidade de sua morte. Embora haja uma narrativa de humildade,
através do corpo cadavérico, desprovido de qualquer atributo de sua bem-sucedida vida terrena,
na base que guarda seu corpo físico, temos uma escultura de John (Figura 3) nas suas melhores
roupas, lembrando seu ofício, assim como o mais importante bem de status adquirido durante
sua vida, o Collar of Esses353 que está usando em seu pescoço. Esta pequena escultura segura
uma faixa e se apresenta aquele que a vislumbra: “Me”, segura em sua frente. De forma tão

352
Tradução da Autora: “Aquele que infelizmente me ver com seus olhos, possa ver seu próprio espelho, e assim
aprender como morrer”.
353
Homenagem concedida pelo monarca da Inglaterra, principalmente pelos Lancaster, que trazia distinção
aqueles que a recebiam, como sendo de importante valia ao rei. O Collar of Esses nunca saiu de uso, desde sua
implementação no século XIV, embora sua forma tenha se modificado através do tempo.
ISSN: 2525-7501
simples, esta escultura distancia John de seu cadáver decadente e mostra quem seria
verdadeiramente o esculpido.

Esta tumba exemplifica com clareza a dupla instância memorial que destacávamos, ao
passo que é uma construção de uma
memória específica sobre Baret,
mas também é uma ativação da
memória da condição que é comum
a todos nós: a mortalidade. Através
de um poderoso artifício de
empatia, estas tumbas serviam à
memória dos falecidos e os
angariavam rezas, fundamentais
para seu auxílio no Purgatório.
Figura SEQ Figura \* ARABIC 3: Detalhe da Tumba transi
Acreditamos que a arte de John Baret. Fonte: HYPERLINK "https://www.flickr.com"

medieval serve a diversas


https://www.flickr.com, autor Granpic. Acessado em 4 de
setembro de 2016. 679
finalidades e deve ser analisada dentro de sua especificidade, levando em consideração sua
materialidade, seu local de exibição, sua localização geográfica, seu momento temporal e seus
elementos alegóricos. Deste modo, as imagens que analisaremos sairão deste papel didático,
sendo imbuídas de funções sociais memoriais e de sentidos práticos para aqueles que as
encomendam. Encerramos com algumas questões que esperamos responder ao longo da
pesquisa: afinal, qual a razão de ser representado através de um cadáver em um contexto
extremamente atribulado como os séculos XIV e XV na Inglaterra? Quais os sentidos
alcançados por uma nobreza que se encontra enfraquecida pela Guerra dos Cem Anos em um
contexto social abalado pela Grande Mortandade?

CONCLUSÃO

Por esta ser uma pesquisa inicial, nossa intenção aqui foi mais levantar questões do que
fornecer respostas. Mesmo neste estágio de pesquisa, podemos observar que as tumbas
cadáveres nos oferecem mais do que um testemunho artístico, elas são fontes importantes para
ISSN: 2525-7501
a compreensão do homem diante da morte em um contexto específico. Também nos auxiliam
a entender como as famílias nobres e os indivíduos se constituíam como elite e a relação delas
perante a comunidade, pois estas tumbas capelas possuem função de status para os patronos e
o papel de expiação para os espectadores, que através delas conseguiam oportunidade caritativa,
orando pela alma do nobre, ao mesmo tempo que era um momento reflexivo sobre a
mortalidade, e desse modo, sobre o viver (DRESSLER, 2008), finalizamos com uma colocação
de Souza que diz que:

A arte funerária, ao contrário do que se pode pensar, abrange uma memória coletiva,
corresponde a um objeto de amplos sentidos e de representação social. A visualização
de fenômenos socioculturais na arte tumular foi a base de desenvolvimento deste
estudo e conclui-se, a partir dele, que a arte funerária é muito mais que um elemento
decorativo; é, sim, um meio de documentação históricosocial, que identifica a
coletividade a que pertence. (SOUZA, 2007, p. 10).

Concluindo, as tumbas transi se apresentam como uma fonte rica em possibilidades de


análise, se apresentando como um importante fenômeno artístico, uma ocorrência memorial e,
por fim, um sintoma cultural.
680
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ISSN: 2525-7501
O JORNAL COMO FONTE DE PESQUISA PARA A HISTÓRIA, COMUNICAÇÃO
E ARQUIVOLOGIA: UMA PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR*354

Sônia Elisabete Constante


Eugenia Mariano da Rocha Barichello**

RESUMO

A proposta deste artigo visa compilar premissas sobre a utilização do jornal como fonte
histórica para a pesquisa numa visão interdisciplinar, contemplando as áreas de História,
Comunicação e Arquivologia. O jornal impresso, resultado das atividades da Comunicação,
enquanto fonte narrativa que contribui com a construção da memória, ainda é pouco discutida
na História e Arquivologia. Partindo deste propósito, o tema definido para este trabalho deve-
se à percepção do poder da informação das narrativas como fonte de pesquisa. Um dos
argumentos é a praticidade na reunião de fatos que contam a trajetória histórica de determinada
instituição, pessoa, ações, etc.. O Jornalismo tem sido considerado e descrito como a história
do cotidiano (MATHEUS, 2011). Por isso, as narrativas jornalísticas possibilitam a percepção
da história ocorrida nas ações do cotidiano, tendo como objeto de investigação a relação com o
tempo e espaço, que na recuperação de fatos passados é possível contribuir com a historicidade.
No entanto, os jornais como fonte de pesquisa merecem uma atenção especial, na visão de
682
algumas áreas, já que podem trazer narrativas com um viés ideológico ou mesmo, visando fins
lucrativos que priorizam algum tipo de interesse. Diante desta interferência, podem refletir em
alterações, omissões e falsificações de estórias, tornando o jornal como uma fonte não autêntica
e, por isso não servindo para a pesquisa histórica. O texto está dividido em três partes,
apresentando o entendimento do jornal como fonte de pesquisa por área, para a identificação
de pontos comuns e divergentes sobre a utilização do jornal como fonte de pesquisa para a
construção de memória, a fim de trazer como contribuição um posicionamento sobre a
viabilidade do jornal como documento arquivístico para a preservação da memória.

Palavras-chave: jornal; fonte de pesquisa; interdisciplinaridade

INTRODUÇÃO

Os fatos cotidianos vivenciados diariamente em razão de ações, gestos ou mesmo


omissões, podem resultar em um acontecimento interessante, de acordo com o julgamento dos

354
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
ISSN: 2525-7501
órgãos de informação, gerando assim, em produtos de comunicação midiática. O produto jornal,
concebido numa determinada cultura, traz notícias com valores e significados que são
transmitidos em uma sociedade onde o “meio é a mensagem”, isto é, a mídia passa a ser uma
extensão do homem na opinião de McLuhan (1964). O processo ocorre de modo inconsciente,
onde o conteúdo da imprensa é a fala registrada por meio de formas literárias e por narrativas
(news frames) em que o jornalista sistematiza o acontecimento (TARQUINA, 1999).

Surgem conflitos registrados através das metanarrativas, que Mota (2012) diz empregar
significados culturais de tal forma que possibilita identificar determinada sociedade, pois
oportunizam vivenciar o presente através de uma trama recortada que auxilia na recomposição
do passado de uma comunidade. A memória coletiva é reconstituída pelos historiadores
privilegiando a história linear, com a coleta dos dados em materiais, que Le Goff (1994)
reconhece como os monumentos, trazendo a herança do passado e, os documentos que são
selecionados pelo pesquisador. Esses materiais são considerados fontes de pesquisa.

A fonte é considerada primária se o material é original, secundária quando traz o


resultado da interpretação e avaliação de uma fonte primária e, terciária sempre que traz a 683
reunião de dados resultantes de fonte primária e secundária. No jornal, por exemplo, como fonte
primária um artigo inédito e sem a intervenção de outro jornalista e, como secundário, um artigo
baseada em uma retórica anterior, trazendo outros subsídios de outras fontes.

A Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO)


considera atualmente o jornal como patrimônio documental, entretanto, esse reconhecimento
nunca foi um consenso. Por isso, entende-se que é necessário, inicialmente, conhecer como as
estórias que viram notícias são produzidas e publicadas para julgar se o jornal pode ser
considerado uma fonte de pesquisa fidedigna. Isto é, como a informação está sendo
disponibilizada pela instância de produção, considerando desde a entidade produtora até o seu
grupo de trabalho (atores), se é de modo parcial, imparcial ou intencional?

A proposta deste trabalho apresenta como tema a percepção do poder da informação das
narrativas como fonte de pesquisa, visando compilar premissas sobre a utilização do jornal
como fonte histórica para a pesquisa numa visão interdisciplinar, contemplando as áreas de
História, Comunicação e Arquivologia.
ISSN: 2525-7501
O jornal impresso é resultado das ações de uma entidade compósita, que compete ao
campo da Comunicação apropriar-se do conhecimento teórico e prático das suas atividades
jornalísticas. No entanto, a aceitação do jornal como fonte de pesquisa, merece uma atenção
especial na visão de algumas áreas, já que é preciso, inicialmente, ter acesso aos documentos,
geralmente encontrados em instituições arquivísticas, para ajuizar se a fonte é autentica e se
passa a ser testemunho neutro do passado. Sendo assim, neste trabalho discute-se, de modo
resumido, questões teóricas sobre o jornal como fonte de pesquisa para a construção da
memória, tendo por mediação a interdisciplinaridade, trazendo um panorama do pensamento
de autores da Comunicação, História e Arquivologia sobre o jornal como fonte de pesquisa.

O texto está dividido em três partes, apresentando o entendimento do jornal como fonte
de pesquisa por área, primeiramente na Comunicação, depois na História e, por fim na
Arquivologia. No final são identificados pontos comuns e divergentes sobre a utilização do
jornal como fonte de pesquisa para a construção de memória, a fim de trazer como contribuição
um posicionamento se o jornal pode ser considerado como documento arquivístico a fim de
preservar a memória da sociedade.
684

Capitulo I - Fontes e narrativas na visão do jornalismo

Comunicar é um ato motivado pela troca de informações. Na comunicação midiática,


atuam neste ato uma entidade produtora e seus atores, identificada como instância de produção,
que reproduzem a ideologia deste organismo de informação ao receptor, que em relação ao
status e as categorias mentais do seu público é conhecida como instância de recepção. A relação
entre ambas as instâncias ocorre através da linguagem empregada no ato do discurso, partindo
de alguém que transmite um saber para outro que se supõe não conhecê-lo (CHARAUDEAU,
2012).

O jornalismo é resultante do produto da operação de informar sobre a vida em todas as


suas dimensões, desde o nascimento até a morte, a fim de trazer a realidade dos acontecimentos
(TRAQUINA 1999). Por isso, o jornalismo tem sido descrito por Matheus (2011) como o
campo intelectual que oportuniza a concepção da história do cotidiano, mas de modo linear.
Isto é, as narrativas jornalísticas possibilitam a construção da estória a partir de registros diários,
ISSN: 2525-7501
incluindo como objeto de investigação a relação tempo e espaço, abordado por autores que
abordam o tema história e memória.

O jornal ganhou um campo de interesse mundial, em alguns momentos como no século


XVIII, como armas na luta política, já, no século XIX, como um negócio lucrativo. E no século
XX, o interesse pelo jornalismo fortaleceu, através de novas ideologias, o poder de ataque,
como aconteceu com a deflagração da Primeira Guerra Mundial, em que a mudança tecnológica
na impressão, conduzida pelos Estados Unidos, contribuiu com o crescimento da indústria dos
jornais, influenciando o domínio do idioma inglês (INNIS, 2011).

Desponta-se a partir de então, o novo jornalismo - penny press -, com a criação de um


produto inédito, a transmissão da notícia baseada em fatos (TRAQUINA 2005). O processo
produtivo passa a ser estandardizado, empregando métodos de comunicação e conceitos como
o lead355 (ou lide), que é uma estratégia empregada para divulgar a essência dos fatos, além da
pirâmide invertida, cujo objetivo é apresentar fatos mais importantes no topo da narrativa e
terminar com dados não significativos no final do texto (PENA, 2012; TRAQUINA, 2005).

No entanto, os jornalistas não devem partir de invenções, já que a notícia não é uma
685
ficção e sim um conjunto de estórias exitosas ou trágicas do cidadão ou de personalidade
famosa. Além disso, o jornalista é um agente social que tem como valores essenciais no trabalho
a liberdade, porém com credibilidade e verdade, assim como a objetividade, como campo de
conhecimento, empregando métodos científicos (TRAQUINA, 2005). Mas, é bom lembrar que
os fatos a serem narrados são subjetivos e, com isso é preciso criar mecanismos para assegurar
a confiabilidade, isto é, o rigor científico na interpretação da objetividade. Os métodos são
necessários porque os acontecimentos são “[...] construídos a partir da mediação de um
indivíduo, que tem preconceitos, ideologias, carências, interesses pessoais ou organizacionais
e outras idiossincracias” (PENA, 2012, p. 50).

Sendo assim, primeiramente, é preciso compreender a comunicação como processo


transmissor de informação, que segundo Charaudeau depende do contrato de comunicação e do
dispositivo – as circunstâncias materiais (ambiente, canais de transmissão, parceria) em que a

355
Servidores de um lead: “quem”; o “quê”; o “quando”; o “onde”; o “porquê”; o “como” (TRAQUINA, 2005)
ISSN: 2525-7501
ação de informar é desenvolvida e onde será realizada a troca de comunicação, “[...] com
restrições de espaço, de tempo, de relações, de palavras, no qual se encenam as trocas sociais e
aquilo que constitui seu valor simbólico” (2012, p. 67). No ato de comunicar é preciso
considerar a fonte de informação356, a transmissão e o receptor e, ainda, “a relação que mantêm
entre si” (CHARAUDEAU, 2012, p. 36).

As fontes são declaradas como: fonte oficial originada de governos, empresas, institutos,
associações e organizações, que por certo interesse pode esconder informações, sendo
consideradas fontes tendenciosas; fonte oficiosa é uma informação não autorizada de um
representante destas administrações; e fonte independente, sem associação direta com a
adversidade (PENA, 2012).

Todavia, se a fonte de informação apresentar natureza tendenciosa, é preciso fazer


indagações sobre o valor de verdade do fato, a fim de confirmar se é autêntico, se existe
verossimilhança e se o acontecimento é pertinente. E, por outro lado, o receptor precisa
investigar se o fato é existencialmente e possivelmente verdadeiro, e se é pertinente o emprego
desta fonte na produção da narrativa. Além destes quesitos a serem respondidos, é necessário 686
realizar a etapa de seleção da informação, uma vez que é impossível a transmissão de todos os
fatos (CHARAUDEAU, 2012).

Os tipos de acontecimentos, cujo fator tempo interfere na notícia e na sua classificação,


podem ser tipificados em acontecimento inesperado, acontecimento pré-determinado e
acontecimentos em desenvolvimento. As fontes provenientes desses acontecimentos são
recebidas pelos órgãos jornalísticos de forma bruta por: telefonema e carta do leitor; e-mail;
consulta a outro órgão de comunicação social; conferência de imprensa; contacto pessoal, etc.
Classificam-se como tipo de fontes humanas, documentais, eletrônicas, etc.. Porém, deve-se
observar sua proveniência, função e continuidade de suas atividades, por meio do seu estatuto
e de sua proveniência geográfica (SOUSA, 2006).

356
Definida como um lugar no qual haveria certa quantidade de informações, sem que seja levantado o problema
de saber qual é a sua natureza, nem qual é a unidade de medida de sua quantidade. (CHARAUDEAU, 2012, p.
35)
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A empresa jornalística considera, na etapa de produção, segundo Traquina (1999) a
ordem no espaço – territorialidade geográfica, especialização organizacional e tema – e, a
ordem no tempo – como o eixo do campo jornalístico que pode implicar na influência do
trabalho jornalístico em determinado acontecimento a ser selecionado. Aliás, com o avanço
tecnológico intensificado no século XX, o fator tempo passa a merecer uma atenção especial,
já que é crescente a atenção pelo acontecimento atual, concebendo-se um fator de
noticiabilidade, com a possibilidade de transmissão imediata da notícia (TRAQUINA, 1999).
Por isso, a etapa de seleção é imprescindível por permitir uma delimitação dos acontecimentos,
determinando-se, inicialmente, o campo de significação e no seu interior os critérios de
importância ou de prioridade a partir do interesse – cultura - do mediador ou do alvo. Ou seja,
a informação proveniente de um acontecimento deve ser processada por meio de “[...] critérios
de noticiabilidade, isto é, à existência de valores-notícia que os membros da tribo jornalística
partilham” (TRAQUINA, 2013, p. 61).

Cabe ao jornalista selecionar as melhores fontes, partindo do entendimento de que são


membros de uma singular cultura, que por sua vez é manifestada na criação da narrativa. Com
isso, utilizam uma gramática representativa dessa cultura e, por esse motivo que Traquina
687
(1999, p. 252) diz que “[...] as notícias ajudam-nos a compreender os valores e os símbolos com
significado numa determinada cultura”. E, para entender a questão simbólica em uma dada
cultura devem-se reconhecer os mitos, que Barthes (1993) diz ser um valor.

O mito pode ser a fala, a imagem, etc., isto é, a mensagem que apresenta uma forma e
um conceito. Para Barthes (1993, p. 139) a forma traz um sentido que “[...] postula um saber,
um passado, uma memória, uma ordem comparativa de fatos, de idéias, de decisões”, já o
conceito “[...] restabelece uma cadeia de causas e efeitos, de motivações e de intenções”
(IBIDEM, 1993, p. 140). O mito deve ser compreendido com o apoio da ciência semiologia,
que estuda as significações, partindo da relação existente entre significante e significado.

Para transformar o acontecimento em estória é preciso que as fontes de informação


sejam confiáveis, na opinião de Traquina (1999), apesar da dependência dos canais de rotina,
os jornalistas necessitam provar a sua credibilidade. Porém, como salienta Mota (2012), não
pode ser desconsiderada que existe uma prática discursiva da instituição imprensa, que está
alocada em um espaço social e cultural. A prática é chamada de ordem de discurso, por
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desempenhar funções de controle, segundo Foucault (1996)357, visando administrar o domínio
do que é produzido, de quem produziu e, também, de como é distribuído, mas que em razão do
poder deverá ter restrição por meio de uma seleção e organização dos discursos, assim como
de validação, a partir das regras do poder de uma sociedade..

Sendo assim, para que não ocorram dúvidas e, consequente perda de credibilidade no
discurso do jornal, Pena (2012) recomenda que sejam apresentadas as fontes de informação -os
documentos - para provar os fatos. Como complementação, outra opção de comprovação é a
realização de estudos da linguagem, a fim conhecer a fala do sujeito, que Orlandi (2012) diz ser
a forma sujeito através da análise do discurso.

Capitulo II - Fontes e narrativas na visão dos historiadores

Na visão dos historiadores, para o desenvolvimento de uma pesquisa histórica é preciso


conjecturar duas fontes, a primária e a secundária. As fontes primárias, conhecidas como de
primeira mão, são consideradas as fontes escritas, como manuscritos e impressos, por exemplo,
documentos oficiais, jornais, revistas, teses, filmes e depoimentos coletados no período em que
688
está sendo realizada a pesquisa. Já as fontes secundárias ou de segunda mão, que também
podem ser escrita ou manuscrita, além de oral e visual. Todavia, neste caso o tema a ser
investigado é tratado de modo indireto, ou seja, são contemplados os materiais complementares,
como é o caso da literatura crítica (ABRÃO, 2002).

O jornal até a década de 30 não era reconhecido como fonte de pesquisa, apesar de ter
como função principal a informação de um acontecimento, que McLuhan (1964, p. 240)
reconhecia como “[...] uma ação e uma ficção quotidianas, uma coisa que se faz com tudo o
que sucede numa comunidade. Pela sua disposição em mosaico, o jornal é uma imagem em
corte da comunicação”. A ficção talvez fosse uma característica do jornal que incomodava os
historiadores na prática historiográfica, percebido no argumento de Luca sobre a preocupação
da utilização do jornal como fonte de pesquisa, pois

357
Apresentado por Michel Foucault na aula inaugural no College de France, em 1970.
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[...] pareciam pouco adequados para a recuperação do passado, uma vez que essas
“enciclopédias do cotidiano” continham registros fragmentários do presente,
realizados sob o influxo de interesses, compromissos e paixões. Em vez de
permitirem captar o ocorrido, dele forneciam imagens parciais, distorcidas e
subjetivas (LUCA, 2014, p. 112, grifo nosso).

A possibilidade de imparcialidade na construção de uma narrativa pelos jornalistas, foi


pontuada por Bird e Dardenne, uma vez que os acontecimentos tendem a ser humanizados com
o complemento de citações em forma de diálogo, detalhes ou opiniões acrescentadas de tal
forma que “[...] o relato estilizado muitas vezes não cumpre a sua função” (1999, p. 273).

Apesar desta imparcialidade, o jornal como fonte de pesquisa passou a ter outro viés, já
que a prática historiográfica foi sendo renovada de forma lenta a partir de 1930, viabilizada pela
concepção crítica da Escola dos Annales. Em 1968, com a substituição de Fernand Braudel
pelos historiadores Jacques Le Goff, Jean Delumeau e François Furet, conhecido como a
Terceira Geração dos Annales, foram realizados estudos interdisciplinares em áreas das
Ciências Humanas, com a observação do tempo em uma acepção teórico-epistemológico
(RUST, 2008).358 Aliás, a interdisciplinaridade possibilitou a inserção de novos temas às 689
pesquisas como: “[...] inconsciente, o mito, as mentalidades, as práticas culinárias, o corpo, as
festas, os filmes, os jovens e as crianças, as mulheres, aspectos do cotidiano, enfim uma miríade
de questões antes ausente do território da História” (DE LUCA, 2014, p. 113).

A partir de então, o jornal passa a ter outra interpretação, passando a ser reconhecido
pelos historiadores como fonte de pesquisa, que Santos (2004) afirma ser um material que
permite o restabelecimento de uma determinada sequência do passado, apresentando deste
modo, vestígios do passado dos homens. Classifica o jornal como fonte qualitativa diversa, por
trazer elementos comprobatórios de informação em determinadas sessões no jornal, sejam em
notícias, reportagens, fotografias, anúncios publicitários, etc. (SANTOS, 2004). E, se os jornais,
incluindo também, anuários, revistas e almanaques são considerados fontes e objetos de estudos
patrimoniais são categorizados como fonte imprensa periódica (MARTINS, 2015).

358
RUST, Leandro Duarte. A “Terceira Geração dos Annales” e o exorcismo do tempo. Disponível em:
https://www.seer.furg.br/biblos/article/view/855/335. Acesso: 21 set 2016
ISSN: 2525-7501
Na verdade, o jornal passa a ser julgado pelos historiadores como fonte imprensa
periódica, na avaliação de Martins (2015, p. 296), por permitir a observação da “[...]
representação de públicos específicos, visões de mundo e valores particulares da ampla
segmentação social do país.” Isto é possível porque o jornal traz um encadeamento de relatos
que são construídos, diariamente, de forma coerente e organizada, criando a história do
presente, conforme salienta Luca (2014).

O tempo presente, refletido na história imediata, passa a ser a memória do


acontecimento para Mota (2012), construída através da metanarrativa, com a recomposição das
narrativas jornalísticas como prática cultural do jornalismo, juntamente com outras instituições
sociais da sociedade, trazendo novos significados para as suas práticas. No entanto, os
significados nem sempre estão explícitos no discurso, por isso para Luca (2014), é necessário
analisar o discurso em concordância com os estudos de Pêcheux (1990), por meio da virada
linguística ou desafio semiótico (linguistc turn, semiotic challege). Mas, não basta somente
analisar o discurso, para Mota (2012) é preciso também, observar a realidade social, o plano de
fundo, para fazer a ligação dos fios dos significados culturais. E, ainda, considerar a
dependência do contrato de comunicação e do dispositivo, citado por Charaudeau (2012),
690
incluindo a mediação do sujeito, já que tem juízos preconcebidos (PENA, 2012).

Sendo assim, o discurso pode ser produzido de forma intencional, apoiado em um


posicionamento ideológico moldado pelos acontecimentos vividos socialmente e politicamente
em distintas fases do sujeito, que é relatado em forma de discurso. Para entender melhor,
Orlandi (2012, p. 20), baseado em Pêcheux (1990), explica que “[...] o discurso é a
materialidade específica da ideologia e a língua é a materialidade do discurso. Desse modo
temos a relação entre língua e ideologia afetando a constituição do sujeito e do sentido. Resta
dizer que sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo” e, como o sujeito é um ser
ideológico, naturalmente, dependendo do intuito do emprego da linguagem em seu
interdiscurso359, é lógico que é passível de ocorrer falhas na história.

359
Conjunto de formações discursivas, por sua vez, forma um complexo com dominante. Esse complexo com
dominante das formações discursivas é o que chamamos interdiscurso, que também está afetado pelo complexo
de formações ideológicas. (ORLANDI, 2012, p. 20)
ISSN: 2525-7501
É preciso esclarecer também, na opinião de Mota (2012, p. 208) que “[...] a notícia não
é a representação transparente dos fatos, mas a articulação discursiva destes mesmos fatos”, ou
seja, seria a prática discursiva dita por Foucault (1996) que traz o relato ‘articulado’ do factual
da notícia. Diante disso, a prática cultural pode perder algumas características significativas no
retrocesso (o tempo) necessário para a construção da história da memória (memória social ou
memória cultural), por interferências de certas práxis (o espaço).

Os teóricos Marshall McLuhan e Harold Innis já observaram os elementos tempo e


espaço em seus estudos da comunicação, assim como alguns historiadores como Jacques Le
Goff (1994), que focou especialmente no tempo, entendendo ser um fator essencial para separar
o passado do presente. Aliás, na recuperação de fatos passados, a concepção do tempo é um
procedimento primordial a ser respondido na operação histórica no presente, em nível
individual ou coletivo. Por isso, discernir o tempo presente do tempo passado permite
complementar uma terceira dimensão, o futuro (IBIDEM, 1994).

O tempo real é considerado como uma linha temporal e abstrata, que estabelece divisões
em anos, meses, dias, horas, minutos e segundos, envolvendo uma sequência de momentos 691
isolados e descontínuos. O tempo corresponde aos períodos necessários para assimilar as
imagens e transformar de modo permanente à memória, concebido em velocidades de tempo e
em espaços diferentes para cada grupo, tanto que o tempo no campo é diferente do da cidade,
já que cada grupo, de acordo com o perfil, realiza um número indeterminado de atividades, com
comportamentos distintos e consoantes com suas necessidades e tradições (HALBWACHS,
2006).

Então, o acontecimento que ocorre num espaço - contexto espacial - e num tempo -
rápido ou lento -, é transformado, de modo permanente, em memória coletiva. A reconstrução
das lembranças de determinado grupo é apoiada pelo tempo, porém, sendo influenciado direta
ou indiretamente pela sociedade em que vive. E, por isso que, para Halbwachs (2006), as
cidades se modificam no curso da história. Contudo, o tempo não permite a representatividade
da sucessão de acontecimentos na sua integralidade, isto é, a acumulação e guarda das imagens
- palavras, gestos - do passado que podem ser perdidas (IBIDEM, 2006).
ISSN: 2525-7501
Os registros desses acontecimentos tornam-se fontes de pesquisa caso apresentem valor
histórico e, com isto permitem (re)construir a memória coletiva e da história de qualquer
indivíduo ou grupo. A pesquisa é iniciada a partir da localização dos registros em instituições
de pesquisa (escrito) ou através de entrevistas (oral), que são selecionados pelo historiador,
examinando também as suas condições de conservação. Nos jornais, para a historicização da
fonte, devem ser observados aspectos envolvendo a materialidade dos impressos e dos suportes,
além do cumprimento de sua função social e, por isso “[...] requer ter em conta, portanto, as
condições técnicas de produção vigentes e a averiguação, dentre tudo que se dispunha, do que
foi escolhido e por quê. (LUCA, 2014, p. 132)

Cabe ao profissional que cuida do tratamento da matéria-prima informação, como o


arquivista, ocupar-se de três elementos nesta tarefa. O primeiro diz respeito aos motivos pelos
quais os materiais foram produzidos, o segundo sobre a preservação dos documentos, definidos
a partir da atribuição de valores em razão da apresentação de cunho oficial e cultural, enquanto
o terceiro diz respeito à custódia pelo órgão que criou os documentos modernos
(SCHELLENBERG, 2002).
692
Como a partir da escola positivista os documentos/monumentos passaram a servir como
elemento de testemunho escrito e oral, o interesse pela memória coletiva e história cresceu,
especialmente, com o surgimento da automação ou cibernação, que McLuhan (1964) afirmou
provocar a revolução científica. Le Goff (1994) também tinha este posicionamento quando
enfatizou a importância da intervenção do computador em pesquisas históricas, por meio de
replicação pela modalidade historiográfica, chamada de história quantitativa. O computador
permite, através do armazenamento e manuseio correto em bancos de dados, a constituição de
séries de fontes e abordagens necessárias para a (re)construção da história.

Deste modo, os documentos considerados como patrimônio cultural, incluindo os


jornais, que são recolhidos e custodiados, geralmente, por arquivos públicos, passam a ser
determinados pela memória coletiva como uma fonte de pesquisa à história. Salienta-se que,
tendo em vista os interesses mencionados anteriormente, é necessário adotar procedimentos
específicos para o acesso e a preservação dos documentos pelo profissional arquivista.

Capitulo III - Fontes e narrativas na visão dos arquivistas


ISSN: 2525-7501
O documento, cujo componente é o conteúdo informativo e o suporte, passa a ser
designado como patrimônio documental quando apresenta valor secundário e, por isso é
custodiado por arquivos históricos para fins de preservação. O documento é considerado uma
fonte de informação de interesse público, já que serve como prova de ações praticadas pelo
cidadão na sua vida civil, pessoal e profissional, isto é, em transações, operações e regras a
partir do relacionamento entre governantes e governados.

Em 1995, a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura


(UNESCO) iniciou um trabalho pioneiro que serviu de base para o desenvolvimento do
Programa Memória do Mundo, realizando com a sociedade um trabalho de conscientização da
necessidade de preservar e dar acesso ao patrimônio documental da humanidade, incluindo o
governo (público) e os setores industriais e comerciais (privado). O jornal já é reconhecido
como patrimônio documental, representando o patrimônio cultural mundial (EDMONDSON,
2002). Resultado das atividades-fim, o jornal é um produto informacional produzido por
entidades governamentais e não-governamentais, que para Schellenberg (2002, p. 43) também
“[...] sob determinadas circunstâncias pode ter ou adquirir um caráter arquivístico”
693
Os arquivos têm como função gerenciar, guardar, conservar e difundir as informações
contidas nos documentos produzidos, recebidos ou acumulados por entidades públicas ou
privadas. Durante todo o ciclo de vida dos documentos, chamado de continuum, o ajuizamento
dado aos documentos possibilita ao arquivista definir os que devem ser eliminados ou
preservados como patrimônio documental, como cumprimento do processo de avaliação e de
destinação (BELLOTTO, 2014). E, se de fato um arquivo estiver cumprindo suas funções,
disponibiliza aos cidadãos registros fidedignos que servem como fonte de informação aos
administradores, ao direito, à cidadania e à historiografia, oportuniza ao indivíduo “[...]
compreender a identidade cultural de sua comunidade e a evolução de sua história, e o
desenvolvimento das relações entre o cidadão e o Estado” (IBIDEM, 2014, p. 133)

A partir da invenção da eletricidade “[...] a informação é o bem de consumo mais


importante e que os produtos “sólidos” são meramente incidentais no movimento
informacional” (MCLUHAN, 1964, p. 234). Talvez, por isso, seja incontável o número de
fontes de informação disponibilizadas hoje, especialmente com o advento da internet, gerando
excessos de dados, que na opinião de Briggs e Burke (2004), pode omitir certos fatos como,
ISSN: 2525-7501
por exemplo, o da história da mídia. Por esse motivo, a mídia jornal, por ser um mosaico de
informações, necessita de uma análise crítica para verificar o real significado da sua natureza.

O historiador ou pesquisador social precisa ficar atento ao interesse e a intenção da


produção do documento e de sua preservação, pois o documento não é neutro. Portanto,
compete ao historiador fazer uma análise crítica a fim de examinar três elementos que
corporificam, contextualizam e atribuem identidade ao documento a fim de confirmar o real
interesse, tanto na produção, como na preservação. (SANTOS, 2003).

A partir da análise crítica do jornal como fonte de informação proposta por Santos
(2003), pode-se afirmar que no primeiro elemento, a autenticidade, a fonte de pesquisa pode
ser considerada verdadeira uma vez que é o produto final da informação como mercadoria
desenvolvida pelo mass media360. Porém, o discurso verdadeiro só existe se o sujeito
informador, a partir de uma situação de troca e numa determinada condição física, produzir
uma informação, que na concepção de Charaudeau (2012), seja totalmente transparente, neutra
ou factual. Todavia, é o receptor que deverá fazer a interpretação do discurso e, com isto
confirmar ou não a sua veracidade. 694
Já o segundo elemento, o de contextualização do documento para os elementos tempo
(cronológico) e lugar (espaço), cultura e autoria é significativo empregar métodos propostos
pela disciplina diplomática - clássica e moderna ou tipologia documental para a comprovação
de sua autenticidade e fidedignidade. Bellotto (2014) recomenda examinar a relação existente
entre a natureza jurídica do ato (fato) e a sua forma probatória, observando os caracteres -
intrínsecos e extrínsecos - como contexto, categoria e estrutura documental, porém sem atentar
para o conteúdo do documento. A diplomática moderna contempla o campo da arquivística, do
direito e do direito administrativo, estudando “[...] a gênese, as estruturas e a transmissão dos
documentos de arquivo, assim como as suas relações com os fatos/atos/ações neles
representados e com o seu produtor, de forma a identificar, avaliar e fazer conhecer a sua
natureza [...]” (IBIDEM, 2014, p. 412).

360
Sistemas organizados de produção, difusão e recepção de informação, geridos por empresas especializadas na
comunicação de massas e exploradas nos regimes concorrenciais, monopolísticas ou mistos. As empresas podem
ser privadas, públicas ou estatais.
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Logo, pode-se afirmar como autêntico, pois traz os atos (acontecimentos) em forma de
narrativas (discurso) criadas pela entidade produtora e seus atores. Outra questão a ser analisada
para fins de pesquisa é a sua origem (entidade produtora) e a sua utilização como documento
de valor secundário (histórico), desde o tratamento e a sua custódia, seja em arquivos,
bibliotecas ou centros de documentação. Sendo assim, partindo de sua origem, o jornal como
produto resultante da atividade-fim de uma empresa jornalística, é conceituado como
documento arquivístico no arquivo corrente e, se relevante ao pesquisador, é considerado um
patrimônio documental no arquivo permanente sendo, portanto, passível de ser utilizado como
fonte de pesquisa.

Por ser um patrimônio documental é crescente o emprego da fonte jornal em pesquisas


e, consequentemente, interesse de acumulação em arquivos históricos, sejam exemplares
antigos, recentes ou mesmo de empresas que encerraram suas atividades. Mas, em razão de suas
peculiaridades intrínsecas e extrínsecas é mantido como uma coleção, procedimento que
deveria ser dado pela biblioteca. O tratamento dado ao jornal nos arquivos, seguindo os
preceitos arquivísticos, é a organização por agrupamentos em série, dentro de determinado
fundo, considerando que o documento arquivístico tem como característica a unicidade
695
(BELLOTTO, 2014). Aliás, como o jornal não apresenta esta característica, talvez por isso seja
visto como coleção, sendo vinculada a hemeroteca, por exemplo, que é um setor especializado
em tratar diários e outras publicações periódicas, sejam em bibliotecas ou arquivos. Atualmente,
as Tecnologias de Comunicação e Informação (TCIs) auxiliam no seu tratamento, por meio do
emprego de ferramentas digitais, como catálogos on-line em portais eletrônicos, a fim de
facilitar a busca por materiais.

Ainda sobre o segundo elemento, referente à questão ideológica e cultural, Pena (2012)
diz que os jornalistas selecionam as notícias a partir de critérios próprios, que são impensáveis
em razão do meio cultural em que vivem. Além do mais, existe um interesse social na
construção de um discurso que é refletido no contrato de comunicação e é perceptível dentro
de um cenário que apresenta, segundo Charaudeau (2012, p. 67) em “[...] restrições de espaço,
de tempo, de relações, de palavras, no qual se encenam as trocas sociais e aquilo que constitui
o seu valor simbólico”. Deste modo, o discurso dá origem a um conhecimento que transparece
a experiência social, cultural civilizacional do jornalista, necessitando por isto do emprego de
ISSN: 2525-7501
instrumentos científicos e técnicos, como o cálculo, o raciocínio e a análise do discurso de
explicitação para a categorização – existencial, evenemencial e explicativa - desse
conhecimento (CHARAUDEAU, 2012)

A verificação do terceiro elemento depende do órgão produtor, que fornece a identidade


do documento em público, como o Diário Oficial da União e, em privado, como o Jornal A
Razão da cidade de Santa Maria, RS, mas, ambos apresentam o elemento da escrita (SANTOS,
2003). A propósito, Innis (2011) já reconhecia que o conhecimento mecanizado era uma fonte
de poder, como ocorre com o jornal.

Sendo assim, o jornal como fonte imprensa periódica permite recuperar imagens do
passado, cotidiano e mentalidades, como objeto de estudo específico, de tal modo que a própria
fonte (suporte e discurso) precisa ser preservada, quando declarada como patrimônio da cultura
por “[...] seu potencial de representação de públicos específicos, visões de mundo e valores
particulares da ampla segmentação social do país” (MARTINS, 2015, p. 296). Por isso, se de
interesse público por ser testemunho do passado, merece atenção especial no seu processamento
técnico como documento, seja arquivístico ou caracterizado como coleção, disponibilizando as 696
informações com o auxílio da automação como meio e veículo, como extensão do homem, já
apontado por McLuhan (1964), como facilitador na recuperação dos acontecimentos que
poderão ser transformado em história.

CONCLUSÃO

O jornal traz os acontecimentos diários reunidos em forma de narrativa, mas com


valores culturais e símbolos próprios, servindo de testemunho do relacionamento entre
governantes e governados no presente. E, como fonte de pesquisa contribui com a construção
do passado, trazendo memórias e histórias da humanidade, a partir de um traçado linear num
determinado tempo e espaço. Essa linearidade facilita a recuperação do fato no futuro, como
enfatizava Le Goff e, por isso o jornal é reconhecido como patrimônio cultural

Na construção da memória e da história, a linearidade talvez seja um atributo favorável


para o reconhecimento do jornal como fonte de pesquisa, somando as evidências em recortes
ISSN: 2525-7501
temporais, em determinado espaço, aparecendo aqui, a supremacia do global na opinião dos
teóricos Innis e McLuhan. Aliás, sobre estas inquietações, o historiador Le Goff também
considera que o tempo, chamado de calendário, num determinado espaço sofre transformações
e, por causa disto não é estático.

Mas, ao empregar o jornal como fonte de pesquisa deve-se considerar, primeiramente,


que é um produto resultado de determinada entidade, juntamente com os seus atores, cujos
recortes trazem acontecimentos do cotidiano, ilustrado por imagens e mentalidades, com uma
articulação discursiva idealizada e simbólica. A definição dos valores-notícia é influenciada
instintivamente pelos hábitos mentais dos membros da tribo jornalística. Eis aqui o mito, que
Barthes diz ser a fala compartilhada pelos seus membros em uma determinada cultura, por essa
razão, é preciso compreender as significações do discurso, através do estudo da semiologia,
investigando o significante, o significado e o signo.

Para a recuperação da história, o historiador deve compreender a forma-sujeito, que


Orlandi diz ser o agente das práticas sociais em seu discurso simbólico durante o ato de
comunicar. Inicialmente, deve conhecer, pelo menos, como o jornal foi produzido, se visa ou 697
não fins lucrativos, as circunstâncias e o propósito adotado nos discursos, já que por ter funções
de controle, na opinião de Foucault, podem ocorrer manipulações. Isto é, deve observar a fonte
de informação, a instância de transmissão (tratamento e acesso da informação) e o efeito de
decodificação da linguagem pelo receptor (CHARAUDEAU). Entretanto, para a comprovação
das fontes de informação utilizadas nas narrativas é imprescindível a consulta em documentos
arquivísticos, sendo que a maioria das fontes é encontrada em arquivos, com o auxílio, segundo
Bellotto, do ramo das ciências documentárias, chamada de diplomática, para a confirmação
como narrativa valida (autêntica).

Conclui-se, portanto, que a matéria-prima informação é o ponto comum numa


perspectiva das áreas da História, da Comunicação e da Arquivologia. O viés interdisciplinar
contribui, através de métodos científicos e técnicos, com a verificação da validade do jornal
como fonte de pesquisa, apoiado pela semiologia e diplomática. Com isso, a partir da consulta
em outras fontes de pesquisa - documentos/monumentos -, será possível recuperar fatos de um
presente distante, que hoje já é passado, para a construção da memória e história do futuro.
ISSN: 2525-7501
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2011.

LE GOFF, J.. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão. [et al.] 3ª ed. Campinas: SP Editora

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Jornalismo e Sociedade: teorias e metodologias. Florianópolis: Insular, 2012.

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http://bocc.unisinos.br/pag/sousa-jorge-pedro-elementos-teoria-pequisa-comunicacao-media.pdf
Acesso: 13 set 2016

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transnacional. 3ª ed. Vol. II. Florianópolis: Insular, 2013.

699
ISSN: 2525-7501
IMPRENSA PERIÓDICA MILITAR: A ESCOLA DE APRENDIZES MARINHEIROS
E O JORNAL “O MARUJO”361
Tatiany Moretto362

RESUMO
As Escolas de Aprendizes Marinheiros foram as instituições ligadas a Marinha brasileira com
o intuito de adestrar menores para o preenchimento dos arsenais e navios. Em Santa Catarina,
a Escola de Aprendizes Marinheiros (EAMSC) iniciou seus trabalhos em Desterro, atual
Florianópolis, no ano de 1857 e continua ativa até os dias de hoje. Ao longo desse período em
que centenas de menores receberam educação elementar e profissional para a vida do mar, a
Escola passou por reformas estruturais bem como organizacionais seguindo os decretos
baixados para as demais instituições criadas nas outras dezessete províncias do Império. Nos
primórdios do século XX, o jornal O Marujo (1907-1908) é criado a guisa de comemoração dos
50 anos da instituição e será o periódico responsável por veicular as discussões acerca das
principais reformas na Escola como também promoverá entre os aprendizes e a comunidade
externa o amor à Pátria, às gloriosas tradições e cultivará rigorosamente o espírito militar. Este
periódico é identificado como pertencente ao campo da Imprensa Periódica Militar e sua análise
se dá a partir da Nova História Militar, campos atuais na historiografia brasileira.

700
Palavras-chave: Nova História Militar; Imprensa Periódica Militar; Escola de Aprendizes
Marinheiros; O Marujo;

INTRODUÇÃO
A História Militar é um campo de estudo da história que vem se renovando
constantemente. No Brasil, muitos historiadores vêm se dedicando a pesquisas por conta da
interdisciplinaridade e multidisciplinaridade que a História Militar proporciona, além da
diversidade de fontes investigadas. Entre elas está a imprensa, em especial a impressa em
jornais e revistas. Levando em consideração as publicações, o contexto e o público a que foram

361
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
362
Mestranda do 4ª semestre do curso de Mestrado em História da Universidade de Passo Fundo – UPF.

E-mail: taty.mimi@hotmail.com.
ISSN: 2525-7501
destinadas, estes impressos podem ser classificados como conjunto da Imprensa Periódica
Militar.

Neste trabalho apresentamos parte da dissertação que vem sendo desenvolvida no curso
de Mestrado intitulada “As Companhias/Escolas de Aprendizes Marinheiros e os Periódicos
Militares: 1860-1908”, que tem por objetivo analisar as publicações veiculadas em quatro
periódicos militares da segunda metade do século XIX sobre as reformas dessas instituições.
De forma específica, abordamos aqui a Escola de Aprendizes Marinheiros de Santa Catarina
(EAMSC) por ser uma das instituições que divulgou através da mídia impressa com o jornal
“O Marujo” a missão que a instituição possuía.

2. A NOVA HISTÓRIA MILITAR E A IMPRENSA PERIÓDICA MILITAR


Ao problematizar o uso das fontes para análise e compreensão de momentos e contextos
relevantes para a historiografia, a Nova História Militar galgou e está entre os novos campos
da história, que vem transitando entre fronteiras e conceitos para a produção de novos saberes.
Seu desabrochar se deu nos anos 1980 quando se intensificaram os diálogos com a História
701
Social, História Política e a Antropologia.

Quando se denomina de “Nova História Militar” é natural fazer comparações ou ao


menos mencionar o que uma “Velha História Militar” costumava apresentar, assim como se
observa entre a historiografia historicista e a história-problema da Escola dos Annales. Desse
modo, podemos considerar como velha ou tradicional aquela em que se estudavam os grandes
oficiais do Exército e da Marinha em vista da produção de biografias, o estudo episódico das
guerras e estratégias militares, armamentos e revoltas. Contudo, as rupturas e continuidades
desse mesmo campo da história continuam em discussão na medida em que novas fontes e
abordagem se aproximam.

Segundo Ronaldo Vainfas “a história militar nasceu, no Ocidente, no coração da


própria história, enquanto crônica testemunhal, além de entrelaçada com a história política”. A
guerra e a política ocuparam posição de destaque desde que a história se consolidou como
ciência ainda no século XIX, em especial quando se pretendia fazer estudos mais amplos de
“história nacional”. Vainfas considera o historiador alemão Carl von Clausewitz (1780-1831)
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o responsável por incluir a estratégia militar no campo da filosofia política e “lançar a história
militar no palco da história por considerar que a guerra exprimia, mais do que qualquer outra
ação humana, a função da política como ‘motor da história’”. Seu modelo de análise serviu para
firmar a história militar como um apêndice da história política e foi seguido pela maioria dos
historiadores que se dedicavam ao estudo das guerras naquele período (SOARES; VAINFAS,
2012, p. 123).

No Oitocentos, os grandes historiadores não foram essencialmente historiadores


militares, pois não deram à guerra a atenção de “motor da história” como também não elegeram
a história política como ponto central em seus estudos, já que ela apareceu com força somente
nos escritos de história nacional e nos compêndios de história geral. Como exemplo, podemos
citar as obras de Jules Michelet: História da Revolução Francesa (1848); Leopold Von Rancke:
História dos papas (1834-36); e Fustel de Coulanges: A cidade antiga (1864).

No início do século seguinte, o interesse pela pesquisa no campo da história militar


diminuiu ainda mais. E, encontra-se ai uma verdadeira contradição, pois no período em que
estão presentes duas Guerras Mundiais – 1914 a 1918 e 1939 a 1945 – caracterizadas pelo 702
avanço tecnológico do armamento, inclusive com armas de destruição em massa, percebe-se
um distanciamento entre a produção historiográfica e o contexto em que se vivia. Para Vainfas,
o “divórcio” entre o mundo acadêmico e a “velha história militar” se deu principalmente pelas
propostas da Escola dos Annales (1930) e da historiografia marxista do pós Segunda Guerra
Mundial. Entre os marxistas, a história militar não foi substancial: os ingleses Eric Hobsbawm
e Eduard P. Thompson, em suma, optaram por ressaltar questões políticas em escala global e
trabalhar com a questão cultural do cotidiano e das classes operárias.

Nos últimos 50 anos, podemos observar o avanço das pesquisas sobre as Forças
Armadas também pelo viés das ciências sociais. Sociólogos e cientistas políticos analisaram
questões centrais: as ações do exército e seu impacto na sociedade em que estavam inseridas e
a identidade social do militar, além da opinião pública sobre as intervenções armadas.
Sobretudo, a tendência em direcionar o estudo das Forças Armadas e suas relações com a
sociedade surgiu nos anos 1970, na América do Norte. Naquele período, houve uma
preocupação em agrupar os estudos de historiadores profissionais e civis às perspectivas da
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história militar tradicional, medida que objetivava buscar na história lições de vida para
conflitos futuros.

A nova história militar surgiu, assim, em uma série de conferências e seminários na


Escola Superior do Exército americano, cujo objetivo principal era tratar a história
militar como um campo mais amplo, a partir da ideia “do militar como uma projeção
da sociedade (...), do relacionamento do militar com o Estado, das instituições
militares e do pensamento militar”(CASTRO; KRAAY; IZECKSOHN apud
NASCIMENTO, 2015, p.54.)

Ademais, foi nos Estados Unidos da América que um dos principais teóricos sobre a
estratégia naval, Alfred Thayer Mahan abriu caminhos sobre a história naval. Tendo em vista
o horizonte que a Nova História Militar vem expandindo através das pesquisas, acreditamos
que o conceito de Poder Naval no entendimento de Mahan agrega-se as discussões deste campo,
na medida em que “la historia del Poder Naval, a la vez que abarca en su ancho campo todo o

703
lo que tende a hacer un Pueblo grande en el mar y por el mar, es en gran parte una historia
militar”.(MAHAN. 1946, p. 17).

No Brasil, as pesquisas referentes aos militares surgiram pelo viés e abordagem


tradicionais e também das suas ações enquanto interventores políticos. Sejam durante a
Proclamação da República ou na Ditadura Militar, os pesquisadores, não só historiadores,
voltaram-se aos militares enquanto atores políticos mais do que enquanto integrantes de uma
classe e suas relações com a sociedade. Conforme Nascimento,

até o início da ditadura civil-militar, a maioria das obras históricas e literárias sobre
o Exército brasileiro restringia-se, em sua maioria, a temáticas memorialistas. A
maioria dos livros era escrita por militares, e ligava-se ainda a uma concepção de
história episódica militar, dando ênfase às narrativas de batalhas e memórias de
serviço de militares já reformados (NASCIMENTO, 2015, p. 16).

Os primeiros passos para a construção de um cenário que comtemplava o estudos


dessas relações foram iniciados nos anos 2000 pelos trabalhos de Celso Castro, Vitor Izeckson
e Hendrikk Kraay no lançamento do livro “Nova História Militar Brasileira”. Contudo, nos
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anos de 1970, José Murilo de Carvalho, Edmundo Campos Coelho e Ricardo Salles363
apresentavam em suas pesquisas perspectivas de análise levando em consideração a relação
entre o militar e a sociedade.

Além de realizar novas abordagens para temas clássicos, a Nova História Militar tem se
destacado por apresentar novos objetos de estudo através de fontes que até pouco tempo não
haviam sido exploradas. Nesse processo trazemos a luz a transformação da imprensa, até então
considerada dispensável ao trabalho historiográfico, como objeto de relevância em meio a nova
organização e estabelecimento das fontes de pesquisa.

No entanto, a utilização deste tipo de material enquanto fonte sofreu com o peso da
tradição, que resistia na busca pela verdade através da documentação oficial. Conforme Tania
de Luca seria impreterível à construção historiográfica as “fontes marcadas pela objetividade,
neutralidade, fidedignidade, credibilidade, além de suficientemente distanciadas de seu próprio
tempo. Estabeleceu-se uma hierarquia qualitativa dos documentos para a qual o especialista
deveria estar atento” (LUCA, 2010, p.112).

No contexto das novas práticas adotadas para a produção historiográfica promovida pela
704
Escola dos Annales em meados de 1930, está a perspectiva da history from below ou
“perspectiva dos vencidos” que ampliou os horizontes da história social e cultural e que de
forma não intencional fez com que se tornasse necessária a busca por fontes que registrassem
o cotidiano, alterando a própria concepção de documento. Contudo,

os jornais pareciam pouco adequados para a recuperação do passado, uma vez que
essas ‘enciclopédias do cotidiano’ continham registros fragmentários do presente
realizados sob o influxo de interesses, compromissos e paixões. Em vez de permitirem
captar o ocorrido dele, forneciam imagens parciais, distorcidas e subjetivas. (LUCA,
2010, p.112).

363
Dentre muitas, destacamos as seguintes obras de cada autor: CARVALHO, José Murilo de. A construção da
ordem: a elite colonial. Teatro das sombras: a política imperial. 5ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2010; COELHO, Edmundo Campos. Em busca de identidade: o exército e a política na sociedade brasileira. Rio
de Janeiro: Record, 1976; SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do Exército.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
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Compreendemos desta forma que cabe ao historiador selecionar e relacionar as fontes


advindas da imprensa com o tempo em que foram produzidas, compreender e identificar os
discursos nela veiculados a partir de seu contexto. Ao utilizar este tipo de fonte o historiador
deve atentar-se aos discursos que permeiam as publicações, as subjetividades e a intenção
destas comunicações. Ademais, outro obstáculo para a legitimar a imprensa, neste caso a
impressa, era o uso da linguagem e dos símbolos nas publicações.

Ora, enquanto veículo de ideias e informações, a linguagem escrita traduz um


universo simbólico – uma dimensão abstrata – que abarba signos, símbolos,
conteúdos, mensagens, sentidos, construção argumentativa, entre outros
pressupostos. Sua decodificação impõe, ainda, o conhecimento do contexto muito
preciso que o produziu ou fez existir; demanda, portanto, um trabalho de especialistas
ou a crítica da erudição (SAMARA; TUPY, 2010, p.121).

Conforme Maria Helena Capelato a imprensa apresenta-se como um manancial dos


mais férteis para o conhecimento do passado, pois “possibilita ao historiador acompanhar o 705
percurso dos homens através dos tempos”(CALONGA, 2012, p.13). Sobre a imprensa periódica,
a historiadora ressalta que

o jornal, como afirma Wilhelm Bauer, é uma verdadeira mina de conhecimento: fonte
de sua própria história e das situações mais diversas; meio de expressão de ideias e
depósito de cultura. Nele encontramos dados sobre as sociedades, seus usos e
costumes, informes sobre questões econômicas (OLIVEIRA, 2011, p. 128).

No Brasil, ainda em 1960 era pequeno o número de pesquisadores que se valiam de


periódicos como fontes de pesquisa para a produção historiográfica. Segundo o historiador Jean
Glénisson, os jornais são revestidos de uma “complexidade desanimadora”, pois mesmo
levando em consideração o público ao qual era destinado, as relações com o governo, a
publicidade, é difícil saber sob quais influências as matérias eram escritas e publicadas, o que
abria espaço para o questionamento acerca da objetividade do jornal enquanto fonte. Dessa
forma, de início sua utilização servia para a confirmação de dados de natureza econômica,
ISSN: 2525-7501
demográfica, caracterizando-o como uma fonte secundária (GLÉNISSON apud LUCA, 2010,
p. 116.)

Contudo, historiadores brasileiros como Gilberto Freyre e Emília Viotti da Costa não
dispensavam a ida aos jornais para a contribuição de suas pesquisas, as quais resultaram em
produções riquíssimas sobre a sociedade brasileira do século XIX e a história política do país.

Desde que tenha sido produzido, a utilização da imprensa e dos periódicos enquanto
fonte é possível para análise em todos os períodos da história do Brasil, pois nas palavras de
Martins e Luca

a nação brasileira nasce e cresce com a imprensa. Uma explica a outra. Amadurecem
juntas. Os primeiros periódicos iriam assistir à transformação da Colônia em Império
e participar intensamente do processo. A imprensa é, a um só tempo, objeto e sujeito
da história brasileira. Tem certidão de nascimento lavrada em 1808, mas também é
veículo para a reconstrução do passado (MARTINS; LUCA, 2013, p.8).

706
Dentre as dimensões em que a pesquisa em periódicos tem relevância para a produção
historiográfica, destacamos a “descoberta” da imprensa militar como objeto de análise para a
compreensão de horizontes ainda pouco explorados na História Militar brasileira. Segundo
Nascimento, embora exista vasta produção acadêmica no que tange à imprensa como uma fonte
ou enquanto objeto, “poucas pesquisas se dedicam ao estudo de jornais e periódicos militares –
fonte rica para a melhor compreensão da temática militar” (NASCIMENTO, 2015, p.17). Dessa
forma, é relevante considerar a existência de uma imprensa militar no Brasil durante o século
XIX para o desenvolvimento de trabalhos sobre a instituição militar no país.

A Nova História Militar bem como a nova geração de historiadores brasileiros vem
realizando uma abordagem interdisciplinar em relação a utilização dos periódicos, a
comunicação e a produção historiográfica. Desta forma, o uso do jornal/revista transcende a
mera descrição das informações, pois se faz necessária a problematização dos discursos através
da análise dos conteúdos que o periódico publica. Neste sentido, “os periódicos militares podem
ser entendidos como uma arma que demarca territórios políticos, instaura diretrizes para a
ISSN: 2525-7501
construção da força armada, da defesa nacional e da própria nação a partir de moralidades e
princípios nacionalistas e patrióticos, em oposição aos civis” (ARIAS NETO, 2013, p.62).

Arias Neto fala em “descoberta” de uma imprensa militar, mas não se propõe a
apresentar uma novidade e sim, o “sentido da tomada de consciência da complexidade dos
processos sociais e da emoção do encontro com aquelas vozes de outros tempos, com as quais
passamos a travar um diálogo mais amplo, mais instigante e mais rico” (ARIAS NETO, 2013,
p.58).

Para o autor, a imprensa militar trata

de periódicos inseridos na produção editorial de caráter ilustrado-científico no


Brasil, bem como nos quadros de um debate internacional sobre ciência e tecnologia
aplicadas à guerra, em curso desde final do século XIX e início do século XX, quando
as transformações adquiriram grandes proporções. (...) Até o momento, a imprensa
militar não foi tematizada como tal. De fato, no conjunto da produção sobre imprensa
no século XIX não se categoriza uma imprensa militar, assim como também os
estudiosos dos militares não se debruçaram sobre estes documentos tomando-os
como objeto de análise e não apenas como fontes (ARIAS NETO, 2013, p.60). 707
É nesse sentido que Nascimento desenvolveu sua recente tese de doutoramento sobre a
imprensa periódica do século XIX com foco na modernização do Exército brasileiro entre 1850
e 1881. Além de fazer uso de periódicos militares para realizar sua pesquisa, a historiadora
também se preocupou em problematizar como Arias Neto o que de fato é e o que não é a
imprensa militar. Para Nascimento, “a imprensa militar não pode ser caracterizada como um
efetivo espaço de oposição política ao governo imperial, mas sim, como espaço de construção
de um discurso definidor das características militares, durante o século XIX” (NASCIMENTO,
2015, p.17). Segundo Nascimento, o historiador militar que almeja encontrar respostas as suas
indagações nas páginas dos periódicos militares precisa problematizar este objeto de estudo
questionando

em primeiro lugar, o que é esta imprensa militar? Qual o lugar de produção desta
imprensa e seus objetivos? Quais os eixos principais de discussão desta imprensa? E
de que forma os eventos políticos influíram na produção de periódicos militares e nos
assuntos neles discutidos?(NASCIMENTO, 2015, p.18).
ISSN: 2525-7501

A autora distingue em sua pesquisa duas fases da imprensa periódica militar brasileira:
a primeira estende-se do período de intensificação da imprensa periódica no Primeiro Reinado
até o final dos anos 1840 e se caracteriza principalmente pela falta de periodicidade e de coesão
nos discursos influenciados primeiro pelas revoltas regenciais, e, em seguida, pelas revoltas
liberais, após a maioridade de Pedro II; na segunda fase, observa-se a consolidação da
existência da imprensa periódica militar, a partir de 1850, com o lançamento da Revista
Marítima Brasileira. Deste período em diante, existe a preocupação dos militares dedicados à
imprensa veicular debates específicos da classe. Conforme Fernanda Nascimento, este é “um
período profícuo para a imprensa militar, com a identificação de aproximadamente 27 jornais,
entre 1851 e 1899, que se definem como órgãos da classe militar” (NASCIMENTO, 2015,
p.24).

3. EAMSC: ESCOLA DE APRENDIZES MARINHEIROS DE SANTA


CATARINA 708
As Escolas de Aprendizes Marinheiros foram instituições criadas no Brasil a partir
do ano de 1840 com o objetivo único de suprir a Marinha de mão de obra qualificada.
Contudo, a formação desses profissionais alistados ainda na infância passou por um
complexo emaranhado de interesses político-sociais que influenciou, através da educação
que recebiam, a sua formação enquanto cidadãos brasileiros.

Fazendo parte de um conjunto de Companhias instituídas na Corte e em dezessete


províncias durante o período de 1840 a 1875, é no trigésimo sexto ano da Independência e do
Império, 1857, o Imperador cria a Companhia de Aprendizes Marinheiros na Província de Santa
Catarina através do Decreto nº 2.003 de 24 de Outubro de 1857.

Na instituição eram alistados em grande maioria órfãos e desvalidos, filhos de mães


amancebadas e pais viúvos. Na falta de pais e tutores os menores também poderiam ser
encaminhados por Chefes de Polícia e Juízes de Órfãos. A instituição era vista como um dos
únicos meios de educação e profissionalização para os menores desfavorecidos. Contudo, por
ser uma instituição militar, não só a EAMSC como também as demais Escolas de Aprendizes
ISSN: 2525-7501
brasileiras possuíam uma visão social que as comparava á reformatórios para menores
incivilizados. As mães chegavam a ameaçar os filhos com o alistamento por falta de bom
comportamento.

Desde a sua criação, a EAMSC passou por diversas reformas estruturais e


organizacionais que visavam a eficácia na formação dos aprendizes, sendo as mais substancias
nos anos de 1885 e 1906. Tais reformas eram discutidas nas sessões da Câmara dos Deputados
e Conselho Naval, nas quais se procurava identificar as principais dificuldades em preencher
os quadros das instituições de instrução com o menor investimento possível.
Dentre as principais dificuldades encontradas pelas Escolas para a formação de
marinheiros estava a ineficácia da gestão e dos recursos aplicados em todos os setores da
instituição. A falta de material e espaço físico adequado para o ensino e prática dos aprendizes
e o número insuficiente de instrutores para o ensino figuravam entre estas dificuldades. O
resultado, ano após ano, foi da baixa qualidade do ensino à alta taxa de deserção dos menores.
Mesmo com o pagamento do prêmio aos pais e tutores no ato do alistamento e a formação do
pecúlio do aprendiz ao longo de sua permanência na Escola, não eram o suficiente para
completar a lotação das unidades. Contudo, uma das práticas adotadas para melhorar a visão
709
social da instituição e elevar o número de aprendizes foi a criação do jornal “O Marujo” na
EAMSC.

4. O MARUJO: ÓRGÃO DA ESCOLA DE APRENDIZES MARINHEIROS DE


SANTA CATARINA
Em comemoração aos 50 anos de fundação da Escola de Aprendizes Marinheiros de
Santa Catarina em 24 de outubro de 1857, localizada em Desterro, atualmente Florianópolis,
surge o jornal O Marujo. Impresso na Livraria Moderna, Praça 15 de Novembro nº 27 na capital,
promovia a divulgação de informações da instituição em forma de notícias. Normas,
regulamentos e artigos escritos por oficiais e alunos eram publicados no jornal. O Marujo não
era comercializado, não havendo a possibilidade de assina-lo, pois é classificado como órgão
pertencente à instituição para comunicação de assuntos internos ou de conteúdos considerados
pela Escola como de interesse para o público externo.
ISSN: 2525-7501
Na primeira edição do jornal datada de 24 de outubro de 1907, estão descritos
detalhadamente as disposições do decreto de criação da EAMSC e o regulamento nacional para
funcionamento das instituições de ensino da Marinha. O periódico não apresenta um plano
estratégico para as publicações que veiculará. No entanto, além das informações oficiais, O
Marujo traz publicações sobre noções de disciplina, religiosidade, curiosidades sobre o corpo
humano, transferências de alunos e oficiais pra outras Escolas ou Corpo de Imperiais
Marinheiros, baixas e notas de falecimento de aprendizes e oficiais, pequenas lições sobre
armamentos e tecnologia naval, seguindo a tendência internacional da divulgação científica nos
periódicos de interesse militar. Havia um noticiário naval e de notícias do exterior, também
dedicadas às inovações tecnológicas da esquadra brasileira em comparação as europeias, norte-
americana e, em especial, a da vizinha Argentina.

Além das publicações acerca do poder naval das nações vizinhas, a caracterização da
nação enquanto pátria-mãe dos cidadãos brasileiros é recorrente nas páginas do jornal O
Marujo. Para identificar-se enquanto sujeito pertencente à pátria-mãe e tributar à ela o serviço
e gratidão, a Marinha e, em especial, as Escolas de Aprendizes são consideradas instrumentos
de salvação dos menores abandonados e desvalidos que em grande maioria preencheram os
710
quadros da instituição de Florianópolis e de todo o Brasil. A instrução para civilidade dos
menores estava presente de maneira subliminar no processo de formação ao qual eram
destinados. Porém, existe um atrito entre a Escola e o judiciário local para o encaminhamento
desses menores à instituição:

Vagueiam pelas ruas da capital, verdadeiros bandos de crianças, atirados à


liberdade de ação, sem que uma mão protetora venha livrá-los de um futuro o pior
possível, filho da vadiagem corrupta e da indiferença criminosa! Quantas vezes temos
apelado para a segurança de uma vida regular, de futuro, aqui nesta Escola,
estabelecida há 50 anos, a qual devia ser aproveitada para os filhos desfavorecidos
da fortuna, pelo Estado pobre que pouco tem de arrimo?

Para quem apelar? Para a Polícia? Esta não tem competência, ação direta. Para os
pais? Estes tem horror a esta instituição tão sabiamente criada, e chegam a ameaçar
os filhos com o nome da Escola de Aprendizes quando em faltas cometidas!

Para o Juiz de Órfãos?


ISSN: 2525-7501
Sim, é para ele a quem temos de apelar, no desempenho sagrado do seu cargo, pai
dessa infância desamparada, a quem a Lei um dia, qual Mãe soluçante foi entrega-
los, pedindo-lhe o direito a vida honrada, a salvação da miséria e do crime.

Sua senhoria, porém, tem se mostrado indiferente ao apelo dessa Mãe, a Caridade, e
ai está a Marinha Nacional, um dos esteios da santa integridade da Pátria,
necessitando de defensores que na expectativa de sentinelas avançadas, velem por
ela, confiante para que caminhe na estrada da paz, do progresso, que é a sua vida.
(O Marujo, 1907, nº2, p.1)

No entanto, quando havia participação dos Juízes e de autoridades policiais o periódico


prontamente registrava seus agradecimentos:

O Marujo penhorado muito agradece o ilustre magistrado Dr. Antonio W. Navarro


Lins devotado Juiz de Direito de Itajaí, pelo muito que tem feito a esta Escola,
enviando diversas turma de menores.

Esperamos que muito em breve teremos a satisfação de tornar extensivos os nossos


agradecimentos aos demais magistrados das comarcas do nosso Estado.

Ao digno Prefeito de Policia da Capital e ao incansável Comissário os nossos


agradecimentos pelas prontas e eficazes providencias tomadas a pedido do comando 711
deste estabelecimento (O Marujo, 1907, nº2, p.3).

O digno e incansável Juiz de Direito de Itajaí continua a patentear o seu acendrado


amor á pátria, enviando para este estabelecimento de instrução pequenos desvalidos
da sorte.

Oxalá, que todos assim procedessem... (O Marujo, 1907, nº 3, pg. 4).

O jornal O Marujo já foi explorado enquanto fonte na dissertação de mestrado em


educação de Gisele Machado364. Para a autora, apesar de ser uma ferramenta menos formal de

364
Ao longo desta pesquisa, a autora busca discutir as políticas higienistas atreladas a formação do Estado
Nacional pelo advento da República. No contexto de uma reforma social através da difusão da educação, a EAMSC
é identificada pela autora como uma instituição que assume esse discurso de transformação e inserção dos menos
favorecidos. Em semelhante perspectiva se deu a pesquisa “A Escola de Aprendizes Marinheiros e as crianças
desvalidas: Desterro 1857-1889” de Velor Pereira Carpes da Silva (UFSC), 2002. Nesta produção a autora
pretende responder algumas questões sobre a efetividade que a escola apresentou a respeito da tentativa de (re)
enquadramento destas crianças no espaço público de modo que não mais configurassem uma ameaça de civilidade
que a elite vinha delineando no período deste estudo. Para tanto, analisa e insere a Escola como instituição ativa
de um projeto civilizatório em meio ao processo de construção da nação.
ISSN: 2525-7501
divulgação das normas e regulamentos da Escola, as publicações seguiam uma linha que
ressaltava o caráter simbólico da instituição (MACHADO, 2007). No que diz respeito ao
civismo, Machado o classifica como a “coluna vertebral” deste instrumento de comunicação ao
trazer a publicação do senhor imediato Capitão-de-Mar-e-Guerra Coutinho:

se nos comprometermos do nosso dever de homem de bem faremos sempre o


necessário para bem servir a família servindo à pátria e a humanidade.
Comprometemo-nos, pois, todos nós, desde o mais velho ao mais novo de que
devemos só estar parados para dormir e comer e além disso, (como lema), devemos
estimarmos como irmãos, filhos de uma mesma mãe – á Pátria (O Marujo, 1907, nº
3, p. 3).

O jornal que circulava também fora dos muros da Escola e servia também como
propaganda e divulgação dos ideais da instituição, durou menos de 2 anos. Estão disponíveis
de forma digitalizada na Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina (BPESC) 13

712
exemplares datados de 24 de outubro de 1907 a 12 de outubro de 1908.

A extinção do jornal não está clara, apenas a transferência para o 1° Distrito Naval, no
Rio de Janeiro, do militar responsável pela chefia da edição, o Primeiro-Tenente Lucas
Alexandre Boiteux a quem todas as correspondências do jornal deveriam ser encaminhadas.
Boiteux possui uma longa trajetória na Marinha brasileira e apresenta-se como um intelectual
dono de um conhecimento profundo sobre a Marinha Brasileira.

Apesar do curto período em que se manteve em circulação, o jornal O Marujo se


mostrou uma ferramenta que anunciava uma instituição capaz de disciplinar, normatizar e
estabelecer hábitos compatíveis às ambições do desenvolvimento urbano e social daquela
época. O foco do jornal também era de aumentar o número de alistamentos, pois a alfabetização
era condição fundamental “para ser cidadão politicamente participante da República brasileira”
ou, de todo modo seria “necessário criar personagens que pela profissão, hábitos e controle
mantivessem tal governo” (MACHADO, 2007, p. 80).

As publicações do periódico são em grande maioria assinadas por seus autores.


Identificamos como os mais frequentes o Imediato da Escola Manuel C. G. Coutinho e o
ISSN: 2525-7501
Capitão Tenente Appio Torquato Fernandes do Couto, ambos contribuem com escrevendo
sobre lições de artilharia e tecnologias navais, bem como o avanço que a instrução das
instituições da Marinha proporciona ao desenvolvimento da nação brasileira. Para as
publicações não assinadas, acreditamos que grande O Marujo parte tenha sido redigida pelo
editor chefe do jornal, o militar Lucas Alexandre Boiteux.

Destacamos o jornal O Marujo como pertencente a Imprensa Periódica Militar por


veicular publicações de interesse da classe militar, ser redigido e editado por militares e ser
considerado um órgão da Escola de Aprendizes Marinheiros de Santa Catarina, uma instituição
militar de instrução da Marinha do Brasil.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A abertura e o trânsito entre as disciplinas da sociologia história e antropologia têm
favorecido e ampliado as possibilidades de investigação e de novos debates no campo da

713
história militar. Observamos na atualidade a criação e a atividade de grupos de pesquisa,
simpósios e publicações que unem características dessa “nova história” na perspectiva de
ampliar os conhecimentos a cerca de temas já debatidos, mas que a partir de novas fontes e suas
problematizações tem contribuído para novas aprendizagens.

Sendo assim, consideramos a utilização das fontes impressas para a produção da


historiografia militar de grande importância, pois a utilização dos periódicos ainda encontra
resistência ou em alguns casos, é relegada a segundo plano. As pesquisas e os historiadores
brevemente citados neste trabalho nos revelam que os desafios ainda são grandes,
principalmente em relação ao acesso e a própria metodologia que se aplica a utilização da
imprensa.

É nesse sentido que inserimos o estudo das Escolas de Aprendizes Marinheiros na


perspectiva de análise da Nova História Militar. A pesquisa aqui apresentada e que ainda está
em desenvolvimento é apenas um dos caminhos possíveis, pois tais instituições apresentam
vasta quantidade de fontes primárias ainda pouco exploradas e que podem ser investigadas
partindo de diferentes problemas.
ISSN: 2525-7501

6. REFERÊNCIAS
ARIAS NETO, José Miguel. Imprensa Militar no século XIX: um balanço preliminar. In:
Navigator, v. 18, p. 55-64, 2013.

CALONGA, Maurilio Dantielly. O jornal e suas representações: objeto ou fonte da história?


Comunicação & Mercado/UNIGRAN - Dourados - MS, vol. 01, n. 02 – edição especial, p. 79-
87, nov. 2012.

CASTRO, Celso; KRAAY, Hendrik; IZECKSOHN, Vitor (orgs.). Nova história militar
brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos In: Fontes Históricas.
PINSKY, Carla Bassanezi (org.). 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2010.

MACHADO, Gisele. Escreveu, não leu, o pau comeu: A Escola de Aprendizes Marinheiros de
Santa Catarina (1889 -1930). Dissertação (Mestrado em Educação), UFSC, Florianópolis 2007.

MAHAN, Alfred Thayer. La influencia del Poder Naval en la Historia. Buenos Aires: Editorial
714
Partenon 1946.

MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania de. História da Imprensa no Brasil (Orgs.). São Paulo:
Contexto, 2013.

NASCIMENTO, Fernanda de Santos. A imprensa periódica militar no século XIX: política e


modernização no exército brasileiro (1850-1881). Tese (Doutorado em História) - Programa
de Pós-graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2015.

OLIVEIRA, Rodrigo Santos de. A relação entre a história e a imprensa, breve história da
imprensa e as origens da imprensa no Brasil (1808-1930). Historiæ, Rio Grande, 2 (3): 125-
142, 2011.

SAMARA, Eni de Mesquita; TUPY, Ismênia S. Silveira T. História e Documento: documento


e metodologia da pesquisa. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.
ISSN: 2525-7501
SOARES, Luís Carlos; VAINFAS, Ronaldo. Nova História Militar. In: Novos Domínios da
História. Cardoso, Ciro F.; Vainfas, Ronaldo (orgs.) – Rio de Janeiro, Elsevier, 2012.

Periódicos:

Jornal O Marujo, 1907, nº1, p.1.

Jornal O Marujo, 1907, nº2, p.1

Jornal O Marujo, 1907, nº3, p. 3 e 4.

715
ISSN: 2525-7501
FAMÍLIAS PIPPI E PIGATTO: MEMÓRIAS CONSTRUÍDAS*365

Liriana Zanon Stefanello**366

RESUMO

O presente trabalho expõe de forma sintética o estudo que abordou a trajetória das
famílias Pippi e Pigatto da Itália ao Brasil, analisando quais os mecanismos e dinâmicas usados
para a inserção dessas famílias na sociedade sul-rio-grandense e como essas vêm mantendo as
suas memórias. A elaboração da memória é uma construção social, então, selecionar o que deve
ser lembrado e o que se relega ao esquecimento é parte de todo e qualquer processo de
construção de memória e de identidade. E mais que isso, compreendendo o indivíduo como ator
social responsável pela sua história, os documentos familiares tornam-se patrimônio de uma
comunidade quando a representam, uma vez que carregam consigo uma carga simbólica de
representar, no presente, o passado de cada família. A construção dessa memória que chamamos
716
de oficial e pública ocorreu através da criação do Centro de Pesquisas Genealógicas (CPG) de
Nova Palma, organizado pelo Padre Luiz Sponchiado (01/06/1984), objetivando a preservação
da memória deste grupo imigrante. A família Pippi, entretanto, reelaborou suas memórias de
forma particular, ao construir outra memória de si. Criou um acervo privado, dando a ler outra
história/memória familiar, que, em última instância, tencionou a memória oficial organizada no
CPG. Já os documentos da família Pigatto, guardados no CPG, representam e são aceitos como
a sua memória na Quarta Colônia de Imigração Italiana do Rio Grande do Sul. Além desse
caráter memorial, todos os documentos são parte do patrimônio cultural desta comunidade, quer
os guardados no acervo do CPG, quer no acervo particular da Sra. Maria Neli Donatto Pippi.
Juntos, eles fazem parte desta busca dos indivíduos pela identificação e pela afirmação de uma
memória familiar. Cada documento “escolhido” torna-se, então, um símbolo de rememoração,
que objetiva reconstruir a trajetória, a história e a memória familiar.

365
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
366
** Doutora, professora no Colégio Franciscano Sant`Anna, lirianazs@yahoo.com.br.
ISSN: 2525-7501

Palavras-chave: Memórias familiares, família Pippi, família Pigatto, imigração italiana,


Quarta Colônia.

INTRODUÇÃO

Entender como se dava a construção da memória e da história familiar ao longo do


tempo, tanto a elaborada e “guardada” no Centro de Pesquisas Genealógicas (CPG) de Nova
Palma, quanto a memória de si e sobre si elaborada pelos imigrantes, por e para seus
descendentes, é o objetivo do trabalho367, que ora apresentamos.

Ao observar as relações estabelecidas entre o Padre Luiz Sponchiado, criador do


referido acervo e seu diretor (até sua morte), e as famílias de Nova Palma, percebemos que
estas se davam de diferentes maneiras, com maior ou menor afinidade, tanto politicamente
quanto socialmente. Isto nos intrigou, pois conhecendo sua história, não percebíamos com
clareza até onde ia o papel que o Pe. Luiz Sponchiado desempenhava nesse contexto. 717
Na busca desta e de outras respostas correlatas, construímos a tese de doutorado que se
propôs analisar a construção das memórias familiares de imigrantes na região da Quarta Colônia
Imperial de Imigração Italiana do Rio Grande do Sul - Brasil, a partir da análise da
documentação organizada no CPG e na documentação particular e inédita da família Pippi. Para
tanto, partimos das seguintes questões: a partir das trajetórias das famílias Pippi e Pigatto, quais
as estratégias e redes relacionais que as levaram a alcançar prestígio e poder na Quarta Colônia;
quais os vínculos estabelecidos ou a ausência deles com o Padre Luiz e que estratégias foram
utilizadas para a construção de suas memórias familiares.

367
Este artigo é uma síntese da tese de doutorado em História e, em “Lingue, Culture e Società Moderne”, na
modalidade Cotutela, da autora, intitulada: Memórias Familiares: Um Estudo Da Imigração Italiana Na Quarta
Colônia Imperial (Rio Grande Do Sul, Brasil), defendida na Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS/RS) e na Università Ca`Foscari di Venezia/ Itália em 2015, sob a orientação da Profª Drª Eloisa
Helena Capovilla da Luz Ramos e do Profº Drº Luis Fernando Beneduzi. No período da cotutela, a pesquisa foi
desenvolvida na Itália, na Universidade acima mencionada, com o financiamento da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), através do Programa de Doutorado Sanduíche no
Exterior. Pesquisa esta realizada em diversos acervos das Regiões da Toscana e do Vêneto.
ISSN: 2525-7501

Capítulo I - Algumas reflexões

Ao optarmos por analisar as duas famílias, verificamos que suas trajetórias nos
permitiriam analisar a influência das mesmas do passado até o presente em todos os aspectos
da vida colonial, sejam econômicos, políticos ou socioculturais. A observação nos mostrou
serem ambas influentes na comunidade, terem poder econômico e, também, possuírem capital
simbólico. Por isso, as consideramos representantes de muitas outras famílias estabelecidas na
região. Estudá-las, significou, portanto, partir de uma história particular (privada) para perceber
o todo. Dito de outra forma, a redução da escala de análise368 neste caso, a trajetória destas duas
famílias nos permitiu, em última instância, perceber, observar e identificar aspectos que de
outro modo passariam despercebidos na construção das redes econômicas, políticas e sociais
da Quarta Colônia, ou seja, queríamos identificar a influência destas redes nas reelaborações
memoriais feitas pelo Padre Luiz.

718
As trajetórias que nos propusemos cruzar na análise foram as trajetórias do Padre e das
famílias Pippi e Pigatto, que colaboraram no processo de escolha da preservação da memória
e, neste sentido, a trajetória serve para compreender pontos de contato entre as famílias e o
Padre.

Para alcançar este objetivo partimos da noção de trajetória definida por Bourdieu (2008,
p.74-82), como “uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou
mesmo grupo), em um espaço, ele próprio em devir e submetido a transformações incessantes”.
Consideramos também muito relevante a reflexão feita por Kofes (2001, p.19-28), a qual parte
do mesmo princípio de Bourdieu, mas leva em conta a temporalidade. Ao estudar a trajetória
de sua personagem procurando verificar a imagem que os testemunhos escritos oferecem da
mulher analisada, a autora considera a importância das narrativas tecidas por ela própria, numa
“tentativa de congelar uma temporalidade precisa” (KOFES, 2001, p. 27) e assim, construir

368
Ao se referir a este aspecto Levi (apud BURKE, 1992, p.137) diz que “para a micro história, a redução da
escala de análise é um procedimento analítico, que pode ser aplicado em qualquer lugar, independente das
dimensões do objeto analisado” - e mais que esta “observação microscópica revelará fatores previamente não
observados” (p.139).
ISSN: 2525-7501
uma imagem de si. Sendo assim, para a autora, trajetória seria “o processo de configuração de
uma experiência social singular” (KOFES, 2001, p. 27). Compreensão esta fundamental para
averiguar que, memória/história de si, os distintos atores sociais procuram construir através de
suas narrativas, levando em consideração que o processo de narrar e registrar implica em uma
seleção, princípio de todo e qualquer processo memorável.

A trajetória do Pe. Luiz Sponchiado iniciou em 1956, quando recebeu a Paróquia de


Nova Palma, e se deu concomitantemente à ampliação de seu prestígio e à confirmação de sua
política369. Sua trajetória se cruzou mais particularmente com uma das duas famílias enfocadas
(assim como com centenas de outras) através do uso de alguns instrumentos importantes, entre
os quais o púlpito, pelo exercício de sua atividade religiosa, a organização do Centro de
Pesquisas Genealógicas (CPG), instituição cuja finalidade é a preservação da memória da
imigração italiana na localidade, e a atuação frente ao movimento emancipacionista dos
municípios da Quarta Colônia.

É no CPG que o Pe. Luiz organizou as “caixas de família” com a documentação relativa
aos grupos familiares imigrantes e é onde ele construiu, com documentos de diversos tipos, 719
uma memória oficial da imigração na região. Então, o Pe. Luiz Sponchiado é fundamental para
que possamos compreender como se deu a construção da memória da Quarta Colônia.
Exemplificando a parceria com o prelado, analisamos a família PIGATTO. Família de
expressão na comunidade, os Pigatto sistematicamente estiveram ligados ao Pe. Luiz
Sponchiado, o acompanharam em campanhas e o apoiaram em ações por ele desenvolvidas.
Porém verificamos que, por diferentes motivos, nem todas as famílias tiveram o mesmo tipo de
relação com o Padre, como é o caso da família Pippi.

Para fazer a escrita da história usamos os dois arquivos: o do CPG, com cerca de 600
documentos arquivados nas referidas caixas destas duas famílias; e os 2000 documentos
arquivados no acervo privado da família Pippi. A documentação arquivada nos dois lugares e
utilizada é muito ampla. Compõem-se de: fotografias, lembranças (óbito, aniversário, primeira
eucaristia e missas), convites (formatura, casamento), recortes de jornais, entrevistas,

369
Sobre este aspecto da vida do Pe. Luiz Sponchiado e sua atuação no processo de emancipação da Quarta
Colônia, consultar BOLZAN (2011), ROSSATO (1996) e MANFIO (2015).
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depoimentos orais, coletâneas de imposto territoriais e sobre empréstimos, certidões civis e
religiosas (nascimento, casamento e óbito), notas (promissórias, fiscais e recibos),
correspondências, escrituras de terras, contrato de Compra e Venda (C/V) de terras, transmissão
de propriedade, convocações, procurações, nomeações, propagandas eleitorais, transações
comerciais, etc.

Nesta perspectiva, compreendemos que

a história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas
pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem [...]. Numa
palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem,
exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser
do homem (Febvre, 1949 apud LE GOFF, 2003, p.530).

Ou seja, tudo que exprime, demonstra e pertence ao homem são fontes. Numa região de
origem imigrante, nem todos os grupos familiares tiveram, no CPG, uma “caixa de família” que
refletisse a história e a trajetória completa do grupo. No desdobramento do processo de
formação do acervo feito pelo Pe. Luiz, percebemos que outras mediações poderiam ter 720
interferido na composição destas caixas de família, entre as quais a filiação política do grupo
familiar e/ou do padre e/ou a concordância com a liderança do pároco.

Na outra ponta dessa rede local estão, portanto, os opositores do Pe. Luiz, do ponto de
vista político, os que disputaram com o sacerdote o protagonismo político local. Neste lugar de
oposição ao Padre, estudou-se a família PIPPI. Tal como a família Pigatto, os Pippi são uma
família de posses, tradicional e de prestígio na comunidade. Esse grupo familiar, do ponto de
vista de sua história, agiu de forma distinta também com relação aos seus papéis, pois não os
depositou no CPG como fazia a maioria. Guardou parte de sua história documental em casa,
dando a eles um outro arranjo, o que os levou a contar de uma outra forma o seu passado, a
decidir eles mesmos a política de memória da família.

Para compreender esses distintos contextos da colônia, valemo-nos das seguintes


constatações desenvolvidas ao longo da tese: há uma memória oficial e pública, organizada e
reconhecida como tal, no CPG, feita pelo Pe. Luiz Sponchiado; em paralelo a esta memória que
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chamamos de oficial, existe uma outra memória histórica particular, mantida em casa e
organizada pelos descendentes da família Pippi.

Do exposto, pode-se inferir que, para essas duas famílias, assim como para outras tantas,
houve a construção de uma memória oficial através do Centro de Pesquisas Genealógicas de
Nova Palma (CPG). No entanto, verificamos que paralelamente uma das famílias tem sua
memória familiar reelaborada com outros documentos, por alguns integrantes de seu grupo.
Percebemos, neste embate memorial, uma das características da formação da Quarta Colônia
de Imigração Italiana no Rio Grande do Sul.

Valemo-nos dos estudos da história cultural a partir de autores como Chartier (2002) e
Ginzburg (2001), com os quais dialogamos sobre as questões da representação. Sobre as
questões da memória, central neste trabalho, utilizamos especialmente dos trabalhos de Candau
(2003; 2011) e Pollak (1992; 1989). Nesta análise, a memória foi o fio condutor das ações
individuais e coletivas. Ou seja, procuramos sempre analisar estas ações nas dinâmicas da
preservação da memória.

Para isso, partimos da compreensão de que “os homens elaboram ideias sobre o real, as
721
quais se traduzem em imagens, discursos e práticas sociais que não somente qualificam o
mundo, como também orientam o olhar e a percepção sobre essa realidade” (PESAVENTO,
2008, p.11). Dessas práticas sociais suscitadas do olhar e da percepção da realidade é que
abordamos a representação370.

Compreendemos que pertencer a um grupo, a uma comunidade, é definir seu lugar


social, estabelecendo fronteiras, permitindo a continuidade no tempo. Assim, “a definição de
uma identidade própria forma, por assim dizer, uma base de coesão social, uma corrente de
identificações e significados de compreensão mútua” (PESAVENTO, 1993, p.384). Quando a
sociedade define e elabora uma imagem de si e do mundo, atribui-se uma identidade e se
constitui como tal. Por isso é importante compreender e reconhecer que a identificação e a
diferenciação são faces da mesma moeda, pois a identificação com um determinado grupo só é

370
Este termo foi trabalhado por autores como Chartier (2002, p.165) e Ginzburg (2001, p. 85) e ambos
identificam que, por vezes, ele é tratado como a presentificação de uma ausência e, por vezes, torna visível a
realidade representada (exibe a própria presença). É nesta segunda perspectiva que orientaremos nossas reflexões.
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possível quando há grupos considerados diferentes, ou seja, criam-se limites entre eles e nós,
expressados pela diferença cultural, em que os usos de certos traços marcam uma identidade
específica.

Neste sentido, a memória é um elemento constituinte da identidade. A elaboração da


memória é uma construção social, ou seja, é permitida através deste entrecruzamento entre o
individual e o coletivo. Assim, selecionar o que deve ser lembrado e o que se relega ao
esquecimento é parte de todo e qualquer processo de construção de memória e identidade.
Então, “a memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado
que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de
definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades”
(POLLAK, 1989, p. 9).

Utilizar-nos-emos também dos enfoques da microanálise, que nos estudos sobre as


migrações (especialmente aos estudos desenvolvidos nas últimas décadas do século XX)
partem da compreensão do indivíduo como um sujeito ativo, que toma decisões, e onde a
família adquire um papel importante, pois é nela que as decisões são tomadas e as estratégias 722
para a sobrevivência são traçadas (RAMELLA, 1995, p. 14). É no âmbito das relações pessoais,
portanto, que as informações são passadas. Para este estudo, então, é importante compreender
que a e/imigração deixa de ser entendida como uma ação de desesperados a partir de uma
situação de calamidade e passa a ser vista como uma tomada de decisão feita por indivíduos
que traçam estratégias de superação social [onde] os vínculos pessoais são reveladores dessas
estratégias (RAMELLA, 1995, p. 14). Nosso objetivo, neste contexto, é perseguir estes vínculos
pessoais.

A história da família teve múltiplas leituras de acordo com o tempo e o lugar. Ao


examinar os trabalhos sobre o tema, a partir dos anos 1970 no Brasil, Scott (2009, p.16) afirma
que os estudiosos “valeram-se das metodologias provenientes da escola francesa e da escola
inglesa e, mais recentemente, das metodologias inspiradas na micro história italiana, com os
seguimentos nominativos”371. É neste momento histórico que o tema passa a ser objeto

371
Os estudos referem-se à demografia histórica francesa da década de 1950, particularmente com Louis Henry e
Michel Fleury, respectivamente demógrafo e historiador, trabalhou na reconstituição das famílias a partir dos
registros paroquiais e, posteriormente, inglesa na década de 1960, com o Grupo de Cambridge, tendo como
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específico da história, a partir de uma abordagem mais social, caracterizando-se pela
diversidade temática pautada na economia doméstica372.

Neste trabalho, as famílias estudadas procuram afirmar o parentesco e o pertencimento


na memória sobre a ancestralidade italiana e é procurando compreender as construções sobre
esta memória familiar e coletiva que refletiremos sobre o que é ou pode ser a família.

Como mencionado anteriormente, a influência de outras áreas do conhecimento e as


mudanças nos paradigmas historiográficos fizeram com que a história também começasse a
investigar as redes sociais, as sociabilidades, os casamentos e as relações de compadrio para
compreender melhor o indivíduo como ator social. Desta forma, pode-se dizer também que os
estudos sobre sociabilidades ganharam lugar na história a partir da década de 1970 com as
reflexões de Maurice Agulhon (ZUPPA, 2004, p.15). Sociabilidade implica a qualidade de ser
sociável, a convivência entre indivíduos e pode contribuir também, em seus aspectos formais e
informais, para os estudos sobre a família.

723
Retomamos a história numa perspectiva social, na qual o fio condutor desta investigação
recai sobre o grupo familiar, suas estratégias e relações, o que nos possibilita perceber, nos
pormenores e nas peculiaridades, o que o particular tem de coletivo. Procuraremos apreender
as redes mais complexas de sustentação cultural, afetiva e de poder construídas pelos
imigrantes. No emprego deste método, o que estamos fazendo é a construção das categorias de
análise a partir da observação das fontes que não estão dadas a priori.

Neste sentido, verificamos que uma versão da preservação da memória familiar com a
preocupação de ressaltar suas distintas temporalidades, seu lugar na sociedade, seus
personagens e suas sentimentalidades, foi levada a cabo pelo Padre Luiz Sponchiado quando
iniciou seus trabalhos de pesquisa sobre os imigrantes italianos e seus descendentes na Quarta

principal expoente o historiador Peter Laslett, que estudou a unidade doméstica a partir das listas nominativas,
estas fontes começam a serem exploradas. A partir destes estudos e dos questionamentos advindos destas
pesquisas, a família passa a ser amplamente estudada, agora também por sociólogos e antropólogos. São vários os
autores que se dedicam a estudar este processo de inserção da família como objeto de estudo nas mais diversas
áreas das Ciências Sociais e os desdobramentos advindos destes estudos (SCOTT, 2009, p.18).
372
Destacam-se os trabalhos de Muriel Nazzari e Elizabeth Kusnesoff, que estudam o tema a partir da
documentação mais particular das famílias, como inventários post-mortem, testamentos, etc. Ressalta-se, nas
décadas posteriores, a influência da demografia histórica nos trabalhos dos historiadores.
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Colônia. Com tal ação, ele se propunha não só a descobrir a sua história pessoal, mas também
ser o “guardião” da memória da Quarta Colônia. Ou seja, os “guardiões da memória”373 são
pessoas que, por algum motivo, são indicados a falar/escrever sobre as histórias locais. Por isso,
empenham-se em não esquecer o passado, dedicando-se “permanentemente a (re)construção da
memória, seja colecionando fotografias e pequenos objetos em suas caixinhas de lembranças,
ou narrando a seus membros mais novos casos e histórias” (PEREIRA, 2008, p. 186). Então,

a memória, ao mesmo tempo em que nos modela, é também por nós modelada. Isso
resume perfeitamente a dialética da memória e da identidade que se conjugam, se
nutrem mutuamente e se apoiam uma na outra para produzir uma trajetória de vida,
uma história, um mito, uma narrativa (CANDAU, 2011, p. 16).

Através de suas pesquisas nos arquivos paroquiais de várias dioceses do Estado do Rio
Grande do Sul, no Arquivo Histórico Nacional, no Arquivo Público em Porto Alegre, das
entrevistas e visitas às famílias coletando documentos antigos, fotografias, objetos, além da
colaboração das próprias famílias que iam até a casa paroquial, quando este ainda era pároco
em Nova Palma, e posteriormente, em seu escritório no Centro de Pesquisas Genealógicas
(CPG), o Padre foi construindo, a partir de 1973, um acervo que atualmente conta com 1850
724
sobrenomes italianos. No entanto, relembrando as ideias de Farge (2009, p.11), o arquivista
coleciona, classifica, e o arquivo é o resultado desse trabalho. Por isso, para arranjar tais
documentos, é necessário ter presente que toda e qualquer coleção familiar passa, antes de ser
entregue para o organizador dos acervos, por um processo de seleção interna. No caso
especifico de CPG de Nova Palma, este acervo passou, no mínimo, por uma dupla seleção,
realizada em primeiro lugar pela família, que disponibiliza ao padre o que considera importante
sobre si, de acordo com a afinidade e confiança que nutre pelo mesmo. E a segunda, feita pelo
padre, que, diante da documentação disponibilizada, seleciona o que julga representativo da
memória e história familiar. Neste caso, não se deve negligenciar a autoridade do Pe. Luiz como
pároco, porque esta facilita o acesso à documentação familiar. Isso se dá porque o prestígio do

373
Pollak (1989, p.8) trabalha com a ideia de “guardião de memória”, ao referir-se às lembranças, zelosamente
guardadas, e que são transmitidas seja na família, em associações, em redes de sociabilidade afetiva e/ou política.
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Padre nas áreas de imigração italiana vai muito além da liderança espiritual374, uma vez que
“ele era um elemento indispensável ao mundo social e cultural dos italianos na colônia”
(BOLZAN, 2011, p.124).

Apesar destas mediações, é importante considerar que os acervos familiares são


organizados segundo as expectativas de quem os pensou, com um objetivo determinado e uma
visão do passado que é filtrada pelo presente. Ao fazer este movimento, os titulares destes
arquivos são, ao mesmo tempo, sujeitos que fazem uma escrita de si e uma escrita da história.
É o caso do Pe. Luiz Sponchiado. Mas é do oficio do historiador, nestes casos, descortinar o
discurso construído sobre estas famílias de imigrantes italianos estabelecidos na região colonial
em estudo, assim como sobre suas memórias. Ou seja, cabe ao historiador perguntar como o
padre construiu o discurso e no que se baseou para construí-lo.

Capitulo II – Como se construíram as memórias

Para buscar as respostas aos questionamentos, dividimos o trabalho da seguinte forma: 725
o primeiro capítulo dá o panorama do trabalho; o segundo coloca o Pe. Luiz em cena; o terceiro
trata das duas famílias de imigrantes, sua origem, a sociedade na qual viviam na Itália no
período em que emigraram; o quarto capítulo discorre sobre a organização social dos imigrantes
citados e suas relações a partir das casas comerciais e de outras atividades; o quinto capítulo,
finalmente, analisa as reelaborações memoriais feitas a partir do CPG e nele, a organização das
caixas de família e seu conteúdo e as diferenças aí estabelecidas.

No segundo capítulo, partimos do pressuposto que o Centro de Pesquisas Genealógicas


(CPG) de Nova Palma é um lugar de memória – a memória e a história oficial e pública da
Imigração Italiana na Quarta Colônia - e, como tal, consagra uma representação do passado e
elabora um discurso sobre a história. Analisamos como se dá essa construção e, neste sentido,
tem-se o PE. LUIZ SPONCHIADO como figura central. Para tanto, percorremos a sua
trajetória, ele também descendente de imigrantes italianos oriundos da Comuna de Carbonera,

374
Sobre este aspecto, pode-se verificar os seguintes trabalhos: ZANINI (2006); VENDRAME (2007; 2013) e
BOLZAN (2011).
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na Província de Treviso, vindos para a região colonial em 1885. Consideramos importante
refletir sobre este protagonista para compreender quem foi o agente social autorizado a construir
a memória oficial da imigração italiana desta região e em que contexto se desenvolveu essa
construção.

Procuramos percorrer a trajetória deste padre a fim de compreender o momento de sua


inserção na sociedade nova-palmense, onde, além da atividade de pároco, ele construiu uma
imagem em torno de si, que lhe permitiu ser o mediador375 para a resolução das questões em
distintas áreas sociais. Neste ponto, identificaríamos que sua autoridade é respeitada para além
da comunidade. E, por conta disso, ele terá a autorização, na década de 1970, para coordenar
as comemorações do Centenário da Imigração Italiana nesta região colonial, concedida pelo
Bispo Diocesano de Santa Maria Dom Ivo Lorscheiter. Como o CPG é o resultado deste
trabalho, poderíamos dizer que existe uma memória oficializada pela mão da Igreja e
reconhecida pela comunidade.

No entanto, a apropriação dessa memória não se daria de forma igualitária. Procurando


entender quem são estes agentes sociais das famílias Pippi e Pigatto e como se dariam estas 726
reelaborações memoriais, julgamos importante percorrer a trajetória destes dois grupos
familiares. Este foi o trabalho desenvolvido na terceira parte da análise (capítulo 3).

Neste sentido,

perseguir uma trajetória significa acompanhar o desenrolar histórico de grupos sociais


concretos em um espaço social definido por esses mesmos grupos em suas batalhas
pela definição dos limites e da legitimidade dentro do campo em que se inserem.
Seguramente a origem social é um holofote poderoso na elucidação dessas trajetórias,
pois o habitus primário, devido ao ambiente familiar, é uma primeira e profunda
impressão social sobre o indivíduo, que sofrerá outras sedimentações ao longo da vida
(MONTAGNER, 2007, p.18).

Estas duas famílias de imigrantes italianos são originários de distintas regiões da Itália,
que imigrariam para o Brasil. Assim, investigamos a história local e os processos imigratórios

375
Este termo foi originalmente utilizado na Antropologia, por Fredrik Barth (1993). Na história, foi trabalhado
por Edoardo Grendi e Giovanni Levi que, analisando a relação entre família, comunidade e o mundo exterior,
identificaram que alguns indivíduos poderiam ser “pontes” entre tais unidades, agindo como “mediadores”
políticos, sociais ou econômicos (Lima, 2006, apud VENDRAME, 2013, p.25).
ISSN: 2525-7501
desenvolvidos na região da Toscana e do Vêneto, objetivando entender a sociedade em que
viviam nossos protagonistas, para compreender as motivações e aspirações que os levaram a
emigrar. Como já dissemos, partimos do pressuposto de que estes sujeitos foram responsáveis
por traçar suas estratégias de superação social e valeram-se de todos os meios para isso. Nesta
perspectiva, identificaríamos as redes relacionais estabelecidas neste processo, responsáveis
por fundamentarem os fluxos dessas emigrações.

A família Pippi é oriunda da comuna de Fabbriche di Vallico, uma região localizada


entre as montanhas, na Província de Lucca, região da Toscana (ver figura 1). Localizamos ali,
na década de 1850, a família de Giuseppe Luigi Pippi e Elena Gianni, e seus sete filhos:
Giuliano Pippi, Próspero Pippi, Luisa Aldegonda Pippi, Maria Dionizia Isabella Pippi, Flávio
Bruno Pippi, Gotardo Dionizio Adolfo Pippi e Vittorio Oreste Pippi.

727

Figura 1: Território do atual município de Fabbriche di Foto 1: Família de Próspero Pippi.


Vergemoli. O círculo em vermelho salienta a região
denominada historicamente como “Colandi”, do extinto
município de Fabbriche di Vallico.

Fonte: Adaptado pela autora de GOOGLE MAPS. Fonte: Righi; Bisognin; Torri (2001,
Mountain View: Google, 2015. Disponível em: p.584).
https://www.google.com.br/maps/@43.9968758.10.42
67772,1190m/data=!3m1!1e3. Acesso em 1 fev. 2015.

Após o falecimento do chefe familiar em 1870, a imigração passa a ser o horizonte para
a família Pippi. É neste contexto (não se sabe como e nem o porquê) que o segundogênito do
casal, Próspero Pippi, resolveu emigrar, sozinho, aos 12 anos de idade, no ano de 1865. Assim,
num período anterior à grande imigração, mas seguindo um caminho já feito por muitos
toscanos, Próspero Pippi (ver foto 1) partiu para a América.
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O que, ao se inserir na sociedade colonial e ampliar seus negócios, alimentou o fluxo
migratório familiar, proporcionando a vinda de seus irmãos (homens). A atividade comercial
será a opção utilizada pela família para a inserção na sociedade sul-rio-grandense. Ao longo
desse processo, identificaríamos o estabelecimento de outras redes que seriam igualmente
importantes na expansão e no êxito desta atividade comercial.

Quanto à família Pigatto, imigrantes originários de Pozzoleone (ver figura 2), comuna
de Vicenza, na região do Vêneto, tendo familiares já estabelecidos na América, sua inserção foi
facilitada. Assim, Luigi Pigatto e sua esposa Lucia Catterina Mazzardo, ao receberem notícias
de Maria Madalena Mazzardo, irmã de Lucia, casada com Giácomo Turra, imigrantes
estabelecidos desde 1884 na Colônia Silveira Martins, no estado do Rio Grande do Sul – Brasil,
pensam na possibilidade de mudar a situação vivida e também emigrarem. Assim o fizeram
juntamente com Vicenzo Pigatto (ver foto 2), seu irmão, em 1888.

Na sociedade colonial, os dois irmãos dedicaram-se a atividades diversificadas, além do


cultivo do lote colonial, por exemplo, em muitas ocasiões foram contratados para os serviços
de abertura de estradas. Isso possibilitou uma renda extra, que foi sendo reinvestida em outras 728
áreas, como na casa de negócios e na aquisição de terras.

Figura 2: Vista aérea de Friola - Comune de Pozzoleone. Foto 2: Vicenzo Pigatto.

Fonte: Adaptação feita pela autora do GOOGLE MAPS. Mountain Fonte: Arquivo CPG, Sala
View: Google, 2015. Disponível em: de Documentação, Caixa
https://www.google.com.br/maps/place/36050+Friola+VI,+Italy. Pigatto
Acesso em julho de 2015.
ISSN: 2525-7501
Ao identificar as redes relacionais estabelecidas por ambos núcleos familiares,
percebemos que o espaço da casa comercial foi, por excelência, o lugar onde essas alianças
foram construídas. Esse foi o objeto de estudo do capítulo 4. Neste momento, estudamos a
expansão desta atividade comercial nestes dois núcleos familiares e a consolidação do poder
familiar. Houve a criação de uma rede de casas comerciais, que seriam diretamente
administradas pelos familiares. A “venda”, espaço por excelência de sociabilidade, seria
também o espaço onde alianças e compadrios seriam firmados. “O espaço de intermediação
mercantil, financeira e de sociabilidade na colônia era a venda, a casa comercial; referência
territorial de negócios, conchavos políticos, discussões e informações; de presença masculina
por excelência, de barganhas e de poder do comerciante” (TEDESCO, 2010, p.283). É nessa
perspectiva que entram as casas comerciais dos sujeitos aqui estudados, assim como as
atividades envolvidas em torno delas, longe de serem compreendidos como sujeitos passivos,
são processos.

O capital econômico oriundo desta atividade possibilitaria a diversificação das


atividades. Percebemos que ambas famílias reinvestiram seu lucro na aquisição de áreas
territoriais e no desenvolvimento de outras atividades.
729
A influência destas famílias seria alargada pelo reinvestimento destes recursos e
igualmente pela manutenção desta atividade comercial, por gerações na família. A partir desse
prestigio econômico e social, aliado às redes estabelecidas, estas famílias alcançariam o poder
político. Procuramos identificar, também, a partir da segunda metade da década de 1950, as
relações estabelecidas pelos integrantes destes dois núcleos familiares com o Padre Luiz
Sponchiado, quando este se tornou o pároco de Nova Palma, pois as relações estabelecidas tanto
no exercício da atividade de pároco, como em função do processo emancipatório desencadeado
neste momento, teriam influência na construção da memória familiar por ele elaborada.

As memórias familiares construídas foram o objeto de estudo da última parte da tese, o


capítulo 5. Neste momento, dedicamo-nos a analisar as representações memoriais elaboradas a
partir do acervo do CPG e do acervo privado da família Pippi. Procuramos discutir o
enquadramento memorial elaborado no CPG, lugar de memória e história oficial e pública da
imigração italiana da Quarta Colônia imperial, pelo Padre Luiz. Memória que seria reconhecida
como oficial pela comunidade e apropriada, neste estudo de caso, pela família Pigatto.
ISSN: 2525-7501
Mas, como todo processo de reelaboração memorial é uma representação, nem todas as
famílias se apropriariam da sua memória “guardada” no CPG. Este foi o caso da família Pippi,
através de Maria Neli Donato Pippi, que organizou uma outra memória do seu grupo familiar.
Os Pippi, assim, constroem a sua história e o seu prestígio. Desta forma, observamos que havia
uma memória reclamada e que não estaria sendo representada no acervo do CPG. Identificamos
que neste embate memorial, a sociabilidade teria tido um peso decisivo na construção de
memória. Nesse contexto, o patrimônio documental familiar materializaria a identidade destes
indivíduos, destas famílias. Identidade esta constituída primeiramente no imaterial, ou seja, na
memória de cada indivíduo.

Como este trabalho propôs-se a estudar as memórias familiares construídas, por e para
os descendentes de imigrantes italianos da Quarta Colônia, a nossa base documental foi,
principalmente, os documentos familiares correspondentes às famílias Pippi e Pigatto,
arquivadas no CPG, em Nova Palma, e os documentos do acervo privado da família Pippi. No
decorrer do trabalho, cruzamos essas fontes376 com outras, como as pesquisadas nos arquivos
comunais e paroquiais italianos, procurando sempre apreender as narrativas, os discursos
construídos pelas mesmas377.
730

CONCLUSÃO

Nossa reflexão nos apontou, ao longo do trabalho, que os responsáveis pela criação de
acervos são sujeitos históricos que olharam o passado a partir de suas relações e aspirações do
presente. Esse olhar determina a seleção dos documentos e a sua disponibilização, por parte das
famílias, ao padre Sponchiado, o representante autorizado a guardar e construir uma memória
das famílias e da imigração que será “guardada’ no CPG. A senhora Maria Neli Pippi, por seu
turno, faria o mesmo com a documentação de sua família, dividindo com o Padre Luiz

376
Compreendemos como fonte “todo aquele material, instrumento ou ferramenta, símbolo ou discurso
intelectual, que procede da criatividade humana, através do qual se pode inferir algo acerca de uma determinada
situação social do tempo” (ARÓSTEGUI, 2006, p.491).
377
Além destes conjuntos documentais, valemo-nos de referências bibliográficas que serviram de base para as
discussões propostas.
ISSN: 2525-7501
Sponchiado a guarda deste acervo documental. Trata-se de documentos particulares, o que nos
permitiu concluir que ela não reconhecia no sacerdote alguém autorizado a fazer a história de
sua família. Possivelmente, seja ela a representante autorizada a falar pelos seus. Ou a quem ela
delegar essa função.

Independente dessas tensões e desencontros, percebemos, por fim, que a documentação


familiar arquivada nestes dois acervos tornou-se patrimônio documental familiar dos
descendentes de imigrantes italianos da Quarta Colônia.

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CRÔNICAS VISUAIS DE UM CASSINO – ANÁLISE DA PINTURA CRÔNICAS DE
UM CASSINO Nº 6 DE RUTH SCHNEIDER*378

Aline do Carmo**379

RESUMO

O presente artigo realiza uma pesquisa utilizando elementos de aspecto histórico, biográfico,
artístico e social, sobre o tema representado na obra Crônicas de um Cassino nº 6, da série O
Cassino da Maroca, produção artística de Ruth Schneider, pintora, gravadora, desenhista,
autodidata, uma artista que sempre optou por traçar caminhos plurais e experimentar diversas
linguagens e suportes. Foram identificados personagens e cenários representados no quadro a
partir dos arquivos particulares da artista, procurando fazer uma interlocução com as histórias
deste notório cabaré na Passo Fundo das décadas de 1940 e 1950. Os sistemas simbólicos que
a arte de Ruth forma são mais complexos e mais delicados do que os produzidos pela vida, e
que a memória funciona como programa que atua no processamento de semioses. Busca-se,
neste texto, entender as implicações semióticas e temporais embutidas em tais dinâmicas. E
mais: na medida em que o quadro promove um embate constante entre a permanência e a
transformação, a arte, pela sua constituição, pode apontar para patamares de rupturas das
convenções da sociedade.
734

Palavras-chave: Memória. Ruth Schneider. Cassino da Maroca.

INTRODUÇÃO

378
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
379
** Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Professora da Faculdade de Artes e
Comunicação da Universidade de Passo Fundo (UPF), onde participa da Linha de Pesquisa Arte, Sentido e
História do Programa de Pós-Graduação em História. E-mail: acarmo@upf.br Telefone: (54) 33168185
ISSN: 2525-7501
O objetivo inicial deste artigo era estudar os personagens representados na obra
Crônicas de um Cassino nº 6, a partir dos arquivos particulares da artista, fazendo uma
interlocução com a história de um local muito notório em Passo Fundo, o Cassino da Maroca,
um cabaré da década de 1940 e 1950.

Porém, durante o processo de transcrição dos manuscritos de Ruth, constatou-se, na


produção da artista, muito mais do que apenas a representação de suas memórias infantis,
verificou-se, também, um emaranhado de informações pessoais, históricas e sociais que se
incorporaram nas pinturas. Essas relações auxiliam na investigação das histórias representadas
nesses quadros, para isso, analisar-se-ão os aspectos artísticos, históricos e sociais de quatro
obras da artista. Questões pontuais que alimentaram as reflexões ligadas a um conhecimento
transdisciplinar que envolve arte, representação e historicidade.

Ruth Schneider, artista plástica passo-fundense, criou uma série de quadros intitulada:
O Cassino da Maroca. Representou nessas pinturas suas lembranças infantis, as histórias
ouvidas durante sua infância que foram contadas por seus familiares sobre um famoso bordel
da cidade. Foi escolhida está obra para a pesquisa pelo valor artístico, histórico e social, a partir 735
de visitas e registros fotográficos do acervo da pintora, que se encontra disponível no Museu
de Artes Visuais Ruth Schneider, em Passo Fundo, Rio Grande do Sul. Outro critério utilizado
justifica-se pelo material autobiográfico, ao qual se teve acesso, que mostra as histórias desses
personagens.

A artista adquiriu grande reputação entre o meio artístico-cultural com uma obra de
colorido intenso. Faleceu aos 60 anos, no dia 23 de dezembro de 2003, na cidade de Porto
Alegre, onde residia. Deixou uma vasta produção em diversos suportes (ferro, papel, madeira,
etc.), sendo premiada em múltiplos festivais e bienais, como o 39º Salão de Abril-Fundação
Cultural de Fortaleza/CE, em 1989. Nesse mesmo ano, recebeu o Prêmio de Artes Plásticas
Copesul/MARGS 35 anos de Porto Alegre/RS. Em 1990, o Prêmio Brasília de Artes Plásticas,
dentre outros.

As histórias representadas nesse quadro, seus reflexos sociais e históricos, bem como o
transcorrer da vida/obra/história de Ruth Schneider, vai ser o fio condutor para a análise deste
estudo. Isso se justifica não somente por delimitar a existência da pintora, mas porque o relato
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autobiográfico e histórico toma contornos de pesquisa, por se tratar de uma artista plástica que
parece inserida em uma tradição romântica, que não dissocia a arte da vida. Levando em conta
a máxima de Barthes (1981, p. 11), a qual afirma que “não há linguagem sem corpo”, Ruth
desenvolve um modo marcante de ligar a pintura – em qualquer que seja a forma escolhida para
se manifestar artisticamente – ao seu próprio fio vivencial. Sua existência revela os valores
artísticos assumidos, mostrando que sua arte é ela mesma, corporificada.

Como referência, a pesquisa utilizou o acervo documental e artístico de Ruth, anotações


manuscritas, diários, estudos. O acervo da pintora sob administração do Museu de Artes Visuais
Ruth Schneider (MAVRS) mantido pela Fundação Universidade de Passo Fundo em parceria
com a Prefeitura Municipal de Passo Fundo é composto por 125 peças. Utilizou-se, também,
depoimentos das parcerias artísticas da pintora, especialmente do amigo Zé Aughusto Marques,
que acompanhou sua produção durante vários anos.

Os indicadores teóricos que abordam a leitura da imagem foram igualmente acessados.


A arte é a liberdade sensível, visto que podemos ter outras liberdades, a política, a jurídica, etc.
Tal liberdade artística sensibiliza-se no uso da cor, na forma, na palavra. 736
A prostituição teve um espaço definido dentro da cidade de Passo Fundo/RS, porém
esse não ficou imune às denúncias e críticas de uma parcela da comunidade local. Muitas foram
as tentativas de eliminar as “casas de vida fácil” da Rua XV de Novembro, como a campanha
que se iniciou em 1944, ganhando expressão após 1945, já que a população apresentava
descontentamento com a localização da zona de meretrício no centro da cidade, uma região
valorizada, próximo à estação de trem principal da época.

Para a analise da obra verificou-se ícones relevantes para a interpretação, comprovados


pela biografia da artista Ruth Schneider. A composição parece reunir elementos fundamentais
encontrados na biografia da pintora, tais como a relação amorosa entre sua mãe e seu padrasto,
o cenário do interior do cabaré e suas histórias, o táxi do Seu Antão, dentre outros ícones.

Essas figuras representadas por Ruth, provenientes do imaginário da pintora, histórias


de um famoso local, o Cassino Palácio (espaço alternativo tema das histórias das obras
analisadas neste estudo), depois conhecido como Cassino da Maroca, tinha sua edificação
localizada na esquina das ruas XV de Novembro e General Osório. Foi um lugar de alto nível,
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expandindo-se na época do contrabando de pneus na cidade de Passo Fundo. O Brasil fornecia
pneus em troca de farinha de trigo trazida da Argentina, eram as primeiras transações de
“importação-exportação”. Nesse vai-e-vem de “negócios”, Maroca, a proprietária do Cassino,
tem condições de contratar belas dançarinas para se apresentarem em seu palco, brasileiras e
argentinas.

Historicamente, a arte sempre trabalhou dentro e fora de regimes de visibilidade


determinados socialmente. Entre o ver do espectador e o ver do pintor está o próprio ser do
pintor, o que o faz ver, ou seja, a condição humana, a visibilidade impessoal e pessoal que deixa
marcas no pintor e que, por um processo ainda não compreensível, expressa-se nos seus gestos.

Ruth concentra todos esses aspectos em suas obras, mostrando suas influências pessoais
abertamente na série O Cassino da Maroca. Suas representações usam a técnica da pintura a
óleo, constituída por camadas de tinta preparadas a partir de pigmentos coloridos, fixados em
uma camada através de um meio oleoso (óleo secativos como óleo de linhaça, de nozes, de
papoula, etc.), que, com o passar do tempo, forma um retículo tridimensional, mantendo coesa
a camada de pintura e os pigmentos presentes, dando a elas uma textura em relevo. Tais 737
camadas de tinta encontram-se sobre o suporte que Ruth costumava utilizar, a madeira.

1. Capítulo I - Ruth: sua trajetória realizada e imaginada

Ruth Trelha Schneider, pintora, gravadora, desenhista, autodidata, nascida em Passo


Fundo em 08 de maio de 1943, viveu em Porto Alegre/RS até o seu falecimento no dia 23 de
dezembro de 2003. Passou sua infância em Passo Fundo, estudou até o ginasial no colégio Bom
Conselho, vindo a terminar seus estudos em Porto Alegre.

O conjunto de relatos autobiográficos, ao invés de dar a fisionomia da artista, tem a


capacidade de sintetizar grande parte de sua vida, não apenas no que toca a seus assuntos como
também na maestria com que trabalha a técnica e a linguagem utilizadas nas obras. Desse modo,
temos não o que ela é, mas o que pretende que o leitor pense que ela seja. Um traço de sua
personalidade desprendida é posto ao lado da avaliação que faz de sua arte, encontrando, ainda,
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espaço para ironizar com humor e expressionismo as suas memórias. Segundo Manguel,
“qualquer que seja o caso, as imagens, assim como as palavras, são a matéria de que somos
feitos” (MANGUEL, 2001, p. 21). Ainda, conforme Manguel,

construímos nossa narrativa por meio de ecos de outras narrativas, por meio
da ilusão do autorreflexo, por meio do conhecimento técnico e histórico, por
meio da fofoca, dos devaneios, dos preconceitos, da iluminação, dos
escrúpulos, da ingenuidade, da compaixão, do engenho. Nenhuma narrativa
suscitada por uma imagem é definitiva ou exclusiva, e as medidas para aferir
a sua justeza variam segundo as mesmas circunstâncias que dão origem a
própria narrativa (MANGUEL, 2001, p. 28).

Em suas anotações, a artista agradece às pessoas maravilhosas que passaram por sua
vida e que motivaram o seu futuro ofício, principalmente ao seu padrasto, o Seu Antão, sua mãe
Nina e sua avó Ida:
738
A minha mãe também era uma pessoa fora de série... “fera” Honorina Nina,
ela sempre pôs a família dela em primeiro lugar (que era eu, Ruth a filha, a
mãe dela, a Ida, e a irmã Aurora), ela se sacrificou em todos os sentidos,
moral e amorosamente. Ganhava a vida se prostituindo para nos alimentar.
Já a tia Aurora se envolvia no amor e acreditava, viveu com vários homens,
por um determinado tempo, confiante, mas no final dava em nada, em
separação. Já a mãe Nina tinha o pé no chão, o único que ela amou e
acompanhou foi o Seu Antão, mas ele sabia ter seus defeitos. Primeiro ele era
conversador, mulherengo e ciumento, capaz de armar uma briga por uma
mulher que acompanhava (Arquivos do MAVRS ).

A temática de Ruth Schneider, tendo o homem como centro de suas atenções, concentra-
se num levantamento baseado na memória afetiva, leva os episódios à condição próxima da
mitologia regional do Sul do Brasil. Contudo, as emoções populares e seus fantasmas,
sublinhados por imagens rústicas, sintéticas e de certa forma ingênuas, jamais remetem para o
folclórico ou para o simplório.
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Em Ruth Schneider, as histórias são fantasiosas, mas coerentes com sua formação e
levam-nos a relacionar fatos passados a uma realidade atual, expondo repressões e preconceitos,
ícones importantes para o processo de significação proposto neste estudo.

2. Capitulo II – Seu Antão: o homem do sapato branco

Nos arquivos particulares de Ruth Schneider, notam-se várias referências a uma pessoa
em especial, o Seu Antão. Sua mãe Nina conheceu Antão no início dos anos de 1950, em Passo
Fundo/RS, logo já estavam morando juntos, Nina, Antão, Ruth e Vó Ida. Ruth sentiu-se
acolhida por essa figura masculina, seu jeito alegre e suas histórias divertidas.

Na história de Ruth, Seu Antão foi um personagem muito importante para o despertar
do gosto artístico, incentivando-a a desenhar, pintar e recortar, uma vez que alimentava essas
fantasias ao contar suas aventuras na vida noturna, quando jogava damas ou quando estava no
Cassino. Seu Antão tinha um “carro de praça” e, dentre seus fregueses de corrida, havia aqueles 739
homens que apareciam a sua procura, na casa em que residia a família de Ruth, que segundo a
percepção da artista, “pareciam italianos da máfia, de preto e chapéu, com manta envolvida no
pescoço, sapatos de bico fino, e as mulheres envolvidas nos seus casacos de pele verdadeira”
(Arquivos do MAVRS).

Conheceu seu padrasto aos 10 anos, quando sua mãe passou a viver com ele, “Ela fez
uma janta e trouxe ele e o irmão, eu o olhei, achei alto na sua fatiota preta, elegante e
conversador. Ele me viu, acho que eu estava espiando, porque só lembro de vê-lo na janela
examinando o ambiente” (Arquivos do MAVRS). A artista retrata seu padrasto em seu livro O
Cassino da Maroca como um homem boêmio e alegre, “Em 1952, Antão Franchini, o homem
do sapato branco, era o rei da malandragem. Seu Antão meio que morava no Palácio do Cassino.
Dançador de tango, era ele que sempre iniciava para animar a clientela” (SCHNEIDER, 1993,
p. 7). Ainda nessa obra, a pintora narra:
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Antão trocou todas as mulheres da Maroca por Nina. Isso aconteceu em 1953.
E Nina, depois de quebrar o violão na cabeça do Canhotinho que cantava
com a turma do Boqueirão, no Quiosque da Rua do Tiro, junto a uma cancha
de bocha, trocou-o por Antão. Abraçada neste, ouvia a voz do Canhotinho
cantando “Saudades do Matão” (SCHNEIDER, 1993, p. 10).

Outra questão levantada por Ruth em suas anotações era a personalidade de Seu Antão,
como referido no parágrafo anterior, um homem contente e boêmio, que normalmente iniciava
as noites festivas do Cassino da Maroca, “puxando” os frequentadores para o início das danças,
com sua expansividade nata, por isso, supõe-se que a pintora representou o casal nessa obra,
Crônica de um Cassino nº 6, na parte central do quadro, localizando-os no centro das atenções,
no centro do salão.

740

Figura
1: Linguagem/técnica: pintura com técnica mista - Título: CRÔNICA DE UM CASSINO Nº 6 -
Dimensões: 95 X 126CM - Ano: 1991 – Acervo MAVRS – Passo Fundo/RS)

Observa-se no quadro (Figura 1) o cenário vivido por sua mãe, Nina, e seu padrasto,
Antão, atentos um ao outro mesmo rodeados pela agitação do Cassino. A pintura está
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“carregada” de figuras coloridas, categoria importante para as análises, uma vez que tal
elemento estético é presente nas obras de Ruth, no seu estilo artístico. As cores escuras
contrastando com as claras são colocadas nos quadros em camadas de tintas, uma sobreposição
de cores, formando “massas” de tinta. Essas cores são contornadas pela cor preta, criando um
contraste intenso, ao mesmo tempo em que delimitam as formas angulosas dos desenhos
figurativos.

A obra está rodeada por personagens compostos por linhas inclinadas, sinuosas e curvas,
levando as figuras humanas a ganharem uma espécie de movimento, confirmado na relação
entre signo e objeto. Nota-se que a dinâmica da arte (signo-objeto) constrói ícones de leitura de
imagem. Diagrama que salienta as histórias deste local, dando movimento às formas, pois essas
parecem dançar, tocar instrumentos musicais, beber e conversar, justamente o cenário que se
encontrou nos documentos históricos e biográficos pesquisados.

Toda essa algazarra é lida na massa de cores e formas agitadas do fundo da obra, sem
nenhum espaço em branco, contrastando com o núcleo do quadro onde se observa um “recorte”,
um espaço, talvez até uma “saída” para o casal (Antão e Nina) desta vida repleta de desventuras 741
que eles tinham. Buscando significado para tal elemento na metáfora apresentada reconhecendo
que a vida neste recinto por vezes podia ser alegre, luxuosa, mas na maioria das vezes seria
suportada.

Esse recorte parece não conter a pintura integralmente; o que podemos ver é uma
passagem, de um quadro parado de colorido intenso para uma abertura central, cuja extensão
completa nos escapa. O eixo dos sentidos leva o olhar do espectador a sentir-se atraído pelo
contraste, do tudo para o nada. Fayga Ostrower confirma que esse fundamento da linguagem
visual é utilizado para focar a atenção do leitor da obra: “os movimentos visuais se encaminham
sempre em direção das áreas de contraste” (OSTROWER, 2001, p. 105). Além disso, conforme
a autora, o elemento luz deve ser levado em consideração, afinal as tonalidades muito intensas
e os valores claros destacam-se e avançam no espaço, ao mesmo tempo em que os valores
escuros recuam.

Esse elemento, o recorte, ilustra um dos pressupostos sobre o sentido e o


significado da imagem na(da) pintura: ela surge como instrumento e meio para se alcançar o
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objetivo da representação artística. Conforme Didi-Huberman (2007), a imagem aparece como
uma “outra” natureza, coincidente ou não com o real. Algumas questões, segundo Didi-
Huberman, destacam-se: quando uma pintura está terminada? Qual pincelada será entendida
como a última, necessária para que os objetivos do quadro possam ser dados como alcançados?
Quantos retoques são necessários para que a pintura seja dada por concluída? Que matéria seria
esta, informe, subjetiva, milagrosa dado que incomensurável, a responsável por distinguir uma
obra-prima de um borrão, uma mancha destituída de sentido ou valor para a arte?

Ostrower (2001) pondera que um contorno funciona como limite e, ao mesmo tempo,
que delimita forma a um espaço interno. Segundo ela, ao vermos o limite da forma, percebemos
qual é a sua estrutura. Há relações entre o espaço externo, o interno e a superfície. As referências
visuais da forma são seus limites. Ao se indicar em uma obra de arte uma linha vertical ou
horizontal, dá-se a ela uma direção vivenciada, carregada de emoção, na qual surge a ideia de
repouso ou ação, linearidade ou mobilidade.

Didi-Huberman (2007) considera que o procedimento da pintura emerge neste


cenário como um fazer dionísico – uma espécie de dúvida – um sofrimento do sujeito autor da 742
obra. Delírio dos sentidos, afirmação da cor como meio. Uma questão incontornável para o
artista: os limites da obra de arte. Limites que funcionam como verdade absoluta e alteridade
extrema.

É a partir de uma mobilização interior do artista que surge a experiência artística, o fazer
artístico. Essa paixão que move o artista, segundo Ostrower (2001), não está presente apenas
no uso das cores, na disposição das formas, dos volumes em suas obras de arte, e sim em todos
os âmbitos da vida. As ideias, conforme a autora, surgem através de caminhos intuitivos, e esses
caminhos não são inteiramente racionais e tampouco são irracionais.

Podemos examinar, na obra em questão, Crônica de um Cassino nº 6 (Figura 1), a


representação do cotidiano como arte, como o ofício do Seu Antão, taxista, que aparece no
canto superior esquerdo do quadro. A existência da figura do automóvel, nas tonalidades
magenta e amarela faz sentido, pois muitas das histórias representadas por Ruth nas obras da
série passaram-se neste carro. Na categoria de análise das cores, pode-se remeter ao magenta a
significação do “calor das noites” dessa região da cidade, e nos faróis pintados de amarelo a
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percepção de luzes acesas, o que caracteriza, novamente, a noite. Tal relação do signo com o
objeto confirma-se nos dados encontrados ao longo da pesquisa, tanto em documentos
particulares da artista como documentos históricos.

Vê-se estampada nesta imagem (Figura 1) a admiração pelo padrasto, já que este
personagem encontra-se no eixo geométrico da obra junto com sua mãe. Todos os elementos
que circundam esses dois personagens principais compõem o cenário imaginado por Ruth a
partir das histórias ouvidas sobre as noites do Cassino. Visualizam-se figuras humanas diversas,
dançarinas, músicos, homens e mulheres interessados na aura de diversão imprimida ao local.

Esta obra tem um grafismo próprio de Ruth Schneider, com cores fortes carregadas de
significação, os manchados de violeta, vermelho, registram o movimento com as cores
complementares (aquelas que contrastam entre si: as primárias, azul, vermelho e amarelo
contrastam com as secundárias, laranja, verde e violeta) empregando, também, texturas e
volumes com grossas camadas de tintas;

743
Os dois personagens centrais são representados com cores de certos atributos
psicológicos: o azul pode ser atribuído a masculinidade, austeridade e intelecto; o amarelo,
feminilidade e alegria; o vermelho, materialidade e dominação, conforme explica Eva Heller
(2012); Ainda segundo a autora, as outras tonalidades, que podemos visualizar na pintura,
podem gerar outras percepções, como o verde pode significar a tolerância, a prosperidade e a
fertilidade; o rosa, uma cor do carinho erótico, charme e nudez; o preto, pode ser a representação
do poder e da elegância dos frequentadores deste recinto; e, também, o uso da cor ouro, que
simboliza o dinheiro, o luxo e a fama.

Nesta pintura observa-se uma espécie de expressionismo figurativo, característica


presente nas obras de Ruth Schneider. Fora disso, nota-se que a imagem pode causar no
espectador primeiramente a sensação de que se ouve a música do local ao ver a obra, escuta-se
o motor do carro, a conversa dos dois personagens centrais, o salto do sapato das mulheres no
chão do salão, elementos visuais sensoriais intrínsecos ao ambiente de festa e que auxiliam no
processo de significação das obras. O espaço delimitado, ou não, nesta obra passa-nos a
impressão de que Ruth amplia os limites visíveis (recorte central), com o uso que faz dos
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recortes nas obras e as colagens, sempre reutilizando materiais descartados para sua composição
criativa.

Buscando gerar significado nas cores usadas na obra Crônica de um Cassino nº 6 (Figura
1), verificou-se que as cores mais presentes são os tons de preto, vermelho, rosa, amarelo,
laranja e azul escuro, que povoam a totalidade da pintura. Sobre a cor preta, traz-se a fala do
pintor Renoir, artista impressionista, “O preto uma ‘não cor’? De onde vocês tiraram isso? O
preto é a rainha das cores. [...]” citado por Heller (2012, p. 127). Conforme a autora, “o preto
transforma todos os significados positivos de todas as cores cromáticas em seu oposto negativo”
(HELLER, 2012, p. 131).

Os contornos marcados, em tons escuros, considerados carregados de significação, nas


pinturas de Ruth Schneider, uma pessoa passional e que considerava inseparável vida e arte,
funcionam como símbolo de catarse no momento em que criava as pinturas, a reação depois de
“sentir” o peso do traço e sua relação com o tema a ser representado. Ostrower considera que
as linhas, as formas, passam sensações diversas,
744
vendo as linhas, é como se ouvíssemos a voz de alguém que nos fala com certo
timbre e certa cadência. Evidentemente, as linhas se referem a alguma coisa;
elas vêm carregadas de emoção, e a emoção faz com que o artista se expresse
de uma maneira específica e não de outra ( 2001, p. 15).

A pintura de Ruth cria esse paralelo da cor preta com o tema que ela representa: a noite,
a boêmia; juntando o dramático, pitoresco e caricatural com os personagens que surgem da sua
imaginação/memória com atitudes e anatomias diferentes e inesperadas, inseridas por meio de
colagens enriquecidas de vivências cotidianas. Sua arte mostra um universo rico de conotações
sobre a alma humana e seus mistérios.

A percepção dramática do uso da cor preta é um aspecto relevante a ser considerado,


pois pode remeter, também, a outro aspecto importante na vida da artista, que foi a perda trágica
de dois, de seus três filhos, que levaram a artista a considerar sua arte como uma maneira de
amenizar sua dor intensa. É sabido que o artista, seja ele pintor, músico, escritor, faz uso de
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seus sentimentos para seu processo criativo, para sua inspiração. Conforme Ostrower (2001, p.
50), “o sofrimento e as terríveis precariedades da vida podem constituir uma experiência
profunda, sentida e vivida pelo artista, e tornar-se expressão”.

O mundo imaginário recriado por Ruth na série O Cassino da Maroca permanece


gravado nos trabalhos que compõem as obras com o tema recorrente, ou melhor, rio-corrente
por onde fluem personagens tragicômicos, caricatos, como Chica-Pé-de-Porco, Zica Navalha,
Canhotinho, Maria Bigode, Garoto de Ouro, o Gigolô Argentino e, naturalmente, a cafetina
Maroca. Nesse trabalho solitário, surgiu seu estilo próprio, visceral, as cores fortes, e em certos
momentos, deixando de lado o pincel como ferramenta, para usar as mãos, os dedos,
diretamente na pintura a óleo:

Estas imagens de uma época romântica de pessoas contadas por meu


padrasto, em tempos de criança, ficaram registradas no meu inconsciente e
só nos anos 80 é que vieram a tona, saindo para fora todo aquele mundo de
fantasias criadas por mim, com as características fantasiosas de criança,
para isto acontecer foram anos de trabalho de busca, em anos de Atelier Livre 745
com o professor Baril, aprendendo técnicas que me deram segurança de botar
para fora aquilo que eu nem sabia que tinha, um tesouro guardado no fundo
do poço. E também acredito na minha persistência, minha paixão pela
novidade, pelo novo, pelo meu trabalho (Arquivos do MAVRS).

Uma artista com personalidade intensa, relata que depois de aprender diferentes técnicas
de pintura com vários professores, foi que obteve coragem de expressar com muito sentimento,
o que resultou em criações sem técnica específica, valendo-se somente de seu lado emocional.

CONCLUSÃO

Na análise da obra deste artigo (Figura 1), percebe-se um sentimento de satisfação


contraposto a figuras composta com um grafismo nervoso e preenchidas com cores vibrantes e
sensuais. Criando formas por vezes mutiladas e semigrotescas na simples superfície de uma
Eucatex recortada, em que essas figuras imaginadas brincam dentro de um cenário não mais
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reprimido por edificantes convenções, mas construído através de fulgurante conjunto de linhas,
formas e cores.

Além de se fazerem leituras interpretativas de uma de suas principais séries, O Cassino


da Maroca, ao estudar Ruth, tem-se um convite para pensar sobre a identidade cultural do Rio
Grande do Sul e do Brasil. Pode-se pensar ainda que existe uma pausa breve e generoso suspiro
quando se está diante dos retratos vivos de seu O Cassino da Maroca. Zé Augusto Marques,
amigo que acompanhou a produção de Ruth Schneider, comenta que em frente às obras da
pintora, considera que “a imensidão das madrugadas, dos gases reluzentes, das mulheres da
vida, mulheres anjo e demônios da sedução, nos levam para a viagem solta do passado”
[mensagem pessoal]

Suas lembranças infantis ultrapassam os limites do suporte das obras, desenhando as


pessoas próximas e estimadas. O que recebeu de sua avó e de seu padrasto de forma simples
foi temperada pelos conflitos próprios de uma sociedade interiorana. Observou, com rara
sensibilidade e humilde participação, os valores marcantes de uma paisagem humana ligada à
sua. O importante é que esse panorama, presidindo sua formação e criando o seu próprio 746
mundo, colocou-se imperativo na busca de uma caligrafia adequada: um traço para o seu
mundo; uma composição destravada e desalinhada para o exótico daqueles conflitos; uma cor
para o espaço de suas fantasias, na qual tanto vale a tinta, como o lápis e a colagem de padrões.

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<alicarmo@cultorprodutora.com.br> RE: Ruth Schneider

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Arquivo pessoal Ruth Schneider [Museu de Artes Visuais Ruth Schneider (MAVRS) Passo
Fundo (PF), Rio Grande do Sul].

747
ISSN: 2525-7501
O CULTO À MEMÓRIA DO CÔNEGO LUIZ GONZAGA DO MONTE A PARTIR
DOS LUGARES DE MEMÓRIA: O IHGRN, O SEMINÁRIO SÃO PEDRO E A ANL-
RN380
Bruna Rafaela de Lima Lopes381

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar e evidenciar o culto que é praticado à Memória do
Cônego Luiz Gonzaga do Monte (1905-1944) a partir das ações que são praticadas em três
lugares de memória do estado do Rio Grande do Norte, como o Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Norte (IHGRN), o Seminário São Pedro e a Academia Norte-Riograndense
de Letras (ANL-RN). Partimos da reflexão de alguns autores, como Regina Abreu, Pierre Nora,
Ângela de Castro Gomes, Joel Candau e Mário Chagas. As observações desses autores sobre:
memória, lugares de memória, memória política, comemorialismo, preservação da memória e
guarda da memória são essenciais na construção desse trabalho. As fontes principais desse
estudo são reportagens, artigos e imagens, as maiorias dessas fontes estão publicadas no jornal
católico, A Ordem e no jornal A República. Os lugares escolhidos para análise são instituições
em que os rituais simbólicos de rememoração estão em pauta constante. O indivíduo que é o
personagem escolhido dessa análise, o Cônego Monte, é lembrado até os dias atuais nas três 748
instituições, seja por comemorações ou eventos que envolvam sua história e sua obra, ou seja,
por espaços dentro desses lugares que levam o seu nome.

Palavras-chaves: Memória; Lugares de Memória; Cônego Monte.

Ao lado da escrita também imagens, objetos e a palavra falada foram fundamentais


no esforço de manutenção da memória de pessoas, lugares e épocas que se
acreditava ser necessário preservar.

Ana Paula Torres Megiani.

A partir dessa epígrafe, que destaca o ato de preservar de várias formas para garantir a
manutenção da memória, este texto tem por objetivo analisar e evidenciar o culto que é

380
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
381
Doutoranda na Pós-Graduação em História/ UNISINOS; Bolsista Prosup/CAPES. Professora de História do
IFRN.
ISSN: 2525-7501
praticado à Memória do Cônego382 Luiz Gonzaga do Monte (1905-1944) a partir das ações que
são praticadas em três lugares de memória do estado do Rio Grande do Norte, como o Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), o Seminário São Pedro e a Academia
Norte-Riograndense de Letras (ANL-RN). Partimos da reflexão de alguns autores para
nortearmos esse trabalho, dentre eles, Regina Abreu, em um de seus artigos e seguimos seu
raciocínio nesse trabalho para justificar nossa escolha por esses lugares, no qual ela cita Pierre
Nora que também será nosso guia:

a expressão "lugares de memória" serve como ponto de partida para este artigo. Dela
retenho a ideia central de um "lugar" onde o tempo transcorre num ritmo diverso
daquele em vigor num mundo em permanente e acelerado processo de transformação.
Nora assinala que a razão de ser fundamental de um "lugar de memória" consiste em
bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte,
materializar o imaterial para guardar o máximo de sentidos num mínimo de
signos. Por outro lado, os "lugares de memória" vivem de sua aptidão à metamorfose,
nas incessantes transformações de suas significações e em suas ramificações
imprevisíveis. (ABREU, p. 66, 1994).

749
Diante dessa observação de Abreu, consideramos essas três instituições da capital
potiguar como sendo lugares de memória, com poder em diversas esferas do Estado, como já
mencionado. Também nos ancoramos teoricamente para a construção desse paper na definição
do que seria um lugar de memória proposta Pierre Nora, que explicou a definição de lugar de
memória a partir de seus estudos e tornou esse conceito usual e notório, ao afirmar que:

mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só


é lugar de memória se a imaginação o investe de aura simbólica. Mesmo um lugar
puramente funcional, como um manual de aula, um testamento, uma associação de
antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de um ritual. [...] É material
por seu conteúdo demográfico; funcional por hipótese, pois garante ao mesmo tempo
a cristalização da lembrança e sua transmissão [...]. (NORA, 1993, p. 21-22).

382
Iremos utilizar o termo Cônego e o termo Padre para nos referirmos a Luiz Gonzaga do Monte. Que se tornou
Cônego em 1941.
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Partindo dessas observações de Regina Abreu e de Pierre Nora encontramos evidências
para compreender os três lugares escolhidos como de fato lugares de memória, que são
responsáveis por parte significativa da guarda da memória potiguar. Nessa lógica, vamos focar
nesses espaços para analisarmos a consagração da memória do Cônego Luiz Gonzaga do
Monte. Os lugares escolhidos são instituições em que os rituais simbólicos de rememoração
estão em pauta constante. O indivíduo que é o personagem escolhido dessa análise é lembrado
até os dias atuais nas três instituições, seja por comemorações ou eventos que envolvam sua
história e sua obra, ou seja, por espaços dentro desses lugares que levam o seu nome.

Luiz Gonzaga do Monte nasceu na cidade pernambucana de Vitória de Santo Antão383


no dia 3 de janeiro de 1905, filho de Pedro Monte e Berlamina Monte foi primogênito de uma
família de 05 filhos. Em 1907, em razão do pai se tornar trabalhador da estrada de ferro que
ligava Pernambuco ao Rio Grande do Norte, a família mudou-se para Pesqueira (também em
Pernambuco), João Pessoa (na Paraíba), Currais Novos e Natal (no Rio Grande do Norte),
cidade que chegou em 1917. Nessa época Natal era uma pequena cidade com pouco mais de
20.000 habitantes,384 devido ao tamanho e importância só foi transformada em Diocese em
1909 385.
750
O menino Luiz Monte ingressou no Seminário São Pedro, em Natal, no ano de
1919, com apenas 14 anos de idade, mas desde 1918 já fazia parte da Congregação Mariana de
Moços de Nossa Senhora da Apresentação e São Luís Gonzaga.386 Por ser de família humilde,

383
A cidade só passou a se chamar Vitória de Santo Antão em 1943. Na época do nascimento de Monte se chamava
Vitória.
384
Sobre a população de Natal nas primeiras décadas da República consultar o artigo do professor George Dantas
disponível em: http://www.ub.edu/geocrit/sn-94-96.htm
385
Natal foi transformada em Diocese, pelo papa Pio X, em 1909. Esteve vinculada sucessivamente à
Arquidiocese de São Salvador da Bahia até 1910, à Arquidiocese de Olinda até 1914 e à Arquidiocese da Paraíba
até 1952, quando foi criada a Arquidiocese de Natal. Sobre o assunto pode ser consultado na internet o sítio:

http://www.arquidiocesedenatal.org.br/arquidiocese/historiaarq.htm
386
Essa Congregação foi fundada, em 1918, em Natal, pelo Bispo recém-empossado Antônio dos Santos Cabral.
A Congregação foi uma tentativa do bispo de atrair jovens, que estavam se vinculando a instituições não religiosas,
para a Igreja. A visibilidade dessa Congregação foi adquirida na década de 1930, quando serviu de abrigo a Ação
Católica em Natal.
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o seu ingresso no seminário exigiu que sua mãe, em troca dos estudos do filho, passasse a lavar
e engomar as roupas dos seminaristas. Entre 1919 e 1922, Monte realizou os estudos
preparatórios de Filosofia e Teologia. Em 1922 tornou-se efetivamente um seminarista e, em
18 de setembro de 1927, foi ordenado padre na Catedral Metropolitana de Natal, com apenas
22 anos e, em maio de 1941, foi nomeado Cônego pela Arquidiocese do Maranhão. Pioneiro
dos estudos de mineralogia no Rio Grande do Norte e autor de vários trabalhos científicos.
Membro-fundador da Academia Norte-Riograndense de Letras. Cônego Monte como era
conhecido, foi ainda professor de latim, matemática, física, química, biologia e filosofia, orador
e cientista e se notabilizou por descobrir a scheelita no Rio Grande do Norte.

Faleceu, aos 39 anos de idade, em Natal, no dia 28 de fevereiro de 1944, às 11 horas


da manhã, vítima de tuberculose, o Cônego Luiz Gonzaga do Monte. Para o Cônego Jorge
O´Grady de Paiva387, ex-aluno de Monte e que presenciou o acontecimento, o efeito dessa morte
foi desolador para a cidade de Natal. “Sentia-se a orfandade. E, como raras vezes, a opressão
do mistério da morte.” (PAIVA, 1996, p. 331). Segundo Dom Heitor de Araújo Sales388, aluno
do Seminário São Pedro, naquela ocasião, foi marcante a repercussão imediata dessa morte: a
Igreja Católica local organizou celebrações oficiais; o bispo, os padres e os seminaristas
751
estavam com vestes de gala; vieram exclusivamente para as solenidades muitos religiosos e
leigos de outras cidades, inclusive de outros estados; formou-se uma fila enorme de pessoas
que beijavam a mão do falecido como um ato de despedida. (SALES, 2015). Os relatos dos
jornais de época informam que durante o sepultamento, no Cemitério do Alecrim, havia uma
grande multidão, e que Luís da Câmara Cascudo fez um discurso improvisado exaltando as
qualidades intelectuais, morais e religiosas de padre Monte.

O Cônego Jorge O´Grady de Paiva, no livro “Verdade e vida”, relata que caminhou ao
lado de Cascudo durante o cortejo que conduziu o corpo de Monte para o sepultamento no
cemitério do Alecrim. Segundo Paiva, durante esse cortejo Cascudo lhe teria segredado:
“tomemos o compromisso, diante do cadáver de Monte, de não deixar no olvido a sua obra.

387
O Cônego Jorge O’Grady é autor da primeira biografia do Padre Monte, o livro Verdade e Vida.
388
Um dos bispos eméritos da Arquidiocese de Natal, atualmente.
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Enfeixemos em um volume todos os seus artigos. Que se publiquem os livros que escreveu e
exalte a sua memória.” (PAIVA, 1996, p. 335).

Essas informações sobre o dia da morte e o enterro do Cônego Monte, nos possibilitam
retomar mais uma vez as reflexões de Regina Abreu sobre a questão do poder da memória de
se consolidar no cotidiano dos grupos sociais, nesse sentido afirma que:

A confecção de máscaras mortuárias, os discursos – necrológios – proferidos por


ocasião do enterro e a produção de biografias são algumas das formas empregadas
para manter viva a memória do indivíduo. Memória que, diga-se de passagem, é
construída item por item (ABREU, 1996, p. 67).

Seguindo a lógica de Abreu percebemos em padre Monte um indivíduo que teve sua
memória alimentada, construída e consagrada por alguns grupos no Rio Grande do Norte,
percebemos ao longo da pesquisa sobre a trajetória desse indivíduo que esses grupos fazem
parte, principalmente de três instituições no Estado. Instituições essas que estamos analisando
como lugares de memória que buscam consolidar a imagem desse padre como um santo e um 752
sábio.

Após o sepultamento, os jornais locais continuaram divulgando reportagens e artigos


sobre o acontecido e enfatizando o significado da perda tanto para os católicos, quanto para os
norte-rio-grandenses. Câmara Cascudo, que havia desfrutado da intimidade de Monte, publicou
alguns artigos sobre o Cônego. Um desses artigos, divulgado no jornal “A Ordem”, em 4 de
agosto de 1944, foi especial por expressar com veemência a perda de Monte. Nesse artigo,
Cascudo sentenciou: “depois de morto, mediu-se seu talento pela ausência dolorosa de seu
trabalho. Foram descobrindo, lentamente como quem reconstrói uma porcelana, os trabalhos
misteriosos, as caridades invisíveis de Luiz Gonzaga do Monte”. (CASCUDO, 1944). Percebe-
se na afirmação de Cascudo uma preocupação em valorizar a capacidade de renúncia das
pessoas, em enaltecer o trabalho desinteressado. Cascudo considerava que a memória da cidade
estava ameaçada pelo mundo “egoísta” e “indiferente” presente na cidade que crescia. Por isso,
era importante manter viva a memória de Monte. (ARRAIS, apud CASCUDO, 2010, p. 623-
648).
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No decorrer das décadas de 1950 e de 1960, várias homenagens foram prestadas ao
Cônego Monte. Como ele era muito presente na ANL-RN e no IHGRN, essas entidades
organizaram eventos especiais para homenageá-lo. Especificamente na Academia, entidade de
cujo lema (“Ad Lucem Versus” – Rumo à Luz) Monte havia sido o autor, foram realizadas
várias sessões específicas para saudar o Cônego. Nessas oportunidades sempre eram
convidados conferencistas diferentes para falar sobre o homenageado, tais como: Berta
Guilherme (da Juventude Feminina Católica), Maria Gurgel e o intelectual católico mariano,
Nilo Pereira. No Colégio Atheneu, escola da qual havia sido professor, se organizou uma
solenidade especial para colocar o seu retrato em destaque na sala da Diretoria. Fato semelhante
aconteceu na Associação de professores, que o tinha como presidente de honra. As entidades
católicas de Natal o homenagearam em diferentes oportunidades, dentre as quais destacamos o
Seminário São Pedro. (NAVARRO, 2009).

No IHGRN, encontramos a importância de padre Monte como intelectual do Estado a


partir do culto a sua memória. Na mais antiga instituição cultural do Estado, no interior do
Instituto, tem várias fotos de padre Monte espalhadas, e uma das salas de pesquisa tem uma
placa com o nome do padre apadrinhando o local e um busto dele inaugurado na festa do
753
centenário. Em 2005 teve um evento de grande porte em homenagem ao Centenário de
nascimento de Monte, organizado pelo IHGRN em parceria com o Conselho Estadual de
Cultura e com a ANL-RN, nesse evento o confrade Dr. Jurandyr Navarro proferiu a conferência
principal para homenagear o personagem da noite e afirmou para todos os presentes que é:

Muito difícil falar sobre personalidade tão significativa, que é o homenageado desta
noite, porque a sua pessoa transcende o comum dos mortais, sob o aspecto espiritual,
intelectual e moral. Trata-se de personalidade das mais singulares da sociedade norte-
rio-grandense. [...] Esse Centenário comemorativo lembra o primeiro intelectual do
Rio Grande do norte aclamado sábio. (NAVARRO, 2005, p. 10).

Diante dessa constatação, somos levados a concordar com Regina Abreu, quando ela
afirma “que as homenagens póstumas recriam a pessoa no templo da memória” (ABREU, 1996;
67). Nesse caso, esse templo seria o próprio IHGRN. Luís da Câmara Cascudo (1898-1986),
historiador oficial da cidade do Natal e confrade do Instituto, referindo-se ao IHGRN, escreveu
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uma mensagem que foi afixada em uma placa comemorativa na sede oficial da instituição: “O
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte não teve, em sua história, senão os
elementos mais altos da dignidade cultural do mundo. Foi à Casa da Justiça. Hoje é a Casa da
Memória”. (grifo nosso). Destacamos essa mensagem de Cascudo para enfatizarmos o lugar do
IHGRN na consagração da memória do Estado e de personalidades tidas como ilustres para a
História potiguar.

De casa da memória, como é chamado desde que Cascudo o batizou, o IHGRN foi
criado em 1902, no início da República, sendo um dos Institutos Históricos e Geográficos do
Brasil mais tardios, o que foi fruto das condições políticas e intelectuais do período no Estado.
Sobre a criação, o ex-presidente Valério Mesquita se pronunciou da seguinte forma:

Na tarde de 29 de março de 1902, doze homens impolutos se reuniram em Natal e


fundaram uma instituição que passou a ser conhecida como a Casa da Memória do
Rio Grande do Norte. Eram desembargadores, políticos, juízes, militares,
comerciantes, religiosos e jornalistas. Doze homens e uma sentença: “promover a
verdade histórica da vida potiguar em qualquer sentido”. Esse propósito está na ata
inaugural e ainda, até hoje, permanece como fidelidade consuetudinária e chama 754
votiva. (MESQUITA, 2015).

O IHGRN é uma associação civil, sem fins econômicos, com foro e sede na cidade de
Natal, capital do Estado do Rio Grande do Norte. Como uma das instituições mais antigas do
Estado no mundo das letras e da cultura, foi palco muitas vezes da presença do Padre Luiz
Gonzaga do Monte que é nosso objeto de estudo, e que é consagrado até a atualidade como o
primeiro potiguar a ser aclamado sábio. Embora envolvido com os confrades do IHGRN em
vida e lembrado sempre pela instituição, quando em vida participou de muitas das sessões
solenes e estava, frequentemente, na “casa da memória”, padre Monte nunca quis se tornar
sócio do Instituto. Nas palavras do confrade Dr. Jurandyr Navarro, “o Cônego Monte não
gostava de formalidades e de reconhecimentos que o fizessem aparecer”. Dr. Jurandyr atestou
ainda que “o Cônego Monte gostava de ajudar nos eventos e trabalhos do Instituto, de trabalhar
e não de aparecer”. (NAVARRO, 2009).

O Seminário de São Pedro foi fundado, oficialmente, em 15 de fevereiro de 1919, pelo


segundo bispo de Natal, Dom Antônio dos Santos Cabral. Luiz Gonzaga do Monte fez parte da
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primeira turma de seminaristas. A turma que abriu o Seminário de São Pedro contava com 12
alunos. O Seminário de São Pedro já formou e vem formando uma significativa quantidade de
sacerdotes que, ao longo de décadas, vem ajudando a edificar a Igreja Católica de Natal. No
decorrer dos anos, o Seminário de São Pedro tem oferecido à sociedade potiguar um rico legado
social e cultural. Além de gerar muitos sacerdotes para a Igreja de Natal, foi também o berço
cultural de muitos homens ilustres da sociedade potiguar. Entre os ex-alunos encontram-se
figuras de destaque nos campos artístico, político e acadêmico389.

O Seminário, até os dias atuais, promove algumas celebrações e encontros a fim de


preservar a memória da Igreja Católica e a trajetória de personalidades que marcaram a História
do Clero potiguar. Destacaremos dois eventos que atestam nossa afirmação e fazem com que
uma das características dessa instituição de formação seja também evidenciada. Uma dessas
características seria o culto e a valorização da memória da sociedade católica norte-rio-
grandense. Para isso o Seminário tem, constantemente, o trabalho de tornar viva a memória de
certos acontecimentos e de certas personalidades. Essa atividade de rememoração não deixa de
ser uma tarefa árdua de formação, afinal, de acordo com as ideias de Ângela de Castro Gomes:
755
[...] memória é um trabalho. Como atividade, ela refaz o passado segundo os
imperativos do presente de quem rememora, resignificando as noções de tempo e
espaço e selecionando o que vai e o que não vai ser “dito”, bem longe, naturalmente,
de um cálculo apenas consciente e utilitário. [...] A rememoração pode ser um difícil
processo de negociação entre o individual e o social, pelo qual identidades estejam
permanentemente sendo construídas e reconstruídas, garantindo-se uma certa coesão
à personalidade e ao grupo, concomitantemente. (GOMES, 1996, p. 22).

Partindo destas observações da historiadora Ângela de Castro Gomes sobre o trabalho


com a memória e o poder que esse trabalho assume perante a sociedade, apresentamos os dois
eventos que o Seminário sediou recentemente, a fim de recordar elementos de suma importância
para a formação dos seminaristas e também aspectos para valorizar a história da Igreja Católica
e da Igreja potiguar. O primeiro evento ocorreu em 17 de novembro do ano de 2015; a II

389
Essas informações sobre o Seminário foram colhidas no site da arquidiocese, disponível em:
http://arquidiocesedenatal.org.br/especiais/seminario-de-sao-pedro.
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Exposição do acervo da Biblioteca Cônego Monte, com o título: “Nosso clero também se
imortalizou”, a exposição organizou para a apreciação do público os livros do Cônego Monte,
Dom Nivaldo Monte e do Monsenhor Eymard. Os livros da exposição fazem parte do acervo
da biblioteca Cônego Luiz Monte, do Seminário de São Pedro. Esta foi a segunda exposição
realizada pelo Seminário com o acervo de sua biblioteca390. O outro evento foi I Colóquio
Teológico, que teve como tema: “Do conflito à comunhão: 500 anos da reforma protestante”,
391
promovido pelo Seminário de São Pedro e a Faculdade Dom Heitor Sales (FAHS) . Esses
dois eventos atestam o quanto o Seminário de São Pedro está preocupado em atualizar os seus
alunos através da valorização da memória de determinados fatos históricos do mundo cristão e
de personalidades do clero católico potiguar.

O primeiro evento citado, a II exposição da biblioteca diz respeito diretamente à


consagração da memória de padre Monte, tema do nosso estudo. O título da exposição nos
chama atenção, pois a ideia é a imortalidade, ao denominar a exposição de “Nosso clero
também se imortalizou”, o Seminário revelou sua intenção de consagrar a memória de três
figuras ilustres do clero potiguar, por meio de suas obras. Os dois irmãos, o primeiro: o Cônego
que é lembrado por sua genialidade e santidade; o segundo: o Arcebispo que é lembrado por ter
756
sido bispo da Arquidiocese e irmão do Cônego Monte; e o terceiro lembrado como poeta da
igreja potiguar.

O Seminário ao realizar um evento como esse, buscando imortalizar memórias por meio
de obras, assume o papel de um verdadeiro guardião da memória literária, científica e cultural
da Igreja norte-rio-grandense. O evento da exposição nos chama atenção para outro detalhe,
que seria o nome da biblioteca do Seminário de São Pedro: Biblioteca Cônego Luiz Monte. Esse
detalhe, da denominação da biblioteca do Seminário e o fato de no interior da biblioteca ter
esculturas com a imagem de Monte e também um busto do padre, a fim de tornar viva a sua
memória naquele lugar e a partir dessas ações, portanto, se irradiar para o cotidiano das pessoas
que ali visitam ou frequentam. Nesse sentido, é possível refletir com as ideias propostas por

390
Ver mais sobre essa exposição em: http://arquidiocesedenatal.org.br/seminario-de-sao-pedro-realizou-
exposicao-com-obras-de-padres-potiguares.html.
391
Ver mais sobre esse colóquio em: http://arquidiocesedenatal.org.br/seminario-e-faculdade-promovem-
coloquio-teologico.html.
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Joel Candau, especialista no estudo da memória e de seus usos, quando esse antropólogo
trabalhou com o poder da memória na construção do passado das sociedades. Candau observou
que:

[...] de uma maneira geral, todos os traços que têm por vocação “fixar” o passado
(lugares, escritos, comemorações monumentos etc.) contribuem para a manutenção e
transmissão de lembrança de dados factuais: estamos, assim, na presença de “passados
formalizados”, que vão limitar as possibilidades de interpretação do passado e que,
por essa razão, podem ser constitutivos de uma memória “educada”, ou mesmo
“institucional”, e, portanto, compartilhada. (CANDAU, 2011, p. 110).

A partir dessa ideia de Candau, fica evidente pra nós a função do Seminário na tentativa
de consagrar a memória desses ícones católicos, em especial de padre Monte, ao trazer sua
história por meio de suas obras, mas também ao publicizar as obras do acervo da biblioteca que
leva o seu nome. Essas ações do Seminário de São Pedro, evidenciam mais uma vez essa
instituição como um verdadeiro Guardião de memória392.

No Seminário poderíamos também destacar muitos eventos em homenagem ao padre


757
Monte, seja em referência ao seu nascimento, a sua genialidade, a sua morte ou ao processo de
beatificação aberto pela Arquidiocese de Natal, durante as festividades do centenário em 2005.
As notícias sobre esses eventos estão publicadas, em sua maioria, em edições do Jornal católico,
A ORDEM, o que elege o seminário como sendo esse lugar que guarda/possui as “marcas” sobre
a memória de padre Monte, tanto porque se torna um ponto de convergência de histórias vividas
por muitos outros do grupo de convivência do padre (vivos e mortos); quanto porque é o
“colecionador” dos objetos materiais que encerram aquela memória. Os “objetos de memória”
são eminentemente bens simbólicos que contêm a trajetória e afetividade do grupo ou do
indivíduo. Ser guardião da memória torna-se um projeto. (GOMES, 1996, p. 17-30).

O terceiro lugar de memória escolhido para analisarmos o processo de consagração da


memória de padre Monte foi a Academia Norte-Riograndense de Letras, a ANL-RN, essa
instituição está comemorando 80 anos em 2016, marcada por significativas atividades e

392
Discutiremos essa ideia a partir das ideias de Ângela de Castro Gomes.
ISSN: 2525-7501
produções. A ANL-RN foi criada em 14 de novembro de 1936, por um grupo de intelectuais
que se reunia para pensar as artes, as letras e a cultura potiguar. Esse grupo era liderado por
nomes como Luís da Câmara Cascudo e Henrique Castriciano, respectivamente, o primeiro
secretário geral do órgão e o primeiro presidente. Aliado a esses dois intelectuais e tantos outros,
estava o padre Luiz Gonzaga do Monte, que foi autor do lema da academia, como já
mencionado nesse texto. Para ilustrar esse momento da criação da Academia e a importância
desse órgão para o mundo das letras e da memória potiguar, apresentamos a reportagem sobre
a criação da instituição que foi publicada, no jornal A República, órgão oficial da imprensa do
Estado. Nessa reportagem é ressaltada a presença de alguns dos homens de letras ilustres na
reunião de constituição do órgão, a saber:

[...] no intuito de movimentar e reunir em sociedade os nomes que constituem o nosso


meio literário, numerosos intelectuais [sic] conterrâneos resolveram promover a
fundação, nesta capital, da Academia Norte Rio-grandense de Letras. [...] Após
diversas reuniões de homens de letras de nossa terra na residência do escritor Luiz da
Câmara Cascudo, effectuar-se –á [sic] hoje a sessão preliminar de constituição da
nossa Academia de Letras. Deverão comparecer a essa reunião, os sócios fundadores,
Antônio Soares de Araújo, Clementino Câmara, Edgar Barbosa, Juvenal Lamartine,
758
Padre Luiz Monte, Câmara Cascudo [...]. (Jornal A REPÚBLICA, 1936, p. 01).

Do momento das reuniões para pensar o projeto da Academia, as primeiras reuniões até
ficar doente e falecer, o padre Monte esteve presente, constantemente, nas atividades da
Academia. Essa instituição reconheceu a atuação do Padre na percepção de alguns acadêmicos,
e nomeou a biblioteca da Academia de “Biblioteca Padre Luiz Monte” e, em diversas sessões
solenes homenageou padre Monte após sua morte, seja nas décadas de 1950 e 1960 como já
mencionado, ou seja, mais recentemente. A memória de padre Monte na Academia vem sendo
celebrada em várias comemorações e situações, essas ações da academia nos levam a pensar
como Joel Candau, em relação ao excesso dessas comemorações. Nesse sentido, Candau afirma
que:

A compulsão memorial se exprime de múltiplas formas: comemorações (de mais em


mais celebradas no registro do que eu proponho chamar comemorialismo) [...] isto é,
uma moral imperiosa da comemoração que invade o campo politico-midiático e o
ISSN: 2525-7501
debate público, aniversários, conflitos de memória, paixão genealógica, retrospecção
generalizada, busca de origens ou “raízes”, gosto pelas biografias e narrativas de vida,
reemergencia ou invenção de numerosas tradições e outras formas ritualizadas da
reminiscência. (CANDAU, 2009, p. 43).

Esse “comemorialismo” ressaltado por Candau nos recorda a forma como a memória de
padre Monte vem sendo consagrada, como exemplo a placa que nomeia a biblioteca da ANL-
RN é datada, e consta do momento da comemoração do Centenário de padre Monte, em 2005.
Mais um elemento da comemoração, porém com uma ressalva, na Academia, assim como nos
demais lugares que apresentamos, o que vemos são momentos de recordação, celebrações
programadas. Não existe nesses lugares algum elemento que nos faça entender o porquê dessas
festividades, ou o porquê desses bustos, placas comemorativas, fotos espalhadas nas paredes.
O que existe é algo pronto, dado e que parece ter que ser aceito sem nenhum questionamento.
Essa imposição da memória por meio das celebrações, como uma espécie de determinismo do
que devemos lembrar e do que devemos esquecer nesses lugares, remete a ideia de Candau

759
sobre a hierarquização das memórias a partir das celebrações, nessa lógica:

[...] a vista de um mesmo acontecimento histórico, a celebração estabelece uma


hierarquia das memórias – materializadas nos nomes das ruas, nas placas
comemorativas, na colocação de estátuas e monumentos. [...] Cada memória pode ser
ela própria definida em relevo, pelas falhas, os buracos, as ausências [...]. Mas não
basta transmitir uma memória, o que é feito por ocasião de cada celebração.
(CANDAU, 2005, p. 108).

Concordando com Candau, constatamos que a memória de padre Monte, mesmo sendo
consagrada nesses lugares por meio dessas homenagens e celebrações, ela não é transmitida,
pois essa memória não consegue transcender aos muros desses lugares. São muito raras as
pessoas que estejam fora do cotidiano desses três lugares e que saibam quem foi o padre Luiz
Gonzaga do Monte, mesmo quem viveu na época, mas que por estar fora desses espaços não
lembra quem foi ele. Dessa forma, advertindo sobre as ausências e as lacunas que Candau
apontou na definição de cada memória, destacando os possíveis tipos de memória, fica a
pergunta: a memória sobre padre Monte seria uma memória coletiva? (uma memória do grupo
que viveu o fato) – uma memória partilhada? (de um grupo ainda menor que viveu e partilha o
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fato) ou uma memória social? (institucional e oficial), essas descrições sinalizadas entre
parênteses, desses tipos de memória, se baseiam na reflexão mais densa proposta por Joel
Candau. (CANDAU, 2005, p.83).

Nessa lógica dos vários tipos de memória que permeiam a sociedade e os estudos sobre
o tema, percebemos que precisamos de muita pesquisa e de muitas análises para nos
apropriarmos da construção da memória feita sobre padre Monte, e então, caracterizarmos essa
memória para assim entendermos o alcance que essa memória quer atingir ou atingiu, pois como
afirmou Candau ao tratar das partilhas das memórias por um grupo específico de indivíduos,
“[...] a sociedade produz as percepções fundamentais que por meio de analogias, ligações entre
lugares, pessoas, ideias, etc., suscitam recordações que podem ser partilhadas por vários
indivíduos e até mesmo por uma sociedade inteira” (CANDAU, 2005, p. 90).

Com esse estudo sobre a consagração da memória de padre Monte em lugares que são
relevantes no campo das lembranças do estado do Rio Grande do Norte. Lugares esses que
foram palco das ações de Monte em vida, bem como que continuaram a lembrar de suas ações
após a sua morte. Foi possível discutir a construção da memória em torno da preservação da 760
trajetória do padre Monte para o consagrar como um homem de grande relevância na mais alta
cultura potiguar. No decorrer da escrita desse trabalho nos debruçamos sobre fontes que nos
levaram por muitos caminhos e nos deixaram com muitas inquietações sobre a relação entre a
memória que é construída sobre Monte e a sua preservação atualmente. Fato esse que nos fez
recordar algumas reflexões propostas por Mário Chagas, quando discutiu a relação entre
memória e poder e entre memória e política. Chagas, definiu que:

Memória e poder exigem-se. Onde há poder, há resistência, há memória e há


esquecimento. O caráter seletivo da memória implica o reconhecimento de sua
vulnerabilidade à ação política de eleger, reeleger, subtrair, adicionar, excluir e incluir
fragmentos no campo memorável. A ação política, por seu turno, invoca, com
frequência, o concurso da memória, seja para afirmar o novo, cuja eclosão dela
depende, seja para ancorar no passado, em marcos fundadores especialmente
selecionados, a experiência que se desenrola no presente. (CHAGAS, 2009, p. 136).
ISSN: 2525-7501
Nesse sentido, essa questão das ações de poder na construção da memória proposta por
Chagas vai ao encontro do que analisamos sobre a construção da memória de padre Monte nas
instituições estudadas, que são também lugares de poder e também de um poder político forte
no Estado, lugares que têm poder de selecionar o como e o que deve ser lembrado e para quem
deve ser lembrado. Assim, chegamos as nossas considerações finais com a expectativa de ter
refletido de alguma forma o poder da consagração memorialística na preservação da figura de
um indivíduo e de como esse poder sobre a memória de uma personalidade é imposto ou
fomentado por um determinado grupo.

Desse modo, após tantas inquietações que esse trabalho nos provocou, mapearemos,
futuramente, outras possibilidades interpretativas, a partir de um montante ainda maior de
fontes. Refletiremos essas questões da repetição sobre as celebrações a fim de consolidar a
memória de Monte, pois um bom indicativo da eficácia do processo de instituição de uma
memória, coletiva ou individual, é a repetição, o quanto ela é (re)lembrada. Isso atesta sua
capacidade de mobilizar as pessoas e de produzir identidades. Ou seja, sua vitalidade.
(POLLAK 1989; 1990).
761
Para a continuação da pesquisa, abordaremos com mais ênfase uma das relações
apontada nesse texto que foi a questão do poder de preservação de uma memória na concepção
de uma trajetória intelectual. Esse exercício será muito válido, pois estamos envolvidos na
pesquisa com a trajetória intelectual de padre Monte e essa relação entre memória, lugares de
memória, preservação, celebração e poder será significativa para entendermos a construção de
padre Monte, enquanto um intelectual.

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ISSN: 2525-7501
PATRIMÔNIO CULTURAL E MEMÓRIA SOCIAL NA FRONTEIRA SUL:
ESTUDO DE CASO DA ASSOCIAÇÃO CRUZEIRO JAGUARENSE (1881-2016) EM
JAGUARÃO RS *393

Alan Dutra de Melo**

Ronaldo Bernardino Colvero***

RESUMO

O presente trabalho está vinculado ao programa de pós-graduação em Memória Social e


Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas. A tese em andamento aborda a
constituição de uma entidade associativa recreativa fundada no dia 14 e agosto de 188. Trata-
se do “Club Jaguarense” no município de Jaguarão, localizado no extremo sul do Rio Grande
do sul, fazendo fronteira com cidade de Rio Branco no Uruguai. A pesquisa problematiza ainda
a sua patrimonialização recente já com a denominação atual como Associação Cruzeiro
Jaguarense, nome adotado após a fusão com um clube de futebol local, o Esporte Clube 764
Cruzeiro do Sul no ano de 1975. Entretanto, o fato que sublinha o interesse da Associação
Cruzeiro Jaguarense como objeto de estudo e problematização na área do patrimônio cultural e
da memória social foi quando telhado da sede central da entidade desabou no dia 02 de
novembro de 2011. Logo após o imóvel passou por reparos emergenciais com aporte do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O investimento na recuperação do
imóvel foi possível devido ao mesmo estar localizado em área tombada pelo governo federal
em 2011, em virtude do reconhecimento do conjunto histórico e paisagístico. E atualmente o
imóvel sede da entidade segue interditado aguardando a devida restauração. Além disso,
existem mudanças nos padrões de sociabilidade que apontam também para o declínio no
número de associados nesta modalidade de agremiação, corroborando para a relevância do
estudo. A metodologia adotada trabalha com fontes documentais da Associação Cruzeiros
Jaguarense, assim como jornais e história oral. Os resultados preliminares apontam para a
relevância cultural do bem cultural em questão como documento, monumento e suporte de
memória.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural – Associação Cruzeiro Jaguarense – Jaguarão

393
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
ISSN: 2525-7501

INTRODUÇÃO

Este trabalho aborda o patrimônio cultural como dispositivo social e político incorporado
recentemente dentro da trajetória da Associação Cruzeiro Jaguaresene localizada no Município
de Jaguarão, outrora a entidade foi denominada em sua fundação no dia 14 de agosto de 1881
como “Club Jaguarense”. A associação é sucessora da antiga sociedade bailante “Recreação
Familiar Jaguarense” com finalidade inicial de recreio e diversões, fundada no ano de 1852.
Atualmente a sua atuação é caracterizda como entidade da sociedade civil com finalidade
recreativa e esportiva, localizada no município de Jaguarão RS (27.931 habitantes/IBGE 2010).
O primeiro presidente da clube foi o advogado Henrique D’Ávila, que exerceu a presidência da
Província de São Pedro do Rio Grande do Sul entre os anos de 1880 e 1881 como membro do
Partido Liberal durante o Estado Imperial. O trabalho idenficou um documento no Instituto
Histórico e Geográfico de Jaguarão, datado do ano de 1879 onde Henrique D’Ávila pode ser
identificado como presidente da bailante “Recreação Familiar Jaguarense”. E Especificamente
sobe a importância de Henrique D´Ávila no período imperial foi publicado trabalho recente de 765
(BOTH, 2016), dissertação de mestrado em História.

O clube social funcionou com regularidade durante todo o século desde a sua abertura e
durante o século XX, mas sofreu um revés significativo recentemente, durante no dia 02 de
novembro de de 2011 quando caiu parte da sua cobertura, localizada na esquina entre a Praça
Alcides Marques e a Rua Carlos Barbosa.

Logo, após o sinistro o imóvel recebeu recursos para reparo emergencial tendo em vista
que trata-se de bem protegido pelo governo federal, em virtude de ser um exemplar incluído
dentro do processo de tombamento do conjunto histórico e paisagístico realizado pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O imóvel dentro do conjunto protegido foi
classificado no estudo que deu origem ao tombamento como de proteção máxima, ou seja,
rigorora. E na placa da obra presente no interior do clube neste ano, ainda aparece o valor
utilizado que foi de R$ 447.704, 24 (quatrocentos e quarenta e sete mil reais com setecentos e
quatro reais e vinte e quatro centavos), e o objeto do contrato foi a “Estabilização Emergencial
ISSN: 2525-7501
do Clube Jaguarense” dentro do Programa de Aceleração do Crescimento, PAC Cidades
Históricas.

O imóvel sede da entidade está incluído em ação de preservação pelo governo federal
também dentro do chamado PAC Cidades históricias. Em seu processo de solicitação de
recursos para qualificação, instruído pela Prefeitura Municipal de Jaguarão o valor estimado
para a sua restauração hoje é de R$ 3.500.000,00 (três milhões e quinhentos mil reais). No
entanto o valor mencioando é elevado para os padrões locais, e isto por um lado aponta a
expectativa de uma requalificação efetiva e profissional do bem, entretanto inviabiliza a sua
recuperação com recursos próprios. Portanto, este modelo de negócio, eficiente, mas
dispendioso, merece a devida problematização, e neste caminho aponta (CASTRIOTA 2009,
p. 153 - 171).

Portanto, como preservar um bem cultural urbano particular, levando em conta as suas
especificidades, sem que o estado faça uma operação que seria próxima e análoga a uma
desapropriação indireta. E ainda neste ponto cabe citar (BORDIEU, 2011), ao mostrar as duas
faces do estado, quando por um lado busca universalizar um bem, mas que de fato esta 766
universalização comporta uma necessária desapropriação, dentificada como efeito Janus.

Ainda precisa ser destacado que foi constado durante o trabalho de campo que o número
de associados da entidade está em declínio, fato acentuado após a interdição da sede social
localizada no centro da cidade, mais especificamente no quadrilatero central. E atualmente a
associação funciona apenas em sua sede campestre, e o fluxo de pessoas é maior no período do
verão em virtude da existência de uma piscina. A associação conta ainda com um campo de
futebol, originário da fusão com o Esporte Clube Cruzeiro, fundado em 27 de abril de 1924, e
no dia 10 de julho de 1975 ocorreu a fusão com o Clube Jaguarense, já em virtude das
dificuldades que passava o a entidade esportiva, de tal modo que foi uma alternativa também
seguida por outras entidades futebolisticas que tomaram como opção somar o seu patrimônio
ao dos clubes socias para permancer em atividade. Especificamente sobre futebol em Jaguarão
ver (ORCELI, 2005).

E acerca destas questões que envolvem o patrimônio cultural, bem como o sentido de
perda e desalento que acompanha esta temática, especialmente no interior profundo do Brasil
ISSN: 2525-7501
talvez seja necessário problematizar (MARTINS, 2015 p. 251-252) ao identificar que sob as
formas modernas da arquitetura existe um Brasil arcaíco, portanto, acresço poderia-se pensar
quiçá no conceito de modernidade epidérmica.

Além do mais, corrobora para indagações deste estudo a existência de dívidas do objeto
de estudo, especialmente com o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD),
entidade que atua na defesa dos direitos autorais de execução pública musical, e esta em lítigio
com este clube social, buscando a execução das dívidas. A atuação da entidade é meritória na
defesa dos direitos autorais, mas nõ é incomum ocorrem questionamentos sobre a sua atuação,
por um lado especialmente das entidades que são executadas como devedoras de direitos
autorais.

Portanto, a Associação Cruzeiro Jaguarense hoje também perece em virtude de processos


de cobrança judicial, e em um deles a sede social do centro, objeto deste estudo, já foi a leilão
avaliada em 2.250.00(dois milhões e duzentos e cinquenta mil reais), e naquele momento no
ano de 2015 não foi concretizada a operação, por tratar-se de imóvel tombado, e assim antes da
compra por um particular, o bem deve ser ofertado ao poder público, entendo que aos três 767
níveis, ou seja, municipal, estadual e federal.

Desta forma é possível que o clube possa ter uma outra finalidade em seu futuro, seja
pública ou privada, de modo que é mais um elemento que aponta a importância de se
compreender a trajetória da associação e por outro problematizar o bem como patimônio
cultural nacional e local.

Além disso, cabe citar trabalhos que versam sobre a patrimonialização de clubes sociais,
e merece menção os trabalhos realizados sobre sobre o Clube 24 de Agosto, como local onde
estavam organizados e segregados os grupos de etnia negra em sua origem, devido a
impossibildade de frequentar outras entidades destinadas exclusivamente aos grupos de etnia
branca, conforme (NUNES, 2015) e mais recentemente em (LIMA, 2015) problematizando o
processo de patrimonialização do Clube 24 de Agosto que culminou com o seu tombamento
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Estadual – IPHAE RS.

E sobre o tema foi utilizado estudo realizado em Pelotas, como o trabalho de (BARRETO,
1991) versando sobre ow 80 anos do Clube Brilhante, e ainda com relação ao reconhecimento
ISSN: 2525-7501
dos clubes sociais negros como patrimônio e lugar de memória (ESCOBAR, 2010), trabalho
precursor para a compreensão do valor existente nos clubes sociais, bem como a sua
possibilidade de patrimonialização.

E ainda sobre clubes socias matéria recente no Jornal do Comércio (2016) de Porto Alegre
que produziu uma notícia sobre os impasses neste tipo de entidade, buscando manter as suas
atividades, diversificá-las e em outras realizam parcerias com a iniciativa privada, concedendo
parte do uso dos seus bens de forma onerosa, aumentando a sua receita e em também alienando
o patrimônio, ou parte dele, pois normalmente estes imóveis também são objeto de desejo de
investidores. Por fim ainda sobre Clubes Sociais cita-se (ATALAH, 2014 p. 536-547) ao
abordar o desabamento da cobertura de um imóvel do Clube Caixeiral em Rio Grande e a sua
repercução através da imprensa.

Os clubes foram importantes modos de associação da sociedade civil no século XIX, com
a finalidade reacreativa e de sociabilidade, divididos normalmente entre estas entidades em
grupos mais elitizados, como o próprio objeto deste estudo, que estava vinculado inicialmente
aos grupos da elite mais tradicional do município, onde aportavam lideranças monarquistas, e 768
que logo entraram em oposição e complementariedade com outra entidade social nascente na
última década do século XIX em Jaguarão, que foi o Clube Harmonia, onde estavam
congregados grupos republicanos em ascenção. Portanto havia naquele momento uma ruptura
geracional e também política. E entre os republicanos cabe citar Carlos Barbosa Gonçalves,
médico que mais tarde seria Presidente do Estado do Rio Grande do Sul entre 1908 e 1913 pelo
Partido Republicano Rio Grandense.

Estas entidades, e especificamente a que é objeto de estudo, só recebeu associados negros


no começo da década de 1990, coorroborando com o trabalho mencionado (NUNES, 2015 op.
cit.) onde fica esclarecida a segregação social e étnica nestes espaços de sociabilidade, que além
do lazer, esporte e recreação também possuiam normalmente algum viés político. E o estydo
em tela aponta ainda o clube como dispositivo relevante nos sistemas familiares que envolviam
o disciplinamento das famílias, em especial com proeminência dos homens sobre as mulheres,
filhos e filhas, portanto atuando como dispositivo regulador dos matrimônios e das famílias.
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Pode-se dizer ainda que o clube social seria um lugar para o aprimoramento de virtudes,
tendo em vista que grande parte do trabalho era realizado pelos próprios associados, e por outro
contribui com a formação de lideranças, tendo em vista que fazer as atividades acontecerem
requer grande energia e experiência na área de gestão de processos e conflitos. E por outro
lado, esta gestão mais pessoal, tradicional, ou ainda pré-moderna tende a colidir com a
crescente complexidade da burocracia estatal e das inúmeras exigências que ficam submetidas
estas entidades.

Ainda sobre a questão de gênero, embora não esteja no centro deste trabalho, mas pode
ser mencionado que de forma quase que exclusiva as diretorias da entidade estuda foram
compostas por homens, em especial a presidência da associação. Isto pode ser aferido inclusive
até os dias de hoje, pois a atual diretoria da Associação Cruzeiro Jaguarense não conta com
nenhuma mulher no grupo dirigente da entidade.

Cabe ainda mencionar aqui que o pesquisador deste trabalho participou por 2 anos da
diretoria da entidade (2014-2015) como segundo secretário, antes de começar a realizar esta
pesquisa em 2016 e atualmente encontra-se desligado do grupo diretivo, bem como não está 769
mais associado a entidade.

E especificamente sobre Jaguarão e a ocupação da fronteira do Brasil meridional foram


utilizados (CECHIN, 1979), FRANCO (2001), FRANCO(1980), dando maior relevo às teses
de (COLVERO, 2015), (MARTINS 2002), (MIRANDA 2002) e (SANTOS, 2007). E para
patrimônio cultural na cidade o trabalho precursor dos demais executado desde a década de
1980 (OLIVEIRA, 2005), e outro mais próximo do contexto atual do processo de tombamento
nacional através de (RIBEIRO et. al. 2005). Especificamente sobre o Clube Jaguarense cabe
elencar trabalhos e citações importantes em (SOARES, 2007), (SOARES, FRANCO 2010). E
para melhor compreender as indagações sobre as razões e sensibilidades sobre o atraso
economico no sul do Rio grande do Sul foi utilizada (PESAVENTO, 2012).E acerca do e
Patrimônio Cultural (CASTRIOTA, 2009), (MENESES, 2009) e (VARINE, 2013).

Figura 1: Mapa localizando Jaguarão no Estado do Rio Grande do Sul


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770

Fonte: Acervo do projeto. Autoria: Anelize Milano Cardoso (2016).


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Figura 3: Fachada atual da entidade

Fonte: Acervo do projeto. Autor do trabalho (2016).

1. Capítulo I - Metodologia

A metodologia adotada foi análise historiografica com enfoque interdisciplinar para a


compreensão dos valores presentes na Associação Cruzeiro Jaguarense. O trabalho adotou
ainda o estudo de campo como procedimento metodológico para a compreensão do fenômeno
social estudo. E para tal foi utilizado como referência (GRAY, 2012) e (GIL, 2014). E na área
de História Oral (MEIHY, 2015) e especificamente no campo da História Cultural
(PESAVENTO, 2005). O trabalho de campo, ainda em andamento, está baseado em análise dos
jornais do século XIX disponíveis no Instituto Histórico e Geográfico de Jaguarão, para
771
compreender o momento de instalação da entidade como Club Jaguarense ao final daquele
século, bem como a sua entidade precedente, a antiga sociedade bailante “Recreação Familiar
Jaguarense”.

Especificamente sobre a bailanta não existe nem mesmo uma referência de onde
funcionava tal entidade no município e assim a utilização dos jornais tem sido de grande valia.
E sobre a Associação Cruzeiro Jaguarense não foram encontradas junto à entidade as atas mais
antigas, logo o uso de jornais passa a ser um dos modos de se compreender a projeção da
entidade na sociedade. Especcificamente em períodos intermediários, meados do século XX é
possível conhcer a entidade não só pelos periódicos mas também através da história oral. E
mais recentemente existem algumas atas e foi utilizada também história oral com pessoasque
são ou foram vinculada a entidade.

2. Capitulo II – Resultados e Discussão


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Até o momento está concluso o trabalho de análise do trabalho no século XIX, em sua
maior parte nos jornais, onde foi possível identificar rico material acerca da sociedade
jaguarense naquele período, abrangendo o período anterior a fundação do Club Jaguarense em
1881 e após este período até chegar ao ponto da virada do década em 1890, passando por dois
marcos fundadores da sociedade brasileira que foram a abolição da escravidão em 1888 e a
proclamação da repúbica em 1889. Especificamente sobre o período anterior a 1881 foi possível
identificar a realização de festas, saraus, bailes em uma sociedade recreativa única para a elite
local em Jaguarão, a chamada sociedade bailante “Rrecreação Familiar Jaguarense”.

E foram identificados na análise dos resultados a realização dos bailes naquelas décadas
antecedentes como fato social de grande relevância, encontrao em relatos diretos através de
crônicas dos acontecimentos e também já em formato de litetarutura via folhetins e poemas. A
realização dos bailes foi percebida como um dispositivo social social para celebrações de
caráter coletivo da elite local, e em especial foi identificada a comemoração do dia sete de
setembro em virtude da independência do Brasil.

Após no período posterior a 1881 existe um processo de fusão das elites em um clube 772
único, mas logo ocorre uma cisão, tendo em vista que as lideranças mais tradicionais estavam
no Clube Jaguarense, onde uma o trabalho identificou como proeminentes durante a sua a
fundação o advogado Henrique D’Ávila, filiado ao Partido Liberal no período do Estado
Imperial, portanto membro da elite monárquica na fronteira e na outra banda da elite foi erguido
o Clube Harmonia, tal entidade congregou uma elite em plena proeminência, em especial
republicanos que ascenderam ao poder mais tarde e pode-se citar Carlos Barbosa Gonçalves,
republicano do Partido Republicano Riograndensedem que mais tarde será Presidente do
Estado do Rio Grande do Sul (1908-1913).

E acerca dos conflitos de memória o trabalho identificou também uma rua bem ao centro
do município de Jaguarão, que passa ao lado da sede central do clube em estudo onde existe
uma rua denominada de Carlos Barbosa que outrora já foi chamada de Henrique D’Ávila.
Assim o trabalho já identificou a importância da agora denominada Associação Cruzeiro
Jaguarense, assim chamada em virtude de uma fusão com o clube de futebol Cruzeiro, como
documento, suporte de memória e monumento onde estão inscritas, e em parte também
silenciadas uma parte da história que conforma a sociedade brasileira e sul rio grandense.
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CONCLUSÃO

As conclusões do estudo apontam para a necessidade de prosseguir com o trabalho para


o registro da história da Associação Cruzerio Jaguarense, tendo em vista a sua trajetória, como
espaço social relevante para a formação das elites no Brasil meridional, especificamente no
município de Jaguarão.

O trabalho aponta para a necessidade de problematizar o bem em estudo em relação à


categoria patrimônio cultural como um dispositivo importante, complexo e conflitivo. Por fim,
restam também indagações que estão relacionadas ao processo de tombamento recente do
conjunto histórico e paisagístico do município de Jaguarão através do IPHAN, bem como a 773
expectativa de restauração do bem cultural em questão.

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MEMÓRIAS SEM CASA: O VIÉS POLÍTICO DA MEMÓRIA NO ACERVO DA
COLEÇÃO MOSSOROENSE E SUA CONSTRUÇÃO E AFIRMAÇÃO COMO
PATRIMÔNIO INTELECTUAL DO RIO GRANDE DO NORTE*394

Francisco Fabiano de Freitas Mendes**395

RESUMO

A Coleção Mossoroense é um conjunto eclético que compreende cerca de 4.000 mil títulos.
Idealizada no final dos anos 1940 por Jerônimo Vingt-un Rosado, a coleção – hoje sob a guarda
de uma fundação que leva o nome do seu criador e enfrenta a mais aguda crise financeira de
sua história –, teve e tem como missão o duplo papel de se tornar um acervo horizontal das
mais variadas temáticas, ligadas ou não ao universo acadêmico, concomitante ao papel de se
constituir como mecanismo adaptável de registro dos feitos e da irradiação de projetos e
ideários do grupo político local que durante boa parte dos últimos 70 anos esteve à frente do
poder em Mossoró e região Oeste Potiguar e que agora, no final de 2016 volta a assumir a
prefeitura da cidade. Essa comunicação pretende discutir o viés político da coleção a partir de
elementos do seu acervo e ver como se deu a relação com o campo político num jogo de
retroalimentação que fez da Coleção Mossoroense um patrimônio cultural de e para uma elite
ciente do papel da memória. Pretende também mostrar a situação em que se encontra o acervo
777
e em que medida ele se torna essencial na discussão historiográfica sobre a região Oeste
Potiguar.

Palavras-chave: Memória. Política. Patrimônio.

INTRODUÇÃO

Em Alegria, alegria (1968), numa demonstração de espanto negativo, Caetano Veloso


canta “... quem lê tanta notícia!?” Aspecto de uma contracultura proposta, ignorar as “fotos” e

394
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria. Este
texto faz parte de uma série de textos já construídos – ou em construção –, resultantes do projeto de Iniciação
Científica: “A captura do olhar do outro na construção identitária de Mossoró através da Coleção Mossoroense:
cultura letrada e poder local – 1949-2009”.
395
** Doutor em História Social – USP, prof. adjunto do Dep. de História – Campus Central – Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte-UERN, projeto financiado pelo CNPq e pela UERN, fffmendes74@gmail.com.
ISSN: 2525-7501
“nomes” das “bancas de revista” remetia, dentre as alternativas do período, a um jogo que
dessacralizava a memória e buscava fugir da formação obtida nas “salas de jantar”, nos bancos
das escolas, nas poltronas diante das telas de TV e no consumo da leitura periódica. Sabe-se
que poucos elementos da contracultura vingaram e que o próprio compositor e escritor baiano
acomodou-se, a seu modo, ao mainstream da música brasileira.

No mesmo 1968, em Mossoró, principal cidade do interior do Rio Grande do Norte, a


elite política local, a família Rosado, lançava Jerônimo Vingt-un Rosado Maia candidato a
prefeito.396 Essa aposta estava na contramão da contracultura, ou seja, era a continuidade de um
projeto que em Mossoró teve como momento se não fundante, mas decerto apoteótico o
mandato de Dix-sept Rosado, eleito prefeito vinte anos antes. Em 1948, era parte das promessas
do novo prefeito promover uma “cruzada” pela cultura mossoroense. É nesse período que
Vingt-un Rosado se tornaria o que ele mesmo denominou de “soldado da cultura”.

A chamada “batalha da cultura” encontrou Vingt-un Rosado devidamente posicionado


numa cultura letrada local de base conservadora a serviço da instalação progressiva do que se
entendia como uma necessária modernização da educação local, que se daria conjuntamente à 778
manutenção da memória da elite (com destaque para os próprios Rosados) e em associação com
um projeto que tornaria Mossoró uma espécie de capital do interior do estado e uma força
política cuja zona de influência maior era a mesorregião do Oeste Potiguar que ainda precisava
ser “inventada”. O projeto passava pela construção simbólica mas dependia também de outras
ações, como a solução dos problemas com o abastecimento de água e o problema da energia
elétrica, outras “batalhas” que ajudaram no chamamento coletivo e no fincamento da família
no poder local.

396
Vingt-un Rosado (1920-2005) foi o vigésimo primeiro e último filho de Jerônimo Ribeiro Rosado e Isaura
Rosado Maia, sua segunda esposa. O patriarca da família Rosado foi um paraibano da cidade de Pombal que em
1890 se mudou para Mossoró a convite de um amigo cearense para instalar uma farmácia. Instalado na nova cidade
e aproveitando a posição de empresário, de aliado das lideranças políticas locais e da experiência como fiscal da
iluminação pública no Rio de Janeiro, Jerônimo Rosado se destacou como empreendedor e negociante de
oportunidades aliando serviços públicos e iniciativa privada, chegando inclusive a assumir a intendência do
município em mais de uma ocasião. Essa é a raiz do poder econômico e do diálogo estabelecido com a esfera
política, que permanece no século XXI e obrigatoriamente passa pela figura de Vingt-un, o maior responsável pela
construção de um imaginário cravado na história de Mossoró e do Rio Grande do Norte nas últimas sete décadas
(FELIPE, 2001; FERNANDES, 2010; CARVALHO, 2012).
ISSN: 2525-7501
Com algum intervalo, o período que se inicia como o fim do Estado Novo e vem até os
dias atuais foi um desfile de gerações de membros da família Rosado em várias instâncias do
poder local, regional e nacional. A derrota de Vingt-un (ARENA) para Antonio Rodrigues
(MDB), apoiado pelo governador Aluísio Alves, por menos de 100 votos num universo de mais
de 22 mil, na já citada disputa eleitoral de 1968 provocou um desses intervalos. Pouco afeito a
arte do palanque, o também professor Vingt-un, tendo passado duas décadas na vitrine da
intelectualidade local e na linha de frente das ações do grupo no que tangia à educação e cultura,
soube capitalizar a derrota colando-a à própria imagem de ponto fora da curva no gráfico de
detentores do poder local, chegando a colocar em seu currículo o item “candidato derrotado a
prefeito de Mossoró em 1968”. Ainda chegou a ser vereador (1973-1977) (FERNANDES,
2010, p. 84-85). Mas foi à frente de órgãos que cuidavam da cultura e da educação que exerceu
um poder capaz de perpetuar o próprio e o dos demais no imaginário político do estado.

O levantamento feito por Felipe (2001, p. 88-96) mostra que imagem de “preparados”
para exercer o poder parte da combinação original entre Dix-sept, “o empresário empreendedor
que consolida as empresas da família” e de Dix-huit, “médico, capitão de polícia e orador
brilhante”. Juntamente como Dix-neuf, Vingt, Vingt-un e Duodécimo, Dix-sept e Dix-huit
779
formam o que Lacerda Felipe chama de “primeira equipe funcional”. E sob a liderança de Dix-
sept, eis a estruturação e o alcance da equipe:

Num primeiro momento que é o definido por Dix-sept, Vingt Rosado (farmacêutico),
que já era vereador e manteria a coordenação desse poder local (Vingt foi 2 vezes
vereador, prefeito de Mossoró – l mandato, deputado estadual – 1 mandato e deputado
federal – 7 mandatos); Dix-huit Rosado (médico), que já era deputado estadual, seria
o parlamentar do grupo (Dix-huit foi deputado estadual – 1 mandato, deputado federal
– 2 mandatos, senador – 1 mandato, presidente do INDA – Instituto Nacional do
Desenvolvimento Agrário, no governo Costa e Silva e prefeito de Mossoró – 3
mandatos)

Vingt-un (agrônomo), Dix-neuf e Duodécimo compunham o sustento financeiro do


grupo, cuidando das empresas da família (gesso, sal e oficinas retificadoras de
motores), mas Vingt-un exerceria também uma outra função, a de intelectual do grupo
e homem ligado à educação que propõe, através dos livros publicados pela Coleção
Mossoroense, “esculpir a história da cidade”, realçando os seus mitos e sua ética de
lealdade ao lugar.
ISSN: 2525-7501
Mais especificamente sobre Vingt-un e a Coleção Mossoroense, objeto principal deste
texto, a função de escultor foi exercida incansavelmente. E à medida que esculpia e retocava a
história da cidade e construía a imagem da família, delineava os próprios contornos e dava à
coleção o aspecto disforme de exercer o duplo papel de se tornar um acervo horizontal das mais
variadas temáticas, ligadas ou não ao universo acadêmico, concomitante ao papel de se
constituir como mecanismo adaptável de registro de feitos e irradiação de projetos e ideários
do grupo líder da política local.

1. Capítulo I - A Coleção Mossoroense: mosaico, efígie ou dismorfia?


Endossado por Dix-sept na prefeitura e com o apoio na esfera estadual de Dix-huit
atuando na Assembleia Legislativa, Vingt-un instalou, ainda em 1948, o Museu Público
Municipal, a Biblioteca Pública Municipal e o Boletim Bibliográfico, este último “uma proposta
editorial ‘que reúne pesquisas, contribuições de escritores e sobretudo a divulgação de
documentos de arquivos, atas da Câmara Municipal de Mossoró, contribuições sobre
genealogias regionais, etnografia e folclore’” (GALVÃO apud FELIPE, 2001, p. 91). Esses 780
equipamentos estariam, de acordo com as palavras do próprio Vingt-un a serviço de uma
batalha pela cultura que deveria ser constantemente travada – como de fato aconteceu.

Em 1949, na esteira do projeto e como desdobramento do Boletim Bibliográfico,


formou-se a Coleção Mossoroense. Quando nasce, a coleção está umbilicalmente ligada à
prefeitura, passando em 1974 a se instalar e ter apoio financeiro da Escola Superior de
Agronomia de Mossoró-ESAM, também criada por Vingt-un, em 1967 – hoje Universidade
Federal Rural do Semi-Árido-UFERSA. A terceira etapa da editora começa em 1995, quando
é criada a Fundação Vingt-un Rosado e os convênios e parcerias passam a acontecer com a
prefeitura e com as empresas instaladas no município, principalmente a Petrobras, sobretudo a
partir de 2000.

O Instituto Cultural do Oeste Potiguar-ICOP, foi fundado em 1957. No grupo de


criadores dessa sociedade literária (até hoje na ativa) estavam Vingt-un Rosado e João Batista
Cascudo Rodrigues, que cerca de dez anos depois viria a ser o primeiro reitor da Universidade
Regional do Rio Grande do Norte-URRN – hoje Universidade do Estado do Rio Grande do
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Norte-UERN. No discurso proferido quando da fundação do instituto, João Batista Cascudo
Rodrigues, após resumo dos feitos de dez anos antes, define a vocação de mais esse
equipamento da memória que se lança na construção de um futuro prenhe de tradições:

O legado produzido por essas matrizes [a biblioteca e o museu] encerra o acervo


simbólico que, neste momento, recebemos e entregamos ao povo mossoroense.
Dotados desse inestimável patrimônio, enfeixamos os meios essenciais para a
grandiosa empresa de "restabelecimento do equilíbrio entre as chaminés e altura dos
espíritos", em nossa terra, conforme a incisiva sentença de Câmara Cascudo.

O Instituto que agora fundamos, com a consciência de suas finalidades,


estabelecerá novos paralelos no panorama cultural do Oeste norte-riograndense. Sua
jurisdição se estenderá à enorme área territorial a que estamos ligados pelos fatos
característicos da geografia física, econômica e cultural. (RODRIGUES, 1991, p. 04-
05) [comentário nosso]

O discurso ainda ressalta o papel essencial de Vingt-un, alçado à figura de efígie da


“jornada restauradora encetada em 1948”.

A criação da escola superior e da universidade são elementos do projeto, que passaram, 781
junto com outras entidades, como as lojas maçônicas, a acomodarem a chamada Noite da
Cultura, evento iniciado em 1973 e que já está na 32ª edição. A principal função da Noite da
Cultura é reunir intelectuais, empresários, administradores, políticos, autoridades militares e
demais figuras consideradas de relevo na sociedade mossoroense para, acima de tudo, celebrar
mais um ano da Coleção Mossoroense e seus feitos.

Em 1975 a família Rosado comprou O Mossoroense, jornal fundado em 1872, um dos


mais antigos do Brasil – hoje funcionando apenas em plataforma digital. O periódico não só
viria a cumprir o papel comum do veículo, mas seria também mais um meio de aproximar a
história da família com a história de Mossoró do século XIX; e mais, seria um veículo a mais
da divulgação dos projetos e da consolidação da memória. Várias matérias publicadas n’O
Mossoroense voltavam meses ou anos depois num suporte bibliográfico da Coleção
Mossoroense, geralmente no formato plaqueta, o que tem mais títulos.

A partir desse breve levantamento das principais ações no campo da educação, da


cultura letrada e da edificação da memória (isso sem levar em conta as dezenas de ruas, alguns
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bairros e outros equipamentos da cidade, como o teatro municipal, o ginásio esportivo e o
aeroporto, todos com o nome de algum membro da família Rosado), tem-se alguma noção de
como o imaginário em torno dos Rosados promoveu o que Pierre Nora chamou de “a memória
tomada como história”, uma memória que “se apoia inteiramente no que há de mais preciso no
traço, mais material no vestígio, mais concreto no registro, mais visível na imagem.” E
parecendo conhecedor da trajetória da família mossoroense, Nora finaliza apontando o processo
evolutivo do registro: “o movimento que começou com a escrita termina na alta fidelidade e na
fita magnética” (NORA, 1993, p. 12) Hoje O Mossoroense está na internet e grande parte do
acervo da Coleção Mossoroense está digitalizada.

A coleção foi, aliás, a grande força propulsora de todo esse projeto. Motivo de orgulho
pessoal do seu idealizador e principal colaborador, a Editora Coleção Mossoroense chegou a
lançar numa única noite, mais especificamente a 17ª Noite da Cultura, em 1991, um conjunto
de 400 títulos editados num período de um ano. Obviamente o registro de tal feito acabou se
tornando uma plaqueta, que anos depois viria ser lançada (1998), provavelmente aproveitando
matérias saídas n’O Mossoroense quando do evento e engrossando a lista de títulos da própria
coleção enquanto reavivava os feitos do patrono e, por conseguinte, da família e seu tino para
782
deixar Mossoró em destaque estadual e nacional.

Foi assim que a partir de sustentações históricas e geográficas bem construídas, Vingt-
un ousou denominar o munícipio de “país de Mossoró”, buscando ultrapassar o entendimento
de território pura e simplesmente administrado para chegar ao de lugar, maior, onde os Rosados
não seriam confundidos com proprietários, mas sim como privilegiados subservientes honrados
em fazer parte da história do “país” (FELIPE, 1991, p. 28-30).

Duas observações importantes devem sobressair quando este processo de média duração
é analisado: a primeira, seja qual for a posição diante da manutenção dessa imagem construída
sobre Mossoró, é praticamente impossível discutir a história da cidade sem enfrentar a questão
– vide a considerável quantidade de textos, acadêmicos ou não, que nos últimos anos, detendo-
se nos mais diversos temas, acabaram por tocar a temática, tamanha sua força e penetração –
na coleção há, por exemplo, talvez o maior conjunto de obras sobre as secas do Brasil. A
segunda questão, ainda mais importante, é que Mossoró está inserida no rol dos lugares que se
tornaram “comunidades imaginadas”, verdadeiros “países” que cultivam uma espécie de
ISSN: 2525-7501
nacionalismo, dando-se a ler como um espaço singular que se impõe diante dos demais lugares,
mesmo que, inserido na Unidade Federativa Rio Grande do Norte – na qual é, constitucional e
politicamente falando, uma célula a mais –, atribui-se um papel de autonomia, um passado
independente do centro do poder estatal, e tradições e características próprias de um “país”, de
uma “nação”.

Assim, ao cunhar “país de Mossoró” – expressão um tanto chistosa, mas nada inocente
– Vingt-un Rosado lança, conceitualmente, sobretudo na Coleção Mossoroense, não só uma
imagem a ser consumida e trabalhada, mas dá margem a análises (como a deste texto) que
podem ser embasadas naquilo que Benedict Anderson chamou de “capitalismo editorial”, ou
seja, um dos fundamentos da experiência nacionalista que deita em papel projetos e estratégias
de uma elite política envoltos em atmosfera mitológica, na qual passado e presente se
confundem na manutenção de características que se pretendem atemporais. (ANDERSON,
2008, p. 51-70).

Para entender porque Mossoró constituiu, à semelhança das configurações nacionais,


esse “capitalismo editorial” que também pode ser entendido como um capital cultural a serviço 783
da esfera política, é preciso entender a dimensão da Coleção Mossoroense com suas obras
divididas em sete séries, de "A" a "G", sistematizadas por assuntos e formatos assim
distribuídos (FELIPE, 2001, p. 118):

A - Folhetos de grande formato

B - Plaquetas

C - Livros

D - Cordéis

E - Periódicos

F - Memorial dos Mossoroenses

G - Falas e Relatórios dos Presidentes da Província do RN

A característica geral de ser reconhecida mais pelo selo do que por uma linha específica
– a exceção é o apelo à autofagia e à promoção dos mitos cuja análise não caberia no limite
ISSN: 2525-7501
destas páginas, mas já está minimamente apresentada nas páginas acima – leva a pensar a
Coleção Mossororense também como um impulso à prática da leitura e ao universo que rodeia
o objeto livro. Sem ter como levantar no momento o grau de penetração dos títulos da coleção,
aos moldes de uma história da leitura, é, contudo, curioso perceber como a Coleção
Mossoroense, mais ou menos um século depois do crescimento e da definitiva instalação da
prática da leitura na Europa, sobretudo na França, acaba por capturar, a seu modo, aspectos
daquele movimento.

Olhando para a expansão da leitura de massa na França em meados do século XIX,


estiveram na proa da popularização da cultura escrita os romances-folhetins estrategicamente
instalados nos jornais e os próprios jornais populares, quando conseguiram atingir o valor de
um centavo. Também foram importantes as coleções de romances a preços módicos. Mas é
destaque também – e aqui o que mais nos interessa – “os livros de divulgação científica e, entre
eles, em incontestável primeiro lugar, os dicionários e as enciclopédias, essas bibliotecas
portáteis contendo o conhecimento do mundo”. (MOLLIER, 2008, p. 08-09)

No catálogo mais atual e completo da Coleção Mossoroense, ainda em fase de 784


elaboração, constam 23 títulos com o formato de dicionário, com destaque para os cinco
fascículos de A engenharia nacional passou por Mossoró, seguindo as pegadas do “sonho
grafiano” – dicionário dos guerreiros da grafiana saga ferroviária de Mossoró ao São
Francisco (reeditados em 2000) , os seis números do Dicionário de “O Mossoroense”, o
autopromocional Dicionário do pioneirismo de Vingt-un (1993) e Mossoró na Enciclopédia e
Dicionário Internacional (1998).397

Quanto aos títulos que cobrem temas científicos, há na Coleção Mossoroense


verdadeiras sub-coleções que vão da educação física à geologia, da zootecnia à economia, da
história e geografia à astronomia. Ainda traçando um paralelo com Mollier, esse aspecto da

397
Há na Coleção Mossoroense uma série de plaquetas e poucos livros que lançam olhar sobre os olhares lançados
sobre Mossoró. Incluem-se na lista desses olhadores escritores como Carlos Drummond de Andrade, críticos
como Araripe Júnior, intelectuais como Gilberto Freyre, jornalistas como Eduardo Campos, políticos como
Juscelino Kubitscheck, memorialistas como Mauro Mota, estendendo-se a lista por cerca de 70 nomes. Foi por
essa porta, pela percepção dessa necessidade de se constituir memória histórica a ponto de se fazer a varredura do
nome citado em qualquer canto de página de uma personalidade de vulto, que entrei em contato com a coleção e
suas muitas possibilidades de pesquisa.
ISSN: 2525-7501
Coleção Mossoroense a coloca num meio termo em relação às coleções que davam ao leitor a
ideia de que ele encontraria novos títulos confortavelmente localizáveis em relação a temas
estabelecidos cujo gosto e a demanda estavam garantidos e aquelas que “visavam à
universidade”, um universo do “amontoamento, do bric-à-brac de objetos mais ou menos
inassimiláveis, reunidos apenas para dar ao leitor a ilusão de que sua posse era indispensável
ao homem moderno” (MOLLIER, 2008, p. 132-133).

Nos mais de quatro mil títulos, há muito forte também a presença da própria coleção se
pensando como estratégia, promovendo-se como gigante, esquadrinhando-se em busca da
ordem, reconhecendo-se como disforme. Cerca de cem títulos trazem a própria coleção, num
movimento que busca promover um vai e vem “interfronteiriço” entre “o país de Mossoró” e
outros “países do Brasil” ou do mundo.

Por fim (apenas aqui nessas páginas) a crise que atingiu a Coleção Mossoroense, hoje
literalmente sem uma casa, passa pelo fato de os quase cem mil volumes estarem amontoados
numa sala sem acesso do museu municipal e num galpão cedido por um particular. Kits com o
máximo de títulos da coleção foram montados por alunos e professores da UERN em projetos 785
de extensão e pesquisa que visavam a distribuição da coleção em universidades do estado e de
estados vizinhos. Parte do catálogo foi digitalizada e a coleção também sobrevive na biblioteca
pública. A editora Coleção Mossoroense, quase parada, lança poucos títulos por ano.

Antes dessa grave crise, houve títulos que traziam preocupação quanto ao futuro da
coleção: A morte da Coleção Mossoroense, de 1997 – morte que de fato não ocorreu – e
Coleção Mossoroense: é hora de parar?, de 2001 – pergunta cuja resposta a continuidade das
atividades da editora mostraram que não.

CONCLUSÃO

É nesse sentido, ou nessa profusão de sentidos, que a Coleção Mossoroense e os


principais personagens a ela ligados se constituem um desafio para o historiador, que sabe
tratar-se de um objeto que rivaliza com a análise historiográfica moderna na construção de
narrativas e interpretações de eventos e processos.
ISSN: 2525-7501

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ISSN: 2525-7501
A REPRESENTAÇÃO DO GAÚCHO ATRAVÉS DE UM LUGAR DE MEMÓRIA: O
LAÇADOR398

Henrique Perin399

RESUMO

Em 1948, ano do início do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), fundado por Paixão
Côrtes e Barbosa Lessa, não havia um lugar de memória próprio para o movimento. Apesar da
adoção do Gaúcho Oriental, monumento de Frederico Escalada presenteado pelo governo
uruguaio em razão da comemoração do centenário da Revolução Farroupilha, em 1935, como
símbolo do espírito e das tradições gaúchas, foi apenas no ano de 1954, na Exposição do IV
Centenário da cidade de São Paulo, que o projeto O Laçador, de Antônio Caringi, atraiu a
atenção e a identificação dos tradicionalistas. A necessidade de uma referência escultórica que
representasse o movimento e pudesse ser cultuado era uma questão delicada para o MTG.
Segundo Paixão Côrtes, em 1949, em uma das primeiras Rondas Farroupilhas – atividade que
originou a Semana Farroupilha – os cavalariços, na falta de um monumento próprio,
depositavam flores no estatuário erigido por Escalada, localizado no Parque Farroupilha. Diante
desta situação de precariedade simbólica, o próprio Côrtes afirma que Porto Alegre “estava
despida de um monumento ao nosso campesinato” (CÔRTES, 1994). Quando realizado o 787
concurso para a criação de uma figura alegórica que identificasse o gaúcho, o homem típico do
Rio Grande do Sul, a escolha da obra de Caringi, inicialmente um presente para a cidade de São
Paulo, tomou proporções de símbolo pelo MTG, pelos jornais e pela população em geral.
Percebe-se claramente a metamorfose que O Laçador tomou, a partir da articulação da
sociedade e dos poderes públicos: o monumento não mais seria um ornamento, como seu uso
inicial sugeria, mas um lugar de celebração, um lugar de memória.

Palavras-chave: Lugares de Memória; MTG; Laçador.

Lugares de memória: relações materiais, simbólicas e funcionais

Pode-se, com certa facilidade, traçar a mudança do simbolismo que a estátua do Laçador
adquiriu a partir de seu uso original. Pierre Nora e Arnoldo Doberstein tratam deste tema com

398
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
399
Mestrando em História – PPGH/PUCRS – Brasil, perin82@hotmail.com.
ISSN: 2525-7501
naturalidade, o primeiro dentro do campo das ideias e dos lugares de memória, o segundo,
também com lugares de memória, mas através da ressignificação de símbolos e usos de
estuários e obras públicas.

Conforme Pierre Nora (1993), os lugares de memória pertencem a dois domínios


antagônicos: se por um lado podem ser simples, de outro são ambíguos; naturais e ao mesmo
tempo artificiais. Encontra-se, nestes lugares, a simultaneidade dos sentidos material, simbólico
e funcional, embora em graus diversos. Tomemos como exemplo um arquivo público, assim
como o autor em seu artigo “Entre memória e História – A problemática dos lugares”: um
espaço físico, cuja finalidade, em uma primeira análise, é a retenção de elementos materiais
(arquivos), mas que a partir de seu uso, adquire uma funcionalidade e cria-se uma “ritualização”
– como o que ocorre com alguns manuais (bíblia, alcorão, etc.) – e investe-se de uma aura
simbólica. Até mesmo um recorte temporal, como o usual “minuto de silêncio”, resguardado
em diversas situações, torna-se simbólico e serve como uma chamada concentrada de
lembrança (ibidem).

A coexistência destes três aspectos – material, simbólico e funcional –, cristalizados em 788


um local, tangível ou não, constitui um “lugar de memória”, criando um amálgama entre a
memória e a história. A simultaneidade dos aspectos materiais, simbólicos e funcionais, difere
somente quanto ao grau de relevância de cada um, já que coexistem de modo maleável. Neles
a separação entre história e memória não é rígida: os dois fatores interagem e resultam em uma
sobredeterminação recíproca, que Nora destaca como um “jogo no qual supõe-se um
componente político onde a vontade de memória rivaliza intenção de memória” (ibidem).

Um lugar de memória onde não seja possível detectar ou rastrear os investimentos


humanos que, ao longo do tempo, buscaram estabilizar significados para esses “lugares”, ou
concluindo-se que deles estaria ausente uma vontade ou intenção de memória, não seriam
propriamente lugares de memória, mas “lugares de história”. Assim, se lugares de memória e
lugares de história podem ser objeto da investigação dos historiadores, os primeiros seriam os
que necessariamente exigiriam um esforço não só por compreender os processos de produção
social de memórias (configuradores desses lugares), mas também para examinar o seu papel na
construção do conhecimento histórico e na consolidação das narrativas de caráter histórico. É
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necessário distinguir, assim, o modo como as fontes serão tratadas. Para tanto, é possível dividi-
las em fontes “diretas” e “indiretas” (NORA, 1993). Tomemos por fontes diretas, ou mesmo
oficiais, as que a sociedade intencionalmente produziu para serem reproduzidas como tais: leis,
documentos oficiais, ou mesmo algumas obras de arte. Já as fontes indiretas, com as quais esta
pesquisa irá trabalhar, são os testemunhos e a produção involuntária da sociedade – toma-se
por involuntária, especificamente nesta pesquisa, a produção de obras de arte, cuja função, além
de estética e simbólica, tornou-se tema de estudo para historiadores, sociólogos, antropólogos
e pesquisadores, assim como seus usos, significados e ressignificados dentro da comunidade.

Uma questão surgiu durante a elaboração deste artigo: em que medida as aplicações do
conceito de lugares de memória teriam sido empregadas de modo precipitado, gerando
conclusões pouco fiéis e abusivas? Nora destaca a tendência a reduzir os lugares à materialidade
e ao monumental:

O lugar de memória supõe, para início de jogo, a justaposição de duas ordens de


realidades: uma realidade tangível e apreensível, às vezes material, às vezes menos, 789
inscrita no espaço, no tempo, na linguagem, na tradição, e uma realidade puramente
simbólica, portadora de uma história. A noção é feita para englobar ao mesmo tempo
os objetos físicos e os objetos simbólicos, com base em que eles tenham ‘qualquer
coisa’ em comum. [...] Cabe ao historiadores analisar essa ‘qualquer coisa’, de
desmontar-lhe o mecanismo, de estabelecer-lhes os estratos, de distinguir-lhes as
sedimentações e correntes, de isolar-lhe o núcleo duro, de denunciar-lhe as falsas
semelhanças e as ilusões de ótica, de colocá-la na luz, de dizer-lhe o não dito. [...]
Lugar de memória, então: toda unidade significativa, de ordem material ou ideal, que
a vontade dos homens ou o trabalho do tempo converteu em elemento simbólico do
patrimônio memorial de uma comunidade qualquer (NORA, 1997, apud
GONÇALVES, 2012, p. 34).

Outro viés também é perceptível e se refere à vontade de memória, antes apontada como
fundamental para a constituição dos lugares: ao lado da “vontade dos homens” é posto o
“trabalho do tempo” como instrumento de constituição dos lugares de memória. Estaria aqui a
reposta à tradicional distinção entre vestígios voluntários e involuntários deixados pelas
práticas sociais, em suas trajetórias históricas? Se o “trabalho do tempo” não pode ser
vislumbrado em termos históricos sem a presença humana, então é a vontade, nos termos em
que é posto o comentário de Nora, que deixa de ser decisiva. Nessa redefinição do lugar de
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memória, portanto, tal como indica a citação destacada, perde força e peso o aspecto político
dos lugares de memória, justamente o que lhes conferia uma especificidade do ponto de vista
da orientação metodológica a ser dada à sua investigação.

Deste modo, é possível compreender a aproximação entre “lugares de memória” e


“patrimônio” na construção de um “patrimônio memorial”, podendo ser remetido, no caso desta
pesquisa, à identificação do “gauchismo” e da “representação do gaúcho”, assim como explica
Arnoldo Doberstein (2002) no livro “Estatuário, Catolicismo e Gauchismo”. Ao serem
modeladas, as representações do estatuário sugerem que seus produtores estavam interpretando
a ideologia de seus patrocinadores. Significa dizer que, ao darem forma às figuras, estavam
plasmando nelas uma ideologia, e subjetivamente, uma alegoria. As alegorias são símbolos
petrificados, restritos à função de evocar ou representar uma realidade conhecida e
racionalizada: atividades econômicas, virtudes e vícios humanos, instituições sociais e
políticas, estados de ânimo etc. O raciocínio do qual se parte é que, assim como um símbolo
pode converter-se em alegoria, a alegoria pode readquirir seu caráter de símbolo através de uma
nova ressignificação. A este processo, Doberstein chama de “trânsito alegórico”. Este trânsito
790
alegórico não ocorre fortuita e graciosamente: é promovido por uma ideologia, e ocorre em
determinadas circunstâncias, como no caso do estatuário (DOBERSTEIN, 2002).

O surgimento do movimento tradicionalista gaúcho e sua relação com o poder

Antes de analisar a questão da estátua do Laçador como um lugar de memória, talvez


seja pertinente explicar as razões para a criação do Movimento Tradicionalista Gaúcho. É
necessário compreender, inicialmente, que o discurso da historiografia, do folclore e da cultura
oficial, necessita passar por um processo de imaginação mais profundo do que as ações
legitimadas por um movimento. Eric Hobsbawm utiliza o conceito de “tradição inventada” para
identificar este conjunto de práticas de natureza ritual ou simbólica que têm por objetivo
incorporar determinados valores e comportamentos definidos por meio da repetição em um
processo de continuidade em relação ao passado (HOBSBAWM, 2002).
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O culto ao tradicionalismo teve início com a valorização das culturas local e regional,
já que havia o receio que a entrada maciça de influências externas, impulsionadas pela
economia norte-americana, pudesse relegar os costumes gaúchos para um segundo plano. Em
1943 foi fundado o Departamento de Tradições Gaúchas, junto ao Grêmio Estudantil Júlio de
Castilhos, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, liderado pelo estudante João Carlos D’Ávila
Paixão Côrtes. Enquanto as ações do Departamento de Tradições Gaúchas se desenrolavam,
outro estudante, Luiz Carlos Barbosa Lessa, imbuído pelos mesmos anseios do grupo liderado
por Paixão Côrtes, saiu em busca de assinaturas com o desejo de formar um “clube
tradicionalista”. Assim, o movimento tradicionalista promoveu suas primeiras ações em 1947,
visando preservar tradições e combater fatores de desintegração social. A partir deste momento,
para que esses empreendimentos de interesses afins ganhassem força, houve aproximação entre
os grupos e constituiu-se o Movimento Tradicionalista Gaúcho, ou simplesmente, MTG.

A partir de 1954, através de ações do Museu Júlio de Castilhos, cresceu com força
renovada a preocupação em preservar o patrimônio histórico, artístico, arquitetônico, assim
como as tradições do Rio Grande do Sul. Inicialmente o tradicionalismo teve a simpatia de
791
intelectuais e folcloristas, entretanto, a falta de embasamento teórico e rigor analítico dos
tradicionalistas em seu resgate historiográfico, além da invenção de precedentes históricos, fez
com que os intelectuais se afastassem gradativamente e se opusessem aos integrantes do MTG.
Ocorreram, assim, inúmeros debates sobre a legitimidade da cultura e das políticas de
preservação do patrimônio local. Letícia Nedel afirma que:

Enquanto o projeto de um folclore científico proposto pelos autores mais velhos


tratava de nacionalizar o gaúcho, inserindo-o em um padrão cultural brasileiro,
forjado à revelia das condições internas de representação da região, entre a juventude
tradicionalista a ordem era, inversamente, reagauchar o Rio Grande. (NEDEL, 2005).

Ainda em 1954, a criação da Divisão de Cultura da Secretaria de Educação e Cultura,


vinculada ao Instituto de Tradição e Folclore, arregimentou para a administração pública a
cultura dos tradicionalistas do MTG. A partir deste momento é notório o crescimento do
prestígio dos tradicionalistas, e estes, através do Instituto, ajudaram o governo estadual a
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implantar uma política de folclore e passaram a assumir cargos em diversos escalões das
instituições culturais do Estado. Esta inserção no quadro estatal permitiu que os tradicionalistas
instituíssem suas diretrizes acerca da tradição gaúcha, além de pôr-se em evidência com o
respaldo do Estado. Assim, foi apenas questão de tempo até o MTG ser patrimonializado pelo
poder público, dando aos tradicionalistas o poder oficial para definir a imagem do gaúcho, seu
modo de construção, assim como os critérios que definem sua autenticidade, suas estâncias de
legitimidade e consagração. Esta relação entre o MTG e o poder público foi de extrema
importância para a massificação do movimento tradicionalista.

A construção do monumento d’o laçador como lugar de memória

Paixão Côrtes alega que, até o fim da década de 1940, não havia uma figura símbolo
das tradições e do povo gaúcho na estatuária pública de Porto Alegre. O mais próximo disto, e
que por alguns anos fora referenciado como tal, foi o Gaucho Oriental, monumento produzido
pelo uruguaio Frederico Escalada e presenteado ao Rio Grande do Sul em 1935, por ocasião do
centenário da Revolução Farroupilha. O Gaucho Oriental pode ser considerado o primeiro lugar
792
de memória dos tradicionalistas, e chegou, inclusive, a representar, mesmo por pouco tempo, o
“espírito do campo” e das tradições gaúchas. José Francisco Alves (2004) observa que:

Em relação à estatua do Gaucho Oriental, pode-se considerar que ela se encontra


mais relacionada à iconografia cultural do gaúcho (no sentido antropológico, do
gaúcho como trabalhador rural dotado de rica cultura) do que seu aspecto ideológico
ou mitológico. Prova disto seria o fato da estátua não ter se prestado para ser um
símbolo para os tradicionalistas, que no início tentaram, sem sucesso, incorporar na
escultura suas ideias (2004, p. 58).

O MTG necessitava, assim, de uma referência para representar seu personagem símbolo,
e apenas com um ícone que materializasse o simbolismo do movimento, este estaria legitimado.
Havia, assim, a necessidade de reverenciar o gaúcho como um herói, para que ele se
relacionasse com maior intensidade ao o que Sandra Pesavento (1993) denomina “sistema de
ideias-imagens de representação coletiva”, onde o imaginário social e regional encontra
ISSN: 2525-7501
representação. A criação de um mito, de uma imagem que legitimasse este “herói gaúcho”,
necessitava de consagração, e como Milliet destaca, “o herói consagra-se na imagem. (...)
Através da imagem, mobiliza-se o sentimento popular, passam-se ideias e valores” (2001, p.
256).

Era necessário materializar o mito do gaúcho, e como o próprio Paixão Côrtes destaca,
era preciso realizar uma “justiça histórica”, já que para os tradicionalistas, a falta de um
estatuário próprio significava a pouca relevância que as autoridades estaduais dispensavam ao
símbolo representativo do seu povo (CÔRTES, 1994). Quanto à capacidade de um símbolo
agregar valor a uma ideia e de sua validade para as intenções do MTG, José Murilo de Carvalho
aponta:

O domínio do mito é o imaginário que se manifesta na tradição escrita e oral, na


produção artística e nos rituais. A formação do mito pode dar-se contra a evidência
documental; o imaginário pode interpretar evidências segundo mecanismos

793
simbólicos que lhe são próprios e que não se enquadram necessariamente na retórica
da narrativa histórica (1998, p. 58).

Havia a necessidade de estabelecer a relação de significado entre as ideias do MTG e


um objeto, ou mesmo uma imagem, e a oportunidade para isto surgiu em 1954. Durante a
participação do Rio Grande do Sul na Exposição do IV Centenário da Cidade de São Paulo, no
Parque Ibarapuera, onde cada estado foi representado em um pavilhão, uma “figura alegórica”
identificando o homem sul-riograndense deveria adornar a entrada do espaço destinado aos
gaúchos. Realizado um concurso estadual, onde a comissão organizadora convidou
historiadores e folcloristas como Dante de Laytano, Walter Spalding e Paixão Côrtes, para a
apreciação dos projetos, o vencedor foi O Laçador, estatuário de Antônio Caringi, inicialmente
intitulado O Boleador. Como Dante de Laytano sugeriu que não fosse representada a figura de
um guerreiro, mas sim o homem da terra, preso às tradições agropastoris, as “boleadeiras”
foram trocadas pelo laço, algo que aproximava o monumento da “figura viva do contexto da
formação do Rio Grande do Sul” (CÔRTES, 1994). Apesar de jornalistas e alguns historiadores
proporem que Paixão Côrtes tenha sido o modelo de Caringi para a execução do Laçador, e que
ISSN: 2525-7501
o tradicionalista tenha trajado a vestimenta típica que caracteriza o ideal do gaúcho pregado
pelo MTG, a verdade é um pouco distinta. Arnoldo Doberstein (2014) desmistifica isto:

Paixão Côrtes diz literalmente que o que aconteceu foi o seguinte: o Antônio Caringi
não tinha uma ideia aproximada de como é que o gaúcho, quando fosse arremessar o
laço, estando a pé e não a cavalo, procede nesta operação. Então, o que o Caringi
pediu para o Paixão Côrtes, é que ele, pilchado, com o laço, fosse até o atelier dele, e
mostrasse como é. O Caringi rabiscou. Rabiscou num papel posição e depois levou
pro seu atelier (DOBERSTEIN, 2014).

Inicialmente a ideia era presentear a capital paulista com o monumento, mas


transformada em um símbolo, a estatuária motivou um forte apelo não apenas entre os
tradicionalistas, mas também junto à população e à imprensa, principalmente com Sady
Scalante, através de sua coluna “Tradição”, no jornal Diário de Notícias. Setores do governo
e jornalistas sugeriram que a estátua fosse fundida em bronze e instalada em algum
logradouro público em Porto Alegre, uma proposta que logo foi adotada pelos
tradicionalistas. A metamorfose que ocorre com O Laçador, onde há a “fabricação” de um
794
lugar de memória através de seu assentamento em Porto Alegre, ocorre a partir deste
momento. Doberstein continua:

Na verdade o monumento ao Laçador, ele foi uma construção. Tipicamente a


construção de um imaginário. Porque a gente sabe que ele foi encomendado ao
Antônio Caringi pra ser exposto na Exposição do IV Centenário de São Paulo, então
não foi um monumento assim, que foi pensando pra ser colocado em uma praça
pública de Porto Alegre, pra simbolizar o movimento tradicionalista gaúcho que
estava se consolidando, se constituindo naqueles anos 50. Ele foi, na verdade, muito
mais um elemento de propaganda do Rio Grande do Sul junto ao empresariado
paulista. Se tu pegares os anos 50 e tu leres os jornais, Correio do Povo, Diário de
Notícias, a gente percebe claramente que o empresariado do Rio Grande do Sul,
principalmente o empresariado da serra gaúcha, estava, vamos dizer assim, muito
propenso a estreitar cada vez mais os laços econômicos do Estado do Rio Grande do
Sul com São Paulo (DOBERSTEIN, 2014).

A partir de sua inauguração, o Laçador passou a ser tratado como um símbolo, um totem
que baliza o imaginário tradicionalista, funcionando como um suporte para a representação
ISSN: 2525-7501
deste ideário, e apesar de o monumento não ter sido idealizado ou projetado para o local
específico400 onde se encontra, é inegável que “emprestou” seu espírito para a criação de um
“espírito do lugar”. O monumento, assim, passa a representar um “movimento” e a encarnar a
identificação de uma comunidade, onde o aspecto afetivo é mais relevante que o ideológico.
Sua condição de arte pública é bem sucedida, pois a obra não apenas comunica uma ideia, mas
tem forte resposta pública, e apesar de, em um primeiro momento, não ser um símbolo
popularizado, torna-se, com o passar dos anos e com a publicidade dos meios de comunicação,
do MTG e dos órgãos estaduais, um símbolo de massas. O Laçador atingiu rapidamente, a partir
de então, o status esperado: o monumento, hoje, é a “materialização do mito do gaúcho”
(ALVES, 2004)

A compreensão que a memória é um elemento que constitui o sentimento de identidade


e pertencimento, tanto em um âmbito individual como coletivo, e que ela também é essencial
no sentido de representação de uma pessoa ou de um grupo sobre si próprios (CATROGA,
2001), remete a dois pontos interessantes e correlacionados: a preocupação dos tradicionalistas
com o risco de uma “degradação” da cultura tradicional pela “sociedade urbana”, e a procura,
795
pelos membros desta “sociedade urbana”, em se relacionar com algo que supra sua necessidade
identitária. Nora (1993) destaca que os indivíduos muitas vezes recorrem aos lugares de
memória em busca da preservação de sua continuidade e identidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pierre Nora (1997) elucida a possibilidade de o historiador criar suas próprias categorias
de lugares de memória, já que o mesmo não é estático, mas fluído. O monumento do Laçador,
quando analisado através deste prisma, pode ser categorizado, inicialmente, como um lugar de
memória, visto que houve – e ainda há – um esforço de rememoração e reinvenção de seu uso.

400
A administração municipal de Leonel Brizola (1922-2004) financiou a fundição em bronze do Laçador e o
inaugurou no Largo do Bombeiro, praça frontal ao Aeroporto Salgado Filho , em 20 de setembro de 1958,
durante as comemorações do 123º aniversário da Revolução Farroupilha.
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Existe a evocação de uma identidade regional idealizada através de sua existência, e
paralelamente, como o significado primitivo de sua construção transfigurou-se, é possível
inseri-lo em uma categoria de falsa memória. Infere-se, a partir desta reflexão, a suposição que
muitos indivíduos desfragmentam sua representatividade como “ser social” através lugares de
memória. É a imagem que os indivíduos concebem de si mesmos e a que querem que seja
correspondida na visão dos outros; o ato de se representar no meio social, é, antes de tudo,
simbólico. Como os conceitos de memória e identidade são correlacionados, ambos são
fundamentos com os quais se afirma a consciência e a persistência da própria personalidade.
Na medida em que há dificuldade em assimilar uma memória espontânea e autêntica, os lugares
de memória possibilitam o acesso a uma memória reconstituída, dando sentido à identidade
(NORA, 1993).

Entretanto, a memória exerce uma função mais complexa que apenas remeter à
identidade, seja esta coletiva ou individual. Ela pode ser utilizada como instrumento de
legitimação ao passo em que se torna objeto de poder no âmbito das políticas públicas e privadas
de promoção de patrimônio. É de grande importância a inferência de mecanismos objetivos
796
(sociais, políticos e econômicos) e subjetivos (simbólicos e ideológicos) no investimento de
patrimonialização do monumento do Laçador, onde a valorização de um bem material – o
estatuário em si, como objeto físico – atinge um aspecto “intangível”, remetendo à memória e
ao sentimento de identidade.

O MTG estabeleceu, ressaltou e reinventou constantemente as práticas que foram (e


ainda são) instituídas como tradição no Rio Grande do Sul através de uma contínua “vigília
comemorativa”, ato indispensável, segundo Nora (1993), para a instituição de lugares de
memória. As comemorações da Semana Farroupilha, no mês de setembro, e a recente mudança
do sítio do Laçador, em 2007 – o deslocamento da estátua do Laçador, do Largo do Bombeiro
para um novo local, a apenas 600 metros de distância, teve grande concentração de público e
autoridades, escolta de cavalariços do MTG e vigília dos mesmos durante a noite precedente à
mudança – são provas indeléveis do significado que a estatuária adquiriu como escultura-
símbolo do gaúcho e lugar de memória através do esforço de tradicionalistas e autoridades
públicas e privadas.
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De fato, o Laçador hoje não é apenas um símbolo de Porto Alegre ou do Rio Grande do
Sul, mas um monumento reverenciado simbolicamente por muitos sul-riograndenses, e em sua
maioria não militantes do tradicionalismo. O semblante sóbrio e distinto do Laçador, seu ar de
alteridade, assim como as relações de contrastes e diferenças que muitos gaúchos valorizam e
enfatizam como distinção entre os habitantes do estado e os do resto do país, reforçam, de certo
modo, o raciocínio que a construção da identidade só ocorre quando se confronta com o “outro”,
ou seja, só se é brasileiro sendo, inicialmente, gaúcho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, José Francisco. A Escultura Pública Em Porto Alegre: história, contexto e


significado. Porto Alegre: Artfolio, 2004.

CARVALHO, José Murilo. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. 7.


Reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Quarteto Editora,


2001. 797
CÔRTES, João Carlos D’Ávila. O Laçador: história de um símbolo. Porto Alegre 35
CTG/Prefeitura de Porto Alegre, 1994.

DOBERSTEIN, Arnoldo Walter. Porto Alegre, 29/10/2014. Entrevistador: Henrique Perin,


2014.

______. Estatuários, catolicismo e gauchismo. EDIPUCRS. Porto Alegre, 2002.

______. Porto Alegre, 1900-1920: Estatuário e Ideologia. Porto Alegre: Ed. da Cidade, 2011.

GONÇALVES, Janice. Pierre Nora e o tempo presente: entre a memória e o patrimônio


Cultural. In: Historiae, Rio Grande, vol.3, n. 3, p. 24-46. 2012.

HOBSBAWM, Eric. A Invenção Das Tradições. São Paulo: Col. Saraiva de Bolso, 2012.

MILLIET, Maria Alice. Tiradentes: O corpo do herói. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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NEDEL, Letícia Borges. Paisagens da Província: o regionalismo sul-rio-grandense e o museu
Júlio de Castilhos nos anos cinquenta. Dissertação (Mestrado em História). PPGH/IFCS,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1999.

______. Um Passado Novo Para Uma História Em Crise: regionalistas e folcloristas no Rio
Grande do Sul (1948-1965). Tese (Doutorado em História) PPGH/ICH, Universidade de
Brasília, 2005.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. A invenção da Sociedade Gaúcha. In: Ensaios FEE. Porto
Alegre, 1993.

798
ISSN: 2525-7501
TRAUMA E MEMÓRIA: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO PERÍODO DA
DITADURA MILITAR *401

Martina von Mühlen Poll**

Andréia Garcia dos Santos**

Cláudia Maria Perrone***

RESUMO

O período da ditadura militar caracterizou-se pela falta de democracia, supressão de direitos


constitucionais, censura, perseguição política e repressão aos que eram contra o regime, sendo
marcada por graves violações de direitos humanos. As vítimas das violências cometidas nesse
período representam o trauma coletivo que atinge toda a sociedade brasileira. O presente estudo
tem por objetivo realizar uma análise e discussão sobre a construção da memória individual e
coletiva acerca da ditadura militar, tendo como eixo norteador o trauma psicológico decorrente
da violência cometida pelos agentes repressivos da ditadura. Para tal, foi realizada uma análise
de depoimentos de vítimas de tortura na época da ditadura. Os depoimentos foram extraídos do
vídeo “Travessia do Silêncio, Testemunho e Reparação” o qual foi produzido em 2015 pela
799
Clínica do Testemunho Projetos Terapêuticos de São Paulo, sendo o vídeo aberto à consulta
pública através do site do Ministério da Justiça do Governo Federal. Esses depoimentos foram
transcritos e analisados com ajuda da teoria psicanalítica, a qual ajudou a compreender o
contexto traumático da ditadura, fazendo uma reflexão sobre o trauma e a constituição da
memória. O trauma decorrente das situações de grave ameaça à vida tem como característica a
irrepresentabilidade, não conseguindo ser dotado de sentido e assimilado na memória individual
e coletiva. Entendemos ser o papel do/a historiador/a e da sociedade reconhecer a magnitude
do sofrimento causado pelo trauma individual e coletivo experiênciado durante a ditadura, para,
assim, construir uma memória histórica que o reconheça e que dê voz àqueles que a violência
calou.

401
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.

**Mestrandas em Psicologia pela Universidade Federa de Santa Maria (UFSM)/Brasil, tinavmp@gmail.com;


andreia.ggarcia@hotmail.com

***Docente no curso de Psicologia, Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)/Brasil,


cmperrone@ig.com.br**
ISSN: 2525-7501
Palavras-chave: trauma; memória; ditadura militar.

INTRODUÇÃO

A ditadura militar no Brasil teve seu início com o golpe militar de 1964, quando os
militares tomaram o poder do país, até então governado por João Belchior Marques Goulart,
mais conhecido por “Jango”, estendendo-se até 1985, quando ouve a retomada dos governos
democráticos.

A partir de então, a sociedade brasileira foi vitimada pela ditadura militar, não só nos
anos que esse regime se fez presente, uma vez que os reflexos da violência calaram milhares de
vozes, e ainda geram repercussões que transcendem gerações e constituem um trauma social.

O trauma traz em sua gênese e desenvolvimento a dificuldade da narrativa, seu silêncio


e a não representação (FELMAN, 2014). Tais características fazem com que o trauma fique
excluído da memória representacional e simbólica, desse modo, a memória não consegue
abarcar a amplitude do trauma. 800
Assim sendo, o trauma da ditadura pode ser visto de modo mais explícito naqueles que
sofreram as marcas da violência diretamente sobre seus corpos físicos, cujas maiores marcas
são, ainda, as marcas psicológicas que tal violência pode acarretar. Mas, além desses, as marcas
traumáticas deixadas pela ditadura estão presentes em toda a sociedade brasileira, uma vez que
privou de voz toda a população, deixando feridas na memória da história brasileira.

Destacamos que ao falarmos de memória no presente estudo, nos referimos tanto à


memória singular de cada sujeito, quanto a memória coletiva que constitui a história da
sociedade. Assim sendo, entendemos que a ditadura deixou suas marcas e consequências na
memória cultural e social brasileira, a qual por sua vez, diz respeito a todos os cidadãos.

O presente estudo tem por objetivo realizar uma análise e discussão sobre a construção
da memória individual e coletiva acerca da ditadura militar, tendo como eixo norteador o trauma
psicológico decorrente da violência cometida pelos agentes repressivos da ditadura. Para tal,
foi realizada uma análise de depoimentos de vítimas de tortura na época da ditadura. Os
depoimentos foram extraídos do vídeo “Travessia do Silêncio, Testemunho e Reparação” o qual
ISSN: 2525-7501
foi produzido em 2015 pela Clínica do Testemunho Projetos Terapêuticos de São Paulo, sendo
o vídeo aberto à consulta pública através do site do Ministério da Justiça do Governo Federal.
O vídeo foi transcrito (transcrição que se encontra em anexo) e, após a transcrição, os
depoimentos foram analisados com a ajuda da teoria psicanalítica, fazendo uma reflexão sobre
o trauma e a constituição da memória singular e coletiva.

1. O conceito de trauma
Em 1920, a partir de estudos sobre as neuroses de guerra, Freud constata que o trauma
está excluído do princípio de prazer, ou seja, nas situações extremas de vida e/ou violentas a
energia pulsional desencadeada supera a capacidade do psiquismo de fazer a ligação da mesma
às representações. Pontuamos que além da sensação intensa de desprazer, o excesso de energia
pulsional livre repercute em ameaça de fragmentação ao psiquismo (FREUD, 1920).

O excesso pulsional é constituinte do trauma, visto que ao não se deixar ligar,

801
representar, a pulsão permanece impondo-se como tal para o sujeito. Assim, o trauma é
ocasionado por algum evento externo que, devido ao seu caráter extremo, desencadeia no
psiquismo excitações que o invadem e o paralisam, visto que não há defesas possíveis para a
magnitude dessa força (FREUD, 1920).

Ao estudar os sonhos dos combatentes que regressavam das guerras, Freud (1920)
observou que possuíam a característica de repetição, levando o paciente a situação de desastre
ou acidente, fazendo com que a experiência desprazerosa fosse imposta ao sujeito contra a sua
vontade e com a mesma força de quando foi vivida.

Percebe-se que o conteúdo desses sonhos escapa ao princípio de prazer e diz respeito
a algo mais originário, a uma força que não consegue passar pelo processo das representações,
permanecendo sob a forma de pulsão. Ao não conseguir representar o trauma, esse fica
destituído de sentido para o sujeito, excluído do universo simbólico e representacional.

Esse caráter de irrepresentabilidade tem como consequência a exclusão do


acontecimento pelo campo da memória representacional. O trauma não consegue ser inscrito
ISSN: 2525-7501
na forma de traço mnêmico, o que é fundamental para a formação da memória, uma vez que
essa é marcada por seu caráter representacional (ANTONELLO e GONDAR, 2014).

É a memória representacional que é dinâmica, ocorrendo circulação de energia pelas


cadeias de significantes, das quais o trauma fica excluído. Estando excluído da memória
representacional, o trauma não está sujeito a modificações, limitando-se a manifestações
decorrentes da força pulsional que o caracteriza (ANTONELLO, GONDAR, 2014).

Devido ao seu caráter de irrepresentabilidade, o trauma se apresenta por meio da


compulsão a repetição por vias que não as representacionais, aspecto que marca seu caráter
anti-narrativo, não havendo palavras capazes de articular o que foi vivido. Devido a isso, o
traumático é marcado pela literalidade, apresentando-se por meio de manifestações corporais,
atos, flashbacks hiper-reais cujas imagens remontam com exatidão fotográfica a cena
traumática, (ANTONELLO, GONDAR, 2014).

A literalidade das cenas traumáticas revela que as mesmas não puderam ser mediadas

802
pela fantasia, a qual teria a função de revestir e encobrir o horror vivido (MALDONADO,
CARDOSO, 2009). Antonello e Gondar (2014) falam do processo de figuralidade envolvido
nas imagens formadoras da recordação traumática. Por figuralidade os autores referem-se ao
mecanismo que dá uma forma captável a elementos não representados. Assim, as lembranças
do trauma não são lembranças encobridoras como as em que houve representação e
recalcamento, mas são lembranças que dizem respeito à clivagem, marcando a fragmentação
do eu em partes incomunicáveis, fazendo com que o trauma permaneça sob a forma de um
corpo estranho no psiquismo (MALDONADO, CARDOSO, 2009).

Tais manifestações literais do trauma e a impossibilidade de representação dizem


respeito a uma experiência que não se inscreveu. Dessa forma, o trauma não comporta a
possibilidade de esquecimento, visto que para tal é necessário que se tenha uma memória
representacional do que foi vivido, ou seja, é necessário que antes se tenha uma lembrança, para
que depois haja o esquecimento (SELIGMANN-SILVA e NETROVSKI, 2000).

Ao não ser passível de representação e consequentemente de retranscrição e


esquecimento, o trauma não se inscreve como passado, instalando, assim, continuamente, um
tempo presente (MALDONADO e CARDOSO, 2009). Desse modo, compreendemos a
ISSN: 2525-7501
magnitude das consequências do trauma, uma vez que os eventos causadores do trauma são
revividos em sua forma literal e continuamente.

Além de não conseguir fazer parte da memória representacional do sujeito, o seu


caráter anti-narrativo leva a dificuldade de compartilhar o trauma coletivamente e, assim, de
construir uma memória coletiva sobre os eventos traumáticos. Desse modo, fazendo uma
analogia com a memória do sujeito vítima do trauma, podemos pensar que a memória coletiva
sobre os acontecimentos traumáticos também é uma memória não representacional, uma
memória literal, presa aos fatos.

Nesse sentido, Seligmann-Silva e Netrovski (2000) ao falar sobre a representação de


catástrofes referem que o trauma apresenta uma barreira em seu testemunho, visto que não há
palavras capazes de transmiti-lo. A não assimilação da experiência traumática pelo sujeito faz
com que esse não consiga transmiti-lo através de uma narrativa tradicional, o que é reforçado
por um público que não está preparado para ver a dimensão do que foi vivido.

803
Ainda sobre esse ponto, os autores supracitados referem que a literalidade das falas de
trauma dessensibilizam os espectadores, não havendo espaço para a imaginação e a reflexão.
Tais falas viriam marcadas por um excesso de realidade, o qual traria consigo a destruição da
capacidade de discernimento entre o real e o irreal, visto que a recordação traumática reproduz
uma impressão de irrealidade.

Desse modo, Felman (2014) nos fala em uma invisibilidade cultural em ver o trauma,
fazendo com que o sofrimento e a magnitude do evento causador do trauma não consigam ser
vistos e assimilados pelos ouvintes, não conseguindo ingressar na memória coletiva. Notamos,
assim, que as situações traumáticas não reduzem seu sofrimento ao momento em que são
vivenciadas, sendo plenas em ressonâncias.

A interlocução entre trauma, memória e o discurso de vítimas de tortura no período da


ditadura militar
ISSN: 2525-7501
Reunimos neste capítulo a análise de depoimentos de vítimas de tortura no período da
ditadura militar no Brasil. Os depoimentos analisados foram extraídos do vídeo “Travessia do
Silêncio, Testemunho e Reparação” o qual foi produzido em 2015 pela Clínica do Testemunho
Projetos Terapêuticos de São Paulo, sendo o vídeo aberto à consulta pública através do site do
Ministério da Justiça do Governo Federal.

Ao transcrevermos os depoimentos notamos o caráter extremo e sub-humano dos


acontecimentos. O trauma da ditadura pode ser visto de modo mais explícito naqueles que
sofreram as marcas da violência diretamente sobre seus corpos físicos, cujas maiores marcas
são, ainda, as marcas psicológicas que tal violência pode acarretar. Nesse sentido, trouxemos
algumas falas que tentam, de alguma forma, colocar em palavras o que foi vivido.

Emílio Ulrich, uma das vítimas presentes no vídeo, ao se referir às torturas físicas
sofridas, relata que “são situações no DOI-CODI extremamente humilhantes, que
despersonalizam a pessoa na tortura”. Notamos, através dessa fala a ameaça de fragmentação
do psiquismo do sujeito produzida pelas situações de tortura sofridas por Emílio, o qual conta
que recebeu “todo o tipo de tortura, durante os trinta dias em que ficou preso”. Ressaltamos, 804
ainda, na fala de Emílio, a presença da literalidade ao falar sobre as torturas e as humilhações
sofridas, que diz de um sofrimento que não encontra uma expressão à altura.

Observamos, no depoimento de Emílio e dos demais integrantes do vídeo, poucas


palavras sobre o acontecido, seus relatos são tomados pela literalidade das falas, as quais não
dizem respeito a uma significação e uma elaboração dos acontecimentos. Marcia Paes relata
que o fato de ter sido torturada grávida e de ter tido hemorragia, nunca havia conseguido falar
para ninguém.

Nos relatos percebe-se uma sensação de passividade frente às torturas, e não apenas
passividade corporal, de não poder reagir fisicamente às agressões, mas uma passividade
também psíquica. Lembramos que tal passividade ocorre porque, no trauma, o psiquismo frente
a uma situação tão extrema está totalmente sem possibilidades de defesa e proteção, ficando
totalmente exposto e sem reação frente à força do acontecimento violento (Freud, 1920). Ao
lançarmos um olhar crítico e reflexivo ao contexto social da época da ditadura, deduzimos que
ISSN: 2525-7501
a intenção das torturas era produzir o medo e passividade como forma de expressão, instalando-
se um trauma individual e social que destitui os sujeitos de narrativa e expressão.

Evidenciamos essa questão, nos depoimentos presentes no vídeo, conforme a fala de


Emília Lopes “em todo o lugar que eu passei por sua vida depois da prisão foi de completo
silêncio” e “eu convivi com essa questão da prisão, sem falar disso”. Existe um elemento
fundamental, que é o silêncio em relação ao que viveram, o inominável, que se estende entre
os pares, a família e com a sociedade.

Emília ficou 40 anos sem falar no assunto, e relata que nunca falava em razão do
“trauma ser muito grande”. Tal fala, aponta uma impossibilidade de transmissão do trauma,
ressaltando seu caráter anti-narrativo que lhe confere certa invisibilidade perante a sociedade,
porém continua trazendo profundas repercussões na subjetividade da vítima.

Mas além da dificuldade de transmitir o trauma, as falas dos torturados revelam uma
sociedade e uma cultura que não oferece lugar ao discurso dos violentados. Os sujeitos não

805
encontram lugar para falar de algo que lhes foi tão marcante e impossível de ser esquecido,
restando a eles a tarefa de terem que encontrar-se, novamente, sozinhos e desamparados frente
às lembranças e as manifestações traumáticas.

Felman (2014) pontua que a invisibilidade do trauma, fruto do seu caráter anti-
narrativo e de uma cultura que não o vê, reforça a invisibilidade e o não reconhecimento do
trauma. Nos depoimentos analisados a força de uma experiência que ainda não conseguiu ser
assimilada pelos sujeitos e dotada de sentido.

Emília Lopes relatou que convidou uma amiga para compartilhar suas experiências da
prisão na época da ditadura, no projeto clínicas do testemunho, segunda Lopes, sua amiga se
recusou a contar suas experiências por achar “que não teria coragem de vir, que estaria ainda
engolindo essas coisas todas”. Essa fala mostra as ressonâncias do trauma, a magnitude de uma
experiência que não foi assimilada e dotada de sentido pelo sujeito e, portanto, mesmo depois
de quarenta anos, é uma experiência que ainda não foi “engolida”, termo utilizado na frase
supracitada que revela a violência da experiência que é imposta ao sujeito, o qual não possui a
possibilidade de recusa do mesmo e que assim, ele é obrigado a “engolir” e não “digerir” de
uma forma saudável psiquicamente.
ISSN: 2525-7501
Além dos que sofreram a violência diretamente em seus corpos, não podemos deixar
de citar as gerações seguintes consangüíneas dos torturados que foram marcados em instância
psíquica pela ditadura. Os/as participantes do programa Clínicas do Testemunho presentes no
vídeo comentam que seus filhos/as são afetados/as por as histórias de violência. Evidenciamos
essa questão na fala a seguir: “se sente alguma coisa, como se tivesse uma presença invisível
ali, uma história que embora eu saiba os pontos dela, eu sei contar essa história, tem muita coisa
que é borrada pra mim, assim, eu não sei exatamente o motivo do meu desconforto, sabe”
(participante Beatriz Santos- filha de uma vítima tortura).

O relato de Beatriz revela uma história de trauma, que mesmo que se saiba o que
aconteceu, é uma história literal que está presa aos fatos e cuja significação aparece borrada. O
sentido da história não conseguiu ser agregada a historicidade do sujeito e da sociedade e,
portanto, é como um corpo estranho, que causa desconforto, estranheza aos sujeitos que são
obrigados a levar consigo a história.

A fala do filho de outra vítima de tortura na ditadura traz em sua fala impressões
parecidas. Sergio Coelho conta que seus pais “nunca falaram, quer dizer, sim, há momentos em 806
que isso foi dito, mas não no cotidiano, e não no depoimento de sofrimento pessoal deles, eles
sempre quiseram me preservar disso”.

Pensando sobre essa tentativa dos pais de preservarem o filho sobre os acontecimentos
vividos durante o período de ditadura, questionamo-nos sobre a possibilidade dessa ação
paterna, uma vez que, o não dito permanece em forma latente e tem repercussões nos laços de
afeto intersubjetivos.

Ainda referente à fala de Sergio questionamo-nos a respeito de quê, exatamente seus


pais o tentavam reservar? Associado a isso, pensamos na fala de Beatriz, a qual relata que “tinha
que esconder o que eu fui, o que eu era, o que eu sou, o que eu penso né (...) na escola as colegas
perguntavam do meu pai”. Mesmo após o fim da ditadura militar, pelas falas de Sergio e
Beatriz, percebe-se que o silêncio continua, notamos, nas duas falas anteriores, até um certo
constrangimento sobre a violência e o sofrimento de que foram vítimas, tentam esconder o que
são e o que lhes aconteceu.
ISSN: 2525-7501
Constatamos que, além da dificuldade própria do trauma em ser transmitido, uma vez
que não foi representado, a sociedade não abre espaços para tal. Um indício de que a sociedade
não oferta espaços para discutir sobre isso é a fala dos participantes de que a clínica do
testemunho é o “primeiro lugar em que tiveram espaço para isso”, revelando a carência de
espaços para transmissão e compartilhamento do trauma, o que consideramos ser essencial na
tentativa de amenizar o sofrimento desencadeado por ele.

Esses espaços são importantes, também, no sentido de compartilhar e refletir sobre


esses acontecimentos que fazem parte de uma página triste do nosso país, mas que deve ser
reconhecida, tanto como um modo de reparação do estado perante às vítimas mais diretas,
quanto para que esses acontecimentos não se repitam. Nesse sentido, Padrós (2014) refere que
a memória coletiva é uma formação plural, ou seja, é constituída no contato entre as pessoas,
sendo que a memória coletiva e histórica pode ser usada tanto para justificar a repetição do
passado, ou fazer com que esse passado não se repita, promovendo a transformação do presente.

Gostaríamos de ressaltar que as falas aqui estudadas são de participantes do Projeto


Clínicas do Testemunho e que, portanto, são de sujeitos que agora conseguem, dentro de suas 807
condições, tentar pensar sobre o que lhes aconteceu, mas, mesmo assim, notamos, pelas suas
falas, o quão árdua é essa tarefa. Beatriz refere que “uma das coisas que mais me impressionou
foi o silêncio que existia entre as falas… ainda é difícil falar disso, eu já estou treinada depois
de tanto falar disso, mas ainda é difícil”. Essa fala pode ser completada com a de Camila Pires:
“nós vivemos com silenciamentos, e dos silenciamentos você só traz emoção, medo, e emoção
que você não consegue dar nome. A partir do momento que você nomeia você consegue se
entender melhor”.

Percebemos que os participantes do projeto já conseguem possuir em entendimento


sobre as questões da violência e do trauma da ditadura de que são vítimas, e mesmo que em
suas falas ainda está presente a dificuldade de fala e transmissão do que lhes ocorreu, eles
conseguem olhar e refletir sobre, em uma tentativa de construção de entendimento e
significação sobre acontecimentos cujo objetivo foram, justamente, sobreporem-se a qualquer
tipo de entendimento dos sujeitos.
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O vídeo encerra com a fala de Marcia Paes, a qual fala que “compartilhar essa dor é
um ato de generosidade pra que isso não aconteça novamente”. Nesse sentido, ressaltamos a
importância do testemunho sobre as vivências de trauma, no sentido de construir uma memória
individual e coletiva para o que foi vivido, tentando, minimamente que seja, fazer com que
essas vivências façam parte da história de cada um e do coletivo, dando voz aquilo que a
violência calou, voz essa que sé é possível quando há alguém que fala e alguém que escuta,
procurando, através dessa relação, dar um significado para aquilo que ultrapassa a barreira do
entendimento. É nesse ponto que o testemunho e estudos como o presente buscam se inserir, na
construção de uma memória social da história do país.

CONCLUSÃO

Notamos o desafio que é construir uma história de vida que inclua os acontecimentos
do período da ditadura militar. Beatriz Santos relata que “parece que se está falando do seu
passado, mas de um outro ponto de vista” sendo necessário “juntar essas ilhas”. Essa fala
remete, novamente, ao que foi apontado por Maldonado (2009) o qual refere à dificuldade de 808
assimilação do evento traumático para que o mesmo possa fazer parte da historicização do
sujeito.

Além do sujeito, pensamos que essa historicização das questões referentes ao período
de ditadura militar é um desafio para a sociedade. Pensamos sobre as ilhas que a sociedade,
constituída por todos os cidadãos, devem juntar para incluir a ditadura em sua memória
histórica, visto que esse é um compromisso da sociedade perante sua história. Questionamo-
nos, em cima disso, sobre o quanto a sociedade assume esse compromisso de não deixar que
esse passado do Brasil se perca na invisibilidade, não temos respostas para o nosso
questionamento, visto que o mesmo exigiria um estudo maior sobre, porém, consideramos um
questionamento necessário.

Pontuamos que, para a memória social consiga integrar as questões referentes a


ditadura militar em sua história é necessário olhar e pensar sobre essas questões que, enquanto
questões sociais, dizem respeito à todos os cidadãos. Padrós (2014) pontua que a memória pode
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ser um mecanismo de preservação e retenção do tempo, sendo constituída como um conjunto
de acontecimentos que mantém significado na consciência de indivíduos e de comunidades.

Notamos, através das falas presentes no vídeo, a importância de projetos em que se


possa falar sobre as questões referentes à ditadura que perpassam os sujeitos. Importância essa
que se situa no ponto em que o testemunho oferece um lugar de tentativa de significar o que foi
vivido, de representar o trauma, construindo a memória individual e coletiva da história do
Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTONELLO, D. F.; GONDAR, J. E quando não há fios lógicos?. Cad. de Psicanálise- CPRJ.
Rio de Janeiro. v. 36 n.30. p.89-112. 2014.
FELMAN, S. O inconsciente jurídico: Julgamentos e traumas do século XX. São Paulo:
Edripro. 2014.
809
FREUD, S. Além do princípio de prazer. In. FREUD, F. Além do princípio de prazer,
Psicologia de Grupos e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago. 1920-1922. p. 13-79.
MALDONADO, G. CARDOSO, M. R. O trauma psíquico e o paradoxo das narrativas
impossíveis, mas necessárias. Psicologia clínica. v.2, n.1. Rio de Janeiro. 2009.
NESTROVSKI, A; SELIGMANN-SIVLA, M. Catástrofe e representação. SãoPaulo: Escuta,
2000.
PADRÓS, E. S. A história e a memória confiscada: o tempo presente e as ditaduras de
segurança nacional. In. Clínicas do testemunho: reparação psíquica e construção de memórias.
Porto Alegre: Criação humana, 2014.
TRAVESSIA DO SILÊNCIO, TESTEMUNHO E REPARAÇÃO. Ministério da Justiça e
Cidadania/ Governo Federal. Disponível em: < http://www.justica.gov.br/seus-
direitos/anistia/clinicas-do-testemunho-1/videos/videos>. Acesso em: 05 ago. 2016.
ISSN: 2525-7501
A ANISTIA DE 1979 COMO PROJETO DE ESQUECIMENTO*402

Mariane da Silva**403

RESUMO

O presente artigo objetiva problematizar a promulgação da Lei de Anistia de 1979 a luz da


discussão bibliográfica sobre a “memória coletiva” de Halbwachs (2006) e “memória
emblemática” de Steve Stern (2002). Para Halbwachs (2006), uma lembrança ainda que
individual está sempre em interação com a sociedade, compartilhando diferentes contextos e
participantes onde há, nesse sentido, a transposição dessa memória individual para coletiva. Já
para Steve Stern (2002), entre as memórias soltas - ou individuais - e a memória coletiva, há a
memória emblemática. Essa memória consiste na luta por relacionar as experiências e as
lembranças pessoais e soltas às experiências e lembranças emblemáticas e coletivamente
significativas. Esse trabalho busca refletir as discussões acerca da construção da memória
relacionadas à última Lei de Anistia promulgada no Brasil em 1979. A Lei de Anistia, mesmo
sendo uma considerada uma vitória para as mobilizações sociais da década de 1970, após a
abertura política de 1985 e ainda hoje, é colocada como um problema para os grupos que
buscam reparação e justiça. Apoiando-me nas reflexões de Paul Ricoeur (2007) sobre o
esquecimento, proponho que a promulgação dessa lei influenciou naquilo que devia ser 810
lembrado ou esquecido para a (re) construção de uma memória nacional após a última ditadura
militar brasileira (1964-1985).
Palavras-chave: Anistia; Memória; Esquecimento;

INTRODUÇÃO

A fronteira entre esquecimento e perdão é insidiosamente ultrapassada na medida


em que essas duas disposições lidam com processos e com a imposição da pena;
ora, a questão do perdão se coloca onde há acusação, condenação e castigo; por
outro lado, as leis que tratam da anistia a designam como um tipo de perdão
(RICOEUR, 2007, p. 459).

402
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
403
** Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Cultural da Universidade Federal de Santa Catarina
(PPGH-UFSC) sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Cristina Scheibe Wolff. Bacharela e Licenciada em História pela
mesma universidade (2015). Bolsista CAPES 2016/2018. Contato: silva.marianeda@gmail.com.
ISSN: 2525-7501
A epígrafe com que inicio esta elaboração faz parte da discussão em que Paul Ricoeur
propõe sobre os abusos de memória presentes nas diversas formas de esquecimento
institucional promovidos pela anistia, tonando-se fácil de serem transpostos. Para Ricoeur, a
concessão de anistia tem efeitos e alcances distintos; “ela põe fim a graves desordens políticas
que afetam a paz civil” operando como “um tipo de prescrição seletiva e pontual que deixa fora
de seu campo certas categorias de delinquentes” (RICOEUR, 2007, p. 460). Ao identificar as
diferentes facetas da anistia e o seu caráter dúbio, as proposições de Ricoeur nos auxiliam na
reflexão acerca da última Lei de Anistia decretada no Brasil em 1979404, em meio aos vagarosos
encaminhamentos à abertura política que ocorreria somente em 1985.
A esperada Lei de Anistia (nº 6.683) promulgada pelo então presidente da república
João Baptista Figueiredo, em 28 de agosto de 1979, apesar de ser considerada uma vitória dos
movimentos sociais, tomou um caminho diferente do esperado (BRASIL, 1979). Na redação
dessa lei, houve a aprovação do retorno das/os exiladas/os e opositoras/es ao regime ditatorial
que obtiveram o perdão e os seus direitos à cidadania brasileira restabelecida. Porém, os
promotores do regime militar foram igualmente beneficiados ao se apoiarem no trecho da Lei
no qual diz que serão anistiados àqueles que cometeram “crimes conexos”405. Uma das 811
principais discussões em torno do projeto de lei aprovado está centrada na interpretação da
expressão “crimes conexos”, pois para os torturadores, “conexos” seriam os crimes praticados
no contexto geral da disputa política da época. Ou seja, a situação na qual eles se encontravam
não era por escolha própria e, sim, por meio da função que desempenhavam no período. Para
os que defendem a revisão da Lei, essa interpretação não tem sentido jurídico já que na prática
representaria uma auto anistia. Diante desse cenário de lutas e reivindicações pelo

404
O golpe de estado sofrido no Brasil em 1964, conduzido por civis e militares, perdurou 21 anos e foi marcado
por períodos de extrema violência institucionalizados por meio de atos administrativos. Mobilizações sociais e
pressão popular contrárias às medidas autoritárias obtiveram respostas violentas ocasionando mortes, sequestros
e no desmantelamento de articulações contrárias ao regime militar. A luta pela promulgação de uma lei de Anistia
teve início na década de 1970, tomando força em 1975 com a oficialização do Movimento Feminino Pela Anistia,
em seguida outros movimentos populares incorporaram a luta pela anistia em suas pautas, e em 1979, a pressão
era tamanha que já não havia como evitá-la. Sobre a ditadura militar brasileira ver em: REIS FILHO, 1997;
GOMES, FERREIRA, 2014; FERREIRA, DELGADO, 2007. Sobre a luta pela Anistia, ver em: RODEGHEIRO,
2009; DUARTE, 2012; BARRETO, 2011; SILVA, 2015.
405
Art. 1º: [...] § 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados
com crimes políticos ou praticados por motivação política. (BRASIL, Lei. n. 6.683, de 28 de agosto de 1979).
ISSN: 2525-7501
restabelecimento da democracia e de liberdades individuais, o projeto de Anistia aprovado pelo
governo brasileiro, apesar de não atender totalmente à demanda dos movimentos sociais,
naquele período representou um avanço em termos democráticos.
Esta elaboração se deterá em apresentar, na primeira parte, um panorama acerca das
discussões da historiografia sobre a memória: o esquecimento proposto pelo projeto de governo
ao promulgar a Lei de Anistia - a “memória coletiva” construída para fortalecimento do
esquecimento institucional-, a utilização da metodologia da História Oral no trabalho de
diversas/os historiadoras/es para compreensão do cenário das disputas de memórias, bem como
a criação da Comissão Nacional da Verdade como iniciativas a fim de ressignificar as memórias
compartilhadas a respeito do período ditatorial brasileiro.
Na segunda parte deste trabalho serão enfocadas as memórias individuais que não são
compartilhadas coletivamente – ou “memórias emblemáticas” – apresentando o núcleo do
Movimento Feminino pela Anistia de Santa Catarina, que teve sua atuação solapada na História
e na historiografia, como exemplo do projeto de esquecimento proposto pela Lei de Anistia. A
metodologia da História Oral novamente se coloca como importante aliada no processo de
convocação de memórias diferentes das socialmente compartilhadas, entendida aqui como um 812
caminho possível para a ressignificação das memórias construídas na atualidade sobre o período
ditatorial brasileiro.
Capítulo I – Memórias em disputa

Passados 36 anos da promulgação da Lei nº 6.683, conhecida como Lei de Anistia,


diversas organizações de ex-presas/os políticas/os e de familiares, assim como outros
movimentos sociais, ainda lutam para ressignificar a memória da ditadura militar construída a
posteriori e para punir os perpetradores da tortura de Estado. Ao pensar no caráter hesitante da
anistia proposto por Ricoeur, no caso brasileiro, observa-se uma memória parcial construída
por parte dos detentores do poder de informação, em que visa se tornar coletiva.
Entendo que em relação a Lei de anistia, e utilizando as reflexões de Halbwachs (1968)
acerca das memórias coletivas, foi disseminada uma memória dos vencedores, ou seja, do grupo
que estava ligado ao poder (alguns de seus representantes ainda permanecem na atualidade) em
que os militares visavam combater o inimigo comunista que ameaçava tomar o país. Nesse
sentido, todas aquelas pessoas que se opuseram ao regime, eram identificadas como comunistas
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e/ou inimigas/os da nação. Esse tipo de ideia ainda reverbera na atualidade em função do
aparelhamento do Estado com as mídias (jornais, televisão, rádios, entre outros meios de
comunicação) que na época, serviram para a aceitação popular e promoveram a consolidação
do regime instaurado. Mesmo não sendo a intenção desta elaboração, é importante destacar que,
apesar de alguns editores terem se aproveitado para construir fortunas nessa estreita relação
com o regime autoritário, os jornais alternativos, mesmo na ilegalidade, continuaram
denunciando os abusos e aparelhamentos cometidos em nome do Estado406.
Ao conceber a memória como a “presença do passado” (ROUSSO, 1992, p. 94), tem-se
a ressignificação de uma memória sobre esse passado de arbitrariedades, visando solapar as
diversas mobilizações e resistências ao regime militar. Seguindo a linha de raciocínio proposta
por este autor, torna-se problemático afirmar, então, que toda memória é coletiva, pois, como
aponta Henry Rousso (1992) se deslocarmos a escala para o indivíduo ou grupo social,
percebemos memórias individuais que não podem ou não são compartilhadas coletivamente
(ROUSSO, 1992, p. 95). Intencionando justificar o problema na utilização do termo “memória
coletiva”, Alessandro Portelli atenta que, embora estejamos trabalhando com memórias que
podem ser coletivamente compartilhadas, “devemos ser cautelosos ao situá-la fora do 813
indivíduo” (PORTELLI, 1997, p. 16).
De acordo com a discussão apresentada, a utilização do termo “memória coletiva”,
proposta por Halbwachs, nesta elaboração é entendida como apoio para a consolidação dos
estados nacionais, na medida em que as memórias e experiências pessoais estão interagindo
com a sociedade, compartilhando o contexto, não sendo possível a sua completa dissociação.
Diante desse quadro compreendo que há, por parte do estado brasileiro à época, a construção
de uma memória sobre a ditadura militar que intencionava se tornar coletiva; e a promulgação
da Lei de Anistia pode ser considerada como a efetivação desse pacto.
O cenário exposto de disputa das memórias sobre o final da década de 1970 no Brasil,
fica evidenciado nos diversos trabalhos que utilizam a metodologia da História Oral com
pessoas que participaram das diversas mobilizações sociais em prol da promulgação de uma

406
Sobre a imprensa alternativa, ver em: UCHA, 1985; GREEN, 2003; ARAÚJO, 1999.
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Lei de Anistia407. Vale destacar aqui o trabalho da autora Carla Rodeghero que, apoiando-se
nas concepções acerca do caráter de esquecimento predominante sobre a Lei Anistia articulados
por Heloísa Greco, infere que:

A anistia, assim, teria um sentido de anamnesis, de reminiscência necessária à


consecução da justiça como resgate da memória e direito à verdade, diferentemente
da concepção que embasou o projeto governamental: a de anistia como amnésia.
(RODEGHERO, 2009, p. 138).

O debate historiográfico acerca da amnésia, que prevaleceu após o período do retorno


dos exilados (1979) e da abertura política (1985), para algumas/ns historiadoras/es pode estar
atrelada às posturas assumidas pelas esquerdas e movimentos sociais, assim como a da própria
sociedade como um todo. O historiador Carlos Fico aponta que uma leitura maniqueísta do
período ditatorial brasileiro se consolidou com a perspectiva de uma sociedade polarizada: de
um lado a sociedade resistente e do outro os militares que não queriam deixar o poder. Para
Carlos Fico, esse esquecimento e a construção de uma memória acerca de uma sociedade
resistente foram os responsáveis por solapar o apoio das classes médias e elites brasileiras ao 814
governo militar. Isso acaba não permitindo visualizar a base legitimadora da ditadura militar
desencadeada como um produto social (FICO, 2011). A Lei de Anistia, nesse sentido, teria se
configurado como um “auto anistia”, também, para a sociedade apoiadora do regime instaurado.
A autora Luciana Heymann ao discutir o dever de memória na França e traçar um
paralelo à memória brasileira sobre o período ditatorial, aponta para o problema de não termos
discussões com diferentes setores da sociedade brasileira acerca das memórias construídas
posteriores ao período militar. Para esta autora, essa memória é acionada na dimensão do direito
por grupos específicos, mas que não possui um alcance socialmente compartilhado
(HEYMANN, 2006, p. 21). No meio acadêmico as discussões acerca das memórias construídas
do último período ditatorial brasileiro são abordadas por diferentes perspectivas e fontes

407
Trabalhos que problematizam a Lei de Anistia: GRECO, 2003; RODEGHERO, 2009; ARAÚJO, 2012;
Trabalhos que abordam a atuação dos núcleos do MFPA: CARBONI, 2008; VARGAS, 2008; BARRETO, 2011;
DUARTE, 2012.
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visando um ressignificação e problematização da memória socialmente compartilhada, porém
esses trabalhos possuem dificuldades em extrapolar o meio em que se concentra.
Recentemente podemos acompanhar os esforços capitaneados com a criação da
Comissão Nacional da Verdade408 que no período de 2012 e 2014 teve por objetivo denunciar
os torturadores, agências e instituições civis e militares que corroboraram para a disseminação
e estabelecimento do período ditatorial. Com a tomada de depoimentos, mapeamento dos
centros de torturas, incorporação de diversas documentações como processos crimes,
documentos oficiais, certidões e declarações de óbitos com laudos de legistas (alguns falsos),
entre outros, fazem parte do escopo da CNV. Isso permitiu às organizações de presas/os
políticas/os e de familiares ganharem força na luta pelo reconhecimento do Estado brasileiro
das violações aos direitos humanos e na exigência das punições dos seus algozes e dos de seus
familiares409.
A criação da CNV e, posteriormente, das Comissões Estaduais e institucionais da
Verdade410, além de buscarem a acareação de processos internos e de ações promovidas em

815
prol do estabelecimento do regime autoritário, objetivaram ampliar o debate com a participação
da comunidade que o cerca e da sociedade. As chamadas para sessões de depoimentos públicos
seguidas de debates, são algumas das ações observadas durante o exercício dessas comissões;
além da elaborações e entrega de relatórios com as informações encontradas.
Apesar desses esforços em atrair a sociedade como um todo para esses debates e a se
inteirar acerca das informações levantadas, com a disponibilização dos relatórios parciais e
finais nos sítios das respectivas comissões, não há/houve uma ampla discussão com a sociedade

408
“A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12.528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012. A
CNV tem por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e
5 de outubro de 1988” (BRASIL, Comissão Nacional da Verdade, 2012).
409
“1. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) soma-se a todos os esforços anteriores de registros dos fatos e
esclarecimento das circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988,
a partir de reivindicação dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, em compasso com demanda histórica
da sociedade brasileira. ” (Ibidem, 2014, p. 20).
410
Um exemplo da implementação de comissão institucional da Verdade é a Comissão da Memória e da
Verdade da Universidade Federal de Santa Catarina. <Http://cmv.ufsc.br/>
ISSN: 2525-7501
brasileira com relação ao último período ditatorial brasileiro, onde pudesse resultar na
ressignificação dessa memória na atualidade.
Capitulo II – Memórias em (re) construção

Ao realizarmos o caminho inverso, partindo das memórias individuais às memórias


coletivas, podemos destacar outra perspectiva proveniente dos estudos sobre memória: a
“memória emblemática” proposta pelo norte americano Steve Stern. Segundo este autor,

En esta perspectiva, la historia de la memoria y el olvido colectivo es un proceso de


deseo y de lucha para construir las memorias emblemáticas, culturalmente y
políticamente influyentes y hasta hegemónicas. Es una lucha para crear ciertos tipos
de puentes entre la experiencia y el recuerdo personales y sueltos por un lado, y la
experiencia y el recuerdo emblemático y colectivamente significativo por otro lado
(STERN, 2000, p. 3).

Ao questionar as memórias coletivas, e até hegemônicas como aponta Stern, as


memórias individuais ou soltas intencionam criar pontes que possibilitem alcançar de alguma
forma o que está posto nessa coletividade. Ao pensar as memórias como fragmentos do passado, 816
Stern compreende que estes fragmentos são acionados por meio de símbolos relacionados à
memória emblemática, que pretende tornar-se coletiva.
Ao transpor essas reflexões para o panorama de estudo sobre a Lei de Anistia de 1979,
as memórias emblemáticas que não fazem parte da memória coletiva perpetrada pelo Estado
nacional, estariam em não-lugar ou entre-lugar, ao utilizar as expressões propostas por Michel
de Certeau (1974, p. 58). Este não-lugar é acionado a todo momento desde o período ditatorial,
porém o campo de disputas tende a solapar as memórias individuais que não se conectam às
memórias amplamente disseminadas.
Estes embates entre memórias emblemáticas de experiências pessoais que estão
entrelaçadas com as memórias que subvertem a negociação da Anistia não conseguem alcançar
o nível coletivo em função do aparato institucional propiciado desde a promulgação da Lei de
Anistia de 1979 e de certa passividade dos movimentos sociais. De acordo com Ricoeur,

A proximidade mais que fonética, e até semântica, entre anistia e amnésia aponta
para a existência de um pacto secreto com a denegação de memória que, como
ISSN: 2525-7501
veremos mais adiante, na verdade a afasta do perdão após ter proposto sua simulação
(RICOEUR, 2007, p. 460).

A anistia ao longo da história, como defende Ricoeur, vem sido utilizada como via de
mão dupla, onde há uma relação de cumplicidade entre Estado e cidadãos: é proibido lembrar
desse período, seguido do não lembrarei por parte dos cidadãos (Ibidem, p. 460). Nesse sentido,
a formação do estado nacional de bem estar com a população tem a sua formação nessa relação
acordada diante do que deve ser lembrado. Essa amnésia acordada “é cheia de memória” e de
ressentimentos (STERN, 2000, p.7). Nesse acordo não há o perdão ou esquecimento.
Ao problematizar o projeto de governo proposto, entendo que a promulgação da última
Lei de Anistia pretendia ser um pacto de esquecimento e de “conciliação nacional” proposto
pelo Estado brasileiro de forma que todas as pessoas envolvidas na repressão e na resistência
obtiveram o perdão político. Essa afirmação fica mais fácil de ser visualizada ao alterarmos a
escala de observação, como propõe Jacques Revel (2010), ao analisarmos o esquecimento
acerca do Movimento Feminino Pela Anistia em Santa Catarina (MFPA-SC)411. Este
movimento que estava em consonância a outros estados brasileiros, teve sua atuação solapada 817
pela História.
Ao inserir a trajetória do MFPA-SC no cenário de lutas e disputas políticas, ainda de
acordo com o que Revel propõe, torna-se possível percebe-lo “numa multiplicidade de sociais
pelo novelo de relações sociais que se criam em volta dessa trajetória e dão- espaços e de tempos
lhe sua significação” (REVEL, 2010, p. 439). Durante a pesquisa da atuação desse movimento
para a elaboração do meu trabalho de conclusão de curso, ao realizar o movimento de identificar
as intencionalidades presentes numa perspectiva macroscópica, pude perceber como o núcleo
do MFPA catarinense esteve envolto nesse projeto de esquecimento que a própria Lei de Anistia
desencadeara. Foi por meio da História Oral que esses silenciamentos vieram à tona e da

411
O Movimento Feminino Pela Anistia foi oficialmente instituído em dezembro de 1975, na cidade de São Paulo
pela advogada Therezinha Godoy Zerbine. A principal bandeira desse movimento era a luta por uma Anistia
Ampla, Geral e Irrestrita a todas/os as/os presas/os e exiladas/os políticas/os pelo o regime militar instaurado no
Brasil. A instalação do núcleo catarinense do MFPA deu-se em 26 de novembro de 1977 na Assembleia Legislativa
do Estado de Santa Catarina por meio de uma palestra proferida pela presidenta nacional do movimento,
Therezinha G. Zerbine (SILVA, Mariane da. O Movimento Feminino Pela Anistia: o engajamento e a
participação de mulheres catarinenses entre 1975 e 1979. 2015, 95p. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação
em História) - Universidade Federal de Santa Catarina.).
ISSN: 2525-7501
realização de entrevistas orais que me possibilitaram vislumbrar como as discussões sobre a
construção da memória e o esquecimento estão interligadas, visto que “a memória é permeada
de silêncios, esquecimentos e não ditos” (POLLAK, 1989, p. 8).

Por vezes, as narrativas de Marise Maravalhas, Margaret Grando, Maria Rita Bessa e
Maria Helena Garcia412 eram alternadas entre esquecimentos e pequenas recordações de
símbolos difundidos pela memória coletiva do período. Ao mesmo tempo em que elas
compreendem que suas participações nesse movimento foram importantes para ajudar tanto aos
familiares quanto aos presos políticos, atribuem um sentido de desqualificação das ações que
entendo estar atrelada ao completo silêncio desse movimento na História e na historiografia da
resistência catarinense. Cenário este totalmente que percebo como totalmente compreensível,
porque, passados quase quarenta anos da formação do núcleo catarinense do MFPA que essas
mulheres puderam falar acerca das suas experiências de resistência. Percebo, diante desse
quadro, que as memórias individuais dessas mulheres por não se conectarem às difundidas
coletivamente, foram mantidas para si e quase caíram no completo esquecimento. O silêncio e
esquecimento sobre esse grupo de mulheres em prol dos direitos humanos foram construídos
ao longo do tempo e a trajetória desse grupo silenciada na Historiografia
818

CONCLUSÃO

Os embates travados que impossibilitam a reconstrução da memória sobre o período


ditatorial brasileiro só será possível após um amplo debate com a sociedade como um todo.
Salientando as participações e apoio dos diversos grupos envolvidos, bem como na revogação
da Lei de Anistia, permitindo a culpabilização dos perpetradores da violência cometida em
nome do Estado brasileiro. Sabendo que a Lei de Anistia naquele momento histórico era uma
vitória das mobilizações sociais e como uma pequena parte do reconhecimento do Estado
brasileiro dos crimes cometidos em nome da “pacificação nacional”, impediu-nos de avançar
no debate da responsabilização e, principalmente, na reparação às vítimas do regime instaurado.

412
Entrevistas realizadas para o meu trabalho de conclusão de curso, entre o período de setembro de 2014 e abril
de 2015.
ISSN: 2525-7501
Nesse sentido, compreendo que a função das/os historiadoras/es orais, e de acordo com
o que propõe Steve Stern, é a de convocar as memórias e promover as circunstâncias socais
propícias à construção das pontes entre o imaginário pessoal e o coletivo, entre as memórias
individuais e as memórias coletivas (STERN, 2000, p. 11-12). Ao impor as rupturas entre as
memórias entendidas como coletivas, somos exigidos a interpretar e pensar as coisas mais
conscientemente, nos permitindo “interromper os fluxos e ritmos ‘normais’ que constituem um
mundo de hábitos e reflexos cotidianos” (Ibidem, p. 13-15). As construções dessas “pontes” de
memórias permitem não somente visualizar diferentes formas de resistência empregadas como,
também, abrem às possibilidades de outras pessoas se identificarem com tais narrativas e
finalmente, possibilitar uma ressignificação das memórias na atualidade.

Romper com as imposições autoritárias e viabilizar o canal para que cada vez mais as
memórias individuais sobre o período repressivo brasileiro possam aflorar é a principal
contribuição das historiadoras e historiadores que utilizam a história oral como metodologia de
pesquisa e análise historiográfica.

819
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anos 70: objetos e fontes históricas. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, 1999.

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ISSN: 2525-7501
ATUAÇÕES FEMININAS DURANTE AS CAMPANHAS FRONTEIRIÇAS NA
BANDA ORIENTAL (RIO PARDO – 1811 a 1828)413

Lélia Coelho Lopes414

RESUMO

Esse trabalho analisa as atuações femininas em Rio Pardo, especialmente durante as campanhas
da Banda Oriental (1811 – 1828). As guerras de fronteira que mobilizavam efetivos masculinos
contribuíram para colocar as mulheres desempenhando papéis sociais que tradicionalmente
eram atribuídos aos homens das famílias. Através da consulta de bibliografias e dos fundos
Requerimentos e Autoridades Militares do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS),
correspondências, requerimentos, ofícios, recibos da Câmara Municipal de Rio Pardo
(AHMRP), de documentos da Coleção Varella e de relatos de viajantes, verificamos, de
maneira qualitativa, como o contexto de fronteira e guerra influenciou as atitudes femininas na
região. Inferimos que a conjuntura de guerra não permitia a acomodação dos membros
familiares aos papéis sociais tradicionais, e levava as mulheres a cumprir diferentes funções.

821
Palavras-chave: Mulheres, Guerras Fronteiriças, Trabalho.

INTRODUÇÃO

As mulheres tinham suas vidas modificadas à medida que os homens atendiam a


destacamentos militares. No entanto, surgem as questões: De que maneira elas eram afetadas?
Seus papéis sociais eram alterados? Como se posicionavam frente à família e às autoridades?
Que funções desempenhavam nessas situações?

Procuraremos responder no decorrer do trabalho, que se justifica porque a condição de


região fronteiriça e militarizada de Rio Pardo “modelou” atuações sociais particulares e os

413
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
414
Mestre em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Brasil. Email: lelialopes@uol.com.br
ISSN: 2525-7501
estudos sobre esta realidade podem contribuir para entender a sociedade da Capitania, depois
província do Rio Grande de São Pedro, durante os conflitos fronteiriços de 1811 a 1828 na
Banda Oriental. É neste período e espaço que desenvolveremos nosso artigo, mas
eventualmente, poderemos retornar em nosso marco cronológico, ou talvez ultrapassá-lo de
acordo com a necessidade, inclusive inserindo-o no que definimos como espaço fronteiriço e
platino.

No entanto, destacamos que no decorrer do nosso período de análise, o espaço de Rio


Pardo foi se modificando. Em 1811 ainda abarcava metade do território da capitania, passando
a ser desmembrado a partir de 1817. Organizamos o trabalho em dois tópicos: no primeiro,
intitulado como “Mulheres à frente da família, da estância, do comércio”, seguido pelo segundo
subtítulo “Estratégias e trabalhos femininos entre as camadas menos favorecidas
economicamente”.

822
Capítulo I - Mulheres à frente da família, da estância, do comércio

A despeito da imagem de submissão e dependência atribuída aos segmentos femininos,


à realidade do Rio Grande de São Pedro possibilitou, se não obrigou, as mulheres sulinas a
construírem novos parâmetros que não se ajustavam àqueles padrões. Destacamos, todavia que,
“sem deixarmos de reconhecer a inserção da mulher num sistema mais amplo de dominação,
onde os papéis dos sexos estavam legitimamente bem definidos, seria errôneo confirmar a
priori sua condição de subjugada” (SAMARA, 1987, p. 34). Em São Paulo do final do período
colonial, por exemplo, a saída frequente dos membros masculinos alterava o número de
mulheres chefes de família, ademais

Mulheres de diferentes níveis sociais trouxeram tensões para o casamento, provocada


por rebeldia e insatisfação. Além disso, encontramos inúmeras mulheres com
participação ativa, quer na família, quer na sociedade, gerindo negócios e propriedade
de maior e menor vulto, assumindo a chefia da família e trabalhando para a
sobrevivência de sua prole. (SAMARA, 1987, p. 35)

No Continente do Rio Grande de São Pedro, as funções das mulheres como chefes de
famílias tinham razões bem claras. Joana Maria Pedro recorda que a frequente ausência
masculina nos lares do sul obrigava as mulheres a se adaptarem e assumirem novos papéis.
ISSN: 2525-7501
A existência de inúmeras batalhas e conflitos no território deu aos homens destaque
nas atividades políticas e nas guerras. Entretanto, a ausência masculina no lar exigiu
que as mulheres assumissem a direção dos empreendimentos e mantivessem a
sobrevivência familiar, transpondo assim os limites das tarefas definidas usualmente
para seu sexo. (PEDRO, 2004, p. 280)

Acerca de Rio Pardo, podemos citar o exemplo de uma mulher que vivia na vila,
Dona Maria Angélica da Fontoura Corte Real. Ela teve o marido, um Capitão de Dragões,
morto no combate de Catalan contra os artiguenhos em 1817. Ao enviuvar, ficou à frente
dos negócios e da criação dos filhos, se uniu informalmente a outro homem, com quem teve
mais filhos, violando os padrões morais exigidos das mulheres na época. Dona Maria
Angélica adiou o casamento por várias décadas, talvez motivada pelo fato de que o
companheiro fosse um mal administrador e a estrutura jurídica de então fizesse do marido
legalmente o cabeça do casal e o responsável por gerir os negócios e os assuntos da família
(FLORES, 1989, pp. 42 – 47). Viúva nos conflitos da Banda Oriental, posteriormente perdeu
um filho e um genro na Guerra dos Farrapos onde teve uma participação ativa e atípica,
servindo de “espiã” aos farroupilhas em Rio Pardo, tramando para libertar seu filho preso,
expressando frequentemente suas posições e envolvendo-se em intrigas políticas.
(FLORES, 2002, pp. 102, 103)
823
Se considerarmos a mulher de posição socioeconômica mais elevada, verificamos que
ela, em situações muito frequentes, dirigiu os trabalhos que se realizavam nas
estâncias. Isto ocorria porque os homens, seja por negócios, seja por guerras,
seguidamente se ausentavam. Muitos deles inclusive, no exercício de atividades tão
inseguras, morriam, deixando a viúva responsável pela criação dos filhos e pela
preservação do capital. (REICHEL, 2000, p. 5)

Embora admitamos que Dona Maria Angélica poderia ser uma personagem atípica,
entendemos também que não necessariamente era única, e que suas preocupações se
estendiam ao público e ao privado. Ela escreveu de Rio Pardo ao ministro Domingos José
de Almeida

Eu não descrevo a V. Exa. os meus incômodos porque o meu filho é portador desta e
de viva voz dirá a V. Exa. o que passamos e muito lhe peço não se descuide um
instante, porque ouvi dos legalistas, achando-me em um lugar oculto que eles ali não
julgavam, que iam atacar a República, que assim chamam a esse lugar, e agora me
parece não será muito difícil porque considero por aqui tudo desfalcado de gente;
ISSN: 2525-7501
portanto toda a cautela é pouca, pois V. Exa. Não ignora o sistema deles que é
atacarem os lugares fracos.415

Mais uma vez D. Maria Angélica, apesar dos limites e estereótipos associados a sua
condição de gênero se correspondia com chefes políticos, investigava as atitudes dos
inimigos, se posicionava politicamente e dava sugestões. Era uma mulher da elite de conduta
aparentemente pouco usual, tanto por seu comportamento moral público, como por seu
envolvimento direto nos assuntos da guerra, mas não foi a única a administrar a casa e os
negócios. Encontramos o caso de Dona Josefa Henriqueta da Silva que.

Estando de caixeiro de sua loja de negócio de fazendas secas Joaquim Pereira


Pinheiro, filho único de José Pereira Pinheiro, retirou-se este com receio de que lhe
assentassem praça por ocasião do atual recrutamento, na que obstante que em
conformidade das Imperiais Instruções parecesse que podia considerar-se nas
circunstâncias de ser isento em razão de sua impossibilidade física, proveniente das
moléstias que padece e pelas quais já fora excluído do recrutamento da 2ª linha como
afirmam os atestados juntos jurados pelo físico-mor das Tropas da Província e
Cirurgião-mor do presídio, e assim como por motivo de ser o único caixeiro da casa
de negócio da suplicante, todavia pelo receio que talvez lhe assentassem praça, não
obstante as suas expendidas circunstâncias, e a de não saber andar a cavalo, tem
permanecido ausente da casa da suplicante, a qual com sua filha está sofrendo mui
graves prejuízos por ter paralisado a circulação do seu negócio. 416

Ou seja, devido às necessidades de suas atividades comerciais, esta senhora, Dona


824
Josefa, apelou por seu caixeiro às autoridades, argumentando que tanto ela como sua filha
passavam por apuros sem a presença do funcionário. Em seu requerimento, ela não somente
descreve um pouco da realidade deste homem, como também revela a necessidade de sua
presença para poder tocar os negócios. Ela argumenta a seguir que “pela falta de
administração de um caixeiro zeloso de cuja falta pode resultar não só grave prejuízo à viúva
e órfãos, como aquele que entrelaçados em contas com a casa”. Assim, apesar do discurso
apelar para a necessidade que ela e a filha têm da presença do caixeiro, é Dona Josefa quem
usa a posição de proprietária de um negócio e toma a iniciativa de tentar a liberação do
funcionário, em nome da preservação das atividades para os quais ele prestava serviços.

415
Datada de Rio Pardo, 4 de Dezembro de 1839. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Anais. Vol. VII. Porto
alegre, 1979, pp. 190, 191. CV-4051.
416
Requerimento de Dona Josefa Henriqueta da Silva, AHRS, REQS, maço 35, 1827 (apud LUFT, 2012, p. 116)
ISSN: 2525-7501
No entanto, também as mulheres de outros grupos sociais agiam para sobreviver em
um mundo instável, assegurar a presença dos companheiros, irmãos, filhos e a manutenção
econômica do lar.

Capitulo II – Estratégias e trabalhos femininos entre as camadas economicamente


menos favorecidas

Mulheres com poucos meios também vivenciavam situações que exigiam medidas
para preservar o grupo familiar.

A liderança feminina no âmbito familiar é percebida também entre as mulheres de


menor nível socioeconômico. Eram frequentes os requerimentos encaminhados ao
poder provincial, no Rio Grande do Sul e em Buenos Aires, nos quais solicitavam a
dispensa do serviço militar para seus filhos, o pagamento de soldos atrasados aos seus
maridos ausentes, a libertação de filhos e esposos presos como vagos, por roubo ou
bebedeira.. (REICHEL, 2000, p. 6)

Não eram raros os casos de solicitação do retorno dos filhos por parte de mães.
825
Embora argumentassem necessitar de seu amparo, muitas dessas viúvas comandavam o lar
e a prole, e quando se dirigiam às autoridades demonstravam uma postura ativa ao
reivindicarem seu retorno. Na impossibilidade de serem atendidas, assumiam as
responsabilidades que socialmente costumavam ser destinadas a eles. Brízida França

viúva do falecido João Cardozo Pais moradora da Freguesia de Canguçu Distrito de


Rio Grande que ela suplicante há tem de se ver no seio da miséria vivendo a favor de
Manoel do Rego e sustentada por alguns vizinhos caritativos ficou com suas filhas
adultas e um filho que servia de apoio, e na recruta que fez o Cap. Ubaldo Pinto
Bandeira que vai para dez anos tirou o filho da Suplicante [...]. Pede a V. Exa. [...]
dar baixa ao referido filho.417

Encontramos também o caso de uma suplicante que se queixava do fato de seu filho
ter que sentar praça, porque era o único que lhe servia de amparo, tendo ela três filhas
órfãs.418 De outra mãe, cujo filho era o soldado João Roriz, da 2ª Companhia do Regimento

417
AHRS, Requerimentos, 1814, Maço 13. apud FERTIG, p. 38.
418
Of, datado em Fronteira de Rio Pardo, 21 de maio de 1813, Patrício José Correia da Câmara. Maço 38.
Autoridades Militares. AHRS.
ISSN: 2525-7501
de Dragões, afirmava-se que não tinha outro filho, apenas seis filhas órfãs, e que, portanto,
mandariam a ele por servido. 419

Independente dos motivos, muitas pessoas que pela lei tinham sua isenção garantida
do serviço militar, foram obrigadas a servir.

Jerônimo Silveira de Souza [que] tinha 19 anos quando foi capturado. Segundo as
informações prestadas pelo comandante, ele era órfão de pai, sua mãe tinha a seu
cargo seus três irmãos solteiros, e não possuíam escravos. Tinha tudo para ser
dispensado. Não foi o que aconteceu: o parecer do presidente foi favorável à recruta.
[...]. O recrutamento dele para a primeira linha pode ter sido um golpe duro para seus
familiares, já que a mãe era viúva e ainda tinha que cuidar dos seus outros três filhos
solteiros, num ambiente de pobreza, que é indicado pela ausência de um escravo.
(LUFT, 2013, pp. 95, 96)

Uma vez que as ausências masculinas, em virtude das guerras, nem sempre podiam
ser evitadas e as mulheres tomavam as rédeas de suas vidas e agências, compreende-se por
que os relatos de viajantes testemunhavam que a mulher sulina tinha maior flexibilidade e
liberdade de decisão que suas “patrícias de outras províncias” (FLORES, 1989, pp. 18, 19).
Daysi Lange Albeche observou a realidade das viúvas, órfãs e dos moradores de Rio Pardo,
nos anos 1807 a 1813. Ali ela observou pedidos de terras, atividades sócio profissionais 826
exercidas pela população, estilo das moradias e dramas sociais, como o abandono de
crianças. Na documentação os pedidos de terras.

Partiram de outros grupos sociais que se apresentaram como sendo brancos, pardos,
pobres, comerciantes e, inclusive por mulheres. [Segundo ela], a presença das
mulheres nos pedidos de terra, é pouco destacada pela historiografia, mas foi localizar
os diferentes argumentos por elas utilizados para obterem a concessão da terra. Os
pedidos de posse da terra analisados como parte de histórias individuais permitem
acompanhar as necessidades materiais e a percepção que os diferentes indivíduos
fizeram de si mesmos quando expressaram suas ideias, valores, bem como a
interpretação que elaboraram da chamada ideologia dominante. (ALBECHE, 2002,
p. 145)

Os argumentos utilizados pelas mulheres para a obtenção da terra, em geral seguiam


um mesmo padrão. Apresentavam-se como

Viúvas ou solteiras, bem como pela grande maioria ser muito pobre. Esses pedidos
de terra realizados pelas mulheres, enriquece a análise sociocultural da conquista e do
povoamento do Rio Grande do Sul, pois em muitos de seus pedidos são revelados
alguns traços da situação miserável de suas famílias, de seus filhos, como elas viviam,

419
Of, datado em Fronteira de Rio Pardo, 3 de maio de 1813, Patrício José Correia da Câmara. Maço 38.
Autoridades Militares. AHRS.
ISSN: 2525-7501
e como se relacionavam com a sociedade. Entretanto, outras mulheres, proprietárias
apresentaram-se como possuidoras de grande número de escravos e de animais ou,
simplesmente, requisitavam o respectivo título de propriedade em seu nome, pois já
se encontravam ocupando determinado campo, há muito tempo. (ALBECHE, 2002,
p. 147)

Entre as histórias encontradas, há o caso de Dona Maria Gonçalves, viúva de Jacinto,


preto forro, que membro do Real Serviço da Companhia, na Partida do Sargento Manoel dos
Santos Pedrozo faleceu no ataque a Mandissobi, do outro lado do Uruguai. Sem a presença
e apoio do marido, a viúva de origem guarani sofria ameaças para abandonar sua casa e
campo e requeria a posse da terra420.

Também há o caso da viúva Maria Angélica da Silva, que dizia ter seis filhos, entre
1 e 19 anos de idade e que dirigiu à “Câmara uma Declaração de Pobreza, onde provava
viver com seus seis filhos na maior indigência, situação que foi acentuada com a morte de
José Alves da Costa Pinheiro [o marido inventariado], pois deixava dívidas de várias
quantias a diversas pessoas” 421.

A iniciativa de algumas mulheres de solicitarem terras não era algo incomum na


documentação que consultamos. Na Vila de Rio Pardo, Dona Joana Moreira, tendo recebido 827
do Capitão Mariano José Teixeira a doação de uns “chãos”, se propôs a edificar neles casas
para suas residências e reivindicava possuí-los com legítimo título422. Mulheres como Dona
Maria Felisbina Eulalia Moreira tendo conseguido uma sesmaria, como em meses não a
recebeu, recorreu a seu Procurador423. A suplicante Josefa Pedroso teve concedido o terreno
que havia solicitado424. Novamente na Fronteira de Rio Pardo, Dona Angélica Francisca das
Neves solicitou a concessão de uma Carta de Data, porque tendo todas as condições
necessárias para estabelecer um canto para plantações, não havia recebido nenhuma mercê
de terras, apesar dessas abundarem na região425.

420
RG, L. 1, 1813, doc. 199, AHMRP, apud Albeche, 2002, p. 148.
421
RAC, 3/07/1812, AHMRP, apud Albeche, 2002, p. 154.
422
Requerimento datado na Vila de Rio Pardo, 20 de março de 1815. Maço 18. Requerimentos. AHRS
423
Requerimento datado em Fronteira de Rio Pardo, 1816. Maço 19. Requerimentos. AHRS.
424
Ofício datado do Distrito de Rio Pardo, 3 de fevereiro de 1816. Maço 58. Autoridades Militares. AHRS .
425
Requerimento datado em Fronteira de Rio Pardo, 1818. Maço 22. Requerimentos. AHRS
ISSN: 2525-7501
Enquanto não eram atendidas em suas solicitações de amparo ou reconhecimento dos
direitos que entendiam ter, essas mulheres tinham de obter seu sustento de alguma forma.
Dentre as atividades exercidas pelas mulheres, aparecia a de ama de leite e de cuidadoras de
crianças expostas. Michele Perrot (2005, p. 244), ao analisar a trajetória e natureza dos
empregos femininos, mencionou que “a ama de leite [...] introduz-nos, no grande setor do
emprego feminino, se é que existe algum”. No Rio Grande de São Pedro, as amas de leite
eram contratadas para atender os bebês abandonados. Tinham que mostrar as crianças
expostas, para receber seus salários, provando se tratavam bem os bebês a seus cuidados.

Naquele ambiente marcado por frequentes mobilizações militares, os maridos e


filhos das boas amas eram isentos dos encargos militares426. Foi estipulado pela Câmara de
Rio Pardo que

a entrega dos expostos aos futuros responsáveis deveria obedecer no sentido delas não
padecerem “à viúva de reputação de honesta ou a solteira com reputação de donzela”.
O sustento dos expostos era fornecido sob a forma de pagamento de um salário
estipulado pela Câmara, cujo valor teoricamente deveria ajudar na alimentação e no
vestuário [...]. O período de sete anos era o período máximo que a Câmara se
responsabilizava perante a sociedade com a ajuda da criação [pois os sete anos], de
acordo com a mentalidade da época, era a “idade da razão”, a idade entre o mundo da
828
criança e o mundo do trabalho, período considerado propício à “criança” exercer um
ofício qualquer para o seu próprio sustento. (ALBECHE, 2002, pp. 157, 158)

Segundo Renato Pinto Venâncio, que pesquisou a exposição de crianças no Brasil


dos séculos XVIII e XIX, tanta cautela nem sempre atingia seus objetivos.

Embora bem intencionados, os administradores hospitalares muitas vezes eram


responsáveis por verdadeiras hecatombes. Eles evitavam entregar expostos a mulheres
sem leite ou a homens sem escravas amas, mas tanto no Brasil quanto em Portugal
havia mulheres que fraudavam o auxílio público; algumas delas apresentavam-se
como recém paridas, outras pediam “emprestado um filho alheio que seja gordo e com
boa saúde, levando-o ao hospital ou câmara para provarem que cuidariam bem do
enjeitado, como se fosse o próprio filho. (VENÂNCIO, 2004, p. 197)

Diversas razões levavam as mulheres a abandonarem seus filhos. Segundo Daysi


Albeche (2002, p. 159), os abandonos poderiam ser associados à “gravidez imprevista associada
à presença de relações ilegítimas e ou adulterinas, bem como por motivos econômicos e
financeiros”. Já Venâncio (2004, pp. 192 - 204) destaca como motivos a miséria dos pais, o
medo da condenação moral e familiar que tinham as moças brancas e de estirpe, quando estes

426
RG, L.00, 1809, doc. 63, AHMRP, apud Albeche, 2002, p. 157.
ISSN: 2525-7501
filhos nasciam de relações ilícitas, o abandono como método de controle de natalidade, já que
as leis eram rigorosas para infanticídio e aborto, a necessidade de internação de uma criança
doente ou a demanda de serviços fúnebres a um bebê convalescente, ou mesmo a doença ou
morte de um ou dos dois pais. No entanto, a análise destes abandonos merece cautela, pois não
raro algumas crianças eram abandonadas em casas de parentes e vizinhos e “havia ocasião em
que a própria mãe levava o filho a pia batismal, registrando-o como enjeitado”.

Ao mencionar dois casos de mulheres casadas que não tiveram filhos dos matrimônios,
e que reconheceram filhos ilegítimos em seus testamentos, Sheila de Castro Faria (1998, p. 80)
admitiu que muitas outras mulheres em igual condição poderiam jamais ter reconhecido seu
filhos naturais justamente por terem concebido filhos legítimos durante o matrimônio.

Nesta sociedade com tantas mulheres que dependiam de si mesmas para manter a si e
aos seus, certamente eram necessárias medidas para se sobreviverem em um ambiente belicoso,
e o recebimento de um salário para amparar crianças abandonadas não deixava de ser bem
vindo. Heloisa Reichel (2000, p. 5) mencionou também a produção têxtil e o artesanato que
eram realizados no lar, como uma das principais atividades laborais exercidas pelas mulheres. 829
Viajantes atestam isso:

Ao entrar [na casa da estância] deparei com a dona da casa a coser, agachada sobre
tábuas em cima de pedras e cobertas por uma pele carneiro. Estava bem vestida e
apesar de tímida respondeu às perguntas que lhe dirigi [...]. Essa mulher achava-se a
fiar lã para fazer ponchos grosseiros para os negros, e que se empregam também à
guisa de cheripá. O linho foi produzido em suas terras, fiado e tecido em sua casa [...].
Cada estancieiro possui um rebanho constituído, frequentemente, de vários milhares
de carneiros e com a lã produzida as mulheres fabricam os tecidos dos ponchos, muito
grosseiros, que se vendem à razão de 6 patacas, enviando-os a Porto Alegre, Rio
Grande e outras localidades. Tais ponchos são brancos com riscos pratas ou pardos, e
apenas usados pelos negros e índios. Outrora os habitantes das aldeias cultivavam
algodão. As mulheres descaroçavam-no, fiavam e teciam, mas nas três invasões
espanholas foi destruído tudo... Vivem longe de suas aldeias e suas mulheres são
realmente privadas de trabalhar, porque lhe faltam meios (SAINT-HILLAIRE, pp.
49, 85, 87, 131)

Algumas mulheres que tinham seus próprios filhos, poderiam se beneficiar de diferentes
atividades laborais, como servir de ama de leite, e deste arranjo poderiam tanto obter ganhos
materiais, como isentar seus homens dos serviços das armas. Outras tiravam seu sustento de
suas poucas posses e eram obrigadas a conciliar o trabalho na propriedade com os cuidados dos
filhos. E caso houvesse riscos de perder o que possuíam, sem contar com maridos e filhos, em
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virtude da guerra, eram obrigadas a usar de diferentes agências e a se posicionarem frente às
autoridades.

Em Rio Pardo, ambiente fronteiriço à época, Clara Maria de Jesus, viúva de José Silva,
defendia os interesses da exposta Maria427, que em circunstâncias de estar casando, necessitava
de alimentos e vestuários428. Igualmente, Bernarda Maria da Conceição, solicitava a certidão
da exposta Carlota Joaquina da Nascimento para obter os meios de sustentá-la429, e Dorothea
Victorina Caetana pedia uma certa quantia em dinheiro para o sustento de outra exposta430. Já
Maria Nepomocena da Fontoura, se queixava ser “órfã de pai e mãe, vive ao abrigo de um tio
quem lhe facilita um número de animais para povoar um campo, mercê esta que jamais obteve,
assim como seu falecido pai, o Sargento Mor Miguel Pedro Leite” 431.

Grande parte das fontes a que tivemos acesso, ou das quais tivemos conhecimento
indiretamente, nos direciona a casos como estes. Mulheres chefes de famílias, com poucas
posses, que exerciam funções específicas - como a administração de suas terras ou a criação de
expostos – e necessitavam recorrer às autoridades com reivindicações diversas, para que
pudessem ter melhores condições para gerir a família, a terra ou suas atividades laborais. 830
Entendemos que a maioria dos casos refere-se a famílias mais pobres, em geral legalmente
constituídas, já que são muitos os casos de viúvas e órfãs, mas sem afastar-se da marca da
ilegitimidade, uma vez que encontramos nesses grupos muitos exemplos de crianças enjeitadas
por seus pais, que poderiam simplesmente estar sob o cuidado daqueles grupos familiares, ou
de fato ter ligações sanguíneas ocultas com eles.

Ainda que tentassem resistir às dificuldades de períodos belicosos, fosse por buscar
opções de renda, como amamentar e criar crianças expostas, ou por apoiar os maridos, pais,

427
Exposta era a criança, em geral recém nascida, abandonada pela mãe. Cabia as autoridades zelar por sua criação
e são abundantes as referências a mulheres contratadas para lhes servirem de amas de leite. (SILVA, 1998, pp.
208)
428
Correspondências, Requerimentos, Ofícios, Recibos. Rio Pardo, 1814. Fundo 387. AHMRP.
429
Correspondências, Requerimentos, Ofícios, Recibos. Rio Pardo, 1814. Fundo 395. AHMRP.
430
Correspondências, Requerimentos, Ofícios, Recibos. Rio Pardo, 1814. Fundo 432. AHMRP.
431
Correspondências, Requerimentos, Ofícios, Recibos. Rio Pardo, 1814. Fundo 433. AHMRP.
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maridos e filhos, elas enfrentavam alguns obstáculos. Mesmo o abandono de crianças tinha a
especificidade de que

Geralmente as crianças eram abandonadas em diferentes residências, mas


basicamente dependeram do reconhecimento ligado ao universo masculino da
sociedade de Rio Pardo, pois a grande maioria dos pedidos de salários para sustento
e criação foi realizado por homens e não por mulheres. Podemos identificar pelos
registros um levantamento dos abandonos, necessariamente, em residências de
homens possuidores de postos militares, somando a este universo nove crianças na
casa de capitães, uma na de tenente e duas na de alferes. Já os abandonos em
residências, exclusivamente, do universo feminino e sem podermos identificar, no
geral, o estado civil destas mulheres, foram abandonadas mais de trinta e oito crianças,
sendo nove somente na de viúvas especificamente. (ALBECHE, 2002, p.160)

Entretanto, apesar das boas condições desses homens, muitas das crianças abandonadas
em suas casas sofreram carências e maus tratos. João R. Bahia declarou à Câmara sobre uma
menina exposta na casa do capitão Thomaz de Aquino, que mandou buscar em sua casa,
“achando-se a menina em um tal estado, que necessitava de um grande trato a fim de não
morrer432. Igualmente, Dona Maurícia Clara de Oliveira declarou os maus tratos sofridos pelo
menino Joaquim, que exposto “às portas da casa de Pedro José Dornelles mas, D. Maurícia
movida de piedade o fez recolher à sua casa, na mesma noite, por estar a criança passando por 831
misérias” 433
.

Assim, embora fossem abandonadas nas casas dos homens, em alguns momentos
acabavam sendo amparadas por mulheres, fosse por caridade ou pelo desejo de obter ganhos
com a criação de expostos. A viúva Dorothea Caetana Vitorina, por exemplo, foi responsável
pela criação de mais de sete crianças, pois “como viúva de cirurgião mor, ela preenchia
possíveis qualidades no cuidado que poderia oferecer às crianças”. Sem a presença de um
marido, ela, assim como outras mulheres de então, encaminhava sua vida à sua maneira,
complementava seu sustento com a criação de expostos, e por sua aptidão a exercer essas
funções assinalava sua respeitabilidade social.

Ressaltamos, entretanto, que criar um órfão ou exposto não acarretava em maiores


responsabilidades, como a transmissão de herança, por exemplo. Passados os sete anos em que

432
RG, 1809, doc. 9. Rio Pardo, apud Albeche, 2002, p. 161.
433
RG, 1815, doc.177. Rio Pardo, Ibdem.
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a Câmara cobria os gastos da criança, seu destino podia ser incerto, às vezes infeliz. Foi o caso
de uma china de nome Josefa, menor de idade, a quem Vicência Joaquina da Conceição
afirmava ter criado como filha, mas que foi tirada de sua casa ocultamente 434.

Em uma sociedade marcada pela violência, o rapto e as violações poderiam ser algo
corriqueiros, apesar da legislação rigorosa. Em um contexto frequentemente movimentado por
conflitos bélicos, provavelmente era ainda pior. Mas neste espaço, as mulheres buscavam várias
opções de sobrevivência. Estas mulheres realizavam diferentes agências, as ricas
administravam seus negócios e estâncias, as pobres criavam crianças expostas, serviam de amas
de leite, ao mesmo tempo em que buscavam obter benefícios a seus maridos, pais e filhos,
esperando suas isenções, apoiando fugas e deserções, se queixando às autoridades. Igualmente,
quando se sentiam prejudicadas, reivindicavam soluções do poder público.

CONCLUSÃO

A sociedade sul-rio-grandense, no século XIX, tinha características peculiares a uma


832
região militarizada e de fronteira, dentre as quais a maior margem de ação das mulheres devido
às constantes mobilizações militares masculinas.

A partir da documentação consultada sobre a população de Rio Pardo, no contexto das


campanhas da Banda Oriental (1811 – 1828), percebemos que são muitos os casos de famílias,
algumas com menos meios de subsistência, outras mais abastadas, geridas por viúvas ou
mulheres sozinhas, que tinham que manter os filhos, administrar suas posses (terras e animais),
exigir soluções às autoridades, quando necessitavam dos maridos e filhos que serviam às tropas.
Muitas dessas mulheres que encontramos, cuidavam de crianças enjeitadas (os expostos) como
meio de obter ou complementar a renda familiar, ou mesmo para obter isenções do serviço
militar a seus maridos e filhos. Independentemente de desejarem ou não essa situação, a
conjuntura de guerra ampliava seus espaços de atuação e exigia que demonstrassem uma
postura ativa em seus esforços de sobrevivência pessoal e familiar.

Inferimos que, no Rio Grande de São Pedro, a ausência constante dos homens da casa,

434
AC, 1816, doc.136. Rio Pardo, Ibdem.
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em virtude da guerra, propiciava às mulheres- de diferentes condições e camadas sociais- maior
autonomia de ação, administrando sozinhas seus lares e negócios.

Deste modo, a sociedade rio-grandense se distinguia de outras regiões, em virtude,


dentre outras razões, do ambiente belicoso que não permitiria a acomodação absoluta aos papéis
sociais e evidenciava um papel mais ativo das mulheres.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Dimensão, 1989.

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Rio Grande do Sul, 2013.

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VENÂNCIO, Renato Pinto. Maternidade negada. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das
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Fontes Publicadas

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SAINT-HILAIRE, August. Viagem ao Rio Grande do Sul. 2º ed. Porto Alegre: Martins
Livreiro, 1987

834
ISSN: 2525-7501
O DISCURSO DA MULHER ORIENTAL A PARTIR DO DAI-NIPPON (1897) DE
WENCESLAU DE MORAES435

Debora Santos Londero436

Mauricio Hiroshi Filippin Oba437

RESUMO

O presente trabalho busca historicizar a figura da mulher oriental, com ênfase à mulher
japonesa, assim como o processo de construção de seu imaginário étnico e racial a partir da
obra “Dai-Nippon” (1897) do escritor português Wenceslau de Moraes (1854-1929).
Pretendemos com essa pesquisa problematizar questões acerca da mulher oriental, sua
objetificação histórica e a construção de um “yellow fever”, algo próximo de um fetiche por
mulheres asiáticas, e demonstrar como essas questões da sociedade contemporânea não são
naturais, mas sim construídas. A imagem de orientais no Brasil, e principalmente das mulheres
asiáticas, está associada a uma questão de domínio e supremacia de um discurso ocidental sobre
o Oriente. É importante destacar como isso se dá em meio a fenômenos históricos tendo em
vista um processo de identificação cultural diretamente atrelado aos discursos intelectuais de
fins do Século XIX e início do Século XX, período no qual Wenceslau de Moraes viveu, que
835
envolvem conceitos relativos às ideias de evolução, raça, civilidade, barbárie, modernidade e
exoticidade/tradição. Com este trabalho analisaremos de que forma o discurso de Moraes se
associa ao contexto discursivo do momento e dialoga com ele. De que forma a imagem da
Mulher oriental é moldada diante de uma diferenciação para com o Ocidente e um universo
intelectual majoritariamente masculino.

Palavras-chave: Orientalismo; História das Mulheres; Imaginário étnico;

INTRODUÇÃO

435
Trabalho Apresentado no I Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
436
Mestranda, Universidade Federal de Santa Maria, londero.debora@gmail.com
437
Graduado, Universidade Federal de Santa Maria, mauriciohfoba@gmail.com
ISSN: 2525-7501
Para falar da “Mulher Oriental”, antes de mais nada, gostaríamos de pensar a que ela
nos remete. Pensemos na descrição da aparência dessa mulher: Ela tem cabelos negros,
obviamente presos com um coque, suas vestes são de seda multicromada com figuras exóticas
e belas e o seu rosto pincelado com pó de arroz com um tom carmim nos lábios. Essa poderia
ser a descrição da protagonista do filme “Mulan” da Disney, ou de uma personagem qualquer
de “Memórias de uma Gueixa”, também poderia ser a resposta de uma pessoa aleatória nas ruas
de alguma cidade brasileira quando questionada acerca da imagem da “Mulher Oriental”. Mas
em que ponto queremos chegar através dessa reflexão? Não é por mero acaso que a indústria
cinematográfica, ou a pessoa aleatória mencionada anteriormente, tenham essa imagem. Ela é
constituída através elementos históricos e culturais reinventados, mas que dialogam com
contextos muito mais amplos do que seu momento de produção. Isso não significa dizer que
esse desenho ideal da Mulher Japonesa seja simplesmente uma reprodução mecânica de algo
inventado num tempo passado, como se esse fosse um processo causal e simplista. Queremos
dizer que compreender a existência dessa “Mulher Oriental” implica pensar de que forma ela
se constitui historicamente num movimento contínuo no qual significados estão em constante
ressignificação. 836
Levanta-se assim a hipótese de que a “Mulher Oriental” imaginada hoje é constituída
historicamente por outras “Mulheres Orientais” pensadas e constituídas em outros tempos
históricos. Cada uma delas com suas próprias especificidades e significados para as pessoas de
seus contextos, mas que não deixam de compartilhar elementos comuns e ganharem sentido ao
se colocarem uma para com as outras.

Mas por que é de alguma forma relevante que esse seja o tema de um estudo
historiográfico? Trabalhos como o do historiador Jeffrey Lesser já tem mostrado a existência
de uma sexualização da Mulher Oriental dentro da sociedade brasileira, na qual a ideia de raça
é essencial para compreender a forma como indivíduos orientais do gênero feminino são
fetichizados com base na sua identidade cultural (LESSER, 2001). Optaremos aqui por chamar
ISSN: 2525-7501
esse fenômeno de Yellow Fever, a febre amarela, uma vez que movimentos sociais, como o
grupo que se autodenomina “Perigo Amarelo”438, optam por utilizá-lo.

Para pensar a forma como Mulheres Orientais são objetificadas e sofrem com a Yellow
Fever dentro da sociedade brasileira propõe-se desconstruir (DERRIDA 1991) o conceito de
oriental e, no caso específico desse trabalho, de japonesa, a fim de possibilitar uma maior visão
dos elementos históricos que ajudam a compreender a significação desses sujeitos históricos e
a sua identidade cultural (HALL, 2006).

A escolha feita é partir da obra “O Dai-Nippon” de Wenceslau de Moraes, homem e


ocidental (português) e perceber os conceitos de raça e gênero no final do século XIX em
movimento de diálogo e afirmação das duplas ocidente/oriente e feminino/masculinos, mas
também de que forma o feminino e oriental se complementam e se ressignificam quando
conjuntos.

O Dai-Nippon foi publicado em 1897 e é considerado pelos biógrafos de Moraes a sua

837
Obra Prima (CAPITÃO, 2012). Nele o escritor luso apresenta uma narração da História, da
Arte e da vida cotidiana japonesa, tendo como parâmetro as suas vivências pessoais no Japão e
no sudeste asiático. Dentro dessa narrativa, a presença da “Mulher Japonesa” irá se destacar
como um personagem essencial para conduzir os caminhos do leitor por entre os capítulos do
livro. Isso porque Wenceslau de Moraes opta por dar ao seu interlocutor uma “anfitriã” que
possa ajudar dentro da sua narrativa.

1. Capítulo I – A Mulher Ocidental


Em primeiro lugar, parece estranho falar sobre a mulher ocidental neste trabalho.
Precisamos deixar claro que falar em Oriente implica sempre que se pense em Ocidente, isso
porque estas noções no âmbito histórico são muito mais discursivas do que geográficas, e
consequentemente para pensar em um é imprescindível a presença do outro (SAID, 1990). O
significado de Oriente ou Ocidente é relativo a um determinado ponto de referência, só se

438
Página da web do grupo disponível em: https://www.facebook.com/perigoamarelo/?ref=ts&fref=ts&qsefr=1
Último Acesso em : 14 de setembro de 2016
ISSN: 2525-7501
compreende o Japão enquanto oriental se soubermos que algo é ocidental, caso contrário, esses
termos se tornam vazios visto que não possuem uma essência, um cerne central ou mesmo uma
realidade material. A materialidade deles é muito mais uma aplicação discursiva sobre o
empírico do que o contrário, e consequentemente, é uma aplicação discursiva que prevê a
existência do outro, o diferente, o oposto. Portanto se vamos falar acerca da imagem Mulher
Oriental é relevante que se considere tanto o fato dela ser mulher, e nesse sentido uma série de
elementos culturais e sociais do período que moldam a figura do feminino, mas também é
preciso perceber como o esboço da mulher torna-se oriental enquanto colocado em oposição à
Mulher Ocidental. Outro fator relevante para que se trate da Mulher Ocidental é que Wenceslau
de Moraes é europeu, e cresceu dentro de um determinado universo cultural que ajuda a definir
os conceitos que ele utiliza. Para Moraes, a percepção de feminino é padronizada como a
imagem da Mulher Ocidental, mesmo a ideia do feminino ocidental não poderia surgir se não
fosse colocada dentro do mesmo corpo textual que a Mulher Oriental. Portanto é fundamental
falar em como o Ocidente pensou o seu feminino para então pensar o feminino do Oriente sob
perspectiva de um ocidental.

Figuras e papeis sociais não podem ser pensados como estáticos e naturais, pelo
838
contrário, são dinâmicos, mutáveis, construídos e ressignificados. O Século XIX teve o
iluminismo como um grande influente tanto no pensamento intelectual como na moral e nos
costumes.

A Revolução Francesa tentou subverter a fronteira entre o público e o privado,


construir um homem novo, remodelar o cotidiano através de uma nova organização
do espaço, do tempo, e da memória. Mas esse projeto fracassou diante da resistência
das pessoas. Os “costumes” se mostraram mais fortes do que a lei (PERROT, 1992,
p.93).

Se por um lado a Burguesia ascendente tentava impor um novo modo de vida que
contrapunha com a Aristocracia e os moldes do Antigo Regime, por outro, os camponeses e a
sociedade em geral resistiram ao que poderia ser considerada uma perda da moral. Dentro de
toda teoria política pós-revolucionária teve em seu cerne a relação entre os espaços privados (a
família) e os espaços públicos.
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Hegel via o indivíduo, antes de comprometido à sociedade civil ou ao Estado, como
subordinado à família. Estado só poderia se relacionar com coletividades inorgânicas sem a
presença dela. Era ela que garantia uma moralidade natural e uma divisão sexual dos papéis
que assegurava a mesma. Ao pai caberia a vida substancial do trabalho, da esfera pública e
junto ao Estado, enquanto à Esposa caberia o papel de ser o pilar moral da família. Os filhos
eram preparados para serem chefes e as filhas para serem esposas. (PERROT, 1992)

Já Kant via a família como o triunfo da Razão, o “fundamento da moral e da ordem


social. É o cerne do privado, mas um privado submetido ao pai, o único capaz de refrear os
instintos, de domar a mulher.” (PERROT, 1992, p.95) A mãe era vista por ele como uma
ameaça de sentimentos, ela precisa ser domesticada para que não destrua a estabilidade do lar.

Os liberais via a família como chave da felicidade individual e do bem público, os


tradicionalistas pensavam nela como uma expressão da hierarquia natural, na qual o pai era o
chefe a exemplo do estado e ações que pudessem dissolvê-la, como o divórcio, eram tidas como
perversas. Os socialistas, apesar de imensas críticas à família burguesa, dificilmente pensavam
em sua total eliminação ou “subversão dos papéis sexuais, tão profunda é a crença numa 839
desigualdade natural entre homens e mulheres.” (PERROT, 1992, p.101) Porém alguns
socialistas como Fourier já pensavam nas mulheres como “proletárias dos proletários” e que
consequentemente a emancipação feminina era necessária para o progresso. Para os anarquistas
a família não era um reflexo do Estado. Se o primeiro precisava ser extinto, o segundo vinha a
ser o elemento que garantiria a ordem e a moral, sendo a estrutura patriarcal e a desigualdade
dos sexos algo fundado pela natureza.

Obviamente essa é uma visão rasa e pouco precisa da diversidade de pensamento sobre
a família na época, porém ela explana como mesmo entre as correntes de pensamento político
mais transformadoras, a estrutura da família, hierárquica e submetida ao pai, na qual a mulher
permanecia no espaço privado e o homem no público, estava enraizada na mentalidade dos
sujeitos.

Obviamente o pensamento político não necessariamente corresponde à realidade,


principalmente quando se tratavam das famílias operárias do período. A Revolução Industrial
foi outro agente das transformações do século XIX. A transição da vida predominantemente
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rural para a vida urbana levou tanto a mudança de costumes como a resistência de tais
mudanças. É o caso da moralização dos pobres empregada pelos evangélicos (HALL, 1992)
que através de escolas dominicais, sociedades filantrópicas e instituições de ensino difundiam
uma concepção burguesa de separação dos sexos e dos âmbitos público e privado. Obviamente
esse não foi um projeto bem sucedido, visto que não poderia surtir um efeito milagroso e mudar
uma cultura do operariado que antes estava acostumado ao trabalho e modo de vida do campo,
onde a fronteira entre os espaços privados e públicos era muito menos tênue e os pudores da
vida urbana se faziam desnecessários.

A burguesia buscava criar um mundo à sua imagem, na qual a esfera Pública


correspondia ao mundo masculino e a Privada ao feminino. No cerne do ambiente privado se
encontrava a casa que estimulava a divisão dos sexos. No ápice do privado se encontravam os
jardins, a natureza domesticada (HALL, 1992). Ela assegurava uma fuga da vida cansativa da
cidade e uma retomada dos ares do campo. As mulheres, responsáveis pelas flores, tinham sua
feminilidade associada à delicadeza e os caprichos do cuidado no jardim.

Os discursos em defesa da igualdade de sexo que surgiram em fins do século XVIII 840
foram fortemente rechaçados por esta burguesia que defendia um modo de vida aos seus
moldes. Ser virtuosa e dedicada ao lar acaba sendo cada vez mais uma qualidade esperada na
boa mulher, uma moça do lar. Mas se essa era uma realidade para a família burguesa, para o
operariado era algo quase impensável. Apesar da maior parte da renda da família vir da figura
paterna, isso se dava devido a uma disparidade entre os salários da mulher e das crianças para
com o do homem.

A esfera privada e os papéis femininos vão continuar sendo revalorizados ao longo do


século XIX. Os operários lutam para que suas esposas e filhos possam deixar de trabalhar nas
indústrias. A figura da mulher começa a ser associada como a mantedora do lar, a harmonia e
as virtudes, enquanto a figura do homem passa a ser vista como o mal dentro de um “feminismo
cristão” (PERROT, 1992, p. 142) que enfatiza a diferença entre os sexos.

No campo da educação os meninos passam a aprender a reproduzir a “virilidade


masculina” através da violência física. Das meninas por outro lado, se cobra que se dediquem
a ser amáveis e aprendam a ser boas esposas.
ISSN: 2525-7501
O Século XIX se destaca por esse aprofundamento dos papéis de gênero que se
direcionam cada vez mais a essa dicotomia do público e do privado, mas também de feminidade
e masculinidade.

Capitulo II – Os mundos de Wenceslau de Morais

Moraes ficou conhecido como um homem preso entre dois mundos, a Europa e o Japão.
Apaixonado pela Terra do sol nascente mas incapaz de ser aceito como japonês, ficou
conhecido como “Senhor Portugal” pelo povo nipônico e foi chamado de “O homem que trocou
sua alma” por Fidelino de Figueiredo (MORAES, 1972)

Esta perspectiva dicotômica, conforme já mencionamos aqui, expressa um universo


discursivo no qual Oriente e Ocidente adquirem significado quando colocados em oposição.
Tem-se ênfase em como o Ocidente se utiliza disso para sua soberania discursiva (SAID, 1990),
porém isso não significa que da mesma forma o Oriente não desenvolve certo tipo de identidade
própria, oposta ao Ocidente. 841
Nesse mundo em que o Ocidente busca um domínio intelectual, diversas correntes de
pensamento ajudam nesse processo lento e complexo.

O pensamento romântico foi um destes. Com seu ápice no século XIX, ele só pode ser
compreendido quando considerado seu caráter de oposição ao cientificismo do mesmo período.
Apesar do imenso apreço da intelectualidade desse período pela racionalidade científica, o
pensamento romântico surge, em parte, de uma crítica a esse fenômeno de ceticismo quanto ao
sobrenatural, mítico e metafísico.

A busca por verdades inquestionáveis foi criticada pelos românticos que prezavam pelo
exótico, pelos sonhos e pelo lado oculto da vida. Baumer nos alerta que é necessário cuidado
ao tratar da dualidade entre romantismo e cientificismo visto que sua oposição não os torna
menos modernos ou conservadores, pelo contrário, sua forma de pensar o mundo é estritamente
uma possibilidade do seu tempo (BAUMER, 1990).

Mas o romantismo não se faz claro e explícito. Por se preocupar com o místico, o
sentimento e a emoção, por vezes o romantismo pode parecer cheio de paradoxos. É muito mais
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fácil definir o romantismo a partir do que ele não é ao invés de tentar estabelecer linhas de
pensamento gerais. A variedade de pensamentos românticos perpassa principalmente o campo
das artes e da literatura, mas houve também as formulações de ideias políticas e historiográficas.
Ele busca uma renovação nas ideias acerca de religião e na recuperação da preocupação com o
sobrenatural.

Apesar de imensas críticas de um a outro, o romantismo e o cientificismo não se


negavam. Os românticos receavam que a filosofia de uma forma fria fosse afastar a ciência da
arte, e criticavam a sua racionalização extrema. Nesse sentido, se pensava o homem ideal do
mundo romântico, não como um sonhador alienado, mas um sujeito que buscasse a beleza
dentro da ciência através de sua subjetividade.

A perspectiva romântica possibilitou a formulação de diversas perspectivas inovadoras


acerca da sociedade. Especialmente no campo da antropologia e da psicologia, conceitos como
o de inconsciente trouxeram à tona ideias que o cientificismo buscara. Dentre elas, destacou-se
o “organismo social” (BAUMER, 1990). Apesar de não ser propriamente algo inovador, refletia
o medo da desordem e da desestruturação de instituições como a aristocracia. Dessa forma, o 842
organismo social contrapunha-se ao que seria considerado como excesso das revoluções, tal
qual a Revolução Francesa, e de forma geral às ideias do Iluminismo. Criticava o estado
enquanto uma máquina na qual cada engrenagem funcionaria previsivelmente e perfeitamente,
numa ordem pré-estabelecida. Devido a sua alta complexidade resultante de diversos intelectos
e subjetividades humanas, o “organismo social” previa que o estado se comportaria muito mais
como um ser vivo e extremamente imprevisível.

Buscar as origens desse grande organismo constituiu um dos maiores trabalhos de


diversos intelectuais românticos. Muitos Estados-nações buscaram genealogias em mitos e
conhecimentos populares, baseados num misticismo e na metafísica. Essa busca valorizava o
sentimento e a emoção, assim como as manifestações do povo de forma geral e que permitissem
a composição de uma unidade em torno de elementos comuns entre a população, como que
imaginando uma grande comunidade (ANDERSON, 1989).

Essas ideias românticas acerca da história refletem uma ideia através da qual a sociedade
se relaciona com o seu passado. O termo Historicismo vai encontrar no romantismo o espaço
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necessário para seu desenvolvimento. Num período de grandes mudanças sociais o apego à
história deu a possibilidade de segurança para as identidades, tornando possível uma
consciência coletiva baseada em fatores comuns.

Baumer define a modernidade, acima de qualquer coisa, como uma consciência do


Devir e os românticos estavam conscientes de viver num mundo em constantes mudanças,
buscando espiritualmente o que os neoiluministas buscavam materialmente.

Por outro lado, houve um grande agito na segunda metade do Século XIX pela
perspectiva cientificista. A ideia de evolução teve um rápido progresso, principalmente entre
cientistas e antropólogos.

O “Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas” (1853) de Arthur de Gobineau


deu abertura para a ascensão do naturalismo o que influenciou o pensamento intelectual em
toda a sua posterioridade. Ele tornou-se um argumento para defender a desigualdade humana
baseada na raça, com base nos aspectos físicos e comportamentais. Esse discurso ganhou força

843
com o trabalho de Charles Darwin sobre a seleção das espécies e de Gregor Mendel e a
hereditariedade mesmo que não tenha sido a intenção destes.

O pensar acerca de povos alienígenas após meados do Século XIX, assim como durante
boa parte do século XX, esteve muito influenciado pelas ideias do evolucionismo. Dentre esta
forma de perceber sociedades enquanto outras diferentes da matriz europeia destaca-se o
evolucionismo cultural.

Ideias defendidas pelos adeptos do evolucionismo cultural envolviam a perspectiva de


que a história da humanidade seguiria uma linha única, tendo sequência no progresso de suas
descobertas e invenções, o que é identificável em cada estágio da evolução cultural de diferentes
sociedades, como afirmou Lewis Henry Morgan. Edward Tylor cita como cultura todo
complexo que inclui conhecimento, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e
hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade A materialidade seria o
que iria determinar o ritmo de evolução de cada sociedade. James Frazer salienta a origem de
todas as sociedades na selvageria, e nesse caso diferentes estados de desenvolvimento de acordo
com a cultura estudada, sendo a europeia a mais evoluída destas. É possível encontrar leis que
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regulem a evolução humana. Ele acredita que a crença no mítico, no sobrenatural ou metafísico
mantinha as sociedades presas a condições arcaicas e incapazes de evoluir.

Obviamente Moraes não teria como conhecer as ideias de todos os intelectuais de sua
época e nem seria obrigado a concordar com elas, porém esses universos de pensamentos nos
dão parâmetros tanto para pensar a própria visão de mundo que ele possuía, assim como as
possibilidades de leitura de seu texto. A vida individual do autor não pode ser vista isolada da
pública. A prática discursiva possui relação com as instituições e as formas de discurso. Não se
pode pensar a vida particular do autor isolada da sociedade e da mesma forma o contrário.
Obviamente que ele não será um mero reprodutor das ideias de seu período, porém isso não
significa que ele não dialogue com elas. (LACAPRA, 2012)

Capítulo III – Ohana-san: A Mulher Flor e a Mulher Oriental

O título do livro de Wenceslau de Moraes, O Dai-Nippon (大日本


), pode ser traduzido como “O Grande Japão” e tem obviamente como
seu tema central o país com mesmo nome, porém como afirma
844
Wenceslau de Moraes, a obra nada tem das:

pretensões clássicas de um historiador ou publiscista, nada disto acusa. Dai-Nippon é


a lenda consagrada por todo japonês e por toda japonesa para designar a sua pátria;
lenda deliciosamente petulante; afigurar-se-me; e que nem sempre vem de molde a
este país de quimeras e de miniaturas, onde tudo é pequenino, as casas barraquinhas,
o povo pueril por índole como as crianças; e onde cada homenzinho e cada
mulherzinha, enovelado habitualmente sobre a esteira doméstica, ocupa apenas o
espaço restrito de uma estatueta de salão (MORAES, 1992, p.52).

O personagem que talvez mais se destaca nessa obra está longe


de ser um monarca, um deus ou um militar. Como o próprio Moraes
destaca, ele não busca uma análise exaustiva ou a construção de uma
epopeia sobre o Japão. Esse livro, antes de mais nada, traz as suas
impressões mais cruas e diretas de suas vivências no país, guiadas
por uma personagem a qual Moraes demonstra especial apreço:
Ohana-san (大花), nome que Moraes traduz como a Mulher Flor, mas
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que poderia também ser entendida como a grandiosa flor, visto que o
kanji 大 compartilhado entre ela e o Dai-Nippon, da a impressão de
algo importante, extremamente relevante. Essa personagem, porém
não é um sujeito real, com vontade própria, é uma invocação que
Moraes faz ao que ele considera de mais belo e gracioso no Japão, a
Mulher. E não será uma princesa ou uma dama da aristocracia, o autor
opta por um nome tão comum quanto seria Maria em Portugal. Ohana-
san, diz ele, é uma mulher do povo, “seu pai, um labutador qualquer,
um fabricante de socos ou de ventarolas” (MORAES, 1992, p.149). Ela
não somente representa o belo e o gracioso, mas também o que existe
de simples, a comédia do povo, a alma dos povoados e campos.

Essa dama que a qual Moraes diz ter se afeiçoado, é como uma “deliciosa porcelana
bela em esmaltes e em curvas, como um portentoso objeto, o mais portentoso, da arte japonesa”
(MORAES, 1992, P.150). É interessante perceber o significado de arte para o pensamento da 845
época, dentro da linha de pensamento evolucionista, é o ápice do desenvolvimento da cultura
material, para os românticos é a expressão da essência da Nação, da tradição e da cultura, algo
fundamental para a beleza da vida humana. Em ambos os casos, arte é algo de grande estima.
A Mulher e a Vida Japonesa são expressas aqui como objetos a serem apreciados.

Essa mulher japonesa também é, segundo Moraes, a “mais gentil do mundo inteiro”
(MORAES, 1992, p.150) e ele logo se apressa a explicar

Gentil, foi o que eu disse. A beleza tal como a compreendemos pelas formosuras
clássicas, pela harmonia geométrica das linhas de um perfil grego, não é do Japão.
Admita-se, excepcionalmente, uma pieguice travessa do Criador, requintes amorosos
da quimera. O que a japonesa é, é um mimo de frescura, de gentilezas mínimas, de
encantos vagos, de distinções (MORAES, 1992, P.150).

A mulher japonesa não poderia ser pensada como mais bela que a europeia. Isso pode
ser esperado em muitos sentidos ao pensar que numa perspectiva evolutiva dos povos, o Japão
e o oriente não eram modernos ou civilizados, suas qualidades residiam muito mais em aspectos
de uma natureza ainda não domada pelo ser humano, como espaços da beleza, da tradição, mas
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não como ideais de civilização. Moraes busca discutir que apesar de não poder se comparar a
Mulher Europeia, a Mulher Japonesa possui sua própria beleza, uma meiguice única, quase
como uma boneca, miúda e pequenina tal qual a flor que lhe dá nome.

São pequenos detalhes que dão a beleza de Ohana-san, tal quais suas mãos que se
assemelham a “ratos brancos, macios como cetim, moldando-se a pressão, sem ossinhos que se
sintam, afilando-se, escorregando e fugindo...” (MORAES, 1992, p.152) e seu pé, que o autor
lembra, para a educação estética do ocidental, nada tem de humano, mas os da japonesa, nus e
brancos, parecem ser feitos de cetim, lembram a maciez de uma flor e permitem-lhe um
deslocamento que parece mais um deslizar do que uma marcha. É algo extremamente natural e
harmônico, que impressiona a cada movimento de uma forma tão humana e que a Mulher
europeia se privou.

Porém se Wenceslau de Moraes fala com tanta paixão do pé da japonesa, para ele o pé
define o horror da mulher chinesa.

846
Eis o curioso contraste da mulher sem pés, aleijada desde a infância tenra pelas
exigências da moda que domina. Eis a mulher que nunca presenciou um romper de
aurora, que nunca ajuntou seis passos ao longo de uma estrada, quevive eternamente
na clausura, na penunbra misteriosa e sórdida de quatro paredes unidas, deixando-se
invadir de flácidas gorduras e de tons terrosos de encarcerada, deixando crescer as
unhas das mãos inúteis até à disformidade, imóvel, estúpida, tediosa, hierática, feitiço
inspirado do lar. (MORAES, 1992, p. 155)

Os chamados dois destinos morais do oriente, vale lembrar a desigualdade das


condições históricas na investida imperialista sobre a China para com o Japão (ANDERSON,
1995). Wenceslau de Moraes que passou vários anos de sua vida residindo em Macau, via na
China um atraso que se submetia a tudo que vinha do ocidente, deixando de lado todos os
costumes belos em prol de um desenvolvimento sujo. Para ele, parte da beleza do Japão vinha
do fato de manter tradições ao mesmo tempo em que se desenvolvia tecnologicamente mas sem
baixar a cabeça para os ocidentais. É possível aqui perceber a formulação de uma ideia de
espaço dentro da própria percepção de oriente para o que viria a ser Japonês. Moraes identifica
o Japão como oriental, mas ao compará-lo com a China, ele estipula uma diferença que irá
caracterizar o japonês. Outro fator relevante nesse ponto é a relação entre o corpo humano e a
noção de cultura, ou neste caso, moral. Ao utilizar “destinos morais dos dois impérios do
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oriente”, dentro da leitura desta obra, esses dois impérios parecem antagônicos, ou seja, se por
um lado o Japão apresenta uma mulher que é graciosa, delicada, comedida e que representa
civilidade, a mulher chinesa representaria o caos e desordem da raça degenerada que Moraes
descreve como sendo a chinesa. É importante destacar aqui que não é do nosso interesse refletir
acerca da realidade material do momento histórico, mas sim a como Moraes transcreveu isso
através de sua obra.

Afinal, que leitura podemos fazer da Mulher japonesa apresentada por Moraes? Antes
de mais nada, um aspecto que se destaca muito no Dai-Nippon, é a Mulher servil. Moraes afirma
que a Mulher japonesa é tal como a flor, e sendo assim não possui pudores, também não possui
desejos, “é formosa por que se é formosa e deve ser-se, nada mais” (MORAES, 1992, p.164).
A mulher, em qualquer instância, quando jovem, são criadinhas, e o os homens japoneses sabem
quando pedir um sorriso, uma carícia, onde a honra da família lhes impõe recatos e deveres.
Essa imagem que Moraes nos dá poderia ser como a solução dos problemas de Kant, se a mulher
japonesa é obediente, bela, não sentimentalista, ela seria a mãe ideal de um lar, mantendo-o
unido e estável, harmonioso e gracioso.
847
Não somente a Mulher japonesa aparece nas obras de Moraes como uma esposa ideal,
ela apresenta uma graça que foge a qualquer coisa que o ocidente possa cogitar. Apesar de não
ter o ideal de beleza clássico, ela possui um algo mais, uma naturalidade do seu ser. Ohana-san
não é uma flor simplesmente porque este é um nome comum. As flores são um elemento em
falta na vida agitada e urbana da Europa. A Mulher Japonesa, tal como o jardim, é como a
natureza domesticada, ela é servil e bela, não machuca e ainda serve como um alívio ao estresse.

Ohana-san ainda tem mais um elemento saudosista ao europeu, ela é uma moça pública.
A distância entre os espaços públicos e privados é algo que não se faz presente na obra de
Moraes. No Dai-Nippon não existe uma distinção entre a casa e a natureza, e consequentemente
ler os deleites que o autor descreve poderia ser uma viagem de férias para o homem cansado do
universo moderno europeu, principalmente um romântico que preza pelos afagos do espírito, a
fuga do ceticismo científico e industrial.

É interessante ainda colocar a conclusão de Moraes acerca de seu livro no qual afirma
detestaria tanto o Japão se não o amasse, isso porque um dia a modernidade e o avanço
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tecnológico há “desnaturar inteiramente o Japão” (MORAES, 1992, p.256). O avanço
tecnológico é visto pelo autor tal qual uma máquina que destrói o belo e natural, uma máquina
que fez horrores na China em nome do progresso, e faz o mesmo no Japão.

CONCLUSÃO

De forma muito simples poderíamos colocar a partir da obra de Moraes que o Japão é
como um jardim para o Ocidente. De forma semelhante é interessante perceber os contrapontos
masculino e feminino, urbano e rural, Ocidente e Oriente. Não fazemos essas comparações
porque esperamos de alguma forma afirmar que elas funcionam da mesma forma, ou andem
juntas na história. O que trazemos aqui é a ideia de como esses conceitos se relacionam com
seus opostos ganhando significado numa relação de poder. O Ocidente trata o Oriente como
Homens tratam as Mulheres, utilizando-se de estratégias discursivas que mantem a sua
soberania intelectual. As Mulheres e o Oriente servem aos Homens e ao Ocidente assim como
848
o campo serviu a cidade. São os espaços de fascínio e admiração sobre os quais eles têm
controle para utilizar aos seus gozos.

Temos que ter cuidado com esse tipo de conclusão para que não se de a entender que
isso é natural, pelo contrário, essas relações são forjadas historicamente, ressignificadas e
transformadas. Não é que Mulheres, Oriente e Natureza andem juntos, mas se as imagens desses
três elementos forem colocadas lado a lado, elas parecem corresponder umas às outras visto
que existem discursos que tentam dominá-las e controlá-las.

Se hoje o yellow fever se manifesta na nossa sociedade isso não é ao acaso. Obviamente
que não podemos estabelecer uma relação direta entre elementos históricos como se houvesse
uma causa única, porém como formas de discursos, as relações entre raça e gênero não são
exclusivas do nosso tempo. A análise da obra de Moraes pode ao menos nos ajudar a pensar
um pouco sobre a forma como homens ocidentais formularam discursos de soberania sobre as
Mulheres Orientais e naturalizaram a sua objetificação.
ISSN: 2525-7501

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ISSN: 2525-7501
ENTRE O MOVIMENTO SOCIAL E A TEORIA: O FEMINISMO NO ESPAÇO
ACADÊMICO*439

Fernanda de Oliveira Alves

Cláudia Maria Perrone440

RESUMO

Desde o processo de redemocratização do Brasil, tem-se inserido nas academias estudos


relacionados a gênero e teoria feminista. Mesmo assim, ainda não há o reconhecimento do
feminismo enquanto teoria fundamentada e embasada em questões pertinentes à vida social,
cultural e subjetiva do sujeito por parte de alguns grupos da sociedade, sendo estes religiosos,
políticos, sociais ou teóricos. Ressalta-se neste trabalho a teoria feminista dentro do campo
psicanalítico, levando sempre em considerações as contribuições sociais e históricas no
processo. Diante disso, pretende-se refletir sobre como o feminismo, enquanto movimento
social influencia as práticas discursivas acadêmicas desde sua inserção até a atualidade.
Pretende-se problematizar as estruturas de poder existentes nesse processo como também
refletir sobre a conjuntura política/social e como esta movimenta a produção de saber científico
neste tema. Para isso foi feita uma pesquisa bibliográfica narrativa. Entende-se que as teorias 851
feministas são amplas e diversas, fundamentadas por diferentes noções e visões de mundo e de
sujeito o que torna difícil a consolidação e reconhecimento destas no meio acadêmico. Porém
afirma-se a necessidade de articular o movimento social com a produção de saber, se levando
em consideração a singularidade e a objetividade própria do saber localizado que é próprio da
teoria feminista e, para isso, deve-se por em questão a contemporaneidade, as relações sociais
e as identidades e subjetividades que as permeiam.

Palavras-chave: teoria feminista; psicanálise; saber localizado.

INTRODUÇÃO

439
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.

440
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria – RS/
Brasil falves.psi@gmail.com; Doutora em Linguística e Letras (PUCRS) e Profª do Programa de Pós Graduação
em Psicologia na UFSM – RS/Brasil cmperrone@ig.com.br
ISSN: 2525-7501
O lugar da mulher no desenvolvimento da ciência foi por muito tempo o lugar do
“outro”, distante da norma universal vigente e próximo à natureza. É comum perceber, ao
estudar filosofia, que alguns pensadores delegavam à mulher um lugar de inferioridade,
monstruosidade ou incompletude. Soma-se a isto a noção da mulher como um enigma, como
algo impossível de decifrar ou de entender.

Ainda que na posição de enigma, eram homens quem escreviam sobre as mulheres,
quais suas potencialidades, que papéis sociais deveriam ocupar e que aspirações deveriam ter.
Pode-se pensar a partir disso que a mulher foi por muito tempo apenas objeto de estudo, não
sujeito que cria ou desenvolve o saber. Tal posição passa a mudar com o surgimento do
movimento feminista.

No século XVIII os discursos que imperavam sobre a mulher eram baseados em sua
capacidade de serem dóceis, belas, capacitadas para amar e cuidar, serem obedientes e servirem
aos homens como filhas, esposas ou mães. Neste cenário, Mary Wollstonecraft faz uma
reivindicação do direito das mulheres na intenção de tirá-las da posse masculina e da ignorância
sobre sua condição. Para a autora a educação seria a maneira de permitir o livre 852
desenvolvimento da mulher enquanto ser racional para que fosse possível fortalecer a virtude
através da razão e assim adquirir a independência (WOLLSTONECRAFT, 2015). A
reivindicação feita por Mary Wollstonecraft é um manifesto feminista, mesmo que tal termo,
pensamento ou política ainda não tivesse se desenvolvido na época. Reivindicar direitos foi
posteriormente o que fez surgir o movimento feminista.

Tais reivindicações feitas no âmbito público por mulheres que tinham acesso a
Universidade produziu muita discussão teórica sobre o tema até que fosse possível ser estudado
dentro das Universidades. Pensa-se que com o desenvolvimento dos estudos e as mudanças
sociais e políticas pelas quais o Brasil passou foi possível cunhar diferentes formas de pensar a
mulher e a teoria feminista. A partir disso este trabalho faz uma pesquisa de revisão
bibliográfica narrativa que segundo Rother (2007), constitui-se de análise da literatura de livros,
artigos de revistas “na interpretação e análise crítica pessoal do autor” (p. v), para que seja
possível a reflexão sobre o feminismo e a construção da teoria feminista enquanto ciência.
Também é reflexão pertinente a este trabalho o lugar que a psicanálise ocupa neste debate sobre
movimento e teoria feminista.
ISSN: 2525-7501

1. Capítulo I – Movimento Feminista e Discurso Acadêmico


O feminismo no Brasil teve seu início em 1918 com a volta de Bertha Lutz para o país
após ser licenciada em Ciências pela Faculdade de Ciências da Universidade de Paris. Lá ela
teve contato com o inicio do movimento feminista Europeu, a primeira onda do movimento que
tinha como pauta principal o direito ao voto. Pinto (2010) afirma que, após seu início, o
movimento feminista perdeu sua força na década de 30 e que só a recuperou com a obra de
Simone de Beauvoir: O Segundo Sexo.

O Segundo sexo foi publicado em 1949 e se transformou em um livro extremamente


importante para que o discurso feminista avançasse. Beauvoir (2009) escreve sobre a condição
da mulher na sociedade sempre questionando as práticas biológicas, históricas, sociais e 853
também psicanalíticas que servem como discurso de legitimação à opressão da mulher na
sociedade.

A obra de Simone de Beauvoir faz reascender o debate feminista. Na década de 1960,


surge então a segunda onda do feminismo que passa a buscar um reconhecimento da identidade
da mulher, questionando as relações de poder existentes entre homens e mulheres.

Neste mesmo momento histórico, de retomada do feminismo, durante a ditadura no


Brasil existiram mulheres e homens organizados que se colocavam contra o regime. Rosa
(2013) expõe que neste momento as mulheres tiveram que se adequar ao modelo masculino de
militante mudando suas características físicas, pois o modelo masculino era visto como o ideal
para guerra. Tal atitude é contrária aos ideais de igualdade propostos pela esquerda e colaborou
com a invisibilização das mulheres neste período.

“Invisibilidade” que faz parte da história das mulheres, ou dos lugares reservados a
elas historicamente. Sabemos que, em sociedades patriarcais como a nossa, o lugar
das mulheres ao longo dos séculos, oficialmente, tem sido o espaço privado – o espaço
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doméstico da casa, da cozinha, do quarto, etc. Espaço marcado pela invisibilidade e
pelo silêncio (ROSA, 2013, p. 45).

Mesmo enquanto militante a mulher era invisivilizada em suas singularidades e


manifestações femininas, como se fosse impossível para a mulher ocupar espaços de políticos
de poder, de construção de saber e de fala. O movimento feminista passa a ser o lugar de fala
das mulheres que não eram escutadas simplesmente pelo fato de serem mulheres.

Saffioti (1979) afirma que as feministas brasileiras tomaram como grupo de referencia
positiva para o feminismo as feministas europeias e posteriormente as norte-americanas, não
levando em consideração a análise da realidade econômico-social nacional e nem um exame
profundo da ordem social capitalista. Para a autora, isto faz com que as feministas brasileiras
ampliassem seu contato com as conquistas do feminismo de outros países para então
implementar aqui as mesmas medidas legais dos mesmos.

Dessa forma, assim como foi nos países Europeus e Norte Americanos, as mulheres que
levantavam bandeiras feministas eram, em sua maioria, estudantes, cientistas e filósofas que 854
tinham acesso a leituras, escritas e formas acadêmicas de produção de saber. Porém o
feminismo enquanto discussão acadêmica está intimamente ligado ao feminismo enquanto
movimento. Isso se dá por considerarmos que as discussões teóricas acadêmicas sobre
feminismo foram feitas por mulheres que transitavam entre estes dois lugares: a militância e a
Universidade.

É neste contexto histórico que a construção de saber e teoria feminista passam a


questionar a psicanálise sobre seu discurso em relação à mulher e a feminilidade. Beauvoir
(2009) critica o fato do saber psicanalítico ser todo embasado em cima da realidade masculina
como a universal, colocando a mulher como incompleta ou como apenas objeto de desejo de
um “outro” masculino. Porchat (2013) reconhece que a psicanálise durante muito tempo, e
ainda, quando referida por alguns psicanalistas, se coloca como um discurso limitante e não
satisfatório sobre questões relativas a gênero dentro da academia. Porém a autora também
estabelece que a psicanálise sempre se colocou aberta aos questionamentos do sujeito.
ISSN: 2525-7501
A psicanálise foi a teoria que se colocou a pensar a sexualidade. Se no principio se deu
de forma limitada, totalizante e amarrada aos padrões androcêntricos de seu contexto de
nascimento. Hoje deve pensar os novos sujeitos presentes na contemporaneidade, as diversas
formas de ser mulher, de se manifestar como tal ou de desejar outras possibilidades de vida
além do casamento e da maternidade.

Na década de 1980, com a anistia aos presos e exilados políticos e a reforma partidária,
o Brasil trouxe de volta muitos militantes que haviam sido vanguarda da esquerda brasileira em
1960 (PINTO, 2003). Este cenário transformou a política do país, repercutindo no movimento
feminista da época. De acordo com Pinto (2003), com o processo de redemocratização do país
surgiu uma divisão entre as feministas, pois algumas lutavam pela institucionalização do
movimento e pela aproximação da esfera estatal e outras, as autonomistas, viam esta
aproximação como uma forma de cooptação.

A relação do feminismo com o campo político a partir de 1979 deve ser examinado
de três perspectivas complementares: a conquista do espaço no plano institucional,
por meio de Conselhos da Condição da Mulher e Delegacias da Mulher; a presença 855
de mulheres nos cargos eletivos; e as formas alternativas de participação política. Em
qualquer um desses espaços a presença das mulheres e, mais do que isso, de feministas
tem sido fruto de múltiplas tensões resultantes de fatores como a própria resistência
de um campo completamente dominado por homens à entrada de mulheres e a
estratégia do próprio movimento, que muitas vezes viu o campo da política como uma
ameaça a sua unidade (PINTO, 2003, p.68-69).

Entende-se que o campo político passe a ser visto como uma ameaça a unidade do
feminismo à medida que coloca em questões vivências diversificadas sobre a condição da
mulher. Porém ressalta-se que as mulheres sempre tiveram pautas diferentes e singulares em
suas manifestações e reivindicações. Sendo assim, o campo político parece apenas ressaltar a
diferença já existente entre as pautas feministas e a partir disso ameaça sua unidade justamente
pelo fato de não existir o discurso universal sobre a mulher. Desta maneira, o problema de quem
é o sujeito do feminismo gera um “problema teórico”.

Pensar em outras concepções de sujeito, em diferentes formas de ser mulher foi o que
tencionou o feminismo para sua terceira onda. Para Pinto (2010) o feminismo tem como
característica construir suas reflexões críticas e teóricas durante seu próprio desenvolvimento.
ISSN: 2525-7501
Sendo assim, na medida em que mulheres de classe social, raça ou sexualidade diferente passam
a ter consciência de sua condição feminina os discursos feministas se deslocam e se
transformam passando a recriar noções e entendimentos sobre a mulher e seu entorno. As
diferentes opressões vivenciadas por diferentes mulheres fazem com que as teorias feministas
se multipliquem cada vez mais.

Narvaz e Koller (2007) afirmam que durante o processo de redemocratização do Brasil,


mais especificamente nos anos 80, a produção acadêmica sobre gênero, mulheres e feminismo
ganhou força e diversificou-se. Surgiram nas Universidades núcleos de estudos e pesquisa sobre
a mulher. Para as autoras, mesmo que isto tenha sido um avanço, ainda assim tal inserção se
deu de forma marginal ocorrendo predominantemente na pesquisa em detrimento do ensino.
Estando também mais presentes em cursos de pós-graduação ou em disciplinas optativas
(NARVAZ e KOLLER, 2007). Poli (2003) afirma que as associações nacionais de diversas
áreas do conhecimento foram importantes para que fosse possível avançar nos estudos sobre a
mulher. Dentre elas tem-se a Anpocs (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Ciências Sociais). Anped (Associação Nacional de Pesquisa em Educação), Anpol (Associação
Nacional de Pesquisa em Letras) dentre outras.
856
Sardenberg e Costa (2002) afirmam que existem mudanças significativas desde o
surgimento do feminismo no Brasil. As autoras ressaltam que nos anos 80 os discursos
feministas já estavam beirando a sofisticação, se tornando de difícil acesso e compreensão às
próprias feministas não acadêmicas.

Não resta dúvida, porém, de que uma das mais significativas mudanças verificadas no
período em apreço – talvez até mesmo a mais significativa – diz respeito ao
deslocamento de ênfase nas reflexões: dos estudos sobre a mulher/mulheres para a
problemática das relações de gênero. Este avanço teórico tem permitido não apenas
a abertura de novos espaços discursivos, de novas fronteiras para reflexão e análise,
mas também um repensar da “mulher” em novas bases (SARDENBERG e COSTA,
2002, p.12).

A possibilidade de pensar relações de gênero é o que traz o debate feminista para a


psicanálise. É preciso pensar o feminismo enquanto uma epistemologia, como uma ciência que
ISSN: 2525-7501
explica relações de poder existentes já estruturadas. A psicanálise nesse processo passa a ser
um discurso que pensa o sujeito em relação com seus desejos e sua vivencia política, pois assim
evitam-se lógicas identitárias totalizantes no processo de construção de saber.

Capitulo II – Feminismo e o Desenvolvimento da Ciência: saber plural

Scott (1995) afirma que os estudos de gênero foram apropriados pelo feminismo de três
formas diferentes. Uma delas procura explicar as origens do patriarcado, outra busca na tradição
marxista explicar o capitalismo e a divisão desigual entre os sexos como causa única de
opressão, e a terceira vertente, apoiada no pós-estruturalismo e na psicanálise, se interessa pelas
identidades como algo construído em processo, sem delimitações ou fixações, trazendo assim
noções de performance e identidade de gênero (SCOTT, 1995).

Pensar o feminismo enquanto ciência é questionar as formas hegemônicas de pensar o


sujeito e o saber. É poder pensar de modo singular, levando em consideração a existência de
inúmeras formas de ser sujeito e de se manifestar no mundo. As possibilidades diversas de ser

857
sujeito é o que traz para questionamento a identidade fixada da mulher enquanto sujeito do
feminismo.

Sabe-se da necessidade do reconhecimento de uma categoria para que seja importante


seu desenvolvimento na luta política, porém entende-se que definir uma identidade fixada de
ser mulher, como o fazem algumas vertentes feministas, pode acabar por oprimir a manifestação
subjetiva do sujeito na contemporaneidade. Entende-se que as diferentes opressões que as
mulheres sofrem causam diferentes questionamentos e posicionamentos políticos e teóricos,
sendo assim, o feminismo enquanto ciência parece não avançar devido à ao problema teórico
de não se encontrar um sujeito único em cima de qual se construir o conhecimento.

As tentativas das feministas para construir um sujeito político feminista


universal, buscando uma base comum entre as mulheres, receberam críticas das
feministas negras e latino-americanas, das feministas dos países de Terceiro Mundo e
das ex-colônias e das feministas lésbicas (MARIANO, 2005, p.489).
ISSN: 2525-7501
Segundo a autora estas críticas colocam em questão o que é ser mulher e denunciam que
a unidade do sujeito feminino é também excludente e opressora. Assim, aparecem as discussões
sobre a identidade transformando este problema político também em problema teórico
(MARIANO, 2005). Este problema teórico parece ser o que divide a teoria feminista dentro das
Universidades. Diferentes perspectivas feministas trabalham com diferentes percepções de
mulheres, criando-se assim a noção de feminismos plurais. A cargo de conhecimento é possível
referenciar o feminismo marxista, o feminismo radical, feminismo lésbico, feminismo
interseccional, dentre outros.

Pensa-se a partir disso que o problema teórico do feminismo pode ser resolvido através
de um entendimento da ciência operando através da produção de conhecimentos parciais. Isto
se traduz na ideia de saber localizado, termo criado por Donna Haraway. A autora afirma que
a objetividade nos estudos feministas é local, pois não há como dissociar o sujeito do mundo
em que este vive, sendo assim, é impossível observar e construir saber através de um olhar
extramundo (HARAWAY, 1995). Para ela, “A objetividade feminista trata da localização
limitada e do conhecimento localizado, não da transcendência e da divisão entre sujeito e
objeto” (HARAWAY, 1995, p.21).
858
O pensamento da autora trabalha a serviço de respeitar a diversidade e não manter a
universalidade nas formas de fazer ciência. Amorós (2000) afirma que o feminismo é uma teoria
crítica, sendo assim deve ter posicionamentos críticos diante da realidade política, social e
intelectual para então transformar a realidade.

Para Haraway (1995) pensar ciência, tecnologia e feminismo só é possível através de


uma visão crítica das teorias que já existem. Ela propõe isto por considerar que as feministas
que questionavam o padrão hegemônico na década de 80 eram as mesmas mulheres que se
encaixavam neste padrão (feminismo americano liberal de mulheres brancas e de classe média
com acesso a informação e conhecimento).

Assim entende-se que todo conhecimento passa a ser marcado pelo lugar que o sujeito
ocupa no mundo, pela localização e pelo olhar de cada um. Pensar o saber localizado é admitir
as influencias subjetivas na construção do conhecimento e tornar possível a responsabilização
pelo que construímos, ensinamos e aprendemos. Tem-se então a ideia de transversalidade nesta
ISSN: 2525-7501
forma de saber. Assim, a ciência deve estar em contato com o que as pessoas estão vivendo
para que talvez se chegue a alguma mudança social. Sendo assim, para construir discursos
emancipatórios sobre gênero e feminismo é preciso desconstruir saberes científicos engessados.
A emancipação só é possível na medida em que são estabelecidas ligações e conexões do sujeito
com seu meio ao invés de totalizações (HARAWAY, 1995).

A partir da noção de saber localizado é possível pensar o feminismo como ciência a


partir de suas singularidades. Ou seja, é estabelecer que a mulher enquanto ser universal não
existe e diante disso é preciso trabalhar na perspectiva de pensar o feminismo como corrente de
pensamento que diz respeito a qualquer sujeito independente do gênero que este diz pertencer.

O lugar da psicanálise nesta discussão passa a fazer sentido na medida em que o


feminismo pense o sujeito para além do sujeito político. É pensar o sujeito envolvido com seus
desejos e formas de sentir prazer no mundo. Sendo assim, lógicas identitárias que definem o
que é a mulher do feminismo não deveriam pertencer a um pensamento feminista que se propõe
a produzir efeitos transformadores em pessoas e culturas.

CONCLUSÃO
859
Existem questionamento no âmbito acadêmico e no próprio movimento político de que
o feminismo se torna cada vez mais elitizado, como se fosse propriedade de algumas mulheres
que detém verdades especificas sobre o mesmo. Pensa-se com este trabalho o feminismo
enquanto teoria crítica. Para isso é preciso falar-se em pensamento e teoria feminista.

Não é pretensão deste trabalho desqualificar o papel do feminismo enquanto


movimento, mas sim reafirmar a necessidade de estabelecê-lo como pensamento que norteia
práticas, sejam estas cientificas ou políticas. Isto se dá pela crença de que é através da
apropriação da objetividade feminista, enquanto conceito fundamental na produção de
conhecimento, que se é capaz de modificar estruturas sociais e formas de construir saber.

Para que isso seja possível pensa-se que o movimento feminista deve expandir a ideia
de representatividade e identidade feminista. Entende-se que identidades, quando fixadas, são
excludentes. Não se pode delimitar ou definir o que é a mulher, pois a mulher enquanto sujeito
único não existe. Deve-se então colocar em questão estruturas singulares de fabricação da
identidade feminina, de como se constroem preconceitos ou noções limitadas sobre a mulher e
ISSN: 2525-7501
como podemos modificá-las através de um pensamento critico diante das teorias feministas já
existentes. Pensa-se que o lugar do feminismo dentro das universidades é de questionar as
formas hegemônicas, universais e masculinas de produzir ciência.

Percebe-se que desde o processo de redemocratização do Brasil até os dias atuais foram
desenvolvidos diversos campos de estudos feministas e de gênero dentro das universidades.
Tais temas também tiveram maior visibilidade política e conquista de direitos. Entende-se com
este trabalho que a realidade contemporânea possibilita a produção de ciência de forma
transversal, na qual sejam localizados diferentes discursos e contribuições na produção de
saber.

Pensa-se que é papel da teoria psicanalítica estar presente nesta construção de


conhecimento ao afirmar a posição do sujeito enquanto sujeito em construção, não totalizado
nem fixo em suas identidades e em suas percepções de mundo. Entende-se que a multiplicidade
de visões sobre a teoria feminista deve ser vista como uma contribuição ao saber e não um
empecilho ao mesmo. Isso se dá na medida em que sejam consideradas as singularidades como
processos de conexões não excludentes no desenvolvimento do conhecimento científico. 860
Ressaltamos ainda a importância de reafirmar as produções que se dão no campo
das ciências sociais e humanas como de extrema importância na vida e nas relações sejam estas
políticas ou psíquicas. Por fim, sabe-se que ao longo do desenvolvimento do movimento
feminista muitas mulheres criaram teorias diversas sobre a opressão da mulher baseadas em
suas vivências e experiências pessoais. Cada teoria contribuiu para que, em cada período da
história, o feminismo conquistasse espaço entre diferentes mulheres. Sendo assim, afirmamos
que o debate sobre o tema, assim como as construções teóricas sobre o mesmo ainda não se
esgotou. O debate deve avançar e conquistar mais espaços nos discursos científicos a fim de
promover maior questionamento e visão crítica sobre a forma que a sociedade e o saber estão
estruturados.

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ISSN: 2525-7501
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862
ISSN: 2525-7501
ATIVISMO DE MULHERES NO PARTIDO DOS TRABALHADORES DE SANTA
MARIA NA DÉCADA DE 1980: CATEGORIAS DE ANÁLISE E OFÍCIO DO
HISTORIADOR441

Aline Silveira Flores442

Diorge Alceno Konrad443

RESUMO

Este artigo aborda o ativismo político de mulheres na construção do Partido dos Trabalhadores
(PT) na cidade de Santa Maria, durante a década de 1980. Neste sentido, intenta-se
problematizar diferentes formas de apreender esse ativismo, incorporando categorias essenciais
como a de gênero, condição feminina e feminismo para a análise. Para tanto, optou-se por
dividir este artigo em dois momentos. Inicialmente, foram minimamente historicizadas as
categorias indicadas acima, o que possibilitou mapear dúvidas e identificar novas interrogações
pertinentes ao objeto de estudo. A seguir, foi realizada uma inflexão sobre conceitos
fundamentais (memória, rastro, lembrança, esquecimento, tempo) para pensar o ofício do
historiador e possibilitar uma abordagem mais aguçada do ativismo político de mulheres na
formação do PT na cidade. Trata-se, portanto, de problematizar as fontes orais que foram
863
utilizadas no trabalho de conclusão de graduação do Curso de História da Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM) e, até mesmo, refazer perguntas suscitadas pelo mesmo, visando à
reformulação da pesquisa em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em História da
UFSM.

Palavras-Chave: Mulheres, Memória, Partido dos Trabalhadores.

INTRODUÇÃO

441
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
442
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria. Bolsista
Capes-Ds. Email: aline_hst@hotmail.com.
443
Orientador. Professor Doutor Adjunto do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria.
Email: gdkonrad@uol.com.br.
ISSN: 2525-7501
Foi na década de 1980 que os estudos vinculados à memória ganharam destaque, o que
significou um aumento considerável na produção acadêmica. Esse boom da memória inicia na
França, no qual, o cientista político Pierre Nora teve papel fundamental na edição e
disseminação dos estudos sobre memória entre os anos 1984 e 1992.

Nora solicitou e editou artigos de intelectuais franceses proeminentes que, em seu


conjunto, constituem um inventário de conhecimento e conjecturas sobre a memória
no contexto histórico francês – memória congelada em estátuas, em objetos, em
nomes de ruas, em cerimônias, em partidos políticos, em lendas, mitos, e mesmo em
obras sobre história. (WINTER, 2006, p. 67-68).

Destaca-se que esse boom avança pela Europa ocidental e nos Estados Unidos América
e o tema da memória alcança status de “conceito central organizador dos estudos em história,
uma posição antes ocupada por noções de classe, raça e gênero (Ibid., p. 68)”. Talvez, uma
explicação para essas mudanças em parte significativa da pesquisa histórica, esteja no
argumento de Jay Winter, de que “o ‘boom da memória’ no final do século XX é reflexo de 864
uma matriz complexa de sofrimento, ativismo político, reivindicações de indenização, pesquisa
científica, reflexão filosófica e arte (Ibid., p. 87) ”.

Neste sentido, a escolha de pesquisar o ativismo político de mulheres na formação do


Partido dos Trabalhadores (PT) na cidade de Santa Maria dos anos 1980, partiu da problemática
das opressões. Escolha que de certa forma incorpora a postura de “escovar a história a
contrapelo na tradição dos oprimidos (BENJAMIM, 1994, p. 225)” e dialoga com aspectos da
matriz indicada por Winter.

Assim, este artigo foi divido em dois momentos. No primeiro momento serão
trabalhadas as categorias fundamentais para a abordagem da temática proposta, como as de
gênero, feminismo e condição feminina, evidenciando a historicidade das mesmas junto de
novas reflexões que possibilitam redefinir os parâmetros da monografia defendida no Curso de
História da UFSM.444 Em seguida, serão discutidos conceitos que se relacionam diretamente

444
A Participação das Mulheres na Formação do Partido dos Trabalhadores em Santa Maria (1879-1993).
ISSN: 2525-7501
com o ofício do historiador, como o de memória, lembrança, esquecimento e tempo,
considerados fundamentais para a temática desenvolvida no PPGH da UFSM e abordada neste
artigo.

Ativismo político de mulheres e suas categorias de análise

A mulher por muito tempo não foi considerada um sujeito histórico, pois não era
permitido que elas ocupassem espaços públicos e cargos políticos, ou seja, os lugares de decisão
de poder. Estes ficavam reservados aos homens, enquanto para elas restavam os afazeres do lar
e o cuidado de sua família. Em síntese, a política era por excelência um espaço masculino.
Assim, o reconhecimento da mulher como sujeito histórico, agente de sua história é algo muito
recente. (COLLING, 2004, p. 01).

Neste sentido, a escolha em pesquisar a participação política feminina na formação do


PT na cidade de Santa Maria parte da constatação indicada acima. Não custa indicar
rapidamente que o volume de estudos publicados sobre a História do PT, de maneira geral,
desenvolve-se, sobretudo, como uma História institucional e masculina.445
865
Por outro lado, a participação feminina na construção do partido no início da década de
1980 existe e, junto a ela e/ou ao seu lado, desenvolve-se outra novidade desse período, o
movimento feminista, eivado de discussões e debates sobre como desenvolver-se no contexto
brasileiro de abertura lenta e gradual da Ditadura Civil-Militar e o momento seguinte de
redemocratização.

Ainda que a incorporação de novos sujeitos à história não seja um fenômeno


propriamente brasileiro, esta tendência logo desenvolve grande importância por aqui. Ressalta-
se que data do último quartel do século XX a admissão de novos sujeitos à história. Como
indica Colling:

445
SECCO, Lincoln. História do PT. 3ª ed. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2011; GAGLIETTI, Mauro. PT:
Ambivalências de uma militância. 2ª ed. Porto Alegre, RS: Dacasa, 2003; MARTINEZ, Paulo Henrique. O
Partido dos Trabalhadores e a conquista do Estado: 1980-2005. In: História do Marxismo no Brasil. Vol. 6.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.
ISSN: 2525-7501
Na tentativa de corrigir a história, pluralizaram-se os objetos de investigação,
admitindo como sujeitos históricos, os operários, os camponeses, os escravos e as
mulheres, que estavam subestimados ou colocados numa arena de menor
importância. Neste desejo de inverter as perspectivas históricas tradicionais, passou-
se a olhar os acontecimentos históricos pela visão de outros sujeitos. No caso das
mulheres, tem-se buscado mostrar a sua presença na história, incluindo-as como
objeto de estudo, sujeitos da história (...). (COLLING, 2004, p. 01).

Indica-se que ao incluir as mulheres como objeto de estudo para dar visibilidade àquelas,
que apesar dos espaços políticos reduzidos, buscaram participar de diferentes formas na
construção do PT e dos movimentos sociais na cidade, deve-se articular um conjunto de
categorias com o intuito de facilitar o entendimento do ativismo feminino. Portanto, torna-se
necessário discutir rapidamente as categorias de “condição feminina, gênero e feminismo”.
Contudo, não basta apenas discutir conceitualmente essas categorias. Partindo do entendimento
que elas ganham forma e importância a partir da década de 1970, ressalta-se que sua apreensão
deve se dar historicamente. Caso contrário, entender o seu desenvolvimento seria muito difícil.

É, sobretudo, a partir dos anos 1970, que o movimento feminista começa a ter uma maior
visibilidade no cenário político brasileiro, trazendo para o debate público questões até então
866
consideradas próprias da esfera privada. (MANINI, 1995/1996, p. 46). Indica-se que o conceito
de feminismo, propriamente dito, deve ser entendido como um “fenômeno social, cultural que
assume feições específicas de acordo com o lugar e os sujeitos que dele ou nele falam
(CARNEIRO, 2015, p. 244)”.

Entre as décadas de 1970 e 1980, o debate assume feições distintas que interferem
diretamente no desenvolvimento do referido movimento no Brasil. Carneiro classifica os
debates sobre esse fenômeno social como segunda onda e terceira vaga, a saber:

A segunda onda, assinalada nas décadas de 1960 e 1970, é caracterizada pela crítica
ao etnocentrismo em aliança com os movimentos norte-americanos pelos direitos
civis e pelas lutas anti-colonialistas, nos EUA e na Europa, e a emergência das
feministas negras, entre elas Ângela Davis e Alice Walker. A terceira vaga, a partir
dos anos 80, do mesmo século, é momento que se pontua a acentuação dos
movimentos e do pensamento social na direção de uma radicalização da crítica ao
nacionalismo essencialista e as categorias da identidade, particularmente de sexo-
gênero, raça-etnia e classe social. (Ibid., p. 245).
ISSN: 2525-7501

De maneira geral, as lutas feministas direcionavam-se para o acesso da cidadania,


denunciando as diferentes opressões que as mulheres estavam submetidas no cotidiano. Dentre
elas, pode-se destacar o tratamento da violência de gênero pelo movimento, entendida como
“aquela praticada por homens que se utilizam de força física ou de ameaças, provoca sofrimento
psicológicos, intelectuais, físicos, sexuais e morais com o objetivo de coagir, humilhar, castigar
submeter, punir (PUGA, 2015, p. 653)”.

Neste sentido, trazer questões comumente existentes na esfera privada tornava-se cada
vez mais comum, evidenciando uma cultura masculina, como demonstra Manini:

Dessa maneira, expõem uma situação de discriminação dentro de uma cultura


masculina, denunciando, além de desigualdades legais em relação ao homem, uma
diferença cultural que desvaloriza a figura feminina mesmo nas relações mais intimas
e cotidianas. (MANINI, op. cit., p. 46).

867
Questionava-se a divisão que era feita pela sociedade entre o público e o privado,
formulando assim novos métodos políticos, sempre se utilizando de experiência de vida das
mulheres dos diferentes espaços que ela ocupava. Também se dava voz e visibilidade a um
grupo (movimento feminista) que se encontrava à margem da sociedade, esse que entendia e
determinava que as mulheres deveriam se utilizar do discurso político e cientifico e ter acesso
a participação desses espaços, que no caso, era basicamente ocupado pelo sujeito masculino.

Alegava-se que as mulheres seriam incapazes de discutir assuntos políticos, devido a


sua condição feminina, ou seja, “um estado físico e psicológico, a uma maneira de ser, mesmo
que historicamente construído (PEDRO, 2015, p. 124)”. Por outro lado, o avanço da
organização e da luta do movimento resulta em maior reconhecimento das propostas feministas
por parte da sociedade.

Depois que o grupo começou a ter mais visibilidade e se organizar em prol de interesses
específicos, produzindo trabalhos científicos em cima de pautas defendidas no movimento, ele
começou a produzir mudanças na sociedade, como o desenvolvimento de políticas públicas
ISSN: 2525-7501
voltadas para a saúde da mulher e a relação homem-mulher, tanto no espaço público quanto no
privado, verificando-se uma maior valorização das atitudes e capacidades femininas.

Nesse sentido, o conceito de gênero aparece na década de 1980 para “dar conta de
relações socialmente constituídas, que partem da contraposição e do questionamento dos
convencionados gêneros feminino e masculino, suas variações e hierarquização social”. Não
obstante, ele é elaborado coletivamente por feministas que “percebiam a vulnerabilidade dos
termos mulher ou mulheres, ao trazerem em seu bojo uma força de legitimação no corpo
biológico desses sujeitos”. (PEDRO & VEIGA, 2015, p. 304-305).

No início da década de 1980, parte do movimento feminista resolveu aderir à construção


do PT. Esta adesão ao partido não foi uma decisão unânime, havendo entre as militantes do
movimento posições distintas, o que acarretou em uma cisão no grupo. O grupo dissidente
procurava naquele momento aprofundar o debate sobre um partido vinculado a classe operária
e ao socialismo. (RIGO, 2008, p. 45).

868
Aquelas mulheres que vieram a participar da construção petista entenderam que a
criação do mesmo propiciaria a elas discutir a reorganização da sociedade junto da pauta
feminista. Assim, Rigo destaca que:

As feministas então trazem para o debate interno do PT elementos importantes como:


a identidade feminista com as lutas sociais (portanto uma estreita relação das
feministas com os movimentos sociais); a necessidade de construir um espaço de
debate e de organização das mulheres filiadas no PT e com isso a secretaria nacional,
as secretarias estaduais e municipais se constituem como este espaço; a importância
de o partido incorporar no seu programa político e nas disputas junto à sociedade a
concepção feminista; a necessidade de ampliar e potencializar a presença de
mulheres petistas no movimento de mulheres e nos movimentos sociais; a construção
da política do PT para as mulheres com forte destaque para as ações afirmativas.
(Ibid., p. 45-46).

Estas mulheres aderem à construção do Partido, mesmo esse sendo um partido de


operários e sindicalistas, voltado para as lutas sociais, pois acreditavam que na luta de classes
se deveria combater também o machismo e o racismo, não havendo assim nenhum tipo de
discriminação a qualquer que seja o grupo existente na sociedade. Com isso, se traz, para junto
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da construção do partido, bandeiras que defendiam interesses do movimento feminista, entre as
quais: a igualdade de sexos, a valorização da mão-de-obra feminina, melhores condições de
trabalho, entre outros. Também, elas trazem para a construção política do PT palavras de ordem
que condicionam a luta pelo socialismo, desde que associada ao feminismo, resultando no
princípio, "não há socialismo sem feminismo (GODINHO, 1998, p. 15)".

No que se refere a participação das mulheres na formação do PT em Santa Maria dos


anos 1980, parte-se do entendimento que as categorias indicadas no presente capítulo são
fundamentais para interrogar o ativismo político delas. Ainda, os registros da vida política do
PT na cidade de Santa Maria dos anos 1980 são de difícil acesso. O Diretório Municipal não
possui dados que evidenciem aqueles militantes que fundaram o partido e participaram de suas
instâncias decisórias. O acervo da Câmara Municipal de Vereadores, por sua vez, pouco pôde
contribuir ao intento desse trabalho.

Entende-se que a melhor forma para problematizar as relações de gênero, o movimento


feminista que aderiu ao PT, as mulheres que participaram do partido e a condição feminina nos
espaços de ativismo está na utilização da História Oral enquanto método. Como sugere Brum 869
(2015, p. 340), a partir de Alberti, “um método de pesquisa (histórica, antropológica,
sociológica) que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram ou
testemunharam acontecimentos, conjunturas, visões de mundo como forma de se aproximar do
objeto de estudo”. Ou seja, a mesma possibilita a aproximação via entrevistas com pessoas que
estiveram envolvidas na política partidária ou a testemunharam.

Como indica Zanchett, trata-se de:

Pensar a memória, não só no sentido de problematizar sua natureza, entre o lembrar


e o esquecer, mas, sobretudo, no que tange a sua democratização (...), de um tema
político de poder e representação sobre o qual estamos todos envolvidos, quer seja
por inclusão ou exclusão. (ZANCHETT, 2015, p. 450).

O estudo do ativismo político feminino: da escrita da história à abordagem das fontes

Analisar a presença de mulheres na política do PT, na cidade de Santa Maria dos anos
1980, enquanto agente histórico, procurando rastros de ativismo feminista, coloca a
ISSN: 2525-7501
problemática do que se busca evidenciar, da história que se pretende narrar. Ora, quem eram
essas mulheres, que experiências tiveram no contexto de lutas pela redemocratização do Brasil,
como essas experiências foram significadas na cidade de Santa Maria, que espaços políticos
elas ocuparam e que importância tiveram?

De certo, essas perguntas têm uma importância decisiva, no que se refere aquilo que se
pretende problematizar. Contudo, para responder essas perguntas deve-se antes interrogar sobre
o estatuto da memória, os dados disponíveis, a parcialidade das respostas. Neste sentido,
seguem abaixo algumas reflexões acerca das fontes utilizadas na pesquisa, sempre procurando
destacar os debates e impasses.

Talvez, a melhor forma de começar essa reflexão é destacando uma célebre tese de
Walter Benjamin “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘tal como ele
propriamente foi’. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela cintila num instante de
perigo (BENJAMIN, apud. GAGNEBIN, 2006, p. 40)”. Ou seja, deve-se abandonar a ideia de
regaste de uma realidade alcançável por meio de fatos. É necessária uma postura diferente, que
não procure uma descrição exata de como aconteceu aquilo que é alvo de investigação. Por 870
exemplo, interrogar a participação de mulheres na formação do PT em Santa Maria deve partir
do entendimento de que a ativação das lembranças de diferentes indivíduos ocorre de maneira
diversa e que o entendimento de cada um sobre determinados acontecimentos pode variar.

Não obstante, Gagnebin recupera outro adendo de Benjamin, o de que a escrita da


história “é objeto uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas aquele
preenchido pelo tempo-agora (...). (Ibid., p. 41)”. De certa forma, o filósofo alemão indica que
o historiador ao imergir na historiografia leva consigo perguntas do seu próprio tempo.
Portanto, as interrogações sobre o ativismo político de mulheres carregam consigo todo um
acúmulo de outras pesquisas, ainda que residual, a respeito do desenvolvimento das categorias
feminismo, condição feminina e gênero. O historiador não pode desconsiderar tudo o que já foi
feito na historiografia, assim como, não deve buscar um passado puro e verdadeiro, não
contaminado pela experiência do pesquisador.

Ainda, Gagnebin destaca “o liame entre o rastro e a memória”, interrogando uma


memória tensionada pela “presença e ausência”, a saber:
ISSN: 2525-7501

Presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença


do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente. Riqueza
da memória, certamente, mas também fragilidade da memória e do rastro. (Ibid., p.
44).

Ora, a condução de entrevistas de mulheres ativistas de um dado partido há mais de


trinta anos pode conduzir a essa perspectiva de Gagnebin. Que lembranças essas ativistas
possuem daquele período militante e talvez distante? Que recordações perdidas podem irromper
no presente como um lampejo momentâneo daquilo que se perdeu? Ou ainda, o que permanece
da memória e do rastro? Qual o alcance da recordação ou o quão diferente elas podem ser,
dependendo do sujeito entrevistado?

Essas questões permitem questionar o esquecimento e suas diversas faces, ou melhor,


buscam impedir que ele continue a se manifestar. Isto significa dar visibilidade as lutas do
período de redemocratização e, principalmente, a participação do movimento feminista,
destacando o ativismo político dessas mulheres. Afinal, pode-se afirmar que tanto a história de 871
formação do PT quanto a da redemocratização do país são narrativas essencialmente
masculinas. Assim, pode-se indicar a ocorrência na historiografia, não de um esquecer natural
do ativismo dessas mulheres, mas como sugere Gagnebin, quando trata “das formas de
esquecimento duvidosas: não saber, saber mas não querer, fazer de conta que não se sabe,
denegar, recalcar (Ibid., p. 101)”. Trata-se, portanto, de lutar contra o esquecimento e de
valorizar as diferentes trajetórias dessas mulheres.

Também, deve-se ressaltar que a luta contra o esquecimento incorpora,


necessariamente, a busca de rastros e restos que, no dizer de Gagnebin, “sobram da vida e da
história oficiais”. Contudo, essa busca não se efetua apenas como um ritual de protesto, como
indica a autora:

Também cumprem a tarefa silenciosa, anônima mas imprescindível, do narrador


autêntico e mesmo hoje, ainda possível: a tarefa, o trabalho de apokatastasis, essa
reunião paciente e completa de todas as almas no Paraíso, mesmo das mais humildes
ISSN: 2525-7501
e rejeitadas, segundo a doutrina teológica (julgada herética pela Igreja) de Orígenes
(...). (Ibid.)

A luta contra o esquecimento do ativismo político das mulheres durante a formação do


PT na cidade de Santa Maria resultou na busca de reunir pacientemente essas almas, ainda que,
durante o trabalho de conclusão de curso, não tenha sido possível entrevistar todas aquelas
militantes identificadas. Existem algumas explicações para a afirmação acima. Enquanto
algumas não foram localizadas em tempo hábil para a realização de entrevista, outras não
quiseram compartilhar sua experiência daquele período.

Talvez, uma consideração acerca da recusa de estabelecer um diálogo com o


pesquisador possa ser encontrada em Candau:

Inimigo da memória, o esquecimento, “segredo inquietante da lembrança”, por vezes


objeto de medo e tentação, impõe-se sempre sobre as lembranças. Se “nossa mente é
porosa para o esquecimento”, é sem dúvida porque encontra ali um abrigo, pois o
esquecimento, tranquilizador como o vinho de Helena, pode acalmar a dor – aqui o
drama do ciumento que não pode esquecer nada do que poderia ser o sinal da mentira
872
e da infidelidade -, e, de outro lado, porque sem o esquecimento, nossas lembranças
não teriam nenhum alívio. (CANDAU, 2014, p. 127).

Ainda, essa recusa de memória ou “essa memória esquecida” não pode ser considerada
pelo historiador enquanto um elemento de fragilidade da pesquisa, antes deve ser entendida
como uma possibilidade. Como indica Candau, “ele pode ser o êxito de uma censura
indispensável a estabilidade e a coerência da representação que um indivíduo ou os membros
de um grupo fazem de si próprios (Ibid., p. 127)”. Portanto, cabe ao historiador interrogar os
motivos dessas memórias não serem lembradas.

Por outro lado, deve-se ressaltar que as entrevistas realizadas para a confecção da
monografia dividiam-se em dois níveis. O primeiro continha perguntas básicas referentes a
existência do partido, pois não existe bibliografia sobre a formação do PT na cidade de Santa
Maria. Também, o diretório do partido não possui acervo documental daquele período, tornando
assim necessárias perguntas sobre a fundação do partido, a presença de mulheres no primeiro
diretório municipal, o funcionamento partidário e os grupos envolvidos, as relações do partido
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com os movimentos sociais da cidade, a composição social e de gênero, a participação de
mulheres nas instâncias partidária durante a década de 1980. Já o segundo nível de perguntas
traz questões mais íntimas, invocando lembranças individuais e coletivas, tais como, os
preconceitos que estavam suscetíveis na militância partidária, interna e externamente, os
movimentos sociais feministas da cidade com suas reivindicações e níveis de organização.
(FLORES, 2014, p. 51-54).

No presente artigo, interessa destacar o segundo nível de perguntas. Afinal, este


comporta lembranças íntimas que variam de modo mais intenso a cada entrevistado. Por
exemplo, o reconhecimento do machismo – ainda que velado – é recorrente nas respostas das
mulheres entrevistadas, quando recordam de sua militância naquele período. Também, o espaço
reduzido de participação de mulheres nas instâncias de decisão partidárias fica evidente, ainda
que apontem a participação de mulheres de destaque. (Ibid., p. 51-61). Contudo, salienta-se que
a amostragem de entrevistas na monografia foi reduzida, assim como, não foi possível
aprofundar as lembranças de episódios específicos que ajudassem a problematizar as trajetórias
individuais e cruzadas dessas mulheres que participaram da formação do PT em Santa Maria.
873
Ainda, a existência de mulheres ativistas naquele período abertas ao diálogo e que, ainda
hoje participam da política, possibilita que estas lembranças sejam mobilizadas para uma maior
identificação do grupo ao qual pertence atualmente. Isto significa mobilizar “a memória
autorizada de uma tradição”, com indica Candau:

Essas lembranças encontram sua justificativa não apenas em assegurar uma


continuidade fictícia ou real entre o passado e o presente, mas também em satisfazer
uma lógica identificadora no interior do grupo, mobilizando deliberadamente a
memória autorizada de uma tradição. O ato da memória que se manifesta no apelo à
tradição consiste em expor, inventando se necessário “um pedaço de passado
moldado às medidas do presente” de tal maneira que possa se tornar uma peça do
jogo identitário. (Ibid., p. 122).

Ou seja, o historiador deve estar atento aos aspectos fictícios da memória coletiva, ainda
que seja muito difícil o seu reconhecimento. No entanto, esta dificuldade pode ser minimamente
satisfeita a partir do conhecimento dos indivíduos sobre o tempo presente ao qual estão
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inseridos. Por exemplo, trabalhar com um determinado grupo político buscando investigar sua
memória coletiva, deve estar em sintonia com a situação atual do grupo investigado.

Por fim, ressalta-se que a relação história – memória é complexa, pois – conforme
Candau – a primeira:

Pode ser parcial e responder a objetivos identitários. Na prática, em suas motivações,


seus objetivos e, por vezes, seus métodos, ela toma por empréstimo alguns traços da
memória mesmo que trabalhe constantemente para dela se proteger. A história é, por
essa razão, a “filha da memória”. (Ibid., p. 133).

O que se quer dizer, é que não há história sem memória. Afinal, como interrogar o
passado sem a interlocução do presente, sem a memória nas suas diferentes formas. Talvez, as
preocupações do historiador resultem numa espécie de trabalho constante de proteção da
memória. Contudo, ele não consegue fugir dela. Portanto, a pesquisa desenvolvida no PPGH
deve estar atenta as relações desenvolvidas pelo historiador.
874
CONCLUSÃO

O presente artigo buscou problematizar a pesquisa em desenvolvimento PPGH da


UFSM, incorporando categorias de análise (Gênero, Feminismo, Condição Feminina), pouco
discutidas no trabalho de conclusão de curso. Entende-se que as mesmas possibilitaram
aprofundar os questionamentos realizados no trabalho anterior.

Contudo, verificou-se a necessidade de um trabalho prévio que abordassem conceitos


relativos ao ofício do historiador, como os de memória, lembrança, esquecimento e tempo, com
o intuito de repensar a pesquisa vigente, no que se refere aos limites das fontes que serão
trabalhadas, em especial, relacionada à memória, sobretudo oral. Desta forma, as questões
elencadas a partir das reflexões no segundo momento desse artigo, permitirão repensar e
renovar a pesquisa vigente sobre as trajetórias individuais e cruzadas de mulheres durante a
formação do PT na cidade de Santa Mariana década de 1980.

Portanto, indica-se que os autores trabalhados na disciplina de “Seminário História,


Poder e Cultura” e utilizados neste artigo, foram fundamentais para iniciar a renovação da
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pesquisa em desenvolvimento. Sem as discussões possibilitadas pelos mesmos, as dificuldades
encontradas na monografia ainda persistiriam, pois, o tratamento das fontes, em especial da
memória, foi fundamental para esse intento.

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ISSN: 2525-7501
O FEMINISMO NA (DES)CONSTRUÇÃO E NO (DES)PRINCESAR DA
EDUCAÇÃO FAMILIAR SEXISTA446

Luana Borges Lemes447

RESUMO

A educação familiar é um dos pilares decisivos em nossas percepções enquanto indivíduos


sociais, que se soma aos fatores de personalidade e entorno de vivências. Por isso, é importante
que a família ensine às crianças sobre direitos igualitários de gênero, com métodos adequados
a cada idade, orientando comportamentos não sexistas, bem como visões democráticas da
pluralidade social e humana. A partir disso, o feminismo deve pensar no núcleo familiar como
fonte de revolução para criar novas gerações com igualdade de gênero, que reconheçam suas
tradicionais educações sexistas e queiram mais do que mulheres empoderadas, promovam
também uma educação diferente, por uma desconstrução do universo dicotômico limitante e
romantizado imposto a meninas e meninos, de princesas frágeis e delicadas e de príncipes
corajosos e dominantes. Assim, com novos métodos e referências na educação familiar
mostram-se novas possibilidades independente de sexo ensinando, ao mesmo tempo, a
importância do respeito ao espaço e decisões na vida do outro(a) e conferindo uma visibilidade
positiva da luta feminista. Isso será desenvolvido a partir de revisão bibliográfica e de exemplos
para que pais, mães, educadores(as) e professores(as) possam refletir e serem norteados(as)
para seguir uma educação não sexista, reconfigurando tais referências através da família, da
877
escola e da mídia.

Palavras-chave: Gênero; família; feminismo.

INTRODUÇÃO

Com a intenção social de fomentar uma geração que tenha consciência ética e que
valorizem e respeitem a diversidade de pessoas através da educação familiar é preciso
considerar o contexto em se aplicam categorias de entendimento e integração como etnia, classe
econômica, crença religiosa e gênero, em que esse último tem sido cada vez mais percebido

446
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
447
Comunicóloga pelo Centro Universitário Franciscano; Mestranda em História pela Universidade Federal de
Santa Catarina e bolsista do CAPES. Orientanda da Profa Dra. Joana Maria Pedro. E-mail
lu__borges@hotmail.com
ISSN: 2525-7501
como cerne das influências de relações de poder em sociedade. Essa avaliação advém de
relações culturais que permeiam os comportamentos de homens e mulheres, estes inseridos em
universos bilaterais isolados que limitam potencialidades de ambos os sexos.

Para equalizar esse panorama social de gênero as ideias do feminismo serão acionadas
para pensar o núcleo familiar como fonte de revolução e para criar gerações que promovam a
igualdade de gênero e reconheçam suas tradicionais educações sexistas e as marcas disso nas
relações de opressão de gênero. Para além de mulheres feministas que se tornam empoderadas
e de homens que reconheçam e apoiem tal movimento social e político, é de suma importância
que também eduquem de maneira diferente, que seus filhos e filhas superem o universo
conservador que romantiza a meninas e meninos com referências de princesas frágeis e
delicadas e de príncipes corajosos e dominantes. Tal imposição limitante de gênero se reflete
diretamente nas diversas relações sociais da vida adulta notadas com estereótipos sexistas que
frustram moralmente e desencadeiam violências físicas. Visto isso, novas reflexões e condutas
familiares a partir de uma educação não sexista, representam uma maneira profícua de analisar
e revolucionar a categoria gênero como uma característica que permeia todas as esferas sociais,
atitude amplificadora do horizonte de oportunidades e escolhas. Assim, com novos métodos e
878
referências na educação familiar é possível promover mudanças comportamentais nas crianças
a partir dos pais e mães que têm preceitos feministas. Estes, independentes do sexo
potencializam a capacidade racional e emocional de cada sujeito social e, ao mesmo tempo,
promovem o respeito ao espaço e decisões na vida do outro.

Essa perspectiva e ação social ainda confere uma visibilidade positiva da luta feminista
e envolve mães feministas, suas famílias e seu entorno social. Essa temática é desenvolvida
neste trabalho a partir de revisão bibliográfica e de exemplos para que pais, mães,
educadores(as) e professores(as) possam refletir e nortear uma educação não sexista,
reconfigurando as referências de gênero na família, na escola e na mídia, três segmentos
basilares da influência educacional em sociedade. Diante disso, se ganha uma sociedade com
educação que busca por equidade de gênero, assim como no feminismo, algo que exige uma
criação questionadora de padrões e que estimule a autoestima na criança e a valorização de sua
autenticidade.

Entretanto, quando o questionamento em torno da desconstrução sexista na família


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atinge as dimensões de sexualidade isso gera uma tensão principalmente nos pais e mães. É
preciso deixar claro que uma educação não sexista não significa educar a criança para ser
homossexual. Esse preconceito falacioso está fortemente associado à heteronormatividade que
a sociedade impõe como natural em uma cultura que educa sobre o que é “normal” e
moralmente correto, que rejeita reflexões que expandam tais noções conservadoras de ser
homem e ser mulher que induzem a forma heterossexual. Essa resistência à reflexão, muitas
vezes, gera discursos de ódio e homofobia, em uma tradição que não é saudável. Para
justamente contornar essa situação que está cada vez mais presente a partir dos estudos de
gênero no século XXI é que se necessita de uma educação alternativa, com visão
problematizadora dessa cultura que normaliza e normatiza sexos em apenas duas caixas e com
restrições a cada um. Nesse contexto, o tradicional não é o melhor, nunca foi, aprisiona
identidades e potencialidades de muitas pessoas. Para evitar isso e principalmente criar gerações
com mais autenticidade e igualdade de direitos é que deve ser pensada a educação não sexista.
Com isso, constrói-se uma nova cultura educacional familiar precisa progredir e resistir nos
lares de todas as pessoas que gostariam de ver seus filhos e filhas desenvolvendo plenas
capacidades cognitivas, físicas e emocionais ao brincar, ao decidir a própria vida, ao se 879
relacionar na carreira profissional e no campo afetivo. Essa educação não sexista vem para
(in)comodar e desconstruir a educação tradicional baseada no machismo institucionalizado
socialmente, por isso exige um esforço de todos e todas para formar essa nova geração com
igual valorização da paternidade e da maternidade junto a consciência feminista ressonante em
todos âmbitos sociais para conduzir a igualdade de gênero a partir da base familiar.

A implicação disso é gerar uma educação que desmistifica as referências hegemônicas


sexistas de princesas e príncipes na mídia, reformula a educação familiar e agrega esse
conhecimento ao que se oferece na escola para ampliar o horizonte de possibilidades as sexos.
Desse modo, os três fundamentais pilares da formação do indivíduo social visados aqui se
tornam fontes revolucionárias do entendimento da educação não sexista das novas gerações.
Assim, a reconstrução das relações hierarquizadas de gênero e geração com educação não
sexista abre caminhos possíveis para compreender a importância de um pensamento feminista
na família.
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Cultura familiar e as construções do feminino e do masculino

A representação das mães de família atualmente tem formado um novo sentido de poder
social, em que muitas vezes é encontrado na liderança dos núcleos familiares. Essa mudança
de comportamento se deve em grande parte pela consciência feminista que promove a
autonomia das mulheres mães que aprendem a gerir a própria vida e são cientes dos papeis
sexistas que devem ser desconstruídos. Esse despertar ocorre a partir da renda que vem
principalmente pelo trabalho dessas mulheres e também da implantação de um convívio com o
compartilhamento igual das tarefas domésticas entre todos integrantes da família. Desse modo,
forma-se uma sociedade em que não mais sobrecarrega as mulheres como se fosse naturalmente
uma habilidade exclusiva feminina o cuidado com o lar e com a prole conforme a educação
familiar tradicional patriarcal. Tal educação obsoleta é lembrada pelos estudos de
masculinidades de Grossi (2004, p. 18): “na divisão sexual do trabalho tradicional, o homem
está ligado ao mundo público do trabalho e a mulher ao mundo privado – a casa, o lar, os filhos”.
Questionando essa tradição machista, as famílias têm sido chefiadas por mães que buscam uma
educação diferente para suas próximas gerações, pois a partir do empoderamento percebem o
quanto a luta feminista, que visa direitos igualitários de gênero, deve expandir para uma
880
educação baseada na relação familiar não sexista.

A base desta discussão para formar uma educação familiar não sexista vem sendo
construída há muito tempo com inúmeras pesquisas, bibliografias que tratam de gênero,
feminismo, masculinidades e feminilidades que serão sintetizadas daqui em diante. Os estudos
de gênero propõem exatamente a reflexão necessária para entender e combater o sexismo, que
absolutamente deve ter espaço nos estudos feministas, políticos, sociológicos, psicológicos,
biológicos, históricos, entre outros. Isso é grifado pela historiadora Joana Maria Pedro (2011,
p. 270):

“Já sabemos quanto o feminismo, o movimento de mulheres e o de gays e lésbicas


têm contribuído para que as reflexões sobre gênero sejam implementadas de forma
interdisciplinar. O campo historiográfico, entretanto, tem sido um dos mais
resistentes. A acusação de ser uma “história militante”, portanto, não “científica”,
continua a assombrar, mesmo quando há muito já se abandonou a certeza da
neutralidade (...) categorias como ‘classe’, ‘raça/etnia’, ‘geração’ também são
tributárias de movimentos sociais e, obviamente, ligadas a contextos específicos; no
entanto, não parecem sofrer a mesma ‘desconfiança’ e desqualificação. Considero,
com Reinhart Koselleck, que as categorias de análise têm história e, inspiradas em
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Roger Chartier, que elas são apropriadas por historiadoras e historiadores e
instrumentalizadas pelos movimentos sociais”.

Pedro trata da história que a categoria gênero carrega e dessas relações que são
transversais na análise que enriquece o fazer história, se tornando uma perspectiva
imprescindível no entendimento da história da humanidade, que ganhou peso e clareza ao
acessarmos a história das mulheres nas últimas décadas, que ao longo dos séculos foi contada
majoritariamente por homens. Isso é reforçado quando Joana Mara Pedro (2011, p. 277) cita a
função dos estudos de gênero que vem “incluindo as categorias ‘mulher’, ‘mulheres’,
‘feminismo’, ‘feminilidades’, ‘masculinidades’ e ‘relações de gênero’, têm buscado se colocar
no centro do debate historiográfico”. Com isso o gênero sai das margens do saber
historiográfico e busca novas maneiras de pensar construindo uma história mais legítima e
representativa a todos(as).

Com isso, é descentralizado o poder hegemônico edificado na sociedade patriarcal em


que predomina a representação masculina. Sobre tal reflexão de poderes desiguais, Saffioti
mostra que o conceito de gênero acompanha a humanidade desde seus primórdios, sendo mais 881
amplo que o patriarcado, o qual advém da industrialização e do capitalismo. E nisso, a
supremacia patriarcal trouxe consigo a desigualdade e opressão de gênero, mas que se apresenta
apenas como uma possibilidade das relações de gênero quando pensamos em mudança e
evolução social, algo retratado por Saffioti (2004, p. 136) quando cita algo facilmente aplicado
a violência doméstica que afeta diversos lares: "tratar esta realidade exclusivamente em termos
de gênero distrai a atenção do poder do patriarca, em especial como homem/marido,
‘neutralizando’ a exploração-dominação masculina”. Isso ocorre quando o conceito de
patriarcado aparece explicitamente e demanda segundo a autora a importância de se pensar nas
relações patriarcais antes das relações de gênero. Para Saffioti (2004, p. 136) o gênero está
longe de ser um conceito neutro, ele “carrega uma dose apreciável de ideologia”, a patriarcal,
que encobre a estrutura de poder desigual entre mulher e homens e assim o conceito distorcido
de gênero binário só alimenta esse sistema de opressão.

A atitude dos estudos históricos ao inserir o gênero como uma categoria analítica
contribui para a desconstrução do patriarcado, traçando assim uma nova tradição científica que
amplia as opções de fontes incluindo pessoas comuns, quem sempre estiveram na história, como
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as mulheres. Isso é lembrado por Pedro (2005, p. 85) quando cita que, cientes do seu tempo “a
historiadora ou o historiador que se engaja nesta tradição não poderia ficar alheia aos
movimentos sociais das mulheres em suas múltiplas configurações, nos múltiplos feminismos
que, desde meados do século XIX, reivindicavam direitos e o fim das hierarquias baseadas no
sexo”. Essa tardia utilização de categorias de análise “gênero” e “mulher” se deve também ao
modo universal de enxergar o sujeito humano na história representado pelo ‘homem’, como se
igualmente considerasse as mulheres. Para corroborar a revelação do sujeito mulher nos estudos
de gênero, Pedro (2005, p. 90) cita a visão de Thomas Laqueur que é contrária às recorrentes
abordagens sobre diferenças entre os sexos que priorizam a antecedência do sexo no ser
humano. O autor declara que o gênero constitui o sexo, e através da história da medicina
evidencia como tal diferença era uma invenção com origem no século XVIII:

Ou seja, que até esta época havia o registro de um único sexo – o masculino: neste
caso, a ‘mulher’ era considerada um ‘macho incompleto’. De acordo com este autor,
foi a partir de então que se reforçou a diferença, passando ao registro de dois sexos,
considerados muito diferentes.

Tais representações binárias entre feminino e masculino fruto da cultura histórica


882
patriarcal são notadas no núcleo familiar com as figuras maternas e paternas alocadas em papeis
de gênero direcionados pelo sexismo que sustenta o machismo instituído nas relações
interpessoais a partir disso. Assim muitos pais e mães têm se engajado para tal mudança
educacional, o que exige ao mesmo tempo um autoconhecimento para rever os próprios
preconceitos machistas e hábitos sexistas para então transmitir aos seus (suas) descendentes
novas referências e um pensamento convicto para enfrentar o entorno social em que
presumidamente ainda resistirá em ser sexista, tendo que ser questionado e reeducado. Esse
padrão que se rompe ocorre justamente a partir da estrutura da família, que é fundamental ao
forjar o caráter junto à personalidade dos indivíduos sociais, em atitudes e preconceitos que
exercem poder de influência sobre ideias na formação moral e política dos sujeitos sociais.

Tal contexto estabelece relações de poder desiguais, em que a força equalizadora de


poderes entre os sexos que, principalmente pelos estudos de gênero e com o empoderamento
do feminismo, articula-se uma nova cultura familiar que se desprenda dos moldes patriarcais
em que se vive no Brasil em grande parte do mundo. Essa educação familiar foi consolidada
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em uma história secular de agnação que exalta a figura masculina como hereditariedade de
valor financeiro e patrimonial, algo estreitamente relacionado ao valor do sobrenome de uma
família e suas gerações em sociedade. Essa história da família que estabeleceu o patriarcado
sexista se inicia, segundo Engels (2005) pela denominação consanguínea que inicialmente
permitia reconhecer apenas a linhagem feminina, sem conhecer a paternidade. Ao longo das
restrições desenvolveu-se um panorama de família enraizado na cultura social a partir da
propriedade privada baseada na capacidade de produção do indivíduo, enquanto os homens
acumularam excedentes de trocas e novas riquezas e as mulheres tinham o poder sobre os filhos.
E ao surgir o modelo monogâmico, o homem assume uma posição destacada na comunidade
familiar e se faz necessário gerar um legado de heranças produzidas aos filhos. Essa transição
suprimiu o direito materno e derivou a família fundamentada no predomínio patriarcal, na
qual conforme Engels (2005, p. 65), “para assegurar a fidelidade da mulher e, por conseguinte,
a paternidade dos filhos, a mulher é entregue incondicionalmente ao poder do homem”. E ainda,
para o marido como cita Engels (2005, p. 69), a mulher era “mãe de seus filhos legítimos, seus
herdeiros, aquela que administra a casa e comanda as escravas” em um modelo que a
monogamia era obrigatória somente para mulheres. Nesse contexto histórico, explica-se o 883
início da autoridade social falocêntrica através do matrimônio quando ainda era um negócio
privado entre chefes de família, em que a participação da mulher era passiva e submissa,
também expressa pela lei adulteriis, que segundo Foucault (2005, p. 80) tinha a intenção era
"condenar por adultério a mulher casada que mantém relações com um outro homem, e o
homem que mantém relações com uma mulher casada (e não o homem casado que tivesse
relação com uma mulher não casada)”. Isso segundo o autor retrata a apreciação ética de tal
sistema parental e a sanção pública patriarcal.

Verifica-se nessa hierarquia de relações de poderes familiares a subjugação feminina à


servidão doméstica. Esses fatos conduzem ao pensamento de Beauvoir (1949, p. 91) sobre a
noção primitiva de queda de um reinado feminino na família por meio da:

hipótese proposta por Baschoffen que Engels retomou: a passagem do matriarcado


para o patriarcado parece-lhe ‘a grande derrota histórica do sexo feminino’. Mas, em
verdade, essa idade de ouro da mulher não passa de um mito. Dizer que a mulher era
o Outro equivale a dizer que não existia entre os sexos uma relação de reciprocidade:
Terra, Mãe, Deusa, não era ela para o homem um semelhante: era além do reino
humano que seu domínio se afirmava: estava portanto fora desse reino. A sociedade
sempre foi masculina; o poder político sempre esteve nas mãos dos homens.
ISSN: 2525-7501

Visto isso, as relações recíprocas entre homens considera o outro, o semelhante, sempre
sendo um indivíduo do sexo masculino. Parâmetro social que posiciona as mulheres como bens
de troca entre homens, uma alteridade de aspecto objetificado que qualifica as mulheres desde
então no cenário machista advindo de tal modelo familiar. Nessa relação matrimonial, segundo
Beauvoir (1949, p. 92) no século XX a mulher “se encontra sempre sob a tutela dos homens; a
única questão consiste em saber se após o casamento ela fica sujeita à autoridade do pai ou do
irmão mais velho ou se ela se submete, a partir de então, à autoridade do marido”. E, por essa
razão as mulheres se tornam mediadoras da filiação matrilinear, nunca a detentora do direito
ancestral.

Essa realidade de matrilinhagem é possível ser revertida na atualidade do século XXI,


devido à emancipação feminina no espaço público, intelectual e profissional em sociedade.
Autonomia de importância crucial segundo Beauvoir (1949), visto que na época citou a situação
familiar que prejudicava tal empoderamento feminino em que os pais ainda educavam as filhas
visando o casamento em detrimento do desenvolvimento pessoal delas. Tal encargo
884
empregatício soava servidão com remuneração desvalorizada, oferta sexista que para a maioria
das trabalhadoras não representava dignamente uma conquista social de liberdades pela
autonomia econômica. Entretanto, o profícuo nesse cenário que ainda hoje se repete, segundo
Beauvoir (1971, p. 176) foi o “fato de ter tomado consciência de si e de poder libertar-se
também do casamento pelo trabalho, a mulher não mais aceita a sujeição com docilidade”.
Atitude que rompe com o mito da feminilidade imposta às mulheres, explicitada por Friedan
(1971, p. 71) quando alega que:

Na luta pelo direito de participar de tarefas importantes e tomar decisões na sociedade


ao mesmo nível que seu companheiro, elas negavam a própria natureza feminina, que
só encontra a sua realização através da passividade sexual, da aceitação do domínio
masculino e da maternidade.

Esse pensamento vanguardista impulsionou uma nova história das mulheres, as quais se
empoderaram acerca de suas potencialidades e tomaram consciência do poder feminino como
sujeito transformador da sociedade. Descoberta ideológica pessoal que, conforme Beauvoir
(1971, p. 92) não dependia necessariamente da “presença de uma mulher-chefe, de uma rainha
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à frente de uma tribo não significa, em absoluto, que as mulheres sejam nestas soberanas”,
apontando o fator identitário do indivíduo feminino como precursor do pensamento
empoderado. A partir desse perfil as mulheres começavam a se reconhecer como detentoras do
comando familiar e de suas pretensões sociais. Assim, formam-se novos contratos sociais,
direitos que o indivíduo cede ou aliena, em parte, para instituir a soberania, que como aponta
Foucault (2012, p. 146) é uma vantagem de poder em que “não é o consenso que faz surgir o
corpo social, mas a materialidade do poder se exercendo sobre o corpo dos indivíduos”.
Seguindo tal ideia, o poder consciente constitui agrupamentos de mulheres com pensamento
libertário das relações de poder masculinas prevalecentes, que por isso melhor compreendem
e, muitas vezes, aderem ao feminismo como representação de luta gerando um corpo social
feminino, ou força coletiva que se torna visível e militante.

Nessas relações de poderes historicamente machistas se identifica a resistência e se faz


necessário o agente transformador como a intervenção de poder feminino a fim de assegurar
sua igual representação histórica através do feminismo. Assim, organizando a motivação para
desencadear e manter um novo poder de conhecimento feminino, Foucault (2012, p. 19) ressalta
sobre:
885
A grande importância estratégica que as relações de poder disciplinares desempenham
nas sociedades modernas depois do século XIX vem justamente do fato delas não
serem negativas, mas positivas, quando tiramos desse termo qualquer juízo de valor
moral ou político e pensamos unicamente na tecnologia empregada. É então que surge
uma das teses fundamentais da genealogia: o poder é produtivo de individualidade. O
indivíduo é uma produção do poder e do saber. (Machado, 2007, p. XVII)

É possível encontrar o poder individual produzido a partir do feminismo que progride


ao tornar conscientizado no imaginário feminino a busca por reverter e equivaler o privilégio
econômico detido pelos homens, bem como a importância social como indivíduos. Decorre
disso em grande parte, que a mulher deixou de fazer escolhas voltadas para o homem, e sim
para ela mesma, desconstruindo o histórico de poder citado por Beauvoir (1971, p. 97):

Desde a origem da humanidade, o privilégio biológico permitiu aos homens


afirmarem-se sozinhos como sujeitos soberanos. Eles nunca abdicaram o privilégio;
alienaram parcialmente sua existência na Natureza e na Mulher, mas reconquistaram-
na a seguir. Condenada a desempenhar o papel do Outro, a mulher estava também
condenada a possuir apenas uma força precária: escrava ou ídolo, nunca é ela que
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escolhe seu destino.

Desse modo, as mulheres lutavam por seus papeis sociais em prol dos seus direitos de
uma educação superior e profissional, jornada de busca da identidade feminina até então. A
realidade do entusiasmo que fizeram essas mulheres deixarem o lar sugeriu, conforme Friedan
(1971, p. 71), “um ato de rebeldia, uma violenta negação da mulher como era então definida.
Foi a necessidade de uma nova personalidade que conduziu as feministas a abrir trilhas inéditas
para a mulher”. Alguns desses caminhos de militância foram árduos e outros falhos, mas a
autenticidade da busca se fazia necessária e justificava a crescente motivação feminista. A partir
disso a história das mulheres foi retomando o valor familiar perdido pela filiação uterina que
por séculos foi a figura genitora da família que majoritariamente, apesar de gerir a casa e a vida
dos filhos, não recebia grande valor social, nem de continuação familiar. Nesse modelo,
mulheres como indivíduos sociais eram vistas como incapazes de algo além desse ambiente
familiar, um lugar pré-determinado pela cultura machista como passivo e submisso ao poder
masculino, além de estarem alienadas da política e da economia. Essa questão é conscientizada,
886
debatida e confrontada atualmente por muitas mulheres, principalmente por meio do
feminismo, mesmo não sendo desafio terminado, o espaço público é uma crescente conquista
feminina em equivalência de potenciais produtivos no mercado de trabalho, ainda enfrentando
o padrão patriarcal de sobrenomes e salários desvalorizados.

Tais aspectos históricos culturais sobre família em sociedade revelam um ponto central
que fortalece negativamente as relações de poderes da opressão patriarcal, o sexismo. A partir
dessa educação basilar se torna possível compreender os estereótipos limitantes de gênero que
designam o feminino e o masculino que ainda permeia as relações sociais no século XXI. Nessa
trajetória o ser mulher surgiu de uma concepção arquitetada no sistema patriarcal, que como
dirige Beauvoir (1971, p. 7), implica na ideia de que “todo ser humano do sexo feminino não
é, portanto, necessariamente mulher; cumpre-lhe participar dessa realidade misteriosa e
ameaçada que é a feminilidade”. Com isso, as mulheres se percebem desafiadas também a
(re)conhecerem o significado de sua maternidade e feminilidade inerentes a elas como
valoração cultural. Obrigam-se a pensar que não se nasce mulher, se torna mulher como aponta
a autora. Atributos esses que serviram de base para a desvalorização da figura feminina no
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âmbito profissional e familiar em interdependência com as relações masculinas.

Diante dessa problematização da feminilidade na história, em uma visão social


essencialmente relacional é importante pensar no conceito de masculinidade hegemônica visto
aqui como estrutura que sustenta o patriarcalismo. Tal masculinidade passou a ser entendida
como a dominação dos homens sobre as mulheres, mas que talvez uma minoria de homens a
adote, apesar de ser normativa para vida de ambos os sexos. Ela dita, segundo Conell e
Messerschmidt (2013, p. 245) a “forma mais honrada em ser um homem, ela exige que todos
os outros homens se posicionem em relação a ela e legitima ideologicamente a subordinação
global das mulheres aos homens. O conceito de masculinidade hegemônica é mais abstrato do
que descritivo”. E ainda, Conell e Messerschmidt (2013, p. 249) citam que conceito de
masculinidade é criticado por ter sido alocado em uma matriz heteronormativa de gênero que
“essencializa a diferença macho-fêmea e ignora a diferença e a exclusão dentro das categorias
de gênero. (...) é atribuído o fato de esse permanecer logicamente numa dicotomização do sexo
(biológico) versus gênero (cultural), dessa forma marginalizando ou naturalizando o corpo”.

Essa base do sexismo desvaloriza a multiplicidade das construções sociais, de 887


identidades femininas e masculinas, que se encontram em diferentes corpos e formam diferentes
traços de personalidades. Masculinidades, portanto, devem ser entendidas como práticas e não
identidades, são dinâmicas de poder em conjunto de práticas sociais entre relações de gênero,
o que acaba legitimando o patriarcado por gerações. Por isso, faz-se necessária uma
compreensão relacional de gênero, com análise em todos os níveis das relações mulher-homem,
mulher-mulher, homem-homem, constituindo os campos de forças sociais. Ainda, é preciso
resignificar esse contexto de dominação masculina, pois conforme Conell e Messerschmidt
(2013) o termo hegemonia aqui não designa a masculinidade da maioria dos homens, e sim
aquela soberana na sociedade. Então, é preciso diferenciar a noção dessa dominação dissociada
da força bruta, mas que depende efetivamente do consenso e participação dos grupos
subalternos. Ou seja, é o poder que os subordinados dão aos autoritários, realidade que pode se
reverter por meio do poder reconhecido em si, como a consciência feminista ao afrontar e
desconstruir a cultura machista.

A hierarquia das masculinidades traz esse padrão de hegemonia, que não é simplesmente
baseado na força como afirmam Conell e Messerschmidt (2013, p. 263) em que o “consenso
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cultural, a centralidade discursiva, a institucionalização e a marginalização ou a deslegitimação
de alternativas são características amplamente documentadas de masculinidades socialmente
dominantes”. Também os autores lembram a ideia original de que a masculinidade hegemônica
não necessariamente estabelece uma regra comum no cotidiano de meninos e homens, mas atua
através de exemplos de personalidades sociais que inspiram autoridade simbolizando tal
masculinidade viril e dominadora, imposição sexista para os homens que contribui para a
sustentação do machismo. Nesse sentido, instituem-se noções de “homem de verdade” e
“mulher de verdade”, perspectivas geralmente relativas e parciais que definem sistemas de
exclusão discursiva. Sobre isso, criam-se separações arbitrárias, que se organizam em
circunstâncias históricas, se deslocam constantemente e confrontam proposições falsas no
interior do discurso a fim de atender uma vontade de saber institucionalizada socialmente, que
como cita Foucault (1996, p. 17) “é reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto
de práticas como a pedagogia, como o sistema dos livros, da edição das bibliotecas, como as
sociedades de sábios outrora, os laboratórios de hoje”. E ainda, o autor cita que essa vontade é
reconduzida principalmente “pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é
valorizado, distribuído, repartido”. Sistemas discursivos que excluem a partir da palavra 888
proibida, da segregação da loucura e da vontade de verdade, ou seja, a convenção através do
discurso que exerce poder de coerção delimitando o que se torna (moralmente) aceito
socialmente ou não, o mesmo que acontece na cultura machista que determina estereótipos
opressivos aos sexos.

A identidade feminina e masculina e a importância de uma educação não sexista

A educação que se volta à referências não sexistas se torna capaz de deslocar o centro
masculino hegemônico de poder, considerando que não há conforme Foucault (2012, p. 10),
“algo unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em
constante transformação. O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e,
como tal, constituída historicamente”. Essa noção de poder por meio de práticas sociais ou
habituações levam muitas culturas a inferir valores, algo que se aplica na cultura sexista, por
exemplo, quando valida algo para meninas e não para meninos e vice-versa (anexo 1). Uma
cobrança cultural machista que é o ponto de início para a libertação de tais sistemas de exclusão
discursiva a partir da educação não sexista. Tais separações arbitrárias são vistas em
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personagens infantis, em falas tradicionais de gerações, em educações corporais e sexuais, em
estímulos de habilidades emocionais e racionais, etc. Referências que são revistas no esforço
de uma educação que se propõe a combater o sexismo, para que assim seja questionada a
educação tradicional e organizadas novas circunstâncias e possibilidades demarquem outra
história simbólica e prática para meninas e meninos, mulheres e homens, como um horizonte
ampliado a cada sexo, com mais liberdade de escolha, o que se inicia nas brincadeiras infantis.

A preocupação de estudar gênero como uma categoria que permeia todos aspectos
sociais se torna essencial nesse contexto sexista para repensar a discriminação da estrutura
familiar fora do padrão heteronormativo (anexo 2). Conservadorismo formador de moralismos
e da educação sexista instituindo “mulheres” e “homens” como performances de gênero pré-
definidas e intransponíveis. A partir disso, percebe-se a diversidade social e humana em que o
sexo biológico não é logicamente relacionado a personalidade mais feminina ou mais
masculina, tampouco condiciona a orientação sexual. Coerente com isso se dá a percepção do
estudo reunido por Oliveira e Campos (2015, p.104) sobre infância e gênero em que foram
observadas
889
diferenças muito bem determinadas para meninas e meninos, tanto no que
diz respeito às brincadeiras, o que um podia e o outro não, como em relação às ditas
obrigações com as tarefas de casa, que só eram cobradas das meninas. E, nessa
direção, imprescindível assinalar que não queremos concluir com essas reflexões,
como bem pontua Auad (2006, p. 23): ‘[...] os homens sempre dominam e as mulheres
sempre são dominadas.’ Mas, precisamos evidenciar que ser menina/ser menino, ser
mulher/ ser homem não é algo pronto, dado, e, portanto, é necessário estarmos
atentos/as às nossas ações cotidianas, que às vezes, inconscientemente, repetem
padrões e modelos por nós vividos/aprendidos/internalizados.

Visto isso, a educação sexista que parte da família e transfere tais modelos sociais
internalizados deve repensar as questões naturalizadas de gênero e sexualidade como a cultura
machista educa com tom de verdade absoluta. Grossi (2004, p. 7) comenta sobre tal raiz sexista
que parte da família quando cita que “Elizabeth Badinter, em seu livro ‘X, Y: Sobre a Identidade
Masculina’, desenvolve a tese de que o gênero masculino se constitui universalmente por uma
necessidade de separação dos meninos da relação com a mãe, que, por sua vez, representa o
mundo feminino”. Essa justificativa do sexismo recai no dilema psicanalítico freudiano de
matriz heterossexual e na educação familiar remetendo ao peso da maternidade romantizada ao
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sexo feminino. Isso fortalece uma das motivações da luta feminista por uma nova concepção
materna para o distanciamento da naturalização ao histórico das mulheres, a fim de reavaliar o
senso coletivo social em que, segundo Badinter (2002, p. 15),

os defensores do amor materno "imutável quanto ao fundo" são evidentemente os que


postulam a existência de uma natureza humana que só se modifica na "superfície". A
cultura não passa de um epifenômeno. Aos seus olhos, a maternidade e o amor que a
acompanha estariam inscritos desde toda a eternidade na natureza feminina. Desse
ponto de vista, uma mulher é feita para ser mãe, e mais, uma boa mãe. Toda exceção
à norma será necessariamente analisada em termos de exceções patológicas. A mãe
indiferente é um desafio lançado à natureza, a a-normal por excelência.

Para romper com esse imaginário social machista sobre o papel do sexo feminino
realizar-se como mulher primordialmente como esposa e mãe em uma heteronormatividade, foi
preciso desvincular a ideia cultural predominante que, segundo Friedan (1971 p. 17) era
persuadida com “a voz da tradição e da sofisticação freudiana diziam que não podia desejar
melhor destino do que viver a sua feminilidade”. Desse modo, o amor materno é desconstituído
como sentimento inerente à condição de mulher em contraponto ao determinismo patriarcal,
estabelecendo na vida das mulheres um poder de escolha. Assim, a maternidade é vista 890
igualmente a paternidade como parte da construção individual em sociedade.

Em lado oposto de tal binarismo de gênero fonte do sexismo, encontra-se o modelo de


sexualidade predadora masculina que segundo Grossi (2004, p. 9) “é para Daniel WelzerLang,
um ponto nodal da constituição do gênero masculino; uma sexualidade que é formada na visão
de que as mulheres devem ser consumidas tal como se dá o aprendizado da sexualidade pela
pornografia”. Isso reflete o quanto se vive em uma sociedade que cultua rituais que consolidam
as masculinidades e feminilidades que se consomem negativamente, assim como os
estereótipos de príncipes e princesas (anexo 3) que configuram no imaginário social
necessariamente duas posições que se anulam e só podem fazer sentido se o menino for o
príncipe e a menina a princesa e se apenas ele for o dominante e corajoso da história.
Estendendo tal pensamento sexista nota-se que a representação do sexo masculino tem,
também, conotação libidinosa instintiva e incontrolável, sendo também um “animal” menos
capaz de amar e cuidar como sugere a feminilidade materna. Tais visões deslegitimam ambos
os sexos em iguais capacidades racionais e emocionais. Ainda, Grossi (2004, p.9) aponta a
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dimensão disso quando cita que “o gênero se constitui em cada ato da nossa vida, seja no plano
das ideias, seja no plano das ações. O tempo inteiro a gente está constituindo o gênero no nosso
próprio cotidiano”. Com isso, a autora demonstra como feminilidades e masculinidades são
culturalmente construídas e como as educações sexistas criam cicatrizes como, por exemplo, a
de feminilidade imposta ao sexo feminino que enaltece a beleza estética (anexo 4), que
constituem historicamente rituais do ser mulher em redomas limitantes de passividade e
frivolidades. Tal imposição sexista, conforme Grossi (2004, p. 10) é percebida em “práticas
coletivas e regulares às quais as mulheres se dedicam em determinados momentos históricos, e
que se tornam, de alguma forma, rituais obrigatórios de constituição e reafirmação de
feminilidade”. Sobre isso Grossi (2004, p. 16) ainda cita que “o binômio dominação
masculina/submissão feminina tem sofrido uma série de questionamentos quando se estudam
relações de gênero”. Tal personalidade criada como forma de vulnerabilizar o sujeito dominado
pelo patriarcado, fundou a realidade das mulheres marcada pelo estigma da feminilidade
sinônimo de superficialidade e ingenuidade e, se aproveitou estrategicamente do sistema
capitalista. Tema esse denunciado por Friedan (1971, p. 9) sobre padrões elevados de consumo
em centro urbanos na década de 70, algo que se aplica a diversas culturas atualmente e a autora 891
evidencia um contexto que valida os movimentos ,

de libertação feminina que abriu às mulheres as portas da participação social e


econômica na construção da Grande Sociedade. (...) eis que a sua atuação fora de casa
é desvalorizada e «revalorizada» ao máximo a sua feminilidade, a sua maternidade,
como se participar na construção da sociedade fosse incompatível com a sua condição
de mulher.

Tais mudanças em visões políticas e sociais tornam o feminismo uma ferramenta


problematizadora importante na vida pública feminina, permeando o âmbito familiar até o
espaço legislativo comum. E essa nova educação social evidencia diferenças sexistas segundo
Grossi (2004) quando trabalha em contraponto o perfil de masculinidade social carregada de
virilidade associada a violência e competitividade encontrado em referências de homens que
tem o dever de serem provedores de suas famílias, esses que muitas vezes matam para “lavar a
honra com sangue”. Tal opressão ao sexo masculino deve ser desconstruída na educação não
sexista que oferece as crianças ampla capacidade sensível que estimulem o cuidar e o
demonstrar emoções. Exemplo disso é incentivar meninos a brincadeiras de paciência de cuidar,
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unindo as bonecas aos carrinhos, a bola e ao vídeo game por exemplo, jogos de aventura e poder
(anexo 1) que geralmente são negados inicialmente as meninas e igualmente devem
experimentar para desenvolver seus potenciais de coordenação, agilidade e agressividade
positiva, oferecer oportunidade já encoraja a criança a gostar e continuar com determinada
brincadeira e habilidade ou não, não é descartada a chance antes de tentar. Dessa maneira, além
de não limitar preferências espontâneas dos filhos e filhas os pais e mães devem estimular
brincadeiras e referências culturais diferentes da tradicional educação sexista (anexo 5). Algo
extremamente positivo nesse sentido é mostrar como mulheres podem ser fortes e corajosas
(anexo 6), bem como homens podem ser pais cuidadosos e seres humanos com delicadeza e
sensibilidade (anexo 7), qualidades associadas de modo exclusivo ao feminino em uma cultura
machista. Recriando assim as percepções binárias, é possível minimizar os problemas de gênero
que causam tantos conflitos acerca do outro e seu “estranho” ou diferente universo sexual e
identitário na vida adulta. Nisso se faz necessário o exercício de empatia social desde o âmbito
familiar nas primeiras idades, para entender que o estranho ou diferente a própria realidade é
legítimo e deve ser respeitado (anexo 8) e ter igualmente os direitos resguardados.

A transformação desses comportamentos da educação tradicional sexista perpassa


892
uma postura contestadora e subversiva aos velhos conceitos de gênero heterossexual e binários,
como através da consciência feminista e da promoção de uma nova educação familiar, de
maneira não sexista e cooperativas entre os sexos (anexo 8). Em tais relações de gênero
revisadas estão implícitas as relações de poder como a concepção foucaultiana de um poder
dissolvido na sociedade que exige uma agência de poder individual que afete o coletivo para
então obter uma transformação social. Esse é o papel da família, do particular para o público
reeducar com um pensamento e atitude não sexista.

Com isso é possível compreender o contexto de relações de gênero no poder em que se


aprofunda o conhecimento a respeito da subjetividade que edifica o gênero, sua identidade que
traz a dimensão pessoal e social dos sujeitos. Seguindo tal ideia, de acordo com Oliveira e
Campos (2015, p. 92) é possível “entender como se (con)formam os lugares sociais entre os
sexos e que maneira as relações estabelecidas na infância podem autenticar as práticas
pedagógicas das profissionais em instituições de educação infantil”. Isso é apresentado pelas
autoras a partir da concepção da
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infância como uma referência construída histórica, cultural e socialmente, período
marcante na formação do indivíduo e momento em que definimos a relação que
estabeleceremos na vida adulta (SARAT, 2009). Procuramos nas contribuições de
Elias (1994) e sua teoria do “processo civilizador”, refletir acerca da identidade e
sexualidade como uma questão eminentemente social, que muda no curso dos
períodos históricos à medida que as sociedades e seus indivíduos vão se
transformando e impondo novas formas de se relacionar. Tais aspectos vão sendo
definidos socialmente, assim como o lugar e o não lugar de homens e mulheres, que
no curto período da infância devem aprender a se comportar pela representação de
modelos sociais (ELIAS, 1994)”.

Convergindo com tal discussão em torno do contexto social que modela identidades está
a ideia referida por Hall (2000, p. 112) sobre a subjetividade própria da interação entre o eu e
o meio social, que se estende a personalidades e estruturas familiares em que o sujeito se insere
identidades analisadas pela diferença e são consideradas “pontos de apego temporário às
posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós”. Ainda, Hall (2000) aponta
as representações que cada um tem acerca dos contextos sociais de práticas de significação e a
construção de sistemas simbólicos que configuram o mundo e seus sujeitos. Assim, é possível
dar sentido à experiência enquanto sujeitos sociais que constroem sua história e ideologia sobre 893
a linguagem como sistema de signos e gramática normativa, que conforme Orlandi (2001, p.
17) perpassa o discurso como “lugar em que se pode observar a relação entre língua e
ideologia”. Sobre essa discursividade ou a maneira como a ideologia produz efeitos ou se
materializa no discurso, Orlandi (2001, p. 43) demonstra a articulação entre linguagem e
ideologia como se afetam e cita que “todo discurso se delineia na relação com os outros: dizeres
presentes e dizeres que se alojam na memória”. Assim, a educação não sexista e o feminismo
devem ser considerados ferramentas discursivas para desconstruir o patriarcado, oferecendo um
universo ilimitado para desenvolver potencialidades entre os sexos, com estímulo à
autenticidade individual e ao respeito entre as diferenças em sociedade.

Por outro lado, é no discurso que também se mostram estigmas de feminilidade e de


masculinidade do sexismo, exemplo observado no estudo sobre infância e gênero de Oliveira e
Campos (2015, p. 95) em que Bruna Dávalo investiga a memória de infância de professoras
que reflete as práticas pedagógicas quando adultas e suas conclusões “ressaltaram que as falas
das professoras demonstraram um desconhecimento do significado dos conceitos de gênero,
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identidade, papéis sociais de homens e mulheres e, principalmente, da consciência de que tais
conceitos estão presentes nas suas atividades no dia a dia das instituições”.

A essas constatações e de outras pesquisas do mesmo estudo somam-se um contexto


educacional atual de propostas planejadas com discurso político sobre a prática pedagógica, em
direção às relações étnicas, de gênero, à diversidade sexual e à inclusão social, tema que as
entrevistas demonstram não terem entendimento suficiente, o que revela também na educação
familiar a perspectiva de Dávalo em Oliveira e Campos (2015, p. 95) a “considerar a
permanência de um processo que reforça estereótipos e mantém uma educação de caráter
conservador e moralizante com relação à formação da identidade social”. Nesse sentido, ainda
afirma que “há muito a ser feito para mudar essa situação e que o processo passa por todas as
instituições sociais, especialmente a família e a escola”. Dessa maneira, o estudo desponta a
influência da educação recebida na infância refletida na continuidade das gerações seguintes e
possibilita analisar o discurso e a prática de pais e mães (as professoras) que para Oliveira e
Campos (2015, p. 97) é notado “o quanto ainda está enraizada a concepção de que menina
precisa ser protegida e o menino não pode chorar, pois é o futuro homem desejado por esses
pais”. Isso ratifica o conservadorismo que ainda fortalece as desigualdades de gênero e a
894
importância do esforço que promova uma reeducação não sexista.

CONCLUSÃO

O feminismo vem atuando socialmente em prol do empoderamento feminino que


destaca o sexo feminino igualmente capaz ao sexo masculino de ser forte e competente, e ainda
expõe o campo sensível antes subjugado pelo patriarcalismo, como diferenciador positivo em
movimentos sociais. Dessa feminilidade alforriada aproveita-se a sensibilidade que completa
o sexo masculino e a coragem e agressividade positiva que completa o feminino, demonstrando
a urgência por uma nova educação para mulheres e homens das novas gerações. Para alcançar
essa educação que visa igualdade de direitos de gênero é preciso desconstruir o sexismo e
proporcionar novas referências que modifiquem o papel da mulher serva do lar como seu maior
mérito no patriarcado, que a liberte da função de melhor cuidar, organizar, planejar e ser
detalhista como sendo algo natural do sexo feminino assim como sua habilidade de gestar e
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parir. Maternidade que também deve ser desmistificada como vontade instintiva deixando de
ser um cárcere para muitas mulheres. Mas, tais mudanças de comportamentos sociais só
deixarão de fundamentar os sexos em argumentos fisiológicos essencialistas e binários quando
efetivamente for aplicado novos posicionamentos na educação familiar. Este estudo busca
exatamente a reflexão das diferenças corporais dos sexos, mas também da evidência do
machismo em discriminar isso com fronteiras rígidas na capacidade de cada um ser e fazer o
que desejar somente em razão do sexo outorgado quando se nasce.

Então, pensando repensar a cultura que um dia nomeou as genitálias como femininas e
masculinas e também as carregou de predeterminações e gerou a real impressão de serem
essencialistas e imutáveis é possível um feminismo que reeduque os reflexos disso que forjam
uma conduta moral e social. Visto isso, este estudo almeja refletir sobre métodos que viabilizar
tal mudança social com a ruptura do padrão sexista imposto a mulheres e homens. Desse modo,
vislumbra-se uma educação não sexista que amplie o horizonte de possibilidades cognitivas e
emocionais às crianças e inspire adultos a reverem seus comportamentos, e também, a e criar
uma nova e predominante cultura que reformule a representação masculina e feminina em
sociedade. Assim, distante das figuras únicas de princesas e príncipes, as meninas não serão
895
mais educadas com foco na extrema sensibilidade e fragilidade em que tudo é rosa, tampouco
os meninos com na brutalidade e racionalidade em que tudo é azul. Transformação essa de
poderes familiares, com saberes autônomos e respeitados em uma estrutura educacional com
igualdade de gênero que promova uma cultura sem as violências de gênero e frustrações que
traz o sexismo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Waltensir Dutra. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
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896
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SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. 1ºed. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2004.

ANEXO 1

Imagem de brincadeiras em posições deslocadas da socialmente validade pelo padrão sexista


de educação. Quando é expandida a possibilidade de algo tão simples como brincar a criança
se torna uma pessoa adulta menos preconceituosa e com habilidades motoras, intelectuais e
sensíveis mais completas.

ANEXO 2
ISSN: 2525-7501

O Livro da Família, assim como outros exemplos literários, estimulam a compreensão infantil
de que há uma diversidade de estrutura familiar a ser respeitada e valorizada, que cria
identificação social e minimiza discriminações no âmbito em que se funda o sexismo, a família.

897

Outras obras que exemplificam tal quebra de paradigmas familiares são as de Olga de Dios
designer e ilustradora espanhola que produziu as personagens com ausência de gênero por
cores, espécies animais e tamanhos, sem reforçar a classificação binária e, portanto, sexista,
evidenciando a diversidade o que estimula o respeito e autoestima nas crianças.

ANEXO 3
ISSN: 2525-7501
Promover uma educação não sexista implica necessariamente em não oferecer apenas
referências como as princesas do Walt Disney às meninas que tem uma estética impositiva e
enredos que geralmente a princesa busca por um príncipe para casar como a maior conquista.
Desprincesando e desmistificando o universo limitado de príncipes fortes e dominantes e
princesas frágeis e delicadas é possível recriar um universo de possibilidades em brincadeiras,
cores, roupas, profissões e estilo de vida e comportamento a meninos e meninas.

ANEXO 4

Imagem Barbies: sugere profissões (i)limitadas para mulheres, mas mantém a falta de
representatividade social com apenas personagens magras, brancas, loiras e de cabelo liso,
reforçando ainda o estigma da feminilidade que enaltece a vaidade vestindo rosa e salto alto.
Já na imagem abaixo a representatividade da boneca Barbie é revista e melhorada, mudança

898
importante sendo ela um símbolo para a educação infantil de muitas meninas no mundo.

ANEXO 5
ISSN: 2525-7501
As Garotas Superpoderosas, série de animação norte americana sucesso no fim da década de
90 e início dos anos 2000. As protagonistas Florzinha, Lindinha e Docinho são garotas com
personalidades diferentes e marcantes. Elas desmistificam o mito da feminilidade e da
masculinidade ao serem corajosas e justiceiras ao mesmo que são amáveis, mostram como
meninas podem ser fortes e ambos o sexos podem se espelhar nelas como super-heroínas que
rompem padrões sexistas.

Os três exemplos acima são de princesas empoderadas, criadas em enredos cinematográficos


de animação com protagonismo delas mesmas e sem depender ou aspirar por um príncipe
como intuito maior no final, além disso, elas tem interesses próprios e lutam pelo que desejam,
não aceitam passivamente imposições sociais, quebra do paradigma sexista de um feminino 899
submisso. Tais personagens como da Princesa Merida (à esquerda) do filme Valente de 2012,
Elsa (no centro), do filme Frozen de 2014 que junto a Anna sua irmã contam uma aventura e
Hua Mulan (à direita), a guerreira do filme de animação da Disney de 1998. O ideal é os
tradicionais super-heróis também se tornassem referências de potencialidades múltiplas como
junto da masculinidade corajosa exercessem o cuidado sensível com os outros, até mesmo de
pai, o que não se encontra muito como espelho e estímulo na educação de meninos.
ISSN: 2525-7501
Coleção Antiprincesas da escritora Nadia Fink, exalta figuras femininas fortes da história
como a artista mexicana Frida Kahlo, a folclorista chilena Violeta Parra e Juana Azurduy,
militar das lutas pela independência da América espanhola. Literatura que inspira meninas e
meninos a reconhecerem mulheres guerreiras em forma de arte e cultura, diversificando as
referências predominantes norte americanos e respeitando o feminino que também é forte e
corajoso, anti princesas tradicionais que alimentam o estigma e sexo frágil e passivo.

Os cordéis biográficos de Jarid Arraes, que contam a história de diversas mulheres brasileiras
em coleções que somam 50 títulos. Referências literárias alternativas da mídia massiva que
mostra a história de mulheres fortes e trabalha questões sociais que desconstroem o sexismo.
Leituras para crianças e adultos que destacam a cultura nacional através dessas mulheres
talentosas que geralmente são marginalizadas pela história.

900

Princesas da animação do canal de TV Cartoon Network “A Hora da Aventura”, que


simbolizam a quebra do estereótipo sexista da princesa ter sempre uma identidade comum de
fragilidade e delicadeza, além de uma beleza semelhante. Isso acorre pela diversidade que elas
apresentam em suas formas físicas, personalidades e valorização do título ou função de
Princesa como o mais alto cargo da sociedade em que vivem. Nesse mundo fictício existem as
Princesas nomeadas por: Jujuba, de Fogo, Caroço, Doutora, Tartaruga, Gosminha, Musculos,
Embrião, Café-da-Manhã, Cachorro-Quente, Carangueijo, Monstro, Biscoito, Trapo,
ISSN: 2525-7501
Fantasma e Cadáver.
ANEXO 7

Exemplo de animação que desconstrói sexismo é a personagem masculina Shrek (2001), pois 901
é um guerreiro, ogro e desajeitado, que representa também uma figura paterna familiar de
sensibilidade e cuidado, assim como Fiona sua companheira é uma mãe zelosa e guerreira ao
mesmo tempo.

ANEXO 8
Como na imagem acima, há diversas brincadeiras e comportamentos para desconstruir o
sexismo na escola e na família como os jogos cooperativos que estimulam a cooperação entre
os sexos e todas outras diferenças, a aceitação dessa diversidade como algo igualmente capaz
e confiável, com atividades que geram envolvimento, diversão.
ISSN: 2525-7501
NATUREZA, SEXUALIDADE E PAPEIS SOCIAIS: O MASCULINO NA ATENAS
CLÁSSICA448

Jussemar Weiss Gonçalves449

RESUMO

Este artigo visa demonstrar como a sociedade ateniense do século V articulava, social e
politicamente, as necessidades do mundo androcêntrico às possibilidades do feminino, e como
isso era discutido através da tragédia. Para isso, estudamos a construção de um modelo
educativo que transparece nos escritos de tragediógrafos gregos do século V que fabricaram
com suas obras uma compreensão do feminino, mediante a criação de um modelo de formação.
Através de uma escrita masculina o mundo masculino da polis era educado para construir uma
visão do feminino. Pode-se observar que na cena trágica as mulheres não são apenas filhas,
esposas e mães, são mais, revelando que para além das aparências sociais existe para os gregos
uma peculiaridade no pensamento do feminino e esta singularidade revela-se a partir do olhar
masculino.
902
Palavras-chave: Tragédia; Atenas; Feminino;

Abstract

This article aims to demonstrate how the Athenian society of the fifth century used to
articulate themselves, socially and politically, the needs of the androcentric world to the female
possibilities, and how it was discussed by the tragedy. For this, we have studied the construction
of an educational model that transpires in the writings of Greek tragedians of the fifth century
who produced, with their works an understanding of women, by creating a training model.
Through a male writing, the male world of the polis was educated to build a vision of the
feminine. It can be observed that in the tragic scene, women are not only daughters, wives and
mothers, they are more, revealing that beyond social appearances, there was, for the Greeks, a
peculiarity in the female thought and this uniqueness is revealed through the male gaze.

448
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
449
Professor Doutor do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande-FURG. Líder do Grupo de
Pesquisa Cultura e Política no Mundo Antigo. Email: jussweiss@hotmail.com
ISSN: 2525-7501

Keywords: Tragedy; Athens; Feminine;

INTRODUÇÃO

A tragédia grega é uma forma de expressão cultural do século V a.C, especificamente,


e está associada a pólis450 ateniense e, mais do que isso, ao surgimento de uma convivência
política. Foi através do culto ao deus Dioniso que nasceu a tragédia no final do século VI a.C.
onde realizavam-se concursos em que os próprios cidadãos votavam nos temas que mais os
interessavam e esses possuíam o direito de ser encenados. Essas encenações eram financiadas
pelos cidadãos mais ricos da pólis, pois assim era como o sistema da polis dividia
responsabilidades de impostos, de uma forma desigual, isto é, os ricos mantinham a estrutura
político-cultural da cidade.

A tragédia, como gênero literário, expressa o contexto, o universo da cidade e de seus


grupos sociais. A novidade da tragédia transformou a cultura grega nas suas instituições sociais
com os concursos trágicos, nas suas formas literárias com o aparecimento do gênero poético
903
como forma de representação teatral e finalmente no plano da existência humana, pois a
encenação tem como objetivo o debate e o questionamento das relações isonômicas na cidade
de Atenas. Sem dúvidas ela é uma das grandes representantes da cultura ateniense do século V
a.C.

O universo trágico gira em torno de dois mundos, o mítico ou lendário ainda presente
como uma tradição, e o mundo da cidade com seus novos valores e contextos mentais e que irá
inaugurar um novo tipo de pensamento, a isonomia451. A tragédia funciona como uma
instituição social e um espelho da cidade, onde seus cidadãos ao mesmo tempo em que
reconhecem as situações encenadas, questionam a ordem política da polis. Nesse sentido, a
tragédia articula as tensões existentes entre o homem isonômico ou democrático e seus conflitos

450
Comunidade humana composta pelos politai, ou cidadãos, que juntamente com a chora, território, constituíam
a cidade-estado grega.
451
Igualdade perante a lei para os cidadãos atenienses.
ISSN: 2525-7501
e o mundo das potências divinas, ou seja, o universo da cidade e o universo do mito 452, dos
deuses. Segundo Werner Jaeger453 é nisso que está assentada a sua força educadora, moral,
religiosa e humana, a sua força estruturadora, pois o mito é a raiz principal do espírito grego454.
Embora a cena trágica funcione como uma forma da cidade discutir os problemas que viviam
os cidadãos em seu cotidiano, o mito continua a ser o objeto integral da exposição, que com a
mudança dos interesses e de estilo de vida455 o que se modifica são os pontos de vista, as formas
de exposição. Uma reflexão necessária a um novo tipo de convívio, o isonômico. Neste
momento não é o mito que se discute, mas a problemática moral colocada pela cidade através
do mito.

Dessa forma a tragédia clássica nos revela uma variável educativa, na medida em que
possibilita, de um lado, a explicitação de um problema e sua discussão e, de outro, pela presença
dos cidadãos na representação, essa discussão assume claramente um papel na formação
daqueles que se fazem presentes no Teatro. Pois as sociedades expressam, através de processos
educativos, as questões que devem ser compreendidas como estruturas necessárias à construção
de uma sociabilidade.
904
Tomemos como exemplo desta possibilidade interpretativa, a função pedagógica, a
presença da mulher na tragédia. Dentro desse universo trágico em que atuam os mitos, os deuses
e o cidadão ateniense uma pergunta se destaca, uma vez que esta era uma sociedade
androcêntrica, por que as tragédias possuem tantos personagens femininos? Por que o feminino
recebe tamanho destaque, com protagonistas de peso em uma produção cultural de homens para
homens ? As mulheres estão em todas as tragédias e em várias são protagonistas, revelando

452
A mitologia grega é composta por diversos relatos dos antigos gregos sobre seus deuses e heróis. São a base
de diversas fontes históricas como os poemas homéricos, “A Ilíada” e a “Odisséia”, a “Teogonia” e “Os trabalhos
e os dias” de Hesíodo, as poesias de Píndaro, assim como as Tragédias Gregas de Ésquilo, Sófocles e Eurípides.
453
JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
454
Espírito grego neste trabalho quer designar um conjunto de características sociais e mentais específicas do
período, século V a.C., e da polis isonômica. Ver mais em: VERNANT, Jean-Pierre. O universo espiritual da polis.
In: VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego. 18ª Rio de Janeiro: Difel, 2009. 144 p.
455
Mudança do estilo de vida aristocrático para o estilo de vida democrático e urbano da polis.
ISSN: 2525-7501
que, mesmo sendo uma sociedade totalmente dominada por uma visão androcêntrica, a questão
do feminino não é simples e resolvida.

Polis e tragédia como ambiente educativo androcêntrico

A tragédia grega surge no final do século VI e segundo Vernant e Vidal-Naquet antes


mesmo que Aristóteles escrevesse a Poética no século IV ela já havia se esgotado. É, portanto,
contemporânea ao universo espiritual da polis, como bem define Vernant essa nova ordem
social inaugurada pelos atenienses. A tragédia está vinculada a um dado contexto histórico que,
antes de tudo, é um contexto mental, com suas “categorias de pensamento, tipos de raciocínio
e sistemas de representações” 456.

Ainda que a tragédia seja considerada um gênero literário e uma forma de arte, ela é
uma instituição social assim como as assembleias ou os tribunais. Ir ao teatro, para o cidadão
ateniense, é uma função cívica assim como votar na ágora. O historiador Mateus Dagios 457
destaca que fazem parte desse contexto mental da polis e da tragédia um pensamento social da
cidade e um pensamento jurídico. Os gregos não possuíam, até então, códigos e leis
estabelecidos, mas sim uma noção de justiça e ordem mediada pelas potências sagradas. Assim
905
como, esta nova noção de direito, a polis inaugura uma nova forma de poder com o uso da
palavra, esta torna-se o instrumento político e de autoridade que os gregos chamarão pheitó458,
que será entendida como discussão e argumentação. Essas noções, dentro desse novo contexto,
são publicizadas, e, a partir de então, o conhecimento, as decisões, os valores serão levados ao
espaço público para serem debatidos e criticados. É nesse caminho que a escrita, como uma
etapa necessária à divulgação de uma forma de pensamento, tem nos gregos a base de sua

456
VERNANT, Jean-pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e Tragédia na Grécia Antiga. 2. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2011. p. 8.

457
DAGIOS, Mateus. Neoptólemo entre a cicatriz e a chaga: Lógos sofístico, peithó e areté na tragédia
Filoctetes de Sófocles. 2012. 154 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de História, Departamento de Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.
458
Pheitó é persuasão, isto é, a obediência mediante a aceitação do argumento do outro.
ISSN: 2525-7501
Paideia459 com a redação das leis. Pois se antes estas estavam restritas a um saber divino, a uma
autoridade privada, agora serão submetidas ao público, ao bem comum. Essa mudança de
perspectiva que conduz a uma nova noção de vida pública destaca um elemento essencial, o
grupo social que compõe a cidade. Embora esses humanos possuam diferentes origens, no
espaço público é necessário que sejam semelhantes, é isso que dá unidade a polis. A cidade
grega não condiz com relações hierarquizadas de dominação e submissão. A partir disso, os
gregos chegam ao conceito de isonomia: igual participação de todos os cidadãos no exercício
do poder.” 460

Sim, mas para isso é preciso que se defina quem é o cidadão ateniense. Embora a
população que forma a cidade-estado grega seja de um espectro mais amplo, conjugando outros
grupos sociais além dos cidadãos, como os estrangeiros e os escravos, para fins de participação
política apenas os cidadãos atenienses podem ser considerados como iguais. Já no que diz
respeito à mulher, esta também estava presente em todos os grupos, mas quando o assunto é
cidadania existe uma peculiaridade, quase uma ambiguidade, pois, embora ela fizesse parte
desse grupo não possuía participação política pública.
906
A polis ateniense era um “clube de homens” 461
, pois na sua forma democrática, previa
a exclusão política das mulheres e sua relegação ao privado. A cidade grega é formada pelo
grupo dos andrés entendido como o grupo de homens viris, anér. Essa virilidade era justificada,
ou por sua bravura como guerreiro ou por ser cidadão, o que significa participar nos assuntos
da cidade através dos debates na ágora, na assembleia, conselhos e tribunais. Andrés, portanto,
refere-se à coletividade de homens gregos, viris, guerreiros e cidadãos. Em oposição à anér, o
termo gyné, que refere-se à esposa desse homem grego. Nota-se que a palavra grega que designa

459
Paideia é um processo de formação cultural para o homem grego, e que inclui o que chamamos de educação.
Ver mais em: JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes,
1994.
460
VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego. 18ª Rio de Janeiro: Difel, 2009. p. 65.
461
Expressão usada por Nicole Loraux em: LORAUX, Nicole. The Experiences of Tiresias: The Feminine and
the Greek Man. New Jersey: Princeton University Press, 1997. Tradução de: Paula Wissing. p. 3.
ISSN: 2525-7501
mulher é indissolúvel da palavra esposa.462 Segundo a historiadora Nicole Loraux não existe
uma palavra que designe a mulher ateniense, assim como para o homem ateniense,
Athenaios.463O que há são apenas “mulheres de Atenas”, Attikai gynaikes, e elas só têm
visibilidade, na medida em que estão ligadas a um cidadão, ou pelos laços de parentesco ou
pelo casamento. O que existe, portanto são mulheres de atenienses. O matrimônio é o
fundamento da situação dessa mulher que é sempre filha, esposa e mãe de cidadão ateniense.
Para ela não existe opção fora do casamento, não existe uma mulher solteira independente. Ela
está sempre subordinada ao seu kyrios464. Embora não sendo cidadã, no que se refere à
participação política, a cidade espera dela a realização de um trabalho, função, que é a de gerar
descendência legítima, ou seja, novos cidadãos. Dessa forma a mulher não está fora da cidade,
pois esta obrigação a coloca no coração da polis. Sem mulheres não há cidade.

Partindo disso, para ser um cidadão ateniense é necessário, em primeiro lugar, apenas o
fato de nascer em Atenas de pai e mãe ateniense465. Mas esse fato tem como base o que se pode
chamar de uma ideologia de autoctonia que sustenta e mantém, em um círculo bem fechado, o
que é ser cidadão. Levando em consideração que os mitos fazem parte da vida grega, o discurso
mítico de autoctonia em que o primeiro ateniense homem, Erictônio466, nasce da terra e não da
907
mulher, tem como objetivo justificar o homem como o verdadeiro ateniense, uma vez que não
há uma mulher autóctone.467

462
LORAUX, Nicole. The Experiences of Tiresias: The Feminine and the Greek Man. New Jersey: Princeton
University Press, 1997. Tradução de: Paula Wissing. p.3.
463
Qual a Ver mais sobre o tema no Capítulo The Athenian Name em: LORAUX, Nicole. The Children of
Athena: Athenian ideas about citizenship & the division between the sexes. New Jersey: Princeton University
Press, 1994, p. 111-143.
464
Pode ser traduzido por Senhor. Homem ao qual a mulher estava subordinada, era na maioria das vezes seu
parente mais próximo, marido, pai, tio ou filho e era quem administrava seus bens.era uma autoridade privada,
que devia obediência.
465
Lei instaurada a partir de Péricles no ano de 451 a.C.

466
Ver o mito de Erictônio em: BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico da mitologia
grega. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
467
Todas as traduções são dos autores.
ISSN: 2525-7501

Em definitivo, os assuntos políticos estão nas mãos dos cidadãos homens, os


quais, porém, dependem, para a reprodução da cidadania, das mulheres
atenienses, que por sua vez são controladas eficazmente pela legislação e pela
ideologia excludente da autoctonia, mas que inspiram, precisamente pelo seu
poder no terreno da reprodução, um certo temor e prevenção.468

Todavia, mais do que descendente de um pai e de uma mãe ateniense, um cidadão é


descente de um pai e de um avô materno cidadão469, no sentido em que são duas famílias que
se unem, através do casamento mas tendo sempre em vista o homem como o gerador dessa
descendência e a mulher como um meio de reprodução. A polis grega isonômica está
firmemente assentada sobre o controle rígido de quem é e quem não é cidadão, já que disso
depende o corpo cívico da cidade e toda a organização política e social. Dentro disso, as
mulheres, como são as coresponsáveis pela reprodução e descendência legítima desse corpo
cívico estão sob estreita vigilância.

É nesse ambiente androcêntrico, que se reproduz um discurso, com a finalidade de 908


manter e perpetuar tanto a isonomia quanto a cidadania, já que são duas instituições
inseparáveis, pois uma não tem sentido sem a outra. Para isso, se ensina ao jovem e, mais tarde,
ao homem grego o que é ser cidadão, através das práticas culturais da cidade antiga, como os
discursos funerários, as festas religiosas e, no caso de Atenas, as representações trágicas. Todas
elas embebidas em um universo mítico que dá suporte a uma nova configuração política e
social, pois os mitos, como já dito, ainda estão presentes como uma tradição e conforme Mircea
Eliade470, em sociedades tradicionais, a sua representação, a recitação, a repetição é um

468
. GUÍA, Miriam Valdés. La situación de las mujeres en la Atenas del s. VI a.C.: ideología y práctica de la
ciudadanía. Gerión,Madrid, v. 25, n. 1, p.207-214, jan. 2007. Anual. p. 7.Disponível em:
<https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=2473743>. Acesso em: 21 abr. 2016.
469
Pensamento defendido por Nicole Loraux em seu livro The Children of Athena . Ver mais em: LORAUX,
Nicole. The Children of Athena: Athenian ideas about citizenship & the division between the sexes. New
Jersey: Princeton University Press, 1994. Tradução de: Caroline Levine.
470
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A Essência das Religiões. 3. ed. São Paulo: Wmf Martins
Fontes, 2010.
ISSN: 2525-7501
processo educacional, para ele o mito é uma história exemplar que tem por fim estabelecer
normas para o proceder humano.

Junto a isso, a ideia de paideia, tão cara aos gregos, não é entendida pelos mesmos como
uma educação formal471, mas sim dentro de práticas socais e culturais do dia a dia “como
formação e conjunto de competências, cognitivas, artísticas, físicas, de que o jovem cidadão
deve dispor para responder e participar, de pleno direito e com critério, na comunidade a que
pertence.”472 Ao mesmo tempo, os gregos valorizavam a aretê473 que poderia ser traduzida
como virtude ou excelência do humano. Esta palavra, sempre esteve vinculada à questão da
formação humana e, se nos tempos mais antigos era atributo da nobreza e tinha como ideal
heroico o cavaleiro, esse conceito modificou-se com a criação das cidades-estados,uma vez que
o cidadão que vivia na cidade necessitava de uma nova Arete. Antes só tinham acesso a essa
educação os humanos que possuíssem sangue divino, mas, com o advento da vida urbana esse
pensamento não é mais admitido. É necessária uma nova educação que contemple a
comunidade, o social e não apenas o homem nobre. Como bem coloca o professor Jussemar
Weiss: “A ação educativa, nas cidades gregas, visa a um fim que é a natureza coletiva, a
prosperidade e a felicidade da cidade”.13 Nunca esquecendo que essa comunidade que se está
909
falando é a de cidadãos. Assim, em Atenas a Arete política será de suma importância para o
ideal isonômico, já que para que este seja alcançado, é necessário uma nova formação do
cidadão que visasse o desenvolvimento espiritual ou cultural que poderia ser alcançado com

471
Escolarização regular.
472
LEÃO, Delfim Ferreira; FERREIRA, José Ribeiro; FIALHO, Maria do Ceú. Cidadania e Paideia na Grécia
Antiga. 2. ed. Lisboa: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2010. Disponível em:
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473
A palavra Arete não possui uma tradução exata para o português, o mais parecido seria o conceito de virtude.
No sentido aristocrático a Arete era uma virtude ligada a família, ao nascimento, logo não era apreendida no
sentido humano, mas recebida no berço e cabia ao aristocrata aperfeiçoar sua virtude. Este conceito grego varia
com o tempo passando do ideal heroico da Grécia Arcaica para o cidadão da cidade isonômica na Grécia Clássica
que devia desenvolver tanto aptidões físicas quanto morais, o kalós kagathós, o homem belo e bom grego. Para
uma compreensão melhor da palavra Arete ver: JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego.
São Paulo: Martins Fontes, 1994.
ISSN: 2525-7501
a retórica, a poesia e a educação musical, pois os gregos devolveriam “um sistema educativo
que visava o desenvolvimento harmônico das faculdades”474.

É nesse sentido que os atenienses prezavam o convívio social, a reunião na ágora, onde
através do diálogo entre os jovens e os mais velhos, mestre e discípulo, estabelecia-se um
processo educativo para o cidadão, o mesmo se dava nos banquetes, onde as conversas e os
debates levavam a uma intensa troca de conselhos e sabedoria, isso pode ser percebido no
Banquete de Platão, onde vários homens estão juntos debatendo qual o melhor entendimento
dos poderes de Éros475. Outro local frequentado pelos atenienses são os ginásios, pois não se
pode esquecer que um corpo atlético fazia parte do espírito grego, da construção do cidadão.
Esse espaço era utilizado como um local também educativo uma vez que novamente Platão
escreve sobre como os jovens são educados através do convívio com os mais velhos.

Dentro desses espaços de socialização, juntamente com o symposion, o gynasium, a


ágora, claro, está o teatro grego, local onde convergem algumas das práticas educativas e
culturais atenienses de maior relevância como o mito, a poesia, a música e a encenação. A esses
quatro elementos juntam-se os espectadores, na sua grande maioria homens, e aí, está, portanto 910
formado um círculo onde o autor da peça teatral, através dos elementos destacados acima que
são tradicionalmente usados nos processos educativos, tem uma intenção, uma finalidade
pedagógica. Pois, não se pode esquecer que a audiência das tragédias já conhecia os mitos que
seriam encenados, já tinham conhecimento prévio da história. Portanto, quando o autor
modificava o mito, dando-lhe uma nova versão e perspectiva ele estava convidando o seu
público a uma nova reflexão.

O feminino e o homem grego na tragédia

No palco trágico desenrola-se uma trama que exprime uma tensão permanente entre o
mito e a realidade do século V. De um lado os personagens principais, os heróis de um outro
tempo, representantes de um passado mítico e, de outro, o coro, representante dos valores da

474
LEÃO, Delfim Ferreira; FERREIRA, José Ribeiro; FIALHO, Maria do Ceú. Cidadania e Paideia na
Grécia Antiga. 2. ed. Lisboa: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2010. p.21

475
Éros era considerado o deus do amor.
ISSN: 2525-7501
cidade, como uma consciência coletiva. Os dois, estabelecem na cena trágica uma dualidade
que levanta questões ao público. Tanto um, quanto o outro, são ambíguos nas suas falas
denotando uma contradição permanente, típico de uma comunidade em transformação, em que
os humanos possuem uma autonomia relativa em relação ao sagrado. “A ação humana não tem
em si força bastante para deixar de lado o poder dos deuses, nem autonomia bastante para
conceber-se plenamente fora deles.”476Enquanto ambiente paidêutico, a tragédia contrapõe
passado e presente com o objetivo de valorizar os modos de pensamento da polis . O herói
através de sua fala exprime uma realidade anterior ao mundo da cidade e o coro tem como
função a permanente análise e avaliação dessa fala sob o ponto de vista do presente.

Um diálogo de tragédia que expressa essa tensão é o da personagem da rainha


Clitemnestra e do coro formado pelos cidadãos de Argos na peça Agamêmnon de Ésquilo, onde
o autor nos mostra dois pontos de vista divergentes e que se enfrentam. O ponto de vista da
rainha, que age como se fosse Basileu477, usa a palavra, a argumentação, pheitó e toma decisões.
O outro, o do coro, mostra a atitude da cidade diante de uma mulher, que a partir de seu ponto
de vista é considerada viril e revela como ela deve ser, ao mesmo tempo em que reafirma a ação
masculina do cidadão, isto é, ser aquele que “age”. Enquanto Clitemnestra recita suas falas a
911
partir de um ponto de substrato mental feminino, isto é, a família, a vingança478, o coro tem
uma fala dúbia, pois ao mesmo tempo em que reconhece sua autoridade, como esposa, o faz
através de uma fala condescendente e por vezes irônica, mas conforme o autor vai desvelando
a ação desmedida da rainha, passando pela virilidade, pelo adultério, até o assassinato do
marido, Agamêmnon, o coro vai rebatendo suas falas, criando um enfrentamento partindo do
que a cidade espera do comportamento de uma esposa. Nesse sentido, o coro mostra como um

476
VERNANT, Jean-pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e Tragédia na Grécia Antiga. 2. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2011. p. 21.
477
Basileu é o título dado ao primeiro entre os aristocratas que dirige a cidade, este título nada tem que lembre
reis ou tiranos orientais, já que é contingente.
478
Agamêmnon (tragédia) é a primeira tragédia que pertence a trilogia Orestéia, assim como a segunda, Coéforas
e a terceira Eumênides. Agamêmnon conta o retorno do rei Agamêmnon para Argos após a guerra de Tróia e o
reencontro com sua cidade, sua rainha Clitemnestra e seus cidadãos representados pelo coro. A Oresteia tem
Ésquilo como autor e foi encenada em 458 a.C. Ver mais em: ÉSQUILO. Agamêmnon: Orestéia I. São Paulo:
Iluminuras, 2004. Estudo e Tradução de: Jaa Torrano.
ISSN: 2525-7501
cidadão do século V vê a mulher e, a tragédia, ao colocá-la como transgressora de uma ordem
estabelecida pela cidade, ensina através do excesso.

A partir disso o historiador Michael Zelenak, explica que Platão, por exemplo,
questionava a utilidade cívica da tragédia, perguntando como tais eventos ajudariam a produzir
bons cidadãos. Ele argumentava que “encenando transgressões em um ambiente
emocionalmente carregado a tragédia legitimizava essas ações e colocava subversivamente e
perigosamente modelos frente aos cidadãos.”479 Justamente o que Platão está discutindo é a
utilidade pedagógica da tragédia como modelo para os cidadãos, embora ele levante essa
discussão mais adiante, no século IV quando o homem trágico já se extinguiu. Nesse sentido
M. Zelenak alega que as transgressões encenadas valorizam e legitimam os valores culturais
democráticos e a ordem social e política da polis, pois a tragédia se torna o veículo que irá
domesticar o herói lendário a esses novos valores.

Embora possamos entender as tragédias como expressando uma gama bastante variável
de interpretações, ela revela uma dimensão pedagógica, já que permite aos cidadãos refletir
sobre problemas que atingem sua forma de viver. Atenas encena no palco crimes e transgressões 912
contra o que sua sociedade entendia como cidadania e isonomia, com a finalidade de reproduzir
um universo androcêntrico. As tragédias mostram isso na medida em que eram escritas, encenas
e assistidas por homens. Assim, personagens como a rainha Clitemnestra tem uma finalidade
frente a um grupo masculino, esse personagem está ali para ensinar, mostrar algo aos cidadãos
que, por vontade própria, escolheram esse tema para assistir. Ou seja, os cidadãos queriam
assistir as mulheres nas tragédias, o feminino sendo encenado como transgressor, praticando
crimes contra os valores familiares, sendo desmedido, matando os maridos. Em uma sociedade
onde a ideologia da cidadania mantém essa mulher sobre estrita vigilância é no mínimo curioso
que das tragédias que sobreviveram até hoje, em várias as protagonistas são mulheres e, mais
notável ainda, é o número dos coros femininos, são vinte e um contra apenas dez masculinos.
Como já dito, a questão do feminino não é simples e resolvida para a polis.

479
ZELENAK, Michael X. Gender and Politics in Greek Tragedy. New York: Peter Lang Publishing, 1998.
p. 10.
ISSN: 2525-7501
Para entender a presença das mulheres na tragédia e o destaque das mesmas em cena, é
preciso observar a tragédia para além de uma interpretação às ações da tragédia, apenas do
ponto de vista da questão especifica da isonomia. O feminino e o masculino, são construções
que expressam os papeis sociais necessários ao funcionamento dessa cidade, e que, para
compreender a construção desses papeis é preciso observar as formas a partir das quais essa
sociedade produzia uma visão do masculino e do feminino. Isto se estabelece a partir de uma
divisão social, que tem como premissa a divisão sexual, que por sua vez é definida por um
modelo natural que coloca o feminino em oposição e complementaridade ao masculino e assim,
constitui formas de situar os mesmos na vida coletiva. Essas construções aparecem nas
tragédias, mas sua discussão fica mascarada por uma interpretação “política” que revela o
universo políade e que articula os interesses na Ágora.

Olhar, reler, observar com cuidado as tragédias nos permite perceber um imenso campo
de estudos sobre as mulheres e suas formas de educação a partir de um ponto de vista masculino.
É isto, em Atenas do século V, são os homens que escrevem e produzem as visões e
representações sobre o outro, a mulher, situando esse outro em meio a um mundo definido por
uma vida pública.
913
A teoria do gênero permite romper um esquema que faz uma Historia da mulher,
descrevendo os espaços ocupados pela mulher, determinando seu lugar na sociedade, sem, no
entanto revelar, explicitar o feminino, já que aceita as explicações do período estudado, neste
caso uma visão de complementaridade na relação entre os sexos. O uso da categoria gênero nos
permite perceber as implicações sociais de uma determinada construção do feminino, pois as
relações entre os sexos são determinações importantes nas formas de organizações dos núcleos
humanos.

Entendemos gênero como o estudo das relações sociais entre mulheres e homens que
constroem culturalmente regras de convívio em uma determinada sociedade. Pode-se dizer que
essa ideia de gênero como culturalmente construído tem início com o livro ‘O Segundo
Sexo’ de Simone de Beauvoir480 publicado em 1949 quando ela afirma que uma mulher não

480
Ver mais em: BEAUVOIR, Simone de. The Second Sex. New York: Vintage Books, 2011.
ISSN: 2525-7501
nasce mulher, ela torna-se uma. Ou seja, é o grupo cultural e suas práticas que constroem o que
entende-se por feminino. Partindo do princípio então de que gênero é cultural, a historiadora
Joan Scott explica que a diferença sexual gera uma organização social de forma relacional,
entre feminino e masculino, produzindo um saber, ou um modo de ordenar o mundo, a partir
de onde as diferenças sociais se constróem através de disputas políticas, relações de poder,
dominação e subordinação. Como ela mesma enfatiza a diferença sexual não é determinante na
organização social, mas atua de forma variada e nuançada em diferentes grupos sociais e que,
portanto, deve ser explicada. Apoiado nisso, são possíveis os deslocamentos ou as
desnaturalizações de concepções de feminino e masculino, ou seja, o gênero é passível de
mudanças. Não existe uma bipolaridade rígida das identidades masculina e feminina como
esclarece Joan Scott “O objetivo da nova pesquisa histórica é explodir a noção de fixidade,
descobrir a natureza do debate ou da repressão que leva a aparência de uma permanência eterna
na representação binária dos gêneros.” 481

Sendo assim, quando em 1986, Joan Scott escreve seu artigo “Gênero: uma categoria
útil para análise histórica” ela afirma que é possível pesquisar a história sob uma perspectiva
de gênero, ou seja, é papel do historiador questionar a confiabilidade de termos que foram
914
tomados como autoevidentes, ou naturais e historicizá-los. “A história não é mais a respeito do
que aconteceu a homens e mulheres e como eles reagiram a isso, mas sim a respeito de como
os significados subjetivos e coletivos de homens e mulheres, como categorias de identidades
foram construídos.”482 Nessa perspectiva a pesquisa histórica toma como base as relações
sociais entre homens e mulheres e como estes constroem suas identidades masculinas e
femininas através de suas práticas culturais e relações de poder. A maneira como o pesquisador
olha para sua fonte, observa e questiona seus dados tem um enfoque, um método, que
necessariamente deve ser não sexista, ou seja, um ponto de vista que reconhece que as ações
dos humanos estão construídas com base em suas relações de gênero.

481
SCOTT, Joan Wallach. Gender and the Politics of History. New York: Columbia University Press, 1999.p.
43.
482
SCOTT, 1999:6
ISSN: 2525-7501
Esse olhar de gênero nos leva a tratar, às vezes, mesmos textos com enfoques diferentes,
por exemplo a tragédia As Suplicantes de Ésquilo, que tanto Jean-Pierre Vernant quanto Froma
Zeitlin estudaram. Para o primeiro a recusa das irmãs em casarem com seus primos era uma
questão política, discutia-se segundo esse autor os limites do poder, o domínio. Para Vernant
na tragédia o que se coloca é “uma interrogação sobre a verdadeira natureza do kratos,
domínio”483. Já Froma nos alerta para uma outra interpretação que é “ a questão do feminino e
do masculino como a trama efetiva da tragédia, a questão das relações entre os sexos, isto é, o
lugar das mulheres e homens na cidade”484. Nas Suplicantes também existe a questão das noivas
que matam seus maridos na noite de núpcias, ou seja, este é um tema recorrente que inflige
horror ao mundo masculino da polis, o descontrole do feminino.

Na peça Agamenon temos uma crise aberta entre homens e mulheres, na figura do coro
e de Clitemnestra, já que o dialogo entre eles estabelece dois parâmetros sobre a conduta da
mulher, mostrando um modelo do feminino necessário a cidade e, outro, aquele que aparece
nas ações da Rainha que não condiz com o que se espera de uma mulher. O enredo da primeira
tragédia da trilogia de Ésquilo Orestéia485, chamada Agamêmnon trata da “morte inglória e
difamante de Agamêmnon vitorioso como executor da ordem divina.”486 . Inglória, já que,
915
executada por sua mulher e rainha com ajuda de seu primo Egisto, difamante, pois se realizou
em casa, no espaço doméstico, sem nenhuma glória. Nesta peça o que se coloca é um modelo
claro de conduta do feminino. Esta conduta é uma gramática de vida no sentido em que se
realiza a partir da conjunção de homens e mulheres com este modelo.

A primeira cena de Agamêmnon inicia com o personagem do vigia recitando o prólogo,


onde ele descreve a sua tediosa vigília de um ano por seu rei que já está fora a dez anos
guerreando em Troia. A espera por um sinal que traga a notícia da vitória é sua sina, mas nos
primeiros versos deixa claro que obedece ao poder de uma mulher que tem o coração viril, ou

483
Vernant, Jean Pierre. Mito e Tragedia na Grécia Antiga. São Paulo, Duas cidades, 1997, p.24
484
Zeitlin, Froma. La Politique d’Eros( Feminin et masculin dans les Suppliantes e’Eschule: In METIS. Vol. 3,
nº1-2, 1988, pp. 231-259
485
Agamêmnon é a primeira peça da trilogia, a segunda é Coéforas e a terceira é Euménides.
486
Esquilo, 525-455 a.C. Esquilo: estudo e tradução Jaa Torrano- São Paulo: Iluminuras, 2004 ,p.17
ISSN: 2525-7501
seja, que exerce o poder e aconselha como um homem. Na primeira fala da peça já fica claro
que esta mulher está fora do que é esperado do feminino pela utilização dessas três palavras:
viril, poder e aconselha. Todas qualidades pertencentes ao mundo do cidadão masculino.

No primeiro episódio, onde se dá um dos diálogos da rainha com o coro, este começa
sua fala recitando:

Venho reverente a teu poder, Clitemenstra,


pois justo é honrar a mulher do rei
quando o trono está ermo de homem.487

Os anciãos de Argos que estão representados no coro, reconhecem a esposa, ou seja, a


rainha existe ou exerce alguma influência a partir de sua posição como mulher casada. A
intenção do autor é deixar marcado, através do coro, que esta é a função feminina por
excelência, uma vez que esta é uma visão naturalizante do feminino que se baseia em uma
noção de oposição entre masculino e feminino, mas essa oposição não é no sentido de um 916
confronto, mas sim de que homens não são mulheres e mulheres não são homens, e que, a partir
disso desempenham funções sociais complementares. Aos homens a vida pública na
assembleia, na ágora, no teatro e às mulheres a função de reprodução desse corpo cívico, ou
seja, ser filha, esposa e mãe de cidadão.

Conforme o diálogo se desenrola, há uma constante desconfiança do coro em relação à


palavra da rainha como sendo mediada por sonhos ou pelo sagrado. Ou seja, a palavra de uma
mulher não é confiável. No fim desse diálogo o coro tem uma importante fala “Mulher, falas
prudente qual prudente homem”488 com isso ele retira a rainha do mundo feminino, pois uma
mulher que usa a pheitó, uma qualidade essencialmente masculina, com prudência e moderação
é motivo de estranhamento para os cidadãos atenienses.

487
ÉSQUILO. Agamêmnon: Orestéia I. São Paulo: Iluminuras, 2004. p.123 v 258-260.
488
ÉSQUILO. Agamêmnon: Orestéia I. São Paulo: Iluminuras, 2004. p.129 v 351.
ISSN: 2525-7501
Mas no quinto episódio quando a Clitemnestra já matou o marido e o coro a confronta,
é como se ela fosse colocada de volta em seu papel feminino. Em primeiro lugar o coro a acusa
de estar fora de si, ou seja, descontrolada. Uma mulher quando mata seu marido está impondo
um sentimento de horror na plateia masculina e ensinando através do excesso, mostrando o que
pode acontecer quando as mulheres saem de sua natureza que é ser filha, esposa e mãe.

CONCLUSÃO

Podemos dizer que a construção do masculino e do feminino é um trabalho social em


vista das necessidades elaboradas por estas sociedades. No caso de Atenas o feminino e o
masculino se definiam em relação a polis e à isonomia. Pois estas últimas irão gerar uma
ideologia que é a cidadania. Esta vida ativa e pública articula a vida particular e retirada dos
olhos do mundo as mulheres. Muito embora elas achem, de uma determinada forma, e a partir
de uma definição de complementaridade biológica em oposição ao masculino, uma função
social determinante, a reprodução da cidadania. Pode-se considerar que, embora as mulheres
não possuíssem participação política, elas possuíam participação cívica na cidade, através,
principalmente, da religião e dos rituais e festas. 917
As tragédias conferem um protocolo de legitimidade social quando encenam
personagens femininos, que embora a primeira vista pareçam contraditórios com o modelo
feminino ideal ateniense, estão na verdade reiterando esse modelo, através de personagens
completamente fora de órbita para os cidadãos atenienses que estão assistindo. Com isso tanto
o autor quanto a sociedade em si, estão reproduzindo a visão preponderante sobre o feminino,
que é a masculina e sendo o teatro um ambiente paidêutico, estão educando os cidadãos.
ISSN: 2525-7501
OS “DESPORTOS” NO DICCIONÁRIO HISTÓRICO, GEOGRÁPHICO E
ETNOGRAPHICO DO BRASIL DE 1922: A (NÃO) CONTRIBUIÇÃO DO NEGRO
PARA O ESPORTE NA VISÃO DO INSTITUTO HISTÓRICO GEOGRÁFICO
BRASILEIRO* 489

João Manuel Casquinha Malaia Santos**490

RESUMO

Em meio ao clima de preparação da celebração do Centenário da Independência de 1922, o


Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) publicou o "Diccionário Histórico,
Geográphico e Etnographico do Brasil". Por conta da popularização e importância que o esporte
vinha ganhando no país (vale lembrar que parte das celebrações do Centenário foi a organização
dos Jogos Sul Americanos de 1922, no Rio de Janeiro), Roberto Trompowsky Junior e
Francisco Calmon foram convidados para escrever o verbete "Desportos" do referido
dicionário. O objetivo deste trabalho é analisar como os autores descreveram a evolução dos
esportes no Brasil até aquele período. Por tratar-se de um dos primeiros artigos sobre esportes
escritos para uma publicação desta natureza no país, a observação da escolha e da maneira como
os autores retrataram os elementos essenciais para o desenvolvimento do esporte no país nos 918
revela importantes pistas sobre algumas das principais fundamentações da escrita da história do
esporte no Brasil nas décadas seguintes. Pode-se observar coerência entre a construção da
história do esporte no Brasil com o discurso historiográfico dentro dos preceitos do IHGB e de
sua publicação mais importante, a Revista do IHGB. Os autores são representantes de ideias
como a importância da imigração estrangeira para o "caldeamento das raças" e para que se
imprima uma nova dinâmica às práticas corporais, uma vez que estes imigrantes eram "raças
mais sanguíneas e habituadas à movimentação". O negro, que vinha tendo um papel
preponderante na popularização do esporte no país, principalmente nas grandes capitais e com
a expansão da prática do futebol nos anos 1910 e 1920, foi deixado de lado na contribuição ao
desenvolvimento do esporte nacional.

Palavras-chave: IHGB, Negro, Futebol

489
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
490
** Doutor em História Econômica (USP), Pesquisador do Ludens: Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre
Futebol e Modalidades Lúdicas. Email: jmalaia@gmail.com.
ISSN: 2525-7501

INTRODUÇÃO

Em todas as diversas pugnas em que tomaram parte, os elementos nacionais


se destacaram, revelando ao mundo, como que num aurora esplendente, o
surto glorioso de uma nova raça, forte, audaz, grande e viril.
(TROMPOWSKY JUNIOR e CALMON, 1922, p. 418).

Foi com estas palavras que Roberto Trompowsky Junior concluiu seu texto para o
verbete “Desportos” do Diccionário Histórico, Geográphico e Etnographico do Brasil, um dos
mais importantes projetos do Instituto Histórico e Geografico Brasileiro (IHGB) para a
comemoração do centenário da Independência do país, no ano de 1922. Ao lado de Francisco
Calmon, que escreveu a outra parte do verbete, a descrição das práticas esportivas e de sua
história no Brasil culminava com a revelação ao mundo de um “surto glorioso de uma nova
raça, forte, audaz, grande e viril” por meio das conquistas esportivas, especificamente, a vitória
da seleção brasileira de futebol no Campeonato Sul-Americano de 1919.
919
Neste artigo, procura-se discorrer sobre o verbete “Desportos” presente no Dicionário
de 1922, publicado pelo IHGB. O objetivo é analisar como os autores procuraram descrever a
evolução e o estado dos esportes no Brasil até aquele período e que tipo de discurso foi
construído sobre as práticas esportivas no país. O presente trabalho é um estudo inicial da
relação da escrita do verbete com a tradição historiográfica do IHGB, ressaltando a contribuição
da formação do povo brasileiro para a adequação e a primazia na prática de determinadas
modalidades esportivas. Nesta formação esportiva, a figura do negro é simplesmente esquecida,
a despeito de sua já importante participação, principalmente no futebol das grandes cidades do
Brasil como Rio de Janeiro e São Paulo.

Por tratar-se de um dos primeiros artigos sobre esportes escritos para uma publicação
desta natureza no país, a observação da escolha dos personagens colocados como elementos
essenciais para o desenvolvimento do esporte no país, bem como a maneira como foram
retratados, pode nos dar pistas importantes sobre algumas das principais fundamentações do
que se veio a escrever a respeito da história do futebol no Brasil nas décadas seguintes. Além
ISSN: 2525-7501
disso, revela a maneira como os membros do IHGB pensavam a participação do negro na
formação da identidade brasileira e na sua contribuição para o desenvolvimento do esporte do
país até aquela data.

As edições especiais do IHGB


O ano de 1922 foi marcante para a sociedade brasileira. O Estado preparou eventos de
celebração do centenário da independência do Brasil por inúmeras cidades do país, com
especial atenção para o Rio de Janeiro, a então Capital Federal. Foram muitas as obras,
reformas, inaugurações de monumentos, sessões de concertos de música clássica ao ar livre e
tantas outras iniciativas. Mas nenhuma delas chamava tanto a atenção do público carioca quanto
a Exposição Internacional e um campeonato poliesportivo internacional, disputado entre atletas
de nações sul-americanas, com anuência do Comitê Olímpico Internacional e considerado o
primeiro campeonato sul-americano da história. O evento ficou conhecido como “Jogos
Olympicos do Rio de Janeiro”. Em meio ao clima preparação da celebração da nação, o IHGB
foi chamado a fazer um verdadeiro balanço da história e da geografia do Brasil por meio da
publicação de um grande dicionário sobre o país, a ser publicado no ano de 1922. Mais uma
volumosa obra em que estariam presentes os traços de toda uma tradição historiográfica de um
920
dos mais importantes institutos de pesquisas em humanidades do país.

Não restam dúvidas quanto à importância do IHGB nos rumos que a historiografia
nacional tomou. Desde a sua fundação no início do Segundo Reinado até meados dos anos
1930, quando passou a dividir a atenção dos historiadores com outras associações e publicações
destas áreas, o IHGB praticamente monopolizou a produção acadêmica historiográfica
brasileira, principalmente através de suas inúmeras publicações periódicas e especiais. A
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB) foi, durante a segunda metade
do século XIX e início do XX, a principal referência para os estudos da história do Brasil.

O IHGB não publicava apenas a RIHGB. Ao longo de sua trajetória, o Instituto foi
responsável pelo lançamento de outras obras de relevância. Nos primeiros cem anos de sua
existência, para além dos mais de 150 números da Revista, o IHGB já havia publicado 33
volumes especiais e vários boletins da mesma natureza. Os volumes especiais eram publicados
para comemorar eventos de particular interesse para o IHGB. Alguns exemplos destas edições
especiais são os números sobre a visita de cordialidade da frota chilena ao Brasil, em 1889, ou
ISSN: 2525-7501
os dois volumes dedicados a Colombo, publicados em 1892, em alusão à comemoração do
quarto centenário do descobrimento da América. Neste mesmo ano, um outro volume foi
publicado dedicado ao centenário da morte de D. Pedro II. Dois anos depois, o estadista
mereceu outro volume especial organizado pelo IHGB (POPPINO, 1977, p. 290).

Entretanto, foi no ano de 1922 que o IHGB mais publicou edições especiais. Devido à
importância da data a ser celebrada naquele ano, as ações do instituto começaram a ser
planejadas com muita antecedência. Ainda em 1898, o conselheiro Manoel Francisco Correa,
então primeiro vice-presidente do IHGB, havia salientado em ata uma proposta no sentido do
Instituto ajudar a promover uma grande comemoração no ano do centenário da independência.
Entregou ao tesoureiro da instituição cinco apólices municipais

para serem os juros convertidos em outras apólices de que o Instituto Histórico


disporá em 1922 para applicar o produto na sessão solene que celebrará em 7
de setembro desse anno, o primeiro centenário da Independência do Brasil.
[...] É aqui que a população do globo há de concentrar-se um dia (CORREIA,
1898, p. 691).

921
Assim pensava um dos principais dirigentes da revista em relação à data do centenário:
a ideia de que o Brasil, naquele dia, seria o centro do mundo. Sua fala denota a percepção de
que os centenários de datas importantes eram oportunidades em que alguns países realizavam
exposições internacionais, tentando concentrar as atenções do mundo. As comemorações de
centenários das mais diversas naturezas,

foram inventadas no fim do século XIX[, e]m algum momento entre o


centésimo aniversário da Revolução Americana (1876) e o da Revolução
Francesa (1889) – ambos comemorados com as exposições internacionais de
praxe [...]. (HOBSBAWN, 1988, p. 29).

E se o mundo todo se concentraria aqui, o IHGB não poderia deixar de participar


ativamente de ações de relevância. A ideia de se organizar um dicionário sobre o Brasil e
publicá-lo em 1922 como uma das principais iniciativas do instituto teve lugar, pela primeira
vez, na seção do IHGB de 23 de agosto de 1915. As atas daquela sessão, revelam um certo
descontentamento e desconforto com pesquisadores europeus e brasileiros, nomeadamente
Eduardo Prado, que passaram a justificar o subdesenvolvimento da América Latina através de
ISSN: 2525-7501
teorias que condenavam a mistura de raças nesta parte do continente. Não eram novas as teorias
e análises sociais que apontavam a superioridade do homem branco e europeu e condenavam a
mistura de raças como degeneradoras dos aspectos civilizatórios. Desde o século XVIII,
filósofos, cientistas sociais e historiadores como Voltaire, Immanuel Kant, Hegel, Comte,
Tocqueville, Weber, Durkheim e Marx expuseram de forma mais ou menos explícita esse
aspecto e, “na vasta reflexão dos filósofos das luzes sobre a diferença racial e sobre o alheio, o
mestiço é sempre tratado como um ser ambivalente, visto ora como o ‘mesmo’, ora como o
‘outro’.” (MUNANGA, 1999, p. 23).

Em uma das notas informativas que o IHGB fazia publicar no Diário Oficial, em 1920,
a organização de um congresso e do dicionário eram os principais “emprehendimentos do
Instituto [que estavam] em franco desenvolvimento, com apoio reiterado do Governo”. A nota
destacava que as ações estavam bastante adiantadas em sua organização e concluia: “De tudo
isto se póde concluir a importante participação do Instituto Historico e Geographico Brasileiro
na commemoração do centenario da Independência” (BRASIL, 1920, p. 21.598).

É interessante notar a afirmação de que o dicionário já estava quase pronto, com seu 922
primeiro volume organizado por capítulos em ordem alfabética, e com a prova quase pronta
para ser enviada para a gráfica. No entanto, podem ser notadas sensíveis diferenças quanto ao
que foi publicado em 1920 e com a efetiva organização da obra, lançada em 1922. A maior
dessas diferenças é justamente a ausência, na divisão inicial, do verbete “Desportos”. Se em
dezembro de 1920, menos de dois anos antes do lançamento da obra, não havia planos para a
redação de um verbete dedicado aos esportes, algo deve ter mudado no decurso desse período
para que as práticas esportivas fossem contempladas neste “programa de estudos” do IHGB.
Acredito que o fator mais importante tenha sido a dimensão que a organização dos Jogos Sul-
Americanos de 1922 vinham tomando no país (SANTOS e MELO, 2012).

O Dicionário de 1922
Em 18 de janeiro de 1922, o IHGB passou a receber maiores benesses do governo. Com
a assinatura de um decreto pelo presidente Epitácio Pessoa, o Instituto passaria a receber uma
subvenção anual de 40:000$000, além de publicar os números de RIHGB e dos volumes do
Diccionário pela Imprensa Nacional e isenção de cobrança para publicar as atas de suas
reuniões no Diário Oficial (BRASIL, 1922, p. 897). Em setembro daquele ano era publicada
ISSN: 2525-7501
obra em dois volumes, 2..436 páginas de uma “synthese geral do Brasil physico e político”
como apontava o editorial do Jornal do Commercio de 21 de outubro de 1922. Segundo a
publicação daquele periódico, alusiva ao 84º aniversário do IHGB, o dicionário foi elaborado
por “historiographos, geographos, ethnologos, sociologos e mais outros especialistas dos
differentes assumptos’ chegando a firmar que “nunca jamais appaereceu entre nós obra que
mais fé merecesse nas matérias de que trata” (JORNAL DO COMMERCIO, 1922, p. 1), dentre
eles os “Desportos”.

Dois dos pontos a se notar na produção historiográfica da RIHGB nesse período,


segundo Vicente Tapajós, são “a qualidade e a coerência da Revista”. O autor publicou, no ano
do sesquicentenário da revista, em 1989, um artigo que, através da leitura do primeiro número,
em 1839, do número do cinquentenário, em 1889, e do centenário, em 1939, que se propunha
a fazer um balanço da produção da revista. Para o autor, os pontos em comum entre os três
números eram a preocupação com a qualidade e os avanços metodológicos. Por este motivo, “a
Revista faz-se e permanece como a maior contribuição do Instituto à cultura brasileira”
(TAPAJÓS, 1989, p. 18).
923
Poppino também destacou o papel do IHGB e de sua principal publicação. Segundo este
autor, a RIHGB era

a principal publicação científica do Brasil e, como tal, fixou os padrões


intelectuais do país. [...] o que há de mais fundamental e melhor no
pensamento brasileiro em matéria de ciências sociais no século dezenove,
apareceu primeiro nas páginas da Revista (POPPINO, 1977, p. 305).

O que se procura demonstrar neste artigo é justamente como essa coerência da revista
pode ser percebida na maneira como o verbete “Desportos”, inserido no Dicionário Histórico,
Geográphico e Ethnográfico de 1922, foi escrito. Ao analisar esta produção, pode-se perceber,
com clareza, como a produção historiográfica do IHGB, que buscava definir a nação brasileira
“dando-lhe uma identidade própria capaz de atuar tanto externa quanto internamente”
(GUIMARÃES, 1988, p. 6).

O mesmo autor, falando sobre os primeiros pesquisadores a escreverem textos de


história para o instituto, mostra que
ISSN: 2525-7501
“presos ainda à concepção herdada do iluminismo, de tratar a história
enquanto um processo linear e marcado pela noção de progresso, nossos
historiadores do IHGB empenhavam-se na tarefa de explicitar para o caso
brasileiro essa linha evolutiva, pressupondo certamente o momento que
definiam como o coroamento do processo”. (GUIMARÃES, 1988, p.11)

Podemos observar, como veremos adiante, uma certa coerência com o discurso
historiográfico da Revista na produção do Dicionário como um todo. No verbete “Desportos”,
mais especificamente, observa-se também esse tipo de construção do discurso histórico. Os
esportes mais praticados no Brasil (turfe, remo e futebol), ou tinham raízes ainda na colônia,
ou imbricavam-se com características naturais dos povos que formaram a população brasileira,
como veremos adiante. Assim, coadunava-se com um projeto de História, que desde seus
momentos iniciais, foi vista “segundo sua instrumentalidade para a compreensão do presente e
encaminhamento do futuro” (GUIMARÃES, 1988, p. 12). Passemos a análise mais detida do
verbete para observarmos como a escrita da História preconizada pelo IHGB.

Os “Desportos”
924
O verbete “Desportos”, correspondia ao décimo sexto capítulo do 1º dos dois volumes
do Diccionário. Escrito por dois autores, Roberto Trampowski Junior e Francisco Calmon, e
com cerca de seis páginas. O primeiro autor encarregou-se de fazer um breve histórico geral
das atividades chamadas por ele de esportivas e sua contribuição para a configuração dos
esportes naquele período. Calmon ficou responsável pelo histórico mais detalhado de algumas
modalidades mais famosas, como o turfe, o remo, os esportes aquáticos e o futebol, além de
apresentar um quadro da situação em que esses esportes se encontravam no ano de 1922. No
entanto, a parte destinada a Calmon e mais descritiva e não se preocupa tanto com a explicação
do desenvolvimento do esporte e sua relação com a identidade brasileira.

O tratamento dado ao objeto pelos autores está delineado dentro dos preceitos do IHGB
de escrever uma história do país ancorada na visão que as elites tinham desse processo. “Há de
ser tratada a história do desenvolvimento esportivo brasileiro” (p. 412), era o que se propunha
a fazer Trampowsky. Um desenvolvimento, segundo ele, ainda incipiente, que apenas
começava a atingir plenamente a fase de “systematização capaz de dar corpo ás actividades
desportivas e constitui-las em factor distincto e apreciável de progresso” (p. 412). O autor
ISSN: 2525-7501
aponta, entretanto, que entretenimentos e jogos praticados desordenadamente foram tiveram
“influência propulsora” no desenvolvimento dos esportes, ligados às características mais gerais
do território, que orientavam a sua ocupação.

Na primeira parte do verbete, Trompowsky Junior, 1º secretário da Confederação


Brasileira de Desportos e chefe da delegação olímpica brasileira que foi aos Jogos de Antuérpia,
em 1920, se aventura a discorrer sobre as práticas físicas no período colonial que podem ter
influenciado e impulsionado determinadas práticas esportivas modernas. Os autores não
explicitam o que entendem por Desportos, e Trampowsky acaba chamando de práticas
esportivas toda e qualquer manifestação física. Desta maneira, o autor inicia a descrição das
atividades náuticas desde a época das primeiras ondas da colonização e a contribuição de índios
e portugueses para o desenvolvimento náutico nacional.

Há de se ter em mente que no início do século XX, as regatas concorriam com o turfe e
com o futebol como os principais espetáculos de entretenimento esportivo nas principais
cidades do país. Para o autor, reforçando a característica metodológica do período da busca de
raízes no passado para os fenômenos contemporâneos, as “iniciativas isoladas” foram se 925
congregando e permitiram que, após 1850, fossem fundados os “primeiros agrupamentos
essencialmente desportivos”. Tal processo teria tomado corpo quando se passaram a importar
embarcações mais apropriadas à prática náutica desportiva.

Na sequência da história do esporte no país, descreve-se que a “mocidade brasileira”


ainda estava sujeita a “ascetismo pleno de vícios e sentimentalismo” e que não havia ainda se
apresentado a ela “ a formula desportiva capaz de operar o milagre de uma transformação
necessária e profunda nos hábitos, na educação da mocidade”. Não havia sido ainda apresentado
a esta mocidade uma modalidade que se adequasse melhor aos seus “caracteres ingenitos,
physicos, psychicos, entre os quais avultavam a nervosidade latina e a combatividade indígena”
(p. 413). Segundo o autor “este papel estava reservado ao football” (Idem).

Na visão deste autor, “o desporto vencia” e colocava a sociedade e a educação brasileiras


em um outro patamar. Na sequência da descrição, mostra como o futebol passa a ser importante
modalidade nas competições internacionais e cita feitos de conquistas do selecionado nacional.
Sem citar a questão do negro e sem dar uma prova sequer sobre a participação da
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“combatividade indígena” na formação desta mocidade brasileira ou na formação deste atleta
que o autor descreveu, a seleção nacional de futebol passa a simbolizar o crescimento do país,
quando por exemplo, vence os argentinos, em Buenos Aires, pela Copa Rocca de 1915, “uma
das mais gloriosas datas do desporto nacional” (Idem).

Na sequência, o autor descreve o comportamento dos brasileiros na única grande


competição internacional sediada no país até 1922, o Campeonato Sul-Americano de futebol
de 1919. Os “elementos nacionaes” que revelaram ao mundo o “surto glorioso de uma nova
raça, forte, audaz, grande e viril” nada mais eram que sócios de clubes esportivos frequentados
por elementos da elite do Rio de Janeiro e de São Paulo. Muitos dos jogadores de futebol que
representaram o Brasil naquela conquista faziam parte dessa elite, como Marcos Carneiro de
Mendonça, o goleiro do Fluminense Football Club, figura ímpar no futebol brasileiro, que
chegou a ser membro do IHGB e historiador reconhecido nos estudos sobre Marquês de
Pombal.491 Ao lado de figuras da elite, como Mendonça, outros jogadores de classe média
formavam a seleção, acompanhados de um ou outro atleta de origem mais humilde, menos
abastados e jogando profissionalmente, como Amílcar, Neco e Friendenreich, o único mulato
da seleção.
926
CONCLUSÃO

Desde 1922, a configuração do futebol mudou muito no Brasil. Assim como mudou
também a maneira de se escrever a sua história e a própria maneira de se escrever a história do
país. A influência que o IHGB teve na interpretação da identidade nacional foi importante e
esta influência pode ser vista também na escrita da história sobre o futebol brasileiro. Apesar
deste trabalho ser apenas uma aproximação inicial da interpretação do verbete, pode-se perceber
a maneira pela qual o instituto se posicionou na primeira vez em que se colocou a interpretar a
historicidade do esporte enquanto fenômeno social.

A questão do negro no futebol brasileiro não pode estar descolada da questão do negro
na sociedade brasileira. Como afirma Júnia Sales Pereira (2008),

491
Para informações mais Marcos Carneiro de Mendonça Cf. Pereira, 1997. Sobre a participação de Mendonça
no IHGB, Cf. Ipanema, 1994 e Souza, 2010.
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“A questão racial brasileira tem historicidade, estando marcada, na
contemporaneidade, pela emergência – conflituosa e contraditória – de
perfis identitários do Brasil e pela recente problematização da
propalada realização brasileira como sociedade plural, diversa,
democrática, inclusiva e igualitária”. (PEREIRA, 2008, p.26)
Tal paradigma tomou corpo com o aparecimento de Gilberto Freyre, na década de 1930,
e sua tese central de que o Brasil havia sido construído sobre relações harmoniosas entre
brancos e as outras raças até então consideradas como inferiores. Esta realização brasileira
como sociedade plural, diversa, democrática, inclusiva e igualitária, encontrou no futebol uma
de suas grandes manifestações, a partir da célebre obra “O Negro no Futebol Brasileiro”
(FILHO, 2003). O autor se apoia nas teses freyreanas para a construção de um discurso de
superação do negro por meio do futebol. A primeira edição, datada de 1947, tem inclusive o
prefácio escrito por Gilberto Freyre. Em relação à obra de Mario Filho, há algum tempo sua
tese e suas utilizações posteriores já foram alvo de críticas (SOARES, 1999). Mas, além do
impacto na época, esta obra é “provavelmente a maior influência na criação de um imaginário
que ainda hoje marca a identidade do futebol no Brasil” (SANTOS e DRUMOND, 2013, p.
23). 927
Mudava-se a concepção de quem eram os personagens essenciais da formação do
jogador de futebol brasileiro, entrando junto da “nervosidade latina” e da “combatividade
indígena” a “capoeragem e o samba” (FREYRE, 2003, p.25). Se há a entrada de um elemento
novo, há também a manutenção da ideia de miscigenação ou de “caldeamento das raças”
presente nos escritos do IHGB e também no de Mario Filho. Se o negro foi esquecido no
“Diccionário de 1922” na sua contribuição à formação do campo esportivo no Brasil até aquela
data, a noção de miscigenação continuou sendo a articulação principal. Anteriormente de
brancos e indígenas, posteriormente do branco com o negro – e esquecendo-se dos indígenas.
A miscigenação seria o mote da reificação da integração das raças por meio do futebol nas
décadas seguintes.

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929
ISSN: 2525-7501
ATIVIDADES CULTURAIS E SOCIABILIDADE ENTRE UCRANIANOS DE UNIÃO
DA VITÓRIA492
Claudio Cavalcante Junior493

RESUMO

Esta comunicação tem como objetivo apresentar como se configuram as atividades culturais
entre ucranianos de União da Vitória (PR). É possível dividir as atividades da comunidade
ucraniana no Paraná em duas categorias: (1) religiosas, realizadas, sobretudo, pela Igreja Grego-
Católica Ucraniana, Igreja Católica sui juris, da qual faz parte a maior parte dos descendentes
de ucraniano no Brasil; e (2) culturais, realizadas pelos grupos folclóricos que contam, em geral,
com relações mais ou menos estreitas com instituições religiosas ucranianas. No caso de União
da Vitória, a sociabilidade da comunidade ucraíno-brasileira já esteve restrita às igrejas e a uma
associação étnica. Hoje uma parte da sociabilidade se dá no espaço do antigo Clube Ucraniano
de União da Vitória, sede do Folclore Ucraniano Kalena (com seus grupos infantil, juvenil e
adulto), onde o grupo realiza ensaios e eventos que inclui jantar com pratos típicos ucranianos
para grupos de empresa ou de turistas que estão de passagem pela região. O Clube Ucraniano,
antiga matriz, depois filial de União da Vitória da União Agrícola Instrutiva (UAI), hoje
rebatizada de Sociedade Ucraniana do Brasil (SUBRAS), com sede em Curitiba, onde hoje são
realizadas as atividades culturais do Grupo Folclórico Ucraniano Barvinok (com seus grupos
de dança e coral), já foi um espaço exclusivo e etnificado, que contava com sócios que pagavam
930
mensalidade, possuíam carteirinhas, onde havia jantares dançantes, bailes, apresentações
musicais e teatrais e um bar, administrado por um membro da comunidade, que servia membros
da comunidade. Atualmente as atividades do Clube Ucraniano de União da Vitória estão
restritas aos do Kalena e, entre setembro de 2015 a março de 2016, aos encontros do Núcleo de
Artesões de Pêssankas (ovos pintados típicos ucranianos) que aconteciam nas quintas-férias à
noite e foi idealizado por um membro da comunidade que também é presidente do Kalena.
Palavras-chave: Ucranianos; Associações Étnicas; Sociabilidade.

INTRODUÇÃO
Em 2011, foi comemorado os 120 anos do início da imigração ucraniana no Brasil. Uma
comunidade que conta com cerca de 500 mil membros, sobretudo, descendentes concentrados
principalmente no Paraná que abriga 81% da comunidade ucraíno-brasileira494. Uma

492
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
493
Mestre UNESPAR (Campus União da Vitória)/Brasil, cavalcante1981@hotmail.com
494
Dados da Representação Central Ucraino-brasileira (RCUB) disponíveis no link
http://www.rcub.com.br/rcub/quem-somos/imigracao-ucraniana/. Acesso em 10/04/2014. Chamo aqui de
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comunidade bem representativa na capital paranaense e nas regiões sul e centro-sul do estado,
regiões que formam um verdadeiro cinturão eslavo devido também a grande concentração de
imigrantes (e descendentes) poloneses495.

Apesar das semelhanças, que inclui o fato de serem classificadas como povos eslavos,
ucranianos e poloneses, formam grupos distintos que criam fronteiras o que reforça estereótipos
e rivalidades históricas496. A principal fronteira é o exclusivismo religioso, visto que a grande
maioria dos poloneses são católicos romanos, ao passo que os ucranianos são membros da Igreja
Grego-Católica Ucraniana, igreja oriental sui juris que está unida a Santa Sé, mas possui
estrutura hierárquica e liturgias próprias.

A partir da fronteira religiosa e da língua, as comunidades ucranianas passam a criar


deste o início da imigração suas próprias instituições: religiosas e laicas. Nas associações
formadas na comunidade ucraniana, serão valorizadas diversos elementos da cultura ucraniana,
como as danças folclóricas, a música, a poesia e o artesanato. Em União da Vitória, que já foi
um importante centro de organização da comunidade ucraniana, hoje ainda encontramos
atividades de dança folclórica, artesanato e, até recentemente de música, da comunidade 931
497
ucraniana que mantém ligações extra-oficiais com a Igreja Greco-Católica Ucraniana .

Inserção

“ucraniano” aqueles que se definem como tão, portanto trata-se de uma identidade étnica e não a nacionalidade ou
naturalidade dos indivíduos em questão, visto que a maioria dos indivíduos são nascidos em território brasileiro.
495
Os dados sobre o percentual de população ucraniana em diversos municípios do Estado do PR é encontro no
boletim da então Eparquia ucraniana de S. J. Batista disponível em
http://www.eparquiaucraniana.com.br/eparquia/arquivos/PDF/boletim/Boletim25.pdf. Acesso em 15/07/2013.
496
Da Europa também foi importada uma rivalidade histórica nas comunidades ucranianas com os poloneses,
reconstruída no Brasil (WOUK, 1981, p.24; GUERIOS, 2007, p. 170).
497
É importante apontar que há uma minoria cristã ortodoxa na comunidade ucraniana que varia de 5% a 8%,
segundo, respectivamente, Dom Jeremias Ferens, arcebispo ucraniano ortodoxo na América do Sul, em entrevista
disponível em https://www.youtube.com/watch?v=9fjjpQjrLbs (acesso em 17/04/2016), e Vitório Sorotiuk,
presidente da RCUP, em fala na abertura do 42º Congresso da Juventude Ucraíno-Brasileira em Pitanga, no dia
07/02/2015.
ISSN: 2525-7501
Em União da Vitória, frequento esporadicamente, desde 2010 as missas da Igreja São
Basílio Magno, que pertence a Igreja Grego-Católica Ucraniana, assim como outras atividades
realizadas neste espaço como almoços, jantares e bingos beneficentes. Tenho participado do
curso de língua ucraniana desde 2014, promovido pelo pároco da Igreja São Basílio com apoio
das irmãs ucranianas da congregação Servas de Maria Imaculado, que ajudam nas atividades
religiosas da igreja, na catequese, e dirigem uma escola baseada num imóvel que também serve
de moradia em logradouro ao lado da igreja.

Estive algumas vezes em 2010 e 2011 nos ensaios no Folclore Ucraniano Kalena, que
frequentei com assiduidade de setembro de 2015 a setembro de 2016. Frequentei, como
dançarino, ao longo de 2014, outro folclore ucraniano de União da Vitória, chamado Fialka.
Além da dança, manifestações artísticas típicas ucranianas como bordados em ponto-cruz e
pessankas ganham espaço com oficinas, como as que participei de pessankas promovidos pelo
Folclore Fialka em março de 2015 e pelo presidente do Folclore Kalena, Vilson Kotviski, em
setembro do mesmo ano.

Tenho frequentado outros eventos religiosos e culturais da comunidade como Romarias: 932
em Iracema, em março de 2014, e Antonio Olinto, novembro de 2015. Além de participar do
Congresso da Juventude Ucraino-Brasileira em Mamborê, em fevereiro de 2014, e em Pitanga,
em fevereiro de 2015, e dos festivais de dança ucraniana realizados em Mafra (2013), Irati
(2014), neste como dançarino, e em Porto Alegre (2015).

Referencial teórico

Como referência teórica, utilizo neste trabalho a noção de fronteira étnica desenvolvida
por Fredrik Barth (2000) para poder compreender a dinâmica nas relações entre os grupos
envolvidos. Segundo Barth, as fronteiras étnicas só existem em uma situação de contato em que
a diferença (alteridade) constrói a identidade. Assim estas são estabelecidas, através de certos
critérios que demarcam fronteiras entre os grupos, mas que poderiam ser ultrapassadas por
certos atores (ou grupos) quando há possibilidade.
ISSN: 2525-7501
Segundo o autor, as distinções de categorias étnicas implicam processos de exclusão e
de incorporação, através dos quais, apesar das mudanças de participação e pertencimento ao
longo das histórias de vida dos individuais, as fronteiras étnicas são mantidas (BARTH, 2000,
p. 26). Este autor é importante para eliminar algumas características marcantes a cerca da
etnicidade, como a “essencialização” das identidades, um aspecto presente no discurso nativo.
No grupo aqui tratado, é notória a tentativa de estabelecer as fronteiras com o grupo com quem
mais se assemelham: os poloneses.

Diacríticos culturais são usados para a demarcação do pertencimento ao grupo étnico


como a organização do comportamento e das relações sociais, assim como o compartilhamento
de critérios de avaliação e julgamento (BARTH, 2000, p. 34). Tudo isso não quer dizer que a
cultura não possa mudar na situação de contato e mesmo se que isto aconteça, não implica que
haja problemas para a manutenção da fronteira do grupo étnico (BARTH, 2000, p. 67).

Outro autor importante para a compreensão da dinâmica da etnicidade é Thomas


Eriksen, para quem as identidades são também dependentes do contexto social (ERIKSEN,
1993, p. 83). Segundo este, as identidades étnicas são relacionais e situacionais associando em 933
primeiro lugar a identidade étnica à noção de pertencimento a um grupo, mais que o
compartilhamento de uma mesma cultura (ERIKSEN, 1993, p. 18).

No início da imigração, ucranianos eram classificados como “polacos”, o que demonstra


o problema arbitrariedade da classificação étnica (ERIKSEN, 1993, p. 61). Também é notório,
no contexto da pesquisa, a tentativa de redução a esteriótipos étnicos, que regulam o
conhecimento entre grupos, e são por vezes pejorativos, racistas e discriminatórios (ERIKSEN,
1993, p. 22).

No sul do Paraná, há estereótipos em relação aos diversos grupos étnicos como o alemão
que tem fama de ser organizado, ao passo que o ucraniano e o “polaco” são muitas vezes
imaginado como desorganizados. Os estereótipos seriam representações compartilhadas que
ajudam o indivíduo a constituir um sistema simbólico coerente que é constantemente
reproduzido nas diversas esferas do seu cotidiano (ERIKSEN, 1998, p. 52-55). Desta forma, os
esteriótipos não precisam ser verdadeiros e não tem necessidade de dar boas discrições do que
as pessoas de fato fazem. Ademais esteriótipos podem justificar privilégios e diferenças no
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acesso aos recursos da sociedade e são cruciais na definição de fronteiras de um grupo para
outro (ERIKSEN, 1993, p. 24)498.

Além da etnicidade, há um outro conceito importante para compreender o grupo em


questão que é a identidade nacional. Esta dá coesão a vários grupos, formando verdadeiras redes
de solidariedades, informando os sujeitos e colaborando com uma espécie de desejo de
encontrar seus compatriotas na diáspora. Estas pessoas estão unidas de acordo com um mesmo
sentimento nacional ou, antes da diáspora, reunidas, em “uma comunidade política imaginada”
como pode ser definido a “nação” (ANDERSON, 1989, p. 14).

Segundo o Benedict Anderson, a “nação é imaginada porque nem mesmo os membros


das menores nações jamais conhecerão a maioria de seus compatriotas, nem os encontrarão,
nem sequer ouvirão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de sua
comunhão” (ANDERSON, 1989, p. 14).

No mesmo livro, Anderson examina os diversos processos que criaram essas

934
comunidades: a regionalização das crenças religiosas, a decadência dos antigos reinos, a
interação entre o capitalismo e a imprensa, o desenvolvimento de línguas vernáculas de Estado
e um imaginário histórico comum. A nação é imaginada como (1) limitada, com suas fronteiras
fixas, apesar de certa elasticidade, (2) soberana politicamente e (3) uma comunidade com um
companheirismo profundo e horizontal (ANDERSON, 1989, p. 15-16).

A nação é um fenômeno da modernidade, não passa de uma unidade política recente,


apesar da tendência de ser vista pelos nacionalistas como antiga (ANDERSON, 1989, p. 19-20;
ERIKSEN, 1993, p. 101). Pode ser compreendida como uma contingência histórica e não uma
necessidade universal, como os grupos nacionalistas apontam, portanto não teriam nada de
natural (GELLNER, 1983, p. 6, 48). Em sua primeira definição de nação, Gellner afirma ser
esta uma unidade política que agregaria membros segundo: (1) uma cultura compartilhada e (2)
com um caráter voluntarista em que haveria reconhecimento mútuo dos indivíduos como

498
Um esteriótipo negativo criado por um grupo dominante até pode se tornar parte do próprio ponto de vista do
grupo dominado (ERIKSEN, 1993, p. 51).
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pertencentes a uma mesma nação baseada em lealdades e solidariedades entre seus membros
(GELLNER, 1983, p. 7).

A sociedade moderna emergiu tendo como base uma tecnologia de grande poder e
expectativa de crescimento sustentado. Para este fim, requereu uma divisão social móvel, e
proporcionou uma frequente e precisa comunicação entre estranhos envolvendo um
compartilhamento de significado explícito, transmitido em um idioma padrão e escrito quando
requerido (GELLNER, 1983, p. 33-34). Neste contexto houve a necessidade de um sistema de
educação nacional que geraria coesão social. Desta forma, o monopólio legítimo da educação
é mais importante e central que o monopólio da violência legítima para o Estado como apontou
Weber (GELLNER, 1983, p. 34).

A comunidade ucraniana no Brasil, mesmo antes da independência política em 1991,


manipula as atividades culturais e, muitas vezes, as religiosas para a expressão do nacionalismo
ucraniano. Tentam apresentá-la como uma comunidade imaginada dispersa e descontínua ao
longo de um espaço que dificilmente poderia ser pensando como uma “uma comunidade
politicamente imaginada – e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo 935
tempo, soberana” (ANDERSON, 2008, p. 32), o que já está presente em textos de memorialistas
ucraino-brasileiros (BURKO, 1963; HANEIKO, 1985). Com estes, há uma tentativa de
descrever um “sentimento nacionalista” homogêneo, produto da violação de um princípio
nacionalista decorrido da não realização da unidade política e nacional do um povo
(GELLNER, 1983, p. 1).

Ao tratar da importância da língua para os nacionalismos europeus, Anderson inclui


como exemplo o desenvolvimento do ucraniano como língua nacional no século XIX. Segundo
o autor:

No século XVIII, o idioma ucraniano (“pequeno russo”) era tolerado com desdém,
como língua de campônios. Mas, em 1798, Ivan Kotlarevsky escreveu a sua Eneida,
um poema satírico tremendamente popular sobre a vida ucraniana. Em 1804, foi
fundada a Universidade de Cracóvia, que se tornou logo o centro de uma explosão
da literatura ucraniana. Em 1819, surgiu a primeira gramática ucraniana – apenas
dezessete anos depois da gramática russa oficial. E nos anos de 1830 seguiram-se as
obras de Taras Shevtchenko, a cujo respeito Seton-Watson observa que a “formação
de uma língua literária ucraniana em comum deve mais a ele do que a qualquer outra
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pessoa. O uso dessa língua foi a etapa decisiva na formação de uma consciência
nacional ucraniana”. Logo a seguir, em 1846, foi fundada em Kiev a primeira
organização nacionalista ucraniana – e por um historiador! (ANDERSON, 2008, p.
116).

No trecho citado acima, Anderson em nota aponta o quanto a língua ucraniana foi
perseguida pelo czarismo, mas que os Habsburgos, do Império Austro-húngaro, teriam dado
“um certo incentivo aos nacionalistas ucranianos na Galícia – para compensar os poloneses”,
exatamente da região de onde vieram a grande maioria dos ucranianos no Brasil. Se na parte
ocidental que era imaginada como Ucrânia houve um processo de “polonização”, no final do
século XIX, os povos submetidos ao Czar Alexandre III foram alvo de políticas de
“russificação”(ANDERSON, 2008, p. 116)499.

Após apresentar os conceitos-chaves deste trabalho, é mister apresentar a bibliografia já


produzida sobre a presença ucraniana no Brasil. Esta teve início na década de 1960 através do
padre Valdomiro Burko (OSBM),com o pioneiro Imigração Ucraniano no Brasil (1963) em
que após fazer um levantamento da história da Ucrânia desde sua gênese, aponta aspectos
culturais e políticos da Ucrânia, a distinguindo de outras nações eslavas e apresentando dados 936
sobre a imigração e a presença da comunidade naquele momento.

Alguns dos textos produzidos sobre a presença ucraniana foram como Burko escrito por
um membro do clero, que pertencia a Ordem S. Basílio Magno (OSBM) que divide as funções
eclesiásticas com o clero diocesano na Igreja Greco-Católica Ucraniana no Brasil. O pe.
Valdemiro Haneiko, sacerdorte greco-católico ucraniano diocesano, também foi um importante
memorialista da comunidade ucraniana publicando algumas obras sobre o assunto como Uma
centelha de Luz (1985), em que além de apresentar a história da imigração, faz um inventário
dos padres diocesanos ucranianos que atuaram ou haviam atuado no Brasil. Uma outra obra
importante do pe. Hanieko foi Em Defesa de uma Cultura (1974) em que através de artigos
descreve a situação da Ucrânia na década de 1960 em pleno regime soviético.

499
A questão da distinção entre as línguas russa e ucraniana é abordada por Burko que em sua obra pioneira tenta
ademais distinguir os ucranianos de outras populações eslavas (BURKO, 1963, p. 15, 21).
ISSN: 2525-7501
As demais produções bibliográficas sobre a presença ucraniana no Brasil, e sobretudo
no Paraná, foram trabalhos acadêmicos escritos também a partir da década de 1960 como o do
linguísta Miguel Wouk (1981[1965]) sobre bilinguismo entre ucranianos em Dorizon,
município de Mallet, em que faz uma defesa do uso do termo “ucraíno” ao invés de
“ucraniano”500, defesa reforçada por Haneiko (1985). Este termo é inclusive muito forte hoje
entre comunidades rurais do Paraná e em Santa Catarina.

Os primeiros trabalhos sobre a presença ucraniana como os de Burko (1963) e Wouk


(1981 [1965]) já apresentam as fases da migração, depois reforçados pela historiadora Oksana
Boruszenko (1969, p. 428-9) que também aponta as primeiras regiões que estabelecimento dos
colonos ucranianos que inclui a região de União da Vitória.

Outros trabalhos de relevância sobre a presença ucraniana são A Imigração Ucraniana


do Paraná (1989), de Paulo Horbatiuk, texto baseado na sua dissertação de mestrado defendida
na PUC-PR em 1983 e que trata da presença ucraniana em Dorizon (PR). Maria Luiza
Andreazza (1995) com sua tese Paraíso das Delícias faz um levantamento pioneiro da
formação da família ao longo de um século na comunidade ucraniana de Antônio Olinto (PR). 937
501
O município de Prudentópolis que possui a maior concentração de descendentes de
ucranianos no Brasil foi tratado nos trabalhos de Paulo R. Guerios (2007) e Odinei F. Ramos
(2012), ambos teses de doutorado. Outros trabalhos relevantes sobre a comunidade ucraniana
são o TCC, do hoje padre, Neomir D. Gasperin (2010) sobre a presença ucraniana na colônia
Legru, município de Porto União (SC), e o Leonardo P. Garin (2010) e Isabella C. R. Oliveira
(2012) sobre a comunidade ucraniana de Curitiba.

Ucranianos de União da Vitória

500
A escolha em adotar o termo “ucraíno” e não “ucraniano” está alicerçada na etimologia do próprio termo que
forma “Ukraina” com a preposição “u” (em) + “krain(a) (terra)” ou região limítrofe (WOUK, 1981, p. 27).
501
Cerca de 70% da população de Prudentópolis tem ascendência ucraniana Conferir:
http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?tl=1&id=1500142&tit=A-Ucrania-no-Parana,
acesso em 21/09/2014. Segundo o boletim da então Eparquia São João Batista de Curitiba disponível em
http://www.eparquiaucraniana.com.br/eparquia/arquivos/PDF/boletim/Boletim18.pdf, 75% da população
prudentopolitana tem ascendência ucraniana
ISSN: 2525-7501
Desde o início da imigração ucraniana para o Brasil, há a fundação de igrejas, escolas,
de associações culturais e instituições como a União Agrícola Instrutiva (UAI), antiga União
Ucraína no Brasil, que se tornou Sociedade Ucraniana do Brasil (SUBRAS)502, e a Sociedade
dos Amigos da Cultura Ucraniana (TPUK) (BURKO, 1963, p. 76; HANEIKO, 1985, p. 49-50)
. Além disso, há jornais da comunidade ucraniana que estão em circulação desde o início do
século XX, como o Missionário Ucraniano no Brasil (1911), Pracia (“Trabalho” em
ucraniano) (1912), ambos fundados e dirigidos pelos sacerdotes da OSBM, e Khliborob
(“Lavrador” em ucraniano) (1924), editado pelo SUBRAS.

Apontada como “povo profundamente religioso” (HANEIKO, 1985, p. 39), os


descendentes de ucraniano não deixam de dar grande valor a outras tradições culturais (ou
nacionais) por isso, além da dança, em instituições laicas ou religiosas, é comum a realização
esporádica de oficinas para a manufatura de ovos pintados (ou “escritos”) (Pessankas), os
bordados ucranianos que são feitos com ponto cruz merecem destaque e estão presentes nos
diversos espaços marcados pela comunidade ucraniana, seja nos trajes típicos comuns em
algumas atividades culturais da comunidade ou nas Igrejas.
938
Entre as atividades ucranianas, merece destaque o do Folclore Ucraniano Kalena, uma
instituição que agrega a comunidade atuando, mesmo com certos limites, como um antigo clube
étnico, onde famílias se envolvem nas atividades do grupo, hoje através de “promoções”, o que
substituiu o pagamento de mensalidades, e onde é possível a expressão de elementos
importantes das tradições ucranianas abrangendo várias gerações de uma mesma família, apesar
de hoje não ser mais uma instituição fechada exclusiva para ucranianos e descendentes.

No Clube Ucraniano, antiga filial da Sociedade Ucraniana do Brasil, centro da


sociabilidade da comunidade ucraniana, eram realizados jantares, bailes, apresentações teatrais,
festas de casamento (dos membros da comunidade ucraniana), entretanto hoje suas atividades
se limitam às do Folclore Ucraniano Kalena. Neste espaço etnificado, há também um bar que
está desativado que era frequentado pelos ucranianos. Trata-se de uma associação/clube, onde
seus sócios tinham carteira e pagavam mensalidades.

502
Conferir www.rcub.com.br/rcub/quem-somos/sociedades-ucranianas. Na década de 1980, foi fundada a
Associação da Juventude Ucraino-Brasileira e o Clube Poltava.
ISSN: 2525-7501
Seus membros, em geral, começam no grupo infantil e são membros ativos da
comunidade católica ucraniana, como são chamados os filiados a Igreja Grego-Católica
Ucraniana, o que proporciona a interação entre atividades culturais e religiosas.

Ao longo da realização do meu trabalho de campo no Kalena, percebi que uma


quantidade relevante de membros do grupo fazem “carreira” nele. Ou seja começam no grupo
infantil ou juvenil e crescem no grupo. Muitos dos membros são filhos de ex-dançarinos ou tem
algum familiar que dança ou dançou no grupo. Posições de destaque como o de coreógrafo e
de ensaiador são ocupadas por dançarinos ou ex-dançarinos.

Um acontecimento que merece destaque ocorreu em 12 de junho de 2016. Como todo


domingo, havia ensaio, entretanto, naquele domingo, havia sido enterrado o fundador do
Kalena, o que motivou o presidente do grupo, Vilson Kotviski, a prestar homenagem ao padre
Valdomiro Barabach, que havia morrido no dia anterior. Ele foi apontado como aquele que
junto com os jovens da Congregação Mariana, grupo de jovens ucraniano que frequentavam a
Igreja S. Basílio, incluindo o sogro do atual presidente do Kalena, João Sliwisnki, haviam
iniciado o Kalena em 1969, logo após assistirem a um show do Barvinok, grupo ucraniano de 939
Curitiba, em um teatro que não existe mais na cidade.

Vilson apontou que eles começaram a ensaiar na casa paroquial e logo depois, o padre
conversou com o então presidente do Clube Ucraniano, que cedeu espaço para os ensaios onde
são realizados até hoje. Segundo Maria Mitzko, uma das fundadoras do grupo, em conversa
informal, numa viagem para Porto Alegre, em 06 de novembro de 2015, cujo pai foi presidente
do Clube Ucraniano, na época o padre (Valdomiro Barabach) começou a organizar as danças a
partir de um livro sobre dança ucraniana e uma fita cassete. É importante apontar que nos
folders dos Festivais de Dança Ucraniana que ocorrem todos os anos, existe variação em relação
a quem é o fundador do grupo: nos primeiros aponta que foi o citado padre Valdomiro
Barabach, nos mais recentes os “Jovens da Congregação Mariana”.

CONCLUSÃO
ISSN: 2525-7501
As atividades do Kalena mobilizam muitos membros da comunidade ucraniana: como
nos Bingos que o grupo realizou em 26 de setembro de 2015 e em 20 de agosto de 2016,
realizada no salão da Igreja Ucraniana São Basílio Magno. Neste mesmo espaço ocorrem
bingos que tem como beneficiários a Catequese Ucraniana ou a própria Igreja.

Muitos dos membros do Kalena são envolvidos com diversas atividades da Igreja como
Catequese, Movimento Jovem ou na administração da mesma. Alguns ajudam na cozinha ou
no bar que funciona nos eventos. Nestas ocasiões, percebi alguns aspectos geracionais no grupo
folclórico e nas atividades religiosas: apesar de não haver formalmente uma ligação entre o
grupo e a Igreja, o Kalena atua na Igreja na Sexta-feira Santa na Guarda do Sudário e, como no
ano de 2016 o ensaio do grupo juvenil é aos sábado, a mãe de uma integrante do grupo, que é
catequista, sugeriu503 a mudança de horário, já que “grande parte dos integrantes fazia parte do
MEJ”.

As atividades do Kalena hoje estão restritas aos ensaios dos três grupos que ocorrem no
Clube Ucraniano de União da Vitória, filial da antiga União Agrícola Instrutiva, hoje Sociedade
Ucraniana do Brasil, onde houve de setembro de 2015 a março de 2016 os encontros do Núcleo 940
de Artesão de Pessankas de Porto União, promovido pelo presidente do Kalena, Vilson
Kotviski.

O espaço do antigo Clube, um clube étnico, exclusivo, fechado a comunidade, hoje está
reduzido às atividades folclóricas. Estas atividades incluem apresentação do Kalena para grupos
fechados de empresas ou turistas que ocorrem esporadicamente acompanhado por jantar típico
ucraniano.

Apesar de não ser mais um clube, o grupo folclore mobiliza famílias em atividades de
um grupo étnico exclusivo, nos ensaios, principalmente no infantil, acompanhado pelos pais e
nos jantares que mobilizam as “mulheres da cozinha”, como é chamado o grupo que ajuda na
cozinha da São Basílio Magno. Desta forma, é possível perceber uma integração entre as

503
Informações colhidas em reunião das responsáveis pelo grupo infantil e juvenil do Kalena com os pais dos
integrantes realizada no Clube Ucraniano de União da Vitória em 22/03/16.
ISSN: 2525-7501
atividades da comunidade ucraniana, mobilizando os membros tanto para atividades religiosas
quanto culturais.

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ISSN: 2525-7501
GRUPO ÉTNICO-CULTURAL POLONO-BRASILEIRO: IDENTIDADE E
AGENCIAMENTO DA MEMÓRIA NA CONTEMPORANEIDADE

Fabiana Regina da Silva504

Jorge Luiz da Cunha 505

Apoio: CAPES

RESUMO
Na presente pesquisa buscamos uma reflexão em relação à identidade étnico-cultural polonesa
no Brasil, na contemporaneidade, e sua relação com a memória, e agenciamento de dispositivos
de memória. Assim, teremos como fontes para análise, a página da Representação da
Comunidade Brasileiro-Polonesa no Brasil - Braspol, além, da narrativa autobiográfica da

943
pesquisadora polonesa Renata Siuda-Ambroziak em artigo publicado na Revista Polonicus
(2011), narrando sua incursão e experiência de pesquisa na comunidade polono-brasileira, seu
entendimento de Polônia e a emergência de um Polonismo no Brasil, percepções sobre os
polono-brasileiros que não conhecem a Polônia. “A compreensão desenvolvida a partir da
inteligibilidade de sua própria vida revela ao pesquisador a capacidade epistemológica de aderir
a sentidos que não eram os seus e reconstruir relações significantes particulares ao seu objeto
de estudo” (DELORY-MOMBERGER, 2008). Para isso, em uma perspectiva cultural, partimos
de que “O controle da significação e a imposição do sentido são sempre uma questão
fundamental das lutas políticas ou sociais e um instrumento maior da dominação simbólica”
(CHARTIER, 2002). As reflexões relacionadas à memória e identidade são complementadas
pelas contribuições teóricas de Fernando Catroga, Joel Candau, Michel Pollak e Andreas
Huyssen. Nos últimos anos, a identidade étnico-cultural polono-brasileira encontra-se
singularmente revitalizada através de Sociedades e Associações étnico-culturais nacionais e
internacionais presentes em várias comunidades de diferentes estados do país, nesse processo,
memória e identidade são indissociáveis.

504
Doutoranda em História - Programa de Pós-Graduação em História - Universidade Federal de Santa Maria –
fabianareginadasilva@yahoo.com.br

505
Orientador – Docente no Programa de Pós-Graduação em História - Universidade Federal de Santa Maria –
jlcunha@smail.ufsm.br
ISSN: 2525-7501
Palavras-Chave: Memória; Identidade Étnico-Cultural; Polono-Brasileiros;

INTRODUÇÃO

A comunidade polono-brasileira tem travado uma constante atividade nos últimos anos,
em relação à emergência de uma cultura, uma construção e reconstrução da identidade étnico-
cultural, alimentada por memórias e lugares de memória. Nesse processo, reavivar, criar e
reeditar significações culturais tem sido uma constante. Dentre tais ações, podemos destacar a
revitalização de associações, sociedades e clubes culturais em diferentes estados e regiões do
país, em maior número no sul do país, nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e
Paraná, entre estas, a Sociedade Águia Branca em Rio Grande – RS, Sociedade Polônia em
Porto Alegre - RS, Sociedade Tadeusz Kosciuszko em Curitiba – PR, entre outras, além, de
organizações como a Representação da Comunidade Brasileiro-Polonesa no Brasil - Braspol.

O envolvimento com a temática de pesquisa tem nos levado a acompanhar as diferentes


ações da comunidade polono-brasileira, divulgadas tanto em meios impressos, quanto, 944
radiofônicos e comunitários, mas, principalmente nas mídias digitais, em sites e espaços de
redes sociais como o facebook. Acompanhar esta dinâmica também nos faz perceber que os
processos de dinamização étnico-culturais e identitários entre polono-brasileiros recebem esta
roupagem durante as últimas décadas, fortalecidos com acontecimentos como a emergência de
um papa polonês: o papa João Paulo II, eleito em 1978. Percebemos aí uma emergência
memorial, um crescente uso do passado. Esta questão vem sendo tratada em estudos atuais por
teóricos como Andreas Huyssen (2014, p.177), destacando um “excesso de memória” e um
“ataque do passado ao futuro”, e por Joel Candau (2014, p.10) quando afirma que o mundo está
sendo atingido por uma “onda memorial” como “resposta às identidades sofredoras e frágeis”.

Durante os séculos 19 e 20, tais articulações se davam de forma intensa nas Sociedades
Escolares Étnicas polono-brasileiras – iniciativas particulares de educação escolar,
empreendidas a partir do grupo étnico em regiões de colonização e de inserção imigrantista e
migrante. Referindo-se a estas, o pesquisador do tema Lúcio Kreutz (2001, p. 123) afirma que
“a educação e a escola são um campo propício para se perceber a afirmação dos processos
identitários e os estranhamentos e as tensões decorrentes da relação entre culturas”. No contexto
ISSN: 2525-7501
social da escola se processam memórias e identidades. Com o que corrobora Gluchowski (2005,
p. 149) quando destaca que “a escola polonesa é o único fundamento de um trabalho sistemático
pela manutenção do polonismo no Brasil”.
Dentre os suportes escolhidos para esta análise, situamos a página na web da
Representação da Comunidade Brasileiro-Polonesa no Brasil – Braspol e a publicação da
Revista de Reflexão Brasil-Polônia (2011): Polonicus 506, com o título: A Comunidade Polônica
Brasileira e sua visão da Polônia e do Polonismo; em relação a este último, ao analisar a
questão da pertença identitária a uma “comunidade polônica”, a pesquisadora de naturalidade
polonesa, membro do Centro de Estudos Latino-Americanos em Varsóvia – CESLA507, Renata
Siuda-Ambroziak na reflexividade constitui a tessitura da narrativa autobiográfica
rememorando suas experiências e percepções de pesquisa ligadas à “comunidade polônica” no
Brasil. Um processo em que “A compreensão desenvolvida a partir da inteligibilidade de sua
própria vida revela ao pesquisador a capacidade epistemológica de aderir a sentidos que não
eram os seus e reconstruir relações significantes particulares ao seu objeto de estudo”, ainda,
“uma categoria da experiência que permite ao indivíduo, nas condições de sua inscrição sócio-
histórica, integrar, estruturar, interpretar as situações e os acontecimentos vividos”, “um 945
material bruto que, uma vez submetido à triagem e recortes, pode dar acesso de forma concreta
e legível aos fatos sociais e aos comportamentos coletivos” (DELORY-MOMBERGER, 2008,
p. 26-29).

1.0 Memória e identidade étnico-cultural polono-brasileira na contemporaneidade:


algumas reflexões

A presença no Brasil de cidadãos relacionados às migrações internacionais e da


chamada “febre migratória” do final do século 19 e início do século 20 que ainda vivem é bem
pequena. Mesmo assim, em um país caracterizado pela composição multiétnica e multicultural,
os seus descendentes continuam primando pelas nominações de italianos, poloneses, alemães,

506
Página da Revista de Reflexão Brasil-Polônia: Polonicus: Disponível em: http://www.polonicus.com.br/site.
Acessado em: 10 de julho de 2016.
507
Página do Centro de Estudos Latino-Americanos em Varsóvia – CESLA: Disponível em:
http://www.cesla.uw.edu.pl/cesla/. Acessado em: 25 de setembro de 2016.
ISSN: 2525-7501
entre outros. Há também quem assuma o duplo pertencimento identitário hifenizado: polono-
brasileiros e, quem se identifique apenas como brasileiro. Nesse caso, trazemos à tona
questionamentos como o da pesquisadora em sua narrativa autobiográfica:

[...] “em princípio a questão do sentimento do polonismo, da cultura e


da identidade polonesa deveria ser, passados mais de cem anos, um
assunto encerrado ou – antes – inexistente. Da mesma forma que o
interesse pela Polônia e pelos poloneses, no seio da colônia polonesa
brasileira, deveria ser inteiramente marginal. Mas isso muitas vezes não
acontece. Por quê?” (SIUDA-AMBROZIAK, p. 92-93, 2011).

Sendo amplamente perceptível a existência e propagação deste pertencimento, como a


memória está aliada ao pertencimento étnico-cultural identitário?

Para Siuda-Ambroziak (2011), a manutenção dos vínculos a uma “comunidade


polônica” está intimamente relacionada com a etnicidade, um conceito, “no qual em regra estão
contidos certos elementos definidores essenciais, como p. ex. a origem, a preservação de
elementos do estilo de vida, das tradições e dos costumes dos antepassados, algumas vezes o 946
conhecimento da língua e a tradição religiosa dominante (no caso, o catolicismo). É importante
também a própria consciência da origem, o sentimento da lealdade e dos vínculos sociais com
outras pessoas com as mesmas raízes, a profissão de valores comuns” (SIUDA-AMBROZIAK,
2011, p. 94).

A emergência de estudos relacionados que tratam da etnicidade como um recurso


identitário, às definições étnico-culturais e identitárias tangenciadas inicialmente nos anos 1960
e 1970, principalmente por antropólogos e sociólogos, nas Teorias da Etnicidade desenvolvidas
por Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fernart (2011), além de Fredrik Barth que irá discutir
508
os Grupos Étnicos e suas Fronteiras a partir do mútuo reconhecimento, evidencia que a

508
Para Brumer (1994, p. 30), “uma forma de organização social (que configura os modos de auto-atribuição e de
atribuição pelos outros da identidade étnica)”. Já Barth (1969) destaca que “Grupo Étnico é aquele que compartilha
os valores culturais fundamentais, constitui um campo de comunicação e de interação com os seus membros,
identificando-se e sendo identificado pelos outros”. Porém, “não como algo acabado em si, mas em contínuo
aperfeiçoamento e transformação, que visa à organização social, processos identitários, não algo “constituído,
naturalizado”” (KREUTZ & LUCHESE, 2011, p. 183-184).
ISSN: 2525-7501
identidade étnica caracteriza-se por vezes diferente das demais identidades coletivas, por ser
orientada para o passado através da memória, ainda, adotam diferentes concepções sob a égide
das quais a etnicidade é mobilizada, dentre estas, destacam a primordialista, mobilizacionista e
a instrumentalista. A primeira está mais ligada às definições de laços biológicos, de raça e
nacionalidade, já a segunda e a terceira, tem uma perspectiva muito mais política e mobilizadora
a partir da definição de interesses políticos, econômicos do grupo.

Os estudos em relação à etnicidade emergem então, diferentes abordagens e seus


potenciais para além da raça e pertencimento nacional. A abordagem instrumentalista, para
Poutignat & Streiff- Fenart (2011, p. 96), “compreende, contudo, muitas variantes nas quais a
ênfase é colocada ora nos fins e nas estratégias individuais, ora nas lutas de poder coletivas”.
Para os autores, visando a essa perspectiva, a etnicidade é uma solidariedade que se dá entre
“grupos de interesse”. Conforme Seyferth (2011, p. 56), “a etnicidade é um fenômeno
empiricamente muito variado, mas as abordagens mais instrumentais a apresentam como um
recurso social, político e cultural para diferentes grupos étnicos e de status” (SEYFERTH 2011,
p.56).
947
Na perspectiva instrumental da etnicidade, os elementos escolhidos para a identificação
de um grupo étnico-cultural são representações generalizantes e enquadradas, que deixam fora
disso muitos sujeitos ditos poloneses, tendo em vista, “a importância social e política das
representações” (CATROGA, 2015, p. 74). Assim:

O que para essas pessoas e para a sua identidade pode significar a


Polônia e o polonismo, o que pode significar o polonês, ser polonês, ser
polono-brasileiro ou brasileiro de origem polonesa? O que para eles
pode ser a Polônia e o que nunca será, porque simplesmente não pode
ser? (SIUDA-AMBROZIAK, p. 92-93, 2011).

Questionamentos como os acima mencionados tem motivado pesquisas de


pesquisadores de diferentes áreas e em relação a diferentes distinções e grupos étnico-culturais.
Identificar-se polonês no Brasil ou polono-brasileiro é em nosso entendimento, dentre suas
ISSN: 2525-7501
definições identitárias mediadas pela cultura509, em algum momento aderir ao Grupo Étnico e
suas significações, estas, já hibridizadas 510e traduzidas no contexto brasileiro e nos processos
sociais transnacionais dados em sua dialética.
A identidade que aí frutifica, conforme Woodward (2000, p. 9 - 10), “é relacional”,
ainda, sua construção “é tanto simbólica quanto social”, com o que concorda Berguer &
Luckmann (1985, p. 228), para quem, “A identidade é formada por processos sociais. Uma vez
cristalizada, é mantida, modificada ou mesmo remodelada pelas relações sociais”. São muitas
as variáveis, os embates, os interesses em jogo na definição de identidades.

Utilizo o termo “identidade” para significar o ponto de encontro, o


ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que
tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para assumamos
nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares e, por
outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos
constroem como sujeitos aos quais se pode “falar”(HALL, 2000, p.11).

Nestes processos sociais, “memória e identidade estão indissoluvelmente ligadas”, 948


sendo que a identidade por nós aqui tomada seria “um estado psíquico e social” (CANDAU,
2014, p. 10). Para Pollak (1989, p.2) “Numa perspectiva construtivista, não se trata mais de
511
lidar com os fatos sociais como coisas, mas de analisar como os fatos sociais se tornam
coisas, como e por quem eles são solidificados e dotados de duração e estabilidade”. Nesse
sentido, as manifestações da memória são assim desenvolvidas por Candau (2014, p. 21-23):

- protomemórias – memória social incorporada “no âmbito do


indivíduo”, imperceptível, presente nas atitudes sem tomada de
consciência, habitus e socialização de “saberes e experiências mais
resistentes e mais bem compartilhadas”;

509
Peter Burke (2013, p.16), destaca seu entendimento de cultura “em um sentido razoavelmente amplo de forma
a incluir atitudes, mentalidades e valores e suas expressões, concretizações ou simbolizações em artefatos, práticas
e respresentações”.
510
Entendemos a hibridização a partir de Burke (2013), que a reconhece como as trocas culturais dadas nos
encontros, nas interações culturais
511
A referência de Pollak ao fato social faz a crítica para a forma como o sociólogo Maurice Halbwachs pensava
a memória e seu caráter coletivo, fundada na retórica nacionalista, para ele, assim como para Candau (2014), esta
pode ser vista como uma faculdade individual, que no trabalho da memória, pode passar para formas coletivas a
partir de diferentes manifestações da memória que coexistem.
ISSN: 2525-7501
- memória propriamente dita - “essencialmente uma memória de
recordação ou reconhecimento”, é “evocação deliberada ou invocação
involuntária de lembranças autobiográficas”;
- metamemória – “que é, por um lado, a representação que cada
indivíduo faz da sua própria memória, o conhecimento que tem dela e,
de outro, o que diz dela vive”; está mais ligada a memória coletiva;

Candau (2014) dimensiona que a compreensão em relação ao mundo e a cultura de um


grupo, ocorre também na emergência de memórias, vivências e experiências em um movimento
que reitera o passado. Nesse processo da construção de uma narrativa de memória que
fundamenta a identidade em uma dimensão que também é política, são feitas escolhas
permeadas por perguntas como: O que lembrar? o que esquecer? o que privilegiar ou descartar
em um grupo social? Questionamentos presentes no delineamento da identidade percebido por
Siuda-Ambroziak (2011, p. 93):

“O que da herança polonesa é útil e prático, o que jamais o será?” e “O


que vale a pena saber, lembrar sobre a Polônia, e o que seria melhor
esquecer? Será que falar sobre a Polônia é atualmente envolver-se em
política, ou antes, contar antigas histórias sobre velhas lutas e
revoluções?”.
949
A narrativa autobiográfica emite pistas que indicam sua crença de que a etnicidade aí
está sendo mobilizada em uma perspectiva instrumentalista, e, mais do que isso, na segunda
parte do trecho vai revelar sua crença em uma memória enquadrada, passível de esquecimentos
intencionais e seletividade, quando, para Pollak (1989, p. 7):

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das


interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como
vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar
sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de
tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs,
famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão
dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir
seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as
oposições irredutíveis. Manter a coesão interna e defender as fronteiras
daquilo que um grupo tem em comum, em que se inclui o território (no
caso de Estados), eis as duas funções essenciais da memória comum.
Isso significa fornecer um quadro de referências e de pontos de
referência.
ISSN: 2525-7501
Na página da Braspol512, assim como nas sociedades, associações e clubes polono-
brasileiros, como menciona Pollak (1989, p.7), “das interpretações do passado que se quer
salvaguardar”, há diversas formas de fortalecer a definição de características, signos e atitudes
que embasam as questões étnico-culturais e identitárias através de lugares e suportes de
memória, entre elas, práticas como oficinas de culinária polonesa e pratos típicos como
pierogui, czarnina, danças e vestes típicas, exposições, saraus, vitrines literárias e artísticas,
práticas religiosas, elaboração de jornais, entre eles o Lud e Kurier, e revistas como a Polonicus,
entre outras, festas, símbolos nacionais da Polônia (bandeira, brasões), artesanato, arquitetura,
turismo, história e historiografia, divulgação de notícias, fotos, vídeos, documentários,
particularidades, questões políticas, demográficas, biografias, tradições (benção após o parto,
lenços, festa da colheita...), heróis poloneses, órgãos diplomáticos, governamentais,
institucionais, suas representações e sedes.

A Braspol é uma organização institucionalizada de representação, com estatuto,


efetivação de poderes decisórios através de assembléias, conselhos, congressos, núcleos e
diretoria. Através desta, se articulam projetos de dinamização étnico-cultural, como o Projeto
Memória:
950
a) O QUE É: É um PROJETO que visa cadastrar todos os sinais da
presença da imigração no Brasil.
Precisamos conhecer todos os sinais das ações dos nossos pioneiros.
Temos que conhecer o que existe efetivamente de sinais no Brasil,
desde o princípio até agora. Indicamos os sinais mais significativos que
podem ser encontrados em qualquer lugar do nosso Brasil, quais sejam:
nomes de ruas, praças, escolas, bibliotecas, postos de saúde, creches,
rios, loteamentos, edifícios, acidentes topográficos, igrejas e capelas
com santos poloneses como padroeiros, congregações religiosas,
cemitérios históricos, estátuas, placas, obeliscos, portais e outros.
b) OBJETIVOS
O principal objetivo é conhecermos o que está registrado ou perpetuado
e de alguma forma reunir estes dados e publicá-los para o conhecimento
de todos no Brasil e na Polônia.
c) SINAIS DA POLONIDADE EM SUA COMUNIDADE
É sumamente importante que em cada localidade onde habitam os
polônicos, que os mesmos, deixem os seus sinais ao conhecimento de

512
Página da Braspol: Disponível em: http://www.braspol.org.br/index2.php. Acessado em: 05 de janeiro de
2016.
ISSN: 2525-7501
todos através de denominação de logradouros públicos, educandários,
centros de saúde, monumentos, portais nas entradas das cidades e
dezenas de outros sinais capazes de perpetuar e valorizar a sua presença
na história local. Não podemos deixar que o tempo apague os sinais da
sua presença através de sinais concretos.
d) COMO CONTRIBUIR COM INFORMAÇÕES
Você que valoriza as suas raízes, você que tem a consciência da
perpetuação de sinais polônicos, poderá contribuir de forma decisiva,
enviando tais nomes ou indicações para a BRASPOL Nacional, tanto
da sua localidade como de qualquer lugar do Brasil. Cada informação
será mais um sinal desta odisséia da imigração polonesa. Se sua
comunidade não tem nenhum sinal, significa que os polônicos vivem,
mas não existem! Vamos lá, formemos a BRASPOL que já é o primeiro
sinal e o restante vai se acrescentando para honrarmos a memória dos
nossos pais, avós e outros, que já deram as suas vidas para que nós
existíssemos (BRASPOL).513

As informações disponibilizadas na página nos conduzem para a percepção de uma


política de memória adotada através de uma narrativa heróica, epopéica, conservadora, na
materialização de “lugares de memória”, quando, “A razão fundamental de ser de um lugar de
memória, observa Pierre Nora, ‘é a de deter o tempo, bloquear o trabalho de esquecimento,
951
fixar um estado de coisas, imortalizar a morte’.” (CANDAU, 2014: 156-157).

[...] sem memória, sem a leitura dos restos do passado, não pode haver
o reconhecimento das diferenças, (...) nem a tolerância das ricas
complexidades e instabilidades de identidades pessoais e culturais,
políticas e nacionais [...] (HUYSSEN, 2000, p. 72).

Quanto à orientação da identidade étnica para o passado através da memória, já


mencionado anteriormente, podemos habilitar Chartier (2010, p. 21), para quem, “a memória,
seja ela coletiva ou individual”, confere “uma presença ao passado, às vezes ou amiúde mais
poderosa do que a que estabelecem os livros de história”. Ao se estabelecer políticas de
memória “O controle da significação e a imposição do sentido são sempre uma questão
fundamental das lutas políticas ou sociais e um instrumento maior da dominação simbólica”
(CHARTIER, 2002).

513
Texto da página da Braspol: Disponível em: http://www.braspol.org.br/conteudo.php?id=104. Acessado em:
20 de março de 2016.
ISSN: 2525-7501
Para Huyssen (2014, p. 181), “A memória é sempre o passado presente, o passado
comemorado e produzido no presente, que inclui, de forma invariável, pontos cegos e evasões”.
“A memória nunca é neutra”. Assim, o passado representificado é sempre uma luta perpassada
por diversas variantes. Ao longo da narrativa da pesquisadora há uma disputa de memória dada
nas suas percepções sobre a comunidade polono-brasileira em relação à Polônia e o Polonismo,
e, aquilo que talvez seja a Polônia de verdade e/ou o que gostaria que seus descentes em outro
país a enquadrassem, gerando assim, “práticas de memória conflitantes e fragmentadas,
perpassadas por entrelaçamentos e/ou suplantações” (HUYSSEN, 2014, p. 182-183).

Para Catroga (2015, p. 74) “Ademais, se a memória é instância construtora e


cimentadora de identidades, a sua expressão colectiva também actua como instrumento e objeto
de poder (es) mediante a seleção do que se recorda e do que, consciente ou inconscientemente,
se silencia”. No nível do grupo, embora sempre passível de diferentes manifestações da
memória, considerando que “ela também está sujeita a uma sobredeterminação social”, “quando
ela funciona como metamemória, a margem da manipulação e de uso político-ideológico
aumenta” (CATROGA, 2015, p. 10). Na sua dinamização, a metamemória é tomada no grupo
a partir de representações compartilhadas, “um enunciado que membros de um grupo vão
952
produzir a respeito de uma memória supostamente comum a todos os membros desse grupo”
(CANDAU, 2014, p. 24).

[...] no Sul do Brasil, onde algumas vezes a farmácia da esquina se


chama “Jeszcze Polska nie Zginęła” (“A Polônia ainda não pereceu” –
palavras iniciais do Hino Nacional polonês), da qual até hoje guardo
uma etiqueta promocional para mostrá-la aos que duvidam. E a
residência da família Hamerski em Nova Prata (RS) é uma casa de
madeira no estilo dos montanheses da Polônia, cercada de pinheiros e
com uma bandeira branca e vermelha tremulando na varanda...
(SIUDA-AMBROZIAK, 2011, p.99)

A pesquisadora vai trilhando um caminho onde emerge percepções do que seria para
ela, enquanto cidadã polonesa, a Polônia e o Polonismo, levantando a dimensão processual,
histórica, dialética, de movimento, de reelaboração das variáveis culturais e desprezando a
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noção imutável, dada, definida e decisória, conservadora, colecionável, que para ela muito tem
se utilizado no agenciamento de memórias do grupo no contexto brasileiro.

Agenciar a memória no contexto do grupo étnico é uma prática quase sempre


intencional. É a partir dela que se mobilizam “significantes da identidade” (CANDAU, 2014).
Nesse sentido, a atuação das instituições e órgãos representativos do grupo revela-se um
importante espaço para a emergência de identidades constituídas no direito e nas possibilidades
da memória por estes instrumentalizada.

CONCLUSÃO

Aqui pensamos a memória não como um fato social, uma cristalização coletiva, assim
como a identidade e/ou (as) identidade(s) que compõe o tecido daquilo que define o Polonismo,
a Comunidade Polônica no Brasil e/ou os polono-brasileiros não poderiam ser. Há que ser em
processo, em disputa, pautado nas significações que perpassam os sujeitos, nas relações
interétnicas, nos diálogos interculturais e transnacionais, no confronto de aspectos culturais, no

953
movimento e trabalho da memória, na dinâmica da passagem para a dimensão coletiva da
memória e identidade, na escolha de definições e pertencimentos mutáveis, passíveis às
circunstâncias.
Na reedição de significações culturais que buscam a afirmação identitária, as memórias
são aliadas à identidade, por vezes em um processo de reelaboração e enquadramento para com
os usos do passado e seus resquícios de presença em “Um tempo atual, incessante e
permanentemente atualizado aparece com destaque ao lado da constante evocação do passado.”
(BARBOSA, 2008, p. 83). São escolhas, entrelaçamentos e representações contemporâneas,
tidas por nós como movimentos de uma perspectiva instrumental de etnicidade em que emergir
o passado se dá a partir de demandas existenciais do presente, aqui, voltando-se perspectivas
de futuros transformadas também no presente.
Assim, as memórias e identidades dependem uma da outra e estão imersas no complexo
contexto em que emergem. Mais do que as definições culturais, não estão separadas do mundo
político, ideológico, econômico para os quais são instrumentalizadas. Nesse sentido,
compreendemos que a discussão em um viés cultural é necessária no intuito de propiciar
reflexões sobre estas emergências em nossa sociedade, propiciando o estranhamento daquilo
que é fechado, enquadrado, o dimensionamento do papel e dos usos do passado a partir da
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representificação, e, como isso tem se processado e apropriado em diferentes momentos da
história. São dimensões que se consideradas, possivelmente resultem na qualificação das
relações sociais.

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956
ISSN: 2525-7501
QUEM NÓS SOMOS: O JORNAL “O 5 DE ABRIL” COMO FORMADOR DE
IDENTIDADE NA EMANCIPAÇÃO DE NOVO HAMBURGO *514

Emerson Ranieri Santos Kuhn515

Thaísa Antunes Gonçalves 516

Jander Fernandes Martins517

RESUMO

O início do século XX marcou a constituição de inúmeras cidades e identidades modernas,


sendo que tais processos constituíram-se a partir da demarcação de diferenças e semelhanças
culturais, demonstrando o que deveria ser seguido ou negado. Essas escolhas muitas vezes eram
feitas por grupos que detinham o poder socioeconômico nessas cidades, e que em muitos
processos se constituíram através de imigrantes ou seus descendentes diretos, como no caso de
Novo Hamburgo. Tal cidade possuía uma comissão de cidadãos que lutou pela emancipação
do município, pela propagação e representação de um discurso identitário, transposto através
do jornal local intitulado “O 5 de Abril”. Analisar os elementos culturais e identitários próprios
957
desse processo de afirmação da cidade, formado por inúmeros imigrantes europeus, auxilia na
compreensão das representações de mundo, enquanto criadoras e formadoras de identidades
modernas. Para analisar esse processo cultural utilizamos a metodologia da análise de conteúdo,
aplicada sobre os primeiros 5 meses de publicação do “O 5 de Abril” – edições entre maio e
setembro de 1927 – focando na compreensão das representações modernas do jornal, e
consequentemente da elite local, para com a cidade e os cidadãos. Analisada a formação da
identidade hamburguense, verificou-se que o discurso do jornal definiu como elementos
principais o trabalho individual e o progresso coletivo.

Palavras-chave: Identidade. Trabalho. Modernidade.

514
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
515
Mestrando em Processos e Manifestações Culturais e graduado em História pela Universidade Feevale.
emer.gattuso@hotmail.com.
516
Mestranda em Processos e Manifestações Culturais, Universidade Feevale, thaisa.gonc@gmail.com.
517
Mestrando em Processos e Manifestações Culturais, Universidade Feevale, martinsjander@yahoo.com.br.
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INTRODUÇÃO

A cidade de Novo Hamburgo fica localizada no Vale do Sinos, região metropolitana de


Porto Alegre e, historicamente, desenvolveu-se a partir da manufaturação de calçados e
componentes de couro.

O presente artigo aborda a demarcação de uma identidade hamburguense, estimulada


por um jornal local que se desenvolveu paralelamente ao processo de emancipação da
localidade de Hamburg Berg518 do município de São Leopoldo, na primeira metade do século
XX. Esse processo de formação e afirmação de uma identidade da cidade foi analisado como a
busca de respostas para a questão “quem nós somos?”, uma vez que o jornal traz inúmeros
elementos que remetem a esse processo, ao demonstrar uma representação da realidade local
através de suas matérias selecionadas.

A partir das primeiras edições do jornal local “O 5 de Abril”, identifica-se e analisa-se 958
o discurso do periódico sobre Novo Hamburgo, considerando a sua atuação na formação de
uma identidade hamburguense. Para isso, utilizou-se a metodologia de análise de conteúdos
sobre os cinco primeiros meses de publicação do jornal, de maio a setembro de 1927, focando
na perspectiva qualitativa desse processo.

“O 5 de Abril”, denominação que presta homenagem à data de emancipação municipal,


foi um semanário publicado entre 1927 e 1962, sempre às sextas-feiras. O periódico teve ao
total 1811 edições durante 35 anos e acompanhou grande parte do processo de estabelecimento
social, cultural e industrial de Novo Hamburgo.

O jornal era composto por quatro páginas organizadas da seguinte forma: na primeira
página, havia concentração de grandes matérias de relevância para o município; a segunda
página informava eventos do cotidiano, como resultados de jogos e anúncios de eventos na
comunidade; na terceira página eram apresentados editais municipais e estaduais, bem como

518
Hamburg Berg é o nome inicial dado a localidade do 2º Distrito de São Leopoldo, que ao longo do século
XIX e XX constitui-se como o município de Novo Hamburgo (1927).
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balanços da produção industrial municipal; a última página era dedicada aos anúncios de
empregos, cursos e serviços oferecidos na cidade.

É interessante destacar que tanto o processo de emancipação do município, quanto a


criação do jornal, foram protagonizados pelo mesmo grupo de indivíduos, membros da elite
política hamburguense. Com isso, a comunicação através do jornal adquire uma aura de
autoridade, o que reforça os argumentos veiculados como guias de formação de uma identidade
local própria.

Considerando que Novo Hamburgo se localiza em região com intensa formação étnica
germânica, cabe verificar em que medida o discurso de “O 5 de Abril” lida com a etnicidade
enquanto elemento de formação identitária da cidade recém-emancipada, afirmando quem era
o cidadão hamburguense nesse contexto.

Além disso, será analisado de que forma a participação desse elemento nas raízes da
região é colocada em diálogo com o ideal de modernidade e progresso almejado pelo grupo de

959
indivíduos à frente do processo de emancipação, levando em conta como esse processo municia
possíveis respostas sobre quem seria o hamburguense da época, para esse periódico em
específico.

Capítulo I – De Hamburg Berg a Novo Hamburgo: emancipação e a ideia de


progresso

A modernidade é interpretada, no presente artigo, não como um período histórico


delimitado, mas sim como um processo que influência principalmente as cidades ocidentais ao
longo dos séculos XIX e XX.

Conforme Vizentini (2007), a modernidade, enquanto processo, pode ser estabelecida


como uma fase de transição e consolidação de novos paradigmas socioeconômicos e
tecnológicos, principalmente entre a Primeira Revolução Industrial, passando pelo fordismo
americano, a crise do imperialismo europeu, até as guerras mundiais e a grande depressão da
primeira metade do século XX.

Nesse contexto de alterações, segundo Ezra Park (1979), surge o principal campo de
atuação da modernidade – a cidade – pois é no âmbito urbano que ocorrem as principais
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alterações e confrontos de ideias entremeadas pelo “rápido e muitas vezes catastrófico
crescimento urbano; sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em seu desenvolvimento,
que embrulham e amarram, no mesmo pacote os mais variados indivíduos e sociedades
(BERMAN, 1985, p.16).

Esse panorama de mudanças rápidas e profundas nas cidades modernas fez com que
Park (1979) postulasse através das ideias de Oswald Spengler (1922), que é na cidade que a
história é escrita, pois é nela onde criam-se e sobrevivem os governos, a política, a religião e os
discursos identitários, desta forma, muito dos fenômenos básicos da existência e luta humanas
são gerenciados na cidade, em seu núcleo urbano.

No Brasil do século XIX ocorre um intenso movimento de imigração, formando novas


cidades com especificidades baseadas no trabalho, principalmente por imigrantes provindas de
culturas como a italiana e germânica no caso da colonização das regiões sudeste e sul do Brasil.
Para Stuart Hall (2006), o choque cultural proveniente de movimentos migratórios se relaciona
com a ideia de hibridização das identidades, que diz respeito aos traços identitários dos
imigrantes em processo de mescla com os nativos da nova realidade em que passam a se inserir, 960
formando e afirmando perspectivas de identidades híbridas.

Em Novo Hamburgo, segundo Gertz (2002), o processo de imigração germânica iniciou


em 1824, quando os primeiros imigrantes chegaram a São Leopoldo e, logo após, instalaram-
se em uma região do município a qual denominaram de Hamburg Berg. Os principais objetivos
desses imigrantes era colonizar e produzir efetivamente nessa nova terra. Passado o processo
inicial de assentamento, instaurou-se na região um

Ramo próspero e que caracterizaria toda a modernização e industrialização do futuro


município, sendo o da utilização do couro para a fabricação de peças de montaria.
Nicolau Becker, industriário e comerciante, estabeleceu-se em 1857, construindo
curtume e selaria. O couro também era utilizado para a confecção de chinelos e
sapatos com solas de madeira, feitos manualmente, o que deu origem a figura do
‘sapateiro’. (PETRY, 1944, p.13)

Esse ramo se configurou como embrião do processo industrial da cidade,


proporcionando os primeiros passos rumo à modernidade e ao progresso local.
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Dessa forma, se observa, no caso de Novo Hamburgo, o progresso como fator inerente
à modernidade, como muitos autores apontam. Segundo Dupas (2006), o progresso é o processo
que movimenta uma sociedade em uma direção benéfica para a maioria (ou, ao menos, para o
grupo dominante), direção esta que leva a mais oportunidades de aplicações e melhoras na
condição de vida. O mesmo autor (Dupas, 2006) apoia-se na ideia de Nisbet (1980), indicando
que da metade do século XVIII ao fim do século XIX a ideia de progresso estava associada ao
crescimento econômico em muitos dos casos. Entretanto, é relevante refletir sobre o processo
de modernidade considerando diversos aspectos para além do econômico, como políticos,
geográficos, culturais e identitários.

Na segunda metade do século XIX, conforme Claudia Schemes (2006), Hamburg Berg
consolidou o ramo industrial coureiro-calçadista e formou um grupo de indivíduos influentes
dentro do município sede de São Leopoldo. O progresso industrial, conjuntamente com ideais
modernos, fez com que esse grupo exigisse maiores investimentos estruturais no distrito de
Hamburg Berg. O não cumprimento dessas exigências pela administração de São Leopoldo
atuou como fator determinante para que o grupo de Hamburg Berg iniciasse um processo de
emancipação da localidade.
961
Nesse sentido, foi formada a Comissão Pró-Vilamento, a qual era composta por
representantes da elite política local, sendo eles, empresários, políticos, funcionários públicos
e professores (Schemes, 2006).519 Tal comissão endossou o argumento emancipacionista com
números da produção do setor coureiro-calçadista e reportagens de jornais sobre o destaque dos
produtos locais no cenário regional e nacional, enviando para o gabinete do presidente do
Estado o pedido de criação de um novo município no início da década de 1920.

Conforme exposto por Schemes (2006), após debates acirrados, o gabinete de Borges
de Medeiros acatou os pedidos, mesmo contrariando o município sede, e em 05 de abril de 1927

519
Pedro Adams Filho: Conselheiro municipal de São Leopoldo (1917-1925), dono da Fábrica de Calçados Rio-
Grandense; Jacob Kroeff Neto: Deputado Estadual (1904-1929), advogado e administrador do Matadouro Kroeff;
Leopoldo Petry: Secretário Municipal de São Leopoldo (1917-1923), criador do jornal “O5 de Abril”, foi também
o primeiro Intendente Municipal de Novo Hamburgo (1927-1930); André Kilpp: Major do exército, coletor de
impostos; Júlio Kunz: Empresário calçadista, no ramo de acessórios fabris; José João Martins: Empresário
calçadista e presidente da Comissão Pró-emancipação; Carlos Dienstbach: Professor e subintendente de São
Leopoldo e Sapiranga.
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enviou um telegrama para o presidente da Comissão Pró-Vilamento, declarando a emancipação
do distrito e a criação do município de Novo Hamburgo.

Sr. José João Martins, presidente, e demais membros – Comissão PróVillamento –


Novo Hamburgo. Foi assignado hoje o decreto no. 3818 criando o município Novo
Hamburgo pt Por outro decreto foi nomeado dr. Jacob Kroeff Netto seu primeiro
intendente provisório pt Congratulações bons amigos afectuosas saudações (NH,
2005, p. 5).

Com o comunicado, um dos participantes da comissão começa a atuar como intendente


local em caráter provisório, até a realização das eleições, estas que ocorreriam no mês de junho
de 1927. É eleito Leopoldo Petry que, além de participar do processo emancipacionista, foi um
dos responsáveis pela criação e manutenção do jornal local “O 5 de Abril”, baseado nos
preceitos de modernidade e que demonstrasse quem era e onde podia chegar o cidadão
hamburguense.

Capitulo II – o “5 de abril” e a identidade hamburguense

A elite política de Novo Hamburgo contava com dois pontos de atuação que se 962
destacaram historicamente no processo de afirmação da identidade local. Primeiramente,
formaram o grupo que lutou pela criação do município, para que eles mesmos pudessem gerir
uma considerável parcela de investimentos e processos de modernização municipal. Em
segundo lugar, criaram “O 5 de Abril”, que se torna o porta-voz local, transmitindo as
representações de mundo da elite para o cidadão.

Pensar no jornal como um transmissor da verdade ou das representações de mundo, de


um para outro, é cometer uma grande falha, pois ele não é o dono da verdade, muito menos
suas concepções são dadas de pronto. Todo o circuito de seleção do evento até sua publicação,
conforme Luca (2001), é permeado por inúmeras escolhas e processos, o que faz com que
jornalismo e história aproximem-se enquanto fonte e perspectiva do real acontecido. Ambos
trabalham com perspectivas e possibilidades de verdade, uma seleção de fatos que está sempre
condicionada ao presente e, consequentemente, à perspectiva de futuro.

Por retratar um período passado, o jornal se torna uma fonte histórica de informações e
é nesse sentido que Jenkins (2009) aponta o passado como algo que já aconteceu, mas que está
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à disposição dos historiadores, desde que aja algum suporte para evocá-lo e analisá-lo através
de reconstruções com implicações do tempo presente.

No entanto, é necessário ter cuidado na forma de abordar as informações contidas nas


páginas de fontes como jornais, pois, segundo Elmir (1995), toda informação foi escolhida e
publicada com um determinado fim, que já não é o mesmo analisado no presente, desta forma
a história é o fruto do trabalho e da análise dos historiadores e não o fato em si mesmo. É
necessário esclarecer, conforme Keske (2001), que o jornal é uma fonte que trabalha
determinado recorte da realidade, sempre direcionado pelo olhar ou mão de alguém, ou seja,
não existe neutralidade.

Keske (2001) indica que, o jornal ao selecionar determinados eventos, está criando
realidades possíveis e representando o mundo, sendo que essa realidade publicada deve ter
significado dentro dos discursos vigentes, caso contrário, não haveria sentido na reportagem e
por isso o jornal não teria apelo de circulação.

963
A verdade do jornal está condicionada ao discurso vigente, pois é a partir dele que os
fatos são selecionados. Comparativamente a um jogo, enquanto a realidade mantém o espelho
d’água, os discursos e as mídias, vão introduzindo objetos, alterando o reflexo e a calmaria do
espelho, mas tomando o cuidado para não o desfigurarem totalmente.

Com isso, lembramos que a elite política de Novo Hamburgo cria “O 5 de Abril” como
porta-voz da cidade, mas nesse sentido o jornal representaria a perspectiva de mundo desse
grupo determinado e não da coletividade hamburguense de uma forma consensual. Essa
utilização do jornal era algo comum na época, pois muitos periódicos possuíam o intuito de

transformar o povo em cidadãos conscientes e ordeiros. Em última instância, [...] a


tarefa de disciplinar as massas. Procurava legitimar-se como expressão da Vox
populi, mas representavam, de fato, a Vox domini. (CAPELLATO, 1991, p.134)

O jornal em si representava o desejo de um grupo influente para com a coesão social de


um todo, em torno da busca do desenvolvimento citadino ao longo dos anos.

“O 5 de Abril” retrata um recorte de mundo voltado para a modernidade e o progresso,


enquanto que o estabelecimento e consolidação desses elementos na identidade comunitária
poderiam aumentar o poder econômico da classe política local. Partindo desse ponto, utilizamos
ISSN: 2525-7501
a metodologia da análise de conteúdo para aglomerar eventos e acessar determinadas
informações, que de forma isolada não se destacariam. Conforme Laurence Bardin (1977), essa
abordagem possibilita novas visões sobre os fenômenos da vida social.

O método da análise de conteúdo, nos moldes de Bardin (1977), consiste em cinco


etapas: 1) Preparação das informações; 2) Unitarização; 3) Categorização; 4) Descrição; 5)
Interpretação. Em suma, esse encadeamento foi concebido como: 1) Leitura inicial,
identificando os eventos ligados à identidade hamburguense; 2) Segunda leitura, identificando
e transcrevendo os eventos que remetem às respostas do “Quem nós somos”; 3) Elaboração e
classificação das matérias identificadas; 4) Descrição do material selecionado; 5) Análise
teórica do material identificado. Esse tratamento metodológico foi dado às 20 primeiras edições
do jornal “O 5 de Abril”, entre o período de maio a setembro de 1927, focando a análise nas
matérias de capa.

Os eventos selecionados giram em torno de possíveis respostas ao questionamento


“Quem nós somos”, pois Novo Hamburgo emancipando-se passa a se valer de determinados
elementos discursivos para demarcar sua diferença perante o ex-município sede. Foi observado 964
nesse contexto discursivo, possíveis respostas para quem era o cidadão hamburguense.

Capitulo III – A busca pela desvinculação étnica e a questão da hibridização

Para Stuart Hall (2006), a identidade cultural é definida historicamente e está em


mudança contínua, além de ser múltipla e, inclusive, contraditória. Uma identidade única e
coerente é uma ilusão, mesmo em épocas nas quais mais se valorizou uma estabilidade
identitária, como na modernidade.

As identidades são manifestadas através da linguagem e só fazem sentido através de um


sistema simbólico. Woodward (2012) também indica que as identidades são relacionais, ou
seja, dependem de algo fora delas, participando de um sistema de oposições para se
constituírem. Essa diferenciação pode ser marcada de várias formas simbólicas, como através
de determinada pintura corporal, vestimenta, idioma etc, além do pertencimento a uma nação.
Esse último caso diz respeito às identidades nacionais, bastante discutidas por Hall (2006). Na
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constituição de uma identidade nacional é bastante comum a recorrência a um passado glorioso,
nem sempre verdadeiro, mas que atua como elemento de unificação dos indivíduos, oferecendo
a eles um sentimento de pertencimento a uma comunidade.

No caso de uma cidade em emancipação como Novo Hamburgo, a ideia era de se


diferenciar não remetendo a um passado, mas o colocando em segundo plano, já que remetia à
sua vinculação ao município do qual intentava-se desvincular. O foco seria construir uma nova
identidade que dissesse respeito apenas a eles próprios, os hamburguenses. Gilberto Velho
(1998) esclarece que sociedades complexas são marcadas pela heterogeneidade cultural mas,
paradoxalmente, ainda precisam de algum tipo de homegeneização para realizar uma coesão
mínima entre os grupos dos quais a sociedade é composta. Para o autor, a sociedade no geral é
heterogênea, mas a homogeneização se faz presente através da globalização e da mídia.

É justamente na mídia hamburguense que, através dos temas trabalho e progresso, se


objetiva homegeneizar os cidadãos sob uma identidade que não diz respeito nem à uma
etnicidade alemã, nem brasileira, mas sim à uma identidade local. Isso não significa que outras
identidades não existissem ou que fossem apagadas, mas apenas que era necessário sobrepô-las 965
com uma identificação mais abrangente que estivesse diretamente relacionada ao objetivo de
crescimento da cidade. Dessa forma, cria-se argumentos básicos sobre quem era o cidadão
hamburguense. “Diligente, operoso, pacifico, respeitador das leis, obediente aos costumes, [...]
construindo, produzindo, e sobretudo trabalhando tenazmente e sem cansaços” (5 DE ABRIL, O,
1928, n. 36, p. 1).

A população local, sendo em grande parte formada por teuto-brasileiros, segundo o


discurso do jornal não se enquadra como alemã, tampouco como brasileira, ou seja, não coloca
o nacionalismo em grande destaque, mas sim um territorialismo citadino. Não é a pátria mãe
que fundamenta o futuro, muito menos o país que estão inseridos, mas sim a cidade e o fruto
do trabalho individual na busca por melhorias coletivas. Esse ideal pode ser demonstrado no
discurso de posse do primeiro intendente municipal e editor chefe do jornal “O 5 de Abril”:

Certo estou que todos compreendemos o peso da responsabilidade que hoje


assumimos; porém trabalhar com harmonia com os olhos fitos unicamente em nossa
ideal – a grandeza de Novo Hamburgo, tudo se tornará muito mais fácil, todo o peso
mais leve, todo o trabalho mais ameno, todo o esforço mais agradável e poderemos
iniciar uma obra em que as futuras gerações não precisarão reformar ou reconstruir,
ISSN: 2525-7501
mas em cuja as bases poderão elas continuar a erigir o grande monummento do
progresso que se chama Novo Hamburgo, hoje villa, amanhã cidade, mas em todo o
tempo um centro de trabalho. (5 DE ABRIL, O, 1927, n. 6, p. 1).

Hall (2006) admite que as identidades nacionais estão em declínio, mas que não serão
dissolvidas, apenas se constituirão em novas identidade híbridas. Além disso, elas não estão
sendo aniquiladas, mas o que ocorre é que identidades regionais, locais e comunitárias estão se
sobressaindo (HALL, 2006). Com o passar do tempo, elas se articularão entre si, gerando cada
vez mais novas nuances identitárias. Ainda que Hall (2006) trate das identidades fragmentadas
no contexto da globalização, é interessante pensar como Novo Hamburgo se inseria em uma
situação similar, ao fazer com que uma identidade local se sobressaísse a diversas outras
existentes.

O jornal “O 5 de Abril” demonstra assumir para si o dever de guiar a população local, a


partir de ideais de uma elite política.

Verdade é que a ethica prohibe fallar em sociedade sob tais assumptos, um jornal,
porém, que tem o dever de orientar o povo e instruí-lo, si for preciso, vê-se muitas
vezes obrigado a tratar dos mesmos para preveni-lo dos perigos de que é ameaçado
966
5 DE ABRIL, O, 1927, n. 23, p. 1)

Segundo Woodward (2000), as mídias buscam dar respostas, reafirmadas


constantemente, para suprir perguntas essenciais dos cidadãos como Quem eu sou?, O que eu
poderia ser?, Quem eu quero ser? (WOODWARD, 2000, p. 17). Com isso, o discurso de quem
seria o cidadão hamburguense estava presente em uma espécie de contrato social entre o jornal
e os leitores.

“O 5 de Abril” abarcava uma das representações possíveis do mundo hamburguense,


demonstrando uma identidade específica, determinando alguns pontos básicos de quem seria o
hamburguense.

Um povo inteligente e trabalhador como é o desta terra, deve-se auxiliar mutuamente


para que possa chegar as grandes finalidades em mira; deve fazer abstração
completa de quaisquer outras preocupações que não sejam aquellas que interessam
ao bem comum e ao progresso deste município (5 DE ABRIL, O, 1927, n. 10, p. 1).
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No trecho citado, o periódico evoca a identidade de uma urbe inteligente e trabalhadora
que mantém o foco na busca pelo futuro e o progresso de todos, o que mantém um traço
identificável do discurso da elite sobre a emancipação da cidade. Um dos argumentos é que
poder-se-ia gerenciar melhor o capital de investimentos, sendo que se o cidadão incorporasse o
sentimento e pertencimento a cidade, progrediria. Quando se afirma que o hamburguense é de
determinada forma, está havendo o municiamento de argumentos que respondem as funções do
cidadão.

Outra fundamentação desses preceitos é encontrada na 4ª edição do jornal.

As nossas industrias que sem favor nenhum, figuram em primeiro plano em nosso
Estado e que, por longo tempo, honraram S. Leopoldo, elevando-o as culminâncias,
formarão a base indestructível onde assentará o futuro e a grandeza do nosso
município. O nosso commercio, si bem, não tem a proporção de nossas industrias, é
entretanto de real valor, concorrendo também como índice seguro de nossa futura
grandeza. Para comprovar o que vimos de dizer é bastante que se note os innumeros
estabelecimentos industriaes e commerciaes que possuímos; a nossa vida social;
emfim, com referencia a nossa villa, o seu grao de adeantamento, o seu florescimento
architectonico, dia a dia enriquecido com a construcção de edifícios que honrariam

967
qualquer cidade civilizada (5 DE ABRIL, O, 1927, n. 4, p. 1).

Novo Hamburgo nesse período possuía cerca de 8500 habitantes, estabelecidos no que
o IBGE (2010) configurava como o menor município do Brasil, em área territorial, no ano de
1927. Publicar que a cidade progride, mesmo nessa condição de menor município, é um
indicativo de como o grupo político dominante interpretava a modernidade no nível municipal,
e como a identidade hamburguense era representada.

Ahi, pois, uma idéa do que vae pela nossa terra. E, conquanto não tenhamos um
município grande na sua superfície, os temos, entretanto grande e immenso no seu
comercio e nas suas industrias e, assim podemos confiar no nosso futuro que é o
mais promissor possível.

Nem outra perspectiva podemos ter, ante o que somos e o que possuímos em nossa
querida terra que, graças ao labor de seus filhos, já é conhecida do outro lado do
Atlântico como um dos adeantados centros de trabalho do Brasil (5 DE ABRIL, O,
1927, n. 4, p. 1).

O jornal “O 5 de Abril” está inserido em um contexto de criação do município e


afirmação de uma identidade própria em contraponto ao ex-municipio sede, cabendo a si
demonstrar o que é Novo Hamburgo e quem é o hamburguense. Dessa forma, a grande parte
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das capas do jornal estampam reportagens que explicam ou idealizam o cidadão local,
respondendo para a elite e para o indivíduo “quem nós somos”.

O direcionamento desses argumentos gira em torno da construção de uma identidade


híbrida, com foco principal na cidade e no trabalho, como se ambos estivessem intrinsicamente
ligados ao hamburguense. Sendo assim, o mais importante para o cidadão não era ser brasileiro
ou germânico, mas sim hamburguense, pois era a partir desse ponto identitário que ele se
localizaria e demonstraria seu valor, assim como o valor social e discursivo dessa lógica é
associado ao progresso advindo do trabalho industrial, principalmente no setor coureiro-
calçadista.

CONCLUSÃO

Dentro da modernidade, como um período de mudanças com o foco no estabelecimento


de identidades e as cidades como o centro histórico do mundo, Novo Hamburgo, a partir de sua
elite política local, cria um jornal que propaga elementos que respondem a questão básica da
identidade local, sobre quem seria o hamburguense.
968
Procurou-se demonstrar que esses elementos em “O 5 de Abril” estão relacionados a
dois processos, o primeiro sendo a ruptura com o município sede e a criação do município de
Novo Hamburgo, e o segundo envolvendo as tensões entre os discursos identitários germânicos
e brasileiros. Ainda que sejam processos distintos, são complementares no caso de Novo
Hamburgo, uma vez que para estabelecer uma ruptura administrativa com a cidade sede, era
necessário também preocupar-se com esferas como as sociais e culturais, o que envolvia o
estabelecimento de uma nova identidade para uma nova cidade.

Através do apagamento de qualquer referência étnica, seja germânica ou mesmo


brasileira, Novo Hamburgo, pelo seu porta-voz “O 5 de Abril”, opta por colocar em primeiro
plano uma identidade local, citadina, baseada no desejo de modernidade, na força da união e na
preocupação de uma cidade recém-criada, com perspectivas de futuro baseadas no trabalho
individual e no progresso coletivo.
ISSN: 2525-7501
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969
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ISSN: 2525-7501
COMENTÁRIOS SOBRE A EXPERIÊNCIA COLONIAL ALEMÃ A PARTIR DA
LEITURA DE GIORGIO AGAMBEN*520

Naiara Krachenski**521

RESUMO

A questão que direciona esta comunicação sobre a experiência colonial é: qual é o estatuto
jurídico-político da colônia e de seus nativos na lógica do imperialismo oitocentista tal como
praticado pelos alemães? É claro que para pensar tal questão poderíamos nos munir das mais
variadas interpretações de juristas e historiadores sobre o tema. No entanto, para fins de recorte
textual, esta reflexão se apoiará nas discussões apresentadas por Giorgio Agamben sobre o tema
da soberania, do estado de exceção e do direito de cidadania tal como apresentados nos livros
Homo Sacer e Meios sem fim. A reflexão também se apoia nas propostas jurídicas de Carl
Schmitt a partir da sua proposta de pensar o estatuto jurídico-político do nómos da terra através
do nexo de localização-ordenamento.

971
Palavras-chave: Imperialismo alemão; Estado de exceção; Giorgio Agamben.

INTRODUÇÃO

“Ponham-me em um navio que vá para leste de Suez,


onde o bom é como o mau, onde não existem os dez
mandamentos e onde todos os desejos são permitidos”.

Rudyard Kipling

520
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
521
** Doutoranda, Universidade Federal do Paraná, CAPES, nkrachenski@gmail.com.
ISSN: 2525-7501
A questão que direciona a escrita destes breves comentários sobre a experiência colonial
é: qual é o estatuto jurídico-político da colônia e de seus nativos na lógica do imperialismo
oitocentista tal como praticado pelos alemães? É claro que para pensar tal questão poderíamos
– e talvez mesmo até deveríamos – nos munir das mais variadas interpretações de juristas e
historiadores sobre o tema. No entanto, para fins de recorte textual, esta reflexão se apoiará nas
discussões apresentadas por Giorgio Agamben sobre o tema da soberania, do estado de exceção
e do direito de cidadania.

Capítulo I – Soberania e Estado de exceção

O conceito de soberania é fundamental para o entendimento do imperialismo


oitocentista, seja na forma de soberania econômica, soberania cultural ou política, a ideia é
fundadora da noção de Império que se construiu ao longo deste período. Como lhe é próprio,
Agamben busca nas definições do Direito materiais teóricos para sustentar suas teses

972
filosóficas.

A partir da leitura de Carl Schmitt, Agamben discorre sobre o conceito de soberania.


Segundo ele, o soberano é assim definido quando é ele quem decide sobre a instauração do
estado de exceção ou, em outras palavras, o soberano é aquele que detém o poder legal de
interromper a validade da lei e, dessa forma, inaugura o estado de exceção (AGAMBEN, 2010,
p. 22). A partir disso o soberano ocupa um lugar que é também um não-lugar: ele está, ao
mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico, uma vez que ele coloca-se, legalmente,
fora da lei (AGAMBEN, 2010, .p 22).

O conceito de soberania que resulta deste processo é, portanto, um conceito que não
pode ser descrito de uma forma binária, uma vez que o soberano não está nem dentro nem fora
da norma, mas dentro e fora dela simultaneamente.

Decorre daí que o estado de exceção é o momento que define o soberano e, portanto, é
o momento que delimita as fronteiras entre a inclusão e a exclusão, entre a norma e o caos, entre
o direito e o fora da lei. No entanto, como a ideia aqui não é contrapor definições simplistas, o
ISSN: 2525-7501
direito instituído a partir desse processo de soberania não descarta facilmente o fora da lei; ele
o instrumentaliza como parte integrante da sua própria definição:

A afirmação segundo a qual a regra vive somente da exceção deve ser


tomada ao pé da letra. O direito não possui outra vida além daquela que
consegue capturar dentro de si: através da exclusão inclusiva da exceptio:
ele se nutre dela e, sem ela, é letra morta (AGAMBEN, 2010, p. 24).

A ideia que parte disso é a de que nenhuma normatização pode se sustentar sem olhar
para aquilo que ficou de fora. Isso tem implicações não somente na Teoria Geral do Direito ou
na Teoria sobre a formação do Estado, mas implica também, em certa medida, um repesar do
próprio fazer histórico, algo que já Benjamin anunciava – não há documento de cultura que
não seja ao mesmo tempo documento da barbárie.

O estado de exceção instaurado a partir da lógica de exclusão inclusiva foi a base da 973
importante argumentação do jurista Carl Schmitt na sua obra O nómos da terra. A principal
linha de pensamento desenvolvida por Schmitt neste livro define-se pelo nexo localização-
ordenamento [Ortung-Ordnung]. Segundo este nexo, no qual consiste o nómos da terra, deveria
sempre existir um local excluído do direito que se configuraria como o “espaço livre e
juridicamente vazio”, no qual o poder soberano “não reconhece mais os limites fixados pelo
nómos como ordem territorial” (AGAMBEN, 2010, p. 42). Como nos diz Agamben, este lócus
vazio de direito se identificava à época clássica ao Novo Mundo, ao estado de natureza.

O nexo localização-ordenamento prevê, desta forma, uma zona em que seja possível a
“suspensão de todo direito”. Dessa forma, estado de natureza e estado de exceção se confundem
e se tornam indiscerníveis nesta zona juridicamente vazia.

Estado de natureza e estado de exceção são apenas as duas faces de um


único processo topológico no qual, como numa fita de Moebius ou em
uma garrafa de Leyden, o que era pressuposto como externo (o estado de
ISSN: 2525-7501
natureza) ressurge agora no interior (como estado de exceção), e o poder
soberano é justamente esta impossibilidade de discernir externo e
interno, natureza e exceção, phýsis e nómos. O estado de exceção, logo,
não é tanto uma suspensão espaço-temporal quanto uma figura
topológica complexa, em que não só a exceção e a regra, mas até mesmo
o estado de natureza e o direito, o fora e o dentro transitam um pelo outro
(AGAMBEN, 2010, p. 43-44).

Capitulo II – O estatuto jurídico-político das colônias alemãs em ultramar

Podemos pensar a partir do nexo localização-ordenamento a criação do Direito Colonial


(Kolonialrecht) nas colônias alemãs. Conforme afirmou Marion Brepohl de Magalhães o
Direito Colonial não foi uma invenção do colonialismo alemão, mas uma prática do
colonialismo europeu como um todo, que previa regulamentar as relações entre colonizadores
e colonizados. No entanto, como veremos a seguir, no caso do Direito Colonial alemão,
diferentemente dos outros, o critério racial foi um elemento que prevaleceu sobre os outros.

De qualquer forma, a criação de um ordenamento jurídico específico para o território


974
colonial denotava a diferença de estatuto da colônia em relação à metrópole, muito embora a
colônia fosse considerada por alguns entusiastas coloniais como uma extensão da pátria mãe:

No conjunto, essas tratativas jurídicas partiram da premissa de que, em


virtude da alteridade fundamental do povo da África Subsaariana, vale
dizer, sua condição de incivilizado ou atrasado, havia de se criar um
corpo de leis que levasse em conta a singularidade, excepcionalidade e
flexibilidade das relações entre governantes e governados (BREPOHL
DE MAGALHÃES, 2013, p. 21-22).

Também a partir da leitura de Carl Schmitt, Brepohl de Magalhães afirma que os


espaços considerados como vazios juridicamente foram também espaços considerados como
lócus da apropriação pela força. Desta forma, segundo ela, a ordem moderna baseada no direito
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tem como espaço de funcionamento unicamente o continente europeu e somente ali direitos e
deveres definidos pela lei deveriam valer. Ao contrário, no espaço que está fora destas fronteiras
o que deveria vigorar era a força e a apropriação (BREPOHL DE MAGALHÃES, 2013, p. 24).

Assim entendida, a colônia era o espaço do estado de exceção por excelência.

Se a apropriação das terras coloniais se deu a partir do princípio da res nullis, ou seja,
considerando que as terras encontradas não tinham dono ou haviam sido abandonadas e, com
isso, ignorando a população nativa e sua história naquele local, a constituição do Direito
Colonial também colocou em categorias diferentes as pessoas que viviam sob domínio imperial.
E é justamente essa categorização a partir do critério racial que se configura como a
particularidade do direito colonial alemão e expõe o racismo como elemento estruturante da
política (ARENDT, 1989).

De acordo com os juristas alemães, existiam nas colônias três agrupamentos de pessoas:
“os cidadãos do Reich, submetidos às leis do Reich; os Schutzgenossen, compreendendo todos

975
os povos civilizados não alemães que residissem nas colônias, doravante subordinados às leis
do Reich e não às leis costumeiras dos nativos; e, finalmente, os nativos (Eingeborenen), que
eram subordinados ao Reich mas não cidadãos” (BREPOHL DE MAGALHÃES, 2013, p. 22).

Este critério de cidadania, também ele, estava inscrito sob a lógica do estado de exceção
que definia o ordenamento jurídico da colônia: o cidadão do Reich continuava a gozar dos
direitos e deveres tais quais como se estivesse no Estado-nação de sua origem. No entanto, os
Eingeborenen estavam sujeitos unicamente ao domínio desse Estado-nação, não contando com
a sua proteção como um outro cidadão. É interessante notar como o estado de exceção colonial
atua aqui sobre a cidadania dos nativos em seus territórios. Giorgio Agamben afirma que o
cidadão só existe a partir do momento em que está ligado a um Estado-nação, ou seja, só goza
dos direitos do homem aquele que se inscreve em determinada territorialidade. Agamben afirma
ainda que o Estado-nação é o “Estado que faz da natividade, do nascimento (isto é, da vida nua
humana) o fundamento da própria soberania” (AGAMBEN, 2015, p. 28). Se, a partir dessa
lógica, o refugiado põe em cheque esta noção de soberania porque rompe a ligação entre o
homem e o cidadão, a natividade e a nacionalidade, o Eingeborene atesta a soberania do estado
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de exceção, uma vez que mesmo sendo nativo de tal territorialidade não possui os mesmo
Direitos do Homem e do Cidadão.

CONCLUSÃO

Partindo destas considerações ensejamos alguns comentários sobre como funcionou o


estatuto jurídico-político da colônia através da experiência alemã.

A partir da lógica do estado de exceção pudemos compreender como a colônia era


entendida, antes de tudo, como um espaço vazio de direitos. Foi justamente esta construção de
um espaço “onde não existem os dez mandamentos” – para voltar a Kipling - que permitiu, em
última análise, a perpetração da violência conforme estudamos a partir das mais variadas fontes.
Ainda de acordo com Brepohl de Magalhães

Os castigos, pena de morte e genocídio, longe de se caracterizarem como


um ato criminoso de delinquentes ou uma forma extrema de exploração
econômica, foram resultado, em boa medida, de dispositivos legais 976
chancelados oficialmente pela Metrópole, dispositivos que mantinham
esse outro em silêncio (BREPOHL DE MAGALJÃES, 2013, p. 26).

No entanto, este Outro nunca foi colocado realmente para fora das fronteiras definidas
pelo Direito Colonial uma vez que este só pôde se constituir como tal pela inclusão exclusiva
daqueles que deveriam figurar do lado de fora para sempre.

Este modelo de inclusão exclusiva operado pela experiência colonial também foi
importante porque gestou subjetividades que moldaram toda a construção deste mundo
colonial. A alteridade absoluta do Outro, do africano, foi instrumentalizada ela mesma na
construção da identidade europeia. A ideia de que o indivíduo não europeu é completamente
oposto ao indivíduo europeu é o substrato mais profundo de toda a manutenção da ideia de
império orquestrada nos séculos XIX e XX:

Justamente porque a diferença do Outro é absoluta, ela pode ser invertida


num segundo momento, como a fundação do Eu. Em resumo, o mal, a
ISSN: 2525-7501
barbárie e a licenciosidade do Outro colonizado tornam possíveis a
bondade, a civilidade e o decoro do Eu europeu. O que de início parece
estranho, estrangeiro e distante mostra-se, dessa maneira, muito próximo
e íntimo (HARDT & NEGRI, 2004, p. 144).

A nossa tentativa de compreensão do modo de funcionamento da colônia em seu aspecto


jurídico-político faz parte de um esforço muito mais amplo de compreensão deste processo
histórico. As experiências ocorridas no mundo colonial não fazem parte de um passado que
passou e que deve ser trazido à tona como uma seção de museu. A experiência colonial europeia
em África alterou permanentemente nossa relação com a construção epistemológica do passado
e se ele vem à tona em nossos escritos é como um passado que nos é ainda contemporâneo, que
não cessa de existir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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HARDT, Michael & NEGRI, Toni. Império. Rio de Janeiro: Record, 2004.
ISSN: 2525-7501
UMA BIBLIOTECA COLONIAL: A GÊNESE DA SOCIEDADE DE LEITURA
HERMANN FAULHABER DE PANAMBI522

Denise Verbes Schmitt523


Marta Rosa Borin524
Maria Medianeira Padoin525

RESUMO

O presente trabalho aborda gênese da Sociedade de Leitura Hermann Faulhaber, fundada em


1927, na Colônia de Neu-Württemberg, hoje atual cidade de Panambi – RS, que encontra sua
origem em uma biblioteca funda em 1903, pelo casal Marie e Hermann Faulhaber, mas
idealizada por Hermann Meyer, fundador da Colônia. Inicialmente, chamamos atenção para a
preocupação do agente de colonização em fundar uma Biblioteca em 1903, poucos anos depois
da fundação da Colônia, que havia sido fundada em 1898, algo pouco usual à época, uma vez
que o espaço de sociabilidade para os colonos era organizado depois do assentamento das
famílias. Neste caso, estamos diante de uma particularidade que demonstra uma diferença na
formação colonial: ou seja, a preocupação dos idealizadores na manutenção do hábito da leitura
entre os imigrantes “alemães” e seus descendentes. O presente trabalho busca demonstrar como 978
a instituição formou e manteve seu acervo, antes da mesma torna-se Sociedade de Leitura.

Palavras - chave: biblioteca, imigração alemã e Neu-Württemberg

INTRODUÇÃO

522
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria. Este
trabalho é resultado parcial da dissertação de mestrado vinculada ao Projeto de pesquisa “Religião, Política e
Imigração”, coordenado pela professora Marta Rosa Borin, PPG História - UFSM.
523
Mestranda em História, UFSM, CAPES/DS, ise0770@yahoo.com.br
524
Doutora em História, professora do PPG em História da UFSM - Orientadora mrborin@gmail.com
525
Doutora em História, professora do PPG em História da UFSM – Co-orientadora, mmpadoin@gmail.com
ISSN: 2525-7501
A história das bibliotecas agrega livros e leitores, em torno de um acervo bibliográfico,
que foi devidamente selecionado pela instituição mantenedora, para promover a informação e
a sociabilidade dos indivíduos que à congregam. Ainda, acrescenta-se a história das bibliotecas
a dificuldade de administração e manutenção destes espaços, bem como, a história da destruição
dos seus acervos, como também a história da preservação deste patrimônio. Por outro lado, ao
olharmos para as bibliotecas, podemos percebê-la enquanto espaço de acumulação do saber e
de sociabilidade.

Biblioteca enquanto temática de pesquisa tem se apresentado como um campo em


expansão, contando com pesquisas na área de biblioteconomia e história. Esta expansão
também é perceptível em relação à história da leitura e do livro, que, aliás, formam uma tríade
indissolúvel, tanto que em alguns casos, as temáticas pesquisadas não ficam bem delineadas,
permitindo que um tema se debruce sobre o outro, justamente porque a história das bibliotecas
é indissociável da história da leitura, bem como das escolhas que são realizadas para constituir
um acervo, aonde a biblioteca só adquire sentido pelo uso de seus leitores (BARATIN e
JACOB, 2000).
979
No entanto, esta tríade temática - livro, leitores e bibliotecas – tem predileção pela
história do livro e da leitura, o que constatamos ao inseri-las na questão das pesquisas sobre
imigração alemã no Rio Grande do Sul, ocorrida a partir de 1824. Em relação aos imigrantes
encontramos na historiografia discussões acerca de suas leituras, suas produções literárias e a
imprensa fundada por eles. Ou seja, as pesquisas voltam-se mais para as práticas de leitura, a
produção dos suportes de leitura, mas não propriamente para os acervos e suas composições,
ou para as instituições que foram fundadas para promover a leitura.

Assim, a pesquisa sobre a Sociedade de Leitura Hermann Faulhaber, fundada em 1927,


na antiga Colônia de Neu-Württemberg, vem ao encontro desta lacuna sobre a história das
bibliotecas, neste caso, fundada por imigrantes alemães. Esta Sociedade que tem sua gênese na
biblioteca fundada em 1903, pelo casal Marie e Hermann Faulhaber, sob orientação de
Herrmann Meyer, fundador da Colônia. Os dados aqui apresentados fazem parte da pesquisa
em andamento para a elaboração da dissertação de mestrado a ser apresentada no Programa de
Pós Graduação em História da UFSM.
ISSN: 2525-7501

1. Gênese da Sociedade de Leitura Hermann Faulhaber


Em 1903 uma biblioteca abria suas portas para os leitores da Colônia de Neu-
Württemberg, biblioteca esta que não recebeu nenhum nome em especial, apenas foi registrada
nos relatórios da empresa de colonização de Hermann Meyer e nas atas da escola da sede da
Colônia como Biblioteca. Os primeiros livros para compor seu acervo haviam chegado na
bagagem do casal Marie e Hermann Faulhaber, doados por Herrmann Meyer – recolhidos no
Instituto Bibliográfico, que pertencia à família na Alemanha - ou angariados por ele junto a
editoras ou instituições alemãs (NEUMANN, 2009; MAHP, 2013).

O casal Faulhaber chegou no final do ano de 1902, depois de Hermann Faulhaber ter
assinado um contrato de cinco anos com a Empresa de Colonização de Hermann Meyer onde
se comprometia a desempenhar as funções de professor, pastor e, ainda, a organizar e
administrar uma biblioteca526. Inicialmente a biblioteca foi alocada em uma sala da escola da
Colônia, na zona urbana. Segundo Fausel (1949. p. 26): “desde o ínicio a procura de livros foi
grande e já em agosto de 1903, trinta leitores retiravam 71 livros e 33 jornais e revistas, de 980
preferência obras recreativas, científicas e geografia”.

Em ata da Assembléia Geral de janeiro de 1974, ao apresentar um relatório sobre o


biênio 1972/73, consta um breve histórico da biblioteca527, devido a passagem do septuagésimo
aniversário da instituição, no qual afirma-se que o acervo inicial começou com 400 obras, o que
contradiz os documentos enviados ao Instituto Nacional do Livro (INL), os quais registram que
a biblioteca iniciou suas atividades com 200 livros528.

Esta divergência sobre a quantidade de livros do acervo inicial da Sociedade de Leitura


Hermann Faulhaber talvez tenha uma explicação no fato de Hermann Meyer ter mandado livros

526
As incumbências de Faulhaber estavam estipuladas no contrato assinado em 19 de julho de 1902, além de
outras atividades aqui não descritas- Museu e Arquivo Histórico de Panambi.
527
Segundo o documento, o breve histórico também foi divulgado no jornal local a Notícia Ilustrada, n° 389, de
23 de janeiro de 1974. MAHP
528
Os documentos são questionários que o Instituto Nacional do Livro (INL) enviava as bibliotecas filiadas a
ela. Um dos questionários é de 1945, o outro não foi possível datá-lo. MAHP.
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para duas biblitecas, uma fundada em Neu-Würtemberg e outra na Colônia de Xingú, ambas
emprendimentos seus. Fausel (1949, p. 26) afirma que "em 1906, a biblioteca incluindo-se os
livros que estavam em Xingú, contava 2291 volumes". Esta é a única referência sobre o número
de livros das duas colônias contabilizado de forma conjunta. As descrições posteriores vão
demonstrar o aumento do acervo, mas sempre se referindo apenas a biblioteca de Neu-
Württemberg.

Em setembro de 1909, em uma reportagem do Jornal O Independente529, de Cruz Alta


– RS , cidade a qual a Colônia pertencia na época, numa menção a biblioteca afirma-se que a
mesma era composta por um acervo de 3000 livros. Na mesma reportagem, Faulhaber aparece
como o diretor da Colônia.

Mediante o segundo contrato entre Meyer e Faulhaber, o então pastor passou a diretor
da Colônia. O contrato foi assinado no segundo semestre de 1908, quando a família Faulhaber
havia retornado à Alemanha, depois do cumprinto do primeiro contrato. De volta ao Brasil, em
março de 1909, Hermann Faulhaber afastou-se das atividades de pastor para se dedicar a
administração do emprendimento de Meyer. Neste período de transição de cargos não 981
encontramos referencias sobre a biblioteca, nem quem passaria a administra-lá. No entanto,
podemos fazer um paralelo com a Colônia de Xingú, onde a função de administrar a biblioteca
lá instalada, ficou a cargo do professor responsável pela escola colonial (MARTINELLI,
NEUMANN org. 2012). Assim, podemos considerar que a biblioteca da Colônia de Neu-
Württemberg também poderia estar sendo administrada pelo professor da escola local. Como
Marie e Hermann Faulhaber não se afastaram das atividades escolares, mesmo quando
Faulhaber mudou de cargo – com exceção do período em que estiveram na Alemanha, entre
tempo de férias e assinatura do novo contrato com Meyer - é plausivel considerar que a
administração da biblioteca tenha sempre ficado sob a gestão da família Faulhaber.

Sobre a possível caracterização do acervo no período inicial encontramos novamente


descrições em Fausel (1949, p.26):

529
Livro de recortes. MAHP.
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Havia, naturalmente numerosas brochuras muitas obras duplas. Naquela época 29
jornais e revistas nacionais e estrangeiras, em língua portuguêsa e alemã (17
brasileiras e 12 estrangeiras) eram postos à disposição dos leitores com regularidade.
O gôsto pela leitura aumentou de tal modo que já no inverno de 1906, em média, cada
familia lia, mensalmente, 3 a 4 livros e revistas

Uma grande quantidade de jornais estava a disposição dos moradores da Colônia de


Neu-Württemberg. Em um pedido de renovação das assinaturas para o ano de 1905, dos
seguintes jornais: Alto Taquari, Colonie, Fortschritt, Deutsche Post, Bote von S. Lourenço,
Deutsche Zeitung, Rio GrandenserVaterland, Koseritz Deutsche Zeitung, DeutschesVolksblatt
e A Federação530, feitas pelo guarda – livro João Diehl Filho, nos sugere que estes eram alguns
dos periódicos a disposição da população. Neumann (2009, p.144) ainda cita os seguintes
periódicos alemães: “Tägliche Rundschau; Umschau; Deutsche Monatsschrift; Echo”. 531

No entanto, não fica claro se estes jornais eram específicos para a biblioteca, ou tinham
outra destinação, mas devido aos registros de que havia jornais na biblioteca e que eram
mantidos ou enviados por Hermann Meyer, através de sua empresa, podemos considerar que
estes periódicos estavam a disposição da população. 982
Em relação ao jornal A Federação, consta diversas cartas532 que reclamam das remessas
em atraso para a Alemanha, ou números que não foram enviados. A assinatura desse jornal
incluía um exemplar para a Alemanha, que devia ser enviado para a residência de Meyer e outro
que devia ser despachado para a Colônia. Meyer buscava saber o que acontecia no Brasil,
acompanhando as reportagens nos meios de comunicação que informava sobre a situação das
Colônias533.

530
Carta transcrita, datada de 29/12/1904 - MAHP.
531
[...] a Colonizadora Meyer assinava, variando de ano a ano, em torno de 10 jornais e almanaques, dentre eles,
jornais diários da capital, Porto Alegre, e do Rio de Janeiro [...] (NEUMANN, 2009, p. 210). No entanto não fica
claro se estes jornais eram específicos para a biblioteca, ou tinham outra destinação, mas devido aos registros de
que havia jornais na biblioteca e que eram mantidos ou enviados por Meyer, através de sua empresa, podemos
considerar que estes periódicos citados estavam a disposição da população. MAHP
532
As cartas são tanto do guarda-livros, João Diehl Filho, como do diretor da Colônia, Alfred Bornmüller.
533
Sobre o empreendimento de Hermann Meyer ver NEUMANN, 2009.
ISSN: 2525-7501
Percebe-se uma grande variedade de jornais. O jornal tem por caracteristica a busca de
informações sucintas para a vida cotidiana, pois é um meio de comunicação que “trata de
notícias do dia a dia, com comentários rápidos, com poucos artigos de informação ou de
doutrinação mais amplos” (GERTZ, 2004, p. 101). Assim o jornal tem a função de informar de
maneira prática, com conteudo direto, através de uma leitura rápida. Esta variedade de jornais
ciruclando na Colônia também possibilitava que os leitores não tivessem apenas informações
de uma única fonte, possibilitando cruzar informações, bem como a acesso a noticias de regiões
diferentes, até mesmo da Alemanha. Assim, a biblioteca não se caracteriza apenas como fonte
de lazer, mas também de informação.

A biblioteca nos primeiros anos funcionou de forma centralizada, na sede da Colônia –


ou seja, na Stadtplatz -, fato que mudou depois da fundação de uma rede de escolas pelo interior
do complexo colonial – na área rural - a partir dos anos 1910. Com isso, a biblioteca passou a
funcionar de forma descentralizada, com a sede na Stadtplatzschule com filiais nas localidades
rurais – as ramais. Segundo a ata escolar de 1920, estas ramais eram: Norte, Oeste, Magdalena,
Palmeira e Hindenburg, sendo que Rincão também passaria a ter uma ramal em breve. Cada
umas destas subunidades ou ramais possuía um acervo permanente, mas também contava com
983
um sistema de troca de livros entre a biblioteca central e as ramais, formando um rodízio do
acervo.

Assim, a circulação dos livros entre as bibliotecas (central e ramais) gerava um sistema
de troca que abarcava um numero significativo para a época, entre 50 a 100 livros. Essa
descentralização possibilitava o facíl acesso dos leitores do interior a biblioteca, sem a
necessidade de deslocamento dos mesmos até a sede da Colônia para retirar os livros ou para
devolve-los. As ramais, bem como a central, funcionavam dentro do espaço escolar534.

Com isso podemos constatar alguns aspectos deste sistema: a biblioteca dentro do
espaço escolar servia de suporte aos alunos; aproximava comunidade e escola; a
descentralização alcançava um maior número de leitores; havia uma iniciativa da administração

534
Ata escolar. MAHP. Ata escolar transcrita datada de 25/04/1920, que presta contas do ano escolar de 1919.
Esta ata Apresenta regras e aspectos sobre o funcionamento da biblioteca - MAHP. No entanto, foi encontrado
apenas este documento que descreve a descentralização da biblioteca, o que não possibilitou o cruzamento com
outra fonte.
ISSN: 2525-7501
voltada ao incentivo da leitura na Colônia, que buscou atingir o maior número de leitores. Por
mais que a estas especificações constem em uma ata escolar, Hermann Faulhaber, presidente
da rede escolar da Colônia e bibliotecário, afirmava nesta mesma ata que a biblioteca estava
intimamente ligada a escola, mas que não pertencia a mesma, sendo uma instituição à parte.
Assim, a biblioteca estava a serviço da escola, mas em momento algum pertencia a ela, por
mais que sempre tenha sido alocada no espaço escolar.

Martins (2015), ao descrever sobre os Gabinetes de Leitura em São Paulo, afirma que
dentro destas instituições havia um projeto de educação popular aberta a toda a sociedade, o
que difere da Biblioteca de Neu-Württemberg, onde temos uma biblioteca dentro da escola,
mas como instituições distintas, apesar da biblioteca estar a serviço da escola. Já nos Gabinetes
de Leitura temos as bibliotecas que ofereciam educação popular, sendo a escola um projeto do
Gabinete de Leiura. Os Gabinetes de Leitura investigados por Martins (2015) tinham
vinculação com a maçonaria, que visava Estado laico, por isso a fundação destas instituições e
sua oferta de educação. Estes Gabinetes de Leitura eram uma

984
(...) rede de estabelecimentos voltados para a leitura e que, dotados de estatutos
homogêneos, previam a formação de uma biblioteca de gêneros e titulos
diversificados, onde se podiam alugar livros; previam, igualmente, uma escola de
primeirras letras, que formasse leitores para consumo daquele acervo enquanto
encetavam a alfabetização dos segmentos menos favorecidos da sociedade
(MARTINS, 1999, p 401).

A biblioteca de Neu-Württemberg a princípio não tinha vinculação com a maçonaria,


apesar de apresentar semelhanças ao projeto dos Gabinetes de Leitura paulistas, pois os dois
projetos tinham a educação e a leitura como alvo.

A biblioteca da Colônia de Neu-Württemberg funcionava a partir da retirada de livros e


revistas, permitindo ao sócio ficar com as obras por um período de quatro semanas. Para a
utilização dos serviços da biblioteca era necessário ser sócio e pagar uma taxa mensal, sendo
esta revertida para a encadernação dos livros e ampliação do acervo. Outra forma de aumentar
o número de livros da biblioteca era a partir da disponibilização de recursos financeiros vindos
de Meyer ou a própria doação de livros. A doação de obras foi uma constante na história da
ISSN: 2525-7501
Instituição, muitas delas feitas pelos proprios sócios, por empresas locais e/ou instituições
alemãs.

Este modelo de funcionamento e administração da bilbioteca da Colônia sofreu


alterações em 1926, com a morte autodirigida do diretor Hermann Faulhaber. Assim, em 1927,
surge a Sociedade de Leitura Faulhaber, alocada na residência da familia Faulhaber, com um
acervo bibliografico reunido no mesmo local. A Sociedade passou a ser alocada no espaço
escolar em 1935, depois da conclusão da construção em alvenaria da escola central, onde ficou
até o ano de 1939. Com o fechamento da escola, devido as imposições do governo Vargas, no
período do Estado Novo, ela voltou a ser alocada na casa da familia Faulhaber, até o ano de
1942 quando foi confiscada pelo governo.

CONCLUSÃO

O projeto de implantar uma biblioteca na Colônia de Neu-Württemberg partiu da


iniciativa do empresário alemão Herrmann Meyer e foi colocada em prática pelo casal
Faulhaber, que por mais de duas décadas esteve a frente da gestão da instituição, fato que mudou
depois de julho de 1926, com a morte autodirigida de Hermann Faulhaber. Com a morte do 985
diretor Hermann Faulhaber ocorreram mudanças administrativas na Colônia, sendo que uma
delas afetou diretamente a biblioteca. No entanto, estas mudanças não afastaram a família
Faulhaber do circulo de influência ou de decisão referentes a mesma.

Sobre a biblioteca podemos constatar que a mesma por estar dentro do espaço escolar,
servia de suporte aos alunos, bem como aproximava comunidade da escola. A descentralização
da biblioteca alcançou um maior número de leitores, que não precisavam se deslocar da zona
rural para a area urbana para ter acesso aos livros, resultado de uma iniciativa da administração
central voltada ao incentivo da leitura na Colônia, buscando atingir o maior número de leitores
através desta descentralização. Com estas iniciatisvas havia uma a biblioteca a serviço da
escola, mas em momento algum pertencia a ela, por mais que sempre tenha sido alocada no
espaço escolar. De certa forma os livros da bilbioteca atraiam a comunidade para o ambiente
escolar .
ISSN: 2525-7501
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988
ISSN: 2525-7501
A RELAÇÃO ENTRE TRABALHO E VALOR PARA DESCENDENTES DE
IMIGRANTES ITALIANOS EM ARVOREZINHA – RS*535

Samara Camilotto**

Dalila Rosa Hallal***536

RESUMO

O município de Arvorezinha, no nordeste do Rio Grande do Sul, recebeu seus primeiros


imigrantes italianos no final do século XIX. Vindos de outras regiões do estado, esses
imigrantes procuravam lugares mais favoráveis para morar e trabalhar na agricultura. No
decorrer dos próximos dois séculos, o município caracterizou-se por sua população de formação
étnica predominantemente italiana. O presente estudo possui o objetivo de analisar a relevância
do trabalho no cotidiano dessa comunidade, afinal, os descendentes de imigrantes italianos em
Arvorezinha possuem a sua história marcada por um contexto de colonização. Partindo de uma
pesquisa mais ampla para um trabalho de conclusão de curso na Graduação em Turismo, em
abril de 2015 foram realizadas entrevistas com nove moradores locais de Arvorezinha em que
foram abordadas, dentre outras, suas percepções sobre esse aspecto. A partir dos resultados,
percebe-se que o trabalho é um indicativo valorativo que os define enquanto grupo social e
989
étnico. Mesmo que alguns dos entrevistados estejam residindo na cidade, o interior é visto como
espaço de importantes momentos reveladores de um traço que os distingue, pois ser agricultor
não é apenas uma profissão e sim um modo de viver. Através do tempo e das gerações, as
memórias desses moradores são fontes para a confirmação do que é concebido atualmente para
eles, sendo o trabalho árduo pressuposto para a honestidade e a moralidade.

Palavras-chave: Imigração Italiana, Trabalho, Arvorezinha – RS.

535
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
536
** Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Turismo e Hospitalidade (PPGTURH) da Universidade de
Caxias do Sul (UCS). E-mail: camilotto.sa@gmail.com.

*** Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Docente na
Faculdade de Administração e de Turismo (FAT) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail:
dalilahallal@gmail.com.
ISSN: 2525-7501

INTRODUÇÃO

A imigração italiana iniciou no Rio Grande do Sul no ano de 1875, na atual região da
Serra Gaúcha. Porém, foi somente no início dos anos 1900 que os primeiros imigrantes italianos
chegaram à região onde hoje é o município de Arvorezinha. Vindos de outras regiões do Estado,
esses imigrantes procuravam lugares mais favoráveis para morar e trabalhar na agricultura
(LOPES, 2012).

Arvorezinha fica localizada no nordeste do Rio Grande do Sul, fazendo parte da região
do Vale do Taquari (LOPES, 2012). Segundo censo realizado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE, 2015) no ano de 2010, o município possuía pouco mais de 270
km² e cerca de 10 mil habitantes, sendo que, de acordo com o site da Prefeitura Municipal, a
formação étnica da população é predominantemente italiana (PREFEITURA MUNICIPAL DE
ARVOREZINHA, 2016). Além disso, a economia do local é baseada na agricultura de
990
pequenas propriedades.

Assim sendo, este trabalho busca de analisar a relevância do trabalho no cotidiano da


comunidade arvorezinhense, afinal, os descendentes de imigrantes italianos em Arvorezinha
possuem a sua história marcada por um contexto de colonização.

Partindo de uma pesquisa mais ampla para um trabalho de conclusão de curso na


Graduação em Turismo, em abril de 2015 foram realizadas entrevistas com nove moradores
locais de Arvorezinha em que foram abordadas, dentre outros aspectos, suas trajetórias de vida.
O Quadro 01 apresenta o perfil dos entrevistados.

Quadro 01 – Perfil dos moradores entrevistados

Morador Sexo Idade Tempo de residência em Arvorezinha


Morador 01 Feminino 76 anos Sempre residiu em Arvorezinha, na zona
urbana e no mesmo endereço.
ISSN: 2525-7501
Morador 02 Feminino 48 anos Sempre residiu em Arvorezinha, sendo que
até os 23 anos foi no interior e após isso foi
morar na cidade.
Morador 03 Masculin 87 anos Sempre residiu na zona urbana.
o
Morador 04 Feminino 87 anos Residiu sempre na zona rural do município.
Morador 05 Masculin 44 anos Até os 30 anos residiu na zona rural do
o município. Após isso foi morar na cidade.
Morador 06 Feminino 63 anos Natural de outro município, aos três anos
passou a residir em Arvorezinha.
Morador 07 Feminino 47 anos Quando criança morou no interior de
Arvorezinha. Aos 10 anos passou a morar na
zona urbana. Durante certo espaço de tempo
foi morar em outros municípios. Aos 14 anos
voltou para Arvorezinha, residindo até hoje
na zona urbana.
Morador 08 Feminino 59 anos Natural do município, moradora da zona
urbana, residiu, na juventude, cerca de sete 991
anos em outros municípios e após regressou
à Arvorezinha.
Morador 09 Feminino 73 anos Sempre residiu no município, inicialmente
na zona rural e aos 44 anos passou a residir
na cidade.
Fonte: Elaborado pelas autoras

Sobre as entrevistas, essas seguiram um roteiro semiestruturado. Esse tipo de entrevista,


conforme Triviños (1987, p. 146), “ao mesmo tempo que valoriza a presença do investigador,
oferece todas as perspectivas possíveis para que o informante alcance a liberdade e a
espontaneidade necessárias, enriquecendo a investigação”.

Por tratar-se de uma pesquisa qualitativa não houve um número delimitado a priori de
entrevistas a serem realizadas. A partir do momento que as informações começaram a se repetir,
decidiu-se que já se havia chegado a um ponto de saturação. Duarte (2002, p. 143) explica que:
ISSN: 2525-7501

Numa metodologia de base qualitativa o número de sujeitos que virão a compor o


quadro das entrevistas dificilmente pode ser determinado a priori [...]. Enquanto
estiverem aparecendo “dados” originais ou pistas que possam indicar novas
perspectivas à investigação em curso as entrevistas precisam continuar sendo feitas.
[...] Quando já é possível identificar padrões simbólicos, práticas, sistemas
classificatórios, categorias de análise da realidade e visões de mundo do universo em
questão, e as recorrências atingem o que se convencionou chamar de “ponto de
saturação”, dá-se por finalizado o trabalho de campo [...] [Grifos da autora].

Esse trabalho se estrutura em quatro capítulos. No primeiro, será feita uma abordagem
sobre o trabalho no cotidiano dos colonos italianos quando já no Rio Grande do Sul. Após,
serão analisadas as entrevistas com os moradores de Arvorezinha, especificamente os relatos
correspondentes ao objetivo desse estudo e, por fim, as considerações finais.

Capítulo I - O imigrante italiano no Rio Grande do Sul

As primeiras famílias de imigrantes italianos que colonizaram o Rio Grande do Sul 992
encontraram os alemães (que começaram a imigrar para o Brasil a partir do ano de 1824) nas
regiões planas. Assim, “tiveram de se contentar com lotes localizados no planalto, numa região
coberta de mata – a encosta da serra” (TRENTO, 1989, p. 85).

Conforme Manfroi (1975), o primeiro contingente de imigrantes italianos estabeleceu-


se na primeira légua da colônia de Fundos de Nova Palmira em 20 de maio de 1875. De Boni e
Costa (1984) explicam que esses primeiros imigrantes eram provenientes da província de Milão
e, por conta disso, o lugar recebeu o nome de Nova Milano (atualmente a localidade pertence
ao município de Farroupilha).

A imigração não foi fácil. Os italianos ao chegarem ao Brasil descobriam que o mesmo
não era uma terra de riqueza e fartura. Segundo Dall’Alba (1998, p. 24), “quando aqueles
campesinos entraram na selva escura, selvagem e áspera, o impacto da realidade desmascarou
aquela América conhecida por eles, propagandeada pelas aldeias, na Itália”. O que eles se
depararam foram com os índios, a mata fechada, os animais ferozes e peçonhentos e, segundo
Nicolini (2011), com o descaso do governo.
ISSN: 2525-7501
Azevedo (1975, p. 160 apud BIAVASCHI, 2011, p. 61) afirma que, apesar de pouco,
houve algum auxílio do governo:

As bagagens dos imigrantes eram transportadas gratuitamente desde Porto Alegre até
as sedes das comissões ou núcleos. Tinham ainda agasalho, hospedagem durante
quatro dias para descansarem da viagem e eram transportados gratuitamente para as
linhas, onde escolhiam seus lotes rurais. Até as primeiras colheitas os chefes de
famílias ou alguns de seus filhos eram empregados na construção de estradas de
rodagens ou caminhos vicinais, durante quinze dias de cada mês, a fim de obterem
recursos para sua subsistência nos primeiros tempos do estabelecimento.

Os recursos prometidos pelo Estado foram destinados, inicialmente. Porém, em 1890


foram suprimidos, em 1896 reestabelecidos e em 1898 modificados. A imigração
subvencionada ao Rio Grande do Sul teve seu fim em 1914 por conta da guerra mundial e do
decreto promulgado pelo governo, no qual os favores destinados aos imigrantes passaram a ser
somente a compra do lote a crédito e as informações concernentes sobre colônias (MANFROI,
1975). 993
Em relação às terras destinadas aos imigrantes, Manfroi (1975) explica que as colônias
eram divididas por uma linha, que era um caminho estreito por onde se separavam os lotes.
Cada lote possuía de 22 a 25 hectares em forma retangular.

As primeiras atividades nos lotes não foram de plantio e sim de limpeza do mato,
construção de casas e abertura de caminhos (PARCIANELLO, 2011). Para ficarem mais pertos
uns dos outros, os imigrantes construíam suas casas próximas às linhas (caminhos). Nessas
linhas, as residências distavam, em média, 300 metros umas das outras (DE BONI; COSTA,
1984). Assim, “as casas se sucediam, alinhadas paralelamente umas às outras. Desta forma, o
limite dos fundos de um lote eram os fundos da linha paralela; portanto, a distância entre as
duas linhas media um total de dois quilômetros” (MILANO, 2010, p. 57).

Andrade e Andrade (2006) explicam como era a construção das casas: elas eram
construídas com madeira do próprio terreno e, muitas vezes, o chão era de terra batida. Para a
construção da casa geralmente utilizavam-se tábuas largas e pesadas com altura de até oito
metros de comprimento para que se pudesse fazer dois andares (BONETTI et al., 2007).
ISSN: 2525-7501
Também havia casas de pedra que tinham como liga barro, esterco de animais e palha de trigo
(MICHELIN, 2008).

Eram construídas, ainda, outras instalações importantes no contexto familiar,


principalmente no que se referia à produção: “outras instalações eram erguidas no lote colonial:
latrina537, forno, chiqueiro, paiol538, galinheiro, estrebarias539, e assim por diante, tudo de acordo
com o porte da família e as posses de que se dispunha” (ANDRADE; ANDRADE, 2006, p.
32).

Após, iniciava-se o plantio, que era de trigo, milho, uva, batata, batata-doce, feijão,
arroz, aipim, verduras, legumes (principalmente o radicci) e frutas (ZANETTI, 2010).

A preocupação com os alimentos a serem cultivados se devia ao consumo familiar. Os


imigrantes plantavam, colhiam e armazenavam para consumir durante o ano. Santos e Zanini
(2008, p. 272) salientam que “[...] fosse na zona urbana ou rural, produzir sua comida, plantar,
colher e conhecer a procedência do alimento era algo muito valorizado” para os imigrantes

994
italianos.

Zanetti (2010) mostra que o responsável pelo cultivo era o homem, era ele quem
coordenava a plantação. Já a mulher era responsável em transformar os alimentos cultivados
em comida. Casagrande (2006) afirma que a mulher estava limitada aos espaços ao redor da
casa e, entre esses, a horta, onde se plantavam hortaliças, verduras e algumas flores, era um
espaço sagrado para ela.

A mulher, inclusive, tinha pouco espaço nos momentos de tomada de decisão. Santos e
Zanini (2009, p. 31) ao estudar a Quarta Colônia de Imigração Italiana, no centro do Rio Grande
do Sul, salientam que “ela trabalhava, mas não usufruía da sua produção de riqueza; criava
filhos, educava-os nas normas cristãs, tornando-os aptos ao trabalho e à disciplina, mas era
alijada da parte pública da produção da riqueza”.

537
Latrina: Sanitário no lado de fora da casa.
538
Paiol: Construção de madeira para realizar trabalhos agrícolas como, por exemplo, debulhar milho.
539
Estrebaria: Área onde ficam bois e vacas.
ISSN: 2525-7501
Em um estudo sobre os provérbios dialetais italianos usados na educação informal dos
ítalo-brasileiros, Frosi (2015) analisa a recorrência das palavras mulher e esposa e afirma que
alguns desses provérbios depreciam a figura da mulher, colocando-a em condição subalterna,
de dominada, porém, ela “é concebida de modo positivo, regra geral, quando é relacionada ao
trabalho, particularmente, ao trabalho doméstico” (FROSI, 2015, p. 167).

Os colonos, segundo Kanaan (2008), trabalhavam durante toda a semana e nos


domingos iam à capela para se integrar com o restante da população. Após a missa ou a reza do
terço, os homens jogavam bocha540, mora541 e outras competições que revigoravam suas forças.
Já para as mulheres, essa integração servia para troca de experiências entre as mais velhas e as
mais novas (CASAGRANDE, 2006).

No inverno, como fazia muito frio e era impossível praticar a agricultura, os imigrantes
e seus descendentes confeccionavam instrumentos necessários para o seu dia-a-dia. De acordo
com De Boni e Costa (1984, p. 84), “perdida na solidão da floresta, a família era entregue a si
mesma, e adquiria, para poder sobreviver, elevado grau de auto-suficiência, o qual favoreceu,
em parte, o surgimento de um grande artesanato regional”. As matérias-primas para o artesanato 995
eram as folhas de milho em que se faziam cigarros de palha e as de folhas de trigo para fazer
chapéus, bolsas e cestas (BONETTI et al., 2007).

Havia também o comerciante. Ele era o responsável por fazer as trocas comerciais entre
os produtos coloniais e as mercadorias dos centros urbanos. Conforme Kanaan (2008, p. 22),
ele era tratado com distinção pelos colonos

[...] por manter contatos fora da colônia. O negociante, além de abastecer o pequeno
núcleo com mantimentos, trazia até os colonos as últimas notícias que circulavam em

540
Jogo de Bocha: Jogado em equipes, “consiste em situar as bochas (bolas) o mais perto possível de um objeto,
previamente lançado o ‘bolim’ (bola pequena). Cada equipe procura situar suas bochas mais perto ainda do bolim
ou de remover aquelas da outra equipe que estiverem mais perto do mesmo” (FCBB, 2015, s/p).
541
Mora: Jogo no qual, segundo o Jornal Vanguarda (2015, s/p), “o ideal é ser jogado por quatro participantes. A
partida é de 20 pontos e o objetivo principal é acertar o número de dedos que os jogadores colocam na mesa. Soma
correta equivale a um ponto ganho. Além dos jogadores, o contador de pontos da partida também é uma peça
fundamental, já que os pontos são contados também nos dedos, o que exige muita atenção e raciocínio rápido do
juiz”.
ISSN: 2525-7501
outras localidades. Nesse trânsito, o dono do armazém demonstrava sua habilidade
em lidar com distintos grupos e assim foi conquistando poder econômico e social.

Porém, Zanetti (2010) afirma que como a produção do colono era para consumo próprio,
poucos alimentos eram adquiridos na bodega, como era chamado o comércio: era o sal, e em
alguns casos o açúcar e o café.

Kanaan (2008) e Zanetti (2010) em seus estudos com descendentes de italianos, em


Farroupilha e em Ilópolis respectivamente, concluíram que a noção de italianidade e o
sentimento de pertencimento com este grupo étnico estão pautados em valores e práticas do
meio rural, “remetendo aos hábitos e costumes vividos pelos ‘colonos’ na zona rural da região”
(KANAAN, 2008, p.18, grifo da autora).

O italiano sempre se visualizou como trabalhador. Manfroi (1975, p. 117) afirma que
“como náufragos numa ilha, os colonos italianos do RS duplicaram sua já extraordinária
capacidade de trabalho, e a tal ponto que no RS o imigrante se tornou o símbolo do trabalho”.
De Boni e Costa (1984, p. 85) também destacam a importância que o trabalho tinha para o 996
imigrante: “Trabalhava de sol a sol, e o resultado compensador de sua labuta tornava-se, para
ele, motivo de novo entusiasmo e de redobrado ardor pelo trabalho”. Para Frosi (2015, p. 166)
“trabalhar é radicalmente uma apreciável qualidade no universo de valores do grupo étnico
ítalo-descendente”. Porém, mesmo com essa designação de trabalhador, o imigrante italiano
era considerado inferior por ser pobre.

Hoje em dia, entretanto, a figura do imigrante é vista pelos seus descendentes como um
“herói-mártir” (ZANINI, 2007) por ter enfrentado a mata e os animais selvagens e mesmo assim
ter conseguido prosperar no Brasil. Esse é o imigrante-exemplo para as gerações atuais, de
acordo com Zanini (2007, p. 167):

O pioneiro, desbravador das matas, fazedor de cultura, é o herói civilizador.


Herói este que é também um mártir. Ele domesticou a natureza, venceu a si
mesmo, seus medos, nostalgias, ressentimentos e deve se tornar um exemplo
para as gerações sucessivas.
ISSN: 2525-7501
Inclusive o próprio termo colono vem se modificando. Zanini (2008, p. 144) afirma que
o termo antigamente “designativo de rudeza, ignorância e falta de trato, tem sido
ressemantizado, vindo a representar o pioneiro, trabalhador incansável da terra e portador de
virtudes específicas”. Nas palavras de Zanini (2005, s/p):

Esta noção de origem passou a ser positivada através da trajetória construída


sobre si mesmos, desde a travessia, do pioneiro, do colonizador até os dias
atuais, quando muitos, já bem situados socialmente e economicamente podem
elaborar uma discursividade nova sobre os itinerários dos migrantes, seus
antepassados.

Dentre todos os fatores citados, o mais importante é que nos últimos tempos o
sentimento de pertencimento entre os descendentes de imigrantes italianos tem se fortalecido.
O discurso desses personagens aborda desde o imigrante que batalhou para viver no Brasil até
o sucesso que muitas famílias tiveram, levando-as a uma boa situação econômica (ZANINI,
2005). 997
Capítulo II – O trabalho na vida dos descendentes de imigrantes italianos em
Arvorezinha

Os moradores de Arvorezinha, em seus relatos, frequentemente remeteram-se ao


passado, destacando suas vidas como agricultores. Tedesco e Rossetto (2007) explicam que o
saudosismo e a nostalgia representam atos e fatos que já não estão mais presentes nas nossas
vidas, mas que em algum momento foram assim e, por isso, alimentam nossa memória.

Quando relataram suas infâncias, percebe-se, que, entre os que moravam no interior, os
momentos para brincar eram poucos: “Mas se brincava quando chegava alguém, alguma
mulher, alguém que tinha criança pra brincar junto, coisa assim [...]”. (Morador 02).
“Brincadeiras, só no sábado. [...] Então a gente marcava a tarde no sábado pra poder brincar
com as meninas da vizinhança” (Morador 07).

Quando eram jovens, os dias eram divididos entre escola e trabalho. Alguns
entrevistados lembraram que antes de ir para a aula ajudavam na roça: “Ia trabalhar um pouco
ISSN: 2525-7501
na roça e oito horas nós tava na escola. Antes se ia tratar os bichos, até carpi se ia um
pouquinho antes de ir na escola” (Morador 04). “Antigamente desde pequeno se ia pra roça.
Ajudava a fazer o serviço, daí meio-dia a gente ia pra aula, se estudava” (Morador 02). Outro
morador destacou que ajudava sua família da maneira que podia: “Quando a gente era criança,
desde pequeno a gente já trabalhava, fazia alguma coisa que a gente pudesse ajudar” (Morador
07).

Essa ajuda aos pais no trabalho, segundo os entrevistados, proporcionou bons momentos
e de grandes aprendizados:

Nos dias de chuva como a cultura italiana também permitia, também nos ensinou,
nos dias de chuva a gente ia pro porão, daí o pai ia na frente e eu era o último lá na
minha família e daí o pai fazia os cabos da foice e os manos mais velhos, um fazia
uma canga542, outro fazia o cabo de um martelo e aquela chuva lá fora né, parecia
que... E hoje também quando chove, a gente carega tantas lembranças boas daquele
momento. (Morador 05).

998
Enquanto criança, enquanto infância a gente trabalhava muito, mas o trabalho não
era o trabalho escravo, e sim o trabalho do aprendizado [...] então eu fui uma criança
feliz e tive uma infância feliz apesar da pobreza extrema que a gente vivia. (Morador
06).

Manfroi (1975) afirma que, devido aos problemas que enfrentaram ao chegar ao Rio
Grande do Sul, os imigrantes italianos se tornaram o símbolo do trabalho. Nas entrevistas, os
moradores de Arvorezinha demonstraram a importância do trabalho: “Bom, nós, toda a
família... Eu nasci, cresci e me criei na roça. Tenho orgulho de ter sido agricultora, por isso
que eu valorizo muito os agricultores.” (Morador 09). “Sempre trabalhar na roça pó, sempre
trabalhando na roça. [...] Todos na roça, tudo com os pais. Gente pobre.” (Morador 04).

À noite, as mulheres reuniam-se para fazer artesanato: “[...] fazer crochê, se bordava,
fazia tranças, esses serviços assim” (Morador 04). “[...] a gente aprendia a fazer tricô, crochê,

542
Canga = Peça de madeira que se encaixa no cangote dos animais, é presa sob o pescoço por uma tira de couro
trançado.
ISSN: 2525-7501
bordar, costurar, remendar, fazer as coisas, ser autossuficiente” (Morador 06). O artesanato
feito era, muitas vezes, subproduto da produção agrícola: “Hoje um chapéu se compra pronto
e antigamente se fazia, se fazia feito de palha, daí se... às vez a gente até plantava a palha,
colhia e fazia o chapéu, que é feito de trança, tu fazia uma trança e depois montava, costurava
o chapéu” (Morador 02). Um morador salientou que ainda possui o costume de fazer artesanato:
“[...] que nem crochê eu faço, eu gosto de fazer” (Morador 02).

A vida no interior, segundo um entrevistado, era de muito trabalho e também de


exploração. Inicialmente, com a produção de milho, pois sua família produzia “aquele milho
lindo, bonito, um caminhão cheio que ia lá pra Carazinho e lá eles botavam o preço que eles
queriam” (Morador 05). Posteriormente, o mesmo aconteceu com o fumo. Vendo que muitos
vizinhos largavam a produção de fumo e iam morar na cidade, este, juntamente com a sua mãe,
resolveu fazer o mesmo:

999
Então no início a gente imaginava que, vê só que pensamento mais simples, bobo, sei
lá, humilde, nem sei que nome que eu dou. A gente imaginava que quem morava na
cidade era feito pra morar na cidade. Então a gente vinha pra cá, assim, meio que
desconfiado, a gente andava na rua: “Bá, aqueles lá vão perceber que eu sou colono”
e daí nada de fazer muito barulho né. Apareceu um trabalho, vamo trabalhar, não dá
pra gargantear muito, nada de ir nas festas e daí o trabalho foi aparecendo [...] A
gente pensou que, “Ah, a gente não sabe nada”, então você ia lá, botava um piso:
“Nossa, que piso!”, “Quem que te ensinou?”, “Onde é que tu foi aprender?” Em
lugar nenhum, é herança de novo lá atrás dos nonos, o capricho, os dias de chuva
que te falei né, os dias de chuva, o próprio sangue né, que a gente diz, a própria
cultura do pai ensinar a gente a trabalhar aquela, aquele cabo de machado, pra alisar
ele... enfim. Foi lá no berço que a gente aprendeu a caprichar nos mínimos detalhes
e aí a gente aplicava e aplica na alvenaria [...]. (Morador 05).

A partir desse relato, especificamente quando o morador destaca que foi no “berço” que
aprendeu o capricho e a excelência no trabalho, pode relacionar com a ideia de Zanini (2005;
2008). A autora afirma que o discurso atual dos descendentes de imigrantes italianos reflete o
sacrifício dos seus antepassados e que devido às suas virtudes conseguiram prosperar e puderam
garantir boa situação econômica para suas famílias. Em outro trecho da entrevista, o
entrevistado complementou o assunto:
ISSN: 2525-7501
Outra coisa que eu acabei de falar que é a parte da educação profissional né, que a
gente aprendeu graças àquela herança dos italianos, do empreendedorismo deles, do
capricho deles, da vontade de fazer bonito, de fazer bem feito, de fazer só uma vez...
então, a gente deve muito, tudo pra eles né, se a gente relaxasse ia perder essa
herança, mas a gente conservou e preserva e tenta, tenta passar adiante [...].
(Morador 05).

Nos relatos do morador, visualiza-se a dualidade interior versus cidade. Isso ocorre a
partir da compreensão de que na cidade a qualidade de vida é melhor, em detrimento à do campo
e da diferença entre o morador da cidade e o colono. Quando o entrevistado comentou que, ao
andar pela rua, as pessoas perceberiam que ele era colono, aparece da ideia de estigma abordada
por Goffman (1988). O autor expõe que o fato de ser diferente faz com que muitos indivíduos
possuam desvantagem e sejam excluídos do convívio social. Parcianello (2011) afirma que isso
acontece com os colonos.

Para esse entrevistado a troca do campo pela cidade foi por conta da exploração na
agricultura. Porém, para outros moradores de Arvorezinha foi para garantir melhores condições
de vida através da educação. Entretanto, algumas vezes a mudança não era completa, devido às 100
condições financeiras e, dessa forma, muitos jovens moravam em casas de famílias e com o
trabalho, pagavam sua hospedagem:
0

[...] antigamente não tinha, quem queria estudar, tinha que parar nas casa. Daí tu
não pagava nada, tu ganhava a comida, ganhava o lugar pra parar e daí tu ajudava.
Que nem eu, sempre fui, parei nas casa assim, daí ajudava a mulher, a dona da casa,
a fazer o serviço, daí pra poder estudar. (Morador 02).

E daí a gente foi crescendo e eu fui me mudando pra cidade. [...] Com doze, treze
anos a gente já trabalhava de faxineira pra poder não pagar, tipo assim, a
alimentação, que a gente morava aqui, pelo menos a gente tinha o alimento, os nossos
pais também não tinham condições pra dar tudo isso (Morador 07).

Verifica-se, assim, que diferentemente da atualidade, em que muitos jovens se inserem


no mercado de trabalho após completar o segundo grau, antigamente estudava-se e,
paralelamente, trabalhava-se. Um entrevistado contou que com 14 anos virou professor e
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salientou que até se aposentar lecionou em doze escolas, por vezes de manhã em um local e a
tarde em outro. Citou como exemplo, o período onde trabalhava em Nova Alvorada (quando
distrito de Arvorezinha) de manhã e à tarde na Escola Felipe Roman Ros, sendo que “muitas
vezes eu cheguei sem me alimentar na cidade e tinha que ir direto pro colégio porque eu
chegava atrasada” (Morador 09).

Entre os moradores que cresceram na cidade, como não havia o trabalho na roça,
existiam mais momentos para brincar: “Ah, eu brinquei, brinquei bastante, não tô arependida”
(Morador 01). “Eu morava no moinho né, aí quando era criança eu brincava bastante, tinha
meus companheiro, a gente tava sempre brincando” (Morador 03). Mesmo assim, um dos
entrevistados destacou que auxiliava a sua família nas tarefas domésticas: “Tu ia meio dia, tu
ia na escola e meio dia ajudar, claro, em casa. Eu me lembro que eu tinha onze anos e a minha
mãe ganhou um nenê, daí eu comecei a fazer o pão, fazer as coisa [...]” (Morador 01).

Nos relatos, os moradores creditam ao trabalho árduo a atual situação econômica. É


possível identificar isso em frases como “a nossa família era pobre” e “tive infância feliz apesar
da pobreza extrema”. Dessa maneira, percebe-se que existe uma noção de que as famílias 100
desses moradores não possuíam boas condições financeiras, porém os entrevistados relatam
como sendo algo do passado, ou seja, com o trabalho houve ascensão: “Mas melhorou muito
1
[...] a renda da família, a qualidade de vida da família, a casa melhor, caro, roupa, comida”
(Morador 05). Zanini (2005) aborda que esse discurso sobre prosperidade e a atual boa situação
econômica das famílias de descendentes de italianos auxilia a fortalecer o sentimento de
pertencimento entre estes.

CONCLUSÃO

Entre os descendentes de imigrantes italianos que residem em Arvorezinha, o trabalho,


que antigamente era imperativo de sobrevivência, atualmente é de sucesso. Manifesta-se como
um indicativo valorativo, pois trabalhar, ter a própria renda é importante para os moradores.
Incutidos nisso estão a honestidade e a moralidade, pois a pessoa que trabalha, cumpre com
suas obrigações e garante o próprio sustento de forma legal é bem vista pela sociedade e essas
características são repassadas de pais para filhos através das gerações e, portanto, do tempo.
Mesmo que alguns dos entrevistados estejam residindo na cidade, o interior é visto como espaço
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de importantes momentos reveladores de um traço que os distingue, pois ser agricultor não é
apenas uma profissão, mas sim um modo de viver.

Dessa maneira, esse estudo mostra que Arvorezinha possui uma identidade cultural
alicerçada no trabalho, e sua paisagem espelha suas raízes históricas, baseadas na pequena
propriedade e na sua economia. Da colônia à atualidade, a história da colonização italiana é
uma história de trabalho constante.

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ISSN: 2525-7501
GUERRA CISPLATINA (1825-1828): A HISTORIOGRAFIA PLATINA (BRASIL,
URUGUAI E ARGENTINA) E SUAS DIFERENTES ABORDAGENS SOBRE O
CONFLITO543
Cristiano Soares Campos

Valentina Ayrolo544

RESUMO

O presente trabalho é parte dos resultados iniciais da Tese de Doutorado “A Guerra Cisplatina
e as transformações políticas na Bacia do Prata, primeira metade do século XIX” quem vem
sendo produzido no Programa de Pós-Graduação em História da UFSM sob orientação da
Prof.ª. Dr.ª. Valentina Ayrolo. O objetivo é analisar como a Guerra Cisplatina é vista e
trabalhada pela historiografia platina. Embora a Guerra Cisplatina tenha sido tema de trabalhos
produzidos na América Latina, na historiografia brasileira este conflito parece não ser dos mais
interessantes aos historiadores se comparados a Guerra do Paraguai e a participação brasileira
na II Guerra Mundial, os quais possuem um número de trabalhos publicados bem mais
expressivos. Na historiografia brasileira, os primeiros estudos que contemplam a Guerra
Cisplatina são produzidos na primeira metade do século XIX pelo Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB). Na historiografia argentina produzida em finais do século XIX
e ao longo do século XX, observamos um roteiro parecido com o brasileiro. Os primeiros a
100
ocuparem-se das escritas sobre o conflito foram os militares. Os escritores argentinos tendem
a nos associar, frequentemente, o Brasil com um invasor, um império cruel e tirano. Esta
5
historiografia justifica o ataque ao Império Brasileiro revelando que este estaria interessado nas
riquezas presentes nos territórios da Bacia do Prata, e assim, deveria ser contido e considerado
um inimigo a ser combatido. A historiografia uruguaia sobre a Guerra Cisplatina, como salienta
Ana Frega, é objeto de poucos estudos específicos. A pouca produção de pesquisas sobre o
conflito é decorrente do fato da batalha estar espremida entre dois grandes processos históricos
que culminaram com o nascimento do Uruguai independente: o Artiguismo (1811-1820) e a
Guerra de Independência, iniciada com a Cruzada dos Trinta e Três Orientais (1825-1828).
Nossas fontes são bibliografias dos países analisados e documentos oficiais.

Palavras-chave: Guerra Cisplatina; Historiografia platina; século XIX.

543
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
544
Doutorando do PPGH/UFSM, cristiano.scampos@hotmail.com. Professora Doutora da
UNMDP/Argentina, vayrolo@gmail.com.
ISSN: 2525-7501

INTRODUÇÃO
O século XIX na América Latina é caracterizado pela formação dos Estados nacionais
nas ruínas dos impérios coloniais. As atuais nações latino-americanas não são resultado de
“vocações” previamente estabelecidas, mas sim, resultado de um processo histórico muito
complexo, cujos principais aspectos se desenvolveram ao longo do século XIX.

A bacia do Prata, em essência foi um território de constantes conflitos e disputas. O


Prata precisa ser compreendido como um espaço de conflitos de interesses político-econômico
acentuados principalmente na primeira metade do século XIX, quando os projetos de Estado
Nação e a formação da nação eram ainda embrionários para o Brasil, a Argentina e o Uruguai545.
Desde que começou a ter interesses comerciais na colônia brasileira, Portugal ambicionava
atingir com sua colonização as margens do Rio da Prata. A razão era clara. Nesta reentrância
do Atlântico desaguavam três caudalosos rios que alongavam seu percurso até o centro da
América do Sul, o que facilitava o escoamento de produtos do interior da colônia. Naturalmente
o Império Espanhol opunha-se a que seu território fosse invadido. 100
Os atuais territórios da campanha rio-grandense, do litoral argentino (a pampa e sobre 6
tudo Buenos Aires) e do Uruguai constituíam-se, neste contexto, em uma unidade econômica,
social e cultural, denominada de “Região Platina” pelas historiadoras Heloisa Reichel e Ieda
Gutfreind (1996)546. Em todo território, constituiu-se uma formação social semelhante, tendo a
pecuária nas estâncias como sua produção econômica principal. Sendo uma área de disputa
entre os impérios português e espanhol, de fronteiras ainda indefinidas, a Região Platina, a
despeito destas lutas territoriais, caracterizou-se por intensos intercâmbios humanos,
comerciais e de ideias ao longo de todo período colonial, os quais não só deixaram marcas

545
DORATIOTO, Francisco. Espaços nacionais na América Latina. Da utopia bolivariana à fragmentação. São
Paulo: Brasiliense, 1994.
546
Fundamentamo-nos no conceito de região desenvolvido pelas historiadoras Heloisa Reichel e Ieda Gutfreind,
conforme as autoras, aqueles territórios constituíam-se, na época colonial, em uma unidade econômica, social e
cultural, denominada de “Região Platina”. Após a independência, com o início do processo de formação dos novos
Estados, a fragmentação da Região Platina acentuou-se. Segundo Reichel e Gutfreind, entretanto, manteve-se a
unidade em torno da cultura popular, com hábitos, costumes e valores comuns, tornando o uso do conceito de
Região Platina pertinente, mesmo para períodos posteriores ao colonial (REICHEL E GUTFRIEND, 1996).
ISSN: 2525-7501
profundas na sociedade, como também persistiram por várias décadas após o início do processo
de formação dos Estados nacionais547.

Embora a Guerra Cisplatina tenha sido tema de trabalhos produzidos na América Latina,
na historiografia brasileira este conflito parece não ser dos mais interessantes aos historiadores
se comparados a Guerra do Paraguai e a participação brasileira na II Guerra Mundial, os quais
possuem um número de trabalhos publicados bem mais expressivos.

1. Capítulo I: A historiografia Platina (Brasil, Uruguai E Argentina) e suas diferentes


abordagens sobre a Guerra Cisplatina.
Na historiografia brasileira, os primeiros estudos que contemplam a Guerra Cisplatina
são produzidos na primeira metade do século XIX pelo Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB). Em uma consulta a Revista do IHGB, observamos que entre os anos de 1838
a 1900 são apenas sete textos que tratam da Guerra, sendo que quatro destes são biografias548
de personagens envolvidos no conflito. Somente ao final do século XIX começam a aparecer
os primeiros trabalhos sem caráter biográfico.

Observamos que a historiografia produzida pelo IHGB estava inscrita no projeto de


100
história magistra549, ou seja, tinha a função de instruir o modo de vida dos brasileiros do 7
presente, além da função de “criar” uma identidade nacional. O IHGB ao estabelecer modelos

547
Moniz Bandeira (2006) propõem em seu livro a necessidade de que uma história do Brasil e das demais nações
da Bacia do Prata (Argentina, Paraguai e Uruguai) seja feita superando os limites do enfoque nacional, na medida
que a história nacional de cada uma delas remete incessantemente a de seus vizinhos, porém, o autor não realiza
isto em sua obra tendo em vista que disserta apenas sobre alguns processos econômicos e diplomáticos que
condicionaram as relações dos países da Bacia do Prata e não uma história da formação destes Estados.

548
As biografias produzidas pelo IHGB são em sua maioria de grandes combatentes presentes no conflito e de
outras personalidades consideradas importantes para a história da nação. Estas biografias tinham um intuito de
rememorar os grandes vultos do país, e produzir modelos de patriotas e de cidadãos. Isto decorre da união entre a
concepção de história dos próprios intelectuais, comprometida com um projeto de nação, e as características
próprias do gênero biográfico.
549
No sentido de uma História magistra vitae, ou seja, a "mestra da vida". A função da História era ser um
repositório, um manual, uma professora, que através dos exempla (exemplos, experiências) teria lições a ensinar
as pessoas. Koselleck chegou a chamar de "futuro passado". Ver: KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado:
Contribuição à semântica dos tempos históricos; tradução, Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão
César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto-Ed. PUC - Rio, 2006.
ISSN: 2525-7501
de personagens (e de anti-heróis), fazia o trabalho de rememorar o passado para a sua geração
e a posterior, porém, como Peter Burke comenta, a memória é seletiva, podemos recordar certos
acontecimentos e relegar outros ao esquecimento, conforme os propósitos quais se deseja
lembrar550.

No século XX, concomitantemente com a historiografia produzida pelo IHGB, surge


uma nova vertente de abordagem da Guerra Cisplatina, examinar esta pelo viés da história
militar. Sobre o período da campanha na Cisplatina, encontramos autores como Augusto Tasso
Fragoso, Francisco de Paula Cidade, David Carneiro, e Henrique Wiederspahn, que dedicaram
muitas páginas de suas obras aos episódios da Banda Oriental. Na leitura das obras produzidas
por estes autores encontramos uma escrita sistemática, isto é, uma abordagem tradicional que
podemos dividir em três momentos: a emergência da guerra; o resultado do conflito e os
ensinamentos que se podia tirar da campanha militar.

A análise da historiografia produzida pelo IHGB e pela história militar nos mostra que
as duas têm um fator muito importante em comum: criar uma história que rememora-se o
passado para a sua geração e a posterior. Observamos, que ambas as formas de escrita fornecem 100
modelos de conduta, embora a historiografia sobre a Cisplatina forneça mais exemplos
negativos, que devem ser aprendidos e não repetidos pelos leitores.
8
Nos últimos dez anos alguns trabalhos vêm trazendo contribuições para melhor
entendermos o período da Guerra Cisplatina, ainda que o número de publicações continue
menor se comparado a Guerra do Paraguai.

No âmbito da história política destaca-se a dissertação de Aline Pinto Pereira551, que


inspirada na história dos conceitos de Koselleck e na história política renovada, mostra as
causas e a importância do conflito no Primeiro Reinado do Brasil. Segundo Pereira, a

550
BURKE, Peter. História como memória social. In: BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

551
PEREIRA, Aline Pinto. Domínios e Império: O tratado de 1825 e a Guerra Cisplatina na construção do
Estado no Brasil. 2007. 269f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007.
ISSN: 2525-7501
emergência da guerra se deveu à tentativa do imperados de aumentar seu poder, preservar sua
honra e reafirmar a soberania do Brasil. A defesa da Cisplatina era a defesa da honra nacional
e da autoridade monárquica frente ao conjunto de províncias. Ao final do conflito, segundo a
autora, os limites da autoridade do imperador passaram a ser discutidos pelo Legislativo e, dessa
forma, transformaram-se as concepções de soberania, passando-se de uma tradicional,
intrínseca ao monarca, para uma moderna, vinculada a ideias oriundas da Revolução Francesa.

Inseridos na história econômica destacam-se dois autores: Márcia Eckert Miranda e Gabriel
Berute. Miranda, em sua tese de doutorado, investigou a questão da fiscalidade no Rio Grande
do Sul entre 1808 e 1831. A autora demonstra que as oportunidades abertas com as intervenções
luso-brasileiras na Banda Oriental, como o acesso a terras e rebanhos de gado, os contratos de
fornecimento das tropas e a cobrança de dízimos, permitiram à Coroa cooptar a elite rio-
grandense, tanto de estancieiros como de comerciantes e charqueadores. A manutenção da
Cisplatina como parte do Império era um ponto de convergência entre os diversos setores da
elite, pois favorecia de alguma forma a todos. A Guerra Cisplatina, segundo Miranda, causou
uma inflexão nesse relacionamento, isto é, mesmo que num primeiro momento, a insatisfação
decorrente da abolição do contrato de dízimos e da criação de impostos sobre a exportação, que
100
prejudicava a elite local, fosse amenizado, pela necessidade de se manter a Cisplatina sob o 9
domínio imperial, essa relação viria mais tarde a ruir.

Gabriel Berute, em sua tese de doutorado, afirma que a guerra causou um grande
impacto econômico nas vilas de Rio Grande e Porto Alegre, caindo o número de escrituras
(transações de bens rurais, urbanos, embarcações e crédito) e de seu valor552.

Imbuídos das concepções da “nova história militar”, abordando o impacto da Guerra


nas províncias destacam-se os trabalhos de José Iran Ribeiro, Lucas de Faria Junqueira e
Marcos Vinícios Luft. Iran Ribeiro (2005)553 embora dê mais atenção à Guarda Nacional, criada

552
BERUTE, Gabriel Santos. Atividades mercantis do Rio Grande de São Pedro: negócios, mercadorias e
agentes mercantis (1808-1850). 2011. 309f. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.
553
RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço os chamava: milicianos e Guarda Nacional no Rio Grande do Sul
(1825-1845). Santa Maria: Editora da UFSM, 2005.
ISSN: 2525-7501
em 1831, tratando de sua institucionalização, organização, funcionamento e recrutamento, o
autor traz algumas importantes contribuições sobre o período da Guerra da Cisplatina. Ao traçar
a estrutura das forças militares na província após a independência, constata a importância das
milícias no conflito, já que a estrutura dessas tropas estava arraigada na região, diferentemente
das tropas pagas.

Lucas Junqueira (2005)554, tratou da relação da Bahia com a região do Rio da Prata
durante o Primeiro Reinado. A província foi duramente afetada pela Guerra da Cisplatina,
rompendo o comércio secular entre os portos de Salvador e Buenos Aires, por conta do bloqueio
do porto portenho pela esquadra brasileira e pela atuação de corsários. Destaca também a
atuação das tropas milicianas na segurança interna, já que as de primeira linha foram enviadas
ao sul do país. Isso gerou sérios prejuízos econômicos, pois os homens engajados na agricultura
e no pequeno comércio estavam cuidando da segurança pública.

Marcos Luft (2013)555 em seu trabalho discutiu o tema do recrutamento militar para a
Guerra da Cisplatina, entre os anos de 1825 e 1828, na província do Rio Grande do Sul,
pertencente ao Império do Brasil, e na Província Oriental, atual Uruguai, integrante das 101
Províncias Unidas do Rio da Prata. O autor demonstra em seu trabalho a resistência oferecida
pelas populações, de diferentes maneiras, para evitar que os homens fossem servir nos exércitos
0
e milícias que combatiam pelo domínio da Banda Oriental. Para o caso do Brasil, observamos
à evolução da instituição militar desde o domínio português, através do estudo da legislação
que regulava o serviço das armas.

Na historiografia argentina produzida em finais do século XIX e ao longo do século


XX, observamos um roteiro parecido com o brasileiro. Os primeiros a ocuparem-se das escritas

554
JUNQUEIRA, Lucas de Faria. A Bahia e o Prata no Primeiro Reinado: comércio, recrutamento e Guerra
Cisplatina (1822-1831). 2005. 190f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2005.
555
LUFT, Marcos Vinícios. "Essa guerra desgraçada": recrutamento militar para a Guerra da Cisplatina (1825-
1828). Dissertação (Mestrado em História)– Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.
ISSN: 2525-7501
sobre o conflito foram os militares556. Exemplos disto são os textos do Coronel Juan Beverina
“La guerra contra el imperio del Brasil” (1927)557,e o de Amadeo Baldrich (1974)558 tendem a
nos associar, freqüentemente, o Brasil com um invasor, um império cruel e tirano. Esta
historiografia justifica o ataque ao Império Brasileiro revelando que este estaria interessado nas
riquezas presentes nos territórios da Bacia do Prata, e assim, deveria ser contido e considerado
um inimigo a ser combatido. Não se pode negar certa pertinência em algumas destas
afirmações, mas é preciso ter em vista o quanto elas guardam resquícios do esforço de
construção de identidade nacional.

Em alguma medida, esta historiografia acima citada dialoga com os discursos


produzidos pelo IHGB, como vimos anteriormente, um discurso que remete à fundação dos
mitos nacionais. Essa historiografia argentina é caracterizada pelo esforço de construção de
identidade nacional e que, no caso dos países de colonização espanhola, é muito mais premente,
em razão da fragmentação sofrida durante as guerras de independência.

Nas últimas décadas é possível encontrarmos produções argentinas que trabalham


tangencialmente com a Guerra Cisplatina que fogem dessa característica militar e/ou 101
1
559 560
nacionalista. Trabalhos como os de Roberto Schmit (2004) , Klaus Gallo (2005) , Raúl
Fradkin (2006)561, Juan Carlos Chiaramonte (2006)562 remetem a alguns pontos da guerra sem

556
O tema foi tratado também nas Memórias de alguns contemporâneos como: IRIARTE, Tomás. Memorias.
Buenos Aires, Sociedad Impresora Americana, vol. 3. 1945.
557
BEVERINA, Juan. La guerra contra el imperio del Brasil. Buenos Aires, Biblioteca del Oficial. 1927.
558
BALDRICH, J. Amadeo. Historia de la guerra del Brasil. Buenos Aires, Eudeba. 1974.
559
SCHMIT, Roberto. Ruina y resurrección en tiempos de guerra: Sociedad, economía y poder en el oriente
entrerriano posrevolucionario, 1810-1852. Buenos Aires, Prometeo Libros, 2004.
560
GALLO, Klaus. Un escenario para “La Feliz experiencia”: teatro, política y via pública en Buenos Aires, 1820-
1827. In: BATTICUORE, Graciela; GALLO, Klaus; MYERS, Jorge. Resonancias románticas: ensayos sobre
historia de la cultura argentina (1820-1890). Buenos Aires, Eudeba, 2005.
561
FRADKIN, Raúl O. La historia de una montonera: Bandolerismo y caudillismo en Buenos Aires, 1826.
Buenos Aires, Siglo XXI. 2006.
562
CHIARAMONTE, Juan Carlos. 2006.
ISSN: 2525-7501
que isso seja o tema central de suas investigações. Estes autores fazem uma abordagem do
conflito e do espaço da Bacia do Rio da Prata a partir de uma análise territorial, do espaço que
os futuros Estados Nacionais estavam/estão inseridos, não prendendo-se apenas a questão
militar ou nacionalista. Por exemplo: A obra de Chiaramonte (2006) nos fornece informações
importantes sobre as relações diplomáticas desenvolvidas em torno dos conflitos de interesses
dos Estados Platinos ao longo do século XIX.

O trabalho mais recente e mais atualizado sobre a Guerra Cisplatina é o de Gabriel Di


Meglio “Guerra de Ladrones: La Argentina contra Brasil (1825-1828)” (2015)563 onde este
desenvolve sua investigação a partir de uma perspectiva de análise diferente trabalhando não
só com o ponto de vista argentino acerca da Guerra Cisplatina, mas, tentando reconstruir as
experiências dos distintos espaços e atores combatentes no conflito, desta forma recuperando a
perspectiva de uma história social da guerra cujo desenvolvimento está sendo importante na
Argentina.

A historiografia uruguaia sobre a Guerra Cisplatina, como salienta Ana Frega, é objeto
de poucos estudos específicos564. A pouca produção de pesquisas sobre o conflito é decorrente 101
do fato da batalha estar espremida entre dois grandes processos históricos que culminaram com
o nascimento do Uruguai independente: o Artiguismo (1811-1820) e a Guerra de
2
Independência, iniciada com a Cruzada dos Trinta e Três Orientais (1825-1828). Pela
importância desses momentos, seria lógico que a atenção dos historiadores estivesse voltada
para a sua compreensão. Contudo, obras sobre esses dois temas tratam, marginalmente, da
questão da Cisplatina.

A grande maioria dos trabalhos uruguaios sobre a Cisplatina parte de uma leitura
retrospectiva, buscando justificar a guerra iniciada pelos Trinta e Três Orientais565. Esta
historiografia realiza uma abordagem da Guerra Cisplatina como conformadora da “identidade

563
DI MEGLIO, Gabriel. “Guerra de Ladrones: La Argentina contra Brasil (1825-1828)”. In: LORENZ, Federico.
Guerras de la historia Argentina. 1ª ed. Ciudad Autônoma de Buenos Aires, Ariel, 2015.
564
FREGA, Ana. Pueblos y soberanía en la revolución artiguista:La región de Santo Domingo Soriano desde
fines de la colonia a la ocupación portuguesa. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2006, p.329-331.
565
Afirmação a partir da análise das obras de: ZUM FELDE (1925); PIVEL DEVOTO (1937); ACEVEDO
(1975); ARCOS FERRAND (1976).
ISSN: 2525-7501
uruguaia”, isto é, colocando um cunho nacionalista, ou de formação deste, a partir do conflito.
Esta historiografia tem uma preocupação em demonstrar a resistência à dominação estrangeira
durante a campanha, defendendo que mesmo que não houvesse uma nacionalidade prefigurada
que englobasse todos os grupos sociais, havia uma específica, que seria levada adiante a partir
da chegada dos Trinta e Três. Nos últimos anos, alguns estudos vêm revisando o período e há
bastante espaço para novas abordagens que não partam de uma suposição prévia de que a
Guerra Cisplatina foi apenas a precursora da identidade nacional uruguaia566.

CONCLUSÃO
Ao desenrolar deste estudo, observamos algo fascinante que só o estudo da História
pode nos proporcionar: a possibilidade de construirmos o conhecimento sobre um mesmo
evento, porém, com diferentes pontos de vista. No caso deste estudo em específico observamos
como Brasil, Uruguai e Argentina criam sua historiografia sobre a Guerra Cisplatina com
referenciais distintos.

No caso brasileiro, a historiografia, têm seus primeiros estudos contemplando a Guerra


101
Cisplatina ainda na primeira metade do século XIX pelo Instituto Histórico e Geográfico 3
Brasileiro (IHGB), mais tarde passando por um processo de descrição da História Militar e por
fim tendo suas produções em um cunho acadêmico.

Na historiografia argentina iniciada também no século XIX e durante o século XX,


observamos um roteiro parecido com o brasileiro. Os primeiros a ocuparem-se das escritas
sobre o conflito foram os militares, chegando as produções acadêmicas a produzirem sobre o
tema mais recentemente.

Por fim, a historiografia uruguaia sobre a Guerra Cisplatina, como salienta Ana Frega,
é objeto de poucos estudos específicos. A pouca produção de pesquisas sobre o conflito é

566
Trabalhos como o de: REAL DE AZÚA (1990); FREGA (2006); SANSÓN (2006); possuem uma análise
social, política e econômica mais aprofundada sobre a Cisplatina, com utilização de um número maior de fontes e
uma maior criticidade sobre o combate diferenciando-se assim dos trabalhos até então produzidos.
ISSN: 2525-7501
decorrente do fato da batalha estar espremida entre dois grandes processos históricos que
culminaram com o nascimento do Uruguai independente: o Artiguismo (1811-1820) e a Guerra
de Independência, iniciada com a Cruzada dos Trinta e Três Orientais (1825-1828).

Como salientei no início, este trabalho é apenas um referencial inicial do contexto e da


bibliografia que será base de minha Tese de Doutorado. Sabemos que ainda existe um longo
caminho a percorrer, novos documentos a pesquisar, novos trabalhos a produzir, novas portas
do conhecimento à serem abertas.

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RIOGRANDENSE E URUGUAIO A FINS DO SÉCULO XIX567

DOBKE, Pablo R.568

RESUMO

Este artigo tem por finalidade demonstrar como o estado brasileiro do Rio Grande do Sul e os
departamentos fronteiriços de Rivera e Cerro Largo na República Oriental do Uruguai
formalizavam suas ações independentemente dos Estados-Nacionais tendo como marco
temporal a última década do século XIX. Pautados, desta forma, por uma rede de relações
sociais de poder em um processo de territorialização regional onde determinados agentes agiam
em nome de um partido político, configurando assim uma “paradiplomacia”, que no referido
momento era bastante contestada pelas duas nações em questão. Cabe ressaltar que este artigo
está vinculado ao projeto “História da América Platina e os processos de construção e
consolidação dos Estados Nacionais do século XIX e início do século XX”, coordenado pela
Prof.ª Dr.ª Maria Medianeira Padoin, estando ainda integrado ao Grupo de Pesquisa 101
CNPq/UFSM “História Platina: sociedade, poder e instituições” e ao Comitê “História, Regiões
e Fronteiras” da Asociación de Universidades del Grupo Montevideo (AUGM). Do mesmo 8
modo, este também faz referência a investigação de Doutorado desenvolvida pelo autor na
Linha de Pesquisa “Fronteira, Política e Sociedade” do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal de Santa Maria (PPGH-UFSM), sendo orientado pela Prof.ª
Dr.ª Ana Frega.

Palavras-Chave: História Política – Paradiplomacia – Relações Sociais de Poder.

INTRODUÇÃO

Cabe ressaltar inicialmente, que este trabalho insere-se nas pesquisas vinculadas ao
Projeto de Doutorado “Relações sociais de poder e territorialidade: os agentes rebeldes e a

567
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
568
Doutorando, Universidade Federal de Santa Maria, CAPES/DS, pablo_dobke@yahoo.com.br
ISSN: 2525-7501
fronteira Brasil-Uruguai no contexto da Revolução de 1923”, que vem sendo desenvolvido na
Linha de Pesquisa “Política, Fronteira e Sociedade” da Universidade Federal de Santa Maria,
sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Ana Frega e coorientado pela Prof.ª Dr.ª Maria Mediadora
Padoin. Fazendo também parte do projeto intitulado "História da América Platina: construção
e consolidação dos Estados Nacionais no século XIX e a princípios do século XX", coordenado
pela Prof.ª Dr.ª Maria Mediadora Padoin, sendo vinculado ao Grupo de Investigação
CNPq/UFSM "Historia Platina: sociedade, poder e instituições" e ao Comitê “História, Regiões
e Fronteiras" da Associação de Universidades d Grupo Montevidéu (AUGM).

Neste sentido, o referido projeto tem como objetivo de investigação a análise da ação
de distintos agentes durante a chamada Revolução de 1923 no sul do Brasil, com base no que
se refere a suas redes de relações sociais mantidas nas regiões em que eram mais atuantes, isto
é, a região fronteiriça entre o estado brasileiro do Rio Grande do Sul e a República Oriental do
Uruguai. Onde, a partir destas relações foram se conformando os laços entre os diferentes
atores, concedendo aos insurgentes um território de mobilidade baixo sua influência,
permitindo desta maneira um "território conservador de poder" (RAFFESTIN, 1993).
101
A partir desta investigação, se busca assinalar como tal evento político excede a
historiografia estadual sul-brasileira, incluindo também o Brasil a uma história regional mais
9
além das fronteiras nacionais, demostrando desta maneira um processo histórico regional
integrado a nível de uma história platina e sul-americana.

Dessa forma, o trabalho aqui apresentado, visa dar uma abordagem diferente ao conceito
de “paradiplomacia”, para que desta forma possamos compreender melhor as relações sociais
de poder mantidas por distintos agentes, tanto no tema proposto para este trabalho, bem como,
para o Projeto de Doutorado acima citado.

É importante assinalar que este é o nosso primeiro contato com o termo, visto que o
mesmo ainda carece de uma maior atenção de nossa parte para que futuramente possamos trazer
uma discussão mais aprofundada sobre o conceito e seus usos. Sendo assim, este trabalho nada
mais é que uma experiência de nossa parte em anexar a “paradiplomacia” à análise
historiográfica.
ISSN: 2525-7501
A saber, a "paradiplomacia", como conceito das Relações Internacionais, consiste em
um quadro autonômico de relações que podem ser desenvolvidas sem o aporte do Estado-
Nação, isto é, da diplomacia tradicional. Assim, tomamos como modo de explicação o
exemplificado por Reinaldo Dias, onde este diz que, "o termo “paradiplomacia” surge para
compensar a insuficiência do vocábulo “diplomacia” para explicar inúmeras relações
internacionais que ocorrem e que independem de ações originadas nas estruturais estatais dos
governos centrais" (2010). O autor ainda segue, "A paradiplomacia remete à ideia de
paralelismo na atuação diplomática tradicional, em outros termos pode ser considerada como
uma extensão da política específica de Estados e municípios..." (2010).

No entanto, o que visa ser tratado aqui, é uma "paradiplomacia" totalmente a margem
dos padrões das Relações Internacionais, mesmo que esta tenha sido desenvolvida entre dois
corpos de diferentes nacionalidades, porém, configuradas em uma mesma região, o que
proporcionou aos distintos agentes, uma relação bastante autonômica no desenrolar de suas
atividades.

O exemplo que tomamos para diagnosticar esta situação tem como pano de fundo a 102
0
569
relação entre o caudilho fronteiriço uruguaio, o general Aparício Saraiva e o Comandante da
Fronteira sul-rio-grandense, o general João Francisco Pereira de Souza570, sendo estes os pilares
de uma aproximação entre os departamentos uruguaios de Rivera e Cerro Largo com o estado
brasileiro do Rio Grande do Sul.

Sendo assim, na primeira parte deste texto abordamos de forma panorâmica a situação
política no estado brasileiro do Rio Grande do Sul, bem como, na vizinha República Oriental
do Uruguai. Fazendo um apanhando que permita elucidar o referido momento.

Em um segundo momento, passamos a abordar diretamente a relação acima citada,


apontando algumas situações chave onde indivíduo e partido político se mesclam, objetivando

569
Importante figura política uruguaia durante a virada do século XIX para o XX. Vinculado ao Partido Nacional,
promoveu uma série de rebeliões (1896, 1897, 1903 e 1904) contra os governos do Partido Colorado.
570
Figura política de extrema relevância na região fronteiriça entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai. Ao longo de
sua vida, passou a maior parte do tempo atuando em nome do Partido Republicano Rio-grandense (PRR), que com
o advento da Proclamação da República tornou-se hegemônico no Rio Grande do Sul.
ISSN: 2525-7501
desta maneira, a particularidade da “paradiplomacia” em prol da nossa análise, buscando
diversificar este olhar sob o ponto de vista da renovada história política e das relações sociais
de poder que balizavam estas situações.

Desta maneira, passaremos a compreender melhor o método articulador desta análise,


que mesmo incipiente no campo da historiografia, já se mostra capaz de ajudar na compreensão
de certos fatores que necessitam ser arejados, permitindo assim, alinhavar de forma mais segura
nossa pesquisa.

O momento político Sul-Riograndense e Uruguaio a fins do século XIX

Com o fim do Império, o Rio Grande do Sul adotou de forma imediata uma política
republicana moldada pelo Partido Republicano Rio-grandense (PRR) baseando-se nas teorias
positivistas de Auguste Comte. Com a Constituição assinada por Júlio de Castilhos – patriarca
do PRR – em 1891, o Rio Grande do Sul tomou não só uma forma de governar baseada em uma
filosofia republicana centralista e sim uma doutrina partidária que levaria 29 anos até dissolver-

102
se.

Desta maneira, durante os anos finais do século XIX e ao longo da primeira década do
século XX, o PRR provou ser uma máquina política imbatível fazendo com que se estabelecesse 1
por completo em meio a sociedade rio-grandense. Porém, do ano de 1893 a 1895, o Estado
entra em uma revolta armada muito sangrenta, a conhecida Revolução Federalista571.

Nesse meio tempo, a energia imposta pelo PRR fez com que os federalistas liderados
pelo antigo tribuno do Império, Gaspar Silveira Martins fossem aniquilados, afirmando assim
a soberania do PRR tanto nas urnas como nas armas. Castilhos comandava o partido e o governo
do Estado com mão de ferro, até vir a falecer prematuramente em 1903, fazendo com que
Antônio Augusto Borges de Medeiros, seu sucessor no comando do partido viesse a também
assumir a presidência do Estado por cinco vezes.

571
Evento político-militar que teve como base a luta entre Federalistas, capitaneados pelo tribuno Gaspar Silveira
Martins e por Republicanos, estes sob a tutela do Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos.
(KÜHN, 2007, p. 106). Segundo a historiadora Helga Piccolo, a Revolução Federalista foi significativa para o
processo histórico brasileiro, no momento de transição entre a Monarquia para a República, transformando assim
a conjuntura social do país. (PICCOLO, 1993, p. 65).
ISSN: 2525-7501
Assim como na vizinha República Oriental do Uruguai, o Rio Grande do Sul
notabilizou-se pelo acirrado bipartidarismo vigente desde o início da Primeira República, onde
o PRR surgia com força, destroçando o antigo regime partidário vigorante no período imperial.
Com o PRR comandando todas as ações políticas do Estado, surge então, em 1892, fundado
pelo tribuno Gaspar Silveira Martins, o Partido Federalista, com a ideia justamente de se opor
ao republicanismo positivista de Júlio de Castilhos, imposto na Constituição de 1891.
(FRANCO, S/D, p. 7).

Com a derrota dos Federalistas em 1895, o PRR tornou-se ainda mais hegemônico,
porém, a divisão do Rio Grande do Sul em duas cores não havia terminado. A oposição ao
partido fundado por Castilhos, e a partir de 1903 – por motivo da morte do patriarca -
capitaneado por Borges de Medeiros crescia cada vez mais, e novamente, no pleito eleitoral de
1922 e por sequência, na Revolução de 1923 o bipartidarismo rio-grandense reaparecia por
última vez em sua forma clássica.

Finalizada a Revolução Federalista (1893-95) em solo brasileiro, na qual Aparício havia


acompanhado seu irmão mais velho, Gumercindo, e com a morte deste em 10 de agosto de 102
1894, Aparício é nomeado como novo Comandante em Chefe do Primeiro Exército Libertador,
designação dada pelo Diretório da Revolução que neste momento se encontrava em Buenos
2
Aires (MENA SEGARRA, 1998, p. 32).

O então nomeado Comandante em Chefe da Revolução Federalista retorna ao Uruguai,


e encontra o país mergulhado em uma crise administrativa que já se arrastava por anos e um
mecanismo de governo que não abria brechas, calcado no conceito da “influência diretriz”572,
criado pelo anterior presidente da República, o colorado Julio Herrera y Obes.

Esta política de favorecimentos imposta pelos colorados colocava em cheque a discutida,


porém aceitável “Política de Coparticipação”573. Esta avançava provocando uma série de

572
Esta tinha por conceito que o povo inculto não tinha capacidade intelectual para eleger seus governantes e que
estes deveriam ser propostos pelo próprio governo que convertia-se assim em eleitor, isolando deste modo a
vigência da democracia política (NAHUM, 2013, p. 69).
573
A “Política de Coparticipação”, além de significar uma regionalização do poder, por colocar nas mãos do
Partido nacional alguns departamentos, abria uma brecha perigosa em um processo de dualidade no comando do
país (NAHUM, 2013, p. 39).
ISSN: 2525-7501
descontentamentos, principalmente em um setor específico do Partido Nacional que já não via mais
com bons olhos o círculo vicioso no qual a parte majoritária do Partido Colorado havia colocado o
País onde o presidente tinha poderes para nomear os representantes no parlamento e o parlamento
por sua vez, poderia eleger o presidente (MENA SEGARRA, 1998, p. 40).

Neste contexto, o Partido Nacional ansiava por algo que fizesse tremer a hegemonia
colorada, buscando no recém-chegado Aparício Saraiva a solução para tal incômodo.

Com a exclusão de seus antigos aliados do poder, os federalistas, e a nova configuração


política do Estado do Rio Grande do Sul sendo comandada com mão de ferro por Castilhos e
os demais membros do PRR, Saraiva obriga-se a buscar algo que o relacionasse aos novos
“donos” do Rio Grande. Para isto, procura então o auxílio de dois agentes de fundamental
importância para suas ambições na política uruguaia, estes são, o chefe político local de Rivera,
Abelardo Márquez e o comandante geral da fronteira sul-riograndense, João Francisco Pereira
de Souza (CAGGIANI, 1997, p. 87).

A nova conformação política do Rio Grande do Sul, de fato, modificou as estruturas


vigentes desde o Império, principalmente, na base social de apoio ao governo. Assim destaca 102
Fábio Kühn (2007):
3
diferente dos governos liberais do Império, que tinham seu poder assentado no
latifúndio pecuarista da região da campanha, os republicanos buscaram respaldo nos
novos setores da oligarquia rural, estabelecidos na região litorânea e na serra, e nos
profissionais liberais, comerciantes e funcionários públicos das zonas urbanas (p.
107).

No entanto, a preocupação do PRR com a região da campanha era algo latente, pois, lá,
ainda residia a maioria de seus desafetos políticos e uma reorganização das relações precisava
ser feita, daí então a importância de articularem-se com Aparício nesta via de duas mãos. Onde
Saraiva necessitava dos subsídios provindos do Rio Grande para impulsionar seus objetivos
políticos e os perrepistas574 careciam de fortalecerem-se para um melhor controle da região.

574
Assim chamados os correligionários do Partido Republicano Rio-grandense.
ISSN: 2525-7501
Ao tratar-se da mediação de Abelardo Márquez, mais do que por em contato antigos
rivais, permitiu uma maior interação entre estes dois agentes, chegando às vias de uma relação
de grande amistosidade. Márquez, foi um reconhecido chefe blanco na região de Rivera, com
grande participação nas mobilizações de 1896-97 e 1903-04, sendo nomeado Comandante
Geral da fronteira durante os períodos belicosos.

Após a tentativa de impedir as eleições de 1896, Aparício procura a ajuda de seu amigo
pessoal e companheiro político Abelardo Márquez, para então refugiar-se em território
brasileiro, fixando moradia na cidade de Bagé. No entanto, o receio de ser perseguido em solo
brasileiro devido à participação na Revolução Federalista em oposição ao PRR fez com que
Aparício solicitasse a proteção de João Francisco sendo intermediado por Márquez, visto que
estes há anos já vinham mantendo estreita relação referente a negociações envolvendo,
principalmente, cavalos (CAGGIANI, 1997, p. 87).

Recebendo as devidas garantias de João Francisco, Aparício começa a articular seu


plano, posto de forma efetiva em 1897 com o estourar de mais uma contenda blanca. No
entanto, vale lembrar a importância deste contato para a política do Partido Nacional 102
personificada neste momento pelo caudilho Aparício Saraiva, assim como para os objetivos
sul-rio-grandenses. Para compreender mais destas ações, o trabalho de Ana Luiza Reckziegel
4
(1999), aponta diversos fatores que contribuíram para este enlace entre os chefes fronteiriços,
analisando a conjuntura política vivida no momento igualmente, como as questões que fizeram
desta relação dita pela autora como uma “diplomacia marginal” um importante subsídio para
ambas aspirações.

Outro trabalho interessante e que tem basicamente o mesmo objetivo – o de mostrar as


relações mantidas entre os insurgentes blancos e os governistas sul-rio-grandenses – é o de Luis
Eduardo Coronel Maldonado (2009). Neste, o autor expande o estudo também para a fronteira
argentina, porém, no entanto, limita-se apenas a elencar os fatos ocorridos relativos à revolução
uruguaia de 1904. Quanto à abordagem, o autor opta por um olhar da diplomacia, trazendo suas
tratativas, assim como um anexo documental que colabora para a compreensão dos episódios.

Em ambos os trabalhos citados acima, o destaque está justamente na relação mantida


entre Saraiva e João Francisco, sendo esta relação consentida pelo governo republicano do Rio
ISSN: 2525-7501
Grande do Sul. Com o objetivo de elucidar a conjuntura das relações sociais mantidas por
Aparício na região fronteiriça, é que partimos para a próxima subdivisão, onde mostraremos
algumas reflexões fundamentais que basearam a atuação político-revolucionária de Aparício
Saraiva, conformando assim uma estrutura que possibilitava uma confortável mobilidade de
ação.

Território de poder: “Paradiplomacia” entre Blancos e republicanos no contexto


Fronteiriço

Inicialmente, não podemos deixar de mencionar o prestígio que ambos agentes


possuíam na região fronteiriça formada por Uruguai e Brasil, este, não só vinculado as suas
participações na Revolução Federalista, como também por serem homens de fronteira e
principalmente por suas famílias já estarem sedimentadas nesta região desde a primeira metade
do século XIX. A possibilidade que a fronteira proporcionou pondo em contato territórios dos

102
dois Estados Nacionais em construção, permitiu que ambos construíssem vínculos sociais,
sentimento de pertencimento e identificação com a região fronteiriça (DOBKE; PADOIN,
2013, p. 170). 5
Levando em conta estes fatores que envolvem o aspecto regional acerca do poder
político e as redes de relações, tomamos como ponto de reflexão o trabalho de Márcia da Silva
(2010) “A rede social como metodologia e como categoria investigativa: possibilidades para o
estudo dos “territórios conservadores de poder”; neste, a autora aponta debates sobre a
formação destes territórios, onde a contextualização está justamente no dinamismo das relações
de poder, não limitando-se a fronteiras político-administrativas legitimando as bases da
construção e organização de um espaço conjunto.

Desta maneira, as relações de poder constituem-se a partir de um determinado espaço,


fazendo que a interação relacional seja complexa, agindo de forma desigual em determinados
casos; assim,

as relações de poder decorrem de interações intencionais ou fortuitas (pessoais e


institucionais) entre diversos atores que definem instrumentos de poder diferenciados
ISSN: 2525-7501
para os atores políticos potenciais, tornando alguns deles mais capazes de fazer valer
seus interesses do que outros, além de conduzir alguns atores potenciais em direção à
irrelevância (MARQUES, 2003; apud SILVA, 2010, p. 40).

Ainda acerca deste aspecto regional, naquilo que toca os habitantes da fronteira,
buscamos como parâmetro a definição contida no texto “Propuesta de definición histórica para
región” de Arturo Taracena (2008); onde o autor coloca que a região não é determinada pelo
Estado-Nação e sim por um território com características próprias, um espaço construído no
âmbito social, muitas vezes antecedente ao Estado consolidado. Outra questão importante
levantada pelo autor é de que a região de fronteira não possui um limite precisamente definido,
pois ela está sujeita à temporalidade e a capacidade de sua territorialização, principalmente
naquilo que tange as elites regionais e os grupos sociais dominantes.

Retomando a questão acerca das conexões de Aparício e João Francisco, vinculadas


estreitamente ao amigo em comum – Abelardo Márquez – podemos perceber o quanto este foi
importante para a consagração da citada relação, convertendo seus atributos, principalmente
àqueles ligados a política e a interação que mantinha no dito espaço, em crédito na contribuição 102
6
para a aproximação dos dois chefes, os quais souberam tirar proveito de tal situação para
esquematizar seus projetos.

É impossível pensar nesta questão sem mencionar os estudos de Pierre Bourdieu (2008)
acerca da “Produção da Crença”, pois com a legitimação das prerrogativas amistosas, Márquez
transfere a crença obtida de ambos gerando o “Capital Simbólico” necessário para que a relação
de Aparício e João Francisco se solidifique; produzido o mecanismo, este garante certos
atributos que não podem ser destruídos, pois, a partir deste sistema – os produtores da crença –
desempenham a função ideológica da força, reproduzindo assim a ordem social e a permanência
destas relações. No entanto, cada relação é o produto de estratégias complexas, cuja eficácia
não depende só da força material e simbólica das partes envolvidas, mas também na habilidade
de mobilizar determinado grupo, seja suscitando a compaixão ou a indignação.

Assim, o espaço fronteiriço, além de conformar por si só uma série de relações que ao
longo do tempo vão se tornando características deste ambiente, permite que seus habitantes se
relacionem em um dinâmica diferente de outros locais fazendo com que práticas sociais
ISSN: 2525-7501
distintas e neste caso, em uma esfera que abarca as relações de poder em prol de objetivos
partidários que por sua vez acabam por abarcar um elo de situações que se apresentam de
diferentes maneiras, sendo a principal delas, a política.

Desta maneira, podemos nos balizar no historiador francês Pierre Rosanvallon (2010);
onde este define o político e sua relação política como múltiplos fios que tecem uma trama e
assim conferem um quadro geral envolvendo discursos e ações, remetendo a um todo dentro de
uma sociedade, além de uma compreensão do político como seguimento da política através do
que é denominado como “racionalidade política”, onde todo o sistema é operado por via das
representações adquirindo um caráter complementar à História das Mentalidades, das Ideias e
mesmo dos acontecimentos, com os quais reconhece a necessidade de dialogar e interagir.

Neste sentido, a trama de contatos desenhada nesta região conforma um tecido de


influências que movidos em torno de distintos objetivos configuram nódulos de poder e neste
contexto é que se configuram as relações sociais sendo profundamente marcadas por um
discurso relacional condescendente a este determinado espaço social-geográfico onde as
representações adquirem um importante papel dentro destas relações, sejam ela do cunho 102
político, econômico ou meramente associativo.
7
A relação entre Aparício e João Francisco foi amplamente investigada e discutida por
Luis Eduardo Coronel Maldonado (2009). Em sua obra, o autor disponibiliza um apêndice
documental referente à “Memoria de la Legación de Uruguay en Brasil haciendo referencia a
su actuación durante el alzamiento de 1903 y la guerra civil de 1904” 575, escrito então pelo
Ministro Plenipotenciário do Uruguai no Brasil, o Dr. Federico Susviela Guarch para o Ministro
de Relações Exteriores do Uruguai, o Dr. José Romeo a 17 de dezembro de 1904.

Neste documento, elaborado pelo Ministro Susviela Guarch no ano de 1904 e


disponibilizado por Coronel Maldonado (2009), está constituído de um relatório de suas
atividades durante as referidas insurgências, tratando principalmente de conferenciar-se com o

575
Memória da Legação do Uruguai no Brasil fazendo referência a sua atuação durante o alçamento de 1903 e a
guerra civil de 1904 [Tradução nossa]. In: CORONEL MALDONADO, Luis E.1904: Aparício y los diplomáticos.
Montevidéu: Trandico, 2009, p. 195-231.
ISSN: 2525-7501
comandante João Francisco. No documento, Susviela Guarch (1904 [2009]) escreve que as
relações de Aparício e João Francisco são de “pública notoriedade” (p. 201), pois desde meados
de 1896 esta amistosidade já vinha sendo traçada e que João Francisco “apoia decididamente a
revolução, a prestando todo gênero de auxílios” (p.202).

Apesar dos diversos encontros entre o Ministro Susviela Guarch e o comandante João
Francisco na cidade de Santana do Livramento, as cobranças de neutralidade feitas pelo então
Ministro não surtiram o efeito desejado, visto que no decorrer da campanha de 1904, os auxílios
provenientes do quartel do Caty (residência de João Francisco) continuavam a prover as tropas
rebeldes de Aparício. Ainda segundo este relatório, a intensão do então presidente do Rio
Grande do Sul, Antônio Augusto Borges de Medeiros, era de se manter neutro à revolução
uruguaia, chegando até mesmo a convocar por diversas vezes o comandante João Francisco a
prestar esclarecimentos em Porto Alegre (SUSVIELA GURACH, 1904 apud. CORONEL
MALDONADO, 2009).

No entanto, a cobrança de Borges de Medeiros não surtiu o efeito desejado, visto que
João Francisco havia também territorializado seu espaço de poder, controlando assim a região 102
fronteiriça com o respaldo de ser membro do Partido Republicano Rio-grandense, prestando
desta maneira, os auxílios a Aparício Saraiva e seus exércitos. Através da territorialização do
8
poder no espaço fronteiriço obtida por Saraiva, a influência do caudilho passou a ser inconteste,
até quando o mesmo não se fazia presente, pois a partir das costuras feitas por outros agentes a
situação representada na pessoa de Aparício já era o suficiente para ampliar e difundir a
“soberania” do caudilho sobre o território.

Mesmo que o território “dominado” por Saraiva seja representado por uma nesga no
espaço fronteiriço entre Uruguai e Brasil, este poder estava passível de uma extensão, visto a
capacidade de atuação do caudilho no jogo de influências. Neste caso, chamaremos esta
situação de “relação costurada”, pois mesmo sem conhecer pessoalmente os Presidentes do
estado do Rio Grande do Sul em seus distintos momentos (Júlio de Castilhos e posteriormente,
Borges de Medeiros).

Aparício fez-se conhecer por uma costura alinhavada por João Francisco, onde este
atuava como um elo, unido os dois pontos convergentes de poder, fazendo com que Saraiva
ISSN: 2525-7501
agisse sem maiores entraves em sua área de influência, apesar da discrepância de ideias entre
Borges de Medeiros e João Francisco, onde este segundo agia livremente conforme
mencionamos acima, apesar das contestações do presidente do Estado.

No trabalho de Ivo Gaggiani (1997), o autor relata um encontro entre João Francisco e
Aparício sob o intermédio de Márquez ocorrido no ano de 1896. Este encontro tinha por
objetivo estreitar as relações entre os dois agentes, permitindo que ambos obtivessem vantagens
em prol de seus interesses. Para Aparício, estas vantagens seriam o apoio e complacência do
governo de Júlio de Castilhos no Rio Grande do Sul e o fornecimento de subsídios militares
por João Francisco (CAGGIANI, 1997, pp. 87-89).

Feito isto, João Francisco deu ciência do caso a Júlio de Castilhos que por sua vez
aprovou o apoio ao chefe blanco dando total liberdade para que Aparício se movesse também
pelo território sul-riograndense, assim como o provimento de armas e munições por parte de
João Francisco. No caso desta última concessão, Caggiani (1997) menciona um carregamento
de “dez mil tiros” presenteados a Saraiva por parte de João Francisco (pp. 90-91).

Desta maneira, tratamos o caso como uma “fronteira-individuo” (DOBKE, 2015), onde
102
o próprio sujeito, a partir de suas relações pode balizar sua atuação dentro de uma 9
territorialização do poder, que ao mesmo tempo que estanque, concentrada em um determinado
ponto, pode ser elástica e estendida por meio de elos conformadores de relações.

Indiferente às fronteiras nacionais, Aparício tratou de territorializar seu próprio espaço,


atuando a partir de um centro e ampliando seu campo de influência, fazendo com que sua pessoa
fosse reconhecida em outros pontos através de uma representação de liderança, seja ela validada
por outros líderes locais ou até estaduais como no caso do Rio Grande do Sul, mesmo que este
reconhecimento não seja oficial perante a nação brasileira.

O que vale destacar então é esta trama estendida configurada por Saraiva e demais
agentes, onde o caudilho não reconhecia a fronteira propriamente dita como um empecilho para
si já que este espaço estava mantido sob uma configuração a parte dos Estados-Nacionais, um
território conformado por inúmeras relações sociais, representativas, simbólicas e de
reconhecimento, fazendo com o que resolvemos chamar aqui de “fronteira-individuo” fosse o
ISSN: 2525-7501
maior trunfo de Saraiva referente à sua atuação, onde a fronteira se ampliava até onde a
influência do caudilho se alargava.

A “Fronteira-Indivíduo” perpassa por uma simples lógica. Muito além do espaço


fronteiriço entre Brasil e Uruguai transitado por estes agentes, a “fronteira”, se encontra no
próprio sujeito, isto é, o ator, através de suas relações tem a capacidade de ampliar sua malha
territorial, mesmo que não esteja pessoalmente em referido território.

Para Raffestin (1993), “toda relação é campo para o surgimento do poder”, nele são
organizados os elementos e as configurações para que em determinado momento se possa
experimentá-lo, neste sentido o poder é medido através de uma linha de energia desprendida
para fortalecer os laços somados a um conjunto de informações, sendo assim, a malha tecida
por meio destas relações tende a ser uma combinação caracterizada por um exercício constante
de tensão e intensão (p. 53).

Planificada a trama entre os dois agentes, bem como, o contexto acerca da abordagem
territorial, a “paradiplomacia” desenvolvida neste contexto se mostra com um viés diferenciado
daquele utilizado nas Relações Internacionais. Pois, como já observamos na introdução deste
103
artigo, este conceito de autonomia diplomática só pode ser desenvolvido se vinculado à 0
diplomacia tradicional. Neste sentido, o termo “paradiplomacia” serve para designar atividades
diplomáticas realizadas por atores não-centrais no âmbito das Relações Internacionais
(ROMERO, 2009; SANTANA, 2009; OLIVEIRA, 2012).

No entanto, a situação abordada foge destes parâmetros, já que ambos agentes se


utilizavam do poder territorializado – Aparício nos departamentos fronteiriços de Cerro Largo
e Rivera e João Francisco na franja fronteiriça entre o Rio Grande do Sul e Uruguai – para
configurarem suas tratativas extraoficiais, demonstrando desta forma o controle regional,
mesmo que no âmbito de uma transnacionalidade.

Assim, a “paradiplomacia” desenvolvida por nossos atores é caracterizada por um


movimento de autogoverno, explicado historicamente através dos processos que se
desenvolveram politicamente em ambos Estados nacionais, sendo as partes envolvidas
responsáveis por acordos de cooperação que extrapolavam o meio oficial.
ISSN: 2525-7501

CONCLUSÃO

Este trabalho, como já exposto anteriormente, vem a ser uma experiência que se utiliza
do conceito de “paradiplomacia” para designar o ambiente das relações sociais de poder para
fins de uma territorialização deste mesmo poder. Mesmo que a discussão necessite uma maior
imersão, já podemos observar que o conceito pode ser arranjado a outros contextos,
desvinculando desta maneira o termo e sua utilidade restrita as Relações Internacionais.

Neste sentido, procuramos demonstrar aqui que a afinidade entre os atores promoveu
um espectro construtivo de tratos que bem poderiam ter sido desenvolvidos pela diplomacia
nacional, abarcando os termos modernos de High Politics e Low Politics (SATO, 2000), no
entanto, ao se tratar da virada do século XIX para o XX, digamos que o caso aqui apresentado
trata de uma incipiente ação “paradiplomática”, o que nos auxilia, em certa medida, a fomentar
uma “história da paradiplomacia”.

Desta maneira, a partir da “desconstrução” do termo e de uma possível análise 103


historiográfica da “paradiplomacia”, poderemos futuramente manejá-la, moldá-la às situações
que nos permitam uma mais ampla observação das estruturas/redes de poder que se construíram 1
através das relações sociais.

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103
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Moderna y Contemporânea de México, n. 35, Janeiro-Junho, 2008, p. 181-204.

3
ISSN: 2525-7501

BORGES DE MEDEIROS E OS CORONÉIS MARAGATOS: COMO SE


CONSTITUÍRAM AS RELAÇÕES DE BORGES DE MEDEIROS COM OS
CORONÉIS DA CAMPANHA DURANTE SEU PRIMEIRO PERÍODO DE
GOVERNO (1898-1908)576

Jéssica Adriana Pacheco Groders577

RESUMO

Os quase quarenta anos de governo do Partido Republicano Riograndense (PRR) no Rio Grande
do Sul são marcados pela forte presença da doutrina positivista e dos líderes Júlio Prates de
Castilhos e Antonio Augusto Borges de Medeiros. Compreender o republicanismo imposto por
esse partido, a partir da leitura política positivista empregada por Castilhos, significa entender
as bases utilizadas para que o PRR se consolidasse na chefatura do governo estadual, na época
chamada Presidência do Estado. Também não há como falar em consolidação republicana do
PRR sem abordar o fato que representou a maior contestação de tal forma de governo: a
Revolução Federalista (1893-1895). Mesmo com a derrota federalista, tal revolução 103
representou a clara oposição contra o governo de Castilhos, principalmente na região da
Campanha (reduto federalista). Júlio de Castilhos é entendido como o articulador do
republicanismo no estado e Borges de Medeiros seu consolidador. E é sobre a consolidação
4
partidária com Borges que versa essa pesquisa. A forma encontrada por Borges para fortalecer
o republicanismo perpassa a aliança estabelecida com coronéis locais e duas são as principais
teorias que estudam as formas de domínio coronelista durante todo o período em que Borges
de Medeiros comandou o estado (1898-1908 e 1913-1928): a dos coronéis burocratas e dos
coronéis borgistas, sendo o segundo principalmente na região da Serra (atual Planalto Médio).
Mas a questão central dessa pesquisa é como se dava a relação política do presidente do Estado,
Sr. Borges de Medeiros, durante seus dois primeiros mandatos (1898-1908), com os coronéis
sediados na fronteira, território reconhecido como reduto federalista. Para tentar descobrir a
resposta para tal questão, investigam-se como fontes principais as cartas enviadas dos
municípios fronteiriços de Bagé, Jaguarão e Santana do Livramento ao Presidente do Estado,
Sr. Antônio Augusto Borges de Medeiros.

576
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
577
Graduada em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF) e em Sociologia pela Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM), Mestranda em História pelo PPGH/UPF, e-mail: jessicagroders@gmail.com
ISSN: 2525-7501
Palavras-chave: Partido Republicano Riograndense (PRR), Borges de Medeiros, coronéis
maragatos.

INTRODUÇÃO

O Partido Republicano Riograndense (PRR) esteve no poder do Estado do Rio Grande


do Sul por quase 40 anos, tendo como principais líderes Júlio Prates de Castilhos e Antônio
Augusto Borges de Medeiros e desfraldando como bandeira a doutrina positivista de August
Comte, que foi interpretada e adaptada por Castilhos na Constituição de 1891, influenciando
tanto na própria organização partidária, quanto na prática governamental.

No mês de julho de 1891, Castilhos apresentou o projeto da Constituição estadual, que


foi aprovado por unanimidade, e no mesmo momento foi eleito Presidente do Estado. Ainda
nesse ano, em novembro, Júlio de Castilhos se exonerou da Presidência, por falta de apoio
político e militar, assumindo o governo uma Junta Governativa que foi apelidada
pejorativamente por ele de “Governicho”. Castilhos retornou à Presidência do Estado em 103
janeiro de 1893, através de eleições fraudadas. Como forma de protesto à sua posse, onze dias
após o ato a oposição deflagrou a Revolução Federalista (1893-1895). 5
Encerrada a guerra civil, Júlio de Castilhos permaneceu de forma firme e autoritária no
poder até janeiro de 1898, quando foi eleito, por indicação sua, seu sucessor no comando do
Estado e, na sequência, do partido: Antônio Augusto Borges de Medeiros. Castilhos ficou como
chefe supremo do PRR até sua morte prematura no dia 24 de outubro de 1903, aos 43 anos, na
sua casa em Porto Alegre, em decorrência de um câncer na garganta.

Borges de Medeiros herdou um governo organizado e articulado dentro da prática


positivista e castilhista, cabendo ao novo governante sustentar a herança e aprimorar as relações
de controle e domínio do partido republicano. Assim como seu emblemático antecessor, Borges
de Medeiros também lançou mão de práticas coercitivas no seu modo de fazer política. Sandra
Pesavento colocou que “se se pensa em Castilhos enquanto fundamento de uma ordem
republicana, o mínimo que se pode creditar a Borges é o papel de cimentador e constante
rearticulador dessas alianças” (PESAVENTO, 1990, p. 43), fazendo menção às práticas de
ISSN: 2525-7501
coerção e cooptação que a política borgista empregou com o intuito de preservar a legitimidade
do governo.

O recorte temporal dessa pesquisa tem início no momento de posse de Borges de


Medeiros, pela primeira vez na Presidência do Estado, em janeiro de 1898, e fim quando o
mesmo encerrou seu segundo mandato, em janeiro de 1908, perpassando ainda a morte de
Castilhos durante essa segunda etapa. O episódio de morte de Júlio de Castilhos é relevante,
pois atingiu diretamente a carreira política de Borges de Medeiros, já que o mesmo acabou se
tornando também chefe do partido.

É interessante observar que ambos os pleitos concorridos por Borges nesse primeiro
momento foram vencidos sem a presença efetiva da oposição na concorrência. Já na sucessão
borgista em 1908, com Carlos Barbosa, o candidato apoiado por Borges enfrentou a oposição
de Fernando Abbott, pelo Partido Republicano Democrático (PRD), partido formado, em maior
parte, por republicanos dissidentes do PRR.

103
1. Capítulo I – Organização e consolidação do Partido Republicano Riograndense
(PRR) e a doutrina positivista de Castilhos 6
Para sustentar um governo de molde republicano positivista, características inovadoras
no Brasil em fins do século XIX, Castilhos entendeu ser necessária a existência de um partido
coeso e organizado. No caso do PRR a coesão se dava em torno do líder máximo e supremo, o
próprio Júlio de Castilhos, e a organização provinha da doutrina positivista aplicada pelo líder
e o respaldo que tinha na Constituição promulgada por ele mesmo.

Quanto à doutrina positivista comtiana, que foi apropriada e adaptada por Castilhos,
pode-se dizer que ele se valeu da organização política empregada pela mesma para lançar as
bases de consolidação política de seu partido. Para tal, Castilhos utilizou o uso da propaganda
partidária, através das páginas do jornal A Federação, e empregou o voto como ferramenta de
legitimação, mesmo desacreditando-o, para compor um governo de pessoas capacitadas.
Importante lembrar que o PRR organizava até assembleias nas cidades do interior para sustentar
a falsa ideia de participação pública na política que, como já se sabe, era totalmente ditada,
organizada e feita por Júlio de Castilhos e suas teorias positivistas.
ISSN: 2525-7501
Ricardo Pacheco colocou que o PRR foi

um partido que, embora pequeno, era doutrinário no discurso e coeso na ação. [E foi]
essa moderna estrutura partidária que possibilitou à geração de jovens republicanos
tomar o poder das mãos da velha elite política imperial. (PACHECO, 2006, p. 153)

A fim de conseguir divulgar o programa e a causa republicana a toda sociedade, o PRR


consolidou uma imprensa totalmente partidária, através das páginas do jornal A Federação,
fundado no II Congresso do partido, em 23 de março 1883, tendo sua primeira edição em 1º de
janeiro de 1884. Periódico que serviu de bandeira ao republicanismo castilhista no Rio Grande
do Sul, e que serve de base para comprovar tais pontos de vista na corrente pesquisa.

Outro elemento importante a ser observado é a organização do processo eleitoral


estabelecida pelos republicanos e consolidada sobre a disciplinarização do eleitorado.
Característica que contribuiu para o PRR se concretizar nas bases de seu próprio programa
partidário. Wenceslau Escobar (1922) colocou que mesmo que a descrença de Castilhos em
103
processos eleitorais já tivesse sido expressa pelo próprio por mais de uma vez, o líder pretendeu
vestir o manto de um governo de administradores qualificados tanto técnica e cientificamente, 7
quanto moralmente, enquanto a oposição buscou trajar o regime de déspotas ditadores.

A discussão acerca da importância do voto e da eleição, dentro da dinâmica política do


sistema coronelista no Rio Grande do Sul, é importante já que o mesmo era utilizado para
consolidar e legitimar a escolha dos cidadãos, mas de fato pode-se observar que a organização
do processo eleitoral, materializada sobre a ótica da disciplinarização do eleitorado, contribuiu
para o PRR se concretizar nas bases de seu programa partidário. Lembrando que o modelo de
organização do PRR se dava através da formação de clubes republicanos nas cidades do interior,
a realização de congressos para discussões teóricas e o uso doutrinário da imprensa, com o
jornal A Federação. Criando-se assim uma “estrutura partidária hierarquizada e disciplinada”
(LOVE, 1971, p. 139).

Segundo Castilhos expressou nas páginas d’A Federação, os Estados que seguem os
mecanismos eleitorais da representatividade liberal acabam por constituir a composição de seu
governo com indivíduos sem os necessários conhecimentos da ciência política, fundamentais
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para o exercício de suas funções, principalmente no âmbito do ideal positivista, tão defendido
por ele. Em editorial do mesmo periódico, do dia 27 de maio de 1884, Castilhos explicita sua
concepção acerca do processo eleitoral. Escrevendo que

A organisação dos governos n’este paiz constitúe um dos traços caracteristicos do


regimento actual, e importa ao mesmo tempo o desconhecimento dos salutares
preceitos da sciencia politica.

Nos paizes que seguem um desenvolvimento normal, em que a opinião exerce o seu
influxo natural, em que os partidos que fornecem o pessoal dirigente, vivem d’esse
influxo, - os governos não se organisam arbitrariamente, sem atender á competência
provada dos seus membros.

Nos paizes em taes condições, os homens que fazem parte do governo são
precisamente aquelles que têm atraz de si um passado que demonstra de uma maneira
ou de outra a sua competencia, aquelles que merecem a confiança publica por seus
trabalhos, aquelles que estudam as aspirações do paiz, indicam os meios de eliminar
gradualmente os obstáculos á sua realisação. (A FEDERAÇÃO, 27 de maio de
1884, Arquivo 00121)

Defendendo, assim, a necessidade da competência comprovada do governante para


103
ocupar algum cargo de governo. Entendendo que a estruturação de um Estado deve se basear 8
no governo de administradores qualificados tanto técnica e cientificamente, quanto
moralmente, dentro de uma composição política baseada no unipartidarismo e no mando
unipessoal de um chefe possuidor da súmula das aspirações sociais.

Desta forma o estado castilhista-borgista, após ascender ao poder de maneira


hegemônica com o fim da Revolução Federalista, usou do processo eleitoral para encontrar sua
legitimidade política, abolindo a possibilidade de uma ação revolucionária para a instalação e
efetivação da república. Para o partido em questão, as eleições se tornaram “armas de
manipulação” à consolidação da legitimidade, manutenção da estabilidade e o continuísmo
político.

Importante destacar o papel que a Revolução Federalista teve para a consolidação do


modelo republicano de governo do PRR no estado. Mesmo que, com toda a certeza, essa não
fosse a intenção dos federalistas quando resolveram pegar em armas e lutar contra o governo
do PRR, o resultado foi o exato oposto do desejo dos mesmos.
ISSN: 2525-7501
A Revolução Federalista mobilizou as forças dos federalistas que marcharam do
Uruguai para o Rio Grande do Sul, dando início ao conflito. O primeiro objetivo dos revoltosos
era conquistar a cidade de Bagé, “centro militar importante e ponta dos trilhos da ferrovia para
Rio Grande” (FRANCO, 2012, p. 52). Não conseguindo sucesso em tal empreitada partiram
para o norte do estado e marcharam em direção a Santa Catarina e ao Paraná, obtendo mais
êxito por lá, mas sempre tentando, sem o desejado sucesso, tomar pontos estratégicos aqui no
sul, como a cidade de Rio Grande, por exemplo.

Para Franco (2012) a derrota dos federalistas ocorreu ainda em 1894, no dia 27 de junho,
nas proximidades da cidade de Passo Fundo (atual distrito de Pulador), quando as tropas de
Gumercindo Saraiva, que vinham em marcha do Paraná, foram derrotadas pelos legalistas. Mas
a rendição oficial só ocorreu mais de um ano depois, em 23 de agosto de 1895, quando foi
lavrada a ata final de pacificação na cidade de Pelotas, entre os generais Inocêncio de Galvão
(legalista) e Joca Tavares (revolucionário).

Entende-se que a principal consequência política da Revolução Federalista foi o triunfo


do projeto de estado idealizado por Júlio de Castilhos, exatamente o contrário do que a 103
revolução pretendia. Entretanto, para a concretização e estabilidade deste novo governo, foi
necessário ao PRR estabelecer bases políticas, administrativas e sociais de baixo para cima, por
9
meio da adesão e apoio dos poderes políticos locais. Sandra Pesavento, ao concluir um
parágrafo no qual fala sobre os meios adotados por Borges de Medeiros para se colocar como
o consolidador da República no Rio Grande do Sul, bem lembra que “não é possível pensar em
tão longa hegemonia sem o respaldo de parte significativa dos membros” (1990. p. 34) da
sociedade na qual o mesmo se consolidou.

É notório que a derrota dos federalistas na revolução homônima, em 1895, tornou o PRR
ainda mais hegemônico no estado. Apesar disso não se pode desconsiderar que “a divisão do
Rio Grande do Sul em duas cores não havia terminado” (DOBKE, 2015. p. 78). A oposição ao
PRR não desapareceu, mas ficou por um tempo esmaecida. Porém é inegável seu crescimento
quando se analisa, por exemplo, o pleito de 1922 e a consequente Revolução de 1923, na qual
o bipartidarismo rio-grandense reapareceu, pela última vez, ainda em sua forma clássica.
ISSN: 2525-7501
Todas as medidas citadas acima, postas em prática conjuntamente, permitiram ao PRR
a liderança disparada na política estadual. Prova concreta disso são os pleitos sem oposição ou
as vitórias nas urnas com margens consideráveis de votos. Obviamente se entende que tais
resultados provinham do emprego quase que descarado de fraudes. Mas até para ter a liberdade
de lançar mão de práticas fraudulentas se fazia necessário o controle, o domínio da política
estadual.

2. Capítulo II – A prática coronelista no governo Borges de Medeiros


A questão central para essa pesquisa é como se apresentava a relação política do
presidente do Estado Sr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, durante seus dois primeiros
mandatos (1898-1908), com os coronéis sediados na fronteira, território reconhecido como
reduto federalista, que são nomeados por Loiva Félix, em sua obra Coronelismo, borgismo e
cooptação política (1987), de coronéis maragatos.

O conceito de coronelismo perpassa toda a história do Brasil Império e República, tendo


essa prática se consolidado também no Rio Grande do Sul. Muitos historiadores, como o fez
René E. Gertz (2011), questionam o fato de que pouco se discute acerca do tema na 104
contemporaneidade,. E não é intenção dessa pesquisa fazer uma discussão historiográfica a fim
de apresentar novos vieses de entendimento para tal conceito. O que se fará aqui é uma breve
0
discussão acerca do que foi produzido sobre a temática do coronelismo no que tange a
historiografia do Rio Grande do Sul, a fim de observar as relações coronelistas explicitadas no
início desse capítulo dentro das mesmas. Buscando entender se o que ocorreu entre os coronéis
maragatos e o governo Borges de Medeiros se enquadra em um dos modelos já dispostos.

Na clássica obra de Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto: o município e o


regime representativo no Brasil, de 1948, o autor apresenta sua intenção de examinar o sistema
coronelista, segundo o próprio “o coronel entrou na análise por ser parte do sistema, mas o que
mais me preocupava era o sistema, a estrutura e a maneira pelas quais as relações de poder se
desenvolviam na Primeira República, a partir do município”. (LEAL, 1978, p. 13) Entendendo
o coronelismo como uma complexa rede de relações que tinha em seus extremos, de um lado o
coronel, e de outro o presidente da República, envolvendo compromissos recíprocos entre eles.
Para Leal (1978), o coronelismo teria surgido na confluência de um fato político (a
ISSN: 2525-7501
implantação do federalismo) com uma conjuntura econômica (a decadência econômica dos
fazendeiros).

O historiador José Murilo de Carvalho entende que

O coronelismo é, então, um sistema político nacional, baseado em barganhas entre o


governo e os coronéis. O governo estadual garante, para baixo, o poder do coronel
sobre seus dependentes e seus rivais, sobretudo cedendo-lhe o controle dos cargos
públicos, desde o delegado de polícia até a professora primária. O coronel hipoteca
seu apoio ao governo, sobretudo na forma de votos. Para cima, os governadores dão
seu apoio ao presidente da República em troca do reconhecimento deste de seu
domínio no estado. (CARVALHO, 1997)

Seguindo essa interpretação de troca de favores e vantagens, Sérgio da Costa Franco


elaborou seu comentário acerca do coronelismo dentro do Rio Grande do Sul, criando a
denominação de coronéis burocratas, abordagem que também foi defendida posteriormente

104
por Joseph Love, em O regionalismo gaúcho. Franco entendia os coronéis do Rio Grande do
Sul como burocratas, pois os via como “inteiramente submisso à executiva do partido e ao
presidente” (FRANCO, 1962, p. 215) do estado. 1
Love, ao trabalhar com tal ideia, colocou que

Em outros estados, o coronel obtinha usualmente sua posição no partido oficial em


função de seu poder econômico e prestígio social dentro de certa área. Apesar de estes
fatores terem um significado no Rio Grande, existia uma qualificação indispensável
para alguém exercer o poder local: a disposição de acatar decisões partidas de cima;
daí o nome coronel burocrata. (LOVE, 1975, p. 84).

Portanto, segundo esses autores, cabia aos coronéis, durante o governo de Borges de
Medeiros, seguir as decisões que vinham tanto da Presidência do Estado, quanto da chefatura
do partido, sem o fortalecimento de sua autonomia.

Já Loiva Otero Félix compôs uma tese, apresentada em Coronelismo, borgismo e


cooptação política, em que trabalhou com a ideia de autonomia dos coronéis durante o
ISSN: 2525-7501
borgismo. O enfoque da historiadora foram os coronéis da região serrana do Planalto Médio
Victor Dumoncel Filho e Valzumiro Dutra.

Analisando as correspondências recebidas por esses coronéis, Félix (1996, p. 80)


identificou que os mesmos possuíam autonomia de ação, mas com um modelo diferente do dos
coronéis do Império. Após a Revolução de 1893 Castilhos teria percebido a força dos coronéis
locais, reforçando “sua estratégia de montar as próprias bases de apoio local”, tendo essa
política se aprimorado com Borges de Medeiros, “que estabeleceu nova articulação do poder
do governo estadual com os poderes locais” abrindo uma nova área de influência e apoio no
Planalto Médio. Esse novo pacto teria sido, segundo Loiva Félix, “o responsável pelo chamado
modelo borgista” (1996, p. 80). E em tal modelo se uniam as práticas de cooptação e a coerção.

CONCLUSÃO

Dados os conhecimentos já produzidos acerca da prática coronelista no estado do Rio


Grande do Sul durante o período da República Velha, investiga-se como tal prática se dava na 104
região da Campanha. Em um contexto político de mando de um partido extremamente
organizado e que lançava mão de todos os meios necessários, segunda sua própria abordagem, 2
e efetivos para sustentar seu controle. Não bastando tal, ainda havia a presença da oposição
federalista, que tinha na fronteira seu reduto, já que muitos dos opositores eram, antes de tudo,
senhores de terras na Campanha e no Uruguai.

Diante de tal conjuntura questiona-se como o Presidente do Estado, que rearticulou


todas as suas bases de comando a fim de se manter firme no poder após a morte do líder máximo
do partido, lidou com essa região do Rio Grande do Sul e, logicamente, com os líderes
oposicionistas que ali residiam.

FONTE: Jornal

A FEDERAÇÃO. Porto Alegre: n. 121, Anno I, 27 de maio de 1884. Arquivo 00121. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx> Acesso em: 05 jun. 2016.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ISSN: 2525-7501
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DOBKE, Pablo Rodrigues. Caudilhismo, território e relações sociais de poder: o caso de


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Mestrado. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2015.

FÉLIX, Loiva Otero. Coronelismo, borgismo e cooptação política. Porto Alegre: Mercado
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cultura rio-grandense. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio
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GERTZ, René E. O Sonderweg do Rio Grande do Sul. Estudos Ibero-Americanos, Porto
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104
GRODERS, Jéssica P. A real prática da democracia representativa na Campanha e Centro Rio-
grandense durante a Primeira República. Em: Semina. v. 5, n. 1. Passo Fundo: 2016.
3
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no
Brasil. 4. ed. São Paulo: Alfa Omega, 1978.

LOVE, Joseph L. O regionalismo gaúcho. São Paulo: Perspectiva, 1971.

PACHECO, Ricardo de Aguiar. Conservadorismo na tradição liberal: Movimento Republicano


(1870-1889). In: BOEIRA, Nelson; GOLIN, Tau (Org.). Império. Passo Fundo: Méritos, 2006.
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PESAVENTO, Sandra Jatahy. Borges de Medeiros. Porto Alegre: IEL: DIVERGS, 1990.
O PARTIDO LIBERTADOR: LIDERANÇAS, GRUPOS E ALIANÇAS NO
PROCESSO DE UNIFICAÇÃO DAS OPOSIÇÕES POLÍTICO-PARTIDÁRIAS NO
RIO GRANDE DO SUL (1922-1928)578

Rodrigo Dal Forno579

RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar o processo de unificação dos grupos e lideranças
oposicionistas rio-grandenses durante a década de 1920, movimento que culminou com a
fundação do Partido Libertador (PL) em 1928. O partido surgiu da união entre os diversos
setores contrários a hegemonia do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) no poder estadual
e dentre as suas principais lideranças estavam republicanos históricos como Assis Brasil,
membros de uma nova geração de líderes oposicionistas como Raul Pilla e João Batista Lusardo
e também diferentes dissidentes do PRR. Atentando para este contexto, pretende-se refletir
sobre alguns questionamentos específicos: de que forma ocorreu o processo de unificação dos

104
grupos oposicionistas envolvidos na formação do PL? Através da utilização de quais recursos
e do estabelecimento de quais relações e alianças foi possível reunir os fragmentados adeptos
oposicionistas em uma única agremiação? Qual o papel das antigas e novas lideranças neste
processo? Através destas questões é possível compreender o percurso de formação do Partido
Libertador, assim como a atuação de suas principais lideranças durante o período em análise.
4
Neste sentido, cabe destacar que o estudo trata-se de um recorte de uma pesquisa de doutorado,
em fase de desenvolvimento, que tem como objetivo centrar analisar a participação dos
“libertadores” na política regional e nacional entre os anos de 1922 até o golpe do Estado Novo
em 1937.

PALAVRAS-CHAVE: Partido Libertador – História Política – História do Brasil Primeira


República

578
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
579
Doutorando em História pela Pontifícia Católica do Rio Grande do Sul/CNPq/Brasil. E-mail:
rodrigodalforno@hotmail.com
A gênese dos “libertadores”: das eleições de 1922 ao “exército libertador” da revolução
de 1923

Para compreender a formação e atuação dos chamados “libertadores” na política


estadual e nacional se faz necessário avaliar a trajetória de mobilizações e alianças promovidas
pelos setores oposicionistas rio-grandenses durante o início da década de 1920. Neste sentido,
parto da consideração de que o processo eleitoral de 1922 e a consequente guerra civil de 1923
representam a gênese do PL, momento fundamental que lançou as bases da unificação e da
projeção de lideranças que conduziriam o processo de fundação de uma nova agremiação
opositora ao PRR, partido hegemônico no governo do Rio Grande do Sul durante toda a
Primeira República.

O início dos anos de 1920 representou uma ocasião peculiar em que após algumas
tentativas frustradas de alinhamento entre as forças oposicionistas, foi enfim possível unir boa
parte dos adeptos para um enfrentamento coletivo contra Borges de Medeiros. Tendo em vista
que tentativas de aproximação entre estes setores ocorreram em, pelo menos, dois momentos
históricos anteriores, como por exemplo, através da proposta de Gaspar Silveira Martins em
unir o Partido Federalista ao Partido Republicano Liberal em 1897 e a conjuntura de 1907-
104
1908, na qual Fernando Abbot, após cindir com o PRR, tentou aproximar-se do grupo 5
federalista em uma candidatura conjunta para presidência estadual, objetivo repelido pela
facção do partido liderada por Antunes Maciel (TRINDADE, 1979, p.154).

No ano de 1922, os diversos setores e lideranças das oposições formaram um


agrupamento provisório com o objetivo de disputar as eleições para presidente do estado através
de uma frente unificada em favor da candidatura de Joaquim Francisco de Assis Brasil580.
Naquele momento, articularam-se três frentes de oposicionistas, mais ou menos organizadas e
mobilizadas581, vinculadas e congregadas pelo combate perante ao partido hegemônico na
situação estadual. A frente unificada em favor de Assis Brasil congregou indivíduos de

580
Assis Brasil era dissidente do PRR e um dos membros da geração de republicanos históricos do Rio Grande
do Sul. Cindiu com Júlio de Castilhos no momento de elaboração da carta constitucional de 1891 e passou a figurar
como importante liderança das oposições.
581
O Partido Federalista (PF) representava o único partido formalizado e ativo durante ao início dos anos de 1920,
muito embora já estivesse enfraquecido devido a diversas disputas e dissidências internas.
diferentes setores das oposições estaduais: oriundos do Partido Federalista; seguidores de
lideranças como Assis Brasil e Fernando Abbot (também conhecidos durante a época como
“democratas republicanos”582) e também dissidentes do PRR de um período mais próximo aos
anos de 1920, como aqueles vinculados as famílias “Pinheiro Machado”, “Menna Barreto”, etc.

Estes três setores oposicionistas possuíam trajetórias de engajamentos e lutas políticas


diversas, inclusive tendo se colocado como inimigos em diversos momentos daquele período.
Ademais, cada uma destas frentes possuíam suas próprias lideranças, alianças e redes de
seguidores e adeptos, o que caracterizava as oposições político-partidárias como
acentuadamente plurais e heterogêneas, inexistindo entre elas um consenso e uma coesão mais
sólida e diante da qual, conforme destaca Maria Antonacci, os únicos pontos de convergência
de sua união eram o objetivo de revisar a Carta Constitucional Rio-Grandense e combater um
inimigo comum catalisador de todos os males, o monopólio de poder de Borges de Medeiros
(ANTONACCI, 1981, p. 73).

As eleições de 1922 resultaram na vitória de Borges de Medeiros, sob protestos e


acusações de fraude e invalidade do pleito. Após o resultado, em janeiro de 1923, os grupos
oposicionistas uniram-se na deflagração de um movimento armado, durante o episódio que
104
ficou conhecido como “Revolução de 1923”. O protesto através das armas carregava a 6
expectativa de intervenção do presidente Arthur Bernardes no âmbito estadual e o não
reconhecimento do presidente eleito. A crença oposicionista nesta intervenção devia-se,
principalmente, ao fato de que durante as eleições para presidente nacional em 1922, Borges de
Medeiros havia apoiado a chapa de Nilo Peçanha, adversário de Bernardes, na ocasião da
campanha da chamada “Reação Republicana”. O candidato apoiado por Borges saiu derrotado
e a relação entre PRR e o situacionismo nacional se tornou bastante frágil (LOVE, 1971, p.216-
217). Aspecto que os grupos oposicionistas regionais objetivavam aproveitar-se naquele
momento para atingir Borges de Medeiros.

Cabe ressaltar que, é justamente nesta conjuntura que o termo “libertador” parece ter se
originado. O seu significado e uso encontrava-se relacionado com o objetivo principal

582
Assis Brasil e Fernando Abbot fundaram o Partido Republicano Democrático (PRD), organizado em 1908 e
com vida efêmera (FRANCO, 2010, p. 172-173). Desta tentativa originou-se a alcunha de “democratas
republicanos”, com a qual eram chamados os seguidores destas lideranças.
difundido e pleiteado oposicionistas pela via eleitoral e armada: nos termos utilizados pelas
suas próprias lideranças, tratava-se de “libertar” o estado do Rio Grande do Sul de uma suposta
“ditadura autoritária” de Borges de Medeiros, ou seja, objetiva-se romper com a hegemonia do
PRR no governo estadual e conquistar maiores espaços de poder para os setores oposicionistas.
Além disto, segundo aponta José Kieling (1984), o termo de “libertador” foi amplamente
utilizado e difundido como um mecanismo de apagar as diferenças que separavam os
“democratas” e “dissidentes republicanos” dos “federalistas”, assim como tratava-se de uma
tentativa de produzir uma generalização que abarcasse todos os oposicionistas em um mesmo
conceito (KIELING, 1984, p. 18).

O conflito armado se alastrou pelo território rio-grandense através da ação de lideranças


militares e políticas em suas respectivas regiões de atuação. Em diversos pontos do interior do
estado, os rebeldes organizaram-se através de colunas armadas que se auto proclamavam sob o
título de “Exército Libertador”. O exército estava dividido em diversas colunas regionais que
eram chamadas de “Divisões” e possuíam em seu comando chefes locais de prestigio em seus
municípios (FERREIRA FILHO, 1973, p. 21). Os postos dos chamados “Generais
Libertadores” correspondiam a Leonel Rocha, Menna Barreto e Felipe Portinho (comandantes 104
das divisões nas regiões norte e nordeste), Zeca Netto (liderança na zona sul), Estácio Azambuja
7
(mobilizando homens no centro-sul) e Honório Lemes (chefe das forças armadas na fronteira
oeste).

A pacificação do estado apenas ocorreu através da assinatura um acordo de paz entre as


duas partes, intercedido pelo governo federal e mediado pela figura do Ministro de Guerra
Setembrino de Carvalho. O pacto recebeu o título de “Pacto de Pedras Altas” e apesar de
garantir a permanência de Borges de Medeiros na presidência estadual, (aspecto que desagradou
diversas lideranças oposicionistas), o acordo alterou pontos importantes da constituição
estadual, tendo em vista que proibia a reeleição para presidente do estado e para intendentes
municipais; previa eleições diretas para vice-presidente; previa a adequação das eleições
municipais e estaduais à legislação federal; garantia a representação das minorias na
Assembleia e no Congresso; e concedia anistia aos revolucionários (ANTONACCI, 1981, p.
110; LOVE, 1971, p.223).
Com o término da guerra civil, o momento político para os oposicionistas se
transformou. Segundo aponta Luiza Kliemann (1981), o movimento de 1923 e o próprio “Pacto
de Pedras Altas” demonstraram aos oposicionistas as reais possibilidades de uma coligação
mais profunda e necessária para que fosse mantido aberto o caminho em direção ao poder
(KLIEMANN, 1981, p. 92). Neste sentido, é importante mensurar que durante a conjuntura do
início dos anos de 1920, os setores das oposições se aliaram sem contudo consolidarem seus
laços num partido ou agremiação formalizada oficialmente. Isto apenas viria a acontecer através
da fundação da Aliança Libertadora em janeiro de 1924.

A inexistência de uma instituição formalizada nos anos anteriores denunciava a


fragilidade dos vínculos de identidade e cooperação entre os oposicionistas durante os anos
iniciais de 1920. Esta fragilidade levou o próprio Assis Brasil a temer uma possível dispersão
das oposições e uma impossibilidade de consolidar as coligações em um novo partido, principal
anseio de suas principais lideranças:

Na situação de pouca solidez dos laços que uniam os Libertadores, mais


atraídos entre si pelo sentimento de hostilidade contra o adversário comum do que
por vínculos positivos e bem definidos de ideias, planos de administração e de
governo, via claro o perigo da dispersão e do desmoronamento [...]. Preferia um 104
8
compasso de espera, que nos permitisse a lenta sedimentação das afinidades
profundas que nos aproximavam, a organização, enfim, de um partido cujo programa
seria estulto tentar improvisar (ASSIS BRASIL apud ANTONACCI, 1981, p.86).

Conforme pontuado pela avaliação de Assis Brasil sobre a situação dos grupos
oposicionistas e as possibilidades de efetivar a sua união, percebe-se que o problema da
unificação perpassava, conforme percebeu Luiza Kliemann, pela a formação de um partido
capaz de, em igualdade de condições, pleitear o poder a nível estadual (KLIEMANN, 1981,
P.89). Neste sentido, os anos posteriores ao término da guerra civil significaram um momento
de consolidação deste movimento caracterizada por aproximações e dissidências, pela formação
da Aliança Libertadora a sua conversão em Partido Libertador e pela ascensão de novas
lideranças capazes de conduzir este processo e propor novos rumos e alianças aos oposicionistas
regionais.
Da aliança ao partido libertador: a unificação dos oposicionistas e ascensão de novas
lideranças

Após a pacificação do estado em 1923, as lideranças oposicionistas empenharam-se na


formação de uma agremiação partidária oficial e efetiva. Com o objetivo de concretizar o
movimento de alianças iniciado em 1922 e vislumbrando a possibilidade de participar das
eleições para senador e deputado federal de maio de 1924, as lideranças oposicionistas
reuniram-se nos dias de 12 e 13 de janeiro de 1924 no município de São Gabriel para a
realização de um congresso partidário que definiria os novos rumos da política oposicionista
no Rio Grande do Sul.

O “Congresso de São Gabriel” recebeu ampla cobertura do jornal Correio do Povo de


Porto Alegre. O encontro contou com a presença de 82 delegados representantes de diversos
municípios e setores oposicionistas e definiu a fundação da Aliança Libertadora, liga política
momentânea que tinha como intuito organizar a união entre os oposicionistas, permanecendo
em aberto, para um futuro próximo e um momento mais oportuno, a fundação de um partido
definitivo583.
104
Durante o encontro também ocorreu da nomeação da comissão executiva da
agremiação, formada por uma junta de cinco nomes de destaque nos setores oposicionistas:
9
Assis Brasil, Fernando Abbot, Firmino Torelly, Edmundo Berchon e Honório Lemes. A junta
comitiva teria como principal função avaliar os nomes dos correligionários e indicar uma chapa
de candidatos para concorrer às eleições de maio. Neste sentido, a comissão elaborou e publicou
uma proclamação oficial com os respectivos candidatos recomendados: para o cargo de
senador, Assis Brasil; para deputados federais Lafayette Cruz, Wenceslau Escobar e Plinio
Casado no 1º círculo eleitoral584, Arthur Caetano e João Batista Lusardo no 2º círculo e Antônio
Baptista Pereira, Arthur Pinto da Rocha e Francisco Antunes Maciel no 3º círculo.

583
Correio do Povo, Porto Alegre, 13/01/1924, p.1
584
Durante as eleições estaduais e federais, o Rio Grande do Sul era dividido em três círculos eleitorais. O 1º
perfazia os municípios da região de Porto Alegre, Caxias, Lajeado, Bento Gonçalves, São Leopoldo, etc. O 2º
correspondia a zona de Passo Fundo, Cruz Alta, Santo Ângelo, Uruguaiana, Alegrete, entre outras. O 3º círculo
era formado pelos arredores de Livramento, Rosário do Sul, São Gabriel, Bagé, Pelotas, Dom Pedrito, São
Lourenço, etc.
Além disto, diante dos riscos de conflitos que a definição dos nomes acarretaria, a
comissão alertou que era “provável que algum digno correligionário não veja contemplado o
nome, ou nomes de sua predileção”, mas que não era “possível contemplar todos os
correligionários meritórios”585. Os nomes indicados trouxeram algumas divergências e
dissidências, como por exemplo, de alguns setores federalistas de Porto Alegre e Livramento
que não aceitaram as indicações (DAL FORNO, 2015, p. 153-157). O resultado das eleições
decretou a vitória de Wenceslau Escobar, Plinio Casado, Lafayette Cruz, Arthur Caetano, Pinto
da Rocha, Maciel Júnior e João Batista Lusardo.

Sobre a chapa sugerida pela comissão e o resultado das eleições cabe assinalar um
aspecto de fundamental importância no processo de unificação dos “libertadores”: o surgimento
de novas lideranças de trajetória ascendente na política regional, com destaque para Batista
Lusardo586. A própria indicação de Lusardo foi recebida com muita surpresa entre seus
correligionários, tendo em vista este nunca ter ocupado nenhum cargo político ou se quer sido
candidato a algum posto. Além disto, a questão de definição dos nomes era extremamente
delicada, já que muitos líderes de destaque e tradição na política oposicionista acabaram sendo
excluído, como por exemplos, federalistas como Paulo Labarthe, Gaspar Saldanha e outros. 105
Neste sentido, a presença de Lusardo possivelmente esteja relacionada com o fato de representar
0
o único candidato vinculado diretamente com a vertente “militar-revolucionaria de 1923”, ou
seja, de lideranças partidárias que tomaram parte ativo nos episódios de luta armada, aspecto
possivelmente convertido em prestigio político. No resultado das eleições, João Batista foi
candidato oposicionista mais bem votado em seu círculo, alcançando mais de 25 mil votos,
números bastante próximos aos obtidos por deputados do PRR de renome e predomínio político
em suas regiões, como Getúlio Vargas e Flores da Cunha que obtiveram cerca de 29 mil votos.

585
Correio do Povo, Porto Alegre, 20/04/1924, p.1
586
João Batista Lusardo foi uma das principais lideranças do Partido Libertador durante as décadas de 1920 e
1930, sendo eleito deputado federal em 1924 e 1927. Após a “Revolução de 1930” alcançou projeção nacional e
assumiu cargos importantes, como Embaixador no Uruguai e na Argentina. Sobre a trajetória desta liderança ver
a obra de Glauco Carneiro (CARNEIRO, 1977).
A rápida ascensão de João Batista Lusardo aponta para a reflexão sobre um aspecto
importante daquele momento histórico: a projeção de novas lideranças587 portadoras de um
importante prestigio fruto da atuação na contenda de 1923588. Estas lideranças ascendentes
faziam parte de uma nova geração de políticos do Rio Grande do Sul e viriam a assumir posições
de destaque entre os “libertadores”, sendo os responsáveis por desempenhar o papel de
articulação de alianças e de mobilização do grupo em torno de novos objetivos e projetos.

Ainda no ano de 1924 a AL participou dos levantes tenentistas, eclodidos em julho de


1924 na cidade de São Paulo e protagonizado por setores rebeldes das forças militares
brasileiras589. No estado do Rio Grande do Sul, as insurreições militares deflagraram-se apenas
no final do outubro e o movimento contou com o apoio dos “libertadores” através de duas
frentes principais590. Em primeiro lugar, através da atuação dos deputados na câmara federal
enquanto críticos do Presidente Arthur Bernardes e apoiadores dos levantes em todo o país.
Dentre os mais combativos deputados estava Batista Lusardo, principal defensor do movimento
e que ao longo dos episódios ficou conhecido como o “Porta Voz da Coluna”, em decorrência
de suas narrativas sobre os episódios armados no Rio Grande do Sul e sobre a marcha da Coluna
Prestes pelo Brasil591. 105
1
587
Além de Batista Lusardo, pode-se destacar o importante papel desempenhado por Raul Pilla. Embora não tenha
atuado na luta armada de 1923, Pilla foi um dos principais articuladores dos bastidores da guerra civil, assim como
assumiu a posição de uma das principais lideranças do PL na cidade Porto Alegre, tendo sido eleito vice-presidente
da agremiação em 1928 e presidente em 1930. Sobre a vida política de Raul Pilla, ver a dissertação de Antônio
Bueno (BUENO, 2006).
588
Este aspecto também pode ser percebido na trajetória do PRR, no qual algumas lideranças do grupo também
saíram do conflito prestigiadas e fortalecidas em seus quadros políticos regionais, como por exemplo, Victor
Dummoncel e Vazulmiro Dutra, analisados por Loiva Otero Félix (FÉLIX, 1987) e Flores da Cunha, Oswaldo
Aranha e Getúlio Vargas, investigados por Luiz Alberto Grijó (GRIJÓ, 1999).
589
Em julho de 1924, uma rebelião liderada por Isidoro Dias Lopes e Miguel Costa apoderou-se da cidade de São
Paulo que permaneceu nas mãos dos revoltosos durante três semanas, quando as tropas se retiraram em marcha
para o oeste. Seguindo o exemplo dos paulistas, outros levantes eclodiram pelo país, como no Amazonas, Sergipe
e Mato Grosso, embora tenham sido rapidamente dominados pelo Exército.
590
Para maiores informações sobre a atuação dos “libertadores” nos levantes tenentistas de 1924, ver (DAL
FORNO, 2015, p. 164-174).
591
Além de defender os levantes no plenário, Lusardo também publicou diversos relatos sobre os acontecimentos
através do jornal O Globo do Rio de Janeiro. Os textos foram reproduzidos na biografia escrita por Glauco Carneiro
(1977, p.259-284).
Por outro lado, os “libertadores” também participaram na luta armada através
mobilização de tropas em apoio aos militares, protagonizadas pelos chefes veteranos de 1923,
Leonel Rocha, Honório Lemes e Zeca Netto, que reuniram contingentes de homens armados e
fizeram junção aos homens comandados por Luís Carlos Prestes e outros líderes militares na
região sul.

Após a realização de alguns pequenos combates, os rebeldes no Rio Grande do Sul


acabaram por dispersarem-se em dois grupos. Um primeiro grupo comandando por Prestes,
perseguido pelo exército legalista, deixou o sul e iniciou uma marcha em direção ao norte do
país para juntar-se a outros revoltos, no movimento que ficaria conhecido como “Coluna
Prestes” ou “Coluna Costa-Prestes”. Por sua vez, um segundo grupo, vinculado aos chefes civis
da AL refugiou-se no Uruguai e Argentina, enquanto que a principal liderança da AL, Assis
Brasil, permaneceu exilado voluntariamente no Uruguai e apoiando a deflagração de novos
levantes militares no Brasil (LOVE, 1971, p.228).

Após a dispersão ocorrida em decorrência do apoio aos levantes tenentistas, os


“libertadores” retomaram suas atividades políticas no ano de 1927. Nas eleições federais
disputadas naquele ano, a Aliança persistiu na denúncia sobre a falta de garantias e liberdades
105
do sistema eleitoral do Rio Grande do Sul e do Brasil, bandeiras levantadas desde o ano de 2
1922. Contudo, a agremiação encontrava-se dispersa e com pouca força eleitoral, desta forma
conseguir eleger apenas três deputados federais: Assis Brasil, Batista Lusardo e Plinio Casado.
Do número de sete deputados eleitos em 1924, restavam agora apenas três. Contudo, conforme
destacam Joseph Love e José Kieling, embora o resultado tenha sido um retrocesso político, o
grupo havia conquistado uma projeção e prestigio nacional, graças a sua atuação nos levantes
militares (LOVE, 1971, p.242; KIELING, 1984, p. 77-87).

Calejados dos pleitos eleitorais e das trincheiras armadas, faltava ainda aos
“libertadores” passar de uma liga política momentânea, tal era a Aliança, para um partido
organizado com programa e estatuto definido. No ano de 1928, após aproximações e
distanciamentos, através de um congresso realizado no dia 3 de Março na cidade de Bagé
fundava-se oficialmente o Partido Libertador, com a presidência de Assis Brasil e vice-
presidência de Raul Pilla. Segundo os relatos de memórias de Mem de Sá, personagem atuante
naquele contexto:
Chegara-se, porém, ao momento da decisão. Não era possível permanecer
com uma simples Aliança, provisória e, portanto, precária. Impunha-se a criação de
um partido. Federalistas de Gaspar e republicanos de Assis haviam cimentado, no
sangue dos combates e nas agruras das campanhas eleitorais, mais do que sólida
amizade, verdadeira coesão política. Estavam irmanados. Quando, porém, chegou o
momento de redigir o documento básico – o Programa e Estatuto Partidário – as
divergências irredutíveis da doutrina eclodiram com a velha pujança de 40 anos de
antagonismo (SÁ, 1973, p. 67).

Apesar das afinidades e das alianças construídas durante a década de 1920, algumas
divergências permaneciam latentes no grupo, como por exemplo, a persistência das
divergências sobre ideias e projetos vinculados ao programa partidário a ser adotado pela
agremiação. Neste sentido, foi preciso que lideranças como Assis Brasil e Raul Pilla operassem
longos diálogos de mediação e conciliação com os correligionários para sacramentar a fundação
do partido e escrever um programa e estatuto que agradasse a todos os setores oposicionistas592.
Neste sentido, um dos principais entraves nas negociações internas do PL ocorreu em torno da
questão parlamentarismo versus presidencialismo, ou qual das duas propostas seria defendida
e propagada pela agremiação. A saída encontrada foi o estabelecimento da possibilidade de
liberdade de ambas as correntes propagarem suas ideias no interior do grupo, sem que isto 105
significasse dissidências e rupturas.
3
Nas tratativas de fundação do partido destaca-se a atuação de outra ascendente
liderança: Raul Pilla. Este seria um dos principais articuladores políticos do PL durante sua
existência. De origem vinculada ao Partido Federalista, Pilla foi um dos principais articuladores
das relações entre federalistas e demais grupos oposicionistas, mediando diálogos que
permitiram com que cada lado cedesse em suas intenções e reinvindicações e tornasse possível
um consenso sobre a definição do programa partidário e dos cargos de chefia da agremiação.

Através de um processo iniciado no começo dos anos 1920 e concluído no final da


década, Assis Brasil, Raul Pila, João Batista Lusardo e outras lideranças, conduziram as
oposições, de uma coalizão heterogênea e transitória para a construção e consolidação de um
novo partido político. Com o nascimento do PL, um partido que tinha como objetivo romper

592
Para maiores informações sobre as nuances e orientações do programa partidário do PL, ver as contribuições
de Mem de Sá (1973), Kieling (1984) e Franco (2007; 2012).
com os limites regionais de atuação593, a política partidária oposicionista iniciou uma nova fase,
caracterizada, principalmente, pela projeção e atuação dos “libertadores” no âmbito nacional
durante e após os episódios da chamada “Revolução de 1930”.

Últimas considerações

Sobre últimas considerações cabe retomar alguns pontos principais desenvolvidos ao


longo deste texto. Antes disto, é preciso salientar que o conteúdo aqui apresentado encontra-se
em um momento de aprofundamento da análise. Desta forma, não tratam-se de conclusões de
cunho definitivo e final, mas sim, de horizontes e possibilidades de interpretação e exercício de
reflexão em uma fase de problematização. Neste sentido, me parece fundamental resgatar dois
argumentos centrais esboçados ao longo do texto e que vem sendo desenvolvidos em minha
pesquisa de tese de doutorado.

O primeiro deles, diz respeito a hipótese levantada sobre a formação do Partido


Libertador ser caracterizada por um processo histórico de unificação dos grupos e lideranças
oposicionistas que permeou toda a década de 1920. Neste sentido, percebe-se que os
acontecimentos políticos dos anos de 1922 e 1923, e seus desdobramentos posteriores, parecem 105
representar a gênese dos “libertadores”, um momento inaugural e fundamental na formação de
um partido único e unificado entre os adeptos das oposições político-partidárias no Rio Grande
4
do Sul.

Um segundo aspecto que merece atenção trata-se do fenômeno de surgimento de novas


lideranças na política regional. Se do lado do PRR, diversos historiadores reconheceram a
existência de uma renovação e ascensão de novos líderes, como por exemplo, através da
projeção alcançada pelos membros da chamada “Geração de 1907” (LOVE, 1971; ABREU,
1997; GRIJÓ, 1998). Do lado oposicionista, ao que tudo indica, um movimento similar parece
ter ocorrido com o surgimento de novos protagonistas no oposicionismo rio-grandense. Uma
nova geração de políticos, iniciados e projetados a partir da atuação nos episódios de 1922/1923,

593
Desde seu surgimento, os “libertadores” mantinham vínculos com o Partido Democrático de São Paulo.
Tratava-se de uma antiga ambição de Assis Brasil de formar uma frente política nacional de oposição. Aliados aos
paulistas, o PL formou o efêmero Partido Democrático Nacional (LOVE, 1971, p. 242).
com novas percepções e visões do mundo político e com novas práticas e mecanismos de fazer
política.

Desta forma, é possível considerar que esta perceptível mudança geracional e


surgimento de novos líderes políticos pode nos auxiliar na compreensão de um dos episódios
mais instigantes da história política do Rio Grande do Sul: a superação dos antagonismos e a
união entre os históricos adversários de PRR e PL em uma mesma frente e luta política no
contexto de formação da Frente Única em 1929, de apoio à candidatura de Getúlio Vargas ao
cargo de Presidente da República e da consequente Revolução de 1930. Aspectos ainda pouco
explorados pela historiografia e nos quais os “libertadores” possuíram importante participação.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este artigo tem como objetivo analisar o processo de unificação dos grupos e lideranças
oposicionistas sul rio-grandenses durante a década de 1920, movimento que se iniciou com a
mobilização em favor da candidatura de Joaquim Francisco de Assis Brasil durante as eleições
para Presidente do Estado em 1922, perpassou pela revolta armada de 1923 e culminou com a
fundação da Aliança Libertadora (AL) em 1924 e do Partido Libertador (PL) em 1928. Estas 105
agremiações surgiram da união entre os diversos setores contrários a hegemonia de Borges de
Medeiros e do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) no poder estadual. Dentre as
5
principais lideranças “libertadoras”594 estavam republicanos históricos como Assis Brasil,
membros de uma nova geração de líderes como Raul Pilla e João Batista Lusardo, além de
diversos dissidentes do partido situacionista.

Atentando para esta conjuntura, este artigo pretende esboçar algumas reflexões e
questionamentos, inicialmente desenvolvidos em minha dissertação de mestrado 595 e que,
posteriormente, foram ampliadas e aprofundadas na elaboração de um projeto de tese de

594
“Libertadores” foi o apelido pelo qual ficaram conhecidos e se auto intitulavam os oposicionistas no Rio
Grande do Sul durante aquele momento histórico. Sem atribuir juízo de valor sobre os usos e significações da
nomenclatura, manterei durante o texto, o uso da época acrescido de aspas.
595
Dissertação de Mestrado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul e com orientação do Prof. Dr. Luiz Alberto Grijó. O estudou versou sobre o “Álbum dos
Bandoleiros”, álbum fotográfico impresso publicado em homenagem aos grupos oposicionistas que
protagonizaram a guerra civil de 1923 (DAL FORNO, 2015).
doutorado596. A pesquisa de tese, ainda em estado inicial, tem como objetivo central analisar a
formação e atuação das duas agremiações oposicionistas (AL e PL) através da participação e
trajetória de suas principais lideranças no período, atentando para quais recursos e aspectos
estiveram presentes e atuantes nas práticas, articulações, mobilizações e tomadas de posição
destes agentes político-partidários. Além disto, enquanto objetivo secundário interessa
compreender um dos episódios mais instigantes daquele processo: a união entre os históricos
adversários de PL e PRR durante e após o contexto da chamada Revolução de 1930.

Inserido nesta pesquisa mais ampla, esse artigo tem como escopo compreender de que
forma ocorreu o processo de unificação dos grupos oposicionistas envolvidos na formação do
PL, refletindo sobre através de quais recursos e do estabelecimento de quais alianças foi
possível reunir os fragmentados adeptos oposicionistas em uma única e oficial agremiação.
Parte-se da hipótese central de que, embora o Partido Libertador tenha sido oficialmente
fundado apenas no ano de 1928, a sua construção e formação corresponde a um processo de
estabelecimento de alianças e de unificação, iniciado no início dos anos de 1920 e concretizado
no final da daquela década.

Neste sentido, o texto encontra-se estruturado através da análise e exposição sobre duas
105
conjunturas históricas fundamentais para a compressão da fundação e atuação dos 6
“libertadores”: as eleições para presidente estadual de 1922 e guerra civil de 1923; e as
consequências e avanços possíveis de serem percebidos após a pacificação do estado,
analisando as mobilizações da Aliança Libertadora entre os anos de 1924 e 1928.

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8
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Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre/RS).
PRESIDENTES DE PROVÍNCIA E A ADMINISTRAÇÃO PROVINCIAL:
PRIMEIRAS NOTAS DE PESQUISA597

Amanda Both598

RESUMO

Este trabalho tem por finalidade apresentar os primeiros resultados referentes a uma pesquisa a
respeito dos presidentes de província, com foco na província do Rio Grande do Sul, no período
que se estende de 1846 a 1889. Realizamos uma investigação de cunho prosopográfico acerca
de alguns elementos da trajetória dos indivíduos que desempenharam tal função, como
naturalidade, idade, formação educacional e cargos ocupados. Isto posto, foi possível perceber
que a maioria dos presidentes era proveniente de outras regiões do Império, reflexo do desejo
do governo central de nomear indivíduos que estivessem descomprometidos com os interesses
das elites regionais. Todavia, as nomeações ocorriam, majoritariamente, dentro de um universo
restrito composto por políticos formados bacharéis em direito, resultando disso que muitos
indivíduos que ocuparam a presidência já nutrissem laços com membros das elites provinciais.
Ademais, constatamos que alguns presidentes já eram parte da elite política imperial à época
que foram nomeados para o posto. Por fim, procuramos discutir brevemente as consequências
que a política que orientava a nomeação dos presidentes provinciais e as trajetórias dos mesmos
105
poderiam gerar no cotidiano político-administrativo da província.
9
Palavras-chave: presidentes de província – prosopografia – Rio Grande do Sul

INTRODUÇÃO

Por muito tempo a historiografia reservou à esfera provincial de poder um papel


diminuto na conformação dos interesses do Império. No que se refere à atuação dos presidentes
de província a situação não foi diferente: usualmente caracterizou-se o cargo como pouco
importante na estrutura político-administrativa efetiva do Estado imperial e sobre o qual já se
conhecia tudo que existia para ser conhecido, como a política de nomeação e a função principal
do cargo.

597
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
598
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul. E-mail: amaboth@hotmail.com.
Contudo, recentemente houve um crescimento no número de trabalhos que tem como
tema a dinâmica política regional. Ainda que essas pesquisas não tenham como foco a atuação
dos presidentes de província, fazem importantes contribuições para o tema ao abordarem o
relacionamento dos demais poderes provinciais com o “delegado do poder central”, como era
designado pelos contemporâneos (CIRINO, 2015; DOLHNIKOF 2005; FERNANDES, 2014;
NASCIMENTO, 2003, SENA, 2012; SLEMIAN, 2006, VARGAS, 2007)599. De forma
complementar, nas últimas décadas, parte dos estudos em história política tem partido para uma
análise social dos fenômenos e, baseados em pesquisas empíricas de fôlego, tem avançado
significativamente nas explicações acerca da dinâmica social e política do império. Esse avanço
se deve, em parte, à ampliação do leque de variáveis consideradas relevantes para a explicação
do comportamento dos indivíduos e do funcionamento das instituições, como a influência das
relações de parentesco e o pertencimento a determinadas redes de relacionamento, por exemplo,
elementos os quais tem sido analisados de forma conjunta com as estruturas políticas e
econômicas. (MARTINS, 2005; VARGAS 2007).

Inspirados nesse conjunto de trabalhos, buscamos investigar empiricamente os


elementos frequentemente usados para caracterizar os presidentes, a fim de compreender as 106
implicações para a administração da província e para as interações entre o governo central e a 0
elite regional. Para esse fim, delimitaremos a análise inicialmente à província do Rio Grande
do Sul, no período que vai de 1845, após o final da revolução Farroupilha, revolta que afetou
toda a província do Rio Grande do Sul e estabeleceu uma estrutura de governo paralela à
estrutura imperial, e se estende até o final do Império, em 1889. A análise inicia-se pelo estudo
prosopográfico do grupo formado pelos presidentes provinciais e, posteriormente, explora
questões específicas da administração de um determinado presidente, recuperando elementos
de sua trajetória e do contexto político.

A criação de uma esfera institucional de poder provincial: o lugar dos presidentes de


província na administração imperial.

599
A pesquisa de Maria de Fátima Gouvêa, de 1989, realiza uma análise que atribui maior relevância ao papel das
províncias, sobretudo através do da Assembleia Legislativa provincial, como um espaço para a acomodação de
interesses econômicos (principalmente dos grandes fazendeiros) e para a articulação da “homogeneidade política”
entre grupos locais da província (GOUVÊA, 1989).
Após a separação do Brasil de Portugal foram criados muitos cargos necessários à
administração pública e à esfera política. Insere-se nesse contexto a criação do cargo de
presidente da província logo nos primeiros anos do império, por um decreto de 1823 que dava
os primeiros contornos ao governo das províncias. A partir de então, ficou estabelecido que nas
províncias existiria um presidente e um secretário, ambos escolhidos pelo imperador, além de
um Conselho privativo e eletivo600. A ausência de uma lei que regulamentasse as atividades dos
presidentes, bem como o caráter consultivo do conselho, proporcionou a eles ampla margem de
ação para administrar as províncias601.

Em 1834, às modificações na legislação efetuadas pelo Ato Adicional, que concedeu


mais autonomia às elites regionais através da criação das Assembleias Legislativas Provinciais,
seguiu-se a elaboração de um regimento com vistas a definir e regular as atribuições dos
presidentes de província. O sentido dessas modificações não é ponto de consenso entre os
estudiosos. Miriam Dolhnikoff (2005), em sua clássica obra sobre as bases do Estado imperial,
defendeu que as reformas liberais do início da década de 1830 tinham por objetivo conceder
autonomia às províncias e, ainda que a autora confira um papel importante aos presidentes no
arranjo institucional, argumenta que os poderes destes ficaram mais restritos se comparados 106
com o período anterior, tanto por efeito do Ato Adicional que criou as assembleias provinciais,
1
quanto pela regulamentação dos poderes deles. Por outro lado, Andréa Slemian (2006) pontuou
que o esforço dos legisladores em regulamentar devidamente os poderes executivo e legislativo
tinha por finalidade promover o equilíbrio entre os poderes para melhor governar a nação.

Para além dessas questões, o regimento foi um marco importante, no qual ficou
estabelecido que o presidente era a “primeira autoridade da província” , o qual deveria
comunicar ao governo central qualquer “embaraço que encontrar na execução das leis”, decidir
temporariamente sobre os conflitos de jurisdição que ocorressem entre as autoridades
provinciais, suspender empregados por abuso de poder e dispor da força para a segurança e

600
A constituição outorgada em 1824 previa ainda a criação de Conselhos Gerais nas províncias. No entanto, eles
foram criados apenas em 1828, após a elaboração de uma lei que regulamentou seu funcionamento.
601
O conselho privativo, embora fosse eletivo, não tinha meios legais para controlar a ação do presidente da
província, ainda que este devesse comunicar ao conselho suas decisões e necessariamente consultá-lo nos casos
de suspensão de magistrados e de comandantes militares. (SLEMIAN, 2007, p. 26-27).
tranquilidade das províncias602. Também era função do presidente sancionar ou não as leis
elaboradas pela Assembleia Legislativa provincial. Nos casos em que a lei não fosse
sancionada, o presidente deveria justificar sua decisão e envia-la novamente para Assembleia,
e caso os deputados derrubassem o veto do presidente por maioria simples, a lei deveria ser
aprovada.

Foi justamente em relação aos vetos que ocorreu a última modificação das atribuições
do presidente. No Ato Adicional havia sido estabelecido que em duas situações o presidente
poderia não sancionar uma lei sem que esta fosse novamente encaminhada para a assembleia
provincial, mas sim enviada para a apreciação na câmara dos deputados. Estavam
contempladas nessa circunstância as leis que o presidente julgasse atentatória aos interesses de
outras províncias ou a tratados internacionais. Entretanto, no bojo das reformas
conservadoras603 que vinham ocorrendo desde finais da década de 1830, a aprovação da Lei de
Interpretação do Ato Adicional (1840) acrescentou mais um caso: quando a lei formulada pela
Assembleia Provincial fosse considerada inconstitucional.

A partir da década de 1840, portanto, as funções do presidente de província ganhavam


sua versão final e contemplavam uma gama bastante variada de funções. Contudo, a construção
106
da uma esfera institucional de poder provincial não obedeceu a um caminho linear e as 2
modificações que ocorreram na legislação refletem o esforço em encontrar um formato de
governo capaz de acomodar os diversos interesses em jogo. A estruturação do sistema
administrativo estava relacionada com a estruturação do Estado e da autoridade central e

Tal questão passava, naturalmente, pelo controle do que se poderia compreender


como poderes paralelos exercidos em instâncias diversas da administração imperial,
sem, contudo, afetar as hierarquias sociais estabelecidas. Incluía, por consequência,
a construção de uma sólida estrutura administrativa, garantindo a absorção dos
serviços básicos pelo poder público, bem como sua extensão e acesso a sociedade
(MARTINS, 2007, p. 332).

602
Lei nº 40 de 03 de outubro de 1834.
603
A expressão “regresso conservador” foi alcunhada pelos contemporâneos e, posteriormente, foi apropriada
pelos historiadores para referenciar um período em que foram postas em prática uma série de medidas que tinha
por objetivo restabelecer a ordem, corrigindo os “excessos do reformismo liberal” (LINCH, 2015, p. 317).
Esse processo, entretanto, não se deu em sentido único, do centro para as províncias, e
nem de forma estritamente autoritária. Os diversos estudos que buscaram compreender a
sociedade e a política no Brasil do Oitocentos tem demonstrado o papel ativo das elites locais
e regionais nos processos de construção e consolidação do Estado imperial, além dos diversos
laços que conectavam as elites de todo os país. Para além da variedade de abordagens e
enfoques, o que tais pesquisas corroboram é que, diante da vastidão e complexidade da
sociedade imperial, o governo precisou lançar mão de várias estratégias e negociar com os
diferentes protagonistas da sociedade e da politica regional.

Nessa trama, os presidentes de província apresentam-se como uma lente privilegiada


para compreendermos em que termos se pautavam essas negociações e a partir de quais
mecanismos elas eram efetivadas, uma vez que estavam estabelecidos em uma posição
intermediária entre o governo central e as esferas locais de poder. Apesar disso, estudos que se
dediquem ao papel dos presidentes de província são escassos. Isso se deve, em parte, à
afirmação que se tornou lugar comum na historiografia, segundo a qual os presidentes, sendo
oriundos de outras províncias e ocupando o cargo por poucos meses, desconheceriam as
realidades provinciais e seriam nomeados apenas para garantir a vitória eleitoral do partido que 106
se encontrasse no governo.
3
Os Presidentes da Província no Rio Grande do Sul

Visando avançar na compreensão do funcionamento da presidência da província, nosso


primeiro passo é conhecer aqueles que desempenharam tal função. Com essa finalidade,
faremos uso do método prosopográfico, que, quando aplicado ao estudo de grupos dirigentes,
nos ajuda a entender o funcionamento das instituições, uma vez que explica as origens da ação
política através do contexto social dos atores, ou seja, permite desvelar os interesses que
orientam as realizações de determinada instituição (STONE, 1971).

Ao longo do período entre 1846 e 1889, a província foi administrada por 59 presidentes.
Haja vista que 17 desses eram vice-presidentes que haviam assumido interinamente604, os dados

604
O cargo de vice-presidente foi criado em 1834. Inicialmente os vice-presidentes eram escolhidos entre os
deputados provinciais, mas na década de 1840 passaram a ser de nomeação direta do governo central. Era nomeado
um total sequencial de seis indivíduos, normalmente habitantes da província, que deveriam preencher o cargo caso
o presidente precisasse se afastar ou em caso de vacância (SENA, 2012).
que serão adiante discutidos tem por base um total de 42 indivíduos, ou seja, aqueles que
efetivamente foram nomeados para tal função605. Esclarecido isso, o primeiro aspecto que
vamos abordar diz respeito à atuação profissional, que se deu predominantemente na arena
política – ainda que as incursões no meio jurídico também fossem comuns –, na qual atuaram
34 (81%) presidentes. Diante disso, surge a questão: a presidência da província constituía-se
em uma etapa da carreira política, de modo que após o mandato os políticos estariam aptos a
exercer cargos de maior importância?

A idade dos presidentes quando de suas nomeações fornece alguns indícios. Dos 39
indivíduos para os quais encontramos essa informação, 74,5% tinham mais de 40 anos de idade
e apenas um tomou posse da presidência com menos de 30 anos. Embora os presidentes não
fossem propriamente jovens, essa constatação, se considerada isoladamente, pouco clareia a
questão. Esses dados adquirem mais significado quando observamos que entre aqueles
presidentes que trilharam carreiras majoritariamente no âmbito político (34), 18 (53%) fizeram
parte da alta cúpula da política imperial, composta por senadores, ministros e/ou conselheiros
de estado, e, destes, 11 (61%) já haviam ingressado nesse círculo antes de serem presidentes da
província de São Pedro. Houve ainda dois casos de indivíduos que, após adentrarem nos 106
quadros da elite política imperial, foram nomeados presidentes em outras províncias. Para os
4
homens que administraram o Rio Grande do Sul no período em foco a presidência não equivalia
a uma etapa na carreira, na forma como a definimos anteriormente.

Um das principais características atribuídas aos presidentes era a de serem naturais de


outras regiões do Império que não aquela que estavam designados a administrar. De fato, dos
39 presidentes para os quais foi possível averiguar o local de nascimento, 87% deles não haviam
nascido na província de São Pedro. A maioria dos nomeados era natural das províncias
consideradas mais dinâmicas do Império: Rio De Janeiro (20%), seguido por Pernambuco
(13%), Bahia (13%) e, por fim, São Paulo (10%). Todavia, com um percentual superior aos de
Bahia e Pernambuco estava o Rio Grande do Sul, de onde eram 15% dos presidentes.

605
As informações sobre os presidentes de província foram pinçadas de variadas fontes que estão listadas ao final
do texto, bem como de algumas obras referenciadas na bibliografia, sobretudo em MARTINS, 2007 e VARGAS,
2010.
Analisando a origem dos presidentes diacronicamente, percebemos que dos seis rio-
grandenses que ocuparam o cargo, cinco foram nomeados depois de 1870, como demonstra o
quadro abaixo. Esses números refletem, em parte, uma mudança ocorrida na composição da
elite política imperial nas décadas finais do Império, em consequência de uma modificação
ocorrida no equilíbrio de poder entre as províncias, bem como em decorrência do papel decisivo
que os rio-grandenses tiveram na vitória do Império na Guerra do Paraguai. Assim, entre 1878
e 1889 o Rio Grande do Sul “deixava de ser uma província sem representantes na elite
dirigente”, uma vez que teve “mais que o dobro de ministros que em todas as décadas anteriores
somadas” (VARGAS, 2010, p.11). Essas transformações repercutiram na nomeação dos
presidentes porque uma parcela deles também integrava a elite política imperial (CARVALHO,
2011, p. 56). Contudo, esse elemento conjuntural não pode ser assumido como suficiente para
explicar o crescimento de rio-grandenses nomeados para a presidência e outras variáveis ainda
serão pesquisadas para melhor compreender essa questão.

Quadro 1: Origem provincial dos presidentes de província do Rio Grande do Sul por períodos
(1846-1889).
106
Província
Períodos 5
1845-49 1850 1860 1870 1889
Alagoas - 1 1 - 1

Bahia 1 2 - 1 1

Ceará - - - 2 1

Lisboa 1 - - - -

Minas Gerais - - 1 - 1

Paraíba - - 1 - -

Pernambuco - - 1 1 3

Rio de Janeiro - 2 1 3 1

Rio Grande do
- 1 - 2 3
Sul

Santa Catarina - 1 1 - -
Não Identificado - 1 2 1 -

A política do Império no que se refere à naturalidade dos indivíduos nomeados para a


presidência das províncias visava impedir a formação de vínculos entre presidentes e as elites
provinciais para que, assim, estivesse à frente da província um agente capaz de executar suas
ordens e de manter-se fiel às suas decisões, uma vez que o cargo de presidente concentrava
inúmeras atribuições. Entretanto, o fato de serem naturais de outras províncias não deve nos
conduzir a considerar a priori a ausência de vínculos com as elites regionais. Um breve olhar
sobre as trajetórias dos homens que ocuparam o cargo de presidente da província aponta para
alguns traços comuns, sendo a formação em direito o mais recorrente deles. Dentre os 40
presidentes para os quais temos conhecimento da formação educacional, 34 (85%) tinham
formação superior, sendo 97% bacharéis em direito. Os demais seis presidentes tinham
formação militar.

106
O papel central ocupado pelas academias de direito do Império na formação dos quadros
da elite imperial já é bem conhecido pela historiografia, uma vez que eram o destino de boa
parte dos jovens que ingressaram na vida pública posteriormente (KIRKENDALL, 2002, 6
VARGAS, 2010; CARVALHO, 2011). Tal fenômeno se dava porque as faculdades de direito
além de serem locais para o ensino das leis, constituíram-se em importantes espaços de
sociabilidade para os filhos das famílias de elite de todo país. Assim, ainda que de maneira geral
os homens nomeados para ocupar a presidência da província fossem oriundos de outras regiões,
muitos já tinham convivido com membros da elite rio-grandense em tempos anteriores. Alguns
episódios ocorridos durante a administração de João Pedro Carvalho de Morais são valiosos
para refletirmos sobre tal questão.

Carvalho de Morais era homem de confiança dos conservadores. Foi secretário da


missão especial do Visconde do Rio Branco no Rio da Prata em 1864 e, em 1871, retornou para
o sul como secretário da missão do Barão de Cotegipe, a qual tinha por finalidade a conclusão
do tratado de paz entre Brasil e Paraguai. Imediatamente após servir nesses postos, Carvalho de
Morais foi nomeado presidente da província do Rio Grande do Sul, cargo que exerceu entre
dezembro de 1872 e março de 1875.
Apesar do longo período de mandato, sua conduta administrativa desagradou à maioria
liberal na Assembleia legislativa, liderada pelo deputado Gaspar Silveira Martins. Visto deste
ângulo, tratava-se apenas de mais um presidente da província que governava a despeito das
realidades regionais, por desconhecer a dinâmica do poder na província, mas um episódio nos
permite relativizar essa proposição: nem todos os liberais fizeram coro à oposição organizada
ao presidente na Assembleia. Henrique d’Ávila, líder liberal no município de Jaguarão, foi
acusado de “semear a discórdia no seio do partido”, isso porque apesar de afastado oficialmente
da política provincial, publicou uma série de artigos no periódico Atalaia do Sul, impresso e
distribuído em Jaguarão, no qual apoiava as ações do então presidente da província.

Nesse mesmo ano estava em pauta na assembleia a votação para duas obras de
desobstrução de passagens em diferentes rios. Segundo artigo publicado por Ávila no Atalaia
do Sul, na impossibilidade de executar ambas, o presidente da província “julgou mais urgente
a desobstrução do sangradouro (do rio Jaguarão) [...] a ele (presidente) deve principalmente o
segundo distrito, e com particularidade esse município (Jaguarão) e a fronteira”606. Diante desta

106
ação do presidente, Ávila declarou seu apoio não apenas através de artigos, mas também em
pronunciamentos na própria Assembleia, onde deixava declarada também sua relação prévia
com o presidente, ao afirmar que não faltaria “occasião de censurar a administração, quando eu 7
entenda que ella tenha procedido mal; [...] O Ex. Sr. Dr. Carvalho de Moraes e meu conhecido
e amigo da academia; é um homem de sentimentos nobres”607.

Para desempenhar a função de principal agente do poder executivo provincial, os


presidentes estavam em constante contato não apenas com o governo central, mas também com
as autoridades municipais e provinciais. Dessa forma, o presidente da província estava impelido
a manejar, simultaneamente, os interesses desses diferentes setores. Por isso, era importante
para o Império nomear homens estranhos à província, que não administrassem baseados em
interesses pessoais e em relações de amizade. Contudo, como o exposto acima demonstra, os
propósitos do governo não eram sempre bem-sucedidos, em boa medida porque o Estado não

606
Discurso proferido por Silveira Martins na Assembleia Provincial. Sessão de 21.04.1874. Anais da Assembleia
Legislativa provincial. AHRS.
607
Discurso proferido por Henrique d’Ávila na Assembleia Provincial. Sessão de 09.04.1874. Anais da
Assembleia Legislativa provincial. AHRS.
existe de forma independente da sociedade que governa, mas é o resultado de “suas relações,
interações e negociações permanentes e cotidianas em uma dada sociedade, na busca por
legitimidade, estabilidade e governabilidade” (MARTINS, 2012, p. 60) .

A sociedade brasileira do Oitocentos era fortemente orientada pela lógica das relações
pessoais, da reciprocidade e da troca de favores, o que tornava o funcionamento das instituições
muito mais complexo do que pode parecer a um primeiro olhar. Assim, se, por um lado, ao
desagradar a facção dominante na província naquele momento, a diretriz do Império em relação
à naturalidade nas nomeações parecia cumprir seu propósito, por outro lado Carvalho de Morais
utilizou o poder que o posto de presidente lhe outorgava em benefício de um antigo amigo.

É interessante ainda notarmos que o gabinete de ministros foi liderado pelos


conservadores de 1868 a 1876. Os contemporâneos esforçavam-se em destacar, quando lhes
convinha, o papel autoritário que os presidentes da província desempenhavam, uma vez que,
não sendo naturais da província, desconsideravam as necessidades provinciais e administravam
unicamente com o objetivo de vencer as eleições para o partido que estava no governo,
ocasionando inúmeras trocas nos ocupantes de vários cargos, sobretudo aqueles que podiam 106
interferir de forma mais direta nos resultados eleitorais, como os comandantes da Guarda
8
Nacional, os juízes e os delegados de polícia.

Não obstante a administração conservadora da província desde meados de 1868, nas


eleições para deputação provincial de 1872 os liberais rio-grandenses foram capazes de
desbancar os conservadores, conquistando a maioria da Assembleia provincial, situação que se
manteve inalterada até o final do período monárquico. O resultado dessa incompatibilidade foi
a sistemática oposição da maioria dos liberais à administração de Carvalho de Morais. Apesar
disso, Morais manteve-se na presidência da província até março de 1875. Como buscamos
explicitar, uma interpretação que analise a instituição presidência da província por uma lógica
dualista – procurando identificar nas ações dos presidentes de província uma hegemonia dos
interesses do governo central ou uma hegemonia dos interesses das elites regionais – não é
capaz de dar conta da complexidade e multiplicidade de relações que se estabeleciam a partir
da mesma.

CONCLUSÃO
A pesquisa encontra-se em estágio inicial e, por isso, as conclusões apresentadas tem
caráter incipiente. Além disso, embora as questões possam ser úteis para pensar o caso de outras
províncias, nossos resultados restringem-se, até o momento, à província do Rio Grande do Sul
entre 1846 e 1889.

A maioria dos presidentes era oriunda de outras regiões do Império, conquanto alguns
rio-grandenses tenham governado a província ao longo do período em foco. Essa prática de
nomeação intentava promover um executivo provincial que estivesse além das disputas entre
as elites regionais e governasse em consonância com as orientações enviadas da Corte.
Contudo, a nomeação ocorria, majoritariamente, dentro de um universo restrito composto por
políticos formados bacharéis em direito. Dessa forma, seria razoável supor que muitos dos
homens que estiveram à frente da presidência da província conhecessem membros das famílias
da elite rio-grandense pela formação comum em direito.

Essa convivência e os laços que ela ajudava a construir impediam o sucesso total dos
propósitos do governo central. As interações entre as diferentes esferas de poder eram muitas
vezes pautadas em questões circunstanciais, transparecendo a inexistência de um modelo único 106
de relacionamento com a sociedade e com as elites, o que não implica advogar a ausência de
9
um projeto em curso (MARTINS, 2012, p. 60). Assim, o funcionamento do Estado imperial em
todas as suas instâncias – políticas e administrativas, ainda que raramente constituíssem partes
completamente afastadas – precisa ser estudado não apenas pelos avanços, mas pelos limites
que são impostos à sua ação (PUJOL, 1991).

Por fim, a passagem pela presidência da província não parece ter sido condição
necessária para o acesso a postos-chave da elite política imperial. É possível que tenha sido
para alguns indivíduos, combinado com outros fatores tenha, mas, até o estágio atual da
pesquisa, o exercício do posto não demonstrou ter sido determinante para consecução de postos
mais altos.

FONTES
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Volume 4. Rio de Janeiro, 1898.

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s/d.

SENADO FEDERAL. Portal Senadores.


https://www.senado.gov.br/senadores/periodos/Imperio.shtm

TAUNAY, Alfredo D’Escragnolle Taunay. Visconde de. Memórias do Visconde de Taunay.


Edição de Sérgio Medeiros – São Paulo: Iluminuras, 2004.

VAMPRÉ, Spencer. Memórias para a história da Academia de São Paulo. São Paulo:
Saraiva e Cia., 1924. V. II.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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0
sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

CHARLE, Christophe. “A prosopografia ou biografia coletiva: balanço e perspectivas” In:


HEINZ, Flavio M. (org) Para uma outra história das elites. Ensaios de prosopografia e política.
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MARTINS, Maria Fernanda. A velha arte de governar: um estudo sobre política e elites a
partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007.

_______. Das racionalidades da História: o Império do Brasil em perspectiva teórico.


Almanack, n. 4, 2º sem. 2012, p. 53-61.

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LYNCH, Christian Edward Cyril. Modulando o tempo histórico: Bernardo Pereira de
Vasconcelos e o conceito de “regresso” no debate parlamentar brasileiro (1838-1840). In:
Almanack. Guarulhos. n. 10, p. 314-334, agosto de 2015.

SENA, Ernesto Cerveira de Sena. Além do eventual substituto. A trama política e os vice-
presidentes em Mato Grosso (1834-1857). Almanack. Guarulhos, n.04, p.75-90, 2º semestre
de 2012.

SLEMIAN, Andrea. O império das leis: Constituição e unidade nacional na formação do


Brasil (1822-1834). Tese (Doutorado). Universidade Federal de São Paulo. Programa de Pós-
Graduação em História Social. São Paulo. 2006.

VARGAS, Jonas M. Entre a Paróquia e a Corte: a elite política do Rio Grande do Sul (1850-
1889). Santa Maria: Ed. UFSM, 2010.

107
1
NOTAS INICIAIS DE PESQUISA SOBRE OS JUÍZES DE PAZ NA CÂMARA DE
RIO PARDO-RS*608

Michele de Oliveira Casali**

RESUMO

A criação da instituição do Juizado de Paz pode ser considerada uma das mudanças mais
importantes e emblemáticas na estrutura judiciária na primeira metade do século XIX, se
entendida como um elemento chave para apreender a dinâmica e as articulações políticas tanto
no plano institucionalizado da Câmara Municipal quanto no que diz respeito ao exterior desse
espaço. Nesse sentido, na tentativa de compreender as dimensões do exercício desse cargo, esse
artigo apresenta as considerações iniciais sobre os Juízes de Paz vinculados a Câmara Municipal
de Rio Pardo, Rio Grande do Sul, no período de 1828 a 1850, buscando explorar a
documentação cartorária e, sobretudo, os Livros Diversos/Notariais e processos judiciais tais
como sumária, executiva, traslado e ordinária, etc. Registra-se que essa pesquisa integra uma
pesquisa de mestrado vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sob orientação do Prof. Dr. Fábio Kühn e subsidiada
pela CAPES.
Palavras-chave: Poder Judiciário - Rio Pardo - Juizado de Paz
107
2
INTRODUÇÃO

Esse artigo apresenta as considerações inicias de pesquisa que teve por temática central
delinear quem foram os indivíduos que ocuparam o cargo de Juiz de Paz609 em Rio Pardo

608
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.

** Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(PPGH/UFRGS) e bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail:
michelelcasali@gmail.com

609
Com a Lei de 15 de outubro de 1827 foi criado o cargo de Juiz de Paz, bem como foi estabelecido que em cada
freguesia ou paróquia deveria haver um juiz e um respectivo suplente. Os juízes eram eleitos da mesma maneira e
tempo que os vereadores. O cargo era de caráter leigo e eletivo, ou seja, os indivíduos não precisavam possuir
formação profissional e eram eleitos pelos cidadãos da localidade. Suas funções tiveram muitas variações e até a
década de 1840 seus poderes se ampliaram gradativamente abrangendo desde a conciliação à ordem social e
pública
através de uma análise preliminar da documentação cartorária e alguns processos judiciais no
período entre 1828 a 1850.

A aproximação da nossa proposta com a História Social torna-se viável na medida em


que pensamos o nosso objeto de estudo numa escala reduzida de análise a fim de apreender as
relações sociais, o sujeito e as condicionantes estruturais; valores subjetivos que o indivíduo é
dotado desde sua experiência, escolhas e ações diante do universo de possibilidade no qual está
inserido. De fato, ao longo da segunda metade do século XX, a História Social assumiu
diferentes nuanças de significação diante das correntes historiográficas que se debruçaram
sobre essa abordagem e entre críticas e avanços, Hebe Castro considera uma “forma de
abordagem que prioriza a experiência humana e os processos de diferenciação e
individualização dos comportamentos e identidades coletivos – sociais- na explicação
histórica”(CASTRO,1997,p.55)

Evidencia-se que certos objetos de estudo são apenas perceptíveis em determinadas


escalas e não em outras. Sendo assim, em Rio Pardo, Rio Grande do Sul, entre os anos de 1828
a 1850, foram identificados 31 Juízes de Paz610, incluindo os suplentes. A coleta de dados que
se expressa na análise parcial do grupo dos Juízes de Paz se ancora nos pressupostos da
107
prosopografia611, utilizando os recursos do método para pensar as variáveis prioritárias 3
significativas a partir das informações acerca do indivíduo.

O traço comum de delimitação desse grupo é o fato de que, em algum momento de suas
trajetórias profissionais, ocuparam o cargo de Juiz de Paz. A intenção da investigação não é
mostrar que o cargo determine a prática social e político do indivíduo e sim examinar a dinâmica
política nas relações internas de poder levando em consideração as dimensões e possibilidades
do exercício do cargo em uma realidade política local. E, para tanto, para não ruir em
determinações imperantes com excessos de estruturalismo, partiu-se para uma um princípio
mais humilde, a observação do individuo. (IMÍZCOZ,2004).

610
Conforme o Livro Posse e Juramentos da Câmara Municipal de Rio Pardo nº 02 – 1811/1847, nº03 – 1811-
1838, nº04 – 1820/1824, nº 05- 1830/184?, nº06 – 1847 -1874.
611
Segundo Christophe Charle (2006) o método busca “definir uma população a partir de um ou vários critérios
e estabelecer, a partir dela, um questionário biográfico cujos diferentes critérios e variáveis servirão à descrição de
sua dinâmica social, privada, pública, ou mesmo cultural ideológica ou política”(p.41)
Em suma, da totalidade do grupo já foram coletados 14 inventários post-mortem, ou
seja, 45,1% do grupo total. Além disso, fontes judiciais bem como batismos e registros
matrimoniais. Contudo, nesse artigo, escolhemos nos debruçar nos indivíduos que foi possível
averiguar seus inventários post-mortem, ou seja, uma fração do grupo. Corremos o risco de
sermos sucintos e por vezes descritivos uma vez que essa reflexão é uma análise preliminar
baseado em parte da documentação coletada nos arquivos e da historiografia.

Capitulo I – Uma leitura dos Juízes de Paz através das fontes

A investigação iniciou-se com a busca, leitura e análise da documentação cartorária -


inventários post-mortem e testamentos - nos quais podemos extrair importantes dados
quantitativos e qualitativos que podem enriquecer o entendimento do nosso objeto de estudo.
O propósito do inventário, primordialmente, era quantificar os bens móveis e imóveis, dívidas
ativas e passivas do falecido; apresentando o cálculo do montemór – valor total dos bens e
dívidas – e o montemenor, montante descontando as dívidas; o processo da partilha entre os
herdeiros e beneficiados.(SAMARA;DIAS,2005,p.48-49)

Atento a esse tipo de processo judicial, os inventários post-mortem exprimem, 107


primeiramente, os desejos pessoais e familiares do inventariado, sendo a partilha dos bens a
motivação mais elementar, assim, cada inventário apresenta uma história particular com
4
abundância ou omissão de dados.(VARGAS,2013)

Os inventários post-mortem fornecem informações que contribuem para traçar perfis


econômico, social e cultural do indivíduo. Os dados compilados dessa fonte contemplam
variáveis indispensáveis para a aplicação do método prosopográfico, embora se incline a um
caráter mais econômico a partir do arrolamento dos bens. a fonte apresenta questões primordiais
para desvendar os vínculos familiares, níveis de riqueza e relações de negócios.

Juiz de Paz Valor dos Valor bens Nº de Valor dos Animais


bens de raiz escravos escravos

Antônio
Francisco 5:903$500 942$000 6 3:700$000 616$000
de Moraes

Antônio
Simões 72:366$041 22:300$000 6 2:950$000 17:677$000
Pires
Bento
Rodrigues 2:929$104 297$663 6 1:800$000 327$000
Seixas

Francisco
Antônio de 102:856$442 28$600 35:318$000
Borba ---- ---

Francisco
8:912$800
Gomes da
5:620$000 5 2:900$000 ---
Silva
Guimaraens

Francisco
79:159$724 28:975$000 29 15:970$000 2:652$000
Pinto Porto

Joaquim
José da 633$000 400$000 --- --- ---
Silveira

José
Antonio 42:006$514 5:780$000 13 6:900$000 5:213$600
Cassão

José Ignácio
5:900$000 3:100$000 8 2:800$000
da Silveira

Lourenço
Júnior de 13:650$000 3:000$000 --- --- --- 107
5
Castro

Manoel José
13:200$605 5:900$000 13 5:231$000 ---
da Silva

Thimóteo
José da 4:421$880 2:000$000 7 2:532$000 ---
Cunha

Os valores demonstrados acima não representam os únicos bens deixados, existem ainda
bens móveis, prata, ações em empresas, ouro, dinheiro, dívidas ativas e passivas, etc. Não
obstante, é necessário pontuar que certamente houve variações de quantidade e valores dos bens
ao longo da vida do indivíduo até a sua morte, já que como foi dito o inventário captura apenas
os bens no fim da vida. Como ressalta Flávio Heinz (2006) ao adotar o enfoque metodológico
prosopográfico estaremos utilizando um recurso que nos permite acessar apenas fragmentos da
realidade, ou seja, deve representar um momento da operação historiográfica, pois o historiador
não pode esperar recuperar a totalidade dos eventos.
Para apresentar as análises individuais, iniciamos por Antônio Francisco de Moraes.
Conforme seu inventário datado em 1856, era casado com Dona Clemencia Maria da
Conceição. Até esse momento, constatamos que assumiu o cargo de Juiz de Paz em Rio Pardo
e Cruz Alta, nos anos de 1833 e 1846, respectivamente. Seu montemór foi avaliado em
5:903$500 mil réis e possuía 6 escravos, sendo que esses representavam 3:700$000 réis do
patrimônio. Entre os bens deixados foi descrito cem braças de terras na Costa da Serra no
Distrito de Couto, casa de moradia, três carretas, atafona e pertences. A produção de animais
era pouco significativa, somando apenas 616$000 réis, possuindo bois mansos atafoneiros, bois
mansos, vacas, terneiros, cavalos e éguas xucras.

O Sargento-mor Antônio Simões Pires, filho do açoriano Mateus Simões Pires


importante estancieiro e comerciante do período612, designado para cargos da Câmara
Municipal tais como Juiz Almotacé, vereador, Juiz Ordinário, Juiz de Fora e Juiz de Paz em
1833. Antônio Simões Pires deu prosseguimento aos negócios de seu pai e alargou suas relações
sociais e políticas em Rio Pardo.

Casou em 1789 com Maria do Carmo Violante de Queiroz e Vasconcelos, natural da


terra, filha do Tenente de Dragões Alexandre Luiz de Queiroz e Vasconcelos e Maria Eulália
107
Pereira Pinto, conceituada família em Rio Pardo613. O montemór equivale a 72:366$041 mil 6
réis, possuindo 6 escravos. A quantidade de animais que criou em suas propriedades é
expressiva: 157 reses de criar mansos, 72 reses mansos, 1740 reses xucras, 22 bois mansos, 500
ovelhas, etc. Além disso, entre suas propriedades constavam casas avaliadas em 1:200$00 mil
réis, uma fazenda em Capivari com uma lagoa, três quartos de extensão de campo restante e
benfeitorias no valor de 7:000$000 mil réis, metade de uma fazenda em Camaquã e do campo
da sesmaria por 11:000$000 mil réis e, por último metade do campo da Fazenda de Quaraí de
6:000$000 mil réis, além de prata, móveis, dotes e dívidas.

612
Para mais informações: PETIZ, Silmei. Buscando a liberdade: as fugas de escravos na Província de São
Pedro para o além-fronteira (1815-1851). Dissertação de Mestrado, UFRGS, 2001.
613
Para mais informações a respeito da família Simões Pires: SCHMACHTENBERG, Ricardo. “A Arte de
Governar”: Redes e relações familiares entre os juízes almotacés na Câmara Municipal de Rio Pardo/RS,
1811 – c.1830. 404 f. Tese (Doutorado em História). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2012.
O inventário post-mortem de Bento Rodrigues Seixas data de 1842. Em 1811, seu nome
já aparecia no primeiro Código de Postura e no ano seguinte era Segundo Tabelião do Público
Judicial e Notas.(SOUSA,1998) Ao longo de sua vida, ocupou cargos na almotaçaria,
Procurador da Câmara, ajudante do Terço de Ordenanças (SCHMACHTENBERG, 2012,
p.225) e sendo Juiz de Paz em 1829. Sua primeira esposa foi Dona Alexandrina de Mello
Azevedo Coutinho cujo pai foi o Tenente Coronel Alexandre José de Azevedo Leão Coutinho.
Consta que nasceu na Bahia, teve cinco filhos e sua segunda esposa foi Dona Isabel Josefina
Carneiro da Fontoura. Em seu inventário, ficou apontado que o monte principal foi de
2:929$000 réis, possuindo 6 escravos, 78 reses de criar, 2 bois mansos, campos, chácara,
carreta, roda de fazer farinha, etc. Apresentou ainda mais dívidas passivas do que ativas. De
acordo com a bibliografia, Bento Rodrigues Seixas, era comerciante e possuidor de loja aberta
diversos gêneros e fazendas. .(SOUSA,1998)

O Tenente-Coronel da Guarda Nacional Francisco Antônio de Borba constituiu um


montemór de 102:852$442 mil réis, um dos maiores valores da nossa tabela. Foi casado com
Dona Maurícia Eulália Bandeira de Borba, filha de Gaspar Pinto Bandeira, um dos homens
mais proeminentes da região. Com bens de raiz de valor de 28:600$000 mil réis, possuía casas, 107
chácaras e campos na Fazenda da Santa Clara de Capivari. Não há descrição de escravos embora
7
haja uma grande quantidade de criação de animais em suas propriedades, somando 35:318$000
mil réis. Isto é, uma parte muito elevada de seu patrimônio. Curioso, pois, em um processo-
crime no ano de 1845, aparece um escravo de sua propriedade, o preto Manoel, alfaiate, acusado
de assassinar o Sargento Antônio José da Silva. E, sem provas para acusá-lo uma vez que o
preto Manoel afirma que no momento da dita morte estava na “casa do seu senhor”.

Aparecem arrolados ainda ações na Companhia Flurial, Companhia Jacuí, Companhia


Fabril, Companhia Fiação e Tecidos Porto-Alegrenses, totalizando 7:600$000 mil réis da
totalidade dos seus bens. Nesse sentido, não surpreende que conste em dinheiro cerca
28:278$952 mil réis entre a descrição de seus bens deixados.

O Alferes Francisco Gomes da Silva Guimarães, natural de Braga, era um conhecido


comerciante em Rio Pardo. Casado com Dona Ana Bernadina da Conceição Jacques, filha de
João Guilherme Jacques, outro importante comerciante. Francisco da Silva Guimarães é pai de
João Luis Gomes da Silva, importante comerciante de gado na região de Rio Pardo na segunda
metade do século XIX, no qual este travou um conflito com José Joaquim de Andrade Neves.

Foi eleito Juiz de Paz em Rio Pardo no ano de 1850, sendo que anteriormente, ao longo
da primeira metade do século XIX, assumiu cargos como Juiz Almotacé, Vereador, Procurador
interino e Juiz de Paz em Cruz Alta. Seu filho Tenente Coronel João Luís Gomes e as suas
demais filhas também casadas com militares constituem um exemplo de que o matrimônio pode
contribuir para o alargamento de laços sociais.614 Embora o seu montemór de 8:912$800 réis
não tenha o impacto de seu status no meio comercial, possuía chácaras em Rio Pardo e Arroio
das Pedras, Casas na Rua Brasil e na Rua Santo Ângelo, as principais ruas da Vila. Detinha 5
escravos e no arrolamento do inventário fica nítida as dívidas ativas envolvendo gêneros
vendidos, aluguéis das casas, entre outros.

Em seguida, Sargento-mór Francisco Pinto Porto se destaca nas fontes e nas obras
historiográficas devido a sua relevância local. Foi eleito Juiz de Paz em 1832 na Vila de Rio
Pardo e, como dito acima, isso não impedia que se inserissem concomitantemente em outros
cargos da Câmara Municipal. Nascido em Portugal, era membro da elite local e ocupou “postos
de sargento-mor, o número dois da hierarquia das ordenanças e capitão-mor, o número um da
107
hierarquia das ordenanças, no regimento militar da vila”. (SCHMACHTENBERG,2012,p.88) 8
Seu montemór equivale a 79:159$724 mil réis e possuía um campo de duas léguas que
valia 10:000$000 mil réis, além de sesmarias e outros campos. Os aspectos mais marcantes de
seu inventário são a quantidade de escravos de um plantel de 29 escravos e a produção de
animais. Em seu inventário consta que em vida, alguns herdeiros usufruíam de seus bens, como
o Capitão João Antônio Gonçalves Cassão, por exemplo. Em seu poder estava Fazenda situada
na costa do Rio Camaquã, partes de terras e mais campos; escravos e animais.

Possuía um plantel de 29 escravos, um número significativo. Na busca por fontes


institucionais nos arquivos, encontramos dois registros no livro notarial, duas cartas de
liberdades da escrava Margarida em 1842 e a escrava crioula Maria Juliana e sua filha parda

614
Ver as suas redes familiares: (SCHMACHTENBERG, 2012).
Maria Tereza que pelos “bons serviços que me prestam” gozem da liberdade após o falecimento
deste.

Francisco Pinto Porto era reconhecido em toda a Capitania. Ele foi casado com a Dona
Luciana Francisco de Souza viúva do Tenente Francisco Antônio Gonçalves, tendo como
enteado o estancieiro Capitão João Antônio Gonçalves Cassão. Este último foi eleito Juiz de
Paz em 1838 e era casado com Dona Luciana Brigida de Carvalho. Seguindo seu inventário,
fica descrito um monte principal de 42:006$514 réis, possuindo 12 escravos. Entre seus bens
de raiz, existiam campos em Camaquã, morada de casas na Rua Santo Ângelo e chácara no
distrito de Cruz Alta somando 5:7840$000 mil réis. Além de possuir uma quantidade
significativa de criação de animais.

Entre os bens do Cirurgião Joaquim José da Silveira, consta uma morada de casas com
seus terrenos situadas na Rua do Paço em Rio Pardo no valor de 400$000, sendo o restante em
móveis de casa. Mesmo contendo um montemór de baixo valor, foi eleito Juiz de Paz em 1849
e, não obstante, ocupou cargos como Promotor das Guardas Nacionais, Juiz Municipal interino,
vereador, Promotor Público e Médico da Câmara Municipal. Verifica-se uma trajetória bastante
interessante vinculada a Câmara; demonstrando, singelamente, que riqueza não está
107
necessariamente determinada a cargos públicos. No rol das fontes verificadas, conferimos um 9
traslado no qual Joaquim José da Silveira assina como tabelião, fazendo uma devassa para o
Tribunal da Justiça devido ao arrombamento da cadeia da Vila de Rio Pardo no ano de 1828,
onde 1dez escravos fugiram.

O Alferes Manoel José da Silva, eleito Juiz de Paz em 1833, cujo montemór foi de
13:200$605 mil réis, em seu inventário se destaca a criação de animais entre bois, vacas, cavalos
e reses de criar. Era proprietário de Campo da Serra Geral de Rio Pardo e em Butucaray no qual
continha 13 escravos. Percebe-se que nas funções dos escravos afigura-se roceiro, campeiro,
sapateiro e ordinário. Compõem ainda no arrolamento dos bens itens como o ferro, cobre, prata,
louças e pedras.

O Capitão José Ignácio da Silveira foi comerciante em Rio Pardo e eleito Juiz de Paz no
ano de 1836. Do seu montemór 5:900$000 mil réis, a maior parte refere-se aos bens de raiz
3:100$000 mil réis apreendendo um terreno no Arroio dos Ratos, um galpão de Charqueada
com atafona, armazém e uma casa. O valor dos 8 escravos descritos no inventário perfaz um
valor de 2:800$000 mil réis.

O Major Lourenço Júnior de Castro aparece como outro nome que é pouco mencionado
na bibliografia. Natural de Portugal e casado com Dona Florinda Rosa de Castro, ocupou cargos
camarários, além de Juiz de Paz em Rio Pardo, de subdelegado e Promotor Público de Porto
Alegre. O magistrado deixou como bens uma sesmaria de terras no Distrito de Cahy e um
quinhão hereditário na Chácara situada na Freguesia de Viamão só que esta ainda não tinha sido
avaliada. Em dinheiro, foi deixado 1:400$000 mil réis.

Entre a documentação encontrada, Lourenço Júnior de Castro aparece atuando em duas


ações judiciais do tipo traslado e sumária. O primeiro processo ocorrido em 1828, como
Promotor Público de Porto Alegre acusando quatro vereadores da Câmara Municipal por violar
as ordens da Província de São Pedro. O segundo caso, data do ano de 1835, atuando ainda como
Promotor Público acusa Joaquim José da Silva Bastos pela introdução clandestina de pólvora
na Província de São Pedro, descoberta na Alfândega de Rio Pardo. A denúncia não apenas
recaiu pelo crime de contrabando, mas, sobretudo pelo fato de Bastos ser conivente com o
“partido insurgente”, acusando-o que essa remessa de pólvora era em prol de favorecimento
108
aos membros da Revolução Farroupilha. 0
Thimoteo José da Cunha foi eleito Juiz de Paz por duas vezes, nos anos de 1842 e 1846.
Seu montemór corresponde a 4:421$880 mil réis, sendo proprietário de uma morada de casas
na Rua Santo Ângelo e dois terrenos. A criação de animais se restringiu a 7 bois mansos, 5 reses
de criar, 40 éguas xucras, touro, etc. O que chama atenção são as dívidas que contabilizam
1:418$544 mil réis que engloba crédito, rifas e outros. Nesse caso torna-se difícil afirmar, a
partir dos poucos indícios do inventário, que às vezes, qual seria a principal ocupação desse
homem.

Até aqui foi possível perceber a presença marcante das patentes militares, produção
agrícola e o comércio na vida desses homens. Os bens de maior peso no patrimônio foram as
propriedades de terras, animais e escravos. Devido aos poucos inventários encontrados e a
precocidade das informações, preferimos não estabelecer uma média de valores principais dos
inventários. Apenas 4 inventários apresentam valores acima de 40 mil réis, sendo o restante
destoantes desse valor. Esse fato nos levar a pensar nas diferenças de perfis econômicos ao
longo das décadas de 1830 e 1840 e sua consequente mudança de comportamento no universo
político.

Existem dois outros inventários que não foram colocados na tabela por possuírem
apenas um bem ou até mesmo nada para ser descrito. São os casos de João Antônio Nunes e
José Antônio Loureiro. O primeiro foi casado com Dona Antônia Maria Neves e foi eleito Juiz
de Paz, duas vezes, em 1842 e 1849. Consta ainda que ele foi Fiscal da Câmara em 1844. O
inventário data do ano de 1900, constando que o casal deixou bens só que até aquele momento
os herdeiros não tinham feito nenhum requerimento para a distribuição dos bens. No inventário
aparece o seu genro José Bernardes da Silveira como inventariante e responsável para cumprir
as demandas do inventário. Contudo, apenas aparecem os autos dos inventários e nenhum
arrolamento de bens.

Quanto ao segundo, José Antonio Loureiro foi eleito Juiz de Paz em 1844, aparecendo,
anteriormente a essa data, como Fiscal e Vereador da Câmara de Rio Pardo. Casado com Maria
Elesia Cirne Loureiro e possuindo 5 filhos, seu inventário apresenta unicamente uma casa na
Rua General Andrade Neves e que foi adquirida após o seu falecimento, em razão da precária
situação a casa foi doada por diversos amigos de seu marido.
108
Ainda que brevemente, tentarei realizar um contraponto com o trabalho de Joelma
1
Nascimento (2010) no qual com objetivos próximos a nossa investigação, estudou os indivíduos
eleitos para Juiz de Paz em Mariana, Minas Gerais, entre 1827 a 1841, tendo como foco a
instauração e as funções do cargo, aprofundando mais especificamente o papel do Juiz de Paz
nas eleições locais. Realizando um extenso trabalho com fontes das Atas de eleições,
documentação cartorial e listas nominativas a fim de entender quem eram esses homens que
ocuparam o cargo de Juiz de Paz e o que era preciso de bens materiais para alcançar esse posto.

O Termo de Mariana continha 14 freguesias, totalizando ao todo mais de quarenta e seis


distritos. Totalizando entre 1829 a 1841 foram realizadas 67 eleições, 496 homens votados e
125 eleitos. Para uma melhor delimitação, a autora optou por estudar os eleitos do ano de 1832
devido ao grande número de votados. Assim, o grupo ficou em 52 homens e com o
levantamento e cruzamento das fontes cartoriais traçou algumas considerações sobre o perfil
econômico desses homens.
Quando nos deparamos com faixas de fortuna, usualmente, estabelece-se comparações
com outras fortunas de outros grupos para uma análise de hierarquização econômico – social.
Desse modo, para o grupo estudado por Joelma Nascimento, constatou-se que 19 inventários
(36,5%) apresentaram a faixa de fortuna de até 6:000$000 mil réis, considerada pequena. Do
total, 12 inventários (23,1%) apresentaram fortunas médias de 6 a 12:000$000 mil réis e 11
inventários (21,2%) de fortunas grandes de 12 a 32:000$000 mil réis e, por fim, 10 inventários
(19,2) foram descritas como maiores fortunas sendo acima de 32:000$000 mil réis615. Claro que
o grupo estudado pela autora contém mais indivíduos comparado ao nosso. Outro fator de
influência são os arquivos de Minas Gerais que possibilitam uma maior disponibilidade e
abundância de documentação.

Pautando-se nesse quadro de valores, o nosso grupo de Juízes de Paz contabilizaria com
4 inventários de pequena fortuna, 2 inventários com média fortuna, 1 inventário considerada de
grande fortuna e 5 inventários com maiores fortunas. Joelma Nascimento conclui que os
homens que assumiam esse cargo, no caso de Mariana, eram homens não muito jovens, chefes
de família e proprietários de terras, além das dívidas ativas e produção de animais obterem um
número elevado na descrição de seus bens. 108
O cargo de Juiz de Paz não era remunerado e, consequentemente, se supõe que os 2
indivíduos eleitos teriam de aliar uma ocupação rentável à magistratura. Em relação a ocupação,
a partir dos indícios até esse momento coletados acerca da totalidade do grupo, podemos inferir
que 15 homens, cerca de 41%, exerceram alguma patente militar, alferes, capitão, sargento,
cabo de dragões, etc.616 E, de acordo, com o Almanaque da Vila de Porto Alegre três homens

615
A autora se baseou nos trabalhos Marcos Andrade sobre a vila Campanha da Princesa na Comarca do Rio das
Mortes. ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites Regionais e a formação do Estado imperial brasileiro: Minas
Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008; e o trabalho de Kátia
Mattoso para a Bahia do século XIX onde poderia ser considerado um homem rico aquele que possuísse mais de
10:000$000 (dez contos de réis). MATTOSO, Katia M.de Queirós Mattoso. Bahia, século XIX: uma província no
império. 2a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
616
Ainda não foi possível realizar a distinção das patentes militares uma vez que quando enunciados, não
apresentam mais informações sobre a ordenança ou linha de tropaEstamos cientes de que no século XVII “eram
organizadas em três linhas ou níveis: 1ª Linha, as Tropas Regulares que eram Tropas Pagas; 2ª Linha, as Tropas
Auxiliares (depois de 1796, Milícias); e na 3ª Linha as Tropas de Ordenanças.. No século XIX, em 1824, essas
tropas foram modificadas e a partir daí divididas em 1ª Linha, Exército;2ª Linha, a 2ª Linha do Exército (em 1831
foi transformada em Guarda Nacional); e a 3ª Linha, as Ordenanças que depois de 1831 foi convertida na Guarda
Municipal Permanente.” (NASCIMENTO, 2010,p.998)
exerciam atividades comerciais, constatamos os nomes de Antônio Simões Pires, Manoel
Antônio Pereira Guimarães e Francisco Pinto Porto.

Em suma, buscando no Livro de Posses e Juramentos outros cargos da Câmara


Municipal que esses indivíduos ocuparam estão: Juiz de Almotacé, Juiz de Órfãos, Juiz
Ordinário, Juiz de Fora, Juiz Municipal Interino, Vereador, Promotor Público, Subdelegado,
Fiscal, Escrivão, tabelião, Procurador do Conselho, Cirurgião e Juiz de Paz em outros distritos.
Para apenas 5 indivíduos desse grupo não possuímos informações sobre as nomeações de cargos
camarários, além do cargo de Juiz de Paz. Não caberá aqui, detalhar as nomeações camarários
de cada indivíduo do grupo, contudo, levantamos as seguintes questões: será o Juiz de Paz o
início ou o fim de uma carreira? O cargo é apenas um trampolim para outros cargos para o
alcance de prestígio social?

Assim, como se observa o retrato do grupo é muito heterogêneo. Aos poucos vai ficando
mais claro da possibilidade da existência de um “núcleo” de pessoas que circulavam entre os
cargos da Câmara e que um cidadão de posses aliado as relações sociais tinham um peso
significativo para essas nomeações. Se o cidadão não fosse notório mas reconhecido pelo
eleitorado local, este teria chances de ser eleito Juiz de Paz? Ou possuir um patrimônio elevado
108
seria um requisito essencial para o cargo? 3
CONCLUSÃO

Tendo em vista que dos 31 indivíduos identificados, foi possível ter contato para 14
inventários, a partir da leitura e breve análise dos inventários post-mortem nos deparamos que
valores significativos vinham das propriedades, escravos e criação de animais. Esse fato pode
indicar que além de possuírem uma trajetória intimamente ligada a cargos burocráticos da
Câmara, esses possuíram ocupações relacionados ao comércio e propriedades de terras..

Entretanto, verificaram-se indivíduos que não acumulou muitos bens ao longo de suas
vidas e isso não desmerece sua atuação no meio social no qual estava inserido. Podemos pensar
que esses casos mostram uma mudança de perfil de indivíduos que ocuparam o cargo de Juiz
de Paz ao longo das décadas estudadas. É importante lembrarmos que para ocupar o cargo de
Juiz de Paz era necessário ser eleito pela população (cidadãos aptos a votar) e, de certa forma,
tal fato demonstra representatividade uma vez que esse jogo de eleições demandava ações
políticas constantes aliadas a vínculos pessoais.

Como alerta Lawrence Stone (2010) é importante frisar que apresentamos apenas uma
amostra e nossa intuição não é tomar a parte pelo todo uma vez que não foi possível apresentar
informações para todos os membros do grupo. Como foi dito, estamos em processo de coleta
dos dados e busca de novas fontes para confrontamento das informações. Dessa forma,
tentaremos aprofundar e ampliar a análise dessas fontes, tendo em vista as potencialidades e limites
do método prosopográfico, tendo em mente de não reduzir ou dicotomizar a realidade, mas sim uma
forma de organizar o parcial e o total sob um mesmo ponto de vista.

Fontes

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – APERS


Inventário Post-mortem de Bento Rodrigues Seixas. nº 71, maço 2, 1842
Inventário Post-mortem do Capitão-mor Francisco Pinto Porto. nº 71, maço 26, 1856.
Inventário Post-mortem de Francisco Antônio de Borba. Processo nº330, maço 8,1894.
Inventário Post-mortem de Antônio Simões Pires. Processo nº330, maço 26,1856. 108
Inventário Post-mortem de Manoel José da Silva. Processo nº 470, maço 20, 1835.
4
Inventário Post-mortem de Antônio Francisco de Moraes. Processo nº 588, maço 26,1856.
Inventário Post-mortem de José Ignácio da Silveira. Processo nº 36, maço 2, 1852.
Inventário Post-mortem de Francisco Gomes da Silva Guimarães. Processo nº 112, maço
3,1855.
Inventário Post-mortem de Thimoteo José da Cunha . Processo nº 95, maço 3,1851.
Inventário Post-mortem de João Antônio Nunes. Processo nº 184, maço 6,1899.
Inventário Post-mortem de José Antônio Loureiro. Processo nº 1444, maço 62,1900.
Inventário Post-mortem de Lourenço Júnior de Castro. Processo nº 5619, maço 166, 1855.
Inventário Post-mortem de Joaquim José da Silveira. Processo nº 204, maço 5, 1872.
Inventário Post-mortem de José Antônio Cassão. Processo nº 130, maço 4, 1858.
Processo Judicial de Sumária. Lourenço Júnior de Castro. Processo s/nº,maço 23,1839.
Processo Judicial de Sumária. Lourenço Júnior de Castro. Processo nº 3841,maço 119 ,1835.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. Pp. 45-59
CHARLE, Christophe. A prosopografia ou biografia coletiva: balanços e perspectivas. In:
HEINZ, Flavio M, (org). Por uma outra história das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV,2006.
HEINZ, Flavio. O historiador e as elites – à guisa de introdução. In: HEINZ, Flavio M, (org).
Por uma outra história das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
SAMARA, E. M.; DIAS, Madalena Marques ; BIVAR, Vanessa dos Santos Bodstein.
Paleografia e fontes do período colonial brasileiro. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP,
2005. v. 1.
SCHMACHTENBERG, Ricardo. “A Arte de Governar”: Redes e relações familiares entre
os juízes almotacés na Câmara Municipal de Rio Pardo/RS, 1811 – c.1830. 404 f. Tese
(Doutorado em História). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2012.
SOUSA, Sabrina Silva de. Comerciantes em Rio Pardo-RS: atuações comerciais e relações
sociais (1800-1835). Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em História,
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 1998.
STONE, Lawrence. Prosopografia. Revista de Sociologia e Política, v. 19, n. 39, jun. 2011.
VARGAS, Jonas M.. Uma fonte, muitas possibilidades: as relações sociais por trás dos
108
inventários post-mortem. In: XI Mostra de pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio
Grande do Sul, 2013, Porto Alegre. Produzindo História a partir de fontes primárias. Porto
5
Alegre: CORAG, 2013. v. 1. pp. 155-180.
CONFLITOS AGRÁRIOS NA JUSTIÇA: LITÍGIOS EM SOLEDADE E SEUS
SIGNIFICADOS (1857-1927)617∗
Helen Scorsatto Ortiz618∗∗

RESUMO

No Brasil, forma geral, a luta pela terra é processo social marcado pelo poder do mais forte,
pela violência, pelos expedientes ilícitos, pelas usurpações, pelas expulsões e pelas resistências.
No município de Soledade, norte do Rio Grande do Sul, esse processo não foi diferente, como
é possível perceber através da análise dos conflitos agrários que chegaram à Justiça durante a
segunda metade do Oitocentos e a Primeira República. Com base nessa documentação, que
inclui embargos, esbulhos e autos de manutenção e restituição de posse, interessa-nos
caracterizar e discutir as disputas pela terra em Soledade e seus significados. É importante
atentar para as motivações dos processos, seus resultados, os sujeitos envolvidos e suas reações.
Dessa forma, é possível compreender as tensões, os costumes, as noções de direito à terra e o
jogo de forças e de interesses praticados naquela sociedade rural. O domínio da terra, a
manutenção e a ampliação das fronteiras e divisas foram fortemente caracterizados pela
expropriação, pela usurpação, pela violência e pelas fraudes.

Palavras-chave: Terra; conflito; Justiça. 108


Depois da morte do Mendonça, derrubei a cerca, naturalmente, e levei-a para além
do ponto em que estava no tempo de Salustiano Padilha. Houvereclamações.
6
- Minhas senhoras, seu Mendonça pintou o diabo enquanto viveu. Mas agora é isso.
E quem não gostar, paciência, vá à justiça.

Como a justiça era cara, não foram à justiça. E eu, o caminho aplainado, invadi a
terra do Fidélis, paralítico de um braço, e a dos Gama, que pandengavam no Recife,
estudando direito. Respeitei o engenho do dr.Magalhães, juiz.

Violências miúdas passaram despercebidas. As questões mais sérias foram ganhas


no foro, graças às chicanas de João Nogueira. (RAMOS, 2012, p. 49)

617
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria. Esse
artigo é parte de minha tese de doutorado intitulada Costumes e conflitos: a luta pela terra no norte do Rio Grande
do Sul (Soledade 1857-1927), defendida na Pontifícia Universidade Católica do Rio rande do Sul (PUCRS), em
agosto de 2014.
618
Doutora em História pela PUCRS. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio
Grande do Sul (IFRS), campus Porto Alegre. E-mail: helen.scortiz@gmail.com.
O fragmento acima é uma passagem da obra literária São Bernardo, de autoria do grande
escritor alagoano Graciliano Ramos. Publicada originalmente em 1934, conta a história de
Paulo Honório, homem simples, egoísta e ambicioso que, por meios legais e fraudulentos, se
torna um grande fazendeiro do sertão de Alagoas. Embora seja um romance e, portanto, sem
obrigação alguma com a narrativa de fatos reais, São Bernardo tem muito das práticas, dos
costumes e do jogo de poder vividos no universo rural brasileiro nos séculos 19, 20 e ainda
nesse, 21.

De fato, o excerto poderia ser facilmente reconhecido como um relato de


acontecimentos da antiga Soledade, por exemplo. Assim como no romance, os processos
judiciais de disputa pela terra que consultamos estão repletos de casos de briga por divisas, de
apropriação ilegal, de coerção, de pressão, de violência, de estratégias de respeito/desrespeito
relativas aos pares e aos demais. Eles mostram também, de forma geral, o acesso restrito e
seletivo à Justiça e seu custo significativo.

Em fevereiro de 1892, no 2º distrito de Soledade, o advogado Francisco Prestes discorria


em ação de força nova: o campo forense é “teatro de incômodos e despesas, mesmo para a
inocência”.619 Em 1903, Joaquim Soares da Silva, “velho e pobríssimo”, que “vive do seu
108
trabalho de lavoura”, dono de uma pequena parte de campo e casa de tábuas, dizia desistir da 7
ação de embargos proposta contra o vizinho turbador e esbulhador por sua “absoluta falta de
recursos”.620 No processo, já havia gasto “tudo quanto possível, inclusive um pequeno trecho
da propriedade, que vendera a Antônio Dinarte Guedes”.621 Como dizia Graciliano Ramos, ou
melhor, Paulo Honório: a Justiça era cara.

Referentes ao antigo município de Soledade, localizado no norte do Rio Grande do Sul,


para o período de 1857 a 1927, encontramos e analisamos 143 autos cíveis cujo foco central da
disputa era a terra (sua posse/propriedade, extensão, legitimação ou uso/exploração). A
tipologia desses processos é variada e se diversificou ao longo das décadas. São ações cíveis de

619
AHR – ação de força nova: autora Felisbina Márcia Borges e réus Francisco Correa Taborda e sua mulher
nº5/M17/1891, fl. 29. O Arquivo Histórico Regional (AHR) localiza-se no município de Passo Fundo/RS e tem a
guarda de inúmeras fontes judiciárias referentes a Soledade.
620
AHR – assistência judiciária: impetrante Joaquim Soares da Silva, 205/1903, fl.3.
621
Loc. cit.
embargo, de esbulho, de despejo, de obra nova, de força nova, de força velha, de preceito
cominatório, de manutenção/restituição/turbação/reivindicação de posse, etc.

Expressão de relações sociais concretas, esse conjunto de disputas judiciais mostra a


intensidade das divergências acerca da questão territorial e da legalidade das ocupações. Revela
também o grau de ameaça às posses e propriedades na região. O cenário não é estático, senão
de intensos movimentos, desavenças e (re)acomodações entre sujeitos com perspectivas
diferenciadas, também no tocante ao direito, e que, em maior ou menor grau, definiram rumos
de ocupação/apropriação/expropriação na região. Esses sujeitos não podem ser vistos apenas
como partes de uma peça processual (sejam como autores, sejam como réus), mas membros de
uma complexa sociedade rural, marcada pela diferença étnica, cultural e econômica, apontada
nos capítulos precedentes.

Dentre essa quase centena e meia de autos cíveis pesquisados, é nítido o predomínio das
ações caracterizadas como possessórias – “próprias para a defesa da posse provada” (SILVA,
2005, p.43).622 Elas têm “a precípua finalidade de correr em proteção do possuidor da coisa
contra os atos de violência ou de esbulho, que a atinjam ou a possam atingir”, ou seja, não é
necessário que se tenham efetivado o esbulho ou a turbação (SILVA, 2005, p.43). Basta que,
108
“por justo receio, se encontre na iminência de uma violência” (SILVA, 2005, p.43). No intuito 8
de manter-se na posse ou obter sua restituição, “os atos de defesa ou desforço legal, que se
efetivam pela ação possessória, devem ser imediatos” (SILVA, 2005, p.43). Propô-la requeria
provar a posse e, dependendo do caso, provar também o esbulho, ou a turbação, ou a ameaça
temida.

Embargo aos trabalhos

Embora a prova da posse fosse teoricamente indispensável, verificamos que, na prática,


em muitos casos ela não ocorreu. Comumente, tal fato não impedia o prosseguimento do
processo, tampouco a vitória do(s) autor(es). Ao contrário, não deve ter sido raro que as próprias
ações possessórias abrissem caminho à formalização da propriedade, assim como ocorria com

622
Segundo a mesma fonte são ações possessórias: manutenção de posse (também denominada força turbativa,
força nova, preceito cominatório, interdito de manutenção); reintegração de posse (também denominada esbulho,
interdito de reintegração, força espoliativa, restituição de posse); interdito proibitório.
áreas de terras declaradas em inventários post-mortem. A função jurídica de um e outro
instrumento não estava ligada a essa formalização, mas a aprovação do inventário e o ganho de
causa na ação judicial possessória dava ao(s) autor(es) reconhecimento da posse sobre a área
em questão. Dessa forma, frente a possíveis ameaças de propriedade, sentenças favoráveis
poderiam servir como provas de domínio (Cf. CHRISTILLINO, 2011, p.87-88).

Nas disputas judiciais, além das possessórias, encontramos com freqüência processos
de embargo, de despejo, de obra nova, de reivindicação de posse, etc. Com os embargos (ou
arresto), a intenção era “impedir que outrem realize as obras prejudiciais à sua propriedade ou
aos seus direitos de servidão” (SILVA, 2005, p. 23). Embargos tiveram ampla aplicação em
diferentes regiões do mundo rural brasileiro, talvez por garantir a imediata suspensão dos atos
ameaçadores dos réus. Comumente, as ações detonadoras dos pedidos de embargos eram as
derrubadas de madeira, os levantamentos de ranchos e os apossamentos de campos e matos.623
Significativas também em Soledade, ações dessa tipologia envolveram ainda disputas pelos
ricos ervais e foram frequentes em quase todo o período estudado, com destaque para o intervalo
1857-1860 e 1871-1880.

Assim, em 1858 Athanagildo Rodrigues da Silva processava Antônio Galvão que “sem
108
respeito às leis e ao inviolável direito” do autor, apossou-se de suas terras e sem sua licença 9
“está derrubando matos e fazendo erva”.624 No mesmo ano, Elesbão Alves Machado pedia o
embargo dos trabalhos de Francisco Martins de Oliveira, que sem respeito ao tempo legal de
coleta da erva, estava “estragando seus matos e ervais, derrubando ranchos e queimando
cercas”.625 Contemporaneamente, no 5º distrito, Fabrício José das Neves movia ação de

623
Ver MOTTA, Márcia. Nas fronteiras do poder: conflito de terra e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio
de Janeiro: Vício de Leitura: Arquivo Público do estado do Rio de Janeiro, 1988; e CHRISTILLINO, Cristiano
Luís. Processo de embargo. In: MOTTA, Márcia e GUIMARÃES, Elione (orgs.). Propriedades e disputas[...].
ob. cit. p. 115-118.
624
APERS – ação possessória: nº 373/1858. Est. 118, mç. 11, Cartório Cível e Crime, Passo Fundo. O Arquivo
Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS) localiza-se no município de Porto Alegre.
625
APERS – id. nº 374/1858.
embargos contra o vizinho, Florentino José Soares, por invadir faxinais e clandestinamente
levantar rancho e fazer picada, apropriando-se de terra alheia.626

Um pouco mais tarde, Francisco Gomes de Oliveira acusava José e Silvano Luiz de
levantarem um rancho em sua propriedade, aproveitando-se da situação de pro indiviso daquele
rincão de campo.627 Em 1862, no campo comprado por Antônio Camillo Ruas, no distrito da
Restinga, encontrava-se sem licença Francisco Bicudo do Amarante, fazendo edificações,
estabelecendo arranchamento e mandando tirar materiais.628 Outros tantos embargos foram
solicitados pela “construção de uma pequena casa coberta de capim”, por “queimar matos,
edificar rancho e abrir uma roça”, por ter “extraído erva-mate em diversos capões”, por “cortar
madeiras”, por “fazer erva-mate nos limites da posse” do autor, por “fazer roçados e derrubadas
em matos”, etc.629

Foi possível apurar que parte desses embargos ocorreu entre fazendeiros e lindeiros,
portanto, entre pares, e outra parte serviu para expulsar pequenos lavradores e posseiros,
ocupantes de terrenos devolutos. Ao limitarem de alguma forma a expansão dos fazendeiros
com suas construções de ranchos, aberturas de roças, derrubadas de madeiras e extração de
erva-mate, foram chamados à Justiça, a fim de cessarem os trabalhos. Autores, contudo, nem
109
sempre apresentaram documentos e provaram de fato serem suas as terras em questão. 0
Em 1877, Luiz Chaise, ascendente de importante família da região, pediu o embargo
dos trabalhos de Malaquias José Vieira e outros por se acharem “fazendo derrubadas e
fabricando erva-mate numa posse do suplicante, situada no 2º distrito”.630 Chaise, que
processava os mesmos réus em outra ação de manutenção e embargos, temia que não tivessem

626
APERS – id. nº. 375/1858, fl.2.
627
APERS – id. nº. 377/1859, fl.2.
628
APERS – id. nº. 383/1862.
629
APERS e AHR – ações de embargo: diversas, 1857-1927.
630
AHR – ação de embargos: embargante Luiz Chaise e embargados Malaquias José Vieira e outros,
22/M18/1877.
meios de pagá-la, caso condenados, já que não tinham “bens alguns para garantia das custas,
dano e mais despesas da referida ação”.631

O autor reconhecia a pobreza dos réus e acreditava ter direito às ervas por eles fabricadas
e embargadas. Pudera, eram duzentas arrobas! O equivalente a cerca de dez mulas - os animais
mais valorizados na década de 1870 - ou cerca de 16 bovinos. Luiz Chaise dizia que era legítimo
senhor e possuidor das terras, desfrutadas “mansa e pacificamente” por ele e pela esposa Delfina
há muito tempo, e “cujo título já há ordem de tirá-lo”.632 Ou seja, deixou claro não possuir ainda
um título de propriedade, fato que não o impediu de se considerar proprietário, nem prejudicou
a solicitação do embargo.

Senhores e rábulas

Exemplo de ação de embargos entre pares pode ser acompanhado no processo movido
em fins de 1877 pelo tenente Joaquim José da Silva e sua mulher contra o casal de Candido dos
Santos Prates. Os autores alegavam ser “senhores e legítimos possuidores de cinco léguas de
campo e matos, mais ou menos” adquiridas por compra no ano de 1857 e situadas no 3º distrito
de Soledade.633 Declaravam que em 1871, “por motivos de confusão de limites entre seus 109
vizinhos requereram a aviventação dos mesmos cobrando-se uma linha divisória, a qual foi
julgada por sentença do juízo municipal” no mesmo ano.634 Que tempos depois, com
1
“reconhecido dolo e malícia”, Candido dos Santos Prates, também fazendeiro e vizinho,
mandou “fazer roçados e derrubadas em matos dos autores” e por isso deveria ser condenado a
abrir mão de ditos matos e a pagar as custas.635

631
Loc. cit.
632
AHR – ação de embargos: embargante Luiz Chaise e embargados Malaquias José Vieira e outros,
21/M18/1877.
633
AHR – ação de embargos: embargante Joaquim José da Silva e sua mulher e embargados

Candido dos Santos Prates e sua mulher, 13/17/1877.


634
Loc. cit.
635
Loc. cit. A respeito das posses de Candido dos Santos Prates ver APERS – livro de registro de terras da Paróquia
do Divino Espírito Santo da Cruz Alta e AHRS (Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul) – autos de medição de
terra (Lei de 1850)/Soledade: nº 652 e 2056.
A respeito do réu, há suspeita de ao menos outra ação fraudulenta: ele declarou no
registro paroquial de terras uma posse com extensão de quase cinco mil hectares, apontada
como grilagem por Cristiano Christillino em Litígios ao sul do Império. Segundo o autor, a
grilagem tinha a ver com a localização das terras, “exatamente em um dos locais, para os quais
estava se expandido a Colônia de Santa Cruz. Consistia em uma superfície suficiente para
proporcionar mais de 250 lotes coloniais” (CHRISTILLINO, 2010, p.223). Outras posses
igualmente suspeitas de fraudes “foram declaradas nesse local, na chamada Estrada de Santa
Cruz” (CHRISTILLINO, 2010, p.223). Além de fazendeiro, Candido dos Santos Prates era
negociante, “figura de proa no distrito do Lagoão e juiz de paz eleito” (FRANCO, 1975, p.85).
Na década de 1880 foi vereador em Soledade, por mais de uma vez.636

Voltando à ação de embargo proposta pelo tenente Joaquim e sua esposa contra Candido
e sua mulher, após nomearem seus respectivos procuradores, as partes entraram em acordo,
uma vez reconhecidos pelos réus os direitos dos autores nos matos onde haviam feito a obra. O
termo de desistência encerrou o curto processo, que não nos dá maiores informações a respeito
da decisão e suas possíveis causas.

Podemos especular que a desistência tenha sido favorecida por se tratar de disputa entre
109
pares. No total, foram cinco os casos de desistência entre as ações de embargo. Pelo que foi 2
possível apurar, três delas tratam de casos onde os litigantes apresentavam a mesma condição
social, detentores de semelhante poder econômico. No caso de Joaquim José da Silva contra
Candido dos Santos Prates, podemos especular também o peso da ausência de advogados
formados. Em meio ao processo, o escrivão anota que não havia profissionais que pudessem
atuar na causa. Um termo de responsabilidade havia sido assinado por Bento Porto da Fontoura
para servir em favor dos autores “por não haver no Auditório advogado que o pudesse fazer”.637

Outros processos judiciais, de tipologia diversa, dão mostras da falta desses


profissionais na localidade. Em julho de 1882, em ação de obra nova em que figurou como ré,
Maria da Glória Lemes e Souza solicitou ao Juiz prazo para constituir advogado, “visto não

636
Cf. AHRS – AMU: correspondência da Câmara Municipal de Soledade, caixa 153, maço 272, 1881-1883.
637
AHR - ação de embargos: embargante Joaquim José da Silva e sua mulher e embargados

Candido dos Santos Prates e sua mulher, 13/17/1877.


existirem no termo advogados formados ou profissionais”, no que foi atendida.638 Em fins de
1889, Quirino José da Silva e sua mulher, réus em processo de embargo, requisitavam alvará
de licença para que seu procurador pudesse advogar na causa, dada a falta de profissionais na
vila.639 Em 1891, processados por Felisbina Borges, o casal Francisco Correa Taborda e sua
mulher esclareciam a escolha de Francisco Prestes como procurador:

porque no foro deste termo não há mais que um advogado e esse encarregou-se do
patrocínio da causa da autora, e também porque pessoalmente não podem advogar
o seu direito, já por ignorância das regras dos processos, já por residirem léguas
longe desta vila.640

Os mesmos argumentos foram expostos por João Floriano Pinto para constituir a Afonso
Dias Hilário como seu procurador. Réu em uma ação de força nova que correu em 1892, João
dizia que o único advogado do foro já assumira compromisso com os autores da causa e que
ele próprio não o fazia por “residir há mais de dez léguas distante da sede do termo”.641 Mais
de uma década depois, o número de advogados provisionados existentes na vila de Soledade
resumia-se a três: Júlio Cesar de Oliveira Cardoso, Francisco Prestes e Abelardo de Almeida
Campos.642 No entender de Jonas Vargas, em estudo sobre a elite política do Rio Grande do 109
Sul,
3
ser rábula (advogado provisionado e sem diploma de curso superior)também era um
importante meio de se alcançar um prestígio político local, pois na maioria das
paróquias distantes não havia advogados formados que suprissem a demanda
judicial. Não é coincidência que os rábulas que também foram deputados eram
destas localidades menos ricas e mais afastadas de Porto Alegre e Pelotas.
(VARGAS, 2010, p.82)

638
AHR – ação de força nova: autores Joaquim Bicudo do Amarante e sua mulher e ré Maria da

Glória Lemes de Souza. 3/M34/1882.


639
AHR – ação de embargos: embargante Rodolpho Joaquim Borges e embargado Quirino José da Silva.
640
AHR – ação de força nova: autora Felisbina Borges e réus Francisco Correa Taborda e sua

mulher. 5/M17/1891, fl.9.


641
AHR – id: autores Simeão Estelita Guerreiro e sua mulher e réu João Floriano Pinto. 10/M21/1892.
642
AHR – assistência judiciária: impetrante Joaquim Soares da Silva. 205/1903, fl. 7.
Confirmamos para Soledade a análise do autor no tocante ao prestígio político dos
rábulas. Os três anteriormente citados ocuparam diversos cargos de destaque na sociedade local
e foram influentes líderes políticos. Julio Cardoso foi intendente municipal, promotor público,
delegado de polícia e dirigente da Loja Maçônica Liberdade e Progresso. Francisco Prestes foi
fundador do Partido Republicano em Soledade e intendente municipal. Abelardo Campos, entre
outras funções, foi secretário durante o governo de Francisco Prestes e partícipe da divisão do
coronel Candoca na Revolução Constitucionalista de 1932 (Cf. MACHADO, 2012, p. 323, 327,
330).

Quem chega à Justiça

Em 1903, Abelardo de Almeida Campos foi designado a atuar na defesa de Joaquim


Soares da Silva, de quem já comentamos, agraciado com o benefício da assistência judiciária
por ser “pobríssimo”.643 Segundo Joaquim, dos três advogados da vila, um não o quis patrocinar
e o outro se tornou procurador da parte contrária, restando, portanto, apenas Abelardo. 644 O
autor havia proposto duas ações, uma de medição e, posteriormente, uma de embargo por sentir-
se prejudicado em seus direitos e esbulhado pelo confrontante Francisco Alves Machado e um
seu sobrinho,de nome Victor Reveilleau, que “vivem a turbar-lhe a posse e a causar-lhe danos,
109
ora extraindo erva-mate de um pequeno capão, ora roçando dito capão e cortando madeiras e 4
até árvores frutíferas”.645

O caso é exemplar do acesso à Justiça pelos pequenos proprietários e indivíduos das


camadas mais empobrecidas da sociedade. Conforme destacou Ironita Machado, na obra Entre
justiça e lucro, o fato de Joaquim ser humilde e pobre “não o impediu de tomar conhecimento
do direito à assistência, uma vez que a utilizou mesmo antes de ter a representação de um
operador de direito” (MACHADO, 2012, p. 143). Concluiu a autora que “o conhecimento das
leis vigentes não era privilégio dos ‘letrados’ – magistrados – e/ou detentores de poder político
e econômico” (MACHADO, 2012, p. 143).

643
AHR – assistência judiciária: impetrante Joaquim Soares da Silva. 205/1903, fl 2v.
644
AHR - ibid. fl. 3.
645
AHR - ibid. fl. 1.
Se Joaquim era velho, pobre e humilde, seu contendor, ao contrário, era “um moço de
créditos comerciais, que tem advogado contratado e que alardeia possuir recursos até para
questionar o próprio Dr. Júlio de Castilhos”.646 O advogado do réu alegou que essa declaração
era apenas “um jeitinho de dar-se ao pleito uma corzinha de política” e que a Justiça não a
deveria cogitar, mesmo porque ambos os litigantes “são companheiros políticos, tendo feito
parte das forças revolucionárias”, em provável alusão à Revolução Federalista (1893-1895).647

O depoimento de Joaquim mostra certa preocupação em enfrentar no tribunal um


homem poderoso, talvez acostumado a invadir terras dos mais pobres e os varrer de suas
propriedades. Ainda assim, ciente das forças assimétricas em jogo, o pequeno proprietário
procurou limitar a expansão territorial do poderoso confrontante. Viu na Justiça e em seus
mediadores, o meio e o apoio para assegurar suas terras e seus direitos e resolver a questão entre
partes tão díspares. Não teve, contudo, condições de dar seguimento à ação.

Conforme comentamos no início deste artigo, a desistência do processo de esbulho foi


o caminho adotado por aquele que já não tinha mais recursos econômicos a dispor, tendo
inclusive feito venda de um pedaço do pequeno campo para custear as despesas judiciais.648 Em
todo caso, histórias como a de Joaquim Soares da Silva permitem ver que pequenos lavradores
109
e posseiros humildes resistiram às tentativas de usurpação de suas terras e encararam conflitos 5
de forma desigual.

Em Soledade, acessar a Justiça para defender o acesso, o uso, a exploração, a extensão


e a legitimação da propriedade fundiária parece ter sido possível a indivíduos de diferentes
categorias e de todas as camadas sociais. Os autos consultados permitem ver que grandes,
médios e pequenos proprietários, humildes posseiros, homens e mulheres, buscaram a mediação
do poder público no intuito de defender seus direitos e/ou patrimônios. Da mesma forma, é
visível que as camadas privilegiadas, econômica, política e socialmente, tiveram maiores e
melhores condições de fazê-lo. Para elas, era mais fácil dispor dos recursos necessários ao

646
AHR – assistência judiciária: impetrante Joaquim Soares da Silva. 205/1903, fl 2v.
647
AHR - ibid. fl.9.
648
AHR - ibid. fl.3.
desenvolvimento e sucesso da contenda, fossem materiais ou relativos ao apoio de testemunhas,
contratação dos advogados mais aptos, acesso e conhecimento da legislação, etc.

Não é coincidência que vários sobrenomes de conhecidos latifundiários e comerciantes,


de coronéis, de militares e de descendentes de famílias com importante expressão econômica e
política na região figurem em grande parte dos litígios, principalmente como autores. Entre elas
encontram-se: Alves Leite, Bastos, Bicudo do Amarante, Bohrer, Borges, Camargo, Chaise,
Elias Jorge, Ferreira de Andrade, Gralha, Heringer, Jandrey, Joaquim Borges, Lamaison,
Loureiro, Moraes, Neves, Ortiz, Pinto, Rodrigues da Silva, Rodrigues França, Ruas, Santos
Vaz, Santos Leite, Santos Prates, Seffrin.

Foi possível cruzar os nomes de diversos litigantes e suas famílias com os constantes
em cartas de sesmarias, registros paroquiais de terras, autos de medição de terras,
correspondências da Câmara e Intendência Municipal, inventários e demais fontes consultadas
sobre a região, o que mostra que esses eram sujeitos de expressão econômica, social e política
na localidade, muitas vezes ocupantes de cargos militares, administrativos ou legislativos. O
Judiciário esteve preferencialmente ao lado dos grupos dominantes e, nesse sentido, os sucessos
ocorridos em Soledade repetiram o que ocorreu em geral no Rio Grande do Sul e no Brasil.
109
6
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHRISTILLINO, Cristiano Luís. Ação de esbulho. In: MOTTA, Márcia e GUIMARÃES,


Elione (orgs.). Propriedades e disputas: fontes para a história do oitocentos. Guarapuava:
Unicentro, 2011; Niterói: EDUFF, 2011.

CHRISTILLINO, Cristiano Luís. Litígios ao sul do Império: a Lei de Terras e a consolidação


política da Coroa no Rio Grande do Sul (1850-1880). Tese (Doutorado em História) – UFF,
Niterói, 2010.

FRANCO, Sérgio da Costa. Soledade na história. Porto Alegre: Corag, 1975. p. 85.

MACHADO, Ironita Policarpo. Entre justiça e lucro: Rio Grande do Sul – 1890-1930. Passo
Fundo: EdUPF, 2012.

RAMOS, Graciliano. S. Bernardo. 92 ed. RJ: Record, 2012.


SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Gláucia
Carvalho. Rio de Janeiro: 2005. p.43.

VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a corte: a elite política do Rio Grande do Sul
(1850- 1889). Santa Maria: Ed. da UFSM, 2010.

109
7
FRONTEIRAS, HISTÓRIA E LITERATURA: NOTAS PARA UMA REFLEXÃO.649

Susana Bleil de Souza650

RESUMO

Em 1910, aparece publicado na Revista de la Asociación Rural, o Informe de Daniel García de


Acevedo, em nome da Comisión de Estúdios para mejorar la situación de la gente pobre de la
campaña, apresentado no Congresso Rural Anual, desse mesmo ano. Ruralista, advogado e
dirigente da Associação Rural, García de Acevedo, apresenta um documento fundamental, para
conhecermos a situação dos grupos marginais do campo na fronteira uruguaio-brasileira, no
começo do século. No mesmo ano de 1910, o escritor Alcides Maya, nascido na campanha do
Rio Grande do Sul, publica “Ruínas Vivas”, com o subtítulo de “Romance Gaúcho”, obra que
nos permite, através do olhar de um literato conhecer um mundo em “ruínas”, revivendo os
sentimentos, as emoções, os valores e as perdas da campanha gaúcha no começo do século XX.
Assim, essa comunicação, através de um entrecruzamento da Literatura e da História, entre um
romance de época e fontes históricas procura conhecer as visões das elites sobre a pobreza e a
desocupação na fronteira uruguaia rio-grandense, em uma campanha há muito atingida pela
crise provocada pelo alambramiento e pela lenta modernização que pouco a pouco, apoderava-
109
se da fronteira.
8
Palavras-chave: História, Literatura e Fronteiras.

INTRODUÇÃO

Este artigo pretende examinar a visão das elites do final do século dezenove e primórdios
do século vinte, sobre a situação dos pobres e desocupados na fronteira uruguaio-brasileira, na
qual a rotineira e primitiva pecuária extensiva não produzia a soma de trabalho suficiente para
empregar os braços desocupados da região. Esse desocupado fazia parte de uma tipologia que
englobava a mendicância, o abigeato e o roubo e cujo eixo era a pobreza.

649
ATENÇÃO: a publicação deste texto não está autorizada.
650
Professora Doutora Colaboradora Convidada, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS/Brasil. E-
mail: sbleil@ufrgs.br
A percepção de pobreza e das razões de sua existência que as elites deste período
possuíam, levou-nos a uma seleção de fontes para resgatarmos a situação dos desafortunados
fronteiriços que passa, naturalmente, pelos documentos históricos, mas também, pelas
representações literárias do mundo rural dos homens livres e pobres da fronteira.

O termo pobreza é polissêmico. O registro dessa palavra em dicionários faz referência


à idéia de carência, escassez, penúria, falta daquilo que é necessário à subsistência. Remete-nos
à idéia de classe ou conjunto de pobres (segundo os Dicionários da Língua Portuguesa de
Houaiss, Aurélio Buarque de Holanda ou o da Real Academia Española). Historicamente, esse
termo vem sofrendo um processo de ressignificação semântica, conforme esteja se referindo ao
antigo regime, à revolução industrial ou à América Latina no século XIX, por exemplo. O
estudo da pobreza, além da complexidade na busca de suas razões, não permite uma
interpretação unívoca sendo, portanto, relativo.

Este artigo integra-se aos estudos anteriores sobre a articulação da fronteira norte do Uruguai
com a fronteira do sudoeste do Rio Grande do Sul através do charque ou tasajo, pois a fronteira

109
norte uruguaia fornecia a matéria-prima para as charqueadas ou saladeros rio-grandenses.
Tomando-se como referência, o primeiro censo nacional, realizado em 1908, no governo do
então Presidente Cláudio Williman, constatava-se a forte participação de proprietários 9
estrangeiros e, nos departamentos de fronteira, a marcada presença brasileira cuja atividade
produtiva era baseada na criação de gado extensiva, na qual o bovino “criollo” encontrou
inserção através do couro no mercado internacional e através do charque no mercado regional
brasileiro e cubano. As práticas sociais eram diferentes entre o Brasil e o Uruguai, mas os
conflitos e os interesses eram resolvidos a partir de estratégias comuns, que eram adotadas no
cotidiano de uma fronteira sempre em construção. As fronteiras rio-grandense e norte uruguaia
articulavam um sistema de exploração pecuária que visava abastecer as charqueadas do estado
mais meridional do Brasil, determinando a existência de uma autêntica micro região econômica,
onde a linha fronteiriça, demarcada pelos políticos, mostrava-se artificial.
Em 1909, a presença brasileira nos departamentos da campanha no Uruguai, enquanto
proprietários de estâncias, ainda era significativa: em Artigas, 40%; em Salto, 29%; em Rivera,
44%; em Tacuarembó, 24%; Cerro Largo, 30%; em Treita y Tres, 30%; e em Rocha, 16,5%.
Entretanto, a inserção do Uruguai no contexto do capitalismo mundial vinha sendo seguida pela
crise e a ruptura da antiga articulação interregional que operara durante todo o século XIX, até
o começo do XX.

Nossa referência conforme mencionado anteriormente, é o ano de 1910, momento em


que aparece publicado na Revista de la Asociación Rural, uruguaia, o Informe de Daniel García
de Acevedo, em nome da Comisión de Estúdios para mejorar la situación de la gente pobre de
la campaña, apresentado no 9º Congresso Rural Anual, desse mesmo ano. Ruralista, advogado
e dirigente da Associação Rural, García de Acevedo apresenta um documento que testemunha
a visão das elites e é importante para conhecemos a visão destas elites sobre a situação dos
grupos marginais do campo na fronteira uruguaia-brasileira, no começo do século XX. Neste
mesmo ano, o escritor Alcides Maya, nascido em São Gabriel, na campanha do Rio Grande do
Sul, publica “Ruínas Vivas”, com o subtítulo de “Romance Gaúcho”. Assim, através de um
entrecruzamento da Literatura e da História, entre um romance de época e fontes históricas
procura-se conhecer as visões das elites sobre a pobreza e a desocupação na fronteira uruguaia
rio-grandense, em uma campanha há muito atingida pela crise provocada pelo alambrado e pela

110
lenta modernização que pouco a pouco, apoderava-se da fronteira. O romance permite conhecer
um mundo em “ruínas”, através do olhar de um literato que, além de exercer intensa atividade
jornalística foi, também, deputado federal pelo Rio Grande do Sul. Através de seu texto 0
revivem-se os sentimentos, as emoções e, inclusive, as maneiras de falar da campanha gaúcha
no começo do século XX. Na criação de uma tipologia característica da região o autor nos dá
indícios de uma sociedade onde os códigos de conduta e os modos de agir e de pensar são, na
maioria das vezes, reflexos da criação de mitos cultivados por essas mesmas elites dentro do
contexto histórico da concentração da propriedade da terra, do seu cercamento pelo arame
farpado e da consequente pauperização crescente da antiga mão-de-obra, agora desocupada.

O objetivo não é examinar as razões do pauperismo rural da fronteira, procurando


desvendá-lo a partir de uma análise sociológica mas, mostrar como ela era percebida pelas elites
de uma época e representada através da literatura.

Pretendemos construir uma narrativa histórica que nos apresente a visualização que
possuíam da pobreza, parte das elites dessa época ou, pelo menos, aquela dos homens letrados:
advogados, estancieiros, autoridades policiais e de governo, professores, políticos, periodistas
e escritores.
Indivíduos “sem rosto” e “sem voz”, os pobres da campanha fronteiriça são
identificados por suas vestes, habitações, atitudes e desejos. Não se constituem em uma classe
social, conquanto, não há uma consciência articulada de classe. São, em geral, identificados
pelos historiadores, como um grupo social distinto, perceptível pela sua situação sócio-
econômica: serão ou as famílias menesterosas, ou o “pobrerío vagabundo y miserable”.651
(ROS, 1902, p.35)

Para a elite da época, políticos e ministros do governo, as causas da pobreza da vacância


e da mendicidade eram decorrentes de uma série de fatores, como as guerras civis o
encarecimento da subsistência de uma maneira geral, o excesso de braços disponíveis para o
trabalho no campo, a falta de hábitos de trabalho e finalmente o alambramiento. Para García de
Acevedo, a vacância, o pauperismo e a mendicância eram decorrentes das guerras civis. Para
se fazer uma história dessa situação, segundo ele, bastaria recolher os dados de mortos, feridos,
casas destruídas, saqueadas, ranchos queimados, resultantes das guerras civis ocorridas na
Banda Oriental (1910, p.13). Poucos eram os representantes dessa elite que se davam conta das
mudanças ocorridas a partir da década de 70, com a gradual incorporação de melhorias
tecnológicas e o desencadeamento de um processo de racionalização da empresa agropecuária 110
que acabara por dispensar uma considerável parte da mão-de-obra constituída pela peonagem.
1
A essa mão de obra desocupada da campanha agregava-se também, o proletariado que se
deslocou para o campo proveniente dos locais urbanos. Poucos representantes desses segmentos
sociais escolhidos analisavam as consequências das modernizações introduzidas nas estâncias,
como o alambramiento. As cercas de arame farpado que apareceram mais tardiamente no Rio
Grande do Sul, produziram resultados semelhantes aos do Uruguai, como denuncia bem o
desencanto de um trovista regional: “Alambrado – é o arame do pampa meridional, Rio Grande,
Estado Oriental... – entrelaçados. São fios de arame – espichados, abraçados aos mourões, que
parecem procissões no lombo dos descampados”.652

O vago ou mendigo da campanha era, geralmente, descrito, como inofensivo, roubando apenas
o que estivesse ao alcance da sua mão, como alguma ovelha para alimentar-se. Era, em geral,

651
Francisco J. Ros era agrimensor, deputado por Cerro Largo em 1891 e por Treita y Tres em 1902. Era
conhecedor de várias regiões do país, particularmente da fronteira com o Brasil.

652
Jayme Caetano Braun, apud CESAR, 2005, p. 155).
sedentário, constituía família com vários filhos e não se afastava demasiado da sua choça, a não
ser para fazer algum pequeno trabalho. Esta elite chegava a considerar a vida do pobre da
campanha como fácil, pois sendo sóbrio, lhe bastavam um pouco de carne e de erva. Difícil se
torna explicar, a partir dessa visão idealizada do vago da campanha, como já em 1829, durante
o governo provisório de Rondeau, o ministro Juan Francisco Giró tivesse criado o regulamento
da campanha que estabelecia a necessidade de que todo o peão de campo fosse contratado por
escrito, visando impedir o abigeato cometido por multidões de homens errantes (GARCÍA DE
ACEVEDO, 1910, p. 13).
Desde 1827, já havia um Reglamento de Policía, no qual os vagos seriam apreendidos
e enviados para o "servicio de las armas en los regimientos de línea por seis años" para a
atender às necessidades da fronteira e conter o contrabando e, caso não gozassem de boa saúde,
seriam obrigados a fazer trabalhos públicos durante quatro meses. Entre as disposições do
regulamento de 1827, havia a de que toda pessoa que estava trabalhando em algum
estabelecimento no campo deveria ter uma "papeleta de conchavo" assinada pelo patrão e
revisada pela polícia. Vagos e mendigos deveriam ter um registro da polícia, com as indicações
das prisões e condenações que cada um havia sofrido. Para os mendigos a polícia deveria dar 110
um certificado de indigência, para que eles pudessem pedir esmolas. Em 1871, em plena guerra
civil, um pequeno núcleo da alta classe rural reuniu-se e fundou a Associação Rural. O Código 2
Rural, sugerido por essa mesma Associação, entrou em vigor no começo do governo de Lorenzo
Latorre em 1876. Em 1877, foi sancionado o regulamento das polícias rurais.

Ao contrário do Rio Grande do Sul, onde os municípios possuíam um código de


posturas locais, o Uruguai possuía um código rural abrangente. Para a o historiador norte-
americano Stephen Bell (BELL, 1998) a mão-de-obra escrava pode ter contribuído para reduzir
a necessidade da criação de leis para controlar a mobilidade da força de trabalho. Pouco depois
da virada do século, a intendência de São Gabriel pressionava o governo de Borges de Medeiros
para a aplicação de um código rural para todo o estado, particularmente para reduzir os litígios
ligados ao cercamento das propriedades. A própria São Gabriel havia adotado uma forma de
código rural, possivelmente baseada nas do Rio da Prata, no final de 1896. Uma demanda
similar por um código rural e por melhores disposições de uma política rural veio dos
fazendeiros de Santana do Livramento em 1909 (BELL, 1998).
O cercamento dos campos, importante na modernização do mundo rural, dava ao
proprietário domínio explícitos sobre a terra. Em uma região, onde poucas propriedades tinham
sido sequer medidas, o cercamento proporcionava um símbolo claro de consolidação da
propriedade capitalista da terra e, além disso, diminuía a necessidade da mão-de-obra: puesteros
e recrutadores não eram mais necessários. Agora, os fazendeiros construíam corredores de
madeira (bretes) confinando o gado e com isso deixavam de existir os extensos rodeos da
fazenda tradicional e dispensava-se a mão-de-obra. Tendo menos peões, não havia a
necessidade de muitos cavalos. Antes, cada peão tinha o seu grupo de cinco ou seis cavalos.
Mudou o sistema da doma e foram construídos potreiros.

Na fronteira norte do Uruguai o alambramiento deu-se de forma mais lenta. Parte da


explicação para isso ainda recai sobre o custo. Em 1882, custava três quartos mais caro cercar
uma quadra (85 m2) com um poste e arame farpado nos departamentos do norte (Taquarembó
e Cerro Largo) do que no entorno rural da capital. Brasileiros no norte do Uruguai pareciam
oferecer resistência às inovações que eles viam como sabotando a sua posição de autoridade.
Nesse caso eles reconheciam o potencial do cercamento mudando o poder que eles detinham
sobre essa região. O fato do processo ser guiado de Montevidéu tinha maiores implicações. Nos 110
anos de 1870, os proprietários rio-grandenses ainda controlavam a maior parte do norte
3
uruguaio. Eles tendiam a ver o cercamento e o código rural como um símbolo técnico da mal
vinda extensão do poder de Montevidéu. Ao nível político o cercamento representava a
centralização absoluta para esses brasileiros e desafiava o seu controle percebido sobre a região
da fronteira. Para Stephen Bell o cercamento da campanha rio-grandense ainda está pouco
estudado (BELL, 1998).

Em 1881, no Uruguai, a Ley de Vagancia controlava e reprimia os declarados vagos, os


que não possuíam bens ou rendas e sendo aptos para o trabalho, não exerciam habitualmente
profissão, ofício ou não possuíam emprego. A Câmara de Deputados, dentro do mesmo projeto
sancionado, considerava que seriam declarados “vagos y mal entretenidos” os que “frecuenten
las pulperías o casas de negocio, las casas o parajes donde se juegue con interés o sin él y las
casa de tolerancia produciendo escándalos y desórdenes”.

Em 1892, Domingo Ordoñana, secretário da Associação Rural, escrevia:


existe una agrupación que se há denominado de la miséria, porque se há visto despojada de lo
que constituye su fondo, y há sido despojada, porque sus títulos carecían de la rigorosa etiqueta
de tantos años de registro y de constante e imperturbable posesión (ORDOÑANA, 1892, p.58).

As famílias consideradas pobres e que não tinham como satisfazer medianamente suas
necessidades de alimentos, abrigo e habitação encontravam-se em maior número, nos
departamentos de Rivera, Tacuarembó, Cerro Largo, Salto e Artigas, todas na fronteira norte,
sendo menos grave a situação em Paysandú, Treinta y Três e Rocha e nos departamentos
restantes do centro e do sul. Essas populações pobres, em geral, situavam-se próximas aos
centros habitados onde tinham a oportunidade de conseguir algumas “changas” ou onde
podiam exercer a mendicância. Margeando as estradas nacionais, se estabeleciam os “pueblos
de ratas” ou “rancheríos” agrupações miseráveis de choças feitas de tronco, latas e tiras de
couro usadas para amarrar as estruturas.

As possibilidades de conseguir trabalho nas estâncias eram relativamente raras. As


tarefas eram sazonais como a tosquia e a colheita. Ocupavam-se também como “jornaleros”
para tropear, cercar os campos, cortar lenha, ajudar na vindima ou fazer pequenos serviços 110
denominados de “changas” Quanto às mulheres, além de empregadas domésticas ou
cozinheiras, lavavam e passavam a roupa dos moradores da região.
4
As necessidades de sobrevivência levavam, muitas vezes, as populações a recorrerem
aos chamados meios ilícitos. Recorriam ao abigeato, ao roubo, à mendicância, ao contrabando,
à prostituição e ao jogo.

A circulação de “vagos” ou “malentretenidos” no país, era controlada pela polícia


rural. E vagos, eram os destituídos de renda ou bens, que não exerciam trabalho ou profissão,
bem como aqueles que freqüentavam “pulperías” e casas de jogos. Na década de 90, Francisco
Bauzá, então Ministro do Governo, argumentava que o serviço policial, era escassamente
remunerado, inclusive o dos superiores, como era o caso dos subcomissários, que recebiam
$17,40. Entre as soluções propostas, por ele, nessa mesma década, para resolver o problema da
pobreza e da falta de trabalho, estava o da colonização de terrenos baldios, onde fossem
colocadas as famílias “menesterosas”.653

A repressão era entretanto o meio mais utilizado para controlar o que no início do século
XX era entendido como “desorganização social”. Em Cerro Largo, havia “un pobrerío
vagabundo y miserable que constitue un verdadero peligro y está evidenciando una
desorganización social...”(ROS, 1902, p.35)

Francisco Ros, deputado por Cerro Largo em 1891 e por Treinta y Tres, em 1902, conhecedor
do país, particularmente da fronteira com o Brasil, propunha levar a cabo uma “cruzada
redentora” em favor do trabalho, sobretudo nos departamentos da campanha, onde em 1900,
havia 4.836 encarcerados e, nessa mesma época, “el manicomio nos oferecia la espantosa
cifra de 1.062 dementes”. Entretanto, “mas desconsolador” era o número de filhos ilegítimos
nascidos em Cerro Largo, no qüinqüênio de 1896 a 1900: “la desconsoladora suma de 2.004”,
654
de um total de 5.684 nascimentos. A idéia da religião do trabalho como disciplinadora de
uma sociedade ainda bárbara e como redentora do progresso estava presente no pensamento de
Francisco Ros: “Corrigir, pues, estas profondas deficiências de organización social por médio
del trabajo, esa oración redentora del progreso que debe rezar-se varias horas cada dia, es
110
uma conquista nacional...”655 Essa mesma idéia de que o trabalho disciplinava a barbárie 5
social, perpassava por todos os exemplos selecionados pela comissão da Associação Rural.
Raras eram entretanto, as respostas que vinculavam a haragania656, a prática dos jogos e o
consumo de bebidas à escassez de oferta e de oportunidades de trabalho.

Já na década de 1880, Ordoñana, preocupado com a moral rural, considerava que a


“civilização moderna” tornava “innecesaria la fuerça bruta” e escrevia, em setembro de 1884:
“nuestra población rural necesita instrucción, pero instrucción ordenada, metódica, regular,
em todos conceptos, y moral y muy moral por todos los princípios,...” e segue com os seus
pensamentos rurais, delineando o futuro do jovem da campanha, o peão à pé: “se necesitam
ahora escuelas adonde los muchachos tienen que ir á pie, porque los forrajes de la chacra no

653
Para este tema da colonização ver: BAUZÁ, Francisco. Colonización Industrial. Ensayo sobre un sistema para
la República Oriental del Uruguay. Montevideo: Imprenta de El Nacional, 1876.
654
Ibidem. P.9
655
Ibidem. P.10
656
Haranganear Estar ocioso quando se deveria trabalhar. MOLINER, María. Diccionario de uso del español. 2ª
edición. Madrid: Editorial Gredos, 1998.
dan más que para los bueyes y algunas lecheras. Nace entre nosortros el hombre pedestre y es
necesario hacerle perfecto ciudadano y buen jefe de familia”657

A crença na instrução pública como meio indireto mas eficaz para melhorar a situação
da pobreza, era difundida entre intelectuais e políticos da época e pela lei de 1907, estavam
previstas a criação de mais 150 escolas rurais.

Os Meios de Vida do Pobrerío

Os meios de vida do pobrerío, onde o número médio de pessoas por família era de cinco
a seis, eram difíceis e escassos. Em Tacuarembó, uma mestra escola rural descrevia as causas
da miséria dessa população, atribuindo-as à subdivisão da propriedade: os antigos agregados e
proprietários dos campos vizinhos, antes muito grandes em extensão e hoje bastante
fracionados, eram os povoadores da região onde se encontrava a sua escola rural. Algumas
famílias tinham algum pai ou filho trabalhando como peão em alguma estância vizinha, com
um soldo que raras vezes alcançava a 8 pesos As mulheres lavavam roupas recebendo ínfimos
honorários e algumas se “conchabavam” ganhando “jornales” que flutuava entre 1,50 e 5 pesos
por exceção. Nos sábados entravam nos matos vizinhos, e recolhiam a pé, lenha seca e verde 110
que vendiam a 0,10 cts cada talha, tendo que percorrer mais de uma légua em cada viagem e,
como necessitavam de lenha para o seu consumo, supõe-se que não podiam vender tudo o que
6
recolhiam. O trabalho se realizava de uma maneira muito primitiva e segundo a mesma mestra
escola, em um meio onde não existia senão uma rotineira e primitiva pecuária extensiva, não
oferecendo portanto, trabalho suficiente para empregar um número de braços desocupados tão
considerável como o que existia nesta zona da escola rural de Tacuarembó. A época da tosquia
empregava mão de obra masculina, mas era uma tarefa que durava somente, dois ou três meses
ficando o resto do ano, a mão-de-obra desocupada. Outro tipo de ocupação, para alguns poucos
braços, era a condução de alguma tropa de gado, ocupação que em geral era muito limitada pela
concorrência com as ferrovias.

Para examinar melhor este período e estes problemas, a literatura deste momento
histórico nos permite visualizar o clima de uma época, quais os seus anseios e valores e por isso
a utilizamos também enquanto fonte. A literatura é tomada a partir do autor e sua época, o que

657
D. Ordoñana. Op. Cit. P.355/356.
nos dá uma série de pistas sobre o que pensavam os homens deste período. Assim tomamos a
novela publicada em 1910, Ruínas Vivas, de Alcides May, portanto contemporâneo do informe
apresentado no congresso da Associação Rural Uruguaia. Ruínas Vivas é uma novela social
que mostra o mundo em decomposição, pintando, com realismo quadros da vida campeira.
“tracejado em linhas repetidas de planícies e coxilhas”, “desenhavam-se estâncias por entre
quinchas de palhoças”, “e uma ou outra tapera expunha, esboroada, o risco triste de sua ruína
pobre” (MAYA, 2002, p.54).

Tal como nos Informes da Associação Rural do Uruguai658, a população pobre e carente da
campanha, sobretudo as mulheres, dedicavam-se às mesmas lides, de um e de outro lado da
fronteira:

À margem oposta, de terra vermelha barrancosa,


roupas...anilavam as lájeas de um enxugadouro; uma preta velha
com uma trouxa sob o cotovelo, a enviesar-lhe o corpo, descia
...na lomba íngreme; e embaixo, à esquerda, sobre uma pedra
cintilhada de limos, uma rapariga ensaboava, cantando, um
vestido de chita com floretas rosadas (MAYA, 2002, p. 59/60).

110
Como o seu contemporâneo oriental, Eduardo Acevedo Díaz, de quem foi leitor, na
7
literatura de Maya, o povo tem um papel importante e está sempre presente, nas aglomerações
de soldados, nas carreiras, nos jogos, nos boliches: “A chusma refluía para a venda do Bento,
ponto preferido de conversas nos intervalos de corridas”; “Jogava-se: fora proibido o osso; mas
um francês montara um tiro-ao-alvo” e o povo, segundo o autor, “fervia”( MAYA, 2002,
p.116/118). No boliche de Bento, “a todos franqueado”, os frequentadores entravam,
“ruidosamente, misturados na pulperia, saleta escura, com uma janela sem vidraça entre duas
portas de batentes verdes destingidos, abertas ao norte e ao nascente”. (MAYA, 2002, p. 5 5).

Através do olhar de Miguelito, personagem que é o fio condutor


da narrativa, as cenas típicas da vida na campanha iam se
sucedendo: “Era, entretanto, no comércio, centro atrativo do
mulherio, da jogatina e da beberagem, ‘que a bugrada se
enquadrilhava’, no intermédio das carreiras” “Miguelito, porém,
olhava com prazer a multidão...” (MAYA, 2002 p. 121). A atitude
de Miguelito, como a narrativa de Maya, em relação à campanha

658
Os Informes da Associação Rural, correspondentes aos anos de 1906, 1907, 1908 e 1909, encontram-se
inseridos no Informe de GARCÍA ACEVEDO.
é puramente contemplativa, mostrando a transformação do
gaúcho: “o antigo monarca das coxilhas, cuja imagem a literatura
cristalizara, vai cedendo lugar ao gaúcho pobre e marginalizado”
(MASINA, 1980, p.84/85).
Miguelito, no final da obra, compreendia que havia uma “classe
inteira espoliada” e esta “era a sua”. Concluia Miguelito que “a
vida é a vida, e, enquanto uns vivem à farta, outros rebentam de
fome, ou, se reagem, são perseguidos como ‘cachorros
chimarrões’ a tiro e a balas. Por que a distinção?”. Miguelito não
conseguia precisar as razões desta realidade que o chocava “como
uma formidável injustiça”. (MAYA, 2002 p. 158).
Para ele:

Enquanto uns tudo possuem, outros nada podem possuir, ele


nada podia possuir...Os seus raciocínios lembravam uma
encruzilhada que fosse o centro de um círculo: todos os caminhos
iam dar à mesma circunferência e o pensamento girava, girava,
sem transpô-la. (MAYA, 2002, p. 158/159).

CONCLUSÃO 110
8
O ponto de convergência entre o pensamento de Garcia Acevedo e Alcides Maya está
na interpretação que ambos davam à situação do pobrerío do campo. Os pobres, os desvalidos,
os desafortunados eram percebidos como potencialmente perigosos. Era preciso que o sistema
previsse e antecipasse ações para garantir o controle sobre estes indivíduos.

A questão social era descoberta enquanto problema e todos os Congresos Rurales


Anuales, entre 1906 e 1909, haviam levantado esta questão. No Quinto Congresso, em 1906,
afirmava-se: La cuestión de dar colocación y destino útil a nuestras gentes pobres, hábiles para
las tareas rurales, no es cuestión secundaria. Es por el contrario, fundamental y de gran
transcendencia para nuestros destinos nacionales. E continuava:

La ignorancia y aislamento en que vegetan esas pobres gentes que forman la gran
maioría, engendran la miseria y la corrupción, preparan los instrumentos para los
movimientos armados y perturbaciones públicas, el crimen, el robo y el abigeato...
Já o Congresso de 1907 decidiu não tratar com preferência las medidas para mejorar la
gente pobre de la Campaña, pois tal proposta encerrava uma questão essencialmente social.
Mas o mais rico dos informes é o de García Acevedo, de 1910, e dentre as várias sugestões,
poderíamos destacar: fazer um ensaio de colonização com as famílias desvalidas em terras do
Departamento de Artigas e bajo régimen militar; as terras seriam fiscales o municipales que
estuviessem disponibles por compra , arrendamiento o donación de los particulares”; hacer
cumplir estrictamente las leyes y reglamentos vigentes sobre vacancia y juego...(García
Acevedo, 1910).

A maior abundância de famílias pobres encontrava-se nos departamentos de fronteira


ou contíguos a estes: Rivera, Tacuarembó, Cerro Largo , Salto y Artigas, não sendo de tanta
gravedad el problema nos outros departamentos.

O que é inovador no exame dos problemas sociais decorrentes da desigualdade é a


possibilidade de “ligar o conhecimento teórico dos ‘fatos sociais’ a uma ação eficaz sobre o
mundo social”659. Enunciada enquanto problema, a questão social suscitará a elaboração de
discursos científicos que descrevem, analisam e sugerem soluções para atingir
resultados.(PESAVENTO, 1994). Assim se articulam os discursos dos segmentos da classe
110
dominante que incorporam o ideário do darwinismo social, a filosofia política e social dos 9
defensores da ordem estabelecida no século XIX, produto do filósofo político inglês, Herbert
Spencer. Para o spencerismo, luta, destruição e sobrevivência do mais apto também eram
essenciais ao progresso da sociedade humana. O governo deveria preservar a ordem, proteger
a propriedade e deveria deixar o controle da economia aos proprietários rurais. O spencerismo
se manifestava entre as elites, justificando a guerra econômica, a pobreza, a exploração e o
sofrimento em nome do progresso! Em ambos os lados da fronteira, pecuarista e comerciantes
comungavam com as idéias do liberalismo econômico mas, em matéria de filosofia política o
spencerismo vigorava em ambos os lados dessa fronteira que Alcides Maya chamava de
bisplatina.

659
SALAIS, Robert. A la decouverte du fait social, 1890-1900. Gêneses. Paris: Calman Levy, n.2, dec. 1990. p.2
Apud: PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os pobres da cidade. Vida e trabalho – 1880-1920. Porto Alegre: Editora da
Universidade/ UFRGS, 1994. p.8.
Segundo Léa Masina (p.41), “denunciando as mazelas de uma sociedade que não propunha
soluções ao problema social de marginalização do homem da campanha, Alcides Maya
constrói um romance cujos quadros biográficos estruram a crônica social do pampa”.
A autora (p.83-89) considera que, com a extinção das fontes de trabalho e com a
capitalização das estâncias, o gaúcho permaneceu à margem do progresso. O antigo “monarca
das coxilhas”, cuja imagem a literatura cristalizara, vai cedendo lugar ao gaúcho pobre e
marginalizado. Miguelito de Ruínas Vivas assim, representa uma parcela da ruína que se abate
sobre o campo. Para Léa Masina (87-89), em Ruínas Vivas, o autor tinha a intenção de criar um
romance que fornecesse uma interpretação sociológica da realidade da campanha gaúcha e
embora se voltasse para a população proletária da Campanha, dela “colhendo elementos para a
criação dos personagens, sua atitude como ficcionista é puramente contemplativa”. Para a
autora o apego à sociologia de Spencer e às teorias deterministas da época dispersaram as
possibilidades de interpretação dos dados observados, mitigando os aspectos mais radicais de
denúncia social que a obra propunha (p.89 e 108).

Alcides Maya, como o restante da elite da fronteira “bisplatina”, tentava uma


interpretação da realidade social sem contudo, conseguir aprofundá-la e a sua visão crítica
permaneceu na constatação da pobreza, da miséria à qual se encontrava relegado o personagem
111
do “velho gaúcho” das guerras de fronteira. Colocando ênfase na pobreza do velho personagem 0
Chico Santos, cuja choça e o catre são minuciosamente descritos, além do enterro que
evidenciava a situação de penúria daqueles peões, o autor interpreta a situação de despreparo
social do homem do campo às transformações da tecnologia e da modernização. O progresso
seria alcançado, segundo o espencerismo, pela diversificação de funções a serem realizadas
pelo indivíduo.

As populações rurais só estavam preparadas para o pastoreio, eram as conclusões das


elites, em ambos os lados da fronteira. O trabalho pagou o alto custo social da modernização.
Para isso, ele foi regulamentado com um código rural, a mobilidade foi controlada e a vacância
reprimida pela polícia rural e por uma guarda rural, nomeada por particulares.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BELL, Stephen. Campanha Gaúcha. A Brazilian Ranching System, 1850-1920. Stanford:
Stanford University Press, 1998.
BORGES, Valdeci Rezende. História e Literatura: Algumas Considerações. Revista de Teoria
da História. Ano 1,Número 3, junho/2010. Universidade Federal de Goiás.
CESAR, Guilhermino. Origens da economia gaúcha (o boi e o poder). Porto Alegre: IEL,
Corag, 2005.

CÓDIGO RURAL DE LA REPÚBLICA ORIENTAL DEL URUGUAY.7ª ed. Montevideo:


Casa Barreiro y Ramos, 1926.

GARCÍA DE ACEVEDO, Daniel. “El pauperismo rural em el Uruguay de 1910”. Revista de


la Asociación Rural, año XXXIX. Montevideo, setiembre-octubre de 1910. O título original
era: “Informe produzido ante el Congreso Rural Anual de 1910, por el Dr. Daniel García
Acevedo, en nombre de la Comisión de Estudios para mejorar la situación de la gente pobre
de campaña.”

MAYA, Alcides. Ruínas Vivas. 2ª edição . Porto Alegre: Movimento, Universidade federal de
Santa Maria, 2002. 111
MARTINS, Cyro. Prefácio. MAYA, Alcides. Ruínas Vivas. 2ª edição . Porto Alegre: 1
Movimento, Universidade federal de Santa Maria, 2002.

MASINA, Léa Sílvia dos Santos. Tese e Realidade em Ruínas Vivas de Alcides Maya.
Dissertação inédita de Mestrado. Porto Alegre: UFGRS, 1080.

ORDOÑANA, Domingo . Pensamientos rurales sobre necesidades sociales y económicas de


la República. Montevideo: Imprenta Rural á vapor. 1892.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os pobres da cidade. Vida e trabalho – 1880-1920. Porto
Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS, 1994
POMIAN, Krzysztof. Sur l'histoire. Paris: Gallimard, 1999.

ROS, Francisco. La Feria de Melo. Montevideo: Tip. De “El Nacional”, 1902. p.35.
APONTAMENTOS A RESPEITO DO CONSUMO E DISTRIBUIÇÃO DE BENS NO
BRASIL MERIDIONAL (ALEGRETE, 1846-1886)*660

Taís Giacomini Tomazi **661

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo apresentar alguns aspectos iniciais da pesquisa desenvolvida
no Programa de Pós-Graduação em História da UFSM, na linha de pesquisa Fronteira, Política
e Sociedade. Mas também como continuidade e extensão de um trabalho monográfico, esta
pesquisa visa demonstrar como a sociedade fronteiriça estava - mesmo afastada dos grandes
centros - interligada ao comércio e principalmente consumo de bens cotidianos ou luxuosos,
demonstrando então que algumas concepções historiográficas já estabelecidas, tal qual o que
por muito tempo se pensou em relação ao cotidiano no pampa limita as reais possibilidades de
análise na pesquisa histórica. Outro aspecto se dá na distribuição destes bens dentre os grupos
sócio-economicos encontrados nas fontes e como tais bens circulavam nestes diversos grupos,
além de demonstrar o contato de uma região de fronteira com o mundo em transformação do
século XIX, principalmente na sua segunda metade. Além disso, outros elementos serão
abordados, como a própria questão de fronteira, o conceito de fronteira manejada e como esta
se inseria na vida cotidiana daqueles indivíduos e em suas aquisições resultando nos dados 111
encontrados nas fontes pesquisadas para a execução deste projeto. A metodologia utilizada na
construção deste trabalho é inspirada na história serial, organização e elaboração das análises
obtidas a partir das fontes principais desta pesquisa, os inventários post mortem, além de outras
2
análises documentais desenvolvidas ao longo da pesquisa e da comunicação aqui proposta.
Palavras-chave: Distribuição de bens, Consumo, Alegrete;

INTRODUÇÃO

O trabalho aqui apresentado tem como proposição analisar a difusão social, a utilização
e circulação de bens de consumo no interior do Brasil, na segunda metade do século XIX. Como
foco específico da pesquisa, escolhemos o município de Alegrete, localizado no extremo sul do
país. As principais fontes empregadas até o presente momento são os inventários post mortem
de Alegrete entre os anos de 1846 e 1886. Para tanto, selecionamos uma amostragem
contabilizando 60 processos, de forma a compreender que tipos de bens móveis – os mais

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Mestranda, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Santa Maria,
taistomazi@gmail.com
variados desde mobiliário, joias, objetos de cozinha entre outros – os indivíduos daquela
sociedade utilizavam em suas atividades cotidianas, porém deste número inicial foram
selecionados 42 inventários aptos a sua utilização. Temos, ainda, os relatos de viajantes como
fontes para relacionar elementos da visão dos estrangeiros e as realidades encontradas nas
fontes públicas.
A Vila662, depois cidade de Alegrete, no período delimitado pelas fontes, estava
localizada em uma região de fronteira e caracterizada pelos conflitos constantes em sua
existência, contato direto entre o Império luso-brasileiro e seus vizinhos, as Províncias
Argentinas e a Estado Oriental do Uruguai. Ambiente marcado por uma ideia de rusticidade (de
hábitos, costumes e civilidade). Mas as questões que se apresentaram ao longo da pesquisa
foram: realmente, apesar da rusticidade e das relações estabelecidas entre aqueles indivíduos,
seria sua vida cotidiana apenas centrada neste modelo, “afastado dos grandes centros” e ligados
a uma ideia de rusticidade? Ou então, para, além disso, estas pessoas possuíam acesso a outros
bens de consumo que saíssem da órbita dos talheres de ferro, cuias e camas de couro rente-ao-
chão?
Na segunda metade do século XIX, podemos ter uma clara ideia das transformações 111
ocorridas em âmbito econômico. A Revolução Industrial iniciada na Europa em final do século
XVIII e em expansão ao longo do Oitocentos gerou o desenvolvimento de diversos produtos e 3
teve impacto também há uma invenção e reinvenção do consumo e dos bens em circulação.
Tudo isto é fator essencial para a análise que se quer fazer aqui.

Capitulo I: A questão metodológica


Como dito na introdução deste trabalho, as fontes principais utilizadas nesta pesquisa
são os inventários post mortem da Capela de Alegrete, entre os anos de 1846 e 1886. Foram
fotografados todos os processos de 10 em 10 anos para as datas de 1846, 1856, 1866, 1876 e
1886, os quais foram analisados e fichados no item “Avaliação dos Bens”, parte a qual se
referem os bens deixados pelo casal no momento do falecimento de um dos cônjuges.

662
Para melhor compreender as transformações estamentais da jurisdição de Alegrete ao longo do século XIX,
consultar Mariana F. C. Thompson Flores. Contrabandos e Contrabandistas... 2012 e Luis A. E. Farinatti.
Confins Meridionais... 2010.
Foi criado então um banco de dados, contendo campos de preenchimento de acordo com
as informações retiradas dos documentos, iniciando com os elementos de identificação dos
mesmos, além das informações gerais contidas em tal documentação. Os cartórios em que estes
documentos foram redigidos eram: Cartório de Órphãos e Ausentes (sic.) e Cartório Civil e
Crime.

Desta forma, os subsídios para a pesquisa foram organizados a dar conta da


complexidade do tema e da amplitude da questão dos bens, e nesse modo se pode a partir deste
momento aprofundar a questão dos grupos sócio-econômicos663 e suas respectivas
classificações664 e explicações necessárias para uma organização dos resultados de forma mais
objetiva e clara.

Um dos objetivos deu-se então na busca de compreender quais grupos adquiriam mais
e que tipo de bens, por exemplo, e qual a evolução (transformação) ao longo da segunda metade
do século XIX dos bens que eram adquiridos. Além disso, para conseguir organizar os grupos
nos campos há um prévio levantamento a partir do monte-mor de cada inventariado, em que
consistiam os principais aspectos de suas fortunas, se em bens rurais ou urbanos, caros ou mais
básicos que caracterizou a construção dos grupos.
111
No cruzamento dos dados muitos outros elementos serão apresentados. Por ora era
4
necessário demonstrar como foram elencados os grupos e quais os motivos que levaram as

663
Classificação dos grupos sócio-econômicos urbanos: “urbano” pessoas que possuem bens nas sedes das cidades
não tendo bens rurais relevantes em seus inventários. “Na categoria de “Comerciante” se enquadram aqueles que
não possuíam bens rurais de significância dentre os bens inventariados (dentre os inventários da amostra), além de
possuírem ou não casa na sede da cidade e aparecerem em seus inventários mercadorias em quantidades apontáveis
como fora do padrão dos demais. Por último, há os “Artífices” que não possuíam bens rurais, podendo também ter
ou não casa na parte urbana e seu diferencial se dá no fato de haverem instrumentos de trabalho específicos de
alguma atividade, por exemplo: carpinteiro, marceneiro, sapateiro, entre outros. O que demonstrava que aquele
indivíduo tinha alguma atividade profissional que valesse alocar este tipo de bem em seu processo inventariante.
664
Para os grupos classificados como “Rurais”, a diferenciação principal advém da quantidade de gado bovino que
os indivíduos possuíam. Isso ocorreu em função da central da pecuária bovina na economia de Alegrete
(FARINATTI, 2007). A extensão desses rebanhos influencia na compreensão do que deve ser considerado um
pequeno, médio ou grande criador, a qual se dá na grande quantidade destes animais e relação com outros bens. O
número que caracteriza este tipo de argumento se faz na posse de mais de 2.000 rezes de gado bovino para ser
classificado como “Fazendeiro”, abaixo desse número, entre 1.000 e 2.000 rezes considera-se “Grande Criador”.
Quando um indivíduo era listado em seu inventário como possuidor de 500 a 1.000 rezes de gado bovino era
considerado um “Médio Criador” e de 50 a 500 rezes, um “Pequeno criador”. Os indivíduos listados com até 50
rezes e possuindo ou não algum bem de raiz em espaço rural foi classificado como “Rural SI (sem identificação)”.
conclusões estabelecidas, deixando o processo claro e objetivo. A apreciação dos dados será
exposta em parte posterior do texto, após mais alguns esclarecimentos importantes.

Como apresentado por Alencastro (1997), no início deste estudo, o século XIX
promoveu uma transformação significativa na realidade da aquisição de bens no Brasil Império.
Jonas Vargas (2013) e Katia Mattoso (1997) também contribuem nesta proposta e demonstram
para seus espaços de pesquisa estas características e podem fazer uma interlocução entre a
realidade pesquisada e as discussões historiográficas de alcance nacional.

Por exemplo, Jonas Vargas aponta uma série de bens e principalmente mobiliário
pertencentes aos charqueadores de Pelotas estudados por ele, nos quais, foi possível encontrar
móveis de madeiras nobres, tais como em Alegrete, com a cama de jacarandá, mas com uma
diferença substancial de quantidade (pelo menos até o momento em que se encontra a
pesquisa)665.

Capítulo II: Distribuição geral dos bens ao longo do período

Primeiramente, olhemos para os aspectos mais evidentes na presença de bens no


conjunto de inventários: sem ainda separar por grupos socioeconômicos, em se tomado todo o 111
período estudado (1846 a 1886). Pode-se notar que as proporções gerais dão uma ideia de que 5
alguns itens estão presentes de forma igualitária em todos os grupos, como se pode perceber no
Gráfico 1.

Gráfico1: Distribuição de bens entre 1846-1886

665
A chegada destes bens muitas vezes era relatada nos jornais da época, e apontavam uma circulação de artigos
de uso cotidiano. Tais fontes não serão utilizadas especificamente no momento atual desta pesquisa, mas são bons
indicativos de tais transformações.
DISTRIBUIÇÃO DOS BENS ENTRE 1846 E 1886
400

300

200

100

Fonte: Inventários post mortem, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS) entre 1846 e 1886.

Esta ideia de observação de um período total pode ser interessante em um primeiro


momento, já que se pode, partindo desta discussão, demonstrar aspectos da circulação e
consumo de bens na segunda metade do século XIX. Como vimos, alguns historiadores
apontam este período como muito produtivo comercialmente, já que o Brasil estava integrado
em um comércio atlântico em seus mais diversos aspectos (ALENCASTRO, 1997;
PESAVENTO, 1992). O crescimento no acesso dos brasileiros a bens mais variados, na
primeira metade do oitocentos, como reflexo deste contato, é perceptível, por exemplo, na 111
presença de itens como joias e também aqueles que são relacionados à beleza ou ainda livros e 6
materiais utilizados no ensino, itens estes encontrados na filtragem dos dados para feitura da
pesquisa.

Por conseguinte, se verifica em uma percepção inicial, que a região de Alegrete, mesmo
distante dos grandes centros comerciais como Pelotas e Porto Alegre, possuía ligações com
mercados que poderiam fazer o comércio de itens como os apresentados no parágrafo anterior.
O Gráfico 1, foi construído a partir da quantidade de itens de cada tipologia dos bens dentre
todos os inventariados que os possuíssem no período, levando em consideração a amostra desta
pesquisa que é de 10 em 10 anos.

Porém, precisamos ir além da análise geral, para evitar algumas distorções causadas por
essa forma de analisar os dados. Por exemplo, ficando apenas nela, o eixo “Vestuário” aparece
com grande proeminência em relação ao total da amostra. Se utilizássemos apenas uma análise
geral, estaríamos cometendo um equivoco, já que a presença significativa dos itens catalogados
neste eixo pode ser entendida como uma aquisição e utilização espraiada da mesma forma para
todos os indivíduos e seus respectivos grupos, o que não acontece na realidade como se percebe
a seguir.

Sendo assim, a necessidade de outras formas de organizar os resultados dos dados se faz
presente, dando ênfase ao estudo especifico por grupos socioeconômicos. Há uma diversificada
base de bens que são utilizados de formas diferentes em cada grupo. Os grupos urbanos podem
ser entendidos a partir da realidade da urbanização e das relações comerciais mais abrangentes
e acessíveis, porém, estes grupos podem ter uma maior dificuldade em acessar uma
diversificação maior de itens. As hipóteses para explicar esse fato são, por exemplo, os maiores
recursos advindos dos grupos rurais nas trocas comerciais, atividades mais capitalistas e das
compras a crédito. Isso poderia facilitar a obtenção de alguns itens que não eram vistos como
comuns, se fossemos analisar mais simplificadamente.

Desta forma, um elemento interessante é a forma pela qual a dicotomia rural/urbano


exercia sua função neste espaço-tempo específico, já que provavelmente eram esferas bastante
integradas, sendo a influência do tipo de atividade econômica desempenhada pelo inventariado
um ponto chave nesta proposição de análise. Os fazendeiros e grandes comerciantes, por
exemplo, tinham mais acesso a determinados itens de consumo, por seu alto nível de fortuna e
111
pelas relações que mantinham com centros de comercialização de bens. 7
Outra questão poderia ser tomada, é da percepção de que as cidades e núcleos urbanos
ainda estavam a se organizar, como demonstram muitos dos viajantes que por elas passaram.
Esse certamente era o caso de Alegrete no período estudado, principalmente em razão das
distancias mais longínquas em relação aos grandes centros de comércio. O viajante alemão
Robert Avé-Lallemant notou esse fato em seu diário de viagem pela província em 1858, quando
afirma, , que em Alegrete um centro urbano se encaminhava, estava a se desenvolver e era se
comparado a outros da mesma região, bem estabelecido e com numerosas lojas e produtos
variados (1980, p. 160). Esse panorama era diferente daquele apresentado por Porto Alegre, a
partir das percepções de Sandra Pesavento (1992), ao fim do XIX. A autora demonstra o
fenômeno da urbanização com seus traços principais mais estabelecidos e apontando a questão
da modernidade na constituição de uma sociabilidade diferenciada do mundo rural.

Para a região estudada aqui, pode-se dizer que os núcleos mais urbanizados ainda estão
se estabelecendo e emancipando, de acordo com Thompson Flores (2012; 2007) e Farinatti
(2010), ao demonstrarem a transformação do território alegretense durante o oitocentos e mais
especificamente a sua segunda metade. Nesse período, emanciparam-se as regiões de
Uruguaiana e Santana do Livramento, por exemplo, que irão percorrer seus próprios caminhos
econômicos e políticos. E sendo assim, esta ideia de que os grupos sociais aqui classificados
como rurais de acordo com a metodologia explicitada anteriormente, possuem maior facilidade
em circular nos espaços comerciais pode ser interessante para desfocar a percepção de que o
mundo rural estava isolado em si mesmo, como a historiografia mais longínqua tendia a apontar.

Vargas (2013) apresentou uma variedade de apontamentos que seguem esta direção. Ao
indicar que as elites locais e regionais conseguiam, mesmo não estando em grandes centros ou
capitais, articular suas demandas nesses espaços centrais em decorrência de suas relações, dons
e contra-dons e pela construção de redes. Isso pode ser interessante na medida em que se ratifica
a proposição de Alegrete estar fora de um eixo comercial mais amplo não impedia seus grupos
sociais de conseguirem se fazer presentes neste campo complexo que é a circulação de bens,
por exemplo.

Por sua vez, é possível perceber também que apesar de se pensar que a elite possuía
grande destaque, em relação a aquisição de bens, todos os grupos tinham acesso a itens nem tão
111
cotidianos. Ressaltando que a fonte que está sendo utilizada é produzida após o falecimento de 8
um indivíduo e isto pode ocorrer em idade avançada, isso significa que muito provavelmente
se os inventariados já tivessem dividido seus pertences entre os filhos ou mesmo pagando
dívidas, o que prescreve uma possível diminuição dos bens na elaboração do processo de
inventário. Para estudo futuros, poderemos restar essa hipótese analisando a presença desses
bens em relação a fase da vida na qual faleceram os inventariados.

O papel dos comerciantes é de suma importância neste período, pois sem dúvida alguma
faziam licita ou ilicitamente a ação de levar os produtos para os mais diversos indivíduos e
espaços. Isso se formos tomar a ideia de Farinatti (2009) como elemento explicativo, os tecidos
eram de suma importância no período e local analisado. Eram sem dúvida mercadorias que
tinham como destino sua venda, na comercialização direta ou em estabelecimentos comerciais.
Segundo o autor, estes artefatos eram muitas vezes utilizados em pagamento de peões pelas
suas jornadas de trabalho, de forma que aqueles indivíduos recebiam uma parte importante do
seu vencimento em mercadorias, sendo os tecidos as mais significativas.
Esta ideia também pode ser articulada com a proposição feita por aquele historiador de
que a ideia idílica do gaúcho errante, solteiro e sem destino não dá conta de parte importante
dos trabalhadores que iam apeonar-se nas estâncias. Os “homens errantes” existiam, mas uma
parte importante do contingente de peões da pecuária era formado por pessoas que estavam
inseridas em famílias de pequenos produtores e que complementavam a renda familiar com o
trabalho assalariado (FARINATTI, 2009).

Enfim, muitos dos peões empregados nas fazendas por analisadas por Farinatti possuíam
relacionamentos que indicavam que suas ações e recursos cotidianos não eram de pessoas sem
destino. E por isso a utilização do tecido como meio de pagamento de salário pode ser uma boa
análise, haja vista que este tipo de produto era algo de status mais elevado e poderia ser
interessante tanto para estancieiros quanto empregados diminuindo para o primeiro a
necessidade de pagamento em dinheiro e para o segundo acesso a algum tipo de item não
costumeiro e de fácil acesso durante o período de trabalho.

Ao encontrar “chocolateiras”666 nas análises dos inventários post mortem faz-se


perceber que o contato com a Corte poderia ser dificultado pela distância, porém outros
mecanismos comerciais estavam presentes na vida daquelas populações fronteiriças. Como já
111
foi apontado aqui anteriormente, o comércio na região mais meridional do Brasil tinha algumas 9
especificidades. O contrabando fazia as vezes de importante articulador de fronteira, a fronteira
manejada. Mas não era somente ele que fazia o transporte de itens de um lado ao outro da linha
de fronteira. Volkmer contribui com a proposição de Thompson Flores demonstrando que além
das articulações para fugir das taxações da alfandega bem como a obtenção de um lucro maior
ao ingressar no Brasil pagando menos impostos, o comércio legalizado era constante e
volumoso. Esta autora já havia apresentado a ideia de que o Rio Grande de São Pedro e mais
especificamente as cidades e vilas fronteiriças tinham um contato proeminente com Montevidéu

666
Recipiente em forma parecida a um bule utilizado para produção de bebidas, podendo uma delas ser uma espécie
de chocolate quente, ver mais em: . http://www.pab.pt/_usr/downloads/Prataria.pdf. A chocolateira conecta
Alegrete a outros centros e demonstra que havia uma noção do que era visto como “importante de se ter”. Segundo
o Fichário Ernani Silva Bruno, volume “Equipamentos, usos e costumes da Casa Brasileira”, as indicações de itens
denominados como “chocolateiras” apontam três indicações do mesmo artigo. Duas de Ouro Preto e Mariana
também nas Minas Gerais. Isso sugere que, primeiramente, não era um item difundido em todo o Império, já que
tal obra tem o intuito de arrolar a maior quantidade de indicações de cada item, e segundo não era tão simples
adquirir tal produto.
e Buenos Aires e desta forma a chegada de bens advindos da região do Prata também faziam
jus a noção de fronteira fluida e interligada, mas não apenas isso, manejada também.

E atrelado a isso, há que se perceber que não se pode associar a obtenção dos itens aos
grupos mais abastados, somente. Segundo, a classificação dos extratos sociais, os comerciantes
são com certeza os que possuem maior acesso a alguns itens, porém não são os únicos ou mesmo
não conseguem se mostrar evidentes com relação a todos os tipos de bens, como se poderia
cogitar em razão da atividade econômica. Neste caso, as chocolateiras encontradas pertenciam
a uma inventariada categorizada como “fazendeira” e outro como grande produtor. Tal
verificação demonstra que os grupos rurais principalmente conseguiam se fazerem mais
evidentes quanto a variedade de itens que possuíam, como será possível perceber adiante.

Quando se trata da relação entre grupos urbanos e rurais as Figuras 2 e 3 nos apontam
alguns elementos. Um deles é de que os grupos urbanos são minoria diante dos rurais, o que
demonstra a variedade deste espaço naquele período e local, no qual a sociedade ainda estava
longe da grande urbanização. Ou seja, percebemos que os grupos Comerciantes e Urbano SI
têm mais possibilidades de acesso de bens que o grupo Artífice. Este está restrito a alguns itens,
tais como instrumentos de trabalho, itens de cozinha e mobiliário, ambos outros parecem poder
112
articularem-se em outros campos (comerciantes que também possuem atividade pecuária, ou 0
Urbanos SI que possuem gado em terras de parentes ou mesmo trabalham em propriedades de
outrem). Também, os urbanos SI ao mesmo tempo em que os Rurais SI se parecem em suas
configurações e elementos constitutivos variando na proporção de moradias (casas ou terrenos)
que possuem, sendo que o rural tem uma presença mais marcante destes itens em seus
inventários ou podem ser considerados agregados, em razão da quantidade de animais e itens
de trabalho.

Os grupos categorizados aqui como rurais apresentam uma característica interessante, a


presença de itens como livros ligados a questão religiosa, papel, penas, tinteiros e lápis. Em
todos os grupos há a indicação deste tipo de item. Isso poderia ser atrelado ao elemento exposto
anteriormente, de uma maior facilidade de transitar em espaços comerciais em razão da
diversificação econômica daqueles indivíduos, que possuíam alguns recursos abertos a sua
frente e a importância delegada a questão religiosa (comportamental e moral) pode ser um fator
chave, já que oram encontrados alguns livros de cunho moralizante e de educação para
moças667. Os animais também poderiam ser utilizados como bem de troca, obtenção de dinheiro
e haviam as terras e o próprio trabalho destes indivíduos que, nos grupos menos abastados, não
se pode afirmar muito a respeito de suas atividades cotidianas remuneradas.

Outros itens que são presentes para todos são os ligados a beleza, saúde e higiene. Se
formos fazer uma análise pormenorizada, certamente os números podem ser considerados
ínfimos, mas para uma comparação mais geral é interessante a presença destes se formos
considerar todo o contexto social e econômico já desenvolvido aqui, com base nas proposições
de Farinatti (2010) e Thompson Flores (2012; 2007). A belicosidade cotidiana e as relações
pautadas numa ideia de dom e contra dom, eram ainda marcas da vida dos indivíduos aqui
estudados. No entanto, eles também estavam preocupados com questões de aparência, obtendo
águas de cheiro, sabonetes e lavatórios, além de medicamentos.

Podemos perceber a forma idílica como o viajante Alexander Baguet descreveu sua
estadia no pampa gaúcho. Mesmo que o trecho não trate especificamente Alegrete, pois não
identificava com tanta minúcia os locais por onde passava. O momento pelo qual Baguet
percorre a região em 1845, ao se integrar á atividade campeira e vivenciar as ações cotidianas
dos indivíduos que o hospedavam pode de certa forma contribuir nessa proposição, tal como o
112
trecho a seguir: 1

Não tínhamos, é verdade, nem mesa nem cadeiras de molas. A grama verdejante do
campo e nossos ponchos estendidos na relva substituíram-na. A sala do banquete era
uma imensa planície dos pampas e sobre nossas cabeças, em um céu azul sem nuvens,
brilhava um magnífico sol dos trópicos. O indispensável facão, e um pouco também
nossos cinco dedos, faziam as vezes de garfo. A taça de champanha consistia em um
chifre de boi enchido de água em um riachinho (BAGUET. p. 69, 1997).

Porém, ao ser recebido por alguns grandes estancieiros em seu trajeto de viagem,
demonstrou que a região mais meridional do Brasil, pela qual seu trajeto passou, não era de
todo pobre, tal como apresenta no trecho a seguir, além de outros apontamentos que faz a
respeito das suas percepções de viagem.

667
Certamente uma grande parcela da população não realizava inventários e desta forma não pode ser arrolada
aqui, então as afirmações aqui postuladas levam em consideração este aspecto e não pretendem abarcar uma
sociedade em sua totalidade, e sim a amostra pesquisada até o momento da pesquisa e elaboração deste texto.
Algumas horas depois, Dom Ambrósio chegou montado num lindo cavalo, cujos
arreios brilhavam de tanta prata, seguido por muitos peões e uma matilha de cães.
Levava na cintura um facão com cabo e bainha de prata, ornados de pedras preciosas
(BAGUET, 1997, p.66-67).

Mas o que se pode inferir também é um questionamento segundo a forma de ler estes
relatos e ao imaginarmos e fazermos conjecturas de como eram na realidade aqueles espaços.
Além disso, deve-se compreender como os viajantes percebiam os locais por onde passavam e
levar em consideração suas próprias experiências. Já que estamos a avaliar a circulação de bens
a partir dos inventários post mortem, relacionar a outros elementos que possam contribuir na
percepção reconstruída da realidade encontradas nas fontes.

Todavia, em uma analise pormenorizada desta relação há que se propor um viés, no qual
outras fontes podem, como demonstra Laura Cabrejas (2000), contrapor os elementos
encontrados na pesquisa documental. Os textos dos viajantes vem carregados de seus próprios
signos e isso pode direcionar seus apontamentos acerca da realidade que estão vivenciando, e
também de acordo com Fleck (2006), “deve-se, sempre, considerar que as descrições e 112
informações constantes nesses relatos constituem, na verdade, representações, reivindicações
da realidade, produzidas com base nas visões de mundo de viajantes”, e que também “incidem
2
sobre a feitura e transformações historiográfica de uma memória” (FLECK, 2006, p. 274) e na
forma como se concebe a mesma ao longo da história, tal como ocorreu com a região aqui
pesquisada.

Esta foi incutida de rusticidade, até mesmo bucólica, um certo isolamento da


“civilização”, já que não exibia as mesmas expressões, atividades e comportamentos que eram
encarados como status de civilizado. Esse status corresponde proposições de Luis Felipe de
Alencastro (1990) quando aponta os aspectos da vida privada no Brasil Império, e também
relacionando com Starobinski (2001), o qual discute o conceito de “civilização” e para nosso
alento debate como esta foi utilizada segundo interesses de conquista pelos europeus. Ou seja,
mostrando como os europeus se utilizaram deste discurso para validar suas conquistas, mas não
cabendo aqui uma divagação mais aprofundada sobre esta questão e a respeito do tema, basta
ressaltar que é necessário se refletir sobre o que é consideração “civilização” e quais são as
bases que a fundamentam, tal como explora Norbert Elias (2012). E buscando as aproximações
com as pesquisas historiográficas bonarenses, pode-se perceber que a discussão sobre a imagem
quase pastoril da região do rio da Prata também demandou uma ampla discussão historiográfica
realizada pelos historiadores argentinos, tal como Cabrejas, propondo algumas reflexões a
respeito da literatura de viagem e da forma como esta era tratada pela historiografia precedente
afirmando que

La literatura de viajero ha sido durante mucho tiempo una fuente importante en la


historiografía rioplatense. Sin desmerecerla, consideramos que es tiempo de hacer una
revisión de la imagen que ella brindó. Los documentos nos han permitido ofrecer una
visión matizada y hasta a veces sorprendentes de los pobladores de la frontera
bonaerense (CABREJAS, 2000, p. 70).

Por hora, foi possível perceber que há uma diversificação social que também reflete
nesta nova percepção a respeito da região do pampa, bem como a relação intima entre rural e
urbano, porém a dinamicidade das relações e possibilidades de investimento tornaram os
primeiros mais inteirados das atividades comercias e maiores detentores dos itens de consumo
como de poderá perceber no tópico seguinte.
112
3
CONCLUSÃO

Foi possível perceber de antemão que Alegrete era ainda muito pautada pela relação
entre rural e urbano. Este segundo ainda tinha dificuldade em transitar em outros espaços
econômicos. Para os grupos rurais, os quais possuem maior facilidade em circular nos espaços
comerciais, foi ser uma análise interessante, de forma a desfocar da percepção de que o mundo
rural estava isolado em si mesmo, e que as atividades comerciais com a pecuária, em grande
monta, tornavam pequenos investimentos em móveis, alimentação, vestuário e louças. Além
dos tecidos que já havíamos exposto, eram bastante utilizados para o pagamento de peões, o
que certamente movimentava comercialmente aquele local.

Os itens de cozinha, mobiliário e instrumentos de trabalho, são os tipos de bens que são
muito perceptíveis nos resultados encontrados ao longo da pesquisa. Outro ponto chave era a
importância que se dava para os instrumentos de trabalho que fossem os mais apresentáveis
e/ou caros, como arreios, esporas de prata e artefatos que demonstrassem algum status, como
apresentou-nos Baguet em sua viagem ao rio grande do sul. A presença de elementos de beleza
como sabonetes, águas de cheiro, colônias e outros itens de beleza, além de pentes para cabelos
indica uma preocupação a respeito do comportamento e da aparência social dos indivíduos aqui
pesquisados, mas apenas dizer isso não nos dá completa certeza, por isso a pesquisa em jornais
e outras fontes poderão demonstrar a recorrência deste tipo de bem e poderemos então, arguir
em prol de uma ideia de padrões de civilidade e comportamento, tendo como base alguns
apontamentos feitos ao longo do texto.

Dizendo isso, trazemos também para estas percepções finais os livros, materiais de
escrita como tinteiros, penas e papel, além de itens de religiosidade. Estes são igualmente
interessantes, pois indicaram que havia uma preocupação, mesmo que elitizada e em pequena
escala (levando em consideração a época e o local) com a educação (até por terem sido
encontrados livros para educar e obras de cunho moralizante como os Cadernos de Civilidade
Christã (sic)).

O contrabando e o comércio legal, feitos pela fronteira em contato com o Prata ou


advindos ou enviados ao interior da província demonstram um aliado para se estabelecer
elementos comparativos tanto na questão de uma circulação de bens na região meridional do
112
Brasil ou mesmo como forma de comparar alguns pontos de pesquisa, itens e bens que aparecem 4
nos textos usados como base teórico metodológica para a pesquisa. E desta forma a análise das
já apresentadas listas de compras encontradas em diversos inventários vai dar um salto tanto
quantitativo quanto qualitativo nos resultados da pesquisa, pois irão apresentar outros itens que
não apareceram até o momento e contribuir no estabelecimento de um panorama geral da
distribuição e circulação de bens em geral, em Alegrete. Mas como são fontes amplas, não
houve tempo de realizar o trabalho metodológico final de categorização e alocação por
temáticas, como foi feito para os bens móveis.

O que ficou claro até o momento da pesquisa, é que havia um bom acesso a bens de
consumo, mesmo considerando as distâncias da época, estradas e meios de transporte, além de
uma pouca monetarização imediata, das atividades econômicas, o que foi possível perceber pela
pouca presença de dinheiro nas contas dos inventários, por exemplo. Não eram apenas os mais
abastados que conseguiam ter acesso a este tipo de bem e havia uma tendência em investir
também em bens de raiz, como moradias e campo, que pudessem ser deixadas para os herdeiros.
Mas a ampliação da base de dados e maior aprofundamento das análises em outros campos
como a diacronia e especificação maior dos bens, e desta forma, proporcionando uma visão
estatisticamente mais complexa, além do cruzamento com outras fontes, intercalando a análise
serial e quantitativa com uma qualificação de alguns elementos, que não puderam ser
explorados aqui, em razão da tipologia dos trabalhos monográficos.

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112
7
AS LEIS PENAIS E OS CÓDIGOS CAVALHEIRESCOS NO EMBASAMENTO DOS
CRIMES DE HONRA NO PRATA668

Mariana Flores da Cunha Thompson Flores669

RESUMO

A prática de duelos era expediente recorrente da cultura política argentina e uruguaia entre a
segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Contudo, uma questão
fundamental diferencia esses dois contextos: a singularidade uruguaia em legislar pela
descriminalização dos duelos. Essa problemática está contida numa proposição de pesquisa
mais ampla que pretende, através da análise histórica comparativa, abordar as noções de honra
e as práticas de duelos presentes no espaço platino, compreendendo a Argentina, o Uruguai e o
Brasil meridional no período acima referido. Para o desenvolvimento da pesquisa, nesse
sentido, fez-se pertinente realizar um estudo centrado na legislação que regia a prática dos
duelos, bem como, das normas morais que balizavam tal prática, através de códigos
cavalheirescos recorrentes no período. Há menção a vários códigos, na maioria europeus,
tomados como referência por duelistas, aos quais temos acesso para a pesquisa: Essay sur duel
(1890), do francês Conde Chateauvillard; Les lois du duel (1912), de Bruneau de Laborie, El
Duelo en los nuevos estudios y en las nuevas ideas (1907), do italiano Carlos Lessona, entre 112
outros. Dispomos também de escritos de autoria uruguaia e argentina de manuais de esgrima e
teses de jurisprudência sobre duelos, como a tese argentina intitulada El Duelo (1898), de Juan
Carlos Gallo; e Filosofia del Arte de la Esgrima (1883), do militar uruguio Marianao Sábat y
8
Fargas.

Palavras-chave: Fronteira platina. Duelo. Lei. Códigos cavalheirescos.

Foi ao longo dos séculos XVIII, XIX, sendo que para alguns lugares até o século XX,
que os duelos foram mais recorrentes, tendo se tornado parte do substrato cultural ocidental.
Isso pode ser explicado, de certa forma, em função de que, no período imediatamente anterior,
a realidade política, econômica e social da Europa baseava-se nos poderosos Estados
Absolutistas e, considerando a ideia de que o monopólio do exercício da violência por parte do
Estado retirou a possibilidade de “fazer justiça com as próprias mãos”, ou seja, da ação da

668
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
669
Doutora em História (PUCRS). Universidade Federal de Santa Maria. mariclio@yahoo.com.br
violência das mãos privadas, compreende-se porque no período moderno os duelos não tiveram
seu auge. Porém, a razão pela qual essa prática se tornou tão presente no período posterior não
se explica pela mesma lógica, já que o Estado continuava existindo. Ocorre que o estado
existente a partir do século XVIII é o estado burguês, que preconiza pela individualidade e livre
iniciativa, ou seja, pela defesa pessoal de seus direitos, onde a honra está inserida. É também
um estado de elite fluída, não mais aristocrática estamental, que dá possibilidade de ascensão
para muitos e que desprotege, de certa forma, membros mais antigos da elite. Estes últimos, por
sua vez, constituirão no duelo todo um complexo ritual que delimita aqueles que compartilham
dos ritos em detrimentos de outros. Dessa forma, segundo Ute Frevert, a honra e o duelo, no
século XIX, eram uma instituição da vida social, faziam parte da “atmosfera burguesa”. Nesse
sentido, pensar os duelos como relíquias feudais anacrônicas é ignorá-los enquanto fenômenos
concretos que têm sentido dentro da cultura burguesa (FREVERT, 1993, p.208).

No entanto, esse modelo de duelo, enquanto parte estilo de vida burguês, não pode ser
aplicado indiscriminadamente. Sabe-se que os duelos, antes de qualquer coisa, eram uma
prática da aristocracia. A burguesia apropriou-se e resignificou essa prática a partir de seus
códigos, o que ocorreu com mais ou menos sucesso em diferentes lugares. 112
A noção de honra e, consequentemente, a prática de duelos estão diretamente 9
relacionadas à capacidade de civilização e à ideia de “processo civilizador” de Norbert Elias no
sentido de que têm influência positiva no refinamento do comportamento da classe superior
(ELIAS, 1993). Os valores de honra, em termos gerais, segundo Remedi são “particularistas,
individualistas e, não raro, egoístas” (2003, p.121). A desonra só ocorria de fato à medida que
havia espectadores que testemunhassem a vergonha do ofendido degradado socialmente, em
público (ELIAS, 1993, p.242), por isso, diz-se que “a honra é um conceito relacional e
coletivo: é atribuído a uma totalidade que circunscreve ‘pessoas’ frente a outras totalidades e
é a partir desta totalidade que se desdobra a honra das pessoas” (MACHADO, 1985, p.8).

Fazer parte do seleto grupo que tem o direito de pedir e dar satisfação requer não apenas
propriedades e riqueza, mas educação para tal. Ter lido os inúmeros manuais publicados sobre
duelos e introjetado as regras era fundamental. Para tanto era necessário dispor de tempo. O
tempo livre, do qual aqueles que não precisam trabalhar efetivamente dispõe, garante a
possibilidade de educar-se através dos códigos de honra, seja pela leitura, seja pela prática de
exercícios físicos e de esgrima.

(***)

O tema desse artigo está contido numa proposição de pesquisa mais ampla, intitulada
“Noções de Honra e práticas de duelos na região do Prata – estudo comparado entre Argentina,
Uruguai e Brasil meridional (1850-1930)”, que pretende, através da análise histórica
comparativa, abordar as noções de honra e as práticas de duelos presentes no espaço platino.
Tal proposta se viabiliza por se tratarem de espaços passíveis de comparação, e de um tema
transversal a eles. A proposta de análise em termos comparativos, nesse caso, se mostra bastante
pertinente considerando-se o substrato econômico, social e cultural compartilhado entre as três
unidades de análise. Dessa forma, de acordo com o método comparativo, pretende-se procurar
e explicar semelhanças e diferenças a partir desses meios similares, no sentido de apontar os
caminhos singulares e a originalidade dos resultados em cada um dos espaços.670

O tema da honra e da prática de duelos adéqua-se perfeitamente a essa proposição


metodológica na medida em que, podendo considerar as unidades comparativas selecionadas 113
como meios semelhantes, percebe-se que no que se refere às questões/noções de honra as
aproximações são muitas, sobretudo em relação às camadas populares, contudo, parece divergir
0
bastante no que se refere à prática de duelos.

Em relação ao sistema jurídico, uma citação do historiador J.C Garavaglia aplica-se


indistintamente a todo o espaço platino em questão: “ricos y pobres no parecen formar parte del
mismo universo legal” (1999, p.31-32). Evidente que tal característica não era “mérito”
exclusivo da região platina, mas refletia um processo amplo e generalizado de marginalização
e criminalização dos costumes e práticas populares e, em relação às questões/crimes de honra
envolvendo populares, isso é claramente perceptível. Não se trata de considerar que havia uma

670
Sobre Método e História Comparada ver: BLOCH, Marc. “Para uma história comparada das sociedades
européias.” In: História e historiadores. Textos reunidos por Etienne Bloch. Lisboa: Teorema, 1998. BLOCH,
Marc. “Comparação.” In: História e historiadores. Textos reunidos por Etienne Bloch. Lisboa: Teorema, 1998.
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uma história comparada da América Latina. São Leopoldo: Oikos, 2009.
honra do popular e outra da elite, os sentimentos de honra e desonra são os mesmos, mudam,
no entanto, as práticas para restabelecimento da honra maculada e a criminalização de umas e
não de outras.

Sem incorrer em romantizações sobre a figura do gaúcho, ou del gaucho, o fato é que
encontram-se diversas referências bibliográficas e documentais a respeito de usos e costumes
muito particulares a esse tipo social comum a todo o espaço platino. Os “hábitos
pendencieiros”, referidos por Domingos Faustino Sarmiento que faziam parte da vida do
gaúcho criando “sentimentos de honra e uma esgrima própria” (SARMIENTO, 1996, p.62)
combinam com a análise de Chasteen (1990) a respeito dos duelos com facas travados por
gaúchos, na fronteira do Brasil-Uruguai, no período após a Guerra da Cisplatina. A importância
da defesa da honra na cultura desses homens da fronteira representava um dos bens mais
importantes no universo destes indivíduos e a variedade de armas brancas existentes usadas
para esse fim era considerável. Usavam facões, que tem seu equivalente entre argentinos e
uruguaios com o lusitanismo "facón"; adagas; "caroneras", um tipo de adagas grandes feitas
com espadas quebradas, usadas, como o nome diz, embaixo dos arreios de montaria nos
cavalos; "verijeras", facas pequenas feitas com tesouras de esquila (usadas para tosar ovinos), 113
que eram levadas nas verilhas, como sugere o nome, para necessidades extremas, entre outras
1
variações (DOMENECH, 1988).

Além do trabalho de Chasteen, outras pesquisas apontam para a particular noção de


honra dos “gauchos”, bem como, sua importância na formação cultural desses indivíduos. Em
um artigo sobre a prática da degola no Rio Grande do Sul do século XIX, Guazzelli (2004, p.52)
afirma que a morte em combate era preferida à degola, que humilhava o prisioneiro, uma vez
que o deixava inerme e comparável às ovelhas que eram abatidas dessa forma. 671 A
pesquisadora Ondina Fachel Leal (1992), ao abordar os altos índices de suicídios na zona rural
da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, encontra justificativa para esse fato na noção de honra
que permeia essa sociedade. Segundo ela, os homens, trabalhadores do campo, ao atingirem
uma idade em que não conseguem mais desempenhar com destreza os seus serviços, muitas

671
A esse respeito ver também BOUTON, Roberto J. La vida rural en el Uruguay. 4ª ed. Montevideo, Banda
Oriental, Colección Heber Raviolo, 2014. p. 323.
vezes, optam pelo suicídio por se negarem a se sujeitar a esperar pela morte, demonstrando
querer exercer domínio sobre essa última possibilidade que lhes resta.

Essa particular noção de honra guarda relação com o que Barrán denominou de “cultura
‘bárbara’”, percebendo que entre as décadas de 1800 e 1870, a sociedade uruguaia era
eminentemente rural e dominada por uma cultura masculina devido à produção ganadeira, que
rechaçava naturalmente a participação feminina, e fundamentava uma sensibilidade bárbara
com o permanente exercício da violência física

La violencia en sus formas físicas más elementales, el delito de sangre y de cerca entre
victimario y victima; el combate cuerpo a cuerpo en los enfrentamientos de
caballerías; el acto de crueldad que, cuchillo en cinto siempre, sigue inmediato a la
pasión; el degüello por compasión, el famoso “despenar” de los gauchos a los heridos
abandonados y moribundos en campos de batallas protagonizadas por ejércitos sin
servicio de enfermaría; cierto estoicismo que se practica y se exige a los demás ante
el dolor físico; cierta impasibilidad antes las heridas, todo eso sí tal vez se vincule a
la matanza a cuchillo diaria e infinita del vacuno. (BARRÁN, 2014, p. 36).
113
2
Enquanto encontram-se diversas semelhanças entre essas práticas populares referentes
às noções de honra no espaço platino, quando nos voltamos ao tema dos duelos outra
perspectiva se abre. A partir da bibliografia existente para Argentina e Uruguai percebe-se que
não houve termos de comparação entre o Brasil (mesmo o sul) e esses países. A dimensão e o
volume dos casos de duelos nos países vizinhos foi algo impressionante. Ocupavam páginas
diárias nos jornais, envolviam aulas de esgrima com professores franceses para membros da
elite, criavam ambiente para a circulação de códigos cavalheirescos que traziam normatizações
a repeito da prática de duelar, surtia certa competição entre os cavalheiros por número de duelos
em que já haviam se envolvido e, até mesmo, percebendo-se uma necessidade de duelar alguma
vez para alcançar aceitação social. Segundo Gayol (2008, p.13), a partir da década de 1870,
mas, sobretudo, entre 1880 e 1920, os duelos tornaram-se uma instituição da vida da elite
argentina, uma “mania”. Por esse período os códigos e rituais sofreram a mais apurada
definição. Os duelos eram um gesto público e necessário para ingressar ou permanecer nas
elites.
No Brasil, embora acontecessem, os duelos não chegaram a instituir uma tradição e,
mesmo no Rio Grande do Sul, houve duelos pontuais, que adquiriram quase um tom pitoresco
como o “duelo de farrapos”672 entre o general Bento Gonçalves e o coronel Onofre Pires, os
freqüentes desafios lançados da tribuna pelo senador Pinheiro Machado aos seus desafetos
políticos, bem como os desafios entre o general Flores da Cunha e Batista Luzardo, entre outros.
No entanto, fontes como jornais, as mais importantes em se tratando de relatos de duelos na
Argentina, por exemplo, no Rio Grande do Sul também não costumam trazer esse tipo de
“notícia”. Segundo Remedi (2003, p.119), quando consta esse tipo de notícia, mais uma vez
recaem em casos pontuais como o “desafio lançado na imprensa pelo médico Jacinto Gomes
ao, também médico, Raymundo Vianna, após intenso debate e disputa interna da faculdade de
Medicina de Porto Alegre” no primeiro quartel do século XX.

Em parte, essa discrepância em relação a ocorrência de duelos no sul do Brasil e nos


países platinos vizinhos poderia ser atribuída à divergência legal, ou seja, pelo fato de que desde
as Ordenações Filipinas, sendo reafirmado em toda a legislação penal posterior, tanto no Brasil
quanto em Portugal, o duelo sempre foi tipificado como crime, ou seja, proibido, enquanto que
no Uruguai foi descriminalizado. Contudo, na realidade, a divergência legal não explica 113
absolutamente esses contextos díspares, já que na Argentina o duelo, assim como no Brasil,
3
também era tipificado como crime e no caso uruguaio a descriminalização só ocorreu em 1920,
quando muitas décadas anteriores com altos índices de ocorrências de duelos já antecediam.

No caso da Argentina o duelo era compreendido como delito especial pelo Código Penal
de 1887, ou seja, figura delitiva especial com penas atenuadas nos resultados de morte ou lesão
demarcando a eventual morte num duelo de um assassinato comum e distinguindo o duelo de
conflitos populares ordinários (GAYOL, 1999, p315). No caso da legislação penal brasileira no
período imperial, os crimes motivados por questões de honra só figuram como circunstâncias
atenuantes dos crimes de homicídio, ferimento, agressão, etc., sem a referência explicita ao
termo duelo, no Capítulo III, Secção II, Artigo 18, inciso 4º.673 Já no Código Penal da

672
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRGS). Coletânea de Documentos de Bento Gonçalves. nº 375.
26 de fevereiro de 1844. (AP.CV-8568) e nº 376. 27 de fevereiro de 1844. (AP.CV-8569). Este duelo foi escrito
por João Simões Lopes Neto em um de seus contos. LOPES NETO, João Simões. Duelos de farrapos. IN: Contos
Gauchescos e Lendas do Sul. Porto Alegre: L&PM, 2002.
673
Lei de 16 de dezembro de 1830. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-16-12-
1830.htm Acesso em 21 de julho de 2016.
República, o duelo aparece tipificado como crime, no Capítulo VI do Título X, “Dos crimes
contra a segurança de pessoa e vida”, mas como penas muito mais brandas do que aquelas
previstas para os crimes de homicídio comum.674
Nesse sentido, cabe questionar como e porque esses meios semelhantes chegaram a
soluções jurídicas tão distintas e, especialmente, no caso do Uruguai que deu lugar a uma
realidade legal sem parâmetros no mundo ocidental.

A chamada Ley del Duelo, que descriminalizou a prática de duelos até a década de 1990,
foi aprovada no Uruguay em 6 de agosto de 1920, no governo colorado de Baltasar Brum,
sucessor político de José Batlle, que vinha dando continuidade às reformas modernizadoras
empreendidas pelo primeiro, como a lei do divórcio por parte da mulher, jornada de trabalho
de 8 horas, laicização do Estado, etc. A proposta de lei já havia sido apresentada anteriormente,
em maio de 1919, pelo deputado Blanco Jaun Andrés Ramirez, tendo sido derrotada naquele
momento, mas no ano seguinte, foi o partido colorado que a tirou da gaveta e reacendeu o
debate que culminou com sua validação. O contexto que possibilitara essa mudança de
orientação de um ano para o outro do partido colorado está relacionado a um duelo realizado
entre o ex-presidente colorado, mas ainda líder político, José Batlle y Ordoñez e Washington 113
Beltran Barbat, político blanco em ascensão e periodista do El País. Só naquele último ano,
4
Batlle já havia batido-se em duelo outras duas vezes além dessa, mas o desfecho fatal para
Beltran e uma possível condenação a Batlle pela morte do contendor, já que naquele momento
não usufruía de foro privilegiado por não ocupar nenhum cargo político formal, levaram o
partido colorado a convenientemente recuperar a proposta de lei elaborada pela oposição. 675
Chama a atenção, em todo esse contexto, o fato de que, diferentemente da primeira ocasião em
que a lei fora proposta, na qual prevaleceu a divergência político partidária, a aprovação da lei
contou com votos e debates que não seguiram essas divisas, os argumentos a favor e contra a

674
Decreto n. 847 – de 11 de outubro de 1890. Código Penal. Disponível em
http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049 Acesso em 21 de julho de 2016.
675
Há teorias de que esse duelo teve contornos de assassinato, tendo desrespeitado os códigos cavalheirescos já
que os primeiros tiros foram para cima, das duas partes, mas o seguinte foi, por parte de Batlle, em direção a parte
superior do corpo de Beltrán, visando claramente atingi-lo. Essa descrição do duelo é respaldada por uma autopsia
histórica realizada pelo médico legista Guido Berro em 2011 com base na autópsia descrita no processo crime do
duelo. Outra fonte que defende a hipótese do assassinato é o jornalista Diego Fischer, que defende que a descrição
da autópsia do processo indica o uso de “bala marcada” por parte de Batlle (artifício empregado no projétil para
que tenha maior letalidade). Ver: BERRO, Guido. TURNES, Antonio L. Autopsia histórica: la muerte de
Washington Beltrán Barbat em 1920. In: Rev. Med. Urug. 2011, 27, pp.112-119. FISCHER, Diego. Qué tupé,
Batlle-Beltrán, ¿duelo o asesinato? Montevideo: Debolsillo, 2010.
lei nada tiveram que ver com as divisões tradicionais da política uruguaia (PARKER, 1999). A
possível prisão de Batlle em função do duelo fatal com Beltran não foi, no entanto, o único
elemento que garantiu o apoio de colorados a um projeto de lei blanco, embora tenha sido o
motivador. Os debates excederam essa ocorrência e trouxeram à tona questões profundas a
respeito de como essa sociedade compreendia a prática de duelos, reivindicando sua validade a
despeito da legislação vigente e evidenciando a existência de outros códigos morais que tinham
peso real ao lado das leis formais.

A primeira constituição do Uruguai data de 1830, mas as leis penais permaneceram


dispersas e baseadas na legislação colonial (Leyes de Indias, Recopilación Castellana, Siete
Partidas de Don Alfonso, Reglamento de la Capitanía General y del Virreinato, etc), nos usos
e costumes regionais aplicados como lei e nas disposições inorgânicas do Governo Provisório
de 1825. Nesse contexto, os magistrados utilizavam indistintamente qualquer referência –
tornando-se legisladores e deixando vulnerável o princípio do equilíbrio dos poderes. Ao longo
da década de 1870, várias comissões foram formadas a fim de redigirem um Código Penal, o
qual foi aprovado em 1889, ficando vigente até 1934, baseado no modelo italiano de cunho
liberal apesar de manter a pena de morte, abolida em 1907 (ALLER, 2008). Esse código 113
reafirmou a criminalização dos duelos, embora seguisse a voga de outros países da Europa e da
5
América, como Argentina, por exemplo, de considerar o duelo como um delito especial,
distinguindo o duelo dos conflitos ordinários, fazendo um reconhecimento implícito dos
códigos morais vigentes. Apesar das penas moderadas, o descumprimento da lei se manteve, o
que, de certa forma, já era esperado pelos autores do Código que se contentavam com a
esperança de que a lei seria aplicável um dia (PARKER, 1999).

Contudo, essa inadimplência permanente da lei que criminalizava o duelo não


configurava obrigatoriamente um ambiente transgressor. Havia um respaldo moral e legal
buscado nos códigos cavalheirescos que embasavam a prática do duelo atribuindo-lhes status
de lei, conforme referiam-se os duelistas a estas normas. Na realidade, o que parecia estar em
desacordo não era a prática clandestina dos duelos, mas a vigência de uma lei que ninguém
obedecia, incompatível com a moral cavalheiresca da classe política uruguaia.

Há a referência a vários códigos, na maioria europeus, aos quais os duelistas se


remetiam: Essay sur duel (1890), do francês Conde Chateauvillard; Les lois du duel (1912), de
Bruneau de Laborie, El Duelo en los nuevos estudios y en las nuevas ideas (1907), do italiano
Carlos Lessona, entre outros. Encontra-se também a produção de escritos de autoria uruguaia e
argentina de manuais de esgrima e teses de jurisprudência sobre duelos, como a tese argentina
intitulada El Duelo (1898), de Juan Carlos Gallo; e Filosofia del Arte de la Esgrima (1883), do
militar uruguio Marianao Sábat y Fargas.

Referir-se a esses códigos como “leis” não era mera expressão, de fato constituíam uma
legalidade paralela, baseavam-se em textos redigidos como códigos legais, com artigos e
incisos, que traziam preceitos explícitos e eram largamente difundidos. Com algumas variantes
entre si, partilhavam de uma base doutrinária comum. Parecendo-se a livros de etiqueta, em
formato codificado, versavam sobre os procedimentos do desafio, padrinhos, graus de ofensa e
direitos do ofendido, escolha das armas e disposição dos contendores no momento do lance. A
adesão ao protocolo era a garantia de um lance leal e legítimo, assegurando igualdade e
prevenindo assassinatos. Eram proibidos, em geral, duelos entre devedor e credor, por exemplo,
e, por vezes, duelos a morte ou em condições disso. Os códigos, por tanto, cumpriam a função
de “civilizar” o duelo e amortizar possíveis desenlaces fatais, sem chegar a tornar-se uma farsa.

Segundo os códigos cavalheirescos só estava permitido entrar em polêmicas, ofensas ou


113
fazer acusações (normalmente veiculadas através da imprensa) àqueles que garantissem que se 6
na sequencia fossem chamados a dar satisfação, aceitariam o desafio a um duelo. De certa
forma, aceitava-se o uso desse expediente como meio para manter a civilidade e a
responsabilidade na imprensa e no debate político. Aceitar um duelo, por tanto, significava
contrair um compromisso solene, o duelista implicitamente declarava aceitar o opositor como
um homem digno – um igual – acatando o acordo dos padrinhos sobre as condições do lance
ou a decisão dos mesmos sobre não ser necessário o duelo dando por terminada a contenda que
levou ao desafio. O duelo poderia ser recusado no caso de uma das partes não reconhecer o
opositor como um cavalheiro ou quando uma das partes não estava apta a enfrentar o desafio,
por idade ou incapacidade física.

Evidente que, ao final das contas, os códigos eram a produção de seus autores, sem os
rigores e sanção de ninguém nem de qualquer instituição que cobrasse ou reprimisse o
cumprimento ou não das normas (embora o opróbrio social tivesse seu peso), mas havia
procedimentos para dirimir questões de interpretação entre os padrinhos, tribunais de honra
(cortes informais) e jurisprudência.

Os duelos, portanto, não se destinavam propriamente a ferir e matar o oponente - até


porque, a princípio, o risco estava colocado para os dois lados – mas funcionavam como ritual
de desagravo não se reduzindo a simples vingança. Era como se houvesse um acordo tácito
entre os contendores de que nenhuma das partes queria sair ferida, muito menos morta, então o
ato em si não deveria ter intenção letal de nenhuma das partes. Eram comuns que os duelos com
arma de fogo ocorressem com tiros disparados para cima, bem como, os duelos de espada
fossem de “primeiro sangue”, que dizer, considerados resolvidos ao primeiro ferimento de um
dos lados. Mas nem por isso os duelos se traduziam em mera formalidade ou encenação. Era
preciso coragem, desejo de reparação da honra, para enfrentar um duelo porque nada garantia
que a outra parte cumpriria de fato o referido acordo tácito. Além disso, sempre havia o risco
de imperícia de alguma das partes por falta de familiaridade com a arma branca ou de fogo ou
por nervosismo.

Em 6 de agosto de 1920, no entanto, as normas que orbitavam no terreno da infrajustiça


(MANTECÓN, 2002) foram incorporadas à esfera oficial redundando na aprovação da Ley del
113
Duelo que descriminalizava tal prática. Em 1934, o novo Código Penal aprovado no Uruguai 7
(ALLER, 2008) incorporou a Ley del Duelo mantendo-a vigente até 1992. Que mudança de
percepção se procedeu para que os duelos de crime, ou delito especial, passassem a figurar
como formalmente legais entre um Código Penal e outro, distantes apenas poucas décadas entre
si e conferindo ao Uruguai uma característica única no universo legal ocidental?

Embora o duelo seja um ato anti-católico e, por isso, sua descriminalização relacione-
se com a política batllista, ainda assim, segundo Parker (1999), cabe refletir a respeito do
paradoxo de se aprovar uma lei aparentemente bárbara e conservadora num contexto de um
governo que se identificava como moderno. Mesmo que houvesse parlamentares contra a
aprovação da referida lei, argumentando que, mesmo os duelos sendo um mal necessário, era
importante manter a proibição dos mesmos porque este era o papel dos legisladores e o papel
da lei - quer dizer, se os legisladores consideravam que o critério público estava equivocado,
era seu dever colocar-se a frente do erro para tratar de corrigi-lo – todos eram do acordo que a
cumplicidade que prevalecia entre duelistas ou não de guardar silêncio sobre os lances
relaciona-se ao fato de que ninguém via nos duelistas pessoas criminosas ou imorais, não
havendo uma condenação moral da prática dos duelos em geral.

A década de 1910 marcou no Uruguai o apogeu do positivismo, com a ascensão de uma


classe política com formação maciça em direito, combinado aos anos de “disciplinamento”
identificados por Barrán (2014), quer dizer, a prática dos duelos, envolta por toda uma
codificação e normativa própria, paradoxalmente trazia uma civilidade à resolução privada de
conflitos e configurava um expediente cada vez mais recorrente, sobretudo, entre homens
públicos, (políticos, periodistas, etc). Dessa forma, a criminalização dos duelos, levava os
duelistas a procederem na clandestinidade em explícito descumprimento da legislação, o que ia
de encontro a esse contexto positivista que pressupõe o triunfo da lei.

A preocupação em harmonizar o código com a prática cotidiana para que a lei não fosse
letra morta foi o que deu à lei do duelo o toque de modernidade que permite compreende-la
nesse contexto. Aprovada a lei, encerrou-se no Uruguai a farsa legal em relação à
criminalização dos duelos que vigia em quase todos países ocidentais, contudo, só os
parlamentares uruguaios viram no descumprimento da lei um problema que merecia adequação
ao código penal (PARKER, 1999).676
113
8
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676
Em 1891 foi apresentado um projeto de despenalização do duelo na Argentina com argumentações idênticas às
apresentadas no Uruguai mas que jamais foi aprovado. Ver: GAYOL, Sandra Duelos, honores, leyes y derechos:
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Doutorado. 114
2
A VILA DE “SÃO FRANCISCO DE BORJA DAS MISSÕES” (1834 - 1887):
ELEMENTOS DA HISTÓRIA E DE GEOPOLÍTICA NA FORMAÇÃO DOS
LIMITES MERIDIONAIS DO BRASIL*677

João Rodolpho Amaral Flôres**678

RESUMO

Neste estudo situamos no cenário historiográfico brasileiro e sul-rio-grandense a Vila de São


Borja no século XIX, destacando a importância geopolítica da localidade no processo de fixação
das fronteiras meridionais do Brasil. A análise percorreu, assim, o encerramento do período
missioneiro até a elevação da sua área geográfico-administrativa à condição de cidade do
Império do Brasil, no transcurso de 1756 em diante, priorizando o foco histórico de 1834 a 1887
já como uma povoação brasileira. Sua finalidade consistiu na identificação, caracterização e
compreensão da construção de uma nova organização econômica, social e política, de acordo
com as práticas capitalistas vigentes ao longo do período que sucedeu o das “reduções”, na área
histórica onde outrora se desenvolveram os Sete Povos das Missões Guarani, ou seja, na parte
central da América do Sul. Focalizou, ainda, a influência que a posição geográfica e estratégica 114
3
de São Borja teve neste cenário, em especial no que diz respeito à formatação final do território
imperial do Brasil no século XIX. O trabalho completo, base de uma dissertação de mestrado e
de um livro publicado, reúne um elenco expressivo de autores e de fontes primárias exclusivas
até então, sob o ponto de vista de produção historiográfica, especialmente, entre outros, pela
prospecção de informações no âmbito da documentação da Câmara de Vereadores de São Borja
do século XIX e do livro Tombo da sua Igreja Matriz.

Palavras-chave: São Borja – Fronteira- Geopolítica

INTRODUÇÃO

Muitas são as razões que nos levam a tratar sobre a história de São Borja, especialmente
em relação à sua condição espacial de fronteira nacional. São Borja é distinguida como um dos
Sete Povos das Missões Guarani, sob domínio da Espanha e gestão jesuítica, do século XVII.

* Trabalho apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Doutor em História; Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: joaoraf1960@hotmail.com
Distinção que avançou pelos séculos seguintes, trazendo àquela localidade uma marca
inapagável na sua significação histórica. Na prospecção realizada, entre outros elementos,
destacamos a formatação dos espaços geográficos, políticos e econômicos do sul do Brasil,
porque ao adentrarmos na segunda metade do século XVIII o silêncio vai tomando conta sobre
o destino dessas povoações reducionais, muitas delas inseridas no território do Rio Grande do
Sul e, quando muito, se comenta a respeito da resistência guarani comandada por Sepé Tiaraju
ao final daquele período. Sobre as décadas subsequentes, a constatação que aflora é de uma
historiografia focalmente difusa e/ou exígua, como a decorrência da quase inexistência de
pesquisas e produções substanciais a esse respeito.

Com o intuito de trazer novas contribuições a esta historiografia, priorizamos tratar no


presente trabalho a transição histórica de São Borja, isto é, da fase reducional até alcançar a
etapa republicana como município brasileiro. Em tal contexto, especialmente as suas “histórias”
dos séculos XVIII e XIX. Transição que teve outros significados igualmente importantes, em
se tratando das fronteiras do Brasil e da fixação humana naquele espaço geográfico. Cabe a
lembrança que este texto é parte de uma dissertação de mestrado do autor, concluída em 1996,
que mais tarde, em 2012, tornou-se um livro publicado679. 114
Na intenção de compreender os elementos da história geopolítica, econômica e social 4
desse período, isto é, suas assimetrias e atomizações, a pesquisa percorre a gênese histórica de
São Borja como reduto missioneiro espanhol, passando pela conquista portuguesa liderada por
Borges do Canto em 1801, estendendo-se até a sua afirmação como uma Vila do Império
Brasileiro. Com o repovoamento da região no século XIX surge um novo núcleo social, típico
da fronteira, marcado por uma população de “brasileiros” bastante miscigenada, a qual
contribuiu para a posse definitiva da região pelos luso-brasileiros. Local que, igualmente, foi
praça de resistência e luta nas questões platinas em dois momentos distintos, como sejam, entre
1801 e 1834 e de 1834 a 1887, quando já às vésperas da República foi reconhecida como
“cidade” (FORTES e WAGNER, 1963). Ao final desse ciclo temporal, São Borja destacou-se
como aglomerado populacional mobilizado na defesa da implantação da República no Brasil,

“A Vila de São Borja (1834-1887) numa conjuntura de transição: história socioeconômica e geopolítica”. São
679

Leopoldo/RS. Dissertação defendida na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. “A Vila de ‘São
Francisco de Borja das Missões’ (1834 - 1887): Elementos da História e de Geopolítica na formação dos limites
meridionais do Brasil”. Santa Maria/RS. Livro da Editora da UFSM.
situação que marcou a existência da sua comunidade ao longo do século XX em termos de uma
mentalidade política republicana.

Podemos dizer, então, que o estudo traz contribuições acadêmicas e de interesse geral,
porque além de buscar subsídios históricos do objeto nas obras tradicionais sobre Missões
Jesuíticas e História do Rio Grande do Sul, em autores na sua grande maioria reconhecidos e
consagrados pela academia, ainda que muitos vistos como “tradicionais” na atualidade,
prospectou informações empíricas nunca antes trabalhadas academicamente até o final dos anos
da década de 1990. Isso se deveu ao levantamento de materiais nos arquivos existentes naquela
municipalidade, que abarcam realidades do século XIX e, da mesma, forma, na documentação
eclesiástica existente no local.

Com base em aportes hermenêuticos e dialéticos, tratamos das várias situações


históricas existentes num mapa geopolítico em formação, ao longo de pelo menos dois séculos,
que vai sendo balizado por uma “dinâmica de fronteiras”, físicas e políticas, mas que,
igualmente, tem que considerar uma “cultura de fronteira”. Em tal período, entre os poucos
trabalhos significativos que abordam diretamente a história de São Borja, destacamos o de
SEMPÉ (1982), sobre fatos da época reducional; a monografia histórica e de costumes de
114
RILLO (1982) e o livro de RODRIGUES (1982), que identifica acontecimentos ao longo de 5
três séculos de ocupação do território. Todas as obras foram editadas por ocasião das
comemorações do tricentenário da fundação da redução de São Francisco de Borja (1682-1982).
Produzido anteriormente, temos a obra de FREITAS (1943), que abarca acontecimentos
militares sobre a invasão paraguaia à Vila, no ano de 1865. Os demais estudos abordam os
“aspectos gerais” da história missioneira, dos Trinta e dos Sete Povos Guarani, constituindo-se
muitos deles em capítulos e/ou partes da bibliografia sobre a história do Rio Grande do Sul.
Entre estes optei em utilizar os trabalhos de BRUXEL (1978), CÉSAR (1979), DAMASCENO
et al (1954 e 1957), FERREIRA FILHO (1978), FLORES (1978, 1986), FORTES (1963),
FREITAS (1982), KERN (1980), PORTO (1954), SCHULTZ (1960), SILVEIRA (1979),
TESCHAUER (1921), VELLINHO (1970, 1975) e os Anais dos Simpósios Nacionais de
Estudos Missioneiros (1975 - 1991), realizados na cidade de Santa Rosa, RS.

Cabe salientar que a análise do processo de desenvolvimento econômico e social que


aconteceu neste território, bem como as condições culturais da sua população, cujo cotidiano
esteve influenciado pela marcante presença da Igreja Católica, pelo trabalho agropastoril e pela
vivência dos problemas da fronteira, são os caminhos que seguimos por não os ter encontrado
na produção historiográfica existente. Nesse sentido, juntamos informações já presentes na
historiografia aos dados encontrados nas fontes primárias empíricas que foram consultadas,
orientados pela proposta analítica da história de São Borja focada no século XIX. Apreciação
que mantém e rediscute seus elos com as fases anteriores, isto é, a reducional e a das
comandâncias militares espanholas, bem como projetando a inserção desta comunidade na vida
republicana brasileira ao final do século já referido.

Esse repensar abrangeu, entre outros, temas como a questão da posse e utilização da
propriedade; as características gerais do cotidiano da sua sociedade urbana e rural; a situação
das famílias indígenas remanescentes; a utilização dos espaços físicos da Vila e seu aparato
jurídico e político-administrativo, que serviu de base para a afirmação ideológica da classe
proprietária e como base para a disciplinarização da sociedade680. Considerou, também, o papel
da Igreja Católica na afirmação de uma mentalidade baseada no individualismo e nas posses
materiais privadas nesta sociedade, situação contrária àquela do tipo comunitária vivida no
período das reduções, que decisiva influência teve da Igreja Romana. Além disso, o destaque 114
aos elementos que caracterizam a importância geopolítica da “vila” no espaço de fronteiras
6
entre as repúblicas platinas e o Império do Brasil. Mas é no funcionamento da Câmara de
Vereadores de São Borja, instituição principal da Vila, destinada em suas ações a regular e
“disciplinar” o cotidiano dos habitantes, que concentramos parte significativa de nossa análise
e, daí a prospecção dos subsídios para a identificação da nova organização social, econômica e
cultural que se fez presente, entre os anos de 1834 e 1887.

A falarmos de capitalismo sobre àquela realidade histórica, o fazemos em comparação


às características que predominaram na ótica das relações econômicas do período missioneiro,
restando claro que o novo modo de produção muito se aproximava de atividades de cunho
mercantil, então, pré-capitalistas, o mesmo valendo para o exame já bastante clássico sobre a
existência de um “socialismo missioneiro” nos séculos XVII e XVIII.

680
Nos valemos, então, de Foucault (1993) para compreender meandros sobre a teoria da disciplina social.
4. São Borja e suas “Histórias”
Quando nos referimos às histórias de São Borja estamos tratando da identificação de
dois momentos distintos do seu devir na Ibero-América que, envolvendo ações humanas,
caracterizaram-se por suas especificidades políticas e, sobretudo, de valorização do espaço e da
organização social. O primeiro deles denominamos de “história espanhola”, que teve início com
a fundação da redução no ano de 1682 e seguiu, de 1756 até 1801, com a administração militar
dos prepostos espanhóis, quando da destruição dos Sete Povos. A outra história de São Borja,
a “luso-brasileira”, iniciou-se em função do processo de definição de fronteiras em 1801,
quando da conquista de uma parte do espaço missioneiro pelos portugueses, estendendo-se até
os dias atuais.

A primeira história é predominantemente marcada pela vigência do sistema reducional


implantado pelos jesuítas, bem como a sua crise, a partir da metade do século XVIII. Houve,
nesse contexto, um projeto de evangelização acordado entre a Igreja e o Estado espanhol e
executado pela Companhia de Jesus, que permitiu a preservação cultural e étnica, mesmo que
parcial, das populações indígenas. Contudo, os acontecimentos políticos que ocorreram no
continente europeu em meados do século XVIII, e de modo especial na Península Ibérica, 114
resultado da crise do sistema mercantil, precipitaram a dissolução das Missões jesuíticas que
7
formavam os 30 povos guarani.

No caso dos Sete Povos, as circunstâncias dos acordos de limites entre Portugal e
Espanha, a partir da assinatura do Tratado de Madri em 1750, geraram as Guerras Guaraníticas
e, de imediato, naquele momento, a expulsão dos religiosos jesuítas. Situações que foram
responsáveis pela destruição e decadência das bases de sustentação política, social e econômica
do sistema de reduções.

No período de 1756 até 1801 a região correspondente às antigas Missões, e, por


conseguinte, o que restou do povoado de São Borja, esteve envolvido em questões de limites
as quais foram responsáveis por inúmeros conflitos na área, decorrentes dos trabalhos de
demarcação. Sob o ponto de vista administrativo, o território passou ao controle e subordinação
dos governantes espanhóis sediados em Buenos Aires, representados, no local, pelas
comandâncias militares.
Os governos espanhóis centralizaram suas ações junto ao sítio do que havia restado da
planta de São Borja, instalando, ali, a sede da comandância. Neste ínterim, a sucessão de
diversas administrações deixou nítidas as marcas da inoperância e do nepotismo, cujas
repercussões, já foram intensamente repercutidas na historiografia.

A segunda história de São Borja, ocorrida no espaço de tempo entre os anos de 1801 até
1834, é marcada pela conquista lusitana sobre a região missioneira até então ocupada pelos
espanhóis. Essa ascendência portuguesa determinou a incorporação do referido território à
Capitania de São Pedro, sendo que a partir de 1807, por ocasião da transformação desta para
Capitania Geral, São Borja passou a integrar área do município de Rio Pardo, assim
permanecendo até o ano de 1834, quando foi elevada à condição de Vila.

Importa destacar que estes momentos distintos apontam situações comuns de uma
história laica e civil de São Borja. Entretanto, torna-se tarefa difícil a análise e construção
historiográfica, pois, para analisar a vida social, econômica e cultural que ali se desenvolvia,
rareiam-se as fontes de consulta. Contudo, são notórios os relatos dos acontecimentos militares,
os quais se sobrepujam aos demais, predominando, do mesmo modo, os estudos e produções
de ordem política. Nessa historiografia são relatadas situações determinantes do processo de
114
privatização das propriedades, cujas terras são oriundas do confisco dos territórios de uso 8
comunal, redistribuídos que foram entre os indivíduos que compuseram as forças militares de
ocupação espanhola na região missioneira e, após, sob domínio luso-brasileiro. Da mesma
forma, se referem às precárias condições de sobrevivência a que ficaram submetidas as
populações indígenas, relegadas a um estado de abandono.

2. A “Vila de São Francisco de Borja das Missões” no Século XIX

Como referido anteriormente, a constituição da Vila diz respeito à importância


geopolítica que a mesma possuía na região das Missões junto ao rio Uruguai, em território que
fora de intensa disputa entre castelhanos e portugueses. MORAES e COSTA (1987, p. 141)
enfatizam que a ocupação dos territórios estratégicos se dá a partir da “valorização” da posse
de instrumentos jurídicos de propriedade. Daí os autores denominarem de “valor estratégico”
ou de valorização “política” do espaço a dominação efetiva do mesmo, cuja analogia podemos
fazer em relação à São Borja:

A história da humanidade nos aponta muitos exemplos de confrontos bélicos entre


nações, cujo móvel em disputa era o domínio de um dado espaço, muitas vezes
destituído de valor econômico diretamente. Manifesta-se aqui, claramente, algumas
das qualidades do espaço (...), como, por exemplo, a advinda da localização
privilegiada (...).

A efetiva ocupação desse ambiente do Pampa sul americano gerou a necessidade da sua
organização. Politicamente, essa tarefa foi realizada pelos proprietários de terras, que nos
limites internos da Vila ali haviam se estabelecido de modo perene desde 1801. Como o objeto
central de análise gira em torno da atuação da Câmara de Vereadores, cabe destacar que seus
integrantes realizaram os principais trabalhos de aparelhamento institucional da Vila, influindo,
portanto, de maneira expressiva no cotidiano da população. Definindo e gerenciando os
trabalhos de execução das condições de infraestrutura urbana, concebeu, igualmente, as
estratégias políticas para um amplo controle social sobre toda a comunidade, o qual resumia-se
em torno da máxima da “manutenção da ordem pública” ou aquilo que referimos como
intenções de “disciplinarização” de sua “gente”, constituída de elementos de todos os matizes 114
9
681
e origens (Grifos nossos).

Os instrumentos e conteúdo deste controle estão identificados através das decisões


tomadas pela Câmara que afetavam o cotidiano da população da Vila, mais especificamente no
que dizia respeito às suas particularidades de educação, saúde, assistência social e serviços. Os
atos impostos sobre as vivências públicas e disciplina foram no sentido de enquadrar os
personagens a uma nova ordem social e política, já que até então estes praticamente não
reconheciam leis ou dogmas morais, numa área de transição e de permanente luta hegemônica
sobre propriedades e domínio da fronteira.

681
Na obra de ROCHE (1961, p. 155), expondo um relatório do Conde de Caxias, governador da Província do Rio
Grande do Sul, de 1º de março de 1846, no item “Segurança Individual” fica evidente a preocupação das
autoridades da época com as situações que envolviam o comportamento e a segurança individual dos cidadãos.
Essa preocupação dava-se, especialmente, ao que Caxias denominou de “a ultima classe da sociedade, degradada
de todas as luzes da religião, e da civilisação...”, quando se referia aos poucos assassinatos ocorridos na Província,
protagonizados por “causas tão animaes e mesquinhas, como a intelligencia dos Bugres selvagens e dos escravos
africanos que os commettem”. (sic) Por essas colocações é possível termos uma ideia de quem poderiam ser os
elementos da sociedade que colocavam em perigo a dita ordem pública.
Por isso, torna-se importante salientar que esse papel político desempenhado pela
Câmara de Vereadores da Vila de São Borja extrapolou meras e formais determinações de
ordem legal, emanadas do centralismo monárquico, cuja preocupação precípua era ter pleno
controle sobre os acontecimentos regionais e locais dos diferentes espaços do Império.
Considerando-se as intenções e a operacionalização de tais procedimentos, podemos dizer que
internamente, como ação política dos proprietários-vereadores, estes, além de darem
cumprimento aos preceitos legais, impuseram à sociedade local os seus princípios ideológicos
de classe, procurando manter os demais grupos sociais sob uma constante alçada de tal
autoridade. Logicamente, não podemos aqui imaginar as ditas ideologias clássicas decorrentes
da modernidade, ou seja, que estavam em disputa modelos políticos e aspirações de sociedades
socialistas ou liberais, simplesmente, ou muito menos uma perspectiva de práticas políticas e
sociais democráticas. Eram evidentes naquele momento histórico no Brasil, bem como na maior
parte dos países do mundo, que estas discussões e práxis políticas ainda eram “novidades”.
Naquele cotidiano, bastante compreensível, vigia a cultura política autoritária e paternalista,
oriunda dos séculos do absolutismo e do status aristocrático.

Como apontam outros estudos sobre municipalidades do Rio Grande do Sul, em especial 115
aquelas situadas em áreas de fronteiras ou no centro da antiga Província, a lei existia e as
autoridades constituídas representavam o ideal de um Estado e de uma Sociedade brasileira
0
minimamente organizada a partir de 1822. Contudo, as relações pessoais, a cultura histórica
precedente de cada etnia, a miscigenação humana e as dificuldades de compreensão dos
habitantes, em sua quase totalidade analfabetos, dos limites entre convivência familiar e de uma
sociedade civil organizada, constituiu permanente desafio aos administradores de tais povoados
e vilas. Não sendo, portanto, uma exclusividade dos são-borjenses as dificuldades sobre
questões de fundo, a exemplo de bem comum e interesse público.682

Desse modo, a compreensão do processo de transição passou pelo poder sócio-político


das comandâncias militares de fronteiras, tanto a dos espanhóis, quanto a dos luso-brasileiros,
que criaram as condições para ocupação e exploração do território, consubstanciadas
inicialmente pelo poder laico e civil. A distribuição de terras entre militares-cidadãos serviu de
alavanca para a ascensão dos estancieiros e a subordinação dos demais grupos sociais. A

682
Cabe, entre outros, o destaque aos trabalhos de FORTES e WAGNER (1963) e MORAES e COSTA (1987).
composição da Câmara de Vereadores e os trabalhos ensejados pela mesma, depois de
estabelecida a Vila em 1834, serviram para dar continuidade e solidez a este processo. Em
linhas gerais, temos a consolidação de uma história estruturada na “tradição” dos proprietários.
Por outro viés, falamos em “grupos” porque somente ao final do século XIX são observáveis
as diferenciações de “classes”, assim mesmo, considerando-se a constituição de uma nascente
“classe média” integrada por profissionais liberais e empreendedores do setor de comércio.

Quanto aos equipamentos urbanos que deram sustentação material e operacional de


administração pública, na zona urbana da Vila a Câmara pôs em funcionamento um aparato de
ordenamentos executivos, que somados ao estabelecimento da Comarca determinaram o
disciplinamento da vida em sociedade dos seus habitantes, fazendo valer os ideais de
manutenção da “ordem pública” e os respectivos regramentos para uso dos espaços físicos. Na
zona rural, as terras destinadas à produção ficaram concentradas entre um número reduzido de
proprietários. Verdadeiro “prêmio sesmeiro” àqueles que a conquistaram ou foram prestadores
de serviços relevantes ao Império brasileiro, cuja posse tornou-se privada (DUARTE, 1966).
Coube a eles, então, se auto organizar e desenvolver uma estrutura econômica agropastoril com
destaque à pecuária e, a partir da metade do século, à agricultura. Logo, com a plena superação 115
do passado e da estrutura de propriedades e uso comunais de espaços (Grifos nossos).
1
A composição da sociedade são-borjense preponderantemente esteve constituída por
europeus e índios, sendo caracterizada por um acentuado processo de mestiçagem. Após 1834,
a população de origem indígena e suas descendências passaram no decorrer do tempo a
constituir um restrito contingente da Vila, apresentando forte decadência cultural e econômica,
devido entre outros fatos à extorsão sofrida em suas propriedades comunais. Alijados de posse
da terra, as poucas famílias remanescentes não tiveram como enfrentar o processo competitivo
que se desencadeou. Subsistiram apenas os descendentes mestiços que haviam se integrado aos
processos produtivos das estâncias. Já em relação aos negros, utilizados como mão-de-obra
escrava por muitas décadas no século XIX, envolvidos nas lides agropastoris, não foram, nessa
área, um contingente populacional elevado. Mesmo assim, quando do movimento abolicionista
deflagrado no país, recebeu atenção política dos republicanos são-borjenses. De fato, o
predomínio social na Vila foi dos luso-brasileiros, secundados por espanhóis, representados
pelos proprietários de terras, suas famílias e agregados.
Notamos que, de modo especial, os proprietários estiveram em constante mobilização
para garantir a defesa do território, fazendo-o declaradamente com a participação na Guarda
Nacional ou nas tropas de linha do Exército brasileiro, como foi o caso na participação da
Guerra do Paraguai. Portanto, garantindo os interesses de grupos sociais, hegemonia de poder
político, e, por conseguinte, de sentirem-se os protagonistas principais nas ações de fronteira.

O evento “Guerra do Paraguai”, mesmo não sendo nosso foco de interesse principal,
evidencia o quanto deve ser considerada, e também reavaliada, a história de São Borja. A qual
muitas vezes é menosprezada pela “tradição historiográfica de base portuguesa”, ou, também,
como decorrência da importância política dada pelos nossos historiadores positivistas a outros
municípios do Rio Grande do Sul. Cabe lembrar que esta guerra teve repercussão internacional.
A derrota paraguaia se iniciou quando da invasão à São Borja e da resistência virtuosa de seus
habitantes, num erro de avaliação estratégica fatal dos comandantes de Solano Lopes. Neste
sentido, enfatizando-se o afirmado, comparativamente às “histórias” de São Borja, nenhum
outro município brasileiro do interior, e em especial do Rio Grande do Sul, tem uma bagagem
de situações históricas valorativas que perpassam aos três séculos.

Com isto, o estudo focou, também, outros elementos do cotidiano da Vila, apontando
115
situações sobre as condições de vida da população, tais quais sobre a saúde pública, problemas 2
decorrentes do sistema prisional, precariedades de educação e o trato que recebiam as pessoas
classificadas como indigentes. Podemos, então, perceber que as condições gerais de assistência
à comunidade apresentavam inúmeras carências, a começar pela falta de recursos financeiros,
de pessoal e de materiais. Esta situação foi persistente ao longo de todo o período que propomos
estudar, denotando, com isso, que as autoridades públicas da Vila eram impotentes para dar
solução a tais questões. Entretanto, na busca da ordem pública e da segurança individual
esmeravam-se em manter o efetivo controle sobre a sociedade, através de agentes públicos com
funções militares e a gestão de uma cadeia municipal.

Quanto à vida política e institucional, a Câmara de Vereadores constituiu-se no centro


de poder responsável pela organização do espaço social, econômico, de infraestrutura urbana e
de serviços da Vila. Valendo-se, para tanto, do sistema de controle judicial e policial que no
seu centro urbano operava a segurança. Segundo Flores (1978, p. 106), realidade perceptível
também em São Borja, em acontecimentos e na documentação analisada:
A Câmara Municipal [...] expedia provimentos e portarias para ajustar e empreitar
obras de caminhos públicos; dava posse a seus funcionários e ao juiz de paz, eleito
pelos eleitores paroquiais; podia nomear comissão de cinco cidadãos para inspecionar
as prisões civis, militares e eclesiásticas, a fim de avaliar as condições dos apenados;
devia participar ao Conselho Geral, depois Assembleia Legislativa, todo e qualquer
ato cruel com os escravos; competia-lhe o policiamento das povoações do termo;
cuidava do alinhamento, limpeza e iluminação das ruas, cais, calçadas, fontes,
aquedutos, chafarizes, poços e tanques; administrava o cemitério junto com a
autoridade eclesiástica, que na época liberava o corpo para sepultamento; era
responsável pelo asseio dos currais e curtumes junto aos núcleos urbanos, zelava pelas
feiras e mercados públicos (...).

Essas ações realizadas pelas Guardas Policial e Nacional sempre receberam especial
atenção e supervisão da Câmara, onde um aparato militar constantemente mobilizado lhe
garantiu as possibilidades de manutenção da estabilidade institucional e da intocabilidade das
propriedades privadas, ao longo de todos esses anos. Contudo, devemos ressaltar que os
problemas da vastidão de limites para serem controlados, tanto de interesse estratégico como
econômico, foi ao longo do tempo uma realidade de difícil equacionamento pelas autoridades
da Vila. Percebe-se em tal contexto, por exemplo, as práticas constantes do contrabando e dos
forasteiros em ameaça ao comércio local.

Por seu lado, a Igreja Católica, instituição que no século XIX manteve-se atrelada ao 115
Estado imperial brasileiro, mas que junto às municipalidades foi autônoma em relação ao poder 3
representado pelas Câmaras de Vereadores, esteve voltada à “cooptação das almas” seguindo a
nova orientação contra reformista da religião romana. Mesmo adequando-se aos “novos
tempos”, da modernidade liberal e capitalista, as ações da Igreja primaram pelo
conservadorismo nos ritos e dogmas. Conforme foi apurado no estudo, compartilharam seus
valores com as ideias das iniciativas individuais das elites proprietárias, porque seus vigários
de maior destaque também eram donos de terras e, assim, contribuíram para a afirmação dessa
nova mentalidade cristã-católica entre os habitantes de São Borja (Grifos nossos).

As ações de catecismo envolveram especialmente os compromissos de fidelidade


perante Deus e a religião. As questões sociais não foram prioritárias. Elas apenas se
manifestaram, mais objetivamente, nas liturgias e festividades religiosas, sem, contudo,
significarem ações para transformação social ou efetiva preocupação com os desvalidos. É
possível afirmar, deste modo, que no meio rural sempre foi mais efetiva a presença da Igreja no
decorrer do século XIX, que no meio urbano.
Pelo tempo que exerceram seus cargos de vigários, os padres Falcão e Gay foram os que
ganharam maior evidência. Quanto ao padre Marcellino Lopes Falcão pode-se dizer que
desempenhou funções mais constritas ao trabalho de evangelização junto às famílias dos
primeiros povoadores, após a conquista de 1801. De família abastada, filho de estancieiro, não
teve maior comprometimento com as causas sociais.

Em relação à atuação do padre João Pedro Gay, este desenvolveu um trabalho de


repercussão um pouco maior na paróquia. Foi um dos responsáveis pelos esforços de construção
da Igreja Matriz, além de ter se destacado na organização e retirada da população são-borjense,
quando da invasão paraguaia em 1865.683 No plano social, em 1849, conforme consta em ofício
manuscrito no Livro Tombo, Gay pediu autorização ao Bispo do Rio de Janeiro para praticar a
homeopatia entre os fiéis doentes, pois havia estudado esta especialidade médica no Instituto
Homeopático Brasileiro, mas não estava habilitado para tal. Pretendia, desse modo, fazer
caridade aos seus paroquianos, já que eram escassos os medicamentos de alopatia disponíveis
na Vila. Nesse intento, através de um despacho do Palácio da Conceição, Bispado do Rio de
Janeiro, em consideração a uma solicitação do vigário, lhe foram concedidas algumas graças
“especiais”. Entre elas constavam: fazer todas as benções eclesiásticas em que não entrassem 115
os santos óleos; licença para revalidar casamentos nulos, por terem sido celebrados sem a prévia
dispensa, mesmo a favor dos contraentes que não aproveitaram o prazo concedido pelo Bispo,
4
depois da pacificação da Província, pós 1845; autorização para absolver os fiéis de
determinadas severidades, como exemplo dos casos das práticas de aborto.684 Em linhas gerais,
ao contrário do período missioneiro, ao longo do século XIX os membros da Igreja na Vila
praticamente desconsideram os remanescentes indígenas.

Quanto à questão de defesa do território podemos considerar que São Borja adquiriu
uma identidade política peculiar, por estar privilegiadamente localizada numa área da fronteira
platina que, tanto no período de dominação espanhola, quanto, após, na fase da conquista
portuguesa, foi um território intensamente disputado a partir de 1750. Depois de 1801,

683
RODRIGUES (1982, p. 114) comenta a participação do cônego nesse episódio, ao apresentar as suas virtudes
no trabalho de pastor perante a situação de calamidade dos fiéis. Contudo, o autor, para demonstrar a destruição
nas propriedades da Vila, valeu-se do exemplo do referido padre, colocando que o mesmo solicitou ao governo
imperial uma indenização para reparar os prejuízos em sua fazenda [grifo nosso].
684
Questão tão polêmica na atualidade, sobre a qual o Vaticano mantém posição contrária inabalável, mas que no
século XIX teve suas liberalidades no Brasil, em função da realidade moral e das condições precárias de assistência
à saúde, afora as condescendências das autoridades eclesiais especialmente às famílias abastadas.
brasileiros, uruguaios, argentinos e paraguaios, por diferentes objetivos, continuaram a ter nessa
área desacertos geopolíticos causados por questões estratégicas e econômicas. Essa situação
trouxe à população são-borjense influências de ordem cultural de vários matizes, devido ao
constante contato com as demais nacionalidades da região, o que, da mesma forma, gerou a
formação de uma mentalidade política republicana entre os seus habitantes. Assim, quando se
comenta e se analisam questões de integração internacional na região platina, especialmente de
ordem econômica, com certeza os habitantes primitivos daquela região conheceram plenamente
em suas trajetórias familiares e parentais o sentido de tal intento existente no tempo presente.

CONCLUSÃO

A história de São Borja nesse “longo tempo” teve entre muitas significações duas que
pondero como mais importantes. A primeira refere-se à compreensão do processo de mudança
sócio-política, ocorrida quando da crise do sistema reducional e da instalação do aparato
institucional luso-brasileiro na área das Missões. Tivemos, portanto, um momento de
construção de um novo ambiente político, social e econômico pelos habitantes de São Borja. Já
a segunda, aponta que esta transição foi influenciada por fator geopolítico, preponderantemente,
115
na sua fase inicial, em função dos interesses do império luso-brasileiro o que, de modo correlato, 5
repercutiu no desenvolvimento da economia local, evidenciada na privatização das terras e na
afirmação da produção primária. Por conseguinte, esse segundo momento denota a
consolidação histórica do espaço das Missões aquém do Rio Uruguai como uma região luso-
brasileira, inserida dentro de fundamentos incipientes do nascente sistema capitalista de
produção na região, bem como decorrência da sua importância militar expressa em mais de dois
séculos como “área de fronteira” e de rota comercial platina.

Por outro prisma, internamente, ao consideramos o cotidiano da comunidade são-


borjense do século XIX, sucedânea daquela marcada pelas vivências comunitárias da cultura
guarani-cristã, encontramos na sua organização administrativa os elementos que nos
possibilitaram compreender a formação de uma mentalidade baseada no individualismo, na
dinâmica das relações políticas, burocráticas, religiosas e sociais que se estabeleceram entre os
membros da sua população, em especial dos atores que detiveram o poder local e suas relações
com o povo subalterno. Foi através da Câmara de Vereadores e das ações eclesiásticas da Igreja
Católica que percebemos tais relações afirmando os ideais político-ideológicos dos
proprietários de terras, pois este grupo social conjugado aos representantes do clero exerceu
pleno poder coercitivo sobre os demais segmentos da sociedade local.

Daí, igualmente, uma história de cosmopolitismo, isto é, marcada como uma localidade
de “passagem”, na qual o Rio Uruguai e o porto do Passo tiveram papel fundamental. Por muitas
décadas, este rio foi o trajeto que permitiu o acesso de seus habitantes e a realização de
atividades de comércio na direção do oceano Atlântico, através dos portos de Montevidéu e
Buenos Aires, bem como a outras áreas do bioma Pampa.

Já a transição do século XIX para o XX inseriu São Borja em destaque nas discussões
pró-república, especialmente pela moção republicana editada por integrantes da sua Câmara de
Vereadores, a qual teve repercussão nacional. Após a “modernidade” vivenciada com barcos a
vapor durante o Império, que ligavam a cidade a outros locais na bacia do Rio Uruguai, já no
adentrar do novo século, foi a vez dos trens. Em 1913, como implicação da sua importância
estratégica, a “The Brazil Great Southern Railway Company Limited” (BGS), empresa de

115
capital inglês interessada no potencial agropecuário da região da fronteira oeste do Rio Grande
do Sul, alcançou o município, estabelecendo um trajeto até Uruguaiana e de lá à Porto Alegre,
através da Brazil Railway/Cia. Auxiliaire des Chemins de Fer au Brèsil. 6
Então, com a República, a cidade firmou-se como municipalidade de fronteira brasileira
platina, sem os percalços militares dos séculos anteriores, passando a ter uma trajetória comum
a outras cidades da região. Mesmo assim, novamente obteve destaque nacional como
consequência das posições políticas das suas elites, a exemplo dos alinhamentos ao
“castilhismo” e ao “getulismo”, fornecendo ao país dois presidentes da República.

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DEFENDER LA FRONTERA Y VIVIR BAJO CAMPANA. LOS VECINOS DE
BELÉN A PARTIR DEL PRIMER LIBRO DE BAUTISMOS DE SU PARROQUIA
(1830- 1852)*685

Andrés Osvaldo Azpiroz Perera**686

RESUMO

El trabajo se centra en la zona frontera del litoral del río Uruguay, analizando en particular la
instalación de la parroquia de la villa de Belén como un proyecto para fortalecer la presencia
del Estado Oriental en su frontera Norte. A partir del análisis del primer libro de bautismos se
indaga en diferentes aspectos recogidos en la fuente documental, vinculados a la vida en ese
curato, formas de sociabilidad, origen de sus vecinos, características étnicas, entre otros
aspectos.

Palavras-chave: Frontera, Estado Oriental, Iglesia


116
0

1. LA VILLA DE BELÉN EN LA PRIMERA MITAD DEL SIGLO XIX


Las páginas que siguen a continuación se vinculan a mi investigación en la tesis de
maestría en Historia Rioplatense que curso en la Facultad de Humanidades y Ciencias de la
Educación del Uruguay, cuyo título es “Territorio, poder y sociabilidad en una zona de frontera.
El litoral del río Uruguay en la primera mitad del siglo XIX”. Por tratarse de un avance de uno
de los apartados de la tesis, otorgo un carácter preliminar a las conclusiones que presento.

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Licenciado en Ciencias Históricas, estudiante de la Maestría en Ciencias Humanas opción Historia Rioplatense
de la Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación de la UdelaR. Docente en el departamento de Historia
del Uruguay de la Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación e investigador en el Museo Histórico
Nacional.
En la última década del siglo XVIII se acentuaron los problemas relacionados al control
de la frontera al norte del río Negro, en la banda oriental. Se trataba de un territorio vinculado
al espacio misionero y concretamente a la estancia de Yapeyú, administrada por los Padres de
la Compañía de Jesús hasta su expulsión. Era un espacio controlado por los “indios infieles” y
consecuencia de su importante riqueza ganadera, la región estaba atravesada por circuitos
comerciales donde aquellos participaban activamente.

La historiadora Helen Osorio (Osorio, 2007, p. 39), sostiene que se trataba de un paisaje
agrario consecuencia de una misma estructura productiva que formaba un continuum desde
Buenos Aires, su campaña de la banda oriental y el actual estado de Rio Grande do Sul. A
principios del siglo XIX, el norte del río Negro era una de las fronteras más conflictivas para el
imperio portugués. Se caracterizaba por ser un espacio de ocupación laxa, de baja densidad
demográfica, con la presencia de pequeñas propiedades dedicadas a la agricultura y a la
ganadería, de contados núcleos urbanos y grandes unidades de producción dedicadas
principalmente a la cría de ganado vacuno.

Se trata de una frontera abierta, donde ni los límites geográficos ni los políticos
representaban una barrera para la circulación de personas, bienes y prácticas culturales. En ese
116
camino entendemos la frontera como un espacio abierto, donde circulan mercancías y se 1
estrechan relaciones sociales, económicas y culturales. Aunque la noción de frontera no es
sinónimo de límite, es necesario precisar que no se trata de un espacio de plena integración,
estático y sin inflexiones durante el siglo XIX. La concepción de la frontera entendida como
barrera es un discurso que fue utilizado de manera reiterada por las historiografías nacionales.
Como señala el historiador Pierre Vilar, la equiparación del concepto de frontera con el de
límite, “como símbolo de la división del mundo en grupos” es “un testimonio interesante sobre
el sentido –jamás eterno y constante- de esta división” (VILAR, 1991, p. 149). Sin embargo,
esto no significa sostener el extremo opuesto, sino entender que ese límite nacional da cuenta
de soberanías distintas que se buscaban implantar de un lado y otro. Como señalan los
historiadores Luis Augusto Farinatti y Mariana Flores, ese límite nacional, no era una barrera
infranqueable, pero quienes habitaban ese espacio conocían su existencia, y “precisaban incluir
en sus cálculos las formas de manejar la frontera” (FARINATTI, FLORES, 2009, p. 156). Esa
concepción dinámica de la frontera supone estudiar los avances y retrocesos sobre la línea-
límite y comprender que en ese territorio, cotidianamente, intervienen diversos grupos sociales
que la dinamizan y recrean.

Esa frontera, durante buena parte del siglo XIX, fue caracterizada como un
“desierto”. Esta adjetivación es clave para interpretar la fundamentación en el control de esos
territorios que no eran ocupados en su totalidad y que se reclamaban como propios. También
para comprender la instalación de pueblos, de colonos- soldados que vigilaran la frontera, el
avance de la propiedad individual, así como el lugar en ese esquema interpretativo de los grupos
indígenas no sometidos. (DAVILA, AZPIROZ, 2015, pp. 70- 76) Al mismo tiempo, las fuentes
disponibles dan cuenta que al norte del río Negro a finales del siglo XVIII y principios del siglo
XIX se constituyó también una frontera indígena. En esa zona los charrúas y minuanes
participaban activamente en la articulación de mercados económicos mediante la venta de
diversos ganados. Además las tolderías, a través de estrategias como el malón, participaron del
intercambio de personas, en especial mujeres y hombres jóvenes, que servían ya sea como
vientres o mano de obra. El control de esas tolderías fue una de las motivaciones principales
detrás del plan de establecimiento de pueblos al norte del río Negro, encargado por el virrey
Avilés al capitán de blandengues, Jorge Pacheco. 116
La “pacificación” de la frontera 2
A principios del siglo XIX, el virrey del Río de la Plata, Gabriel de Avilés y del Fierro,
propuso la fundación de una serie de pueblos para dominar a los “indios infieles” y “remediar
y contener sus frecuentes robos” (ACOSTA Y LARA, 1998, p. 159), que afectaban el modo de
producción y propiedad con el cual se avanzaba desde el sur del río Negro, en la banda oriental.

El 4 de enero, desde Buenos Aires, el virrey le envió al capitán Pacheco, una serie de
prevenciones que se debían considerar en la campaña de fundación de los nuevos pueblos y
exterminio de los “indios infieles”. La villa de Nuestra Señora de Belén687 “que será la primera
como la más importante por su situación, para contener las entradas de los indios charrúas”,
debía instalarse en las cabeceras del Arapey. (ACOSTA Y LARA, 1998, p. 160)

687
En relación a la producción historiográfica sobre la villa de Belén, se destaca la obra del historiador argentino
José M. Mariluz Urquijo (1952). Desde un análisis tributario de la historia local se deben mencionar los trabajos
de los historiadores Pbro. Rafael Firpo (1913) y Setembrino Pereda (1923). Consecuencia de su vasta producción
sobre la historia de los pueblos en Uruguay, se debe confrontar la obra de Aníbal Barrios Pintos.
Teniendo en cuenta las órdenes de enero de 1800, el pueblo debería ser instalado en un
sitio con acceso a buenas aguadas, montes para leña y construcción. A cada uno de los vecinos
se le entregaría un solar, y se debían dejar previstos los terrenos destinados a la plaza y demás
edificios públicos. (PEREDA, 1923, pp. 14- 15)

Las dificultades para la instalación de la villa de Belén fueron una constante. El capitán
Pacheco solicitó en forma reiterada refuerzo de hombres y presupuesto lo cual no fue atendido
en su totalidad. El virrey dispuso que desde Yapeyú se hicieran llegar indios carpinteros, desde
la administración de la aduana llegarían los clavos, mientras que los hacendados de la zona
debían aportar las carretas. (MARILUZ URQUIJO, 1952, p. 63).

Desde el principio, los vecinos manifestaron su rechazo para incorporarse a la


población: la ubicación de las nuevas villas en el medio del control indígena, la lejanía con otras
poblaciones y la escasa motivación por la contrapartida, fueron algunos de los argumentos
principales.

A consecuencia de las dificultades, Pacheco presentó su renuncia y el virrey Avilés, el


18 de marzo de 1800, encargó las tareas a Francisco Bermúdez. Pacheco retomó al mando de 116
la expedición luego del invierno y en noviembre de 1800, con el objetivo de llevar adelante la
fundación de la villa y el plan de “pacificación”, se le asignaron nuevos hombres para sus tropas.
3
El 31 de diciembre de 1800, Pachecó envió a Avilés el padrón de las familias de Belén, y partió
desde Paysandú en febrero de 1801. Una crecida del Queguay detuvo el recorrido, el cual fue
constantemente vigilada por los indios.

La marcha fue lenta, pues significó, además de la tropa, el traslado de 120 personas y
14.489 cabezas de ganado entre vacunos, bueyes, caballos, yeguas y mulas. (DÁVILA,
AZPIROZ, 2015, pp. 96- 97) El 14 de marzo, el contingente arribó a la barra del Yacuy, lugar
donde se estableció la villa de Belén.688 Un mes tarde en una comunicación de Avilés al teniente
gobernador de Yapeyú, aquél caracterizaba a la villa como una “población de armas”, “cuyo
territorio tendrá tres leguas de ancho [...] y de largo se extenderá perpendicularmente e
indeterminadamente al Oriente hasta dar en nuestras fronteras con Portugal” (BARRIOS

688
“Tercer cuaderno del Diario de Operaciones que sigue en 1º de febrero de 1801”, Capitán Jorge Pacheco, 1801,
f. 11v. Museo Histórico Nacional, Casa de Juan Antonio Lavalleja, Biblioteca Pablo Blanco Acevedo. Debemos
recordar que el cuaderno fue publicado por Eduardo Acosta y Lara, Acosta y Lara (1998).
PINTOS, 2008, vol. II, 287). Mientras Pacheco avanzó en la instalación del pueblo llevó
adelante una misión de “pacificación”, donde mantuvo tres enfrentamientos violentos con las
tolderías de “infieles” charrúas y minuanes entre los meses de abril y mayo de 1801. (DÁVILA,
AZPIROZ, 2015, pp. 83- 91 y BRACCO, 2013)

Luego de la instalación de Belén, el avance portugués sobre la frontera en 1801 afectó


la consecución de la instalación de los demás poblados. Durante toda la mitad del siglo XIX la
historia de la villa de Belén fue azarosa.

En 1806 Jorge Pacheco escribió al virrey sobre la necesidad de reducir a los indios
“mediante el buen trato”. Luego de haber recurrido a la alternativa violenta radical, Pacheco
ensayó entre 1807 y 1808 la entrega de abalorios, vestimenta, alcohol, yerba, tabaco, cuchillos,
estribos y frenos, entre otros bienes, como forma de contener a los infieles. (DÁVILA,
AZPIROZ, 2015, p.115)

La presencia de los religiosos en Belén

En los primeros años de la villa el “cuidado espiritual” estuvo en manos de fray Antonio
Rodríguez, quien se habría encargado “a condición de ser pensionado por el vecindario con 300 116
pesos anuales” y de recibir por vía de limosna “el cuantioso fondo de medio real por extracción 4
de cada cuero”. El religioso dominico falleció en 1810, razón que motivó la comunicación del
virrey Baltasar Hidalgo de Cisneros con el obispo de Buenos Aires, Benito Lué y Riega para
conseguir un nuevo sacerdote.689 La respuesta del obispo daba cuenta de las dificultades para
proveer de un cura, a menos que Cisneros consiguiera el dinero para su “congrua
sustentación”.690 Años más tarde, en pleno apogeo del Sistema de los Pueblos Libres impulsado
por José Artigas, fue nombrado José Benito Lamas, sacerdote que en el futuro tendrá una
prolífica carrera eclesiástica, quien sin embargo no asumió el cargo. (PEREDA, 1923, p. 257)

En 1821 en su pasaje por la frontera, el naturalista Auguste de Saint Hilaire (1779- 1853)
señaló el estado de abandono en el que se encontraba el poblado, el cual según le habían

689
Baltasar Hidalgo de Cisneros a Benito Lué y Riega, Buenos Aires, 7 de mayo de 1810. (PEREDA, 1923, p.
343)
690
Benito Lué y Riega a Baltasar Hidalgo de Cisneros, Buenos Aires, 8 de mayo de 1810. (PEREDA, 1923, pp.
343- 344)
informado había sido incendiado por orden de Artigas en “en una de sus retiradas”691. De todas
maneras cerca de la antigua fundación los portugueses mantenían un campamento, donde se
contaba con servicio de capellán. (SAINT HILAIRE, 2005, p. 202). También según la
información de los libros de la parroquia de Alegrete, muchos vecinos acudieron a bautizarse o
unirse en matrimonio en aquel lugar.

En 1834 a los pocos años de haberse creado el Estado Oriental, Belén no tenía
sacerdote.692 Mientras tanto las autoridades del gobierno encararon distintos planes para el
control de la frontera y en particular el fomento del poblado, por eso en 1835 un decreto del
gobierno propuso la repoblación de la villa. El documento señalaba como fundamentación la
necesidad de “reconcentrar sus habitantes en un punto conveniente de su vasta campaña, casi
desierta, y que solo sirve al abrigo de facinerosos” y “sacar una porción considerable de
hombres reducidos a una suerte precaria, que con perjuicio de propietarios hacendados, yacen
como poseedores gratuitos o tolerados en las tierras de aquellos”. El decreto, formulado en tres
artículos, estableció que se destinarían “las tierras situadas entre el Río Uruguay, Arapey Chico
y Yacuy, comprendidas en la extensión que demarcan las nacientes y confluencia de estos en
el primero, para fomento de la población de Belén, chacras y pastoreo de todos los que quieran 116
establecer su domicilio.” En el artículo segundo señaló que las tierras serían mensuradas,
5
deslindadas y distribuidas “en una parte precisa para solares del antiguo pueblo de Belén,
chacras respectivas y el resto reservado para pastoreo de ganados, con arreglo a la porción de
hacienda y capitales que cada poblador introdujese y su progreso.” A los pobladores se le
entregarían en propiedad los solares, mientras que mantendrían el usufructo de las chacras por
ocho años “al fin de los cuales pagarán al Estado, moderado arrendamiento, que acordará el
Gobierno en su caso en proporción a los que ocupasen y con opción a la preferencia”
(ARMAND UGON, 1930, p. 49).

En 1836 el cura Joaquín José Espinosa, consecuencia de la “confluencia anarquica” en


que se encontraba, según su opinión, la provincia de Río Grande de San Pedro por el

691
El historiador Aníbal Barrios Pintos señala la falta de pruebas acerca de ese episodio. (BARRIOS PINTOS,
2008, v. II, p. 294)
692
Lucas Obes a Dámaso Antonio Larrañaga, Montevideo, 3 de julio de 1834 en Archivo Curia Eclesiástica de
Montevideo (ACEM), Vicariato Apostólico, carpeta 1, Dámaso Antonio Larrañaga, Gobierno, 1815- 1836,
Carpetín Vicariato Apostólico, sin número, 1834-1835.
levantamiento de los farrapos, escribió a la principal autoridad de la iglesia en el Estado
Oriental, Dámaso Antonio Larrañaga, señalando que había pedido el alejamiento de la
parroquia de “Nuestra Señora da Conceisoro (sic) da Vila de Alegrete”, y que había emigrado
“para esta Provincia do Estado Oriental” en la villa de Belén donde había un solo cura.693

Desde mediados de 1838 se hizo cargo Francisco María de Bernaola, aunque no consta
su nombramiento formal. En todo el período que analizamos, Bernaola fue el cura de la villa,
aunque en 1839 se nombró a Joaquín José Palacios, “bajo la proteccion del Gobierno”.694 A
partir de 1843, cuando se instaló el gobierno del Cerrito bajo la conducción de Manuel Oribe,
el curato de Belén junto con la mayoría de los del país pasó a depender de ese gobierno.
(MAGARIÑOS DE MELLO, 1948, vol II, p. 526)

Para ese tiempo Belén junto con Paysandú y Salto eran las parroquias que atendían la
feligresia de la frontera del litoral del río Uruguay. Los planes de restablecimiento del poblado
con el fortalecimiento de la presencia eclesial dan cuenta del interés del gobierno de apuntalar
en aquella frontera la presencia del Estado.

En las próximas páginas analizaremos algunos aspectos que surgen de la lectura de los 116
primeros cuatro legajos de bautismos de Belén, sobre todo en lo que tiene que ver con la
conformación de aquella sociedad de frontera.
6

“De todas partes vienen…”


Si bien los libros de bautismo no alcanzan para caracterizar a una población desde el
punto de vista demográfico, permiten obtener algunas conclusiones que nos acercan a esas
sociedades del pasado. Como ya señalamos, el cura de Belén anotó con detalle la máxima
información de quienes bautizaba.

En todo el período analizado, Francisco María Bernaola se desempeñó como cura


vicario de Belén. Bernaola anotó los nombres de padres, padrinos y bautizados, su oriundez, el

693
Joaquín José Espinosa a Dámaso Antonio Larrañaga, Belén, 30 de junio de 1836, en ACEM, Vicariato
Apostólico, carpeta 1, Dámaso Antonio Larrañaga, Gobierno, 1815- 1836, Carpetín 97/5, año 1836.
694
ACEM, Vicariato Apostólico, carpeta 7, Dámaso A. Larrañaga, Correspondencia, 1841- 1842.
lugar de residencia, el “color” del bautizado y en algunos casos su condición jurídica. En
relación a los padres y a las madres de condición esclava casi siempre registró el nombre de los
amos. Por el contrario, nunca anotó condición jurídica de los padrinos, por lo que conocer el
padrinazgo de los afro-descendientes en su parroquia es una tarea por ahora difícil de dilucidar.
A diferencia de lo que ocurrió en otros sitios de la región, los curas de la frontera del litoral del
Uruguay no llevaron libros separados para indios o afro-descendientes.

Entre 1838 y 1849 el cura de Belén realizó 1010 bautismos donde los padres declararon
ser vecinos de distintos lugares. Llama la atención que recién a partir de 1848 hay registros de
padres y padrinos de la villa de Belén. En 1840, otro episodio afectó la vida del pueblo. El 17
de enero de 1840, tropas que recibían órdenes de Oribe, el gobernador de Santa Fe, Juan Pablo
López, Juan Antonio Lavalleja y Servando Gómez, arremetieron contra una escuadrilla
subordinada al gobierno de Montevideo que estaba frente a la villa. Además de destruir las
naves, Belén fue saqueado y devastado, desapareciendo gran parte de los ranchos del pueblo.
(BARRIOS PINTOS, 2008, vol. II, 296) Es probable que por las consecuencias de la guerra y
las distintas acciones violentas sobre el pueblo, muchos hayan optado por residir en la campaña,
en zonas cercanas como la Sierra (14,12%), donde declararon ser vecinos la mayoría, o sobre 116
los ríos Cuareim, Cuaró o el Arapey. Esta información es corroborada unos años más tarde por
7
el viajero y naturalista francés Martín de Moussy (1810- 1869), quien caracterizó a la villa de
Belén y a la de la Bella Unión695 como “pobres aldeas con tres o cuatro pulperías y una docena
de ranchos; algunas chacaritas donde se cultiva el maíz y la mandioca, unos pocos durazneros
e higueras, son las únicas señales de cultivo que se ve.” (MOUSSY, 1991, p. 537).

El Estado Oriental había nacido sin límites establecidos, en ese sentido la constatación
de los diversos orígenes de los fieles de la parroquia demuestra al mismo tiempo que el tema
de las jurisdicciones eclesiásticas no estaba saldado para Bernaola. El 13% declaró ser vecino
de Brasil, probablemente en zonas de jurisdicción de la parroquia de Alegrete. De hecho, de la
lectura del libro se advierte cómo el sacerdote salía de recorrida por distintas zonas de su curato
y se adentraba bautizando hasta el río Ibicuy. Por otro lado, la referencia a los distintos lugares
de donde padres y padrinos declaraban ser vecinos, da cuenta de la dispersión de la población

695
Se refiere a la colonia formada por Rivera en 1828 luego de la “conquista” de las Misiones Orientales.
en ese espacio y de la presencia de pequeños caseríos o aldeas más allá de los pueblos
establecidos formalmente.

Las características de una población de frontera abierta también se manifestaron en los


índices de ilegitimidad de la villa de Belén. Para todo el período el promedio de bautizados
ilegítimos alcanzó casi el 39%. Se trata de los hijos naturales, “hijos ocultos” o de “padres
desconocidos” según las fórmulas adoptadas por el cura de Belén. ¿Cuál es el sentido que dio
el sacerdote a estas categorías? Aunque parece haber tenido un sentido laxo al utilizar “hijos
ocultos” como sinónimo de “hijos naturales”, la Iglesia pautaba de forma precisa la
ilegitimidad. Las filiaciones ilegítimas fueron caracterizadas desde una triple clasificación
jerárquica de acuerdo a la situación de los padres. Los hijos naturales, eran el fruto de las
relaciones de padres solteros, y como establecían las fórmulas eran los únicos que podían
legitimarse luego de componerse la situación conyugal mediante el matrimonio. A los naturales
le seguían los “adulterinos”, cuando al menos uno de los padres era casado y en el último
escalón estaban los “espurios o sacrílegos”, que eran los hijos de sacerdotes. (MATEO, 1996,
p.12 y BENTANCUR, 2011, pp. 343 ss)

Como ha señalado la bibliografía, la ilegitimidad fue una característica constante de las


116
fronteras, consecuencia de la marcada heterogeneidad étnica y geográfica de sus habitantes y 8
de los elevados índices de masculinidad que condicionaron el mercado matrimonial en algunos
sectores sociales (BARRETO, 2011, p. 2). Por otro lado, como señala José Mateo a partir del
aporte de Antoinette Fauve Chamoux, estudiar la relación legitimidad- ilegitimidad en una
sociedad del pasado en Latinoamérica

a través del prisma del matrimonio – de la nupcialidad legal y de la fecundidad


legítima- es adoptar un sesgo eurocentrista sobre una realidad cultural
específica, ya que precisamente lo destacable es que ‘una parte considerable
de la reproducción demográfica y social no pasa por la institución del
matrimonio (MATEO, 1996, p. 9)

Las dificultades para contraer matrimonio en los espacios fronterizos tuvieron como
consecuencia este rasgo de “libertad sexual” de la frontera como ha señalado José Mateo. A
este aspecto hay que incluir que ser soltero, y en especial entre las mujeres, no era percibido de
forma positiva. De todas maneras “la oportunidad de contraer matrimonio, el momento y la
elección de la pareja estarían fuertemente influidos por la calidad, esto es el aspecto racial y el
estatus social de los cónyuges”. En ese sentido los matrimonios integrados por parejas de etnias
diferentes fueron percibidos “como portadores de un impacto negativo sobre el prestigio
familiar”. Además estos dos aspectos, la ilegitimidad y el “color” en algunos casos no fueron
un problema en la movilidad social. Como señala Antonio Fuentes Barragán, en las fronteras
“a pesar de no ser hijo legítimo o completamente blanco, la sociedad daba el margen de
maniobra suficiente para ir mejorando, sobre todo en áreas periféricas de América en las que el
control no era tan rígido” (FUENTES BARRAGÁN, 2012).

Entre los bautizados como ilegítimos el 34% fue anotado con “padre desconocido”. Por
el contrario, solo en un 5,5% de las partidas no se registró el nombre de la madre. Mientras
tanto el número de bautizados anotados sin referencia de padre y madre fue muy escaso, trece
casos para todo el período y solo en uno se hizo un registro más preciso. Es el caso de María
que fue bautizada en junio de 1845 con un año de edad, anotada como “blanca”, residente en el
Yaguarí e “hija depositada en casa de Juan Andrés Martines”. En los últimos años del período
colonial la cuestión de la ilegitimidad y de los hijos de padres desconocidos fue atendida por 116
las autoridades. El asunto se vinculaba al problema de los expósitos, donde el porcentaje de
9
niños de padres desconocidos era muy elevado696. Incluso en Montevideo desde 1818 y a
instancias de Dámaso Antonio Larrañaga empezó a funcionar una inclusa que recibió a los
niños abandonados (BIANCHI, 2001, p. 315). Como ha señalado la bibliografía, y más aún si
tenemos en cuenta las dimensiones demográficas de la villa de Belén, la no indicación de los
nombres no significaba necesariamente el desconocimiento por parte de quienes llevaban a
bautizar de la identidad del padre o la madre de la criatura, sino como señalaba el obispo Pedro
de Argandoña, una forma de “no herir susceptibilidades” (MATEO, 1996, p. 12). Al respecto,
María del Carmen Ferreyra advierte que en muchos de los casos hubo una intención explícita

696 Un Real decreto del 19 de febrero de 1794, hacía mención al problema de la ilegitimidad entre los niños
expósitos. La ordenanza haciendo eco del desprecio y la discriminación que se tenía frente a aquellos,
denunciaba los términos con los cuales eran nombrados: “borde, ilegítimo, bastardo, espúreo, incestuoso o
adulterino” y obligaba a que se castigara como injuria y ofensa a quienes en los reinos y las Indias utilizaran
esos apelativos peyorativos. “Que dispone la observancia en Indias del Real decreto relativo a los Niños
expósitos”, Aranjuez 19 de Febrero de 1794. Disponible en www.cervantesvirtual.com. Para una visión sobre
este tema en concreto en el contexto de la ilustración española, Cf. BIANCHI, Diana. La ilustración española
y la pobreza. Debates metropolitanos y realidades coloniales, Montevideo: FHCE, 2001.
por no hacer público los nombres como forma de preservar un determinado orden social en el
contexto de una moral católica.697 Se trataba de “hijos bastardos”, fruto de relaciones no
permitidas y vedadas desde el punto de vista moral.

Entre los anotados como ilegítimos aparecen tres indios charrúas cristianizados que
vivieron en las cercanías de la villa. María, Angélica y Ciriaco fueron bautizados en noviembre
de 1842 como hijos de charrúas aunque no se precisó el nombre de los padres.698

La ilegitimidad alcanzó el 89% entre los afro-descendientes, cifra superior al 66% en la


frontera de Melo para el período de 1795 a 1811. (BARRETO, 2011, p. 7) Al igual que lo
señalado para la frontera meridional de Brasil, eran muy pocos los esclavos que lograban
acceder al matrimonio, lo cual representaba una ventaja frente a sus pares y un privilegio
otorgado por sus amos (FARINATTI, MATHEUS, 2015, p. 102). Así por ejemplo Benedito y
Joaquin, bautizados en el verano de 1844 eran hijos legítimos de Manuel y Ana y de Manuel y
Juliana, todos ellos esclavos de Antonio José Antúnez.699 Las cifras de ilegitimidad son
análogas a las de la villa de Santa Maria da Boca do Monte para un período similar. De todas
maneras, como señala Max Ribeiro, la ilegitimidad no estaba relacionada en exclusividad a
indios y esclavos, sino que se trataba de un fenómeno transversal a todos los grupos étnicos.
117
(RIBEIRO, 2013, p. 97) 0

Gráfico nº 2. Legitimidad o ilegitimidad de los bautizados, 1838- 1849. Elaboración propia en base a los Legajos
1 al 4 de la Parroquia Nuestra Señora de Belén.

697
BARRETO, Isabel. Ob. Cit. Al mismo tiempo Cf. FERREYRA, María del Carmen. “El matrimonio de castas
en la ciudad de Córdoba. 1700-1779”. En III Jornadas de Historia de Córdoba, Junta Provincial de Historia de
Córdoba, 1997, pp. 285-326.
698
Cf. Archivo Curia Eclesiástica de Salto (ACES). Legajo de Bautismo nº 1 de la Parroquia de Nuestra Señora
de Belén.
699
Ibidem.
En todos los bautismos el cura anotó en el margen, además del nombre del niño, una
referencia a su “color”. Las categorías utilizadas fueron siempre las mismas, blanco, negro,
indio o chino. A partir del libro de bautismos, ¿cuál era el “color” principal de los bautizados
en Belén? La gráfica que incluimos más abajo es elocuente, casi el 90% de los bautizados fue
anotado como “blanco”. El porcentaje de indios es casi similar al de los afrodescendientes y
apenas un 4,87% son anotados como mestizos. ¿Qué pueden significar estas categorías de
“color” utilizadas por el cura de Belén?

En los últimos años la historiografía ha analizado en particular el tema del mestizaje en


la región. La evidencia a través de los libros de bautismo, los censos y padrones ha demostrado
que los funcionarios encargados de su confección aplicaban algunas reglas, muchas veces
personales, para categorizar a una persona como blanco, indio o mestizo. Incluso el análisis de
una población en un período de tiempo ha permitido constatar cómo una misma persona cambió
de categoría: en un momento fue registrado como blanco, para luego ser indio o mestizo. Como
señalan Judith Farberman y Roxana Boixadós, distintos factores (riqueza, propiedad, libertad
jurídica, dependencia de un cabeza de familia o antigüedad de residencia) “se intersectaban con
117
la condición socioétnica, influyendo sobre ella, ‘blanqueándola’ u ‘oscureciéndola” 1
(BOIXADÓS, FARBERMAN, 2009, p. 81). A partir de la investigación de las autoras surge la
necesidad de replantearse algunas categorías étnicas “en la medida en que no están reflejando
entidades ‘reales’ y objetivas sino, y ante todo, construcciones intelectuales de los
empadronadores” (Ibidem, p. 88).
82,98%

4,87%

4,17%
6,46% 1,49%

Blancos Mestizos Indios sin identifciar


Indios misioneros Afrodescendientes

Gráfico nº 3. Gráfico según atribución socio-étnica de los bautizados de la parroquia de Belén, 1838- 1849.
Elaboración propia en base a los Legajos 1 al 4 de la Parroquia Nuestra Señora de Belén.

¿Qué significaba ser mestizo en Belén? Al parecer no estaba necesariamente vinculado


con la ilegitimidad, pues alrededor de la mitad de los “mestizos” fueron registrados como hijos
legítimos. Tampoco con la procedencia, pues entre ellos la diversidad de orígenes es evidente.
Nos falta información pues en pocas ocasiones aparece registrada la etnia de los padres. Al 117
2
respecto llaman la atención varios casos donde hijos de guaraníes o de esclavos son anotados
como “blancos”. ¿A qué se debe este “blanqueamiento”? ¿Se trata, como señalan Farberman y
Boixadós, de la intersección de distintos factores que privilegian a estos hijos de indios y
esclavos en relación a otros semejantes? Es claro que los “blancos” están sobre-representados
en relación a otros grupos étnicos. La situación es comparable a otros puntos de la frontera. Por
ejemplo Isabel Barreto quien ha estudiado las características de los habitantes de la villa de
Melo entre 1795 y 1811 a partir de los libros de bautismo, constató una situación similar
(BARRETO, 2011, p. 6). Como han señalado Farberman y Boixadós este aspecto es
característico de una frontera abierta. Al igual que Los llanos, al sur de la jurisdicción de la
Rioja, Belén fue una frontera abierta en todo el período que estudiamos, es decir "un espacio
propicio para 'valer más', para el blanqueamiento social y la instalación campesina"
(BOIXADÓS, FARBERMAN, 2009, p. 83).

Como ya señalamos el registro bautismal permite advertir la dispersión de los vecinos


en torno a la villa de Belén. La bibliografía ha señalado en reiteradas ocasiones que luego de
establecerse el Estado Oriental el norte del río Negro estaba habitado principalmente por
familias procedentes de Brasil. Los datos surgidos a partir del libro de Bautismos confirman
que la mitad de los padres y las madres, feligreses del curato de Belén, declararon ser oriundos
de Brasil. Entre ellos casi un 80% señaló ser vecinos de Río Grande del Sur. Al mismo tiempo
las localidades de Cachoeira y Río Pardo fueron señalados como los sitios principales de origen
de los padres. ¿Es posible aventurar que alguno de estos fuera un antiguo integrante de las
milicias de Río Pardo que estaban destacadas en el campamento portugués de Belén en 1821?
(SAINT HILAIRE, 2005, p. 203)

Gráfico nº 4. A la izquierda cuadro con representación gráfica del origen de los padres. A la derecha cuadro con

117
representación gráfica del origen de las madres. Belén, 1838- 1849. Elaboración propia en base a los Legajos 1 al
4 de la Parroquia Nuestra Señora de Belén.

3
Entre los padres del Estado Oriental casi la mitad declaró ser oriundos de la Sierra,
paraje cercano a la villa que, como ya se analizó en otro gráfico, era uno de los sitios con mayor
presencia de habitantes en la zona. La otra mitad señaló al Estado Oriental pero no se anotó el
lugar específico.

A partir de 1848 el teatro de la guerra del Río de la Plata se trasladó a las cercanías de
Belén. Por casi dos años el cura Bernaola incorporó en sus registros la categoría de “vecinos
volantes”, para incluir a aquellas personas que por la situación bélica se encontraban en Belén,
donde residían. Muchos de ellos eran militares, detalle que sabemos por la anotación al margen
que realizó en los casos justificados. En ese período se multiplicó la presencia de familias
oriundas de Buenos Aires, sitio principal entre los declarados por los recién llegados a la villa.
Seguramente la presencia de todos esos “vecinos volantes” alteró la vida pueblerina, pues en
varios casos sabemos a través del bautismo de sus hijos que permanecieron en la villa por lo
menos por un año. Así fue el caso de Juan Pedro Fruto anotado como “Militar” y su compañera
Mercedes Silva, él oriundo de Buenos Aires y ella de Corrientes quienes bautizaron, sin
otorgarle padrinos, a su hija Sebera del Carmen en enero de 1848. En diciembre del año
siguiente bautizaron a su hija María Felicia y optaron por una pareja de “vecinos volantes”
también establecidos en la villa.700

La presencia de europeos era ínfima, apenas aparecen registrados tres vecinos de


Canarias, dos “alemanes” y un “español”. Por otra parte la presencia de padres de origen
misionero es muy baja, apenas el 3,34%. Seguramente Paysandú, como antiguo “pueblo de
indios” representaba un destino principal en la zona para los originarios de los pueblos de
Misiones. Veinte años atrás Saint Hilaire había constatado la movilidad de los guaraníes en la
zona, donde habían quedado solo “algunos ancianos e inválidos que eran completamente
incapaces de desplazarse”. Al mismo tiempo señaló como desde “el mes de agosto del año
pasado [1820] más de tres mil de estos pobres infelices han atravesado el río Uruguay” y
afirmaba enseguida que “Entre los que se quedaron en Belén, los hombres trabajan como peones
en los campos de las cercanías, algunos niños sirven a los oficiales o incluso a los soldados del
campamento y las mujeres se prostituyen” (SAINT HILAIRE, 2005, p. 205).

CONCLUSIÓN
117
La presentación de los datos relevados confirma conclusiones que ya habían sido 4
alcanzadas para otras fronteras del continente, pero sobre todo plantea la necesidad de
profundizar y abrir nuevos cauces de investigación. Al mismo tiempo fortalece la necesidad de
avanzar en el estudio de estos legajos, analizando otros aspectos como por ejemplo las formas
de sociabilidad a partir del compadrazgo. ¿Qué características tuvo el padrinazgo en esta
pequeña aldea de la frontera del Estado Oriental? antes ¿Cuáles fueron las condiciones
principales para elegir padrino o madrina? ¿Quiénes fueron los padrinos y madrinas preferidos?

La consideración de un período cronólogico más extenso y el cotejo con otras fuentes,


por ejemplo vinculadas a la propiedad o a las ocupaciones principales de estos vecinos,
posibilitaran enriquecer el conocimiento sobre esa población fronteriza.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

700
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117
7
AÇÃO PORTUGUESA NA VIGILÂNCIA DE FRONTEIRA QUANDO DAS
INVASÕES BRITÂNICAS AO RIO DA PRATA (1806 e 1807)

Adriano Comissoli

RESUMO

No esteio das guerras napoleônicas os britânicos efetuaram duas ações militares no rio da Prata
hispânico, investindo sobre Buenos Aires em 1806 e novamente contra esta cidade e a de
Montevidéu em 1807. A neutralidade de Portugal frente ao conflito obrigava aos lusitanos
absterem-se. Contudo, a proximidade da capitania do Rio Grande de São Pedro com o teatro de
guerra platino obrigou os comandantes militares a lidarem com as invasões de diversas
maneiras, para o que contaram com um serviço de inteligência que os mantinha a par da
movimentação das duas forças. Esta comunicação explora o acompanhamento e envolvimento
dos portugueses durante as invasões inglesas. Notaremos como a ação britânica desencadeou
preocupações sobre as autoridades portuguesas com o futuro da região. Identificaremos as
relações portuguesas junto aos dois lados do conflito, a fim de manter a neutralidade em cenário
tão delicado. Igualmente será possível perceber a dinâmica do sistema de coleta e transmissão
de informações por parte dos lusitanos e de vigilância sobre a fronteira com os territórios 117
espanhóis.
8
Palavras-chave: Comunicação; invasão; Rio da Prata.

INTRODUÇÃO
Esta comunicação analisa o grau de envolvimento do império português no episódio das
invasões britânicas ao vice-reino do rio da Prata em 1806 e 1807. A proposta é desenvolvida
sobre dois parâmetros: o dos efeitos da intervenção inglesa sobre os interesses portugueses e o
das ações diretas dos lusitanos no evento. Para atingirmos tal objetivo dividimos a exposição
em quatro diferentes momentos. O primeiro aborda a guerra entre França e Inglaterra, sua
evolução para um conflito naval atlântico e a dificuldade de Portugal manter-se neutro em tal


Esta investigação contou com recursos do CNPQ.

Doutor em História Social, professor adjunto do Departamento de História da UFSM,
adrianocomissoli@hotmail.com
cenário. O segundo expõe elementos das invasões a Buenos Aires e Montevidéu. O terceiro
aponta os interesses portugueses na região e como foram atingidos pela ação britânica. O quarto
e último é também o mais longo e apresenta o grau de envolvimento luso e encaminha uma
conclusão sobre a dinâmica da fronteira imperial platina.

1. Guerra entre potências


A guerra entre França e Reino Unido teve inícios em final do século XVIII e estendeu-
se, com algumas tréguas, até 1814. Tratou-se, a bem dizer, de uma disputa pela hegemonia
política e comercial da Europa, mas igualmente sobre o domínio dos mares. O motivo é que
desde o século XVII os Estados dinásticos europeus estavam solidamente constituídos enquanto
impérios ultramarinos, atrelando suas economias a áreas produtivas na América e a circuitos
comerciais que atravessavam os oceanos, em particular o Atlântico, mas com intensa penetração
no Índico e no Pacífico. Nas etapas do conflito que se desenrolaram no oitocentos não há dúvida
de que o conflito naval teve ampla dimensão e grande efeito sobre os projetos napoleônico e
inglês, em particular a partir da retomada das hostilidades no ano de 1803. Dois acontecimentos
apontam para a relevância da ação náutica para as guerras napoleônicas. O primeiro deles sendo 117
a batalha de Trafalgar (21 de outubro de 1805) na qual as forças inglesas quebraram em 9
definitivo a frota da coligação franco-espanhola, afastando a possibilidade de invasão das ilhas
britânicas e inviabilizando a projeção oceânica bonapartista. O segundo, consequência desta
impossibilidade, foi a declaração da França a 21 de novembro de 1806 de bloquear a entrada
de produtos ingleses no continente europeu, o que dirigiu o confronto para uma esfera
econômica. Definido pelo decreto de Berlim o bloqueio procurava simultaneamente minar a
força econômica inglesa e criar um mercado cativo para as nascentes manufaturas da França
(Cardoso, 2010).

O alcance atlântico da luta, entrementes, visualiza-se em outras ações dos beligerantes e


de seus aliados. Em dezembro de 1804, por exemplo, a Inglaterra forçou a Espanha a declarar-
lhe guerra e selar sua aliança com a França. O ponto sem retorno deu-se com o ataque inglês,
sob comando do almirante Thomas Cochrane, a quatro fragatas espanholas provenientes de
Montevidéu, no rio da Prata, que transportavam o metal precioso que batiza o estuário. Uma
das embarcações foi a pique, enquanto as demais foram apresadas e levadas arbitrariamente
como botim de guerra para Sua Majestade Britânica com sua carga avaliada em dois milhões
de libras esterlinas (Almazán, 2012, p. 48).

A investida britânica, contudo, não foi um caso isolado. Em 1803 o navio negreiro
Neptune fora abordado e tomado por corsários a serviço da França. Seu capitão, Hipollyte
“Manco” Mordeille, era um jacobino convicto que comerciava os escravos tomados dos
ingleses com frequência em Montevidéu e Buenos Aires, encarnando as contradições da Era
das Revoluções (Grandin, 2014). De fato, o próprio Bonaparte havia restituído em 1802 a
escravidão africana nas colônias francesas, aumentando as incongruências entre a Revolução
Francesa e o governo iniciado a 18 de Brumário de 1799.

Mais emblemáticos foram os lançamentos em 1805, antes de Trafalgar, de duas


expedições, uma inglesa e outra francesa, com missões além-mar e um mesmo objetivo. A
esquadra francesa contava onze embarcações e tinha ordens de desbaratar ações britânicas no
oceano e conquistar o cabo da Boa Esperança (então uma colônia holandesa). Os ingleses,
comandados pelo experiente Comodoro Home Riggs Popham, zarparam da Irlanda em agosto
de 1805 com o objetivo de tomar o mesmo cabo preventivamente. Os súditos do rei George III
levaram vantagem na corrida, de modo que a esquadra francesa, ao obter notícia da vitória de
118
seus rivais no extremo sul da África, desviou-se para o mar do Caribe a fim de auxiliar a 0
retomada do Haiti e de praticar o corso sobre navios mercantes britânicos.

Ambas as expedições interessam à nossa análise. Ambas abrigaram-se em sua travessia


oceânica rumo ao cabo da Boa Esperança em Salvador, Bahia, colocando este porto nas rotas
atlânticas de embarcações de várias bandeiras. Foi para a Bahia que a frota francesa se dirigiu
após descobrir que seus rivais ingleses rumaram em força superior à colônia do Cabo. Ambas
as frotas puderam aportar sem problemas porque as leis marítimas garantiam que navios de
nações não beligerantes podiam requerer atracadouro quando em trânsito. Dado que Portugal
mantinha-se neutro em relação ao conflito anglo-francês seus portos estavam disponíveis para
as esquadras concorrentes. Há cerca de 20 dias de viagem de barco para o sul, na cidade
portuária de Rio Grande, o comandante português Manuel Marques de Souza tomava
conhecimento de todos estes movimentos, informando-se com mestres de embarcações que
chegavam da Bahia (AHRS-AM, Maço 10, doc. 39) ou mesmo de cartas de particulares. De
tudo ele prestava contas ao governador da capitania do Rio Grande de São Pedro.
A essa altura a neutralidade de Portugal frente ao conflito anglo-francês mantinha-se com
dificuldades. Tratava-se de uma estratégia de sobrevivência que os Bragança praticavam desde
a Guerra de Sucessão Espanhola (1701-1714), conflito cujo envolvimento teve pesados custos,
quer na sua porção europeia, quer em suas possessões de além mar. Foi nesse contexto que
corsários franceses atacaram e saquearam a cidade do Rio de Janeiro. Também a Colônia do
Sacramento, na foz do rio da Prata, foi tomada pelo inimigo espanhol, sendo devolvida somente
com o Tratado de Utrecht, em 1715. Desde então a os reis lusos procuravam ausentar-se dos
confrontos militares europeus, salvaguardando a integridade territorial do reino e de suas
possessões. O sucesso da política, contudo, foi bastante irregular, já que os constantes atritos
com a Espanha e a aliança que desde Utrecht os lusos dedicavam aos ingleses obrigava a
adentrar o campo de batalha. A incapacidade de esquivar-se de todos os conflitos que lhe
cercavam fez-se sentir tanto na Europa quanto no ultramar.

Certamente que o momento mais grave na impossibilidade de manter a neutralidade deu-


se na dúvida quanto a aderir ou não ao bloqueio econômico decretado por Napoleão. As opções
eram bastante claras. A manutenção da acolhida a navios e produtos britânicos em portos
lusitanos significava o risco de uma invasão francesa. Contudo, suspeitava-se que romper com 118
a Inglaterra levaria ao corte da comunicação e do controle com os territórios de além-mar. Como
1
mostraremos as invasões ao rio da Prata podem muito bem ter alimentado a certeza de que tal
intervenção transcorreria.

2- A invasões inglesas como episódio do confronto entre impérios

As invasões inglesas ao rio da Prata, ocorridas em 1806 e 1807, são, a bem dizer um único
episódio, dividido em dois atos. A 26 de junho de 1806 as forças britânicas vindas do Cabo da
Boa Esperança desembarcaram próximo ao povoado de Quilmes e dirigiram-se a Buenos Aires.
A cidade se rendeu às tropas comandadas pelo brigadeiro general William Carr Beresford em
27 de junho. O vice-rei Marquês de Sobremonte, contudo, havia deixado a cidade rumo à
Córdoba, levando consigo o tesouro régio, avaliado em 9 mil onças de ouro. A fuga do vice-rei
frustrou o plano do comandante da frota inglesa, o Comodoro Popham, mas foi ainda mais mal
vista pela população da cidade, que se sentiu traída e abandonada. Embora os objetivos do
ataque fossem pouco claros até mesmo para seus comandantes (Gallo, 2001) a ação conformava
uma conquista e Buenos Aires passou das mãos do rei espanhol para as do britânico.
Entrementes, a mobilização da população contra os invasores e a articulação com forças que se
refugiaram em Montevidéu permitiu a reação dos hispano-americanos e reconquista da capital
do vice-reino em 12 de agosto, além do aprisionamento de Beresford.

Durante o tempo em que controlaram Buenos Aires, os ingleses perceberam a


insuficiência de suas forças para manter a cidade em definitivo. Ao comunicarem seus sucessos
a Londres pediram imediatos reforços, que foram enviados com instruções para tomar
Montevidéu, que se encontrava sob bloqueio desde junho de 1806. As ordens e os reforços
partiram antes que os ministros britânicos fossem informados da reação espanhola, motivo pelo
qual a segunda frota era antes um complemento à primeira do que nova investida. Não obstante,
a primeira expedição tinha por alvo somente o Cabo da Boa Esperança, a fim de tomar o mesmo
da Holanda, que de momento havia caído diante da França. Beresford e Popham não contavam
com instruções ou ordem expressas para a investida sobre o rio da Prata, tendo sido o Comodoro
o principal articulador e interessado na aventura (Gallo, 2001; Almazán, 2012). O sucesso da
investida sobre Buenos Aires criou a legitimidade para que o governo inglês encampasse a
ideia, dando-lhe suporte para sua manutenção e ampliação.701 118
Enviados em 9 de setembro de 1806, os reforços liderados por Sir Samuel Auchmuty só 2
alcançaram as praias de Montevidéu a 29 de outubro. Popham ainda se encontrava na região e
Beresford permanecia prisioneiro. Os espanhóis reforçavam suas defesas em Buenos Aires
estimulados por seu êxito recente e contando com inédita mobilização da população da cidade
e das classes até então afastadas do serviço militar (Johnson,2011). Popham retornou para a
Inglaterra, interessado em desfrutar o botim, enquanto Auchmuty ficou encarregado da nova
investida contra os espanhóis. A primeira etapa materializou-se na conquista de Montevidéu
em fevereiro de 1807. Esta cidade rivalizava em riqueza com Buenos Aires, visto ter se tornado
a sede da esquadra espanhola no Atlântico sul e principal porto atlântico do vice-reino platino.
Em parte a pujança da cidade devia-se à presença constante de uma comunidade mercantil lusa
com conexões no Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco (Prado, 2015).

701
Alguns meses após a reconquista efetuada pelos espanhóis, Popham deixou o estuário do rio da Prata,
abandonando Beresford e velejou de retorno à Inglaterra, onde foi julgado em corte marcial. O fracasso da missão
o levou a responder pela responsabilidade da aventura. O Comodoro, entretanto, conseguiu defender-se e foi
punido com não mais do que uma reprimenda (Gallo). Para o destino de Beresford em detalhes ver Almazán.
Nesse intervalo os espanhóis depuseram o vice-rei Sobremonte, apoiando como substituto
a Santiago de Liniers, oficial militar de ascendência francesa que se destacou na reconquista.
Junto a ele lutava o corsário Manco Mordeille cujo ódio aos ingleses o fez aderir à luta. Em
resumo, mudanças significativas haviam se operado na região em menos de um ano,
movimentando a espanhóis, ingleses e mesmo alguns franceses. Mas teriam ficado isentos de
tal episódio os portugueses, cujos domínios estavam tão próximos, representados pela capitania
do Rio Grande de São Pedro? Antes de respondermos é preciso terminar o confronto anglo-
espanhol.

Auchmuty estendeu seu controle sobre Montevidéu. De fato, o grupo mercantil da cidade
parece ter recebido com maior interesse a chegada dos invasores, efetuando com eles constantes
negócios (Prado, 2015). Enquanto isso nova leva de reforços foi solicitada a Londres, dado o
revés verificado em Buenos Aires em agosto de 1806. As forças complementares chegaram ao
extremo sul da América em maio de 1807, tendo a frente o General John Whitelocke com ordens
para assumir o controle das operações.702 Suas ordens expressas incluíam a tomada de Buenos
Aires, a perturbação do inimigo e a conquista da maior fração possível de território espanhol.
A 4 de julho os britânicos acometeram contra Buenos Aires. Dois dias depois rendiam-se aos 118
espanhóis. A cidade de Montevidéu permaneceu sob controle britânico até setembro, seguindo
3
tratado assinado com a rendição de julho. Em seu retorno a Londres Whitelocke enfrentou a
Corte Marcial, foi considerado culpado e dispensado do exército.

Para Lyman Johnson (2011) as invasões inglesas a Buenos Aires foram responsáveis por
estender a participação política a grupos até então excluídos, além de oferecer uma experiência
de autogerência à população buenairense. A oportunidade de depor o vice-rei e indicar um
substituto mesclou elementos tradicionais com outros novos no panorama de crises de
legitimidades dos impérios ultramarinos e teve desdobramentos importantes para o futuro da
região, em especial a partir de 1810. Em 1806 tais mudanças estavam em curso, mas seus
desdobramentos interessavam sumamente aos vizinhos portugueses da capitania do Rio
Grande.

702
A folha de serviços de Whitelock incluía diversas passagens nas índias Ocidentais e uma intervenção em São
Domingos em 1794. Gallo (2001), contudo, avalia que Whitelocke não era o oficial mais indicado para a tarefa.
3- “Parece-me que devo tornar algumas cautelas de reforçar os Postos avançados”

Os portugueses demonstraram ciência das invasões inglesas a seus vizinhos no extremo


sul da América por meio de um bem constituído sistema de obtenção e repasse de informação.
Um verdadeiro serviço de inteligência, visto que regularmente os comandantes militares da
capitania lusa do Rio Grande de São Pedro ficavam a par do que se passava nos domínios
espanhóis, valendo-se para isso de informantes que viajavam ou habitavam nos mesmos
(Comissoli, 2014a). Não menos comum era a troca de informação entre militares portugueses
e espanhóis quer para esclarecer divergências, quer para cooperar ou evitar confrontos
(Comissoli, 2014b). Embora a principal preocupação fosse acompanhar a situação na fronteira
com o vice-reino do rio da Prata os comandantes militares não raro demonstravam estar a par
de acontecimentos que transcorreram em outras partes da América ou mesmo na Europa
(Comissoli, 2015; Piccoli, 2015).

Em uma das inúmeras trocas de informações entre portugueses e espanhóis, estes foram

118
pela primeira vez avisados da potencial ameaça inglesa. Segundo Almazán, foi em 20 de maio
de 1806 que os espanhóis avistaram pela primeira vez uma embarcação da esquadra britânica,
a fragata Leda, que se adiantara ao restante da esquadra para reconhecimentos (2012, p.73). 4
Porém, em dezembro de 1805 o governador português Paulo José da Silva Gama enviara
notícias sobre a passagem da força britânica ao vice-rei Sobremonte (AHRS-AM, maço 9, docs.
98 e 98A). A notícia gerou o temor de um ataque às possessões hispânicas, levando a algumas
precauções. Assim, o Tenente-Coronel espanhol Francisco Xavier Vianna escreveu ao
comandante português da fronteira de Rio Pardo, Patrício José Correia da Câmara.

Las noticias que el Ilmo. y Excmo Senõr Don. Pablo José da Silba Gama,
Gobernador de eso Continente se ha Servido comunicar al Senõr Marques de
SobreMonte Virrey, y Capitán General de estas Provincias sobre la arribada de una
crecida Esquadra Inglesa con Tropas de desembarco a los Puertos Del Brasil, me
llaman a las Costas Marítimas con la maior parte de las fuerzas de esta Expedición
en precaución de algún desembarco que pudieran intentar los Británicos (…). A este
he recomendado conserve aquella buena armonía que nos están encargada por
nuestras Cortes (AHRS-AM, maço 9, doc 98A).

Percebe-se que espanhóis foram alertados sobre a existência de uma considerável força
de ataque britânica cerca de seis meses antes do desembarque em Buenos Aires, quando a
mesma rumava ao Cabo da Boa Esperança. E o foram justamente pelos portugueses, com os
quais estavam oficialmente em paz, mas com quem mantinham acirrada beligerância na região
do rio da Prata desde 1680, quando foi fundada a Colônia do Sacramento. A segunda
constatação é mais sutil e decorre da primeira. O aviso do governador ao vice-rei não foi mero
cavalheirismo. Ele se insere na prática comum no período de trocas de informações entre
oficiais de uma e outra Coroa. Ao mesmo tempo ele pode ter usado a informação como
subterfúgio para desmobilizar as forças que o tenente-coronel Vianna recrutava. Este oficial
passara 1805 reunindo soldados na região limítrofe sob alegação de combater índios “infiéis”,
charruas e minuanos. As autoridades portuguesas, entretanto, receavam uma investida contra o
território das Missões, anexado por Portugal em 1801 (Comissoli, 2014a).

O governador Silva Gama comentou em janeiro de 1806 que ordenara mobilização em


massa de tropas regulares e milícias a fim de preparar-se para o possível ataque. A resposta de
Vianna, de que as tropas espanholas se dirigiam para longe da fronteira com a capitania de São
Pedro, fez a concentração de forças lusas ser cancelada, “ficando tudo no pé do Sossego em que
estava até ver o que de novo ocorre apenas se desvaneça o receio em que estão dos Ingleses”
(AHRS, AM, maço 9 doc 98). Silva Gama usou a passagem dos ingleses junto à costa do Brasil 118
como diversão aos espanhóis. Não podia adiantar os eventos de junho, já que na altura nem os
5
ingleses tinham por certo outro objetivo além do Cabo. A manobra do governador, contudo,
demonstra a relevância em manter um organizado sistema de informação, o qual foi capaz de
desbaratar uma ameaça aos por meio de suposta ajuda aos vizinhos, em um claro momento no
qual a pena foi mais forte do que a espada.

O temor dos espanhóis foi certamente real. O comandante da fronteira portuguesa de Rio
Grande, Manuel Marques de Souza, deu contas ao governador, em 25 de janeiro de 1806, de
que Vianna se afastara do rio Ibicuí, então divisa dos limites espanhóis e lusitanos, e que
rumores falavam da concentração de dois mil homens junto a Maldonado, povoação litorânea.
Na mesma carta comentava “a considerável perda da Esquadra combinada”, referindo-se à
derrota franco-espanhola em Trafalgar, e que as “coisas da Europa parece que vão tornar a
revoltar-se” (AHRS-AM, maço 10, doc 10.). Ainda que afastados do teatro de guerra europeu
as autoridades do extremo sul da América procuravam manter-se atualizadas dos assuntos que
lhes diziam respeito diretamente.
Manuel Marques de Souza foi, de fato, um observador privilegiado do desenrolar do
conflito entre espanhóis e ingleses, tanto por ser comandante de fronteira e um dos principais
nodos da rede de informação portuguesa no rio da Prata, quanto por ser Rio Grande o único
porto marítimo da capitania. Dessa forma, ele recolhia notícias tanto dos domínios de Espanha
quanto de embarcações que chegavam. Em 30 de novembro de 1806, já consolidada a
reconquista de Buenos Aires e ainda não efetivado o ataque a Montevidéu ele mencionava que
embarcações vindas do Rio de Janeiro davam conta da passagem de uma grande força inglesa
destinada ao Cabo da Boa Esperança. Opinava que se assim se confirmasse as tentativas dos
ingleses em conquistar Buenos Aires se esvaneceriam pela falta de tropa de terra (AHRS-AM,
maço 9, docs. 83). Faltam-nos dados para apurar se esta esquadra reforçou a posição inglesa no
Cabo ou se tratava-se de mais homens para as ações no rio da Prata.

No dia seguinte, 1º de dezembro, afirmou que os espanhóis tinham juntado dois mil
homens para atacar aos ingleses e que lhes impediam a chegada de gados. Os espanhóis
esperavam reunir efetivo ainda mais numeroso, o que soava um alerta ao experiente soldado
que era Marques de Souza. “Esta força de cavalaria tão próxima à nossa Fronteira é uma estrada
de Campanha da Europa, parece-me que devo tornar algumas cautelas de reforçar os Postos 118
avançados” (AHRS-AM, m. 10, doc. 85). Ao mesmo tempo afiançava ao governador de que
6
nada faria sem ordens e “por enquanto mando espias a observar os movimentos, bem que eles
podem ser muito rápidos” (Idem). Os portugueses temiam que uma escalada do conflito no
Prata os atingisse. O receio se baseava no acompanhamento das movimentações dos
beligerantes, por vezes bastante rápidas para se seguir com atenção e a tempo de reagir
adequadamente. Mas as notícias que chegavam da Europa também davam conta que a
neutralidade era instável e que era necessário estar preparado para o início das hostilidades.

Marques de Souza escrevia com desnudada franqueza ao governador. Para ele o ingresso
de Portugal na guerra que sacudia a Europa não se restringiria ao continente, todas as partes do
império lusitano seriam tragadas para o conflito. Ele considerava que no rio da Prata essa
probabilidade era alta. De fato, os espanhóis iam se colocando tão animados com os primeiros
sucessos contra os ingleses que se gabavam, antes mesmo de expulsá-los, que logo Santiago de
Liniers guiaria a retomada dos sete povos das Missões orientais e o avanço até Rio Pardo contra
os portugueses (AHRS-AM, maço 11, doc. 30).
Até aqui percebemos que a invasão inglesa a Buenos Aires dissipou um novo confronto
entre portugueses e espanhóis no Prata, ao obrigar os últimos a se mobilizar para uma ameaça
inédita na região.703 Beneficiados por isso, contudo, os portugueses não puderam respirar
aliviados e temiam ser arrastados para as batalhas em curso ou que os espanhóis marchassem
contra eles, inspirados por suas vitórias. Resta saber se os lusitanos desconfiavam igualmente
dos britânicos, de quem eram oficialmente aliados.

Ao que se pode inferir os súditos dos Hannover constituíram uma desordem e uma ameaça
aos interesses portugueses no rio da Prata. O receio não era de que após controlarem as cidades
espanholas os britânicos se dirigissem às portuguesas. A ameaça era de outra ordem. A presença
no Prata de uma nação manufatureira como a Inglaterra prejudicava os interesses de
comerciantes portugueses, enraizados de longo tempo em Montevidéu e Buenos Aires e
participantes ativos do comércio e do contrabando. Os portugueses extraíam a prata originária
de Potosí ao trocá-la por diversos produtos, em especial escravos africanos e o controle
britânico romperia com este circuito.

Luís Beltrão de Gouveia Almeida foi um magistrado português a quem a ocupação


britânica de Buenos Aires imediatamente chamou a atenção. Por este motivo ele redigiu sua
118
Memória sobre a Capitania do Rio Grande do Sul ou Influência da conquista de Buenos Aires 7
pelos ingleses em toda a América e meios de prevenir seus efeitos (Almeida, 2009), ainda no
ano de 1806. Ou seja, embora a ocupação inglesa tenha durado cerca de um mês e meio ela foi
percebida na época como definitiva. O balanço de Almeida sobre a situação não era positivo,
classificando a conquista como um “desgraçado sucesso” (p. 151) diante do qual Portugal não
podia ficar indiferente: “ele pode influir na massa geral das Colônias portuguesas e espanholas;
ser fatal a toda a América” (p. 151).

Almeida listou várias ameaças advindas da iniciativa inglesa e de suas distinções culturais
em relação aos portugueses. Apontou a diferença de religião, afirmando que o protestantismo e
a monarquia eram diametralmente opostos. Mencionou a má influência da constituição política
inglesa, classificando-a de “mista”, dada a divisão de poderes entre o rei e o parlamento.

703
A última guerra entre portugueses e espanhóis na região platina fora a de 1801. Contudo, uma escaramuça
bastante séria entre patrulhas de ambos os lados ocorreu em 1804 (Camargo, 2001), além do clima de desconfiança
marcar a convivência cotidiana na fronteira (Comissoli, 2014b).
Advogou que tais diferenças consistiam uma forma de contaminação ideológica que poderia
levar a “cortar o nexo que une as Colônias à Metrópole”. Seu maior receio era de ordem
comercial. Reconhecia que um intenso comércio envolvendo as capitanias do Rio de Janeiro,
Bahia e Pernambuco era praticado com Buenos Aires em troca de prata e que mesmo
envolvendo contrabando era vantajoso. Contudo, os ingleses, que discutiam no parlamento o
fim do comércio escravo africano, não teriam o mesmo interesse nos produtos oferecidos pelos
lusos, em particular os escravos e seriam capazes de estabelecer um monopólio sobre a prata
sul-americana. Por fim, afiançava sem subterfúgios que “a Capitania do Rio Grande, mudando
de vizinhos, mudou de inimigos” (p. 161).

4- “deve-se evitar ao mesmo tempo toda a preferência, e todo o motivo de ciúme”


Por contundentes e acertados que fossem os alertas do magistrado Almeida eles não
consideravam a situação delicada de Portugal. Não obstante as ressalvas quanto aos
desdobramentos possíveis os portugueses tinham ainda que operar de modo a resguardar a

118
neutralidade vigente. Não apenas no reino a Coroa lusa tinha de manter-se afastada do conflito
europeu, sob pena de sofrer represálias na América, mas o inverso também era verdadeiro. Se
os portugueses se envolvessem na refrega em curso em Buenos Aires a Coroa espanhola podia 8
atacar na Península Ibérica apoiada pelos franceses. O bloqueio do comércio europeu com os
ingleses, em novembro de 1806, dava mais uma volta no torno que imobilizava Portugal. Antes
mesmo do decreto de Berlim o governador Paulo José da Silva Gama e o comandante militar
Manuel Marques de Souza atuavam com cuidado a fim de não ferir sua condição neutra. Os
portugueses foram acionados diretamente por ambos os contendores, ainda que sem
envolvimento efetivo. De fato, foi sua condição de neutralidade que foi solicitada.

Em relação aos ingleses a solicitação veio da frota, que se dirigiu ao porto de Rio Grande
para recompor seus estoques de víveres. Em 14 de outubro de 1806 ao menos duas das
embarcações que bloqueavam Montevidéu dirigiram-se aos territórios portugueses para
“comprar refrescos de mais aves, patos, marrecos, carneiros e vitelas, como se verificou da
portaria que apresentou do Comodoro Home Popham” (AHRS-AM, maço 10, doc. 66). A
segunda embarcação deixava em terra um irlandês “que alguma coisa fala castelhano” a fim de
providenciar outros mantimentos que seriam buscados por um terceiro navio.704 O experiente
comandante Marques de Souza aproveitou a situação para saber dos planos ingleses e obteve
afirmação dos comandantes das duas embarcações de que em breve pretendiam tomar
Montevidéu. O português, contudo, julgou que as forças inglesas eram insuficientes e que
provavelmente esperavam reforços, o que de fato ocorreu.

Marques de Souza prestava conta de todas estas transações ao governador, por meio do
ajudante de ordens do mesmo. O próprio governador Paulo José da Silva Gama havia expedido
portaria consentindo com o abastecimento de gêneros aos ingleses, com quem no rigor dos
tratados diplomáticos e, a despeito das desconfianças do magistrado Almeida, mantinham
relações neutras em relação ao conflito. Portugal não participava diretamente nas invasões ao
rio da Prata, mas sem sua ação como posto de abastecimento a condição dos ingleses em manter
o bloqueio a Montevidéu após serem expulsos de Buenos Aires dificilmente poderia sustentar-
se. O próprio Home Popham escreveu em agradecimento ao governador Silva Gama. Em
fevereiro de 1807 quando Montevidéu caiu sob jugo inglês outro comandante, Charles Stirling,
escreveu diretamente ao governador informando-o, mas igualmente enviando um oficial para
comprar farinha e sal para aprovisionar seus homens. Silva Gama, por diplomacia, afirmou 118
felicitar-se pela conquista das armas inglesas, dispondo-se a ajudar no que fosse possível.
9
Concluimos que o papel do neutro Portugal, por meio da capitania do Rio Grande de São Pedro,
não foi desprezível ao esforço de guerra britânico.

A participação portuguesa, como dissemos anteriormente, foi solicitada por ambos os


lados. Da parte dos espanhóis havia trânsito de pessoas, em especial das que se dirigiam ao
porto de Rio Grande. Explica-se: dado o bloqueio efetuado pelos ingleses, os espanhóis valiam-
se da cidade portuária portuguesa para despachar suas correspondências para a Europa.
Novamente os vassalos dos Bragança se colocavam em situação sensível.

O quão oficial e o quão dentro dos parâmetros de neutralidade foram as concessões e


auxílios portugueses? Manuel Marques de Souza em resposta a uma correspondência reservada
do governador Paulo Joé da Silva Gama torna clara a orientação de

704
Uma relação dos “refrescos” transportados por uma das embarcações britânicas conta 300 aves, 30 carneiros,
24 porcos e 5 reses, além de miudezas como sabão e velas (AHRS-AM, maço 10, doc. 66B).
permitirem-se os socorros de víveres necessárias, que se pedirem e intentarem
comprar, sem contudo aparecer desta concessão autorização pública, e solene.

Que deste modo exposto, obrando eu assim, com delicadeza virei a facilitar,
indiretamente, o que a princípio tiver negado, pública e ostensivamente. (AHRS-AM,
maço 11, doc.12)

Dito de outra forma, o abastecimento aos navios ingleses não seria negado, mas
igualmente não deveria constar em documentos oficiais e públicos, de modo a não comprometer
o posicionamento lusitano no delicado xadrez atlântico de acirrada competição imperial.
Quanto à passagem concedida aos espanhóis Marques de Souza pedia mais instruções.

vou já procurar saber de V. Exa. o que devo praticar com os Espanhóis que
sucessivamente estão passando por aqui de Buenos Aires e Montevidéu, com destino
a Madri, levando ofícios nas embarcações Portuguesas. Os que trazem Passaporte
Régio de Lisboa, penso deixá-los passar; mas os outros que procuram obter de V.
Exa. para saírem, sempre tem sido com o disfarce de serem Portugueses: neste caso
é que necessito ter a insinuação ou ordem de V. Exa. para não cair em erro. (AHRS-
AM, maço 11, doc.12)

Portanto, Marques de Souza fazia vistas grossas aos espanhóis que, sem passaportes,
119
disfarçavam-se de portugueses para embarcar em direção à Espanha. É importante destacar que
o comandante de Rio Grande dialogava com os capitães de navios britânicos, mas igualmente 0
se atualizava das operações bélicas diretamente com oficiais militares espanhóis, que lhe
escreviam com tons de amizade dando números e composições de tropas (AHRS-AM, maço
10, doc. s/nº). Ou seja, embora neutra a atuação portuguesa junto à guerra anglo-espanhola não
era inerte e muito menos desinteressada. De fato, tudo indica que operavam na corda bamba,
procurando resguardar sua neutralidade, mas sem com isso deixar de perseguir seus interesses.
Se bem que seu objetivo fosse não comprometer-se isso significava aceder às solicitações. Claro
estava a Paulo José da Silva Gama e a Manuel Marques de Souza que as alianças e as inimizades
podiam oscilar diante do horizonte de incertezas. Igualmente certo é que qualquer que fosse o
resultado da contenda os lusitanos deveriam manter-se em vigilância diante dos novos ou velhos
vizinhos platinos.

A menção de um ofício reservado de Silva Gama a Marques de Souza mostra que o


assunto merecia um grau de sigilo e seu teor revela uma diferença entre as medidas objetivas e
o anúncio oficial das mesmas. Em 12 de novembro o governador escrevia carta a Edmond
Gorman, encarregado inglês de realizar compras para a frota, e para o comandante Marques de
Souza. Ao primeiro enviava passaporte autorizando-o a ir à ilha de Santa Catarina na sua
diligência. O documento ao qual tivemos acesso é uma cópia guardada na secretaria de governo,
mas consta em seu cabeçalho o destinatário e ao final da missiva a menção à assinatura de Silva
Gama, como era de praxe. A segunda também é uma cópia, mas não aponta nem o destinatário,
nem o autor. Nesta o governador afirma que “jamais deve recusar aos seus Aliados” os víveres
e consertos navais que necessitarem “contudo deve-se evitar ao mesmo tempo toda a
preferência, e todo o motivo de ciúme e queixa que poderia suscitar a nação Espanhola”.
Orientava o destinatário a tornar “extremamente dificultosa a compra de navios nossos” de
forma a restringir os apoios prestados aos ingleses, resguardando “o equilíbrio entre uma e outra
nação e evitando com vigilância no atual momento de crise o menor comprometimento com
alguma delas”. Pelo teor da carta a mesma tinha por interlocutor o comandante Marques de
Souza, responsável também pelo controle do porto de Rio Grande. Nota-se aqui o
funcionamento imediato em uma região de fronteira e em situação de crise da chamada política
de neutralidade portuguesa.

119
CONCLUSÃO 1
Finalmente, gostaríamos de realizar considerações sobre as noções de fronteira e crise
acima expressas. Temos trabalhado com a noção de que a fronteira no extremo sul da América
conforma uma fronteira imperial de cunho político. Isto significa que a abordamos enquanto
zona de contato entre os domínios respondentes ao império português e aqueles subordinados
ao espanhol. Impérios diferentes correspondem à sujeição dos territórios e das pessoas a
diferentes monarcas, a casa de Bragança para Portugal e a de Bourbon para a Espanha. Por esse
motivo que classificamos a fronteira enquanto política, embora estejamos cientes da
impossibilidade de considera-la somente neste sentido. Interessa-nos, sobretudo, o exercício da
soberania pelos ditos impérios. Da mesma forma a noção de crise tem aqui um sentido imperial.
Ela surge na última carta de Paulo José da Silva Gama, justamente a que não apresenta
assinatura ou destinatário e revela a agudez do episódio enfrentado, o qual é resultado da
concorrência entre os impérios ultramarinos europeus. No caso específico desse desenrolar as
invasões de 1806 e 1807 confrontaram a ingleses e espanhóis, mas envolveram também a
franceses e portugueses, tudo isso ocorrendo na margem americana do Atlântico, mas com
direta conexão e possibilidade de afetar a outra borda oceânica. Tratava-se de um fronteira não
apenas entre dois impérios, mas multimperial e atlântica.

A íntima complementariedade destes espaços, assim entendida já pelos agentes


contemporâneos, ficou evidente quando da conquista britânica de Buenos Aires e Montevidéu
e os passos portugueses foram realizados com cuidadosos cálculos, como demonstramos.
Passada a tensão mais imediata, persistia a crise, que muito bem foi sintetizada por Patrício José
Correia da Câmara, comandante da fronteira de Rio Pardo.

A experiência dos sucessos é que servem para acautelar os acasos futuros. (...)
A nossa Corte se acha ameaçada por um inimigo poderoso para a requisição dela;
não digo que a Nação tema as ameaças, e primeiros golpes das suas fatalidades
porque jamais será para esquecer a glória, e merecimento que em todos os séculos
tem sabido adquirir a mesma Nação. Se o rompimento desta com a França e Espanha
for inevitável, a guerra não será somente feita por aquela parte do Reino, e sim por
todos os Estados Portugueses. (AHRS-AM, maço 11, doc. s/nº)

O problema, portanto, não se restringia à porção europeia de Portugal e, assim


defendemos, tal percepção aprofundou-se com a ação inglesa, a qual evidenciou que os
territórios ibéricos de além-mar não estavam fora de seu alcance. Tal entendimento pode ter 119
pesado no entendimento da Coroa portuguesa em alinhar-se, finalmente à Inglaterra, pois a
2
aliada já dera demonstrações de sua voracidade em direção à América. O conhecimento
português, portanto, era empírico e advinha da mencionada rede de informações construída
junto aos territórios espanhóis do rio da Prata, que em 1806 e 1807 serviu para manter a
vigilância sobre rivais e aliados.

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PRADO, Fabrício (2015). Edge of Empire. Atlantic Networks and Revolution in Bourbon
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119
4
AS MANIFESTAÇÕES DA RELIGIOSIDADE AFRICANA ATRAVÉS DOS
CALUNDUS NO PERÍODO COLONIAL BRASILEIRO705

Jorge Vinicius Quevedo da Cruz706

RESUMO

Este artigo tem como objetivo discutir o papel da religiosidade africana no período colonial
brasileiro. Dentro desse enfoque, abordamos os calundus como forma de resistência cultural e
religiosa frente ao sistema da escravidão. A palavra calundu, foi um termo genérico usado para
chamar as religiões africanas no Brasil até meados do século XVIII. Assim, procuramos
compreender como os africanos e seus descendentes buscaram através da sua religiosidade criar
laços de identidade, sociabilidade e influência junto as suas comunidades. Além disso,
debatemos como se deram as formas de perseguição aos cultos de origem africana, a partir das
autoridades policiais e eclesiásticas.

Palavras-chave: religiosidade africana; calundu; escravidão. 119


INTRODUÇÃO
5
A escravidão no Brasil, por muitos séculos, colocou os africanos e seus descendentes
relegados a um segundo plano pela história, ignorando-se suas origens étnicas, culturais e
religiosas. Contudo, os escravos não permaneceram passivos frente às mazelas que a escravidão
colocava em suas vidas. Mesmo diante do preconceito racial, os africanos suportaram a
condição de escravo e transcenderam a sua história no território brasileiro. Nesse contexto, a
religiosidade assumiu um papel muito importante. Não apenas criando laços identitários entre
os escravos, mas também, usada com um alicerce para sobreviver ao sistema escravocrata.
No Brasil colonial, as religiões praticadas pelos africanos eram generalizadas a um
termo, denominado “calundu”. Existiram diversas representações da prática do calundu, onde
os escravos podiam exercer sua cultura através da religiosidade, mantendo e criando vínculos

705
Trabalho de Conclusão de Curso – Especialização em Historia e Cultura Afro-brasileira e Africana – Claretiano,
Porto Alegre/RS.
706
Graduado em História – Unifra , Santa Maria/RS. Email: jorgequevedo3@hotmail.com.
sociais. Para muitos, também era a oportunidade de ganhar dinheiro, comprar sua alforria, ser
reconhecido na comunidade.
Para a execução dessa pesquisa, utilizamos uma revisão bibliográfica sobre o tema
proposto, dando ênfase a autores que trabalham a religiosidade afro-brasileira. Discutimos
então, o papel da religiosidade africana através dos calundus, tendo como recorte histórico o
período colonial brasileiro. Nesse contexto, como escravos, crioulos e mestiços conseguiram
através da religião suportar as mazelas da escravidão e a perseguição as suas convicções
religiosas.

1. O calundu como manifestação cultural e religiosa

Durante os séculos XVI e XIX, o tráfico negreiro fez com que milhares de africanos
desembarcassem no Brasil na condição de escravos. Através de navios que saiam da África
Ocidental e Oriental, os negros eram amontoados nos porões das embarcações; sem higiene,
com pouca luminosidade e intenso calor. Na trajetória para o território brasileiro, muitos
acabavam morrendo devido às péssimas condições de transporte.
O tráfico de escravos africanos não era novidade para Portugal, desde o século XV, os 119
portugueses já traficavam cativos do território africano. No Brasil, a introdução do sistema
6
escravista visava substituir a mão de obra indígena. Nesse contexto, era preciso um grande
contingente trabalhador para ocupar-se inicialmente nas fazendas, na produção de açúcar na
colônia. Os escravos também eram destinados para os centros urbanos, onde trabalhavam no
ambiente doméstico, na construção de casas, estradas, pontes, entre outras atividades.
Procedentes de diversas regiões da África, os povos africanos trouxeram consigo uma
grande diversidade cultural, étnica e religiosa. Dentre esses aspectos, a religiosidade foi
fundamental para os escravos estabelecerem no Brasil laços de solidariedade. A religião
praticada pelos africanos constituiu um alicerce frente ao sistema opressor que o sistema
escravista empunhava no território brasileiro.
No universo cultural africano, a religião representava um ponto central em suas vidas.
Através da religiosidade, os escravos tiveram no Brasil uma forma de identificarem-se
culturalmente, permitindo o fortalecimento desses povos através da criação de laços
identitários. O que contribuiu para que os africanos construíssem e mantivessem vínculos
sociais entre eles.
As manifestações religiosas dos africanos no Brasil até meados do século XVIII eram
chamadas de “calundu”. “O termo calundu era associado à palavra ‘quilundo’, de origem
quimbundo (língua banto), que designa a possessão de uma pessoa por um espírito” (MATTOS,
2009, p.156, grifos do autor). Os bantos707 (bantus) não representavam um grupo étnico
específico, mas um conjunto de povos que habitavam a África Central.
Os bantos começaram a serem traficados para o Brasil no início do século XVI até
meados do século XIX. Essas populações compartilhavam “[...] a mesma língua ancestral
chamada de ‘protobanto’” (LWANGA-LUNYIIGO; VANSINA, 2010, p. 169). Isso, de certa
forma possibilitou a esses grupos a manutenção de alguns laços culturais em comum, entre eles
a religiosidade.
Em sua viagem a Pernambuco em meados do século XVII, o alemão Zacharias
Wagener708 (1614-1668), retratou em sua pintura uma das primeiras ilustrações das cerimônias
religiosas no Brasil. A obra, chamado de “Negertanz” (Dança de negros) faz parte da coleção
Zoobiblion: livro dos animais do Brasil (1964)709.

119
7

Dança de negros (Zacharias Wagener).


Fonte: (SOUZA, 2011, p. 61).

707
“Os bantos englobam populações oriundas das regiões localizadas no atual Congo, Angola e Moçambique”
(SILVA, 1994, p.28).
708
“Zacharias Wagener chegou ao Brasil em 1637, quando João Maurício de Nassau assumiu o cargo de
Governador do Brasil holandês e o promoveu a um cargo administrativo, no qual se manteve até 1641, período em
que produziu desenhos e pinturas” (SOUZA, 2011, p. 57).
709
Ver TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil colonial. São Paulo: Editora 34, 2000.
Na figura acima, podemos visualizar negros dançando e tocando seus instrumentos de
corda e percussão. Silvia Souza (2011, p.61), observou que “[...] a presença de uma mulher de
pele mais clara no meio da roda [...] nos oferece indícios para sugerir [...] que os batuques não
foram diversões restritas apenas aos escravos”. Os rituais africanos, geralmente repletos de
músicas, danças e cânticos, atraiam um grande número de pessoas ou curiosos.
Umas das descrições mais antigas a respeito dos calundus, foram feitas por Nuno
Marques Pereira, durante sua estadia na Bahia em meados do século XVIII. Em sua obra
intitulada “Compêndio Narrativo do Peregrino da América (1728)”, ele relatou uma conversa
com seu anfitrião a respeito de como ele passara a noite. Na ocasião, o viajante disse que não
conseguia dormir devido a um intenso barulho de tambores. Em resposta, o hospedeiro falou
que os estrondos eram devidos aos calundus. Intrigado, Pereira pede-lhe então uma explicação
sobre o que seriam os tais calundus.
Agora entra o meu reparo (lhe disse eu) Pois, Senhor, que cousa é Calundús? São
uns folguedos, ou adivinhações, (me disse o morador) que dizem estes pretos que
costumam fazer nas suas terras, e quando se acham juntos, também usam delles cá,
para saberem varias cousas; como as doenças de que procedem; e para adivinharem
algumas cousas perdidas; e também para terem ventura em suas caçadas, e lavouras;
e para outras muitas cousas (PEREIRA,1939, p. 123-124). 119
Durante as sessões de calundus, os escravos usavam de suas práticas mágico-religiosas 8
para fazerem ligações com o sobrenatural. A partir dos rituais de transe e possessão, o individuo
recebia entidades espirituais ou ancestrais. Essas cerimônias eram precedidas de cânticos,
danças e toque de instrumentos de percussão. Seus líderes religiosos, além de trabalharem com
adivinhações, tinham um grande conhecimento no que se refere à manipulação de certos tipos
de ervas e drogas.
Segundo Silveira (2009, p.18), “[...] sabiam preparar tisanas, cataplasmas e unguentos
que aliviavam os males corriqueiros dos habitantes da colônia, eram também capazes de curar
doenças mais graves, como a tuberculose, a varíola e a lepra [...]”. O calundu tornava-se assim,
uma alternativa ao poder de cura da medicina oficial, o que acabava colocando a seus
praticantes um grande respeito e influência junto a sua comunidade. Nesse contexto, acabavam
atraindo um grande número de pessoas, entre negros, mestiços e brancos de diversos grupos
sociais, que buscavam curar enfermidades, resolver problemas financeiros e amorosos ou até
prever o futuro.
De acordo com Silva (1994), os primeiros calundus encontraram muita dificuldade para
se desenvolverem, visto que, o espaço da fazenda, na qual, estavam confinados, eram sempre
vigiados por capatazes. Contudo, os africanos sempre encontravam uma maneira de
organizarem-se para realizar e praticar seus cultos religiosos.

Os adeptos dos calundus organizavam suas festas públicas na residência de uma


pessoa importante da comunidade, ou então em casas também destinadas a outras
ocupações. Não tinham templos propriamente ditos, mas também não se tratavam de
simples cultos domésticos, uma vez que tinham um calendário de festas, iniciavam
vários fiéis em diferentes funções e eram frequentados por um número razoavelmente
grande de pessoas, inclusive brancos, vindos de diversos arraiais (SILVEIRA, 2009,
p.18).

A organização em torno do calundu criava toda uma rede de conexões sociais e culturais.
A vida religiosa unia os escravos em torno de um elemento cultural, a religiosidade africana.
Os centros religiosos através de suas consultas e festas formavam laços de sociabilidade e
solidariedade entre seus frequentadores.
A partir do século XVIII, o crescimento de muitos centros urbanos no Brasil trouxe um
novo cenário para as manifestações da religiosidade africana. Os calundus que antes tinham no
119
espaço rural o local de suas práticas religiosas, encontram nas cidades um lugar melhor para o
desenvolvimento de suas crenças. Nessa conjuntura,“As moradias dessa população, localizadas 9
nos velhos sobrados e nos casebres coletivos, tornaram-se pontos de encontro e de culto,
relativamente resguardados da repressão policial” (SILVA, 1994, p.48).
Um dos calundus que se desenvolveram no espaço citadino foi o jejê 710 do Pasto de
Cachoeira, localizado na cidade de Cachoeira no Recôncavo baiano, em 1785. Esse calundu
“[...] era uma organização tipicamente urbana e o primeiro a ter como endereço uma rua, embora
de periferia” (SILVEIRA, 2009, p.19). Seu líder era o vodunô (espécie de sacerdote) Sebastião
de Guerra, africano natural de Daomé.
Conforme Reis (1988), Sebastião de Guerra chegou ao Brasil como escravo e
provavelmente conseguiu sua alforria através de seus trabalhos como feiticeiro. Posteriormente,
Sebastião chegou em Cachoeira e alugou uma casa na Rua do Pasto, onde montou uma estrutura
pequena para conduzir suas atividades religiosas.

710
Os jejes fazem parte do grupo dos sudaneses, populações oriundas da África Ocidental.
Mesmo tendo prestígio na comunidade, Sebastião foi um dos muitos líderes religiosos
do Recôncavo baiano que sofreram perseguições policiais. Para Reis (1989, p. 41), “Em todos
esses casos a repressão foi efetivada ou pelo menos recomendada em função principalmente do
sucesso dos ditos feiticeiros em atrair prosélitos e clientes, e não só entre os escravos”. Nesse
caso, Sebastião foi preso em 1785 e abriu-se uma devassa contra o réu.

1.2 A visita do Santo Ofício


A religiosidade africana no Brasil em muitos momentos também foi reprimida através
do apoio da Igreja Católica. Os rituais africanos eram vistos pela Igreja como bruxaria ou
feitiçaria. Portanto, essas práticas mágico-religiosas teriam supostamente uma ligação direta
com o mau, ou seja, com o próprio demônio.
Silva (1994), salienta que a Igreja Católica precisava distinguir o caráter magicizado do
catolicismo colonial, na qual se cultuava santos e milagres, das crenças consideradas primitivas
dos africanos. Demonstrando, que a Igreja sempre procurava se afirmar e impor-se frente a
outras religiões, nesse caso pagãs. Para isso, a inquisição portuguesa fez diversas visitas ao
Brasil, perseguindo e condenando muitos africanos e negros brasileiros. 120
O Tribunal do Santo Ofício em Portugal iniciou-se no século XVI, especificamente em
1536. Suas ações no Brasil ocorreram através de visitações à colônia durante alguns períodos. 0
Após as acusações por parte dos inquisidores, os acusados eram enviados ao tribunal de Lisboa
para serem julgados.
Os arquivos presentes nos processos inquisitoriais são fontes importantes para o estudo
dos calundus. Esses documentos tem revelado um grande de processos contra escravos
africanos durante a passagem do Santo Oficio pelo Brasil. Dentre os calundus recorrentes aos
estudos da historiografia podemos citar o de Luzia Pinta, que fora julgada e condenada pelo
processo inquisitorial.
Natural de Angola, Luzia Pinta chegou ao Brasil em meados do século XVIII, onde
passou a residir em Sabará, Minas Gerais. Depois de muitos anos vivendo como escrava, a
angolana conseguiu sua alforria, e logo, tratou de comprar três escravos para ajudar-lhe em seu
calundu. “Ela presidia os rituais, celebrados em sua própria casa ou na residência de seus
assistidos” (DAIBERT JUNIOR, 2015, p. 19). Durante suas consultas, Luzia entrava em
possessão e orientava seus pacientes através de adivinhações, misturando ervas e
diagnosticando doenças.
Após constatar a possessão, os auxiliares de Luzia soltavam uma cinta antes
amarrada em sua barriga e colocavam alguns penachos coloridos em sua orelha, de
onde ela dizia receber “ventos de adivinhar”. Nesse momento iniciava-se a
adivinhação, quando os participantes eram convidados a se ajoelhar e passavam a
ser cheirados e assoprados, sendo tais atos considerados uma forma de diagnóstico
das doenças e queixas. [...]. Durante o ritual, geralmente à noite e chegando a durar
em torno de duas horas, o oficiante em estado de transe preparava misturas de ervas
e as oferecia ao cliente, que chegava a vomitar ou defecar, expelindo assim os
espíritos malignos e objetos mágicos que o atormentavam (DAIBERT JUNIOR, 2015,
p.20).

O calundu de Luzia Pinta era uma ressignificação da religiosidade africana no Brasil.


Luzia colocava-se entre o universo do catolicismo popular e as tradições centro-africanas de
acordo com as circunstâncias que ela estava envolvida na sociedade colonial (MARCUSSI,
2006). Em seus cultos religiosos, estavam presentes elementos africanos, indígenas e europeus.
O julgamento de Luzia Pinta aconteceu em Portugal. Assim como outros acusados,
Luzia foi submetida à prática de tortura por parte dos inquisidores. “O recurso à tortura era

120
usado para descobrir possíveis evidências de um pacto demoníaco em suas práticas religiosas”
(DAIBERT JUNIOR, 2015, p.9). Além do mais, também fazia com que a maioria dos acusados
acabasse declarando-se culpado. 1
Apesar de ter escapado da morte, Luzia foi condenada pela “[...] ‘abjuração de leve
suspeita de ter abandonado a fé católica’ [...]” (DAIBERT JUNIOR, 2015, p.9). Com isso, a
angolana ficou proibida de voltar para Sabará e permaneceu quatro anos em degredo na região
de Algarves, Portugal.
Embora, a perseguição por parte da Igreja Católica, alguns sacerdotes também recorriam
aos calundus. Este, foi o caso do frei Luís de Nazaré, residente em Salvador nos anos 1730.
Para Laura Mello de Souza (2005, p.263), “Na verdade, frei Luís denotava aguda sensibilidade:
os demônios do calundu não eram os mesmos de que a Igreja dava conta, portanto havia que
chamar especialistas que saberiam lidar com eles”. Então, o sacerdote que era conhecido pelos
seus exorcismos, recomendava que alguns negros africanos procurassem os calundureiros
(praticantes do calundu) já que seus conhecimentos exorcísticos nem sempre surtiam efeito.
Na sociedade colonial, “Duas regras básicas de sobrevivência da religião afrobrasileira
nos tempos da repressão eram a aliança com pessoas mais privilegiadas e a discrição” (REIS,
1988, p.71). Ademais, o medo dos feiticeiros dos calundus podia condicionar as pessoas a duas
condutas: o silêncio ou a denúncia. Todavia, os mecanismos de controle e repressão não
impediram a disseminação dos cultos africanos pelo Brasil. Assim, em meio a tantas
intempéries, os calundus constituíram uma importante face da religiosidade africana no
território brasileiro.

CONCLUSÃO

A religiosidade constituiu um elemento cultural importante para a vida dos africanos no


Brasil. Nessa perspectiva, a religião apresentou-se como uma forma de resistência cultural e
religiosa frente ao regime da escravidão. As religiões africanas generalizadas pelo termo
calundu criaram laços identitários entre os escravizados e seus descendentes.
Seja no espaço das fazendas ou nas cidades os cultos africanos eram organizados em
diferentes comunidades. Os calundus acabavam atraindo uma clientela diversa na sociedade
colonial. Seus líderes religiosos possuíam uma grande influência junto à população local. Essa
convivência nem sempre foi fácil, muitos praticantes do calundu podiam ser denunciados ou
investigados pelas autoridades policiais ou eclesiásticas.
A cultura religiosa africana foi uma herança das suas sociedades de origem na África. 120
No Brasil, essa cultura foi ressignificada, muitas vezes incorporando elementos europeus e
indígenas. Mas, sobretudo, a religiosidade fortaleceu toda uma geração de afro-brasileiros como
2
fator de identidade cultural e na luta contra os preconceitos étnicos raciais.

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no Brasil. 9° reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
3
TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil colonial. São Paulo: Editora 34, 2000.
OS LIMITES DA MODERNIDADE E A TRADIÇÃO EM MOÇAMBIQUE

Fabiane Miriam Furquim711

RESUMO

O que se pretende nesta comunicação é trazer uma discussão sobre as categorias de


modernidade e tradição no continente africano, e, mais especificamente em Moçambique.
Propõem-se que as conceitualizações sobre modernidade e tradição passam tanto por discursos
quanto por práticas de poder que podem ser operacionalizadas de acordo com o contexto
histórico do país, no caso Moçambique, e de maneira mais geral o continente Africano. Como
fonte para pensar essas balizas de forma mais prática, será utilizada a Revistas Justiça Popular,
produzida em Moçambique de 1980 a 1989. A partir de uma perspectiva processualista serão
pensados os discursos de poder que envolveram estas categorias, e questionada a visão
eurocêntrica que por muitas vezes acaba por colocar estas como binômios antagônicos. O
propósito é sair dessa dualidade, e apontar para a possibilidade de entendê-las dentro de uma
relação prática. Dessa maneira, ao pensar as sociedades muitas vezes submetidas a um processo
120
de modernização forçada, e cujas consequências ainda mostram as marcas permanentes da sua
influência e poder, poderemos evidenciar aspectos históricos e sociais que justificam a
4
permanência da tradição nesses locais não apenas como uma forma de resistência, mas
sobretudo como um elemento dinamizador das práticas culturais e sociais destas sociedades,
transcendendo a dicotomia discursiva e abrindo novas possibilidades heurísticas de
aproximação, e ao mesmo tempo, evidenciando as práticas violentas que compõem o discurso
da modernidade, de forma que se possa questionar a modernidade como uma produtora de
fronteiras.

Palavras chave: Modernidade; Tradição; Moçambique.

INTRODUÇÃO

Em 1975, após quase dez anos de lutas e embates para a consolidação da independência
de Moçambique, o país se torna livre do governo português e passa a ser governado então pela
Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Obviamente o processo não ocorreu de

711
Mestranda em História (Universidade Federal do Paraná) fabianefurquim@gmail.com
maneira simples, mas sim envolveu diversos aspectos que fizeram com que a FRELIMO
liderasse esse movimento de libertação e após a independência se firmasse como o governo
oficial. Nesse processo é necessariamente importante pensar que para além das questões da
guerra armada, a FRELIMO possuía um trabalho ideológico muito forte que foi utilizado tanto
para justificar a independência, quanto o caráter dos projetos de reorganização que o país
passaria. Tal projeto foi fundamentado no marxismo-leninismo, que foi utilizado como carro
chefe nas reordenações político-sociais, utilizando em grande escala argumentos que visavam
o progresso da sociedade moçambicana, o fortalecimento da nação e, como forma de viabilizar
tais pretensões, a inserção da população no projeto do “Homem novo” que visava modelar a
população de acordo com a visão marxista-leninistas de “cidadão ideal”. Esse cidadão ideal
deveria abandonar as suas tradições, vistas como práticas obscurantistas, ser produtivo e
contribuir para o fortalecimento da nação moçambicana como uma só, de forma a fazer com
que a população deixasse o tribalismo e o regionalismo (como a FRELIMO se referia) de lado
e se unir em prol de uma nação unificada.

120
Os anseios do partido eram, em seus discursos, os de lutar em nome do povo para superar
o capitalismo, o imperialismo e a exploração do homem pelo homem, produzindo com isso
homens que fossem guiados pela razão. Assim, como aponta Borges, o corpo social deveria ser 5
purificado dos inimigos, num primeiro momento de libertação nacional o inimigo era o
colonialismo e, posteriormente já com o país independente, o homem dito atrasado e tradicional.
O autor aponta que a FRELIMO cria uma Estado que não combate apenas o capitalismo, mas
um Estado que combate alguns aspectos morais e também tradicionais que não irão condizer
com a expectativa de “Homem Novo” (BORGES, 2001, p. 231). Esse homem novo
racionalizado, possui a característica de se opor ao antigo, Lorenzo Macagno aponta que:

Não é possível conceber uma cultura “nova” sem a existência de uma cultura anterior
à qual se opor; não é possível conceber o homem novo sem antes saber em que
consiste o homem velho, cujos vestígios devem ser erradicados. O processo é sempre
relacional. A “fabricação” da nova identidade, homogênea, compacta, ocorre
mediante o confronto com a velha identidade. Porém, se no âmbito da teoria o homem
novo deve representar uma ruptura qualitativa com os valores da cultura burguesa,
da cultura colonial e da cultura tradicional, factualmente esse processo atua sobre
os indivíduos de maneira complexa. O homem novo é, em última instância, um
produto, cuja pureza nunca se termina totalmente de alcançar.(MACAGNO, 2009, p.
23).
O que se observa é a questão fundamental em se opor ao antigo para o novo nascer. O
marxismo leninismo era para a FRELIMO a forma mais eficaz em se combater as heranças
coloniais e o atraso que ele via nas práticas da população. A constituição deste homem novo
não ocorre de maneira simples, mas sim num processo onde haja a modificação das bases tanto
objetivas quanto materiais. Ele não pode ser apenas uma ideia da superestrutura, que permanece
exclusivamente nas categorias mentais formando o que o autor conceitua como o homem novo
pensando e o homem novo real (MACAGNO, 2009,p. 24).

O que se percebe nessa escolha de viés político é a presença marcante de um discurso


moderno e progressista, como dito anteriormente, que se tornou violento para a população. Com
o quadro de formação da FRELIMO majoritariamente composto pela elite moçambicana, que
ainda no tempo colonial estudou fora do país, houve o interesse por parte dessa elite em trazer
técnicas ideias e instrumentos do “mundo moderno”, que deveriam ser dominados para
combater os interesses coloniais. Na fala de Eduardo Mondlane, primeiro líder da FRELIMO:

[...] autoriza a concluir que a Frelimo realmente agora é muito mais socialista, 120
revolucionária e progressista do que nunca. E é a linha, agora, a tendência, mais e
mais em direção ao socialismo do tipo marxista-leninista. Porque as condições de
vida de Moçambique, o tipo de inimigo que nós temos, não admite qualquer outra
6
alternativa (Mondlane, apud Macgano,2009 p. 19)

Fica evidente na fala de Mondlane que durante e após o processo de independência o


fator ideológico do marxismo-leninismo seria determinante nas ações do partido. A escolha por
esse viés de percepção do processo através da FRELIMO é aqui trabalhada visto o caráter da
Revista Justiça Popular, utilizada como fonte712. Tendo sua primeira edição em 1980, 5 anos
após a Independência, a revista traz como seu principal argumento e motivo de sustentação a
aplicação da Justiça como meio de organizar a sociedade moçambicana a partir do preceitos
marxista leninista. Para os editores, era através na aplicação das leis que a população poderia
se enquadrar nos novos sistemas sociais. Dessa forma, a revista busca trazer para os juízes
populares as discussões sobre as leis, as diversas configurações em que os conflitos são

712
É necessário justificar tal escolha, visto que possam haver críticas devido ao caráter estado-centrista que essa
abordagem pode ter. Aqui se escolhe tratar a forma como a FRELIMO se utilizou dos discursos moderno para com
a população, devido a escolha da fonte, que é feita pelo Ministério da Justiça moçambicano, um braço do governo
da FRELIMO.
resolvidos em diferentes localidades para que dessa forma sejam um exemplo a ser seguido nos
momentos em que houverem dúvidas sobre as sentenças. Muito disso ocorre devido ao fato de
que os juízes populares, como já anuncia o nome, não eram formados em direito, mas sim
proveniente da própria população. Diferentemente dos juízes letrados que estavam mais
restritos à capital do país, as outras localidades contavam com juízes que eram eleitos pela
própria população e exerciam o cargo sazonalmente.

Como apontado, as leis como forma de enquadramento, se baseavam no marxismo


leninismo, e acabavam por proibir muitos dos costumes os quais a população exercia, tais como
o lobolo713. Após a morte de Eduardo Mondlane, em 1969, a FRELIMO passa a ser liderada
por Samora Machel, que concordava com a vertente socialista do partido e acabou por levar os
projetos de Mondlane adiante. Com Machel no poder, as políticas marxista-leninistas são postas
em prática, e é necessário dar ênfase a essa parte da prática visto que é valorizada pelo partido.
Ao discutir as práticas marxistas no país, Lorenzo Macagno aponta que havia em Moçambique
uma espécie de marxismo caseiro que se adaptava às singularidades da experiência

120
moçambicana, cuja maior preocupação estava em criar o Homem novo (MACAGNO, 2009, p.
19). Baseado nesse pensamento, o marxismo moçambicano surgiria a partir da prática
revolucionária, pensamento esse reforçado por Machel, onde haveria então a transformação do 7
homem em um homem “racional e moderno”. O marxismo estaria então baseado nas práticas
pautadas na ideologia, visando então o progresso do homem e da nação através da revolução.

A Revista Justiça Popular

Ao analisar a revista Justiça Popular, é possível obter alguns exemplos de que forma
essas práticas eram inseridas no dia-a-dia. Dando ênfase à parte jurídica, é possível ver em
alguns casos que a revista traz a maneira com a qual o Ministério da Justiça lidava com a
permanência das práticas que condenava. Com políticas amplamente baseadas nas questões
referentes ao homem novo, muitas práticas tidas como tradicionais, tais como o lobolo, os

713
O lobolo é um ritual realizado entre as famílias do noivo e da noiva a fim de consolidar o casamento. Ele
consiste basicamente no pagamento que o noivo deve fazer para a família da noiva, uma espécie de “dote”. Esse
pagamento atualmente é feito com peças de roupas para os pais da noiva e parentes mais próximos, somados à
uma quantia de dinheiro. Entretanto, como aponta Osmundo Pinho (PINHO, 2011), o lobolo não é uma vulgar
compra da noiva, visto que ela não se torna uma escrava nem uma propriedade individual do marido.
curandeiros tradicionais, as chefaturas e estrutura familiar foram criminalizadas, algumas não
por leis e decretos, mas sim por questões morais. Na revista o redator aponta:

...é muito frequente ouvir pessoas dizer que a poligamia é proibida na República
Popular de Moçambique, “o lobolo é ilegal, etc. e estas mesmas pessoas ficam muito
surpreendidas quando vêm a saber que na realidade não existe nenhuma proibição
jurídica, nem de poligamia, nem de lobolo, mas só há um combate político”.
(JUSTIÇA POPULAR, 1981 nº 3, p. 12)

Obviamente, esse combate político que o redator aponta não era resolvido apenas com
um debate político, mas sim através de condenações, prisões e trabalho forçado. Dessa forma o
Estado, segundo as proposições da revista, poderia agir de três maneiras diferentes em relação
aos comportamentos sociais que julgava irem contra as leis. A primeira forma de criminalizar
e regulamentar o comportamento da população era através do reconhecimento jurídico, onde o
Estado poderia conferir legitimidade apenas para algumas práticas e não a outras. Um exemplo
pertinente é o do casamento: só seria válido se este fosse feito no civil, registrado e feito na
presença de um juiz. Se houvesse algum problema entre um casal que não tivesse realizado um
casamento no civil, e sim de outra forma (religiosa) e se este quisesse resolver junto ao tribunal
120
o litígio, o casamento não seria reconhecido e o tribunal agiria de outras formas para resolve.
Em um caso de divórcio, por exemplo, é o mesmo pensamento, uma mulher muçulmana não 8
seria considerada repudiada, mas sim abandonada pelo marido e poderia ter o controle sobre
seus filhos, ao contrário do que a lei muçulmana rege. Com isso, o tribunal só reconhece um
tipo de relação: o de maiores de idade, monogâmicos com igualdade de direitos e deveres entre
o casal, e as práticas que fugissem desse aspecto seriam rechaçadas.

A segunda atitude do Estado seria a “ignorância deliberada”, onde o poder estatal não
agiria ou interviria diretamente em questões tidas como tradicionais. Um exemplo seria então
que o Estado não veria a necessidade de uma devolução de lobolo, no caso de um divórcio por
adultério, e agiria de forma ou a reconciliar o casal ou de conceder uma separação legal caso
fossem casados legalmente, ignorando as questões referentes ao lobolo. Assim, vê-se que no
cerne da questão, os tribunais de fato não resolviam os reais problemas de quem os procurava,
pois não reconheciam como legal o como função do Estado resolver tais casos, ou então
resolviam de formas que se mostravam incompletas visto que o casal neste exemplo queria a
restituição do lobolo, e não necessariamente um divórcio legalizado.
A terceira atitude proposta pelo Ministério da Justiça seria então a penalização de fato,
onde as pessoas que cometem infrações deveriam ser punidas judicialmente. Ao analisar a
revista essa parte se mostra interessante, pois demonstra de maneira mais evidente que ao
mesmo tempo que o Ministério da Justiça não irá punir e proibir a prática direta do lobolo, por
exemplo, ele irá considerar a prática ilegal devido a recusa em se reconhecer judicialmente os
sistemas religiosos acabando por determinar a licitude ou a ilicitude do fato (Justiça
Popular,1981, V.3 p. 13). As pessoas continuaram a ter o direito de se casar através de
cerimônias religiosas, mas os tribunais e a lei ignoravam estes casamentos, e interferiam apenas
se eles desrespeitavam alguma lei: como a proibição de “pagar pela noiva”, ou o direito do pai
sobre os filhos no caso de divórcio714, e nos casos de poligamia, pois só seria aceito o casamento
monogâmico, como apontado anteriormente.

Sobre as questões familiares é interessante verificar que já no primeiro volume da revista


existe um artigo chamado: “O meu marido não me trata bem... casou-se com outra mulher”.
Nesse artigo aparecem diversos casos de enquadramento da revista, e os autores apontam que
no registro de Actas do Tribunal Popular da Aldeia Comunal de Muária, de todos os
testemunhos dados, quase dois terços tratavam de problemas familiares (Justiça Popular, 1980, 120
V.1, p.13). Um caso bastante recorrente entre os casos chamados familiares, é o de
9
adultério/poligamia. Segundo a Revista, tais atitudes eram inconstitucionais pensando que o
casamento deveria ser monogâmico de forma a constituir uma família nuclear (pai, mãe e
filhos). Dessa maneira a família:

... tem que se basear num novo sistema de valores, os valores de uma sociedade
socialista. A família da sociedade socialista constitui-se e consolida-se na base do
amor recíproco. Um dos princípios ou regras elementares desta unidade é o respeito
do princípio de fidelidade conjugal. (Justiça Popular, 1981, V. 2, p. 7)

Algumas questões também são encontradas na edição de número 5 da revista. Em uma


seção cujo nome é “ A família e o Direito tradicional”, observa-se que a forma como o Estado

714
Segundo a tradição, os filhos do casal pertencem a família do pai, e não da mãe no Sul de Moçambique. Dessa
maneira, se existe um divórcio os filhos automaticamente ficarão com a família do pai, e não com a mãe como é
mais usual no ocidente. Os tribunais iriam então ignorar esse costume e ver com quem os filhos deveriam ficar.
deveria lidar com essas questões. Assim, os três autores do texto: Francesca Dagnino, Gita
Honwana e Abie Sachs, determinam que as competências e exercícios feitos pelos chefes
tradicionais desapareceram, e não devem mais ser referidos nos autos e nas considerações das
leis. Assim, os casamentos prematuros, o lobolo, e a poligamia serão combatidos ao nível
político, até que, segundo eles o campo produza novas formas de relações familiares em conflito
com as concepções do direito tradicional (Justiça Popular,1982, V.5, p. 3). Os novos tribunais
inseridos nas comunidades deveriam negar o reconhecimento ao direito tradicional como
sistema jurídico e combater as influências negativas que tais atitudes poderiam causar no
restante da população. Entretanto, já no final do artigo da revista, os autores apontam a
necessidade de que as pessoas que irão aplicar as novas leis - os juízes populares- devem
entender com plena consciência o novo caráter de resolução de conflitos de Moçambique pelo
aparelho jurídico, não como uma mera imposição, mas sim internalizando o pensamento
racional.

Aliado ao combate político haviam também as sentenças que definiam punições físicas
para quem desobedecesse às novas leis. É possível observar no caso a seguir:
121
Caso Nº 13 – 6/2/79. O homem deixou a mulher e casou-se com a segunda mulher. O
0
Tribunal: Como deixou sua mulher e foi casar-se com outra mulher quando sabia que
nessa Revolução não quer que um cidadão faça isso sem motivo sofisticado
(justificado)?

O homem: Só foi casar

O tribunal: Tem filhos, quem vai cria-los?

Chamou a segunda mulher e perguntou-a sobre o casamento com um homem já


casado. Ela disse que o homem afirmava que não era casado.

Uns responsáveis do Bairro disseram que não era a primeira vez, era a terceira vz
que ela fazia isso.

O Tribunal decidiu que a mulher tinha que ser reeducada por vinte dias de trabalho
no centro da Aldeia, e o homem por 60 dias e não continuar com ela. (Revista Justiça
Popular, nº 1, 1980 p.14)

Nesse caso é possível observar que o trabalho forçado na Aldeia foi a punição para o
caso de poligamia. Muito requisitadas, as Aldeias também chamadas de machambas comunais
foram institucionalizadas logo após a independência do país, e como aponta Omar Ribeiro
Thomaz, tinham como propósito evidente “promover uma sorte de modernização do país e de
suas gentes, e estima-se que em 1980 cerca de 10 mil indivíduos estariam concentrados em 12
campos de reeducação” (THOMAZ, 2008, p.184-190). Nessas machambas, a população seria
conscientizada sobre o que é o homem novo e seria restaurada através do trabalho, que ocorreria
de forma compulsória. Ainda para o autor, as machambas comunais estavam ligadas
diretamente ao marxismo, pois “informaria integralmente a percepção do que deveria ser o
desenvolvimento para o conjunto do país” (THOMAZ, 2008, p. 185). O que se percebe é que
as machambas possuíam o caráter não apenas da punição física, mas também da moral (pois
eram enviados para lá que ia contra ela, polígamos, bêbados, prostitutas e desempregados, por
exemplo)715 e também de vigilância. Esses locais acabaram por ganhar um caráter cada vez
mais associado a vigilância e ao controle da população, pois interferia diretamente na circulação
das pessoas, como aponta Thomaz.

A partir do exposto, a Revista Justiça Popular mostra de forma bastante evidente a


necessidade de agir tanto no âmbito subjetivo de tentar mudar a consciência das pessoas - com
o seu discurso sobre moralidade - mas também a necessidade de punir fisicamente (com
prisões, trabalho forçado e castigos físicos) os que não cumprissem ou não se adequassem às 121
novas regras. As leis eram formas de agir nesses dois aspectos, moral e prático. Apesar de
1
afirmar que as cerimônias como o lobolo, por exemplo, não seriam proibidas pelas leis; ele seria
proibido e recriminado pela questão moral, que possui um peso importante e,
consequentemente, leva ou a não aceitação do lobolo ou a anulação do mesmo com a
incapacidade do Estado de resolver qualquer problema que envolva essa cerimônia, por
exemplo. Dessa forma, o percebe-se tanto a incapacidade do estado em resolver alguns
problemas familiares, quanto a “máscara” que existe quando partido afirma não proibir tais
práticas, questões importante para pensar o alcance do discurso modernizador. Também é
possível observar que existe uma contradição, visto que o discurso socialista buscava emancipar

715
Com o decorrer do tempo, as machambas também foram utilizadas como refúgios durante a guerra civil que
ocorreu em Moçambique entre 1977 e 1992. Com o acumulo de pessoas, eram alvos fáceis para os ataques da
RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana), o que também desmotivava a ida das pessoas para esses espaços.
Neste trabalho, prioriza-se a questão do trabalho forçado e do envio de “infratores da lei” para lá, entretanto as
machambas envolvem diversos outros aspectos que devem ser levados em consideração, mas não serão abordados
aqui. Para mais, ler: “Escravos sem dono”: a experiência social dos campos de trabalho em Moçambique no
período socialista, de Omar Ribeiro Thomaz (2008).
o homem, mas ao mesmo tempo, os homens eram presos devendo trabalhar compulsoriamente,
sem um salário, como nos casos das machambas.

Percebe-se que mesmo com essa forte repressão, as práticas continuaram. A Revista tem
seu final em 1989, e sempre aparecem os mesmos casos. Ainda hoje é possível ver em
Moçambique diversas práticas que eram proibidas, e que hoje, em um contexto diferente ainda
ocorrem, não apenas por questões de um apego a tradição, ou então uma incapacidade da
população em se adequar ao ideal socialista até 1990, e hoje ao “ideal moderno”, mas sim
porque a tradição não pode ser vista como algo imutável, mas como uma categoria que se move,
se adapta e pode até mesmo ser pensada como uma forma de resistência das populações.

A Tradição e a Modernidade.

Uma das principais motivações para se condenar a tradição em Moçambique no período


socialista, é porque ela não se encaixa no pensamento racional que a FRELIMO queria
121
implementar no país. Uma forma de se entender esse processo é porque a modernidade
entendida como um processo de racionalização do homem foi inserida na mentalidade da elite 2
moçambicana. Esse processo é melhor debatido na obra de Aníbal Quijano quando o autor
discorre sobre o conceito de colonialidade do poder, que aponta para uma continuidade dos
processos de colonização mesmo após as independências (QUIJANO,2000). O autor se utiliza
dessas balizas de conceitualização para as ex-colônias da América Latina e não necessariamente
da África. É evidente que os processos de independência e até mesmo de colonização dos dois
continentes se deram de forma distintas, entretanto pode-se perceber alguns aspectos de ordem
subjetiva que são semelhantes tanto nas colônias americanas quanto nas colônias africanas. O
processo de imposição de modos de viver e de organização da sociedade é visto em ambos os
continentes, o que tornaria pertinente o uso do conceito de colonialidade do poder. Dessa
forma, vê-se que em ambos os continentes o discurso desenvolvimentista, alimentado pela ideia
de progresso e inovação, construído sob a base de uma teleologia evolutiva, foi muito utilizado
como um termo econômico e simplificado, mascarando o impacto nas questões de
relacionamentos político-sociais dessa forma de ordenamento. Nesse sentido Quijano aponta
que quando a partir do século XIX, a ideia de desenvolvimento culmina com o fortalecimento
do capitalismo pensado como padrão de poder econômico e social desenvolvido mundialmente
revela três categorias de países: desenvolvidos, em desenvolvimento e subdesenvolvidos, e
coloca como característica definidora desses estágios não somente as práticas comerciais, mas
também as práticas culturais. Os diferentes modos de organizações sociais que não sejam
necessariamente pautados no modelo de Estado-nação centrado em um poder positivo
separados por instâncias oficiais de representação (tribunais, parlamentos e etc.) eram vistos
como atrasados e de menor complexidade. Assim, a instabilidade que os países possuíam eram
encaradas como decorrência das práticas culturais que divergiam das europeias. Essa visão não
contempla os processos históricos que os diferentes países passaram para chegar nessas
configurações de organização social que foram impostas através do colonialismo. Esse tipo de
baliza gera e reforça discursos racistas e preconceituosos que não contemplam os países fora
do eixo europeu, vendo os diferentes tipos de organização como tribais, regionais, atrasados e
autoritários

Apesar desse caráter de se combater a tradição, reforçado pelo discurso moderno,


observa-se que o direito e a razão não são capazes de resolver todas as questões sociais em 121
Moçambique. É possível perceber que se recorre ao misticismo quando as categorias teóricas
3
não respondem mais às ansiedades e anseios da população, e é importante ressaltar que essa
característica não está restrita apenas aos países africanos, mas a todas populações, inclusive na
Europa, como aponta Horton (HORTON,1988 p.78). Entretanto, muitas vezes devido a
valoração do pensamento racional, o ideário cosmológico acaba por ser tratado com algo
imutável e atrasado - posição essa que a FRELIMO assume quando propõe o discurso
progressista marxista-leninista-. Dessa forma, o autor aponta que foram construídas duas
categorias dicotômicas que balizavam tais aspectos. A primeira é a entendida como ‘Cultura
fechada”, observada nas sociedades ditas como tradicionais e a segunda como “Cultura aberta”,
nas sociedades ocidentais.

Na primeira concepção, a cultura tradicional é fechada pois esta ocupa um lugar maior
do que apenas a crença, pois ela está arraigada em diversos pontos da sociedade e nas práticas
cotidianas, não aceitando outras formas de explicação que acabem por refutar a sua. Já nas de
sistema aberto, existe uma consciência de outras causalidades tais como as racionais que podem
ser explicadas de outras maneiras que não levem apenas o sagrado em consideração (HORTON,
1988, p.92). A partir de então, o autor considera que tais categorias não podem ser levadas em
consideração desta forma, pois para ele existem outras maneiras de se explicar as culturas que
não envolvam apenas um pensamento dicotômica entre sociedade e culturas “fechadas ou
abertas”. Assim, para ele, a tradição é vinculada com a experiência fazendo com que ela não se
afaste da realidade, mas pelo contrário, acabe por explicar a realidade na qual é inserida. Horton
ainda aponta que no mundo ocidental, baseados nas ciências exatas, os homens passam a criar
a experiência para verificar a teoria, já nas sociedades tradicionais é a experiência que determina
a teoria. Com esse contexto, a tradição acaba por responder as questões sociais, tais como
desentendimentos, e conflitos, que não possuem uma explicação diretamente racional
(HORTON, 1988, p. 107-110), o que explica pelo menos em parte a permanência, mesmo após
anos de perseguição e recriminação.

Se na tradição são as experiências que revelam a teoria, então a teoria não pode ser
sempre a mesma, visto que as experiências se modificam com o passar do tempo e com os
diferentes contextos históricos nos quais está inserida. Assim, mesmo em um contexto moderno
ou num período de racionalização da sociedade, como no caso de Moçambique, a tradição 121
permanece. Isso aponta para que ambas as categorias não sejam vistas como opostas, mas sim
4
como categorias que andam lado a lado. Se a tradição vem da experiência, e se vive uma
experiência moderna, a modernidade pode ser constituinte da tradição e vice-versa, pois ambas
proporcionam experiências e exigências para a reconfiguração social.

Portanto, a tradição caminharia com a modernidade num sentido que o Horton apontaria
como não dicotômico, sendo então necessário historicizar as questões que envolvem esta
relação e assim transcender a dicotomia do moderno versus o tradicional. Precisamente porque
durante o período de domínio português às práticas tradicionais, entre elas o lobolo, a poligamia
e as acusações de feitiçaria, entre as mais significativas, foram relegadas ao universo do direito
costumeiro e serviram como evidência da “selvageria” e justificativa do atraso africano. Peter
Geschiere entende que como as categorias de modernidade e tradição não são contrastantes, e
que a modernidade também não é algo exclusivo do continente europeu se analisada de
perspectivas diferentes, ele aponta então que existe uma modernização da tradição. A
resistência e permanência das tradições, tais como o lobolo, a centralidade dos chefes
tradicionais e aos ancestrais, no caso de Moçambique por exemplo, podem ser encarados como
a própria modernidade africana, deslocando o sentido fixo de modernidade e inserindo-o em
outras realidades e temporalidades. Entretanto o autor alerta para que ao pensar em uma
modernidade característica africana, não se caia na ideia de excepcionalização dos países e
exclusão da História mundial (GESCHIERE,2006, p.14).
Dessa forma, ao pensar em uma modernização da tradição não significa necessariamente
pensar em uma retradicionalização da sociedade, mas sim repensar as categorias que a compõe.
Analisando historicamente, percebe-se que a tradição se adéqua às novas características, tais
como a monetarização e os processos de individualização como símbolos da modernidade, mas
com a percepção sobre os bens e o indivíduo permanecendo ambivalentes. Ao utilizar o
conceito de retradicionalização acaba-se por negar o esforço da população em participar das
mudanças modernas e controlá-las pensando apenas em uma visão vista de cima (os novos
agentes) para baixo, sem inserir as modificações e usos que as populações criam. Assim, os
novos imaginários que misturam aspectos relacionados ao entendido como tradicional e ao
concebido como moderno, não revelam uma saudade ou um apego irracional, mas demonstram
o esforço e pragmatismo da população em lidar com as mudanças estruturais da sociedade 121
(GESCHIERE, 2006, p.37).
5

CONCLUSÃO

Analisar o socialismo e a questão de como ele era exercido na prática em Moçambique,


acaba por deixar o discurso moderno mais fácil de ser visualizado para aquele contexto. É
possível ver na elaboração do Homem Novo diversos aspectos que foram constituídos em um
contexto europeu, como o homem racional, pautado pelas ideias do Iluminismo, mas que ao se
chegar em uma realidade e numa configuração histórica diferente da europeia acaba por ser
tornar um discurso violento e excludente. Pensando nas práticas também observamos que a
tradição pode ser maleável e mutável. Os casos de lobolo que ocorrem até hoje são a prova
disso. O lobolo é aliado com outros tipos de casamento, como o civil, o religioso na igreja
católica, o que traz a legalidade exigida pelo estado e ao mesmo tempo a legalidade diante das
famílias e dos antepassados. Isso demonstra que as sociedades não são estáticas, independente
se encontram-se no ocidente ou no oriente. Com isso as práticas vão se adaptando e
permanecendo nas sociedades com o decorrer do tempo. Através da Revista Justiça Popular,
percebe-se que existe casos e casos, onde o próprio direito age de maneira diferente para tentar
resolvê-los, muitas vezes incorporando algumas questões tidas como tradicionais. O que se
percebe de tudo isso, é que existe um esforço da FRELIMO em tentar trazer uma modernização
para a população através do socialismo e da emancipação do homem, entretanto a forma
violenta com a qual é inserido no contexto moçambicano acaba por produzir um distanciamento
da população com o governo. Para além de um distanciamento, criou-se uma relação de não
identificação por parte da população para com o Estado e também de marginalização dos
indivíduos que não se inserissem no homem novo. Buscou-se aqui não demonstrar em termos
de fracasso ou sucesso o projeto da FRELIMO, mas sim evidenciar como ele foi inserido de
forma violenta, como afetou a população e principalmente como mesmo com a perseguição, as
tradições permanecem, o que demonstra a necessidade de flexibilizar os conceitos de tradição
e modernidade não os pensando como conceitos antagônicos, por exemplo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
121
6
Fonte:

Revista Justiça Popular- Boletim do Ministério da Justiça de Moçambique. Exemplares 1,2, 3 e 5.


Disponível em: http://www.mozambiquehistory.net/justica_popular.php. Acessado em 07 de
agosto de 2016

Referências

BORGES, Edson, and P. FRY. "A política cultural em Moçambique após a Independência
(1975-1982)." Moçambique: ensaios. Rio de Janeiro: Editora UFRJ (2001): 225-247.

GESCHIERE, Peter. Feitiçaria e modernidade nos camarões: alguns pensamentos sobre uma
estranha cumplicidade. Afro-Ásia 2006

HORTON, R. y GLUCKMAN, M. Ciencia y brujería. Barcelona: Anagrama, 1988 [1967]


MACAGNO, Lorenzo. “Fragmentos de uma imaginação nacional”. In; RBCS, 2009, vol.24,
no.70, p.17-35

PINHO, O. “A antropologia na África e o lobolo no sul de moçambique”. Afro-Ásia, 2011, 9-


41

QUIJANO, Aníbal. "El fantasma del desarrollo en América Latina." Revista venezolana de
economía y ciencias sociales 6.2 (2000): 73-90.

THOMAZ, Omar Ribeiro. “Escravos sem dono”: a experiência social dos campos de trabalho
em Moçambique no período socialista. Revista de Antropologia, São Paulo, v.51, n.1, 2008, p.
177 – 214.

121
7
ASSOCIATIVISMO, CULTURA E LUTA DE CLASSES EM UM CLUBE SOCIAL
NEGRO, NO INTERIOR DO RIO GRANDE DO SUL (1940-1980)

João Heitor Silva Macedo716

RESUMO

A influência de Edward Palmer Thompson sobre a historiografia brasileira é significativa e abre


um novo horizonte à pesquisa histórica do pós-abolição ao apresentar um novo tipo de fonte
historiográfica. A metodologia de pesquisa histórica apresentada por Thompson alça os “de
baixo” ao papel de protagonistas históricos e traz à tona realidades cotidianas de negros e negras
que não faziam parte da História tradicional. Por séculos relegada à margem da sociedade e da
História brasileira, a população negra passa a ser retratada não mais como objeto, mas como
agente da História. A referência de Thompson influenciou este estudo sobre a Sociedade
Cultural Ferroviária Treze de Maio, o qual propõe uma análise das atividades desenvolvidas
pelos membros dessa agremiação sob a perspectiva do conflito de classes e das manifestações
culturais desenvolvidas e sobre como essas manifestações ajudaram a manter a identidade negra
no pós-abolição. O estudo das atas da Sociedade em seu período de auge, ente os anos 40 e 80,
revela uma complexa rede de relações pautadas por tensões e afirmações inerentes ao período,
as quais encontram eco dentro da agremiação. A estratificação social característica do Brasil
republicano pós-abolição apresenta um novo perfil da classe trabalhadora brasileira, que, em
121
Santa Maria, se consolida com a instalação da malha ferroviária e a absorção, por parte da
Viação Férrea, de um contingente significativo de trabalhadores negros. Reflexos dessa nova 8
configuração socioeconômica da cidade se materializam na Sociedade Cultural Treze de Maio,
desde a sua origem, e, mais tarde, explodem em tensões classistas que colocam em oposição,
dentro da Sociedade, duas categorias de sócios: os “particulares” e os “ferroviários”.
Palavras-chave: Cultura, classes, negro.

INTRODUÇÃO

No domínio da historiografia brasileira, a realidade sociocultural do trabalhador negro


ainda é uma área ignota, tangenciada por análises conceituais e estruturas metodológicas
cartesianas, paradigmáticas e eurocêntricas. O trabalhador negro não é visto sob a perspectiva
de suas peculiaridades e, ainda, é tido como um objeto de estudo em uma realidade na qual ele
era o intruso.

716
Doutorando em História do PPGH – UFSM e Diretor do Museu Treze de Maio.
Com o objetivo de propalar a história do Movimento Negro e do trabalhador negro pós-
abolição, propõe-se, neste artigo, uma investigação acerca das atividades desenvolvidas pelos
membros da Sociedade Cultural Ferroviária 13 de Maio de Santa Maria, entre 1940 e 1980, seu
auge, a partir de fontes como atas e relatos de antigos associados.

Para tanto, realizou-se uma revisão bibliográfica baseada nos estudos de Grigio (2016),
Oliveira (2016) Escobar (2010) e Macedo (1997), que, em seus trabalhos acadêmicos,
debruçam-se sobre a história da Sociedade. Também foi realizada uma análise documental de
atas das reuniões da Sociedade e outros documentos, como: ofícios, carteiras de sócios, além
de relatos de antigos associados.

Serve como arcabouço teórico para esta pesquisa uma perspectiva histórico culturalista
fundamentada na obra do inglês Edward Palmer Thompson e de alguns de seus seguidores aqui
no Brasil, dentre eles: Silvia Lara, Sidney Chalhoub (2006), Antonio Luigi Negro e Flavio
Gomes (2006) e Carlos Fernando de Quadros (2011).

1. A influência de Thompson nos estudos históricos do pós-abolição no Brasil 121


É realmente significativo o aumento de estudos do pós-abolição no Brasil nos últimos 9
anos. Parte disso se justifica pelo incremento das Ações Afirmativas, que ganharam espaço
desde o ano 2003, no Brasil, ampliando e consolidando o campo de pesquisa e o debate sobre
a história do Negro no Brasil para além das pesquisas sobre escravidão.

Essa nova perspectiva historiográfica ganha força no Brasil a partir da influência


contundente da produção historiográfica de Edward Palmer Thompson, considerado por muitos
um dos maiores historiadores ingleses do século XX. Não é por acaso que sua produção ressoa
nos cursos de pós-graduação brasileiros a partir dos anos 90. A trajetória de Thompson, ligada
ao Partido Comunista Inglês e aos movimentos sociais, foi determinante para o acúmulo de uma
bagagem diferenciada de vivências e experiências que facilmente eram percebidas em suas
obras.

Seu rompimento precoce com o Partido Comunista Inglês, em 1956, também


representou uma crítica ao marxismo ortodoxo e à análise social pautada pela dicotomia base-
estrutura. Thompson foi além: reivindicava a flexibilização e a democratização, procurava
enfatizar a ação humana em seus estudos, para além dos estruturalismos, e entendia que era
necessário observar o elemento humano, seus hábitos, necessidades, razões, vontades, ilusões
e desejos (Muller; Munhoz, 2010).

Uma outra ótica sobre o mundo do trabalho inspirada no estudo na Sociedade Londrina
de Correspondência, efetivado por Thompson, “tem servido, por aqui, para frisar a necessidade
de uma escrita da história do trabalho não apenas pautada numa classe trabalhadora
exclusivamente branca, fabril, de ascendência europeia, masculina e urbana” (Leite Lopes,
1993; Chalhoub, 2001).

É dessa forma que Thompson se apresenta aos pesquisadores brasileiros já na década de


90, com enfoque no estudo das camadas populares e com uma crítica aos clássicos que
abordavam o século XIX, algo absolutamente necessário em um contexto de intensificação do
Movimento Negro, que, no embalo da Constituição Cidadã de 1988, reivindicava espaço e voz.

Não obstante, há de se destacar um certo modismo ao se tratar da obra de Thompson,


hoje amplamente citada em cursos de pós-graduação das áreas de História e Sociologia. Tal
recorrência pode se justificar pelo tipo de abordagem introduzida pelo autor, a qual permite a
122
muitos o que Muller e Munhoz (2010) vão chamar de “desmarxização” de seus referenciais
teóricos, o que cabia bem em um momento de crise do marxismo; ou, ainda, pode se justificar 0
pelo uso, por parte de Thompson, de elementos culturais no estudo das classes subalternas, o
que lhe conferiu a alcunha de “culturalista”.

De uma forma ou de outra, Thompson privilegia a experiência para estudar a


complexidade das classes subalternas, algo que permite aos pesquisadores do pós-abolição irem
muito além das estruturas e dos modos de produção e, assim, entenderem o trabalhador negro
a partir de suas particularidades e do seu fazer-social.

2. Edward Thompson e a perspectiva histórica dos “de baixo”… Ou dos “de


cor”

O contexto de mudanças sociais pelas quais o Brasil passava desde a década de 80 trazia
em seu bojo um novo perfil do historiador brasileiro. Um historiador profissional influenciado
por uma nova esquerda ganhava destaque em contraposição aos marxistas tradicionais. E cabe
citar aqui o Movimento Negro, o Movimento Feminista, o Movimento dos Sem-Terra também
como determinantes para influenciar os cursos de pós-graduação em História (como o da
UNICAMP), nos quais é perceptível a influência marcante dos historiadores britânicos e de
seus seguidores, comprometidos com uma história “vista de baixo”,

aquela escrita com a intenção de recuperar as experiências históricas dos


marginalizados, dos “de baixo”, não apenas quando organizados nas formas clássicas
de atuação política (a noção sociológica de movimento), mas principalmente em sua
sociabilidade cotidiana, nos seus costumes e experiências partilhadas em grupo.
(QUADROS, p. 32, 2011)

Seguindo essa influência, citam-se dois expoentes dessa nova corrente na historiografia
brasileira: Sidney Chalhoub e Silvia Lara. Ambos oriundos da UNICAMP, destacam-se como
expoentes de uma nova escola. Eles reivindicam, desde a década de 80 pelo menos (período
em que produziram suas teses), “o protagonismo dos sujeitos históricos, não mais como
‘vítimas passivas’, porém agentes de seu ‘fazer-se’” (Quadros, 2011).

A emergência desses temas coincide com um período de emergência de novas pautas


políticas da esquerda, que procurava se reconfigurar no pós-ditadura e trazia consigo novos 122
1
movimentos, entre eles o Movimento Negro. Às voltas com as comemorações do centenário da
abolição, o Movimento Negro revigora suas pautas e assume um novo ímpeto desde o final dos
anos 70. Com a multiplicidade de organizações se proliferando pelo país, o Movimento Negro
adentra uma nova fase: de organização da sociedade civil e rumo às políticas públicas
(Nascimento, 2008).

Essa providencial confluência entre as pautas do Movimento Negro e a entrada da


produção de Thompson nos bancos acadêmicos – com sua perspectiva “de baixo” – trouxe um
novo campo de investigação que acabou por contemplar o Movimento Negro ao possibilitar a
produção de uma história “de cor”.

A perspectiva de uma história dos homens (e mulheres) “de cor” é uma analogia à
história dos “de baixo”, guardadas as devidas proporções. Uma história dos homens (e
mulheres) “de cor”717, analogia histórica ao movimento nascido nos Estados Unidos, é a história

717Homens de cor aqui é uma referência a “Federação dos Homens de Cor (FHC) – uma agremiação cuja finalidade
principal era trabalhar pelo desenvolvimento moral, cultural, político e social dos afro-brasileiros –, fundada em
São Paulo em 1909, mas que se transferiu para o Rio de Janeiro em 1920.” (Domingues, 2013);
da gente comum, como define Thompson em seu célebre artigo “A história vista de baixo”.
Incorporando a influência thompsiniana, o estudo da história da população negra e
afrodescendente no pós-abolição, no Brasil, significa abrir um arquivo histórico abandonado
pela historiografia tradicional brasileira. Mais do que isso, é contar uma história na perspectiva
de quem faz a história e ocupa espaços não privilegiados na sociedade atual.

Uma história que dá voz a outro(a)s protagonistas – aquele(a)s que verdadeiramente


constroem a história – também abre um campo novo à historiografia do mundo do trabalho,
extrapolando os paradigmas estruturalistas ou a dicotomia base-estrutura e as relações
econômicas. Uma história dos “de cor” insere novas categorias de análise historiográfica
oriundas da Sociologia e da Antropologia, ampliando assim os campos de análise e dando
espaço a aspectos da vida cotidiana do(a)s trabalhadore(a)s negro(a)s, suas experiências, suas
vivências e suas práticas socioculturais.

3. As peculiaridades do negro no Brasil pós-abolição

A abolição da escravatura no Brasil inaugura um novo estágio na compreensão de 122


mundo dos ex-escravos negros do país. As relações simbólicas mudam muito rapidamente, e as
interpretações do “eu negro”, AGORA LIBERTO, assumem uma nova conotação, pautada pelo
2
sentido de liberdade e pelas possibilidades de vir-a-ser desses indivíduos. No entanto, as
imposições e limitações da sociedade são determinantes nesse processo.

O debate proposto neste artigo consiste apenas em uma provocação, tendo em vista a
necessidade de concisão do conteúdo aqui apresentado. Quer-se provocar o(a)s leitore(a)s à
reflexão sobre as peculiaridades do negro no Brasil, as quais são infinitas e merecem um estudo
aprofundado.

Peculiar também deve ser a própria perspectiva de análise historiográfica, a qual não
pode prescindir da diversidade de pontos de vista nem do aprofundamento de questões
epistemológicas. O arcabouço epistemológico da Afroperspectividade (Noguera, 2014) condiz
com a diversidade de perspectivas e o aprofundamento epistemológico que devem embasar este
estudo.
4. Os Clubes Sociais Negros

A organização dos negros e negras remonta à metade do século XIX, sendo portanto
anterior à abolição da escravatura, em 1888. Organizavam-se na forma de quilombos,
irmandades e clubes sociais.

No Brasil inteiro, e especialmente no Rio Grande do Sul, a presença de clubes sociais


negros é percebida em muitas cidades. Dentre elas, podemos destacar: Porto Alegre, Pelotas,
Rio Grande, Caxias do Sul, Santa Maria, Formigueiro. O número expressivo dessas sociedades
no interior do Rio Grande do Sul e na capital possibilitou a criação de uma rede associativa de
troca de informações e influência entre as mesmas.

Para além da sociabilidade, os clubes sociais negros assumiam para si um compromisso


com a população negra: a sobrevivência. Essas agremiações se configuravam como espaços
simbólicos de resistência do povo negro (Escobar, 2010).

Frente a uma sociedade que não previa políticas públicas de inserção social para os
recém-libertos, essas agremiações o faziam. “Na sua origem, os Clubes Sociais Negros faziam
aquilo que o Estado brasileiro deixava de fazer” (Escobar, 2010). Por meio do coletivismo e da 122
ajuda mútua, as famílias negras se ajudavam e procuravam formas salutares de sobrevivência
na sociedade patriarcal e branca do final do século XIX e início do XX.
3
Os clubes sociais negros “surgem como um contraponto à ordem social vigente, além
de constituírem um local de sociabilidade e de lazer para a população negra, que era impedida
de frequentar os tradicionais ‘clubes sociais brancos’” (Escobar, 2010, p. 57). Ademais, essas
agremiações tinham por objetivos angariar recuros financeiros para financiar a liberdade dos
trabalhadores negros escravizados e bancar os custos com funeral, defesa de direitos e educação
de seus associados.

Essas organizações sociais atuavam incisivamente no combate à escravidão e à


discriminação racial. Havia, entre agremiados e também entre as agremiações, uma construção
coletiva com o objetivo irmanado de sobrevivência.

5. O “TREZE” como espaço de poder, associativismo e conflito de classes


No contexto do pós-abolição, 15 anos após a assinatura da Lei Áurea, surge, em Santa
Maria, o “TREZE” – como até hoje é carinhosamente chamado, pelos antigos sócios, a
Sociedade Cultural Ferroviária Treze de Maio.

Reflexo de uma sociedade capitalista em construção dentro da cidade de Santa Maria,


o Treze foi palco das tensões características dessa sociedade. Um espaço que, tal qual seus
similares por todo o país, refletia o sentimento da população negra local. Ao longo de sua
história, o Treze foi um lugar de luta contra o racismo. Espaço de resistência, identidade e
manutenção de valores ancestrais.

Desde o ano de 2001, quando passa por uma ressignificação, tornando-se um Museu
Comunitário, sua história e a memorização de seu patrimônio material e imaterial têm sido
temas de vários estudos levados a cabo por pesquisadores locais. Dentre eles, destacam-se a
dissertação da professora Giane Vargas Escobar (2010) e a tese do professor Ênio Grigio
(2016), que apresentam um cabedal de fontes detalhadas sobre a história da agremiação.

A história do TREZE, contada e explorada por inúmeros pesquisadores, passa a revelar


peculiaridades extremamente ricas e intensas sobre a vida do trabalhador negro pós-abolição.
122
Sob a perspectiva de uma nova história cultural, revelam-se relações e redes familiares
produzidas nesse período. 4
Essas redes associativas características de um processo de constituição da classe média
trabalhadora constituíam um espaço simbólico importantíssimo para os trabalhadores negros,
contribuindo de forma marcante para a autoafirmação desses trabalhadores.

Sua autoafirmação é uma indicação de como as associações negras contribuíram para


atribuir conotações positivas a epiderme não-branca. O fato é que esses indivíduos
enfrentaram as dificuldades de seu tempo e protagonizaram suas histórias e das
instituições que criaram. (GRIGIO, 2016. P.196)

A autoafirmação referida por Grigio (2016) reforça a tese de que as organizações


associativas entre negros, no pós-abolição, foram determinantes para sua sobrevivência diante
de uma sociedade que não abria espaços para a presença do negro. Mais do que isso, essas
organizações de fundo familiar colaboravam para a construção de um espaço simbólico
determinante.
Seguindo essa mesma perspectiva, Silva (2011, p.29) examina o papel do associativismo
negro para os sujeitos membros dessas organizações durante a escravidão e no pós-abolição.

A nossa ideia sobre associativismo negro, durante a escravidão e no pós-abolição, é


de que esses sujeitos membros buscaram, em rede ou não, negociar mesmo em uma
sociedade tão restritiva e preconceituosa quanto a sociedade brasileira os preceitos
que conferiam status sociais diferenciadores em busca dos seus próprios espaços .

A cidade de Santa Maria, no início do século XX, reflete exatamente esse contexto
marcado pelo surgimento de “inúmeras sociedades e clubes que reuniam a emergente classe
média local. No entanto, como em todo o país, o negro encontrava-se fora deste espaço”
(Macedo, 1997, p.92).

Na rica história de mais de um século da Sociedade Treze de Maio, é importante destacar


seu apogeu – que, segundo Escobar (2010), estaria situado entre os anos 50 e 80 – para definir
alguns aspectos peculiares e marcantes dessa trajetória. Sob a perspectiva de uma abordagem
culturalista, percebe-se, nos registros das atas da antiga sociedade, pistas que revelam aspectos

122
do fazer social dos trabalhadores negros, as quais nos permitem entender um pouco mais sobre
a invisibilidade dos negros em Santa Maria.

Chama a atenção o próprio nome da sociedade: um importante indicativo de seu caráter, 5


ora associativo, ora cultural, recreativo e ferroviário. Segundo Grigio (2016), a Sociedade Treze
de Maio, fundada em 1903, não tinha, em sua composição original, ferroviários, conforme se
comprova ao ler a ata de fundação da agremiação:

“Aos treze dias do mês de maio de mil novecentos e três, na residência do Cidadão
Sisnande d’Oliveira, reunidos em número de quarenta e sete cidadãos, foi fundada
uma sociedade com o fim de comemoração a gloriosa data treze de maio. Por
aclamação assumiu a Cadeira de presidente o cidadão José Fontoura que fazendo uso
da palavra, expôs vivamente os motivos d’aquela reunião. Em seguida sucederam-lhe
na tribuna os senhores Ovídio do Prado, Manoel de Moura, José Alves Teixeira e
Tudio da Silva, que também, em eloquentes frases, fizeram a apologia dos altruísticos
fins em que se prende a sociedade ora fundada. (...) Ficou combinado, para dirigir
provisoriamente até que se proceda a respectiva eleição a seguinte diretoria:
presidente: José Fontoura; vice-presidente: Manoel Pereira de Moura; 1º Secretario:
Osorio Nunes; secretário: José Alves Teixeira; orador: Ovídio do Prado; tesoureiro:
Sisnande d’ Oliveira, ficando assim preenchida a mesa administrativa”
Os primeiros membros da Sociedade Treze de Maio eram trabalhadores urbanos, reflexo
da estratificação social característica do Brasil Republicano e da inserção do Brasil no sistema
capitalista, seja com a abolição da escravatura ou, ainda, pelo surgimento de novas atividades
trabalhistas ligadas à urbanização. Grigio (2016) relata a presença, entre os fundadores, de
carroceiros, jornaleiros, pedreiros, servidores domésticos, entre outros.

A troca do nome da agremiação se dá em 1946, quando inicialmente é adotado o nome


de “Sociedade RECRATIVA Treze de Maio”. Mais tarde, ainda no mesmo ano, adiciona-se
ao nome a palavra “FERROVIÁRIA”, passando o TREZE a ser então denominado de
“Sociedade Recreativa Ferroviária Treze de Maio”.

A presença de trabalhadores ferroviários no clube manifesta-se em documentos como a


ata da reunião realizada no dia 15 de agosto de 1946. Nessa reunião, decidiu-se que os membros
ferroviários passariam a ter suas mensalidades descontadas pela Cooperativa dos Empregados
da Viação Férrea. Conforme registro em ata, lê-se: “Ficou deliberado também que os membros
associados ferroviários passem a descontar suas mensalidades pela cooperativa dos empregados
da Viação Férrea...” (folha 16 Ata de 15 de agosto de 1946).
122
Mais tarde, ainda no mesmo ano, registrou-se em ata deliberação referente ao nome da
agremiação, conforme se lê a seguir: 6
“Sessão de Assembléia Geral Extraordinária.

Aos 17 dias do mês de Novembro de 1946 na Sociedade Recreativa 13 de Maio às 17


horas o Presidente sr. Salvador A. dos Santos declarou aberta a sessão com o número
legal, depois de lida a primeira parte dos estatutos o qual constatava em seus
parágrafos a denominar Sociedade Recreativa Ferroviária 13 de maio. O sr. Presidente
pos em dissenção esse projeto, havendo um protesto do sr. Almerindo Rosa, a seguir
verificou-se unanimidade de votos pró projeto do sr. Presidente...” (folha 21 do
caderno de atas, 30/11/46)

A adição do termo “Ferroviária” ao nome da agremiação revela outro importante


aspecto identitário da sociedade: sua profunda ligação com a instalação da ferrovia na cidade
de Santa Maria.

A instalação na cidade de Santa Maria da sede da Compagnie Auxiliare de Chemins


de Fer au Bresil, proveniente da Bélgica, da uma injeção significativa na economia
regional, trazendo uma diversidade no mercado de trabalho, antes puramente
vinculado ao meio rural... (MACEDO, 1997 p.88).
A presença da companhia oriunda da Bélgica indica uma mudança significativa nas
relações de trabalho estabelecidas na cidade, pois traz consigo novas relações sociais e formas
de associativismo. Essas novidades influenciam diretamente os costumes dos trabalhadores
negros que passam a integrar a ferrovia e, posteriormente, a Sociedade Treze de Maio.

Ao se tornar uma Sociedade Ferroviária, o TREZE assume para si uma característica da


sociedade local. A presença marcante da ferrovia deixava sua influência em todos os setores da
sociedade local e não poderia ser diferente com o TREZE.

O TREZE refletia também a complexa estratificação social característica da sociedade


local. A agremiação passa a imbuir-se de nuances da ferrovia, o que se tornaria marcante e
determinante para o TREZE a ponto de ser considerado como parte de sua identidade.

A instalação da ferrovia transformou a cidade de Santa Maria tanto no seu aspecto


espacial, como no seu aspecto sociocultural. A questão material cria, na cidade, uma nova classe
média emergente que disputa espaços de convivência e poder. No entanto, essa classe média
branca não permitia que os negros – mesmo os ferroviários que dispunham de certo poder
122
aquisitivo – usufruíssem de espaços de lazer e sociabilidade comuns aos brancos.

Como consequência, os negros ferroviários começam a assumir e ocupar o espaço do


7
TREZE, e, nele, exercem sua influência, como referido na Ata nº 1-B de 28 de junho de 1961:

“Sessão de Assembleia Geral Extraordinária.

Ata nº 1B

Aos vinte o oito dias do mês de junho do ano de mil novecentos e sessenta e um os
associados desta casa reuniram-se em Assembleia Geral extraordinária, para a reforma
do Estatuto da Sociedade e as 15,30 horas em ultima chamada o senhor pres. deu por
aberta a sessão, passando a palavra ao relator senhor Tolentino Lopes, afim de que o
mesmo desse conhecimento aos presentes das alterações que iriam ser introduzidas
no referido estatuto, e após a sua explanação, o senhor pres. pos em votação ao
plenário, o qual foi aprovado por unanimidade, os seguintes itens que passam a fazer
parte integral daquele documento.

No capítulo 1º primeiro foi alterado o nome da Sociedade.

No seu artigo 1º foi suprimido o título Recreativa e criado o de Cultural passando a


denominação de Sociedade Cultural Ferroviária 13 de Maio.

No seu artigo primeiro foi criado o parágrafo 2º que dis o seguinte: O presidente da
Sociedade sera sempre um ferroviário eleito em assembleia, o vice pres. sera um
associado particular, digo podendo o vice pres. ser um associado particular”. (folha 2-
3 Ata nº 1 SCFTM – 28/06/61).

A agremiação assumia assim, definitivamente, seu caráter ferroviário. Esse caráter se


materializava na presença massiva de trabalhadores oriundos da ferrovia dentro do TREZE,
onde esses ferroviários passam a ocupar espaços e exercer certa pressão sobre os outros
trabalhadores.

Ao reivindicarem a mudança estatutária, os trabalhadores ferroviários demarcavam seu


espaço de poder diante das outras categorias, algo que vinha se afirmando desde a metade da
década de 40 do século XX, o que coincide com o período de auge da Ferrovia e da própria
sociedade (entre 1950 e 1980), conforme defende Escobar (2010).

Entenda-se que a definição de auge aqui adotada se refere à intensa atividade da


agremiação principalmente no campo cultural, algo que fica também enfatizado na troca da
nomenclatura da Sociedade, conforme registrado na Ata nº 1-B, de 28 de junho de 1961.

Na mesma ata, há registro de outras alterações implementadas, as quais configuram e


apontam para o delineamento de uma identidade cultural da agremiação. Entre as alterações, há 122
registro de que o Departamento Artístico Cultural da associação passaria a “ministrar aulas de 8
corte, costura, bordado e tricô”. E, ainda, na medida do possível (caso conseguissem professor),
a sociedade “manteria aulas noturnas de alfabetização de adultos”, em consonância com o
projeto nacional vigente à época718.

A oferta de aulas de corte, costura, bordado e tricô indicam a preocupação com as


meninas filhas dos antigos associados, traço marcante da sociedade do período, que, desde sua
origem, caracterizava-se por ser uma sociedade de famílias. O aprendizado de afazeres
domésticos tinha um significado dentro da estabilidade das famílias tradicionais da época.

De outro lado, o alinhamento com os projetos nacionais de alfabetização de adultos era


uma necessidade material para os negros e negras que, em busca de afirmação e colocação no

718
“A alfabetização de jovens e adultos, na década de 1960, foi composta de vários movimentos que visavam a
educação e cultura popular. Entre esses destacam-se: MEB – Movimento de Educação de Base; MCP –
Movimento de Cultura Popular; CPC – Centro Popular de Cultura e CEPLAR – Campanha de Educação Popular.
Após o golpe militar de 31 de março de 1964, vários desses projetos foram extintos, por serem considerados de
caráter comunista, sendo que alguns tiveram seus membros perseguidos e exilados.” (Brasil, 2005).
mundo de trabalho, não conseguiam acompanhar a escola em período regular. Por isso,
acabavam não concluindo na idade aconselhável a educação básica necessária. Diante disso, a
agremiação assumia para si esse compromisso de alfabetização de adultos.

O Departamento Artístico Cultural da Sociedade era responsável pela manutenção de


práticas e valores sociais que promovessem a unidade social do grupo por meio de formação
permanente de seus sócios e sócias. Esse Departamento expressava, em sua atuação, as
finalidades da própria sociedade, conforme descrito e ratificado no estatuto de 1973 da
Sociedade:

a) Promover bailes, festas, passeios, reuniões dançantes, cívicas, literárias e


conferências a seus associados e convidados;
b) Elevar o nível social e cultural do associado através de palestras e conferências;
(...)
g) Cultivar e aprimora as artes em seu meio; (...)
(Ata da Assembleia Geral Extraordinária do dia 15 de abril de 1973. Fl 60-61)

Voltando ao conflito de classes entre os membros da agremiação, outro aspecto


marcante é a decisão de que a direção da Sociedade deveria ser exercida por um ferroviário.
Macedo (1997) afirma que a ferrovia trouxe consigo, além da estratificação, o conflito de
122
classes. Daí, presume-se que esse conflito se refletiu no âmbito da agremiação. A nova
regulamentação acerca da diretoria da agremiação dividiu os membros de acordo com as 9
categorias profissionais e trouxe à tona o conflito de classes dentro da Sociedade e do próprio
Movimento Negro.

“Particulares” e “Ferroviários” eram categorias distintas e conflitivas. Os Particulares


eram os trabalhadores das várias categorias que, desde sempre, foram a base da sociedade. Entre
eles, estavam: pedreiros, carroceiros, zeladores e alfaiates. Os Ferroviários eram fruto da
presença da Ferrovia na cidade e, portanto, constituíam-se em personagens mais recentes em
atuação na agremiação. A partir do século XX, os Ferroviários passaram a dispor de uma
posição social mais elevada. Embora constituíssem a classe média, possuíam uma condição
material que os colocava em posição de destaque em relação a outras categorias.

O debate se acentuou nos anos seguintes. A presença da Viação Férrea junto à


agremiação se expressava de duas formas: pela ajuda financeira, por meio do repasse das
mensalidades dos associados, e pela vinculação da sociedade ao Departamento de Assistência
ao Ferroviário, algo que não agradava a todos, principalmente aos “Particulares”. O que
realmente desagradava era a intervenção da Ferrovia nos assuntos internos, como, por exemplo,
a determinação de que só ferroviários poderiam ocupar o cargo de presidente.

Em 1966, essa tensão recrudesce ainda mais por causa de um ofício circular enviado à
agremiação pela Viação Férrea. Segundo o que consta nesse ofício, estava vetada a ocupação
de cargos na diretoria por parte de “Particulares”. Essa determinação causou intenso debate,
conforme demonstra o texto da Ata de Assembleia Extraordinária da SCFTM 16/01/66,
transcrito a seguir:

“O Sr. Taurino Luiz Garcia, presidente, perguntou ao plenário se


concordava com a renovação d inscrição da sociedade no Departamento
de Assistência ao Ferroviário ou com a formação de uma comissão para
falar com o Sr. Diretor Superintendente a respeito do oficio circular. O
plenário foi unanime em discordar com a renovação de inscrição da
Sociedade no Departamento de Assistência ao Ferroviário bem como
da organização de uma comissão para falar com o diretor
superintendente. Em consequência da decisão unanime da assembleia
em não concordar com a renovação da inscrição da sociedade no
Departamento de Assistência ao Ferroviário, a Sociedade fica
legalmente desligada daquele órgão.
O Sr. Apolinário Medina propôs que permanecesse a palavra 123
“ferroviário” no nome da sociedade apesar da mesma achar-se
desligada d viação. 0
O Sr. Secretario Geral, Antônio Maia da Silva, usando da palavra, disse
da inconveniência de adotar as exigências da Viação Ferrea registrando
a sociedade no Departamento de Assistência Ferroviaria, pois este
Departamento, nos seus quesitos, exigia um seria de cousas que não
estavam em harmonia com a finalidade da sociedade que era: congraçar,
fraternizar. Apontou em sua explanação aqueles dos itens do oficio
circular tais como: proibição do associado particular fazer parte da
diretoria, não votar, não ser votado. Refutou os mesmos, de grande
gravidade os quais são um desprestígio ao sócio particular que muito
fez e muito tem cooperado para o engrandecimento da sociedade não só
na parte material como, também na parte social. Disse, também, que
considera estas imposições como uma ofensa póstuma aos elementos
que lançaram a pedra fundamental do clube que por sinal não eram
ferroviários.
O Sr. Apolinário Medina interpretou a palavra do secretário Geral como
um desprestígio a classe ferroviária. O mesmo disse que os ferroviários
muito contribuíram para o reerguimento da Sociedade quando esta se
encontrava financeiramente em fase difícil (...) Disse também que
lutaria para a permanência da palavra “ferroviario” no nome da
sociedade.” (Ata de Assembleia Extraordinária da SCFTM 16/01/66. Fl
33-34).

O ano de 1966, que coincide com o ano da inauguração da nova Sede da agremiação,
transcorreu com intensos debates. A associação se desfiliou da Viação Férrea, mas manteve o
termo “Ferroviária” no nome. O conflito entre os Particulares e os Ferroviários se intensificaria
cada vez mais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As peculiaridades e a perspectiva de uma história vista de baixo (Thompson, 2001) são


determinantes nos percursos investigativos e levam a uma análise mais profunda sobre
estruturas e modelos generalizantes. Conceitos materializados exigem uma busca constante por
peculiaridades e por metodologias em que a história comparada é um recurso interessante.
Nesse sentido, a produção de Edward Thompson parece ser uma referência comparativa

123
adequada para a produção historiográfica de uma história dos trabalhadores negros no pós-
abolição.

A investigação das atas da antiga Sociedade Recreativa Ferroviária Treze de Maio entre 1
os anos de 1943 e 1980 revelam algumas peculiaridades do mundo do trabalho sob a perspectiva
do Movimento Negro. O estudo desses documentos permite a compreensão e a visibilidade de
alguns aspectos do fazer-social do trabalhador negro que possibilitam a desconstrução de alguns
conceitos e estruturas balizadas por uma perspectiva Historiográfica Tradicional.

Primeiramente, não há um Movimento Negro, mas vários Movimentos. Esses


Movimentos são representados por uma gama de associações, irmandades e clubes sociais que
configuram redes sociais familiares. Tais redes são fortalecidas pelo caráter associativista e
pelos elos familiares que se solidificam na construção de espaços. Espaços geográficos, mas
também simbólicos em que se expressam os conflitos internos entre membros dessas
agremiações. O TREZE, sujeito coletivo deste estudo, como Clube Social Negro, é um exemplo
de espaço geográfico e simbólico que faz parte de uma rede social e familiar.

O TREZE nunca foi um clube de “elite”. Desde sua origem, é fruto de uma
heterogeneidade e reflexo da estratificação social característica de seu período de origem: o
início do século XX. Eram membros dessa agremiação, em 1903, carroceiros, pedreiros,
alfaiates, jornaleiros, enfim, todos membros das camadas mais inferiores da sociedade elitizada
de Santa Maria. Tal característica se manteve ao longo do século XX. Ao analisar a composição
da diretoria da agremiação, na década de 40, nota-se, entre as profissões de seus membros:
carroceiros, alfaiates, vigias, zeladores, etc. Naquele momento, começava a surgir dentro da
agremiação uma nova categoria emergente na sociedade local: os ferroviários negros.

Esses trabalhadores negros exerciam pressão contra os demais membros exatamente


como a Ferrovia exercia sua hegemonia perante a sociedade local, tencionando e exigindo
espaços de poder. O resultado disso é um conflito de classes interno e permanente até a
dissolução da agremiação. As atas revelam ainda mais ao trazer detalhes do dia a dia de uma
Sociedade cultural. O estudo dessa documentação permite concluir que o Movimento Negro,
no século XX, era muito mais do que capoeira e carnaval. Os relatos dos antigos associados e
as atas das Assembleias da Sociedade Treze de Maio evidenciam que o carnaval, por exemplo,
não era atividade-fim, mas acontecia somente se e quando havia recursos financeiros para
custear a festividade.

As manifestações culturais aconteciam na agremiação graças ao associativismo, que,


123
por suas peculiaridades, configura-se como um associativismo negro, elemento fundante dessa 2
sociedade. O associativismo negro foi uma forma de manutenção dos laços familiares e das
redes sociais. Foi também uma forma de conservar costumes comuns e manter uma identidade.
O associativismo negro foi uma forma de resistência às imposições da sociedade branca e
racista do período.

Conclui-se, a partir do estudo dos estatutos e das atas da Sociedade Treze de Maio, que
a agremiação possuía um regimento interno bastante rígido. Procurava-se manter costumes e
hábitos que tinham como objetivo a elevação da autoestima e o fortalecimento de uma
identidade de grupo. Exemplo disso era o cuidado que havia com a postura dos associados
durante os eventos, com o alinhamento dos trajes e com o processo de indicação dos associados.
Um novo sócio só era aceito se fosse apresentado por outro mais antigo, e, ainda, se esse (mais
antigo) fosse conhecido dos outros associados. Além disso, os demais associados deveriam
ratificar a aceitação do novo sócio, perante avaliação de sua conduta dentro da Sociedade.
Todos esses elementos do associativismo negro – o conflito de classes, a rigidez do
estatuto, a manutenção de costumes – permitem entender a fundamental importância que a
Sociedade Treze de Maio teve para a construção de uma autoconsciência de classe do
Movimento Negro. Uma construção lapidada nas relações internas da sociedade e que revela
fragmentações e tensões inerentes ao Movimento Social Negro. Essas peculiaridades
demonstram que não existe um único Movimento Negro, mas sim, negros e negras em
movimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AS IMPLICAÇÕES POLÍTICAS, CULTURAIS E ECONÔMICAS NA FORMAÇÃO
DA PRIMEIRA GERAÇÃO DE CANTORAS DE SUCESSO DO BRASIL719.

Paola Giuliana Borges720

RESUMO

Esta exposição tem como objetivo apresentar e realizar uma análise sobre as determinações
políticas, econômicas e culturais que contribuíram para a formação da primeira geração de
cantoras de sucesso no Brasil nas figuras de Linda Batista, Dalva de Oliveira, Emilinha Borba
e Marlene. Para tal reflexão, torna-se necessária inicialmente a compreensão da conjuntura que
possibilitou a formação dos meios de trabalho e de divulgação de trabalho dessas artistas, tais
como indústria fonográfica, cinema, emissoras de rádio e revistas especializadas, bem como a
análise em relação às condições que possibilitaram a tais cantoras se inserirem nesses meios e
alcançarem o patamar de ídolos musicais do país nas décadas de 1940 e 1950. São destacados,
assim, neste primeiro momento os principais elementos que contribuíram para que, neste
período, fossem desenvolvidos tais meios de comunicação no Brasil. Dada esta análise, parte-
se para o estudo sobre os modos e as condições em que se deu a inserção das cantoras citadas 123
5
nesses meios formados no Brasil na primeira metade do século XX. Os estilos musicais
cantados e de maior sucesso, a principal emissora de rádio em que trabalhavam, os programas
de rádio em que faziam suas apresentações, os locais em que faziam seus shows e suas
participações em filmes e revistas são os pontos de onde parte tal análise que tem levado em
consideração em sua realização aspectos financeiros, culturais e possíveis influências políticas
para tais inserções e para o sucesso que elas alcançaram. Como as cantoras analisadas iniciaram
suas carreiras, em quais meios de comunicação elas se destacaram, quais as relevâncias destes
meios para os sucessos delas, possíveis estratégias planejadas por elas ou empresários para
manutenção da fama, com que público elas faziam mais sucesso, a formação de seus fã-clubes
são elementos que ganham destaque neste segundo momento.

Palavras chaves: Rádio – Cantoras – Música

719
Trabalho apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria
720
Mestranda, Departamento de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas. A presente
apresentação faz parte do projeto de mestrado que está sendo desenvolvido pela autora, financiado pela CAPES.
E-mail para contato: paolagbb03@gmail.com.
INTRODUÇÃO

A primeira parte desta apresentação confere destaque a questões consideradas relevantes


para a formação e o desenvolvimento dos primeiros meios de comunicação de grande alcance
do Brasil, cinema e rádio. Neste momento são feitas elucidações a respeito das mudanças
políticas ocorridas no país para a formação de tais meios bem como sobre ações do Estado e
mesmo de particulares que contribuíram para tal formação. Estes dois meios de comunicação
recebem destaque justamente por serem os meios em que as cantoras aqui analisadas mais
atuaram no período que compreende esta pesquisa, as décadas de 1940 e 1950.

A segunda parte desta apresentação procura mostrar como se dava a inserção de Linda
Batista, Emilinha Borba, Marlene e Dalva de Oliveira no rádio, cinema e publicações escritas
no período analisado. Dada a relevância das chanchadas, Rádio Nacional e Revista do Rádio
para a carreira dessas artistas, são estes meios de comunicação que recebem destaque neste
momento.
123
Capítulo I – Desenvolvimento dos meios de comunicação no Brasil 6

A primeira metade do século XX representa para esta apresentação o período pioneiro


tanto na formação da música popular urbana brasileira como no desenvolvimento dos primeiros
meios de comunicação de massa do país. Em tal período puderam ser observados também o
início da profissionalização de músicos e a centralidade da música e artistas com ela envolvidos
na formação destes meios.

Até a década de 1920, sobressaíam-se no país as ideias de grupos de intelectuais que


pensavam os elementos populares e negros como algo a ser superado na busca pelo ideal
civilizatório branco europeu.721 Porém, a partir da divulgação dos trabalhos de grupos de
intelectuais modernistas – que se voltavam aos elementos populares para compor seus trabalhos

721
Representados por nomes como Nina Rodrigues, Francisco de Oliveira Viana, Euclides da Cunha e Silvio
Romero.
musicais, estéticos e literários – e das reflexões trazidas por Caio Prado Jr, Sergio Buarque de
Holanda e Gilberto Freyre, já na década de 1930, tais visões predominantes começaram a perder
espaço e a miscigenação passou a ser vista como elemento diferenciador do povo e da nação
(ORTIZ, 1994b).

A chamada Revolução de 1930 trouxe consigo, por sua vez, um projeto de unificação
nacional visto como necessário por seus realizadores para inserção do Brasil nas transformações
mundiais que vinham ocorrendo nas primeiras décadas do século XX. Sendo assim, ela ao
pretender formar uma nação e unificar um território, se juntou a esse processo de valorização
positiva dos elementos do povo para buscar neles símbolos novos e diferenciadores que
formariam o país que se pretendia. Tal apropriação se deveu ao fato de ser apenas nos grupos
populares em que se encontravam elementos de diferenciação capazes de trazer algo novo como
imagem da nação, já que os grupos mais ricos priorizavam a importação de modas e costumes
europeus para compor seus símbolos, não trazendo elementos realmente inovadores.

Dentre esses elementos, os ritmos tocados na capital do Brasil nesse momento, ou o que
Tinhorão (1997) classificou como música urbana brasileira, o choro, o samba e a marcha722
foram os ritmos escolhidos para serem classificados como músicas representantes de toda a
123
nação. O samba recebeu especial atenção nesse projeto e passou a ser construído como ritmo 7
representante da musicalidade do país (NICOLAU NETTO, 2009). Tal ritmo ocupou, assim,
centralidade tanto nas produções cinematográficas do período quanto nas programações das
emissoras de rádio que se formavam. A partir do final da década de 1930, transformações
começaram a ser desenvolvidas em relação a esse ritmo, surgindo o samba de morro, o de
gafieira e o samba-canção, influenciados por ritmos estrangeiros, como o jazz.

O crescimento populacional, em especial da população urbana contribuiu para a


expansão de locais de divertimento, como cinemas e teatros (GHEZZI, 2011). O cinema no
Brasil já apresentava produção desde 1897 quando eram feitas filmagens artesanais e exibições
ambulantes em praças das cidades. A concorrência com o cinema de Hollywood e a necessidade
de importação de grande parte do equipamento necessário para as filmagens já eram realidade

722
Influenciados pela vinda de ritmos europeus como valsa, polca e quadrilhas, para o Brasil na segunda metade
do século XIX, no caso do choro e da marcha, e pelo batuque, ritmo trazido e elaborado pelos negros escravos,
no caso do samba.
para o cinema nacional nas primeiras décadas do século XX. (SIMIS, 1996). A produção do
cinema falado, por sua vez, se iniciou no Brasil na década de 1930 se restringindo basicamente
a São Paulo e Rio de Janeiro. Havia produções em Recife, Porto Alegre e Belo Horizonte,
porém, a maior quantidade de produções provinha das duas capitais citadas anteriormente
(SOUZA, 1998).

A partir do primeiro governo Vargas723, passaram a existir políticas governamentais


voltadas a diversas áreas culturais. Como se verá ao longo dessa exposição no caso do rádio, o
cinema também foi alvo de ações do governo Getúlio Vargas e o Estado passou a regular suas
atividades. Foi a partir desse momento que começaram a surgir estúdios cinematográficos
propriamente ditos no país, como a Cinédia e a Atlântida (SIMIS, 1996).

Exemplo dessa regulamentação que pode ser citado é o decreto 21.240 de 4 de abril de
1932, em que Getúlio Vargas nacionalizou os serviços de censura cinematográficas que
anteriormente estavam a cargo dos estados, reduziu em 60% taxas de impostos sobre o metro
de filmes importados e obrigou a exibição de curta-metragens nacionais acoplados a longas
estrangeiros e a exibição de ao menos um filme nacional por ano. O governo Vargas criou 123
também departamentos responsáveis por orientar as produções ligadas aos meios de
comunicação que se desenvolviam no Brasil, como o Departamento de Propaganda e Difusão
8
Cultural (DPDC) criado pelo decreto 24.651 de 10 de julho de 1934, que se tornou o responsável
pelas orientações a serem dadas aos produtores de cinema sobre como e o que produzir, tendo
como objetivo principal estimular a produção e circulação de filmes educativos. Esse decreto
foi responsável também pela redução nas taxas de importação de filmes para produção nacional
(SIMIS, 1996).

Enquanto o DPDC era responsável por classificações indicativas e orientações quanto


ao uso de equipamentos e diretrizes sobre o que o governo entendia como filme educativo, o
Departamento de Imprensa e Propaganda, órgão surgido a partir do DPDC em 27 de dezembro
de 1939, exercia uma fiscalização mais rigorosa a respeito dos recursos públicos que poderiam
ser captados pelos produtores e sobre seus usos, autorizando verbas ou não em acordo com as
pretensões de realização de quem as solicitava, ou seja, em acordo com o que o Estado

723
Período que se estendeu de 1930 a 1945.
acreditava dever ser transmitido pelas produções culturais. A subordinação direta do DIP a
Getúlio Vargas e a ênfase dada à função propagandista do órgão o colocam como o mais atuante
departamento relacionado à cultura na gestão Vargas no que diz respeito à censura e controle
de temas que poderiam e deveriam ser tratados nas obras. Em relação ao cinema,
especificamente, este órgão passou a ser o responsável por classificar e diferenciar filmes
educativos das demais produções, favorecer o recebimento de verbas a quem se interessasse em
produzir filmes de exaltação ao governo e a símbolos e valores nacionais e até mesmo a editar
filmes de forma a deixá-los adequados aos valores que o governo estipulava como educativos
(SIMIS, 1996).

As leis, como visto, garantiam a exibição, mas não garantiam subsídios para a formação
de novos estúdios e manutenção dos que já existiam. O cinema nacional não conseguiu se
autorregular financeiramente e não conseguiu apoio estatal suficiente para tal, tendo que encarar
a concorrência com Hollywood sem estar preparado para lidar com ela. Os filmes nacionais que
conseguiram atingir sucesso com o público, por sua vez, eram justamente os que eram menos
valorizados pela crítica especializada e as produções que mais agradavam aos críticos acabavam
sendo as menos vistas. 123
A primeira transmissão de rádio no Brasil, por sua vez, data do final do século XIX e 9
teria sido feita em Mogi das Cruzes, São Paulo, pelo padre Roberto Landell. Foi na Exposição
do Centenário da Independência do Brasil, ocorrida no Rio de Janeiro em 07 de setembro de
1922, por sua vez, que os primeiros aparelhos de rádio foram oficialmente apresentados às
autoridades brasileiras.

A primeira estação de rádio brasileira foi inaugurada em 20 de abril de 1923, a Rádio


Sociedade do Rio de Janeiro, por Edgard Roquette-Pinto724 e Henrique Moriz725. A primeira
transmissão desta rádio aconteceu no dia 1 de maio de 1923 às 20h30min. O principal objetivo
deles, segundo Tinhorão (2014), era formar uma emissora educadora capaz de iniciar um
‘movimento civilizador’ no país.

Com a inauguração da Rádio Sociedade, era inaugurado, assim, o que se chamou de


ciclo pioneiro do rádio, que durou de 1923 a 1932 em que foram criadas diversas emissoras na

724
Escritor, médico, antropólogo, etnólogo e professor nascido no Rio de Janeiro em 1884.
725
Francês naturalizado brasileiro, nascido em 1860, era engenheiro industrial e astrônomo.
capital do país, tais como: Rádio Clube do Brasil (1924), Rádio Educadora do Brasil e Rádio
Mayrink Veiga (1926), Rádio Philips (1930)726, Rádio Transmissora Brasileira (1936), Rádio
Cruzeiro do Sul (1933). Em 1935, foram inauguradas também importantes emissoras para a
época como a Rede Emissoras Associadas e a Rádio Tupi (SAROLDI; MOREIRA, 2006).

Cabral (1996) mostra que os primeiros aparelhos de rádio do Brasil eram os chamados
rádios de galena. Esses aparatos continham apenas cinco peças: cristal de galena, regulador de
contato de galena, indutor, condensador variável de sintonia e fones de ouvido, sendo montados
pelos próprios ouvintes que ainda acrescentavam a eles antena e tomada. A precariedade dos
aparelhos se juntava à precariedade das emissoras que ao longo da década de 1920 eram clubes
não comerciais formados por pessoas ricas e que se voltavam mais para seus sócios do que para
o gosto de possíveis ouvintes.

A questão fundamental para o aumento do número de emissoras de rádio e seu


desenvolvimento foi a permissão, dada por Getúlio Vargas em 1932, de veiculação de
propagandas nas transmissões. Com isso, passava a haver uma nova renda que poderia ser
revertida em melhorias em suas programações, bem como em pagamento de cachês para artistas
convidados. Essa permissão ampliou a capacidade técnica das emissoras, fez com que mais
124
artistas pudessem ser contratados para trabalhar nelas e ampliou o público que as ouvia, já que 0
elas passaram, com a renda extra, a ampliar suas capacidades de difusão (FENERICK, 2005).

Lia Calabre (2009) aponta o decreto 21.111 de 01 de março de 1932 como o que
especificou o conceito do que seria a radiodifusão no Brasil, ou seja, um veículo de difusão de
sons que deveriam ser livremente recebidos pelas pessoas, e também aquele que apontou a
finalidade educacional que deveriam ter as programações das emissoras, devendo o Ministério
da Educação orientá-las a esse respeito. O Estado, para a autora, organizou a legislação que as
emissoras de rádio deveriam seguir, orientou sobre quais deveriam ser as prioridades em suas
programações e se utilizou delas para a transmissão de seu programa oficial. O desenvolvimento
das emissoras de rádio no Brasil é mostrado por ela como sendo formado, porém, por duas
variáveis: a privada, em que elas se subordinaram às leis do mercado ao depender de
consumidores (ouvintes) e patrocinadores (anunciantes), mas também a pública, já que

726
Emissora que seria comprada pelos proprietários do Jornal a Noite, fundado em 1911 por Irineu Marinho e
Joaquim Marques da Silva, e que a transformariam em Rádio Nacional.
dependiam do Estado para fornecer concessões para que existissem e estavam sempre correndo
o risco de que essas concessões fossem cassadas caso não respeitassem as leis estabelecidas
sobre a radiodifusão no país.

O desenvolvimento do rádio no Brasil foi pensado pelo Estado e pelos intelectuais que
trabalhavam para e com ele para a difusão e criação de uma sociedade homogênea no país. O
rádio deveria ser um veículo controlado pelo poder central e responsável pela difusão de seus
valores e dos valores educacionais que ele considerava relevantes para a sociedade da época e
para a unificação nacional. Ortiz (1994b) afirma que o Estado Novo acreditava perigoso deixar
a radiodifusão livre e sem regulamentação, porém, não desejava a criação apenas de rádios
oficiais e isso ficou claro com a regulamentação e liberação da publicidade, que permitiu que
particulares implantassem suas emissoras, mesmo que condicionados à concessão do governo,
e pudessem mantê-las com as verbas de anúncios que recebiam. Tal desenvolvimento não foi
pensado, entretanto, em rede, já que as emissoras que possuíam melhores equipamentos
transmitiam suas programações a partir de uma base até onde suas ondas podiam chegar
(ORTIZ, 1994b).
124
Capítulo II – As quatro Rainhas do Rádio
1
A Rádio Nacional é apontada pelos pesquisadores lidos para esta apresentação como a
emissora protagonista da era do rádio no Brasil. A emissora foi se tornando importante no
nascente cenário radiofônico do país ao contratar diversos artistas e produtores interessados em
desenvolver programas de variedades e caça-talentos. Grande parte da renda inicial das
emissoras de rádio vinha de anúncios e grande parte desses anúncios era direcionado ao público
feminino, e com a Nacional não era diferente (SAROLDI; MOREIRA, 2006). Segundo Calabre
(2002), a Rádio Nacional foi criada com o objetivo de se tornar a maior emissora do país, tanto
que seu elenco contava com artistas exclusivos e conhecidos já em sua inauguração.

Em 8 de março de 1940, o então presidente Getúlio Vargas criou as empresas


incorporadas ao patrimônio da União, anexando a Rádio Nacional a elas e nomeando Gilberto
Goulart de Andrade como seu novo diretor. A incorporação da emissora fazia parte do projeto
de Vargas de ter uma rádio sob controle do Estado para levar as mensagens de seu governo bem
como transmitir valores e ideais identitários pré-determinados ao povo brasileiro e contribuir
para a política de integração territorial que ele levava a cabo. O novo diretor criou o
departamento de estatísticas da rádio, que contava principalmente as cartas recebidas por
semana e criou novos mecanismos de seleção de talentos, como as provas práticas e diversos
concursos de auditório, como o “Concurso Gaitas de Boca” (SAROLDI; MOREIRA, 2006).

A Rádio Nacional recebia investimentos de anunciantes, mas também do próprio


governo Vargas, que tinha como um dos objetivos acalmar os ânimos do país em uma época
politicamente conturbada tanto interna quanto externamente. A rádio se tornou, então, um
veículo de massa prioritário para o governo em sua tarefa de controle e comunicação com o
povo e ele não poupou esforços para expandi-la, investindo maciçamente na emissora,
melhorando sua tecnologia de transmissão e fazendo que ela chegasse a pontos distantes do país
difundindo imagens sobre artistas e sobre a capital brasileira (TINHORÃO, 2014).

As quatro cantoras aqui analisadas tiveram contratos com a emissora. Emilinha Borba
começou sua carreira na Rádio Cruzeiro do Sul, mas permaneceu durante 27 anos como sua
contratada, já Marlene foi direto da boate do Hotel Copacabana Palace, onde era crooner do
show principal, para a emissora. Linda Batista e Dalva de Oliveira circularam entre as grandes
124
emissoras de rádio do Rio de Janeiro, mas o período áureo de suas carreiras foi na Rádio 2
Nacional.

Emilinha Borba e Marlene eram estrelas de dois dos mais importantes programas de
auditório da emissora, o “Programa Cesar de Alencar” e o “Programa Manoel Barcelos”,
respectivamente. Emilinha participava ainda do “A felicidade bate a sua porta” que ia ao ar aos
domingos e onde havia sempre um sorteio para escolher em qual bairro carioca a cantora iria
fazer um show ao vivo para o programa. O “Programa Paulo Gracindo”, dividido em
apresentações das duas cantoras, ia ao ar aos domingos e se tornou também um campeão de
audiência.

O programa Cesar de Alencar foi o programa apontado como o de maior sucesso da


Rádio Nacional. Indo ao ar aos sábados, ele chegou a ter quatro horas de duração e contar com
uma equipe de montagem, além de três locutores e de ser formado por quadros musicais e
concursos de talento e de sorte. O quadro mais esperado era chamado “Parada dos Maiorais”
no qual intérpretes se apresentavam sob inspiração de quem sempre encerrava o programa no
geral, Emilinha Borba. O sucesso do programa era tamanho que seu aniversário de dez anos foi
comemorado no ginásio de esportes Maracanãzinho em 11 de junho de 1955 e contou com a
presença de diversos artistas contratados da emissora, além de público de 18 mil pessoas
(AGUIAR, 2007).

Calabre (2002b) coloca que grande parte dos índices de audiência e sucesso que esses
programas faziam eram originados da participação dos cantores populares e da possibilidade de
conhecê-los e estar entre eles. O rádio e o disco haviam criado essa ligação entre público e
artista e conhecer o ídolo se tornava para muitos um sonho que os programas de auditório
poderiam realizar. Inicialmente não eram cobrados ingressos do público, mas com o aumento
da procura, graças à participação de cantores e cantoras de sucesso, a cobrança passou a ser
vista como necessária por seus produtores principalmente para selecionar o público. Os
programas faziam tamanho sucesso que acabavam sendo contratados por prefeituras ou mesmo
particulares para se apresentar em outras cidades do país, indo toda a produção e todos os
componentes junto (TINHORÃO, 2014).

É necessário que se diga que grande parte dos contratos que as cantoras aqui analisadas
puderam firmar com companhias de cinema ou mesmo marcas de produtos se deveu ao fato de
124
elas estarem em evidência na Rádio Nacional. A popularidade principalmente de Emilinha 3
Borba e Marlene, as duas cantoras dentre estas que mais tempo permaneceram como
contratadas da emissora, ajudou a Nacional a se manter entre as primeiras, mas elas foram
beneficiadas pelo alcance que a rádio possuía no país para que se tornassem conhecidas também
pelo interior do Brasil.

Cantoras com grandes sucessos nos carnavais das décadas de 1940 e 1950, elas não se
limitavam às marchinhas e ao samba como ritmos gravados. Emilinha Borba se notabilizou
pelas marchas carnavalescas, mas chegou a fazer sucesso com boleros, como no caso de Em
nome de Deus, Marlene apelidada de a cantora que canta e samba diferente soube diversificar
seu estilo e cantou também famosos baiões ao longo de sua carreira. Linda Batista, cantora de
sucesso nos carnavais, teve no samba-canção Vingança o maior sucesso de sua carreira. Já
Dalva de Oliveira foi a cantora que mais destaque obteve nos ritmos classificados como
românticos, como bolero e samba-canção. Dona de uma performance classificada como
dramática, Dalva teve em Kalu um dos maiores sucessos de venda em sua carreira.
O cinema, por sua vez, serviu como meio de trabalho para as cantoras analisadas nas
décadas de 1940 e de 1950 e se beneficiou, em questão de alcance de público e retorno
financeiro, do sucesso que as cantoras do rádio alcançaram em suas carreiras. Tal sucesso
acabou servindo para que elas fossem contratadas para realizar números musicais nas
produções. Chamava-se assim a atenção do público para as películas produzidas, já que era
apenas no cinema que grande parte da população tinha a oportunidade de ver os artistas do rádio
em movimento.

O principal estilo cinematográfico que contou com a participação de cantores do rádio


foram as chanchadas. Influenciadas pelo circo, rádio, cinema estrangeiro e pelos teatros de
revista. Eram um tipo de comédia de cunho popular que traziam temas próximos do cotidiano,
heróis com os quais o público se identificava ou com os quais simpatizava, um humor de fácil
compreensão e números musicais protagonizados por artistas conhecidos (MEIRELLES, 2005).

Dos elementos formadores das chanchadas, o teatro de revista727 e o circo eram os que
forneciam atores e atrizes bem como o modelo de humor simples e de fácil assimilação. O rádio
cedia os cantores e cantoras que trariam público, além de seus maestros, e o cinema estrangeiro
fornecia temas para as paródias que se tornaram comuns. Graças à participação de cantores e
124
cantoras do rádio nas produções e às influências do teatro de revistas, que já tinha seu sucesso 4
consolidado, as chanchadas atraíram o maior público que os filmes nacionais já haviam atraído
até então (SILVA, 2009).

A presente pesquisa constatou que as cantoras aqui analisadas estiveram presentes em


70 filmes entre 1936, primeira aparição de Linda Batista no cinema e 1959. Destes filmes, 18
728
foram produzidos pela companhia Cinédia e 17 pela companhia Atlântida729. Nestas

727
O Teatro de Revista teve sua primeira peça encenada em 1859, As surpresas do senhor Piedade e é colocado
como a base dos filmes musicais nacionais, já que assim como esses filmes, suas encenações tinham como enredo
histórias cômicas sobre o cotidiano do povo e acontecimentos de cunho político, atreladas a números musicais de
artistas já conhecidos do público e que eram utilizados justamente para atrair bilheteria. As trilhas sonoras dessas
encenações poderiam ser tanto compostas para elas ou serem tomadas de sucessos já conhecidos. Diversos cantores
e compositores como Sinhô, Ary Barroso, Lamartine Babo já estavam no Teatro de Revista antes mesmo de
fazerem sucesso no rádio, por exemplo. (SILVA, 2009)
728
Companhia fundada em 1930, primeiro estúdio nacional a se dedicar à temática carnavalesca.
729
Companhia fundada em 1941 e que apostou principalmente em figuras conhecidas do rádio para atrair público
para suas produções.
produções, apenas Emilinha Borba730 e Marlene731 chegaram a participar como ‘atrizes’. Linda
Batista e Dalva de Oliveira participavam essencialmente realizando números musicais dentro
das narrativas.

Os números musicais eram executados em playbacks a partir de gravações de discos


porque seus equipamentos de captação de som não conseguiam captá-lo diretamente das
apresentações dos artistas nos estúdios. A maior parte das gravações era feita nos estúdios da
Rádio Nacional, já que eles comportavam toda orquestra necessária e possuíam tecnologia para
tal. Somente a partir de 1948, a Atlântida conseguiu ampliar suas instalações para que todos os
músicos coubessem em seus estúdios e pudessem gravar os discos lá (FERREIRA, 2010).

O crescimento do número de emissoras de rádio no Brasil, a formação dos primeiros


ídolos vinculados a elas, a participação desses artistas em filmes nacionais e a percepção da
existência de um público cada vez mais curioso frente a eles foram elementos que colaboraram
para que fossem criadas revistas especializadas nesse meio de comunicação e em notícias sobre
seus componentes. As duas revistas que ganharam maior destaque no país e que se propunham
a tratar em especial dos assuntos ligados às emissoras e a seus artistas foram a Revista do Rádio
e a Radiolândia.
124
A Radiolândia foi criada em 1952, a partir do sucesso e repercussão conseguidos pela
5
Revista do Rádio frente ao público e permaneceu, segundo relatos constantes na bibliografia
analisada sobre o desenvolvimento do rádio no Brasil, em segundo lugar na preferência dos
consumidores. A Revista do Rádio é apontada nas pesquisas feitas como a mais lida e que mais
se destacou no país no final da década de 1940 e década de 1950 e acabou sendo, por essas
razões, a revista escolhida para a análise da participação das cantoras do rádio em meios
impressos de comunicação nas décadas propostas. Ela foi criada em 1948 no Rio de Janeiro
pelo jornalista Anselmo Domingos e foi a segunda publicação mais lida no país durante a
década de 1950, ficando atrás apenas da revista O cruzeiro732.

730
Em Barnabé tu és meu da Atlântida de 1952.
731
Em Tudo azul, produção da Cinédia de 1952.
732
Revista lançada em 10 de novembro de 1928 pelos Diários Associados, tratava de diversos assuntos, como
esportes, cinema, saúde, moda, fofocas, programas de rádio e culinária. Circulou até 1975 e foi referência para as
demais revistas de variedade da época, como a Revista Manchete, que teve primeiro número publicado em 1952.
É por meio desta publicação que se pode ter conhecimento da maioria dos aspectos das
carreiras das cantoras aqui analisadas. Emilinha Borba e Dalva de Oliveira mantiveram diários
na publicação em que contavam grande parte de suas biografias. Foi por meio destes diários
que se tornou possível também conhecer a agenda de shows das cantoras e a rotina que
mantinham diariamente. A publicação realizava constantes reportagens com as quatro cantoras
aqui estudadas e apresentava seus lançamentos em discos, shows, suas rotinas nas emissoras de
rádio e em gravações de filmes. Além disso, o concurso de Rainha do Rádio, promovido pela
publicação e vencido pelas quatro cantoras733 e a relação delas com seus e suas fãs eram bastante
explorados pela revista.

As excursões internacionais de Marlene, Linda Batista e Dalva de Oliveira ganhavam


longas e entusiasmadas reportagens734, assim como as apresentações das cantoras nos
programas de rádio em que eram as estrelas principais. Fofocas e relatos sobre suas vidas
pessoais, como os casamentos de Marlene e Luis Delfino e Emilinha Borba e Artur Souza Costa
e o divórcio de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins também ganharam longos destaques na
publicação.

Foi por meio da leitura da revista que se tornou possível também entender o apelo
124
popular de Marlene e Emilinha Borba e toda a questão da rivalidade entre suas fãs. Rivalidade 6
esta que impedia, dadas as consequências dos encontros entre os dois grupos, que as duas
cantoras se apresentassem juntas nos mesmo programas. A leitura do diário de Emilinha e das
edições da publicação entre os anos de 1948 e 1959 possibilita ainda que se compreenda com a
cantora se tornou a mais famosa e popular artista feminina deste período. Emilinha Borba se
comunicava diretamente com suas fãs por meio da publicação e fazia questão de manter
constante diálogo com elas, tanto que sua coluna na revista raramente deixou de ser publicada
na década de 1950.

Com as leituras das edições da Revista do Rádio, é possível analisar aspectos práticos
das carreiras das cantoras, como mudanças de gravadoras, lançamentos de discos, concursos

733
Linda Batista foi a única das cantoras eleita Rainha do Rádio enquanto o concurso era realizado por um grupo
de jornalistas – entre 1937 e 1948, quando abdicou do trono em favor de sua irmã Dircinha. Marlene, eleita em
1949, Dalva de Oliveira, eleita em 1951, e Emilinha Borba, eleita em 1953, foram escolhidas quando o concurso
era realizado pela Revista do Rádio em parceria com a Associação Brasileira dos Radialistas a partir da venda de
cupons trazidos pela publicação.
734
Emilinha Borba não excursionou fora do Brasil no período analisado da publicação, entre 1948 e 1959.
populares vencidos, remunerações recebidas em excursões, filmagens e contratos com
emissoras de rádio, gastos com figurinos, meios pelos quais se mantinham em contato com seus
fãs, mas também compreender fatores que fizeram com que as quatro cantoras alcançassem o
patamar de ídolos e quais os esforços despendidos por elas para se manterem como tais.

CONCLUSÃO

Procurou-se com esta apresentação realizar um breve panorama sobre a formação de


meios de comunicação relevantes para as carreiras das quatro cantoras aqui estudadas, Linda
Batista, Dalva de Oliveira, Emilinha Borba e Marlene. Tal análise coloca em pauta
acontecimentos políticos ocorridos no Brasil nas primeiras décadas do século XX que foram
relevantes para tais desenvolvimentos.

Tal panorama se faz necessário à medida que estes meios de comunicação analisados se
mostraram os mais importantes para as carreiras das cantoras, mas também porque os elementos
políticos e intelectuais, que levaram à escolha do samba como música representante da nação,
do rádio como meio de comunicação central da política de Getúlio Vargas e do cinema como 124
meio de exaltação nacional, foram determinantes para que estas mulheres tivessem suas 7
carreiras desenvolvidas a partir destes três elementos e seus sucessos ficassem até os dias de
hoje atrelados ao sucesso destes meios de comunicação e deste ritmo musical frente ao público
popular.

Com isso, realizou-se também uma breve análise sobre a inserção dessas cantoras na
Rádio Nacional, emissora principal do período aqui relatado, nas chanchadas, estilo de
produção cinematográfica nacional mais vista pelo público na década de 1950 e na Revista do
Rádio, segunda publicação mais lida no país na mesma década e que mais destaque dava aos
ídolos do rádio.

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3ª ed.
A CARTOGRAFIA E AS FRONTEIRAS DO FOLCLORE MUSICAL

Luã Ferreira Leal *735

RESUMO

Na condição de cartógrafos do folclore musical, Renato Almeida (1895-1981), Luiz Heitor


Corrêa de Azevedo (1905-1992) e Oneyda Alvarenga (1911-1984) contribuíram para a
consolidação das pesquisas sobre especificidades da formação cultural brasileira. Entre as
décadas de 1930 e de 1950, o exercício intelectual dessa geração era circunscrever os limites
da música folclórica e estabelecer padrões classificatórios. Nesse período, as definições sobre
música popular e folclórica foram formuladas a partir de estudos etnográficos, pesquisas de
campo para coleta de material e análises musicológicas. O objetivo deste trabalho é
compreender como foram delimitadas fronteiras entre música popular e música folclórica, por
um lado, e entre música “nacional” e “estrangeira”, por outro, nas atividades dos três autores
em instituições culturais. Do grupo de Mário de Andrade no Departamento de Cultura, Oneyda
Alvarenga foi a primeira diretora da Discoteca Pública, publicou monografias como “Cateretês
do Sul de Minas Gerais” (1937) e o livro “Musica Popular Brasileña”, editado no México pelo 125
Fondo de Cultura Económica (1947). Bibliotecário no início da carreira na Escola Nacional de
Música, Luiz Heitor posteriormente assumiu a cátedra de Folclore e fundou o Centro de 0
Pesquisas Folclóricas na mesma instituição. Na década de 1940, esteve envolvido com as seções
responsáveis por pesquisas de música na Pan-American Union e na Unesco. Renato Almeida,
funcionário do Ministério das Relações Exteriores, ocupou a chefia do Serviço de Informações
e do Serviço de Documentação. Estruturou a Comissão Nacional de Folclore em 1947 e foi
delegado no International Folk Music Council e no Centre International des Arts et Traditions
Populaires. Inseridos em redes institucionais organizadas nacional e internacionalmente, esses
autores foram responsáveis pela demarcação dos critérios da música folclórica em arenas de
disputas intelectuais a partir da década de 1930 e colaboraram na fundação da Academia
Brasileira de Música, idealizada por Heitor Villa-Lobos, em 1945.

Palavras-chave: folclore musical; intelectuais; instituições culturais.

INTRODUÇÃO

* Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia no IFCH/Unicamp. Bolsista da Fapesp.


Email: lferreiraleal@gmail.com.
O espaço é um dos eixos norteadores do trabalho de folcloristas. Cada unidade espacial
passa a ser dotada de um sistema explicativo próprio. Em termos metodológicos, o mapeamento
musical requer a criação de zonas de estudo. As regiões de incidência de determinadas práticas
e hábitos culturais, classificados após as pesquisas de campo e a compilação de dados, recebem
tratamento como zonas que explicariam as comunidades estudadas. Essa aposta no caráter
heurístico da zona de estudo e de coleta de material folclórico Nascidos entre o final do século
XIX e o início do século XX, Renato Almeida, Luiz Heitor Corrêa de Azevedo e Oneyda
Alvarenga, folcloristas, musicólogos e fundadores da Academia Brasileira de Música, tinham
posicionamentos comparáveis no que concerne ao método de pesquisa. Em profícua atuação
entre as décadas de 1930 e 1950, integraram uma geração de folcloristas e musicólogos que
adotou como prioridade a criação de categorias classificatórias para a sistematização de
pesquisas sobre música. Em artigos, monografias e ensaios historiográficos, os procedimentos
de criação de categorias explicativas sobre a recorrência de determinadas práticas em territórios
circunscritos explicitam as formas de construção de fronteiras.

Seja entre música nacional e estrangeira, seja entre música popular e folclórica, as
fronteiras demarcam os limites e estabelecem sentidos para as práticas musicais. Compreender 125
os modos de construção de delimitações que separam as categorias é o objetivo central desse
1
trabalho. Estudos etnográficos, pesquisas de coleta e análises musicológicas serviram de apoio
para que essa geração, contemporânea aos estudos de Mário de Andrade e, por conseguinte, dos
movimentos de nacionalismo musical, estabelecesse uma cartografia do folclore musical. As
pesquisas de Luiz Heitor, Renato Almeida e Oneyda Alvarenga orientaram, de certo modo, os
olhares para as especificidades da formação cultural do Brasil.

A circunscrição de zonas culturais mediante a demarcação de fronteiras foi estimulada


por órgãos culturais do Brasil, como a Academia Brasileira de Música, e internacionais, como
a Unesco e a União Pan-Americana. O resultado final de processo de estabelecimento de linhas
divisórias entre as muitas formas de cantar, dançar e executar instrumentos foi o
estabelecimento de uma área específica de estudos: a música popular nas cidades. O exercício
intelectual dessa geração promoveu a separação entre música folclórica e música popular. A
cartografia e as fronteiras do folclore musical podem, segundo a hipótese deste trabalho, ser
compreendidas mediante o modo como instâncias legitimaram as categorias e os padrões
classificatórios estabelecidas por intelectuais como Renato Almeida, Luiz Heitor e Oneyda.
Nascidos, respectivamente, em 1895, 1905 e 1911, formaram a geração de fundadores da ABM
em 1945; quando se tornaram imortais, portanto, estavam com idades entre 34 e 50 anos.
Diferentemente de outras gerações de intelectuais que se debruçaram em estudos sobre a música
brasileira, o trio pertencia a um quadro de pesquisadores vinculados a novas instituições
culturais como a Unesco, o Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC) e o
Departamento de Cultura de São Paulo. Até a década de 1930, quem escrevia sobre música ou
estava inserido em órgãos de ensino, como a Escola Nacional de Música, ou era diletante. A
partir de então, ocorreu profissionalização, aliás, institucionalização, de setores da pesquisa
sobre a música e outras manifestações culturais no Brasil. Acompanhar a trajetória dos três
autores selecionados permitirá que a análise indique formas de circulação de ideias sobre
música e folclore no Brasil e em outros contextos intelectuais. Se muitas pesquisas folclóricas
eram criticadas por seu caráter de faceta do diletantismo, a partir de meados da década de 1930
fortaleceu-se o folclorismo como forma de interpretação sistemática dos processos sociais e das
representações coletivas.

125
Mapear para classificar 2
Sob a inspiração de Mário de Andrade, os três autores tratados neste trabalho assumiram
a responsabilidade de defender esforços de sistematização. Tiveram inserção em redes de
intelectuais internacionais e brasileiras, por isso o alcance de suas ideias sobre os critérios de
demarcação da mús ica folclórica não se limitaram às arenas de disputas sobre o tema no
Brasil. Os caminhos percorridos por Luiz Heitor evidenciam o modo como foram sedimentados
alguns princípios de pesquisa. Catedrático de Folclore e fundador do Centro de Pesquisas
Folclóricas, Luiz Heitor havia se matriculado como aluno no Instituto Nacional de Música em
1924. Nascido em 1905, ainda era jovem quando ocorreram alterações significativas no meio
de ensino musical entre as décadas de 1920 e de 1930. Sua participação na imprensa teve início
na década de 1920, sobretudo na crítica musical, mas sempre esteve ativamente vinculado ou a
periódicos de circulação restrita a um grupo de interessados ou de ampla abrangência. Integrou
o grupo de fundadores da Associação Brasileira de Música em 1930 e foi secretário da
instituição até 1934: nesse momento estava próximo a Lorenzo Fernandez e Antonieta de
Souza. Devido ao falecimento de Guilherme de Melo em 1932, autor de “A música no Brasil
desde os tempos coloniais até o primeiro decênio da república”, Luiz Heitor passou a ocupar o
cargo de bibliotecário do Instituto Nacional de Música. Publicado originalmente em 1908 pela
Tipografia São Joaquim na Bahia, o livro de Guilherme Theodoro Pereira de Melo teve uma
nova edição publicada em 1947 pela Imprensa nacional, com prefácio de Luiz Heitor, datado
de 1944. O prefaciador rende homenagens ao livro e “ao autor da primeira História da Música
em nossa terra”. O modo como os capítulos foram divididos por Guilherme de Melo
demonstram um esforço de tipificar “influências”: influência indígena, influência portuguesa,
africana e espanhola, influência bragantina, período de degradação e influência republicana. A
segunda edição, sem revisão aprofundada do texto, foi publicada cinco anos após Renato
Almeida ampliar e alterar seu livro “História da Música Brasileira”.

Sem pormenorizada análise das vastas obras de Luiz Heitor, Renato Almeida e Oneyda,
este trabalho lida com as questões centrais no conjunto de formulações dessa tríade. Integravam
círculos intelectuais com alguma proximidade e avaliavam algumas obras como clássicas para
os estudos sobre música no Brasil, por isso seus casos são exemplares para a análise da
conformação de categorias e campos de estudos música folclórica e música popular. Isso 125
envolve não apenas uma circunscrição de limites no mercado de ideias, mas também a
3
conformação de métodos e teorias com legitimidade para estudar a música no Brasil. Conforme
Luiz Heitor avalia em seu prefácio à segunda edição de “A música no Brasil”:

Pereira de Melo tornou-se um clássico de nossas letras musicológicas. Com todas as


suas imperfeições, com todas as suas deficiências, sua obra é a de um pioneiro, que
desbravou os caminhos que outros mais tarde trilharam. Não resta a menor dúvida de
que este livro é um foco indicador de referências. Dele derivam os grossos volumes
de Cernicchiaro e os de Renato Almeida, que são os mais importantes, versando o
assunto (Azevedo, Luiz Heitor Correa de in: MELO, 1947: VII-VIII).

Fundador de instituições como Associação Brasileira de Música e Academia Brasileira


de Música, editor de periódicos como a Revista Brasileira de Música, criada em 1934 quando
Luiz Heitor já havia assumido como bibliotecário do Instituto Nacional de Música, seu papel
não se restringiu às pesquisas de gabinete. Fundado em 1943, o Centro de Pesquisas Folclóricas
na Escola Nacional de Música, antigo Instituto Nacional de Música, foi idealizado por Luiz
Heitor durante a direção de Agnelo França. Entre 1942 e 1945, suas pesquisas de campo
ocorriam sempre em companhia de outros especialistas: Renato Almeida, Eurico Nogueira
França e Enio de Freitas e Castro. Cruzou os estados de Goiás, Minas Gerais, Ceará e Rio
Grande do Sul, depois publicou vários de seus estudos na revista Cultura Política: “O ‘recortado
na Moda Goiana”, “Violas de Goiás” em 1943, “A ‘Catira’ em Goiás”, “Música Popular
Nordestina” em 1944, entre outros estudos monográficos. A pesquisa de campo efetuada em
Goiás, em 1942, teve como parceiro de expedição Renato Almeida (MARIZ, 1983). Em termos
de pesquisa folclórica, as viagens eram o procedimento metodológico que assumia maior
caráter de exatidão científica, concediam unidade e identidade epistemológica a heterogêneos
estudos cunhados como folclóricos. A prática de ir a campo ou a leitura de monografias e relatos
de viagem de outrem eram inevitáveis para que folcloristas tornassem seu nome reconhecido
entre pares.

Funcionário do Ministério das Relações Exteriores desde 1927, Renato Almeida


assumiu lugar institucional privilegiado como estruturador da Comissão Nacional do Folclore
em 1947, vinculada ao IBECC, também foi delegado do International Folk Music Council e do
Centre International des Arts et Traditions Populaires. Teve carreira na imprensa, assim como 125
Luiz Heitor, mas sua vida profissional se consolidou no Itamaraty onde ocupou postos no
4
Serviço de Imprensa, integrou missões culturais, foi professor de português no Instituto Rio
Branco, e, em 1953, chefiou o Serviço de Documentação.

Em 1947, Luiz Heitor era professor de Folclore Nacional na Escola Nacional de Música,
quando recebeu o convite para o Congresso Luso-Brasileiro de Folclore, a ser realizado em
Portugal, ao lado de Luís da Câmara Cascudo e Renato Almeida. O IBECC havia sido criado
em 1946 como comissão nacional da Unesco, Luiz Heitor era o segundo secretário do órgão.
Secretária da Music Educators National Conference, Vanett Lawler assumiu o lugar de Gustavo
Durán na Divisão de Artes e Letras da Unesco e convidou Luiz Heitor, a quem conhecera em
Washington na União Pan-Americana, para a secretaria da Unesco em Paris. Em fevereiro de
1948, formalmente tinha início a trajetória de Luiz Heitor como funcionário da Unesco

Oneyda Alvarenga já havia sido aluna de Mário de Andrade no Conservatório


Dramático e Musical de São Paulo, posteriormente integrou o grupo de jovens intelectuais mais
próximos a seu mentor intelectual. Quando o Departamento de Cultura, sob direção de Mário,
iniciou suas atividades na cidade de São Paulo, Oneyda tornou colaboradora da instituição, na
condição de primeira diretora da Discoteca Pública.

Com tipos de vinculação institucional diferente, Luiz Heitor e Renato Almeida, ambos
envolvidos com diplomacia cultural, também propuseram métodos de classificar para ampliar
a abrangência dos estudos sobre música no Brasil. Este ponto é importante, afinal, Oneyda se
tornou reconhecida por sua obra como folclorista e como herdeira autorizada da tradição
interpretativa de Mário de Andrade. Luiz Heitor e Renato Almeida também explicitaram várias
das aproximações entre suas respectivas obras e a do autor do “Ensaio sobre a música
brasileira”. Esse título, aliás, foi publicado em 1928, mesmo ano de “Macunaíma”. A
dedicatória de “Ensaio sobre a música brasileira” destina-se a Dona Olívia Guedes Penteado ao
passo que “Macunaíma” a Paulo Prado, sobrenomes que se entrecruzam nas dedicatórias de
ambos os livros publicados por Mário de Andrade em 1928 e que influenciariam também a
criação de órgãos culturais na cidade de São Paulo. Afinal, foi imprescindível o apoio político
do Prefeito Fábio Prado para a criação do Departamento de Cultura.

Para suas práticas de mapeamento, os folcloristas necessitavam do acúmulo de dados,


por isso, ou liam relatos de pesquisa, ou saíam a campo para o desenvolvimento de novas frentes
125
de pesquisa. No exercício intelectual dos folcloristas, mesmo quando situados em gabinetes de 5
pesquisa, as viagens de coleta de material estão no centro de um imaginário de quem deseja
conhecer in loco o povo e suas tradições. Os textos, as viagens, os encontros intelectuais e suas
passagens por diferentes instituições culturais serão tomados como indícios – rastros –
retomados para a construção dos eixos temáticos deste trabalho: a importância do mapeamento
para definir áreas de pesquisa e as implicações dessa prática para selecionar o que era definido
como popular ou folclórico entre as décadas de 1930 e 1950.

Desse modo, interessa avaliar como o mapeamento era tarefa precípua para os atos de
classificação: nacional ou regional, brasileiro ou estrangeiro, popular ou folclórico. Essas
clivagens se petrificaram nas análises mediante as interpretações autorizadas de musicólogos
com interesse no folclore musical. As trajetórias de Luiz Heitor e de Renato Almeida explicitam
o modo como a circulação de intelectuais e de ideias acompanha sempre está relacionada ao
universo de possibilidades.
Prefaciar é um sinal de prestígio, aliás, de transmissão de reconhecimento de intelectuais
consagrados para as novas gerações. Luiz Heitor prefaciou a primeira biografia escrita sobre
Villa-Lobos, escrita por Vasco Mariz e publicada em 1948 (1949), e, do mesmo autor, a História
da Música no Brasil (1981). Vasco Mariz, dois anos após esse lançamento, publicaria “Três
musicólogos brasileiros: Mário de Andrade, Renato Almeida e Luiz Heitor Correa de
Azevedo”, edição da Civilização Brasileira em convênio com o Instituto Nacional do Livro no
90ª aniversário de nascimento de Mário de Andrade.

A circulação de ideias e de intelectuais permitiu que fossem fomentadas categorias


explicativas adotadas por uma geração de intelectuais que se detiveram a classificar a música
brasileira como popular ou folclórica. As viagens para coleta de material, as pesquisas de campo
e de encontro com o “povo” no Brasil foram as principais propagadoras de fórmulas para
explicar as influências culturais da música brasileira. Com as viagens das ideias sobre
folclórico, é possível analisar como o trânsito internacional possibilitou que intelectuais
trocassem informações em variados contextos nacionais sobre metodologia de pesquisa. A
partir da próxima seção, analisarei apenas o livro “Música Popular Brasileira” de Oneyda
Alvarenga. 125
6
Brasileiro, popular ou folclórico

Antes da primeira edição “Musica Popular Brasileña” no México em 1947, Oneyda já


havia escrito o capítulo “Notes on Forms of Brazilian Music” para a coletânea “Brief Notes on
Music in Eight Countries of Latin America: A report of a Flying Trip to Brazil, Costa Rica,
Honduras, Guatemala, Mexico, Nicaragua, Panama, and El Salvador”, publicado pelo “United
States Office of Inter-American Affairs”. Primeira agraciada com o Prêmio Fábio Prado,
Oneyda Alvarenga, nascida em Varginha (MG) em 1911, encontraria seu espaço de inserção
nos círculos de intelectuais na cidade de São Paulo. Fundadora da Academia Brasileira de
Música, instituição criada em 1945, Oneyda Alvarenga ocupava a cadeira número 4, cujo
patrono era o organista e compositor mineiro do século XVIII José Joaquim Emerico Lobo de
Mesquita736. Participou da Comissão Nacional do Folclore, ocupou cargo de diretoria na
“Association International des Bibliotheques Musicales” e membro correspondente do
“International Folk Music Council”. Alguns anos depois da publicação de “Música Popular
Brasileira”, integraria a comissão responsável por debater os limites entre a música folclórica e
a música popular durante o Congresso Internacional do Folclore, quando apresentou a
comunicação “Música Folclórica e Música Popular”. Nesse evento realizado em 1954 na cidade
de São Paulo, a comissão era formada por Maud Karpels, folclorista inglesa, Jaap Kunst,
etnomusicólogo holandês, Egon Kraus, professor alemão de música, Francisco Curt Lange e
Douglas Kennedy, folclorista inglês. No mesmo ano, publicou a “Discografia folclórica
brasileira” no catálogo preparado pelo “International Folk Music Council”.

A encomenda da Fondo de Cultura Económica estava relacionada a uma série de textos


em espanhol sobre “aspectos culturais da América Latina”: a coleção “Tierra Firme”
(ALVARENGA, 1950: 11). Lançado originalmente em versão reduzida pela editora mexicana
Fondo de Cultura Económica em 1947, três anos depois seria publicada a edição brasileira pela
Editora Globo. Essa coleção, publicada pelo Fondo de Cultura desde meados da década de
1940, ainda fornece um amplo repertório de textos de intelectuais latino-americanos publicados 125
pela editora mexicana. Entre as publicações de brasileiros na coleção “Tierra Firme”, além de
7
“Musica Popular Brasileña” em 1947, “Guerra dos Palmares” de Edison Carneiro e “La
alimentación en los trópicos” de Josué de Castro, ambos em 1946, “Panorama de la poesía
brasileña” de Manuel Bandeira em 1951 e a primeira tradução para o espanhol de “Raíces del
Brasil” de Sergio Buarque de Hollanda em 1955. Em 1953, a editora italiana Sperling & Kupfer
traduziu o livro de Oneyda Alvarenga com o título “Musica popolare brasiliana”. Em 1960,
uma década após a primeira edição no Brasil, a Editora Globo lançou a primeira reimpressão.
Principal livro de Oneyda Alvarenga, “Música Popular Brasileira” foi publicado no Brasil em
1950 pela editora Globo. Em 1982, foi publicada a segunda edição pela editora Duas Cidades,
no âmbito da Coleção “O Baile das Quatro Artes”, coordenada por Gilda Mello e Souza e José
Petronilo de Santa Cruz.

Oneyda Alvarenga, Primeira Detentora do Prêmio “Fabio Prado”. Correio Paulistano, 21/08/1955, Suplemento:
736

pgs. 8-9.
A bibliografia selecionada fornece uma série de indícios acerca de quais as leituras
obrigatórias para quem quisesse adentrar nessa arena de debates sobre a música popular e a
folclórica, entendidas como esferas distintas, embora relacionadas. Após uma breve
“Explicação”, com considerações metodológicas e definição conceitual, o livro foi dividido em
oito partes: origens, danças dramáticas, danças (batuque, samba, lundu, danças de roda, danças
em fileiras opostas), música religiosas, cantos de trabalho, jogos (jogos coreográficos, capoeira
e cantos de bebida), cantos puros e, por fim, música popular urbana. O oitavo capítulo, dedicado
à música popular urbana, foi subdividido em modinha, maxixe e samba, choro e marcha-frevo.
Há, antes da bibliografia, as notas sobre instrumentos citados e a relação das fotografias dos
instrumentos.

A longa lista de trabalhos consultados por Oneyda Alvarenga serve como mapa das
tradições intelectuais vinculadas a debates sobre cultura brasileira e folclore. Alguns dos autores
que se converteram no decorrer em clássicos das reflexões sociológicas e antropológicas no
Brasil aparecem como fornecedores de informações sobre práticas culturais dos negros no
Brasil: Arthur Ramos (O folclore negro do Brasil de 1936 e A aculturação negra no Brasil de
1942), Gilberto Freyre (a terceira edição de Casa-Grande & Senzala de 1938, cinco anos após 125
o primeiro lançamento), Edison Carneiro (Religiões Negras de 1936), Nina Rodrigues (O
8
animismo fetichista dos negros na Bahia e a segunda edição de Os africanos no Brasil, ambos
de 1935) e Manuel Diégues Junior (Danças Negras no Nordeste, texto inserido na coletânea O
Negro no Brasil). A esse conjunto de textos, Oneyda acrescentou o universo dos cronistas
urbanos e suas informações sobre os hábitos das ruas desde o final do século XIX: de Melo
Morais Filho, História e costumes (livro citado sem data), Cantares brasileiros (1900), Festas e
tradições populares do Brasil e Serenatas e saraus (ambos de 1901); de Paulo Barreto (João do
Rio), A alma encantadora das ruas e As religiões no Rio, ambos os livros de 1910; e, por fim,
de Luís Edmundo, O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis, de 1932.

Além desses dois blocos temáticos, formado por estudos sobre cultura no Brasil,
especialmente as “religiões” e o “folclore negro”, e por cronistas urbanos, sobretudo aqueles
que escreviam sobre a cidade do Rio de Janeiro, sede da Corte Imperial, primeira capital da
República e cidade que aspirou status de modernidade no início do século XX, há os conjuntos
de ensaios historiográficos sobre a música no Brasil e de estudos monográficos sobre folclore.
No primeiro grupo, é possível averiguar a presença de Guilherme Teodoro Pereira de Melo com
A Música no Brasil de 1908, de Mário de Andrade com Ensaio sobre a música brasileira de
1928 e Pequena história da música de 1942, de Renato Almeida com a segunda edição de
História da música brasileira de 1942 – a primeira edição havia sido publicada em 1926. Por
fim, um grande número de estudos de folcloristas sobre temas específicos: Estudos de folclore
de Luciano Gallet (1934), Elementos de folclore musical brasileiro de Flausino Rodrigues Vale
(1936) e Vaqueiros e cantadores de Luís da Câmara Cascudo (1939), além do artigo A “catira”
em Goiás de Luiz Heitor Correa de Azevedo, publicada na revista Cultura Política em 1944.

O material analisado por Oneyda Alvarenga foi coletado enquanto o Departamento de


Cultura de São Paulo, ainda sob liderança de Mário de Andrade, enviava representantes para
encontros intelectuais e desenvolvia projetos de investigação como a Missão de Pesquisas
Folclóricas. O texto de Manuel Diégues Junior Danças Negras no Nordeste, citado por Oneyda,
foi apresentado na coletânea de trabalhos do II Congresso Afro-Brasileiro, intitulada O Negro
no Brasil. A organização do livro ficou a cargo de Edison Carneiro e Aydano do Couto Ferraz,
a publicação ocorreu em 1940. Camargo Guarnieri foi enviado pelo Departamento de Cultura
para o II Congresso Afro-Brasileiro, realizado em Salvador em 1937. No mesmo ano, o 125
Departamento o Congresso da Língua Nacional Cantada, cujos encontros ocorreram no foyer
9
do Theatro Municipal de São Paulo e a Sociedade de Etnografia e Folclore havia enviado para
o Congresso Internacional de Folclore em Paris o Etudes Cartographiques des Tabous
Alimentaires et des Danses Populaires, produzido por uma comissão após realização de
inquérito de práticas culturais.

Conforme avaliado anteriormente, para Oneyda Alvarenga os métodos folcloristas não


poderiam ser transpostos sem considerar as “circunstâncias da vida brasileira” (Ibidem: 283),
ou seja, o “Brasil não possuiria uma verdadeira música folclórica” (Ibidem: 27). Os “cantos
tradicionais”, os quais foram definidos como “transmitidos de geração a geração e comuns pelo
menos a uma certa região”, não existiriam no Brasil mas “processos já fixados de criação
musical” de “uma música que, se não é folclórica, é perfeitamente popular”. Ainda de acordo
com a autora sobre a música brasileira, “provenha ela do norte ou do sul do país, todos nós a
reconhecemos como intimamente nossa”.
Conforme avalia Oneyda Alvarenga sobre a “música dos aborígenes”, música “primitiva
[...] ligada a cerimônias e a atividades de que dependia diretamente a vida da tribo” (Ibidem:
18), como menos relevante para explicar os “costumes musicais” pois teria deixado “poucas
marcas evidentes” devido à catequese e a escravidão do “aborígene”. Desse modo, há uma
hierarquia entre “contribuições” de cada raça e outra para os objetos de análise de folcloristas.
Caldeamento é a palavra que expressa e sintetiza a noção de mistura das raças formadoras da
cultura brasileira:

Do caldeamento dessas contribuições, ou melhor, da incorporação de certos elementos


da música ameríndia e negra à estrutura básica fornecida pelo português, assumiu pois
a música folclórica brasileira o seu caráter próprio e, por meio dela, também a nossa
música erudita que a utilizou para se nacionalizar (Ibidem: 22).

A demarcação das fronteiras

Em 1945, ano que seria marcado no plano político pela queda de Getulio Vargas e, por
conseguinte, do final do Estado Novo, houve um encontro nas trajetórias de Oneyda, Luiz
Heitor e Renato Almeida. A Academia Brasileira de Música (ABM), invenção institucional de
126
Heitor Villa-Lobos, seu primeiro presidente, teve entre seus fundadores musicólogos, 0
educadores de música e compositores. O limite do recorte temporal desta análise será a
fundação da ABM; foi essa instituição um ponto de convergência de ideias sobre a música
brasileira que cruzava referências teóricas heterogêneas, sendo três nomes de relevo, seja por
sua posição privilegiada no quadro institucional brasileiro, seja pela permeabilidade de suas
interpretações em arenas internacionais do debate sobre folclore. Sem atribuir um sentido único
a todas as suas obras, este esforço de análise buscou compreender um movimento, um processo
social que explicita o modo como as ideias circularam transpassando fronteiras e criando os
limites a respeito do que é música folclórica a partir de pesquisas realizadas no Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVARENGA, Oneyda. Música popular brasileira [1950]. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades,
1982.
MARIZ, Vasco. Três Musicólogos Brasileiros. Rio de Janeiro, Brasília: Editora Civilização
Brasileira; Instituto Nacional do Livro, 1983.

MELO, Guilherme. A música no Brasil desde os tempos coloniais até o primeiro decênio
da república [1908]. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947.

126
1
A NOVA HISTÓRIA E A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: A CONSTRUÇÃO DE UM
ELO ENTRE TEORIA E PRÁTICA*737

Lilian Simone Souza Pires738

Taciane Neres Moro739

Ronaldo Bernadino Colvero740

RESUMO
A algumas décadas, diferentes autores, veem proporcionando reinterpretações históricas com
tendências e visões historiográficas que se opõem, a história tradicional, principalmente no que
diz respeito a historiografia gaúcha de origem positivista. Identificamos a necessidade de
fomentar debates em torno do ensino de história que se aplica a educação básica,
especificamente, na região da fronteira oeste do estado do Rio Grande do Sul. O presente
trabalho tem como objetivo, no primeiro momento, recapitular algumas definições da Nova
história, por Jacques Le Goff e da História Problema sob a visão de Peter Burke. Dentro desta
perspectiva iremos refletir sobre a necessidade de uma educação patrimonial como meio
aplicável na disciplina de história dentro do componente curricular, proporcionando assim, uma
abordagem interdisciplinar como tema transversal ao currículo obrigatório. Com a metodologia
126
qualitativa selecionada para a realização desta pesquisa, busca-se possibilidades para a
construção de um conhecimento histórico contextualizado na educação básica que atenda as 2
novas tendências historiográficas da contemporaneidade.

Palavras chaves: Educação patrimonial, interdisciplinaridade, Nova História.

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


² Acadêmica do Curso de Ciências Humanas; Universidade Federal do Pampa – Campus São Borja. Bolsista capes
ID do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). Membro do grupo de pesquisa "Relações
de fronteira: história, política e cultura na tríplice fronteira Brasil, Argentina e Uruguai".
lilisouzapires@gmail.com.
739
Acadêmica do Curso de Ciências Humanas - Campus São Borja. Membro do grupo de pesquisa "Relações de
fronteira: história, política e cultura na tríplice fronteira Brasil, Argentina e Uruguai". tacianenmoro@hotmail.com.
740
Professor Doutor Adjunto IV da Universidade Federal do Pampa – Campus São Borja no curso de Ciências
Sociais – Ciência Política e Ciências Humanas – Licenciatura. Coordenador do grupo de pesquisa “Relações de
fronteira: história, política e cultura na tríplice fronteira Brasil, Argentina e Uruguai”. Professor dos programas de
Pós-Graduação de Políticas Públicas da UNIPAMPA e Memoria Social Cultural da UFPEL.
rbcolvero@gmail.com .
INTRODUÇÃO

As reinterpretações históricas estão se tornando cada vez mais populares no campo da


historiografia, especialmente na segunda metade do século passado. Por volta do final da década
1920. Iniciou-se na França, um processo de ascensão na diversidade interpretativa da
historiografia. Abre-se campo para o estudo da história da diversidade humana, das minorias,
das diferentes culturas e porque não dizer dos diferentes povos que ainda não haviam tido sua
história contada.

Esta tendência, denominou-se nova história e seus principais precursores foram os


fundadores da revista Annales d’histoire économique et sociale, Lucien Febvre e Marc Bloch
marcando o surgimento da Escola dos Annales741.

A primeira geração da Escola dos Annales, ficou mundialmente conhecida pela


enfática discussão sobre a renovação historiográfica, ou seja, a maneira de se fazer história e a
necessidade de criação de outros métodos. Na segunda geração, o movimento é levado a frente
por Fernand Braudel que assume a direção da revista em 1959 após a morte dos seus fundadores. 126
Já na terceira geração que transita entre os anos de 1968 a 1989 diversos nomes estiveram à
frente das pesquisas desenvolvidas pelos Annales, entre eles destacamos Jacques Le Goff pela
3
proposta do trabalho interdisciplinar elencada por Lucien Febre desde a primeira geração, como
prática indispensável no campo da história.

Compreender a influência que o movimento dos Annales inspirou a partir das


abordagens laterais que tenta fugir ao factual, torna-se de grande importância, especialmente
quando se quer transpor certo conhecimento de uma nova história para uma escola nova742.

741
O que caracteriza uma escola conforme Jose D’ Assunção Barros, seria uma espécie de corrente de pensamento,
práticas relativas a determinado campo do saber, ou de ação humana. É a formação de uma determinada identidade
para um campo de escolhas (teóricas, metodológicas, temáticas, éticas, associativas, geradoras de inclusão e
exclusão) que permite ao praticante do campo sintonizar-se com outros que a ele se assemelham nas mesmas
escolhas. (BARROS 2012 p.15)

742
A Escola nova foi um movimento que teve início a partir do Manifesto dos pioneiros da Nova Educação (1932).
Este documento tornou-se público redigida por Fernando de Azevedo e por mais 26 educadores e intelectuais.
Tendo como marca a diversidade teórica e ideológica do grupo que a concebeu, apresentando ideias consensuais
sobre para a construção de um programa educacional em âmbito nacional seguindo princípios de uma escola
As renovações do conhecimento histórico no Brasil, vem sendo intensamente
debatidas pela gama de autores ligados a área, a partir da década de 1960 – 1970 as
reinterpretações históricas tomam forma de uma historicidade maxista-futurista, uma produção
de conhecimento que segundo José Carlos Reis (2012), segue uma linha em que o historiador
torna-se “empático com as lutas sociais do presente-futuro” (BARROS, 2012, p.125). Nos anos
que seguiram a década 1980, a história passa a ter uma intepretação presentista, caracterizada
pela ênfase antropológica sobre a experiência do tempo (HARTOG, 2003), ou seja, uma
concepção absoluta do tempo presente, peculiaridade encontrada na contemporaneidade
especialmente após 1989.

Na história do Rio grande do Sul, em especial, os acontecimentos históricos relativos


à fronteira oeste, tiveram fortes influencias pautadas na geopolítica743. Os desfechos históricos
inicialmente representavam o domínio do espaço, para efetivar os interesses comerciais dos
colonizadores europeus.

Nesse sentido a história do Rio Grande do Sul, demostra forte influência positivista

126
744
em suas análises que enfatiza a história política, e dessa maneira por vezes cabe pouco
destaque as organizações sociais dos povos que aqui estavam quando a era europeia se iniciava
no sul da América do Sul. 4
A educação patrimonial aplicada como tema transversal, ou mesmo aglutinada a
disciplina de história corresponde a perspectiva da nova história e também da história problema
na definição de Peter Burke (1992). Uma análise que visa destacar a micro história, a exemplo
a história regional e local, vinculando-a a história macro, no caso, a global ou história mundial.

De forma interdisciplinar, propõe uma metodologia que destaca o contexto; político,


social, econômico e cultural. E adquire intensidade com abordagens que tentam aproximar a
trajetória histórica regional fronteiriça, em especial, o oeste do Rio Grande do Sul, com a

pública, leiga, obrigatória e gratuita para ambos os sexos. Levando em consideração os aspectos biológico,
psicológicos, administrativos e didáticos para um bom processo educacional e seu desenvolvimento (SHIROMA,
2011p.20)
743
Ler mais em HEISFELD, Adelar. Fronteira Brasil/Argentina: a questão de Palmas . Passo Fundo: Méritos,
2007.
744
A produção historiográfica na concepção positivista corresponde a crença na neutralidade diante do objeto de
estudo. Paradigma tradicional posto em circulação pelo o historiador de ciência Thomas Kuhn, a qual, também o
descreve como paradigma ligado ao historiador alemão Leopold Van Ranke, (BURKE, 1992 p.12).
realidade atual vivenciada pelos alunos (as) na educação básica. Busca-se realçar e fomentar a
reflexão na importância de se estabelecer um elo entre o passado e o presente e os frutos da
conjuntura histórica característica da região em destaque através da educação patrimonial.

5. A nova história e um novo olhar historiográfico


O movimento de renovação historiográfica iniciado a partir de 1920 dá início a um
novo tipo de história, futuramente conhecida como história problema segundo as definições de
Peter Burke em A escrita da história: novas perspectivas no ano de 1992. Num contexto pós
guerra, onde pulsavam ânsias por renovações. Surge um novo movimento, onde parte dos
intelectuais constatam que a história produzida até início do século XX é ineficaz em suas
explicações diante das transformações que vinha ocorrendo em âmbito mundial.
Os autores ligados a Escola dos Annales, entre eles os pioneiros Marc Bloch e Lucien
Febvre, irmanaram-se para demostrar que a história econômica, cultural e social entre outras
tantas é equivalente em importância sendo capaz de atingir os mesmos patamares científicos do
paradigma tradicional de Leopold Van Ranke historiador alemão do século XIX.
126
Décadas mais tarde, Jacques Le Goff, historiador francês, integra a terceira geração
dos Annales. Apresentou em sua publicação, Nova História o carácter de uma concepção
5
historiográfica que considera toda experiência e vivência humana como precursora de uma
história plausível a ser conhecida através dos tempos.

A nomenclatura do movimento da Nova história, deriva de três publicações


organizadas em conjunto com o também historiador francês Pierre Nora. Essa corrente
historiográfica também tem forte relação com outra teoria chamada História Total, pois as duas
sugerem grandes contrastes com a história que privilegiava a política. Le Goff esclarece que
“toda a forma de história nova é a tentativa de história total” (LE GOFF, 1990 p.27). É válido
ressaltar que a expressão, Nova História, também havia sido utiliza pelo historiador americano
James Harvey Robinson, em The New History, de 1912, em defesa da história total, porem esse
movimento não teve boa sucessão nos Estados Unidos naquela época.

As analises propiciadas pelo movimento da Nova história, “deve se orientar no sentido


das multiplicidades dos tempos históricos na elaboração de regras precisas” (LE GOFF, 1990
p.42) dirigindo-se aos fenômenos de longa duração das sociedades globais, libertando – dentro
dos paramentos científicos – a figura do historiador para buscar novas interpretações. Nesse
sentido, a educação patrimonial, a qual trataremos com ênfase no próximo tópico, se traduz em
um estudo necessário e método possível a ser aplicado na escola, tendo como objetivo a criação
de um elo entre o presente e o passado, possibilitando uma aproximação real da história com o
ensino de história, pois:

Não há realidade histórica acabada, que se entregaria a sí própria para o historiador


(...) Como todo homem de ciência, este, conforme a expressão de Marc Bloch, deve,
“diante da imensa e confusa realidade”, fazer a “sua opção” – o que, evidentemente,
não significa nem arbitrariedade, nem simples coleta, mas construção cientifica do
documento cuja analise deve possibilitar a reconstituição, ou a explicação do
passado. (LE GOFF, 1990 p.32)

Dois anos após Jacques Le Goff escrever seu livro A nova história, em 1990. O
historiador inglês Peter Burke produz importantes arranjos conceituais sobre o que seria A nova
história, ou melhor, o que não seria na opinião dele.
Para Burke A nova história é a “história escrita como uma reação deliberada contra o
‘paradigma’ tradicional” (BURKE,1992 p.2). Trata-se de um termo muito útil, mas é preciso
126
reconhecer sua a imprecisão. É preciso considerar as advertências de Burke pois a 6
complexidade dos fatores que influenciam na realidade podem ajudar percepção diante do
objeto de estudo analisado pela Nova história.
A diversidade de novas abordagens contidas na nova história, semeadas pós escola dos
Annales, caracterizam a Nova história com uma história total ou ainda como uma história
estrutural. Ocorre que, depois da primeira metade do século XX, houve grande ascensão da
história das ideias, e praticamente tudo passou a ser percebido pela história, do silencio à fala,
da infância à morte, da lucides à loucura, entre toda ação ou reação humana, e aquilo que antes
era considerado permanente, passou então a se percebe como uma “construção social”
(BURKE, Peter. 1992 p.2) onde a história se sujeita a diferentes variações tanto no tempo como
no espaço.

A Nova história popularizou-se nas décadas 1970 e 1980, entre historiadores além do
continente europeu. Sendo também utilizada por historiadores da Ásia e América Latina para
analisar e buscar explicações para acontecimentos e transformações, principalmente ocorridas
entre final do século XIX para XX.

É a forma de fazer história e a revisão dos seus métodos que leva a revisão
historiográfica iniciada pela Escola dos Annales. A partir do movimento ampliam-se visões
contextuais a respeito de todo tipo de tema, e sendo assim a abertura para o estudo da história
regional e local elencada pela Educação Patrimonial se ajusta precisamente na corrente
historiográfica proposta pela Nova história.

6. A educação patrimonial e os caminhos da interdisciplinaridade


A revista, Annales d’histoire économique et sociale lançada em Estaburgo, na França
em 1929, tinha como propósito “tirar a história do marasmo da rotina, em primeiro lugar de seu
confinamento de barreira estritamente disciplinares” (LE GOFF, 1990 p.29). Uma das grandes
transformações na forma de fazer história, implementadas após o surgimento da Escola dos
Annales, concentra-se, na problematização histórica que visa e possibilita a prática
interdisciplinar na área de Ciências Humanas.
A união existente entre a Nova história e a geografia humana já era ressaltada por
Lucien Febre. Para ele, o ofício de historiador era necessário “pensar tanto como historiador
126
como quanto geógrafo”745, considerando essências as aproximações da história nova com os 7
campos da filosofia, da literatura e das artes (LE GOFF, 1990 p.35).
Nesse sentido, buscamos evidenciar a proposta de um ensino de história
contextualizado, aspecto extensivamente fomentado no curso de Ciências Humanas –
Licenciatura da Universidade Federal do Pampa. As metodologias de ensino propostas de forma
interdisciplinar visam as características históricas e culturais da região da fronteira oeste do Rio
Grande do Sul, onde atualmente se localizam os municípios de São Borja, Itaqui e Uruguaiana.
Esta mesma região possui grande relevância histórica, ecoando ainda hoje como um importante
ponto estratégico das transações comerciais do Mercosul746.

745
L.Febre, “Deux amis geografes”, in Annales d’ histoire sociale (III, 1941). Reeditado em Combats pour
I’histoire (Paris, A. colin, 1993) apud LE GOFF, Jacques. A nova história. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

746
Mercosul é acordo comercial chamado de Tratado de Assunção, assinado pelo Brasil, Argentina, Uruguai, e
Paraguai, em 26 de março de 1991, a qual, o objetivo principal é a integração dos estados por meio da livre
circulação de bens, serviços e mercadorias. Para maior detalhes acessar: http://www.mercosul.gov.br/saiba-mais-
sobre-o-mercosul
A formação de professores no modelo interdisciplinar tem o objetivo de criar uma nova
relação entre a teoria e prática, tornando o conhecimento científico contextualizado a partir de
abordagens significativas que destacam as características históricas e culturais da região, sendo
assim, o patrimônio histórico da região pode ser utilizado como principal meio de aprendizado
na disciplina de história.

A mediação entre a teoria da história e prática escolar, a qual, nos propomos a dissertar
no presente trabalho, tem como bases mediadoras a interdisciplinaridade e a educação
patrimonial conforme seguem descrição contida no Projeto Político Pedagógico do curso de
Ciências Humanas – Licenciatura:

“...um contexto investigativo que favoreça a formação crítica e a integração de


campos de conhecimento científico e de outros saberes culturais, bem como a relação
harmoniosa da teoria e da prática e a percepção da ciência como construção social”
(Projeto Político Pedagógico do curso Licenciatura em Ciências Humanas. 2014
p.33).

Para Le Goff, a intensa renovação no campo da história com a prática de pesquisas 126
historiográficas de forma interativa com outras áreas das ciências humanas, e principalmente
8
interação com a geografia, sociologia e a antropologia leva a construção de um saber histórico
que não se pauta apenas estudo do passado (1990, p.28), logo interagindo por meios
interdisciplinares na construção do conhecimento.

Entretanto, é preciso observarmos que a ação interdisciplinar é complexa. A definição


de interdisciplinaridade como uma interação de duas ou mais disciplinas, é colocada em uma
visão extremamente ampla, por isso, evidenciamos o seguinte:

Verificamos que tal definição pode nos encaminhar da simples comunicação das
ideias até a integração mútua dos conceitos-chave da epistemologia, da terminologia,
do procedimento, dos dados e da organização da pesquisa e do ensino, relacionando-
os. Tal definição, como se pode constatar, é muito ampla, portanto não é suficiente
nem para fundamentar práticas interdisciplinares nem para pensar-se uma formação
interdisciplinar de professores (FAZENDA apud CERI, 2008 p.18).
Desta forma, para Fazenda (2008), a interdisciplinaridade não detém apenas em
relacionar disciplinas, a mesma deve ter embasamento sobre currículo escolar, didática, escola,
e principalmente deve ser culturalmente contextualizada. “Na interdisciplinaridade escolar, as
noções, finalidades habilidades e técnicas visam favorecer sobretudo o processo de
aprendizagem, respeitando os saberes dos alunos e sua integração” (FAZENDA, 2008 p.21).

As disciplinas escolares, em especial, a de história, contempla esses parâmetros da


interdisciplinaridade, cabendo ao professor a sensibilidade de observação, estabelecendo
aberturas para as ressignificações da realidade entorno do aluno.

Para Trindade (2008), a ciência desde o século XX conquistou importantes evoluções


que contribuíram para o desenvolvimento e bem-estar humano em diferentes esferas. Esse
progresso foi possível através da compartimentação da ciência e o desenvolvimento de
especializações. No entanto a fragmentação do conhecimento restringiu os saberes científicos,
de forma que não é possível obter respostas sobre o que é significante para a realidade social
das pessoas:
126
9
Na ciência moderna, eleita a condutora da humanidade na transição das trevas para
a luz, o conhecimento desenvolveu-se pela especialização e passou a ser considerado
mais rigoroso quanto mais restrito seu objeto de estudo; mais preciso, quanto mais
impessoal. Eliminando o sujeito de seu discurso, deixou de lado a emoção e o amor,
considerados obstáculos à verdade (TRINDADE, 2008 p.67).

No meio cientifico o conhecimento se tornou imparcial e descontextualizado da


realidade. No âmbito educacional, essa maneira de ratificar a cientificidade tornou o ensino
compartimentado e sem significado para as condições sociais dos alunos.

Por isso, considerando a perspectiva de renovação, o autor evidencia a ausência da


realidade histórica e cultural, as nossas essências no meio científico, pois não são considerados
significantes na construção do conhecimento:

Vivemos momentos de transição, de questionamentos, uma época em que nossos


saberes e nossos poderes parecem estar desvinculados. Mais do que isso, o saber
atual fragmentado dispersou-se pelo planeta, e o centro dessa circunferência que
antes era ocupado pelo homem se encontra, agora, vazio. O fantástico
desenvolvimento científico e tecnológico que ora vivenciamos também trouxe uma
preocupante carência de sabedoria e introspecção (TRINDADE, 2008, p.67).

No meio educacional a ciência deve ser construída em conjunto entre as disciplinas,


professores e alunos, escola e comunidade, a fim de contribuir para a formação cidadã dos
indivíduos. Para Santos e Acosta (2015), a interdisciplinaridade vem como um novo paradigma
para complementar o que as disciplinas fragmentadas não conseguem desenvolver, objetivando
uma maior aproximação entre aluno-escola-cotidiano.

Logo, os limites da fragmentação precisam ser ultrapassados, assim como a


individualidade, que já não tem eficácia nos métodos pedagógicos “o conhecimento se produz
no coletivo, na troca de experiências, de métodos, de ideias, de práticas pedagógicas e
reconhecimento do seu próprio limite” (SANTOS e ACOSTA, 2015 p.294).

7. O elo entre a teoria e prática no estudo da educação patrimonial 127


0
A região fronteira oeste do Estado mais especificamente a cidade de São Borja conta
com uma pluralidade histórica e cultural que provem de importantes acontecimentos históricos.
O município originou-se a partir das Reduções Jesuíticas do século XVII que tinham por
objetivo catequizar a etnia Guaraní, grupo dominante desse espaço territorial. No século XX,
São Borja destaca-se nas ligações com a identidade do estado brasileiro em formação no mesmo
século. Isso em decorrência de ser local de nascimento de dois presidentes do Brasil e por tanto
inclui-se uma identidade política ao município. Posto isso, o curso de Ciências Humanas –
Licenciatura propõe através da interdisciplinaridade o uso da Educação Patrimonial para
evidenciar todos os marcos históricos da cidade e região, afim de estabelecer a auto
identificação dos cidadãos são-borjenses com suas origens étnicas, culturais e históricas.

No documento redigido pelo governo federal para norteamento para do Programa Mais
Educação (2013)747, a educação patrimonial é responsável por interligar o patrimônio histórico

747
O Programa Mais Educação, instituído nas escolas desde 2008 atendendo principalmente escolas de baixo
IDEB e de zonas com vulnerabilidade social dispõe de cartilhas e documentos informativos acerca da educação
patrimonial.
com a sua região e seus habitantes, a partir dessa ação é possível “ampliar o entendimento dos
vários aspectos que constituem o nosso patrimônio cultural e o que isso tem a ver com formação
de cidadania, identidade cultural, memória” (PROGRAMA MAIS EDUCAÇÃO748, 2013, p.4).

Segundo este documento, a educação patrimonial pode ser trabalhada como tema
transversal nas escolas. Proporcionando a interação com as diversas áreas de conhecimento,
sendo possível a aproximação dos alunos da educação básica com o patrimônio histórico da sua
região, fazendo-os reconhecer e passando a valorizar os resquícios em seu entorno.

Como já mencionado anteriormente, a separação disciplinar restringe a aproximação


do conteúdo com a realidade regional do espaço a qual os alunos (as) estão inseridos. Desta
forma, a Educação Patrimonial pode estabelecer o elo de ligação entre os conteúdos pré-
determinados pelas disciplinas e o patrimônio histórico local e regional.

A transversalidade surge como a opção mais viável para possibilitar a introdução de


temas que não conseguimos trabalhar durante o período de aula já programado. Para Moraes
(2016), a transversalidade é um meio de ser iniciado a inserção de temas ou questões que não
são devidamente discutidos em sala de aula, sendo promovidos assuntos extraescolares. 127
Deve-se ter em mente que a educação patrimonial precisa contribuir com a formação 1
social do aluno, tendo um real sentido para a construção da sua identidade cultural. Zanon
(2009) deixa claro as disparidades que a educação patrimonial pode conceber sendo trabalhada
com enfoque em duas formas, a tradicional impositiva, e a educação transformadora.

A educação patrimonial impositiva resulta de um longo processo de homogeneização


da história brasileira. Neste processo, os fatos históricos são enfatizados a partir do momento
da colonização europeia, deixando de lado toda uma cultura e etnia que existiu e ainda existe,
e que fez parte da formação social, política e econômica do Brasil.

748
“O Programa Mais Educação, criado pela Portaria Interministerial nº 17/2007 e regulamentado pelo Decreto
7.083/10, constitui-se como estratégia do Ministério da Educação para indução da construção da agenda de
educação integral nas redes estaduais e municipais de ensino que amplia a jornada escolar nas escolas públicas,
para no mínimo 7 horas diárias, por meio de atividades optativas nos macrocampos: acompanhamento pedagógico;
educação ambiental; esporte e lazer; direitos humanos em educação; cultura e artes; cultura digital; promoção da
saúde; comunicação e uso de mídias; investigação no campo das ciências da natureza e educação econômica”.
(BRASIL. Ministério da educação, 2015).
Ao falar de educação patrimonial, deve-se levar em consideração que o Brasil possui
uma formação histórica composta por alta pluralidade cultural, A educação patrimonial
transformadora leva em consideração esse conceito, e procura evidenciar todas as formas de
cultura. Ela reconhece o contexto da formação social e histórica da sua localidade. Sendo assim,
torna-se necessário expor de forma sucinta o contexto histórico e cultural da cidade de São
Borja para contextualizar a explanação que nos propomos a realizar nesse trabalho.

Segundo Colvero e Severo (2016), durante o processo de colonização a coroa


espanhola juntamente com a Companhia de Jesus formaram os trinta Povos Jesuíticos-guaranis,
no qual sete destes, os denominados Sete Povos das Missões ficaram localizados no território
que atualmente compõe o Estado Rio Grande do Sul, sendo a primeira das sete reduções a São
Francisco de Borja criada em 1682.

Após 1801 os luso-brasileiros conquistam a ocupação definitiva na região “formando


o pequeno povoado pós-jesuítico, uma vez que nesta data as reduções missioneiras já haviam
sido destruídas ou abandonadas” (COLVERO e SEVERO, 2016 p.43).

Já no século XX, o fim do período histórico conhecido como República Velha que 127
durou até 1930 “um golpe de Estado colocou o são-borjense Getúlio Dornelles Vargas na
Presidência da República” (RONALDO e SEVERO, 2016 p.45). Mais tardar em 1961 após a
2
renúncia de Jânio Quadros, João Goulart, outro são-borjense assume a Presidência do País.749

Esses momentos históricos possuem uma forte ligação de identidade com a


comunidade são-borjense. Os patrimônios correspondentes aos períodos mencionados se
consolidaram e permanecem presentes no município até hoje.

Desta forma, a prática da educação patrimonial nas escolas pode e deve ser o meio
para que os cidadãos do município tenham contato direto com a relevância histórica da sua
região, no sentido de que se faça a democratização cultural. A educação patrimonial é
libertadora, pois permite a coexistência da diversidade histórica e favorece o entendimento do
patrimônio de diversas formas (ZANON, 2009).

749
Para compreensão mais densa das multifaces históricas de São Borja ver COLVERO e SILVA, 2016.
É evidente que a educação patrimonial possui carácter transformador, uma vez que
abarca o conceito do território, da localidade como um espaço do plural, estabelecendo relações
de identidade cultural entre sociedade global e sociedade local. Neste sentido, trabalhar este
tema é sinônimo de interdisciplinaridade, e mesmo de fomento às práticas culturais por meio
de uma educação que politiza a sociedade, fazendo com que o sujeito deixe “de ser expectador,
como proposta no tradicional, para tornar-se sujeito, valorizando a busca de novos saberes e
conhecimentos”. (ZANON, 2009 p.52)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através da educação patrimonial transformadora valorizamos o que está próximo, a


cultura e a histórica local, para depois poder trazer a valorização do universal. Trabalhar a
cultura regional é fundamental para um auto-reconhecimento da população, de forma geral
pessoas que não se encaixam nas características físicas e culturais amplamente difundidas
principalmente pela mídia. É preciso evidenciar a história e a etnia daqueles que não são apenas
resultado da cultura colonizadora e por muito tempo foram saberes desconsiderados do âmbito 127
educacional.
3
A Nova história nos atenta para o reconhecimento das identidades esquecidas ou
subjugadas pela história tradicional, evidenciando os traços étnicos, culturais e históricos
específicos correspondentes regionalização.

Ao pensar no exercício da disciplina escolar de história na região da fronteira oeste do


Estado do Rio Grande do Sul, deve-se levar em conta a essencialidade de uma cultura resultante
de uma diversidade histórica na ocupação desse espaço sul-americano.

Essas atribuições devem ser reconhecidas pelos alunos (as) tornando significativa a
aprendizagem escolar, fazendo-os com que se reconheçam além das características físicas, mas
também passem a compreender as confluências identitárias e históricas passiveis de percepção,
na sua cidade e região, através das manifestações culturais que passando a ser melhor
entendidas com a ajuda da Educação Patrimonial ligada ao ensino da história.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROS, José D’ Assunção. Teoria da História V. A escola dos annales e a Nova

História. Petrópoles, RJ: Vozes, 2012.

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Iphan/DAF/Cogedip/Ceduc, 2013. 85 p. : il. ; 21 cm. Disponível em:
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de 2015 127
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127
5
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E ENSINO DE HISTÓRIA*

Guilherme Bertoncelli Bertazzo**

André Luis Ramos Soares***

RESUMO

O presente trabalho refere-se ao desenvolvimento de um projeto de educação patrimonial, em


escolas públicas, realizado em nove municípios da região missioneira, noroeste, do Rio Grande
do Sul, tendo por objetivo, levar a esses alunos conceitos, características, valorização e
importâncias dos patrimônios, tanto para o ambiente escolar, quanto para o âmbito familiar,
comunitário e social. Ressalta-se, desta forma, que a amplitude desse projeto não se limita aos

127
educandos, como também, trabalha-se com a capacitação dos educadores, para que estes,
através de novas metodologias, as quais envolvam as questões patrimoniais, desenvolvam aulas

6
temáticas relacionando os tradicionais conteúdos estudados, com a educação patrimonial.
Entendendo-se por educação patrimonial, aquela política de valorização de todas as formas de
patrimônio (cultural, material, histórico, natural, entre outras), as quais abranjam todos os
setores da sociedade, tornando visíveis os costumes, saberes, utilizações e fazeres de tais
comunidades, construindo um processo de reconhecimento e identidade. Usando métodos
lúdicos e didáticos, um dos principais escopos do projeto foi conciliar o conhecimento dos
alunos, com a dinâmica patrimonial, levando-se em consideração o círculo social o qual eles
convivem, como a família, a escola, o bairro, fauna e flora que o circundam. Com materiais
produzidos e confeccionados pelo NEP (Núcleo de Estudos do Patrimônio e Memória), da
UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), como moldes de pontas de flechas, cerâmicas,
maquetes, como também, artesanatos indígenas, fragmentos fósseis de animais pré-históricos,
ferramentas pré-históricas, oficina de arco-e-flecha, distribuição de cartilhas paradidáticas, uma
série de atividades são realizadas, ocorrendo interações dos educandos e educadores com a
educação patrimonial. Desta forma, são postas a comunidade escolar os pontos que fomentam
uma prática patrimonial, a qual corrobore a importância de todos os patrimônios, além do mais,
que amplie a noção de patrimônio, e que este seja utilizado, na escola, de maneira educativa,
conciliativa e salutar.

Palavras-chaves: educação patrimonial; ensino de história; patrimônio.


INTRODUÇÃO

Para tratarmos de conceitos como educação patrimonial e patrimônio é de suma


importância abordarmos seus contextos, suas abrangências, e até mesmo, suas significâncias,
que se alteram, dependendo a bibliografia consultada, e que podem confundir e em alguns
casos, tornar semelhante os termos. Devido a isso, aqui, serão destacadas, primeiramente,
algumas conceituações de educação patrimonial, patrimônio e memória, cujo objetivo é
esclarecer o leitor a fim dessas referências, para que, ao longo do texto, não surjam dúvidas,
incongruências, e que a leitura não fique evasiva e confusa.

Entendemos que para esse trabalho é de grande valia construir uma base conceitual, que
suporte as definições que aparecerão ao longo do texto, como por exemplo, elucidar citações a
respeito de educação patrimonial e patrimônio. Além do mais, por se tratar de um estudo de
caso concluído com êxito, e realizado em um considerável número de locais, com estudantes e
professores de idades variadas, há uma pequena diferença nas teorias e metodologias aplicadas, 127
o que nos leva a propor essa primeira parte do trabalho. 7
De maneira sequencial, apresentaremos as atividades teóricas e práticas realizadas nos
nove munícipios trabalhados (Bossoroca, Itacurubi, Itaqui, Maçambará, Santo Ângelo, São
Borja, São Luiz Gonzaga, São Miguel das Missões e Vitória das Missões), descrevendo tais
atividades a partir da metodologia empregada, e o embasamento teórico utilizado em cada caso,
sempre proporcionando a compreensão e elucidação dos porquês das atividades, aos educandos
e educadores.

As atividades desenvolvidas seguem um padrão didático, teórico e metodológico,


sustentadas em bibliografias de conceituado valor acadêmicos e correspondentes a cada assunto
tratado, proporcionando um valor histórico e arqueológico ao trabalho. A título de exemplo, os
fragmentos arqueológicos de sociedades pré-históricas, como as pontas de flechas: para
apresentação desses fósseis aos alunos é necessário, antes, apresentar aos alunos um
conhecimento acerca da comunidade que confeccionou tal ferramenta ou utensílio, qual a sua
utilidade naquele tempo, e até mesmo, uma comparação tecnológica com objetos hodiernos, e
assim por diante.

Aos locais de ensino visitados são distribuídos, gratuitamente, aos alunos e professores,
cartilhas, ou livretos, os quais abordam dinâmicas educacionais como patrimônio, memória e
história. Excepcionalmente para alunos da pré-escola, e séries iniciais, que estão em uma fase
de conhecimento e descobrimento de si, e daquilo que os rodeia, acreditamos que apresentar o
patrimônio, a partir de algo próximo, como a família, o bairro, a escola, seja um grande passo
para uma compreensão posterior, mais complexa e ampla. Nesse sentido, os livretos mostram
e dialogam com o leitor, temas correspondestes à cultura local, como a vestimenta do gaúcho,
costumes diários ou rotineiros como o tomar e fazer um chimarrão, a fauna e flora, a
importância do museu, relacionados a exercícios lúdico-didáticos como caça-palavras,
labirinto, jogo dos sete erros, imagens de pinturas, entre tantos, buscando a elucidação dos
alunos, e uma melhor relação de preservação, valorização e identidade com os patrimônios.

Capítulo I – Patrimônio Histórico, Educação Patrimonial e o Ensino de História 127


Intimamente relacionado ao seu valor histórico, cultural e de identidade com
8
determinada comunidade, o Patrimônio Histórico é de suma importância para a manutenção e
preservação de qualquer forma de manifestação de sociedade humana, passada ou atual. Sua
definição, devido a isso, abrange plurais significados e conceituações pelas distintas
apresentações de patrimônios, contudo, ambas as variações (histórico, cultural, natural, etc.),
referem-se ao patrimônio, salientando o comum em ambas.

A definição para patrimônio histórico de Françoise Choay, no livro A Alegoria do Patrimônio:

“Bem destinado ao usufruto de uma comunidade que se ampliou a dimensões


planetárias, constituído pela acumulação contínua de uma diversidade de
objetos que se congregam por seu passado comum: obras e obras-primas das
belas-artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos os saberes e
savoir-faire dos seres humanos”. (2001. P. 11.).

Na citação acima, de Françoise Choay, elucida que todos os saberes, os fazeres e os


conhecimentos deixados pelos antepassados, relacionados ao trabalho, à arte, às relações sociais
são patrimônios históricos. Com isso, os vestígios de sociedades antigas devem, não apenas
serem classificados como patrimônios, como também, estudados, expostos para a comunidade
em geral, para que haja o reconhecimento de culturas, sociedades e políticas tão bem adaptadas
a um ambiente, como as atuais.

Concretizado na ideia de heranças social e familiar, o patrimônio, antes de qualquer


coisa, necessita ser reconhecido por aqueles que estão a “herdar” seu legado. No entanto, esse
reconhecimento torna-se conflituoso, e por vezes impermeável, a primeira vista, pois seus
valores culturais e históricos, em alguns casos são desconsiderados em substituição ao seu valor
monetário.

Em vista disso, procurando a preservação, manutenção e valorização dos patrimônios,


professores, pesquisadores e demais grupos que prezam pela educação alçam-se na causa de
levar às comunidades os principais enfoques relacionados aos patrimônios. Mostrando-lhe que
tais patrimônios são de pertencimento geral, e consequentemente, seus, e que precisam de
valorização, cuidado e reconhecimento, em uma conjuntura identitária.

Desses movimentos educacionais de grupos os quais buscam o reconhecimento e 127


valorização dos patrimônios, temos a Educação Patrimonial, como um movimento de 9
reconhecimento, valorização, preservação dos patrimônios, pela comunidade. Maria de Lourdes
Parreiras Horta, Evelina Grunberg e Adriane Queiroz Monteiro, no Guia Básico da Educação
Patrimonial, definem a Educação Patrimonial e seu funcionamento:

Trata-se de um processo permanente e sistemático de trabalho educacional


centrado no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e
enriquecimento individual e coletivo. A partir da experiência e do contato
direto com as evidências e manifestações da cultura , em todos os seus
múltiplos aspectos, sentidos e significados, o trabalho da Educação
Patrimonial busca levar as crianças e adultos a um processo ativo de
conhecimento, apropriação e valorização de sua herança cultural,
capacitando-os para um melhor usufruto destes bens, e propiciando a geração
e a produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de criação
cultural. (HORTA; GRUNBERG; MONTEIRO, 2014. P. 4).

Desta maneira, munidos de materiais lúdicos – didáticos, desenvolvemos atividades que


envolvam os alunos e alunas, sobre os patrimônios, a partir de uma ótica micro para macro,
estabelecendo um reconhecimento e valorização daquilo que os circundam, até as
manifestações longínquas.

Um dos obstáculos enfrentados, e quase intransponível é a difícil flexibilidade do


currículo escolar tradicional, ainda mais no que tange à disciplina de História, a qual, sabido
por grande parcela da população, serve como construtora de identidade e tradição, embora, por
vezes, apresente erros e distorções.

Buscar, e conseguir a inserção dessas temáticas alternativas (patrimônio, museo,


culturas, tradições, etc.), é de suma importância para uma valorização da História como
disciplina ímpar na manutenção de todos os atributos que uma comunidade pretende preservar.
E esse passo, esse avanço, pode ser obtido com uma readaptação do ensino de História, que
ultrapasse crenças, preconceitos e elitismo, e que alavanque todas as classes e culturas,
chegando aos educadores (professores e pais), e destes aos educandos.

“O ensino de História possibilita demonstrar e confirmar que nossa cultura


nacional não possui uma única fonte, mas muitas; que nossa linguagem e
nossos costumes não se desenvolveram isolados, imunes aos movimentos
128
mundiais dos povos; que toda sociedade, sempre que se trate de sua
sobrevivência, tem de responder e se adaptar a elementos sobre os quais não 0
possui nenhum controle. Ainda que o patrimônio e a cultura derivem de um
passado complexo, um estudo da história ajudará a situá-los num contexto
compreensível. Um estudo das raízes da sociedade ajudará as crianças a
apreciar as crenças, as culturas e os usos sociais de outras sociedades que
estudem (sejam essas sociedades contemporâneas ou mesmo sociedades
exploráveis somente pelo olho do historiador).” (PLUCKROSE, 1996. APUD
SCHMIDT e CAINELLI, 2004, P.27).

Capítulo II – Desenvolvimento das Atividades

O projeto desenvolvido foi voltado para educandos e educadores, em uma relação de


continuidade de trabalho por parte dos que ensinam a partir de uma adaptação ao currículo
escolar aplicado comumente. Com isso, antes das atividades com os estudantes, os professores
e diretores e demais educadores participaram de oficinas de capacitação, sob orientação do
coordenador do projeto, professor e doutor André Luis Ramos Soares.
Abordando a temática do patrimônio e da Educação Patrimonial, a oficina desenvolve-
se em trocas e mostras de experiências, bem como sugestões alternativas por parte do
ministrante, de como inserir tais conceituações nos currículos escolares, e nas atividades
extraclasse.

128
Palestra em São Luiz Gonzaga. Acervo - NEP
1
As atividades lúdicas – didáticas ocorreram de maneira simultânea, em três momentos:
Arqueologia experimental (atividade com arco e flecha, demonstrando como viviam as cidades
de caçadores – coletoras); caixa de espuma (exercício de conhecimento de objetos pré-
históricos e históricos, fósseis pré-históricos e alguns objetos contemporâneos, que devido á
alta velocidade que a tecnologia avança, entraram em desuso); cartilha lúdico – didática de
pintura, leitura, reflexão e demais atividades que relacionam jogos infantis, com temas como
museu, patrimônio, tradição, cultura.
Palestra em São Miguel das Missões. Acervo – NEP.

A atividade de Arqueologia experimental foi ministrada do seguinte modo em que as


alunas e os alunos, com supervisão, instrução e acompanhamento do professor André Soares,
128
manuseavam o arco e flecha, a fim de acertar uma representação plástica de paca (pequeno
mamífero), na clara simulação de como as sociedades de caçadores e coletoras obtinham o 2
alimento.

A segunda atividade intitulada “caixa de espumas” caracteriza-se pelo conhecimento e


reconhecimento das alunas e dos alunos a respeito de objetos e fósseis pré-históricos, como
ferramentas para o ofício da horticultura, e até fragmento animal de um animal pré-histórico,
Megatherium (preguiça-gigante).
Oficina de Arqueologia experimental. Acervo NEP – UFSM

Como metodologia da atividade, são realizadas cinco perguntas para as (os)


participantes: o quê é? Quem fez? Qual a serventia? Qual a idade? De onde é? A partir desses
128
questionamentos, e posteriores respostas e esclarecimentos, procura-se que seja construída uma
noção temporal nos educandos, de maneira que compreendam que cada período histórico 3
relaciona-se com as condições tecnológicas das comunidades desse tempo existentes.
Atividade “caixa de espumas”. Acervo NEP – UFSM

A terceira atividade é realizada com a distribuição dos livretos lúdicos – didáticos da


Turma do Nepinho, pré-escola e séries iniciais. Constituído de jogos, pinturas, textos e
128
brincadeiras reflexivas, as quais envolvam as temáticas do patrimônio, museu, tradição cultura
e educação. 4
Inicialmente, o grupo de alunas e alunos é dividido e, por conseguinte, são distribuídos
os livretos para a realização da atividade, com supervisão dos educadores. Dessa forma, com
materiais que estejam dentro das realidades intelectuais dos educandos e educandas do ensino
fundamental e pré-escola, busca-se a conexão reflexiva entre os conteúdos trabalhados,
tradicionalmente, na escola, e as temáticas propostas.
Alunas com os livretos Turma do Nepinho. Acervo NEP - UFSM

CONCLUSÃO

Novamente, M. A. Schmidt e M. Cainelli contribuem: 128


“é importante entender a originalidade das civilizações em que as 5
representações coletivas e a mentalidade não podem ser comparadas às
nossas. Desenvolver no aluno a capacidade de interessar-se por outras
sociedades é uma forma de sensibilizá-lo para as diferenças e evitar os
inúmeros anacronismos, que podem ser criados pelas ligações equivocadas
entre o passado e o presente”. (SCHMIDT; CAINELLI, 2004. P.77).

Diante disso, a produção e divulgação do material prosseguem, sempre com o objetivo


de fomentar a educação patrimonial em sala de aula, apesar das adversidades. Entendemos que
a relação entre ensino de História e educação patrimonial é indissociável para capacitação de
qualquer aluno, e também do educador, e a ideia deste trabalho e corroborar esse pensamento,
sempre em prol de uma melhor educação para todos.

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Acesso em 08/09/2016.
http://portal.iphan.gov.br/uploads/temp/guia_educacao_patrimonial.pdf.pdf. Acesso em
08/09/2016.
128
6
A CATEDRAL SÃO FRANCISCO DE PAULA E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A
CIDADE DE PELOTAS750

Amanda Schirmer de Andrade ¹

Angélica Kohls Schwanz ²

Cláudio Renato de Camargo Mello ³

Djulia Hammes 4

Lara Almeida Scherer 5

Taylana Borba Barcarolo 6

RESUMO

A presente investigação privilegia um patrimônio cultural e religioso de grande relevância na


cidade de Pelotas: a Catedral São Francisco de Paula, tombada no ano de 2011 pelo IPHAE - 128
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado e restaurada no ano de 2013 por meio
da Lei Rouanet. A importância desse estudo se justifica pelo município de Pelotas conter um 7
precioso acervo a ser conhecido e analisado, e por ser a arquitetura do Rio Grande do Sul uma
temática ainda pouco estudada. Pensando na valorização dos espaços urbanos e da arquitetura
como um retorno ao passado - que faz uso da história como sendo um receituário teórico - o
presente trabalho objetiva, a partir da caracterização da Catedral São Francisco de Paula,
destacar os principais atributos de sua arquitetura religiosa tais como seu estilo, origem, arte,
tipologia de materiais, sua implantação no tecido urbano e suas transformações ao longo da

¹ Acadêmica do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Cruz Alta / UNICRUZ. E-mail:


amanda.schirmer@ymail.com.

² Professora Mestre do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Cruz Alta / UNICRUZ. E-mail:
aschwanz@unicruz.edu.br.

³ Professor Mestre do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Cruz Alta / UNICRUZ. E-mail:
cmello@unicruz.edu.br.
4
Acadêmica do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Cruz Alta / UNICRUZ. E-mail:
dju.hammes@hotmail.com.
5
Acadêmica do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Cruz Alta / UNICRUZ. E-mail:
lara.scherer@outlook.com.
6
Acadêmica do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Cruz Alta / UNICRUZ. E-mail:
taylana_borba@hotmail.com.
evolução da cidade. Desta forma, entendemos estar contribuindo para a valorização da memória
urbana do município, ampliando os conhecimentos existentes sobre o patrimônio arquitetônico
do estado. A proposta metodológica divide o trabalho de pesquisa em diferentes etapas, que
utilizam a revisão bibliográfica como instrumento para a coleta de dados, retomando
antecedentes históricos da cidade e associando-os ao Patrimônio Cultural em questão,
demonstrando assim a importância da relação histórica de Pelotas com a Catedral.
Concomitantemente, realizou-se o estudo da bibliografia arquitetônica e histórica relacionada
à temática abordada, subsidiando a confecção de fichamentos e análise dos dados teóricos e
técnicos levantados. A discussão dos resultados envolveu a interpretação dos dados tabulados
e anteriormente organizados, promovendo a realização de um inventário histórico desse bem
patrimonial, que pode vir a promover a implementação de ações no âmbito da educação
patrimonial e de políticas que assegurem a continuidade destes elementos vitais para a
sociedade.

Palavras-chave: Catedral. Arquitetura Religiosa. Patrimônio Cultural.

INTRODUÇÃO

128
O termo Patrimônio refere-se essencialmente à um conjunto determinado de bens
tangíveis, intangíveis e naturais que envolvem saberes e práticas sociais. À estes bens atribui-
se incontáveis valores, assim como anseios de partilha e de transmissão através das gerações. 8
(CHAGAS, 2002: 36 apud IPHAN). De acordo com o Decreto-Lei Nº 25, de 30 de novembro
de 1937, no artigo 1º, parágrafo 1:

Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e


imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua
vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. (BRASIL, 1937).

A preservação do Patrimônio Cultural das cidades, bem como a valorização do passado


e da memória coletiva, são assuntos frequentemente discutidos na atualidade – tanto na
arquitetura, quanto nas diversas áreas do conhecimento humano (CARVALHO, 2009).
Preservar significa proteger, resguardar, evitar que alguma coisa seja atingida por
outra que possa lhe ocasionar dano. Conservar significa manter, guardar para que
haja uma permanência no tempo. Desde que guardar é diferente de resguardar,
preservar o patrimônio implica mantê-lo estático e intocado, ao passo que conservar
o patrimônio implica integrá-lo no dinamismo do processo cultural. Isso pode, às
vezes, significar a necessidade de ressemantização do bem considerado patrimônio,
e é nesse terreno que se dá a discussão (BARRETTO, 2000, p. 15 apud SOUZA e
BAHL, 2011).

De acordo com Carvalho (2009), há também a manifestação do Patrimônio


Arquitetônico, que assume o importante papel de representar uma imensurável produção
simbólica e material de uma sociedade. O autor afirma ainda que, devido ao crescimento
desordenado das cidades e a consequente necessidade de transformação dos espaços urbanos,
ocorre uma progressiva perda e descaracterização do Patrimônio Histórico.

Preservar antigos centros ou partes de cidades históricas exige a revisão de conceitos


como a preservação do patrimônio, o novo uso conferido a estas áreas e as diferentes
128
interpretações que se fazem do passado histórico urbano. Temos também que levar
em conta as diferentes utilizações propostas a estas áreas, bem como os usos que
9
edifícios tombados assumem dentro da malha urbana. (CARVALHO, 2009).

Quando os edifícios históricos e patrimônio arquitetônico de uma cidade fazem parte do


cotidiano da população, perde-se o hábito de valorizar as edificações e sua importância no
âmbito histórico. As fachadas dos prédios, seus ladrilhos, esculturas e detalhes, deixam de ser
contemplados como marcas da memória coletiva.

Neste contexto, o presente trabalho objetivou realizar uma caracterização da Catedral


São Francisco de Paula, localizada na cidade de Pelotas – Rio Grande do Sul. A edificação
pertence à Mitra Diocesana de Pelotas, e situa-se na Praça José Bonifácio. Com uma área
construída de 2.626,27 m², a Catedral de Pelotas é um referencial urbano da cidade.

O método de pesquisa bibliográfica contribuiu para a definição das características


arquitetônicas e artísticas deste templo, ressaltando sua origem e historicidade, sua localização,
concepção e também a importância que assume para a cidade de Pelotas. A revisão bibliográfica
permitiu a realização de uma completa coleta de dados, retomando antecedentes históricos da
cidade e associando-os ao Patrimônio Cultural em questão.

Concomitantemente, destacou-se os principais atributos arquitetônicos da edificação,


enfatizando seu estilo, origem, arte, tipologia de materiais, a maneira como se insere no tecido
urbano e as transformações que sofreu ao longo do desenvolvimento da cidade. Para
complementar a pesquisa, destacou-se também os detalhes contidos em mármore, a planta baixa
da edificação e buscou-se por registros fotográficos externos e internos, que demonstram
claramente sua composição formal e sua relevância como parte integrante da cidade.

A divulgação do patrimônio cultural pode incentivar a sensibilização do olhar para a sua


valorização e consequente salvaguarda. Além disso, visa reforçar a importância artística e a
manutenção das várias edificações religiosas em nossa região. A população bem informada
sobre o patrimônio contribui para sua conservação e o turismo cultural pode ser um meio de
favorecer e sustentar este bem cultural (WERTHEIMER, GONÇALVES 2011).

Diante do exposto, ressalta-se a importância da Catedral São Francisco de Paula para a 129
história da cidade de Pelotas e a manutenção do valor patrimonial ao longo das gerações. Isso
posto, evidencia-se a demanda pela implementação de ações de educação patrimonial e de
0
políticas de salvaguarda, que assegurem a continuidade deste elemento vital para a valorização
da memória urbana do município.

Capítulo i – contexto histórico e religioso da época

Segundo Silva (2012), o período compreendido entre as décadas de 1940 e 1950 foi de
intensas e contínuas preocupações, pois a população sofreu com as barbáries da Segunda Guerra
Mundial. Neste cenário, os responsáveis pela Igreja Católica - procurando por mais organização
e segurança -, adotaram o movimento denominado Ação Católica, que foi criado no século XX
e tinha como objetivo influenciar a população em geral. Para isso, contava com o auxílio da
imprensa católica local, podendo assim alertar o operariado sobre questões de ordem religiosa,
política, educacional e matrimonial.
Devido ao sucesso das charqueadas, da agricultura e da economia diversificada do
século XX, Pelotas tornou-se um local de riqueza, possibilitando assim o surgimento de
edificações grandiosas como teatros, conservatórios de música e a Biblioteca Pública – que
apesar do nome, surgiu através de iniciativa particular – demostrando, em sua arquitetura,
traçados de finesse e belle époque.

Com o intuito de possuir uma cidade atraente e de relevância no âmbito estadual, a


população tomou a iniciativa de promover um processo de expansão e construção de edifícios
– uma vez que o Governo Central não estava investindo financeiramente no município. Diante
deste contexto, pode-se ressaltar que a iniciativa particular tornou-se o principal meio de
crescimento e desenvolvimento da cidade (SILVA, 2012).

Capítulo ii – catedral são francisco de paula: da fundação à inauguração

A história do mais importante edifício religioso de Pelotas pode ser dividida,


basicamente, em três fases principais. A primeira tem seu marco inicial na semana do dia 14 de
julho de 1812, quando Padre Felício foi nomeado como primeiro pároco de Pelotas, constando 129
na sua apresentação pelo Príncipe Regente (BRODBECK, 2010): 1
Conheço pessoalmente esse clérigo, que está em boa idade para esse trabalho (35
anos) e me parece de muito boa instrução, capacidade e zelo para o ministério
paroquial. Aliás, tem atestados elogiosos do pároco de Rio Grande, Padre Inácio
Francisco da Silveira que diz “ser um bom e perfeito eclesiástico”; do Padre Pedro
Rodrigues Tourem, cura de Canguçu, que louva sua pregação evangélica,
assiduidade na administração dos sacramentos, o exemplo e o interesse. Um leigo,
Capitão Inácio Antônio da Silveira, atesta que se porta com exemplar conduta e
honestidade e faz tudo com desinteresse, sem cobrar estipêndio algum dos moradores.
(PRÍNCIPE REGENTE 1812, p. 100 apud PRIETTO, [entre 2011 e 2014]).

Em 18 de agosto de 1812, Dom José Caetano da Silva Coutinho, bispo do Rio de Janeiro,
regulamentou a paróquia de São Francisco de Paula. Em 13 de outubro de 1812, Padre Felício
tomou posse na paróquia e hospedou-se em terras do capitão-mor Antônio Francisco dos Anjos.
O rancho erguia-se no Sítio dos Coqueiros, lugar próximo da esquina que fazem hoje as ruas
Gonçalves Chaves e General Neto. A outra, conhecida como a Casa do Torres – que é existente
até hoje – foi cadastrada sob o número 201, na Rua Major Cícero Góes Monteiro, e atualmente
é uma das construções mais antigas da cidade (PRIETTO, [entre 2011 e 2014]).

PRIETTO [entre 2011 e 2014], relata também que a primeira providência administrativa
tomada pelo Padre Felício foi a de adquirir um terreno, para nele construir a Igreja Matriz.
Interinamente, utilizou-se do Oratório de Nossa Senhora da Conceição do Cerro de Sant’Ana,
na casa do Padre Doutor, como sede da paróquia. Cientes de que a igreja matriz seria o núcleo
irradiador da urbanização do povoamento, logo surgiram muitos interessados na localização da
igreja.

Diante disso PRIETTO [entre 2011 e 2014] cita que, no mês de fevereiro de 1813, Padre
Felício inicia a construção da matriz em terreno cedido pelo capitão-mor, à cem metros em
frente da casa de Torres - atual Praça José Bonifácio (conforme Figura 1). A edificação
projetada e construída pelo pároco era simples e construída em alvenaria de tijolos com
espessura de trinta centímetros (30 cm). A cobertura era constituída por duas águas e telhas de
barro, contendo uma nave de seis metros e sessenta centímetros (6,60 m) de largura por treze
metros e vinte centímetros de comprimento (13,20 m), sem torres e sem sacristia.
129
2

Figura 1 – Ilustração da Igreja construída.

Fonte: (PRIETTO, [entre 2011 e 2014]).

Os fiéis da nova paróquia eram sabedores da existência, na cidade de Mostardas, de uma


bela imagem de São Francisco de Paula - talhada em madeira ao estilo barroco. Tal imagem
pertencia à Antônio Gomes de Carvalho, oriundo da Colônia do Sacramento, que em 1776
pressentiu a invasão espanhola e emigrou da Colônia. Na viagem, levou consigo a imagem do
santo de sua devoção até chegar à vila do Rio Grande - local de onde partiu rumo à Mostardas.
Sempre fora intenção de Antônio construir uma capela para colocar a sua imagem no altar: em
duas situações distintas solicitou licença para construção ao bispo do Rio de Janeiro,
conseguindo autorização em ambas - a primeira para a Colônia do Sacramento, e a segunda
para Mostardas. Neste cenário, passou a ser criada a Paróquia de São Francisco de Paula
(PRIETTO, [entre 2011 e 2014]).

No ano de 1812 ocorreu uma mobilização dos fiéis juntamente com o pároco, a fim de
confiar à Dona Florência Maria do Pilar, esposa de José Gonçalves da Silveira Calheca – ambos
oriundos da Colônia do Sacramento -, a tarefa de obter a doação da imagem, pois o seu dono
não tinha condições de construir a tão sonhada capela em Mostardas (PRIETTO, [entre 2011 e
2014]).

Foi em janeiro de 1814 que ocorreram as doações de terrenos feitas por Antônio
Francisco dos Anjos, em favor do Padre Felício Joaquim da Costa Pereira. O primeiro termo de
doação, assinado no dia 3, se referia ao terreno retangular para construir a igreja matriz e seu
129
adro, medindo cento e cinquenta e quatro metros (154 m) de comprimento, nos lados norte e
sul, e sessenta e seis metros (66 m) de largura, nos lados leste e oeste. O segundo termo de 3
doação, assinado no dia 5, se referia a um terreno quadrado para construir casa de residência do
pároco, medindo dezessete metros e sessenta centímetros (17,6 m) de lado, com frente sul para
o largo da igreja. Em 10 de junho de 1817, estes dois termos foram levados à Vila do Rio
Grande para o tabelião reconhecer as assinaturas do casal doador e de duas testemunhas, e dar
fé pública aos documentos (PRIETTO, [entre 2011 e 2014]).

Em fevereiro de 1813 começam as obras de construção da Igreja Matriz, e ao final do


ano o templo começa a servir ao culto religioso - embora ainda não tivesse sido concluído. Após
a morte repentina de Padre Felício em outubro de 1818, o templo primitivo foi danificado por
um raio e iniciaram-se as obras de uma nova edificação - pelo lado de fora da igreja original
(BRODBECK, 2010).

A segunda fase caracteriza-se principalmente pelos seguintes acontecimentos:


lançamento da pedra fundamental para a construção de uma nova catedral pelo Imperador Dom
Pedro II e reconstrução da capela original (1827), conclusão do corpo da nova igreja e de seu
forro (1828), construção da nova capela-mor (1828-1834), consistório do lado sul (1835-1844),
torre do lado sul (1845-1852), tribunas (1847), consistório do lado norte (1847-1848), torre do
lado norte (1847-1850), demolição do consistório do lado sul para construção de outro igual ao
do lado norte (1852) (BRODBECK, 2010).

Em 27 de junho de 1835 a Vila de São Francisco de Paula foi elevada à condição de


município, sob a denominação atual de Pelotas. Em meados do século XIX, a Catedral já
apresentava a fachada atual, porém ainda com atributos de salão: apresentava pórtico e terraço,
um jogo de ordens superpostas (dóricas no térreo, jônicas no primeiro pavimento e coríntias
nas torres), platibanda e pequeno frontão, duas torres sineiras e suas cúpulas características.
Mesmo possuindo grandes dimensões - cerca de duzentos e vinte metros quadrados (220 m²) e
capacidade para setecentos fiéis -, era ainda muito primitiva, pois apresentava nave única,
tribunas laterais, altar-mor ao fundo de duas bases de torre – configurando um partido em T
invertido (BRODBECK, 2010).

Com o estabelecimento do regime republicano (1889), houve a separação entre Igreja e


129
Estado, e as paróquias passaram a fazer parte somente da estrutura eclesiástica. Em 1907, São
Francisco de Paula, que até então era apenas o santo de invocação que dava o nome à paróquia, 4
foi reconhecido pelo papa Pio X como Padroeiro de Pelotas. A Paróquia de São Francisco de
Paula foi elevada à Diocese de Pelotas em 1910 e a igreja matriz paroquial passou a ser
conhecida como Catedral Diocesana de São Francisco de Paula (PRIETTO, [entre 2011 e
2014]).

Em 1915, a comunidade católica recebeu uma nova edificação: uma construção com
dois pavimentos, para ser utilizado como salão paroquial. Entre as décadas de 1930 e 1940 a
Catedral passou por reforma e ampliação, construindo o presbitério, a sacristia, o salão
paroquial e a cripta. Em 1933, ampliou sua capacidade para mil e setecentas pessoas. O altar-
mor foi recuado para o fundo, a sacristia ocupou o pavimento térreo do salão paroquial, as bases
das torres foram transformadas, as fachadas laterais receberam um novo tratamento e as tribunas
foram eliminadas. As janelas laterais foram retiradas e substituídas por vitrais com passagens
bíblicas. Os vitrais foram obtidos por meio de doações feitas por famílias pelotenses
(BRODBECK, 2010).
Em 1948 iniciaram-se as pinturas murais internas a cargo dos artistas italianos Aldo
Locatelli e Emilio Sessa, encomendadas pelo bispo Dom Antônio Zattera, na intenção de
oferecer um monumento à altura do espírito religioso e cultural daquele povo. Nesse sentido,
as pinturas murais agregaram valor artístico e estético ao já considerado patrimônio religioso
da época (WERTHEIMER, 2011).

Foi mandado vir diretamente da Itália, em 1948, o pintor nascido em Bergamo, Aldo
Locatelli, que trabalhou as abóbadas, as paredes e o altar, pinturas inauguradas na
noite de Natal de 1950. Estas foram às últimas reformas marcantes sofridas pela
Catedral de Pelotas. (LEÓN 1996, p. 47 apud WERTHEIMER, 2011, p. 13).

A terceira fase destaca-se pelo período em que a Catedral assumiu sua configuração
atual - entre os anos de 1947 e 1948, conforme Figura 2. Victorino Zani remodelou novamente
as fachadas das laterais, fazendo com que estivessem de acordo com a principal. Aumentou-se
a nave, construiu a cripta e a grandiosa cúpula (desenho do arquiteto Roberto Offer, de 1847).
Além disso, vieram artistas italianos para colaborar com a decoração interior do templo. Em
1950 foram instalados na capela-mor o altar, o piso, a balaustrada e os dois púlpitos, todos
produzidos em mármore, na Itália (BRODBECK, 2010). 129
Figura 2 - Fachada Catedral São Francisco de Paula, Pelotas-RS. 5

Fonte: (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado – IPHAE).


Capítulo iii – a arquitetura na catedral São Francisco de Paula

Segundo Wernertheimer (2011), o


edifício da Catedral São Francisco de Paula
apresenta pavimento único, o qual
contém pé direito duplo. Sua planta baixa é
retangular e possui uma estrutura basilical,
conforme Figura 3. A estrutura conta com três
naves e uma cúpula no altar, e todas as fachadas
possuem aberturas ritmadas - a principal é
simétrica e delimita o acesso principal. Este, é
centralizado e apresenta uma proteção com
platibanda, a qual forma um átrio coberto - que
se constitui em um terraço no segundo
pavimento.

Figura 3 – Planta Baixa Catedral São Francisco de Paula.


129
6
Fonte: (Wertheimer, 2011)

O elemento decorativo mais utilizado na edificação é o mármore. Farinha e Leoti (2011)


afirmam que existem mais de 30 variedades de mármore em toda a Catedral, desde o travertino
até o alabrastro. Segundo os autores, “o mármore é uma rocha metamórfica, que sofre alterações
físico-químicas em seu processo de formação. Origina-se do calcário exposto a altas
temperaturas e pressão”. Os autores afirmam ainda que os gregos foram os primeiros a dominar
a arte de trabalhar o mármore em estatuetas, na arquitetura e em decorações em geral. 129
De acordo com Farinha e Leoti (2011), no retábulo da Catedral São Francisco de Paula, 7
o estilo clássico representa o mundo mediterrâneo, onde é clara e positiva a relação que ocorre
entre os homens e a natureza. Conhecido também como altar-mor, o retábulo chegou no ano de
1950 em Pelotas. Em seu piso estão representadas em dourado as letras A.S. – Ano Santo – que
confirmam a veracidade do fato, pois a finalização da ampliação e das pinturas da Catedral
ocorram neste ano.

As colunas em destaque na parte superior do altar (conforme Figura 4), foram


confeccionadas em mármore proveniente de Crimeia, na Ucrânia. Chamado também de
Mármore Mudador, tem aproximadamente dois metros e noventa e dois centímetros (2,92 cm)
de comprimento, e apresenta um tom mais esverdeado que o natural. (FARINHA e LEOTI,
2011).

Abaixo do altar está localizada uma escultura da Última Ceia (de acordo com a Figura
5), a qual forma um conjunto de dois ambões, representando Moisés e a Tábua do Antigo
Testamento. Este conjunto foi confeccionado em mármore Botticiano, proveniente da Itália. O
mármore utilizado no piso apresenta a coloração vermelha. Já nas áreas laterais ao altar-mor,
constituídas por duas naves até a área final, estão locados altares em mármore branco.

Figura 4 – Colunas de Mármore Verde, Moisés e a Táboa. Figura 5 – Escultura da Última Ceia em Mármore.

4 5

129
Fonte: ambas obtidas junto ao Programa de Pós Graduação - Universidade Federal de Pelotas.
Segundo Brodbeck (2010), as pinturas da Catedral foram executadas após a secagem do
reboco, com a mistura resultante de pigmentos e aglutinantes - solúveis em diversos materiais. 8
Após o término desta obra, Aldo Locatelli ficou nacionalmente conhecido pelo seu magnífico
trabalho. Porém, não realizou no país nenhuma obra tão grandiosa quanto a Catedral.

[...] A combinação de cores determina a oposição entre os claros e escuros, o artista


modela e produz texturas por meio da cor. Vários estilos foram utilizados pelo pintor
Aldo Locatelli: renascentista, na composição, perspectiva, "sfumato" (sombreados),
maneirista, complexidade das posturas, graça, forma serpentinada, variedade dos
aspectos do corpo, barroco, força na ação, combinação de luminosidade e
dramaticidade, iluminação em diagonal. (Brodbeck, 2010).

Dentre as belas imagens e pinturas existentes no interior da edificação, figura-se sempre


a homenagem e devoção à São Francisco de Paula. Como forma de homenagem ao santo,
destaca-se a cúpula (Figura 6) que recebeu pinturas grandiosas e apresenta a seguinte frase
“Sancte Francisce protege ac defende hanc civitatem tuam.”, que segundo o autor significa
“São Francisco protege e defende esta vossa cidade.”. (CARVALHO, 2014)
Figura 6 – Cúpula da Catedral São Francisco de Paula.

Fonte: (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado – IPHAE).


De acordo com Wertheimer e Gonçalves (2011), os vitrais da Catedral formam um
conjunto com dezoito janelas (Figura 7), sendo estas subdivididas em dois grupos que
apresentam tipologias distintas. Os vitrais localizados no corpo da igreja – datados de 1934 -,
apresentam-se em número de doze, possuem forma arqueada e com dimensões aproximadas de
129
2,25 cm de largura e 4,50 cm de altura. Já os demais, datados de 1940, estão localizadas na 9
capela-mor, possuem estrutura retilínea, e apresentam cerca de 2,25 cm de largura e 4,50 cm de
altura.
Figura 7 – Vista 360º da Catedral São Francisco de Paula.

Fonte: (360° TOUR VIRTUAL, 2011.)


A colocação dos vitrais aconteceu, segundo Wertheimer e Gonçalves (2011) a partir de
uma hierarquia tradicional das personagens sacras - visto que a vida de Jesus Cristo aparece
representada ao lado dos altares, em segundo plano. Já os vitrais ao longo do corpo da edificação
representam a vida do santo que dá nome à Catedral. Todavia, a ordem de colocação das
imagens está relacionada com o desejo e devoção dos doadores dos vitrais.

Capítulo iv – a catedral na atualidade

Segundo Prietto [entre 2011 e 2014] “Após as comemorações em 2010 do seu


centenário, a diocese foi elevada à Arquidiocese Metropolitana de Pelotas, em 13 de abril de
2011, passando a catedral a chamar-se Catedral Metropolitana de São Francisco de Paula”.

Silva (2012) destaca que a catedral veio a ser tombada no ano de 2011 pelo IPHAE -
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado. Acompanhando as transformações e o
desenvolvimento da cidade foram realizadas uma série de reformas que se encerraram em 1950
com as pinturas em forma de um monumento à altura do “espírito religioso e cultural” do povo
pelotense, agregando valor artístico e estético ao patrimônio religioso de sua história (Figura
7).

Figura 7 – Vista interna da Catedral São Francisco de Paula. 130


0

Fonte: (Instituto do Patrimônio Histórico e


Artístico do Estado – IPHAE)
Se retornarmos ao conceito utilizado no
início deste artigo, de que patrimônio é “tudo aquilo que certos grupos sociais, historicamente
constituídos, herdam do passado, atribuindo-lhe determinados valores, com os quais se
identificam e que se propõe a preservar e vivenciar” (DOBERSTEIN, 2013) fica evidenciado
que um edifício, seja ele público ou particular, só pode ser assim considerado se for
efetivamente vivenciado, ou seja, se as pessoas ali se fizerem presentes de alguma maneira.

As Igrejas em um futuro próximo, poderão ser locais de preservação efetivas, onde


assim como os museus, se transformarão em locais de informação, conhecimento e
educação, desta forma, quem sabe, criando novas vertentes e possibilidades para a
preservação de seus cultos, assim como uma maior aproximação com a sociedade em
geral, semeando de forma positiva novos adeptos e seguidores. (CARVALHO, 2014).

Seja pelo culto e pela representação cristã, seja pela conotação turística, seja pela
importância cultural e artística, ou pela representação como monumento em si mesmo, o prédio
além de reconhecido, estudado e preservado, é constantemente visitado e revisitado pelas
pessoas em geral. Seus elementos arquitetônicos e suas pinturas murais agregaram valor
histórico e artístico à edificação – a qual atrai anualmente centenas de observadores.

CONCLUSÃO

O artigo apresentou como objetivo principal a retomada da historicidade da Catedral


São Francisco de Paula, na cidade de Pelotas, tendo como foco principal a elaboração da
contextualização histórica, o detalhamento técnico de seus materiais e as especificações de sua
construção. A partir disso pôde-se compreender o imenso valor deste monumento cultural como
conjunto arquitetônico e herança artística e religiosa da cidade.

Por este motivo, acredita-se que a divulgação deste trabalho possa gerar uma motivação
130
para a preservação da catedral, podendo assim estimular uma ação maior e mais complexa para 1
a proteção e valorização deste patrimônio. Da mesma forma, a pesquisa justifica a necessidade
da ação de salvaguarda do material, levando em consideração que preservar é uma
responsabilidade do homem – assegurando o patrimônio referente à sua memória social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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histórico e artístico nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Rio de Janeiro,
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Acesso em: 24 mar. 2016.

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Paulo, em Pelotas, RS. Salvem a Liturgia. Santa Vitória do Palmar, jun. 2010. Disponível em:
<http://www.salvemaliturgia.com/2010/06/esplendor-catolico-no-brasil-catedral.html>.
Acesso em: 29 mar. 2016.

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Histórico. Encruzilhada do Sul, abr. 2009. Disponível em:
<http://historiaearquitetura.blogspot.com.br/2009/04/porque-preservar-o-patrimonio-
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CARVALHO, Márcio Dillmann de. “A imagem é o livro daqueles que não sabem ler”: Uma
análise da imagem de São Francisco de Paula. Acervo de arte sacra da Arquidiocese de
Pelotas. Monografia- Curso de Pós-Graduação em Artes: Patrimônio Cultural e Conservação
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FARINHA, Alessandra Buriol; LEOTI, Alice. A Marmoraria da Catedral São Francisco de


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2
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360° TOUR VIRTUAL. Foto Panorâmica 360° - Catedral São Francisco de Paula. Pelotas, 130
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3
em: 10 mai. 2016.
INVENTÁRIO DA COLEÇÃO LEOPOLDO GOTUZZO: CLASSIFICAÇÃO E
RECUPERAÇÃO DA INFORMAÇÃO*751

Joana Soster Lizott**752

RESUMO

A pesquisa aqui apresentada trata-se de um trabalho de conclusão de curso em História, acerca


do inventário, com suas práticas, métodos e resultados, da coleção do pintor pelotense Leopoldo
Gotuzzo (1887-1983). Relacionada com as áreas sociais e humanidades, aborda os acervos e
suas formas de classificação e organização como portadores de informação. A referida coleção
faz parte do acervo do Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, instituição museológica fundada em
1986 e vinculada à Universidade Federal de Pelotas. Além de relativa ao patrono do museu,
também é a mais requisitada em exposições e pesquisas acadêmicas. Com sua formação iniciada
ainda na Escola de Belas Artes de Pelotas, nos anos 1950, a coleção foi se caracterizando pela
grande variedade de tipologias de itens, que vão além das obras do artista, contando com
documentos, fotografias e objetos pessoais. Contudo, durante os quase os quase trinta anos de
funcionamento da instituição, não foi produzido um sistema de documentação que abrangesse
a diversidade da coleção e a urgente contextualização da procedência dos itens, já que alguns
haviam sido adquiridos anteriormente à fundação do museu. O inventário geral foi então 130
desenvolvido abrangendo três etapas (diagnóstico institucional e da documentação, elaboração
de mecanismos para levantamento de dados e a organização dos dados para a recuperação da
informação), objetivando a elaboração de um sistema de documentação que atendesse às
4
demandas institucionais, conferindo o possível desaparecimento de itens e a rápida recuperação
das informações. A partir do inventário, foi possível o planejamento e execução de uma
exposição no espaço do museu, contextualizando o acervo e apresentando ao público algumas
das informações levantadas. Portanto, o trabalho desenvolvido teve por objetivo a aplicação de
mecanismos de classificação e recuperação da informação, visando a comunicação do acervo
da coleção, o que foi organizado em um sistema de documentação adequado às demandas
institucionais.

Palavras-chave: Acervo Museológico – Inventário – Leopoldo Gotuzzo

INTRODUÇÃO

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Graduanda do Curso de Bacharelado em História da Universidade Federal de Pelotas e Bacharel em Museologia
pela Universidade Federal de Pelotas, joanalizott@gmail.com.
A pesquisa aqui apresentada trata-se de um trabalho de conclusão de curso em História,
acerca do inventário, com suas práticas, métodos e resultados, da coleção do pintor pelotense
Leopoldo Gotuzzo (1887-1983). Teve por objetivos o registro dos processos adotados no
inventário da coleção e a discussão de seus resultados.

A coleção Leopoldo Gotuzzo, juntamente com outras seis753, compõe o total do acervo
do MALG, instituição museológica fundada em 1986 e vinculada à Universidade Federal de
Pelotas. Além de ser relativa ao patrono do museu, também é a mais requisitada para exposições
e pesquisas. Possuí uma grande variedade de tipologias de itens, que vão além das obras do
artista, contando com documentos, fotografias e objetos pessoais. Contudo, durante os quase
trinta anos de funcionamento da instituição, não foi produzido um sistema de documentação
que abrangesse a diversidade da coleção. Assim, com exceção dos trabalhos artísticos e
fotografias, boa parte do acervo nunca havia sido sequer relacionado.

A coleção tratada traz aspectos importantes que permitem uma discussão abrangente
quanto ao inventário histórico de acervos. Primeiramente, mesmo estando em um museu
voltado para as artes visuais, possui acervo de caráter documental, mobiliário e objetos,
revelando um problema comum em várias instituições com acervo – a variedade de tipologias
130
que precisam ser condensadas em um sistema único de recuperação da informação. A coleção 5
também possuía graves problemas de perda e dissociação da informação, inclusive quanto a
procedência dos itens. Assim, o trabalho se deu também na busca dessas informações perdidas.
Estes são problemas comuns encontrados quando se começa a trabalhar com acervos de
instituições que já estão em funcionamento a muito tempo, e passaram por diversas equipes de
trabalho, como é o caso do MALG.

O trabalho de inventário aqui apresentado começou em 2014, quando passei a atuar


como museóloga do MALG. Foi um período de grandes mudanças para a instituição, pois quase
toda sua equipe havia sido renovada naquele ano, e um Conservador-restaurador foi
incorporado ao quadro na mesma época. Foi o momento também da aprovação do Regimento
Interno do museu, documento fundamental de organização e gestão institucional, e que previa,

753
Coleção Escola de Belas Artes, Coleção Faustino Trápaga, Coleção João Gomes de Mello, Coleção Luiz Carlos
Lessa Vinholes, Coleção Século XX e Coleção Século XXI.
a organização de um Núcleo de Acervo e Reserva Técnica, no qual as ações aqui descritas se
inserem.

A metodologia adotada levou em conta a rotina e as necessidades do museu, sendo


dividida em três etapas básicas, o diagnóstico institucional e da documentação, a elaboração de
mecanismos para levantamento de dados e a organização dos dados para a recuperação da
informação. A avaliação inicial da instituição foi o ponto de partida para todas as outras
atividades em torno do inventário, que começou a tomar forma no ano de 2015.

Um dos resultados do inventário foi o planejamento e execução da exposição


“Lembranças de Leopoldo Gotuzzo (1909-1918)” no espaço do museu, com recorte temporal e
temático baseado na pesquisa realizada no acervo até então.

Enfim, o trabalho aqui apresentado é um relato das experiências desenvolvidas no


âmbito do Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, em torno de uma coleção central para a
instituição, que apresentava diversos problemas e lacunas informacionais que dificultavam a
pesquisa e produção de conhecimento e a sua divulgação e difusão.
130
8. Capítulo I – Inventário: organizando a informação 6

Entende-se os museus como locais ligados à informação, sendo os objetos museológicos


suportes de informação. Segundo Cândido (2006, p.30), são instituições que precisam preservar
também a possibilidade de informação que os objetos contém, por meio de suas ações básicas.
A preservação através da aquisição, acondicionamento e conservação, a comunicação pelas
exposições, publicações e outras ações e a investigação, que fundamenta todas as outras ações
(CÂNDIDO, 2006, p.30).

De acordo com Cândido, os vestígios materiais do passado correspondem às condições


e circunstancias de determinados grupos sociais, carregados de “marcas especificas da
memória, reveladoras da vida de seus produtores e usuários originais” (2006, p.30). É no
contexto museológico, segundo ela, que o objeto ganha um novo significado, tornando-se
documento, através da colocação do mesmo no campo do conhecimento histórico,
interrogando-o e decodificando-o como fonte de pesquisa. Assim, os museus devem criar
“métodos e mecanismos que permitam o levantamento e o acesso às informações das quais os
objetos/documentos são suportes, estabelecendo a intermediação institucionalizada entre o
individuo e o acervo preservado” (2006, p.30-31).

No caso da coleção Leopoldo Gotuzzo não é diferente, tendo mesmo nas obras do pintor
uma carga de informação referente a um dado contexto de um grupo da sociedade pelotense.
Vindo de família inserida na elite da cidade, e mesmo tendo vivido a maior parte da vida no
Rio de Janeiro, o acervo deixado pelo pintor traz as marcas de relações sociais e culturais, desde
o inicio do século XX até os anos 1980, na cidade de Pelotas, e mesmo no Rio de Janeiro. Além
de trazer aspectos diretamente relacionados à Escola de Belas Artes de Pelotas e mesmo a
produção e veiculação de arte na cidade.

Assim, a documentação museológica é entendida aqui como um conjunto de


informações sobre os objetos, pensada como “um sistema de recuperação de informação capaz
de transformar acervos em fontes de pesquisa cientifica e/ou em agentes de transmissão de
conhecimento” (CÂNDIDO, 2006, p.32). O inventário é um dos elementos que compõe esse
sistema de documentação.
130
A construção do inventário da coleção buscou reunir o máximo de informações sobre
cada item, para atender às demandas da pesquisa, dos curadores do museu e das atividades
7
educativas, bem como realizar uma grande conferencia quanto ao desaparecimento de objetos
e seu estado de conservação.

Todos os objetivos e demandas que deveriam ser abrangidos no sistema de


documentação foram levantados através de uma avaliação global da instituição. Essa primeira
buscou o museu como um todo, em aspectos amplos, mas aprofundando em alguns diagnósticos
específicos (CÂNDIDO, 2013, p.14). Assim, não foi avaliada apenas a documentação
museológica, mas sim todo o sistema de gestão institucional, seu público, exposições, espaço
físico. O conjunto de dados permitiu uma maior clareza na definição dos objetivos. Além disso,
a avaliação global permitiu, através do contato com diversos setores, a reunião de todas as
informações sobre o acervo disponíveis na instituição e que se elencassem possíveis parcerias.

Os aspectos técnicos da documentação também foram analisados, levando em conta, a


quantidade de acervo documentada, localizada ou não, com marcação ou identificação na peça,
itens inventariados, registrados ou com outro sistema de numeração (CÂNDIDO, 2013, p.95),
tipos de fichas e sistema de guarda dos itens e de pesquisa das informações.

Verificou-se que haviam problemas como sobreposição de sistemas de numeração e


fichas, itens apenas com ficha de restauro, grande parte do acervo sem marcação ou
identificação do numero atual, ausência de numeração para grande parte do acervo e problemas
de numeração, principalmente no caso de desmembramentos e conjuntos. Ausência de
informações importantes como a procedência dos itens, e uma grande confusão com títulos das
obras. Também havia uma grande desorganização documental, com documentos em diversos
setores do museu. Quanto a coleção Leopoldo Gotuzzo, havia ainda o problema de que somente
as obras de arte e alguns objetos, haviam passado por um processo de documentação, deixando
sem identificação todos os documentos, fotografias e livros. O sistema de recuperação das
informações revelou-se também muito frágil, pois era incompleto e desatualizado e totalmente
manual.

Da avaliação, concluiu-se que havia uma grande necessidade de acesso às informações


das coleções, de forma que disponibilização dos dados foi o grande objetivo do sistema de
documentação elaborado. Para tal, verificou-se que era necessária uma profunda reorganização
130
da documentação já existente sobre as coleções, tendo em vista que não havia um sistema que 8
abrangesse as várias pesquisas e trabalhos desenvolvidos sobre o acervo em um formato único.
Outra limitação revelada se refere às possibilidades de informatização do acervo e da
documentação das coleções. Apenas softwares comuns e com capacidade limitada seriam
disponíveis. Contudo, a digitalização e as fotografias das obras eram possíveis através de
bolsistas da universidade, mesmo que com equipamentos não profissionais (não há um estúdio
fotográfico por exemplo), esse trabalho tem rendido ótimos resultados graças à equipe
envolvida.

Foi também pela avaliação institucional que se entendeu as limitações do espaço físico,
permitindo que se pensasse alternativas para as mesmas. A reserva técnica foi reorganizada de
forma que facilitasse a localização dos itens, e também que permitisse uma concentração maior
de objetos em um espaço pequeno, de uma forma que todos pudessem ser facilmente retirados
e observados. As estantes, armários e mapotecas foram numeradas e essa organização integra
o sistema de documentação.
O momento do diagnóstico coincidiu com um período de profundas mudanças
institucionais, no qual quase toda a equipe do museu foi modificada. Foi o primeiro ano que o
museu efetivou um corpo técnico (museóloga e conservador-restaurador), permitindo que
trabalhos de médio e longo prazo fossem pensados e tivessem uma continuidade.

Assim, dessa etapa, concluiu-se a necessidade de um sistema de documentação que


abrangesse a organização dos dados antigos sobre os itens, o registro desses e sua identificação,
a definição da procedência, a facilitação e rapidez da pesquisa e um registro constante de
acompanhamento do restauro.

Capitulo II – Mecanismos de organização e recuperação da informação

Tendo sido definidos os objetivos, partiu-se para a elaboração de mecanismos de


organização das informações sobre o acervo, abrangendo a revisão e atualização dos dados
antigos. A elaboração dos mecanismos se refere basicamente a construção de um modelo de
130
ficha de inventário aplicável a todo o acervo diverso da coleção, bem como o desenvolvimento
de uma planilha que permitisse a rápida recuperação da informação. Também foram criados os 9
elementos auxiliares, as convenções, listagens e relações diversas confeccionadas durante o
processo de inventário, como um glossário de temáticas artísticas e de classificação do acervo,
que permitiram uma padronização dos termos utilizados. Todos os mecanismos elaborados
nessa etapa se basearam nos princípios elencados por Cândido (2002), Camargo-Moro (1986)
e Gómez de Chaves e Botero (1991), autores de manuais de inventário e documentação de
acervos, adaptados às necessidades do MALG.

As fichas de inventário foram pensadas com itens básicos, no sentido de complementar


a conferencia da coleção e centralizar as informações dos itens que estavam em diversos
documentos de épocas diferentes. Os campos foram determinados em função das necessidades
do MALG, com categorias que facilitam a busca de informações especificas por pesquisadores
e curadores. Levam em conta duas resoluções do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM)754,

754
Resoluções nº1, de 31 de julho de 2014 e nº2 de 29 de agosto de 2014.
que normatizam o Inventário Nacional dos Bens Culturais Musealizados755 e estabelecem
elementos para a descrição das informações do acervo a ser declarado. Os campos definidos
foram os seguintes: Número de inventário, coleção (coleção do MALG a qual pertence),
situação (se localizado ou não), localização (local do item na reserva técnica), outros números
(tombo, registro patrimonial, ficha restauro, antigos, etc), título ou nome, autor, denominação
(Subdivisão dentro dos tipos de classificação do acervo), classificação (De acordo com
Esquema Classificatório do Acervo), dimensões (altura x largura x profundidade ou diâmetro),
material e técnica (segundo Glossário de técnicas artísticas), imagem, resumo descritivo (para
artes plásticas, documentos escritos, fotografias, objetos), estado de conservação (Bom, regular
ou ruim), data de produção, local de produção, procedência (Nome da pessoa ou instituição que
detinha a propriedade desse item antes do Museu) e observações (quaisquer outras informações
relevantes).

O preenchimento da ficha foi orientado por um modelo explicativo, indicando os


padrões que deveriam ser seguidos, e um conjunto normas para o resumo descritivo, baseado
em Candido (2006, 36-75). Todas as informações encontradas sobre cada item, nos mais
diferentes formatos, desde publicações até anotações manuscritas foram unidas relacionadas ao 131
numero de inventário atual, e suas informações verificadas e repassadas para a nova ficha. Cada
0
item da coleção recebeu uma ficha nesse modelo, agrupadas em arquivos “docx” de acordo com
categorias gerais estabelecidas: obras, fotografias, objetos, livros e documentos. A divisão foi
necessária devido às limitações do software utilizado. Os arquivos também são impressos e
disponibilizados em formato PDF para pesquisas.

Os dados das fichas são passados também para uma planilha que une todas as coleções
do museu, permitindo o cruzamento de dados entre os itens. Consiste em uma tabela em formato
“xls”, na qual é concentrada toda a informação das fichas de inventário. Esse é o principal
instrumento de pesquisa e recuperação da informação do momento, pois permite a busca de
informação a partir de categorias, como título, data, artista, temática etc. Contudo, devido as
limitações do software, os dados são acessados nesse formato apenas pelo Núcleo de Acervo e
Reserva Técnica, que faz os levantamentos e pesquisas e repassa as informações solicitadas. A

755
Presente no Decreto nº 8.124, de 17 de outubro de 2013, que regulamenta dispositivos da Lei nº 11.904, de 14
de janeiro de 2009, (Estatuto de Museus), e da Lei nº 11.906, de 20 de janeiro de 2009, que cria o IBRAM.
grande mudança nesse aspecto foi a rapidez na localização da informação e a possibilidade de
cruzamento de dados entre as coleções.

Para padronizar o preenchimento das fichas, foram desenvolvidos alguns elementos


auxiliares, ou seja, convenções, listagens e relações diversas. Elencam elementos fundamentais
para obtenção e organização de informações do acervo.

A lista de temáticas artísticas por exemplo, constitui na relação de uma série de


temáticas relacionadas às obras de arte. É aplicada apenas aos itens que permitem a análise da
imagem. Baseando-se em um manual do Instituto Colombiano de Cultura (GÓMEZ DE
CHÁVES, 1991, p.18-21), mas adaptando ao acervo do MALG, foram definidas as temáticas:
Temas da natureza, figura humana, cenas relacionadas com mitologias, crenças e religiões (não
cristãs), culto cristão, natureza morta, construção humana, figuras fantásticas e temas abstratos.

Outra referencia elaborada foi a classificação do acervo, baseado no modelo utilizado


no Museu Mineiro (CÂNDIDO, 2006, p.36-39), que divide o acervo de acordo com o tipo de
função do item. Nos itens artísticos, foram convencionadas as técnicas dentro da grande
classificação das Artes Visuais. 131
Além destas, foram elaboradas listas e relações sistematizando informações essenciais 1
sobre a coleção, pesquisadas na documentação administrativa do museu desde sua fundação.
No caso da coleção Leopoldo Gotuzzo, a pesquisa necessitou se estender até o Projeto
Pinacoteca, que antecedeu o museu e à Escola de Belas Artes de Pelotas. Essas listagens
relacionavam ainda doadores e suas doações, se as mesmas estavam devidamente
documentadas, os pareceres da comissão que aprova as aquisições do museu, e processos de
restauro, entre outros. Esse foi o momento no qual, cada ficha antiga e cada item que aparecia
na documentação antiga do museu foi identificado de acordo com o sistema novo de numeração.
Assim, para cada item da coleção foram sendo formados pequenos dossiês de documentos
relacionados, o que permitiu confrontar dados conflitantes e identificar qualquer
desaparecimento que possa ter ocorrido nesses quase sessenta anos da coleção756.

Todos esses mecanismos permitiram que se realizasse uma terceira etapa, ou seja a
organização dos dados sobre o acervo. Basicamente, esse momento se constitui na

756
Contados a partir da primeira doação do pintor à Escola de Belas Artes de Pelotas, em1949.
sistematização de toda informação levantada de cada item para a ficha de inventário. Tendo a
preciosa colaboração dos estagiários curriculares do curso de Museologia da Universidade
Federal de Pelotas, supervisionados pelo corpo técnico do museu, todos os setecentos itens da
coleção foram inseridos no sistema de documentação.

Por fim, a partir do inventário da coleção Leopoldo Gotuzzo, foi possível a elaboração
da exposição “Lembranças de Leopoldo Gotuzzo: 1909-1918”, que teve como ponto de partida
um álbum de fotografias do pintor, um item inédito do acervo. O referido álbum possui diversas
fotografias coladas e peculiarmente com as margens rasgadas, retratando o período que o pintor
iniciou seus estudos na Europa, particularmente em Roma, de 1912-1915. Em estado de
conservação muito ruim, uma das primeiras preocupações foi com a digitalização do material,
que foi cuidadosamente fotografado pelo bolsista do museu757. A partir de então, o material
passou a ser pesquisado paralelamente ao inventário, pois não se tinha informação sobre o item.
As primeiras informações foram obtidas no próprio álbum, as datas manuscritas abaixo
das fotografias e a presença do pintor na maioria delas indicou o período que ele estudara em
Roma, no atelier do Professor Joseph Noël758. Visualmente, o professor foi identificado
facilmente em várias das fotografias. Em seguida, foram pesquisados jornais da época, através 131
dos quais se confirmou realmente a presença do pintor em Roma nesse período, abrangendo
2
depois Madri, onde começou a pintar de forma independente e conseguiu os primeiros prêmios,
depois França e a volta para o Brasil em 1918, como pintor profissional. Também foi possível,
através de jornal da época identificar a família de Leopoldo Gotuzzo em uma das fotografias,
bem como ter uma dimensão do meio social no qual o pintor e sua família viviam. Seu pai foi
dono do luxuoso Hotel Alliança em Pelotas, e figurava em notas de jornais do Rio de Janeiro.
A partir da contextualização temporal, foi possível a contextualização das obras do
acervo. Pelos locais nos quais foram pintados e datações, os quadros também foram
identificados em notas de jornal de época, traçando um relato do início da carreira do pintor.
Puderam ser relacionados no acervo assim, não só as obras desenhadas e pintadas nesse

757
Bolsista de Artes Visuais – fotografia, Daniel Moura
758
Dados esses obtidos de pesquisas sobre a vida de Leopoldo Gotuzzo, disponíveis em antigos catálogos do
MUSEU DE ARTE LEOPOLDO GOTUZZO. Leopoldo Gotuzzo – exposições comemorativas ao centenário de
seu nascimento 1887-1987. Pelotas, 1987.
contexto vivido por Gotuzzo, como outros objetos e livros que até então não faziam sentido na
coleção.
O álbum de fotografias, que nunca havia sido exposto necessitava de uma atenção
especial, pois estava frágil demais para ser exposto. Além disso, seu estado não permitia que as
imagens fossem visualizadas de forma clara. Nesse sentido, foram utilizadas reproduções em
dois recursos expositivos diferentes. Foram selecionadas algumas fotografias que permitiram
alguma identificação, de local, datação ou das pessoas envolvidas, as mesmas foram tratadas,
com as cores uniformizadas e ampliadas, permitindo uma visão clara da imagem. Contudo, o
álbum era, por si só, um objeto muito particular, a ordenação das imagens e as suas bordas
cuidadosamente rasgadas, as fotografias de tamanhos, formatos e cores diferentes eram
informações que também precisavam ser compartilhadas. Eram um convite mais intimo à vida
do pintor. Assim, se fez uma reprodução do álbum em tamanho real, que pôde ser manuseado
e visualizado na íntegra.
Esse foi apenas um exemplo de como, o trabalho de documentação do acervo amplia as
possibilidades do museu. O público nunca havia tido acesso ao material exposto na ocasião, e
embora não esteja mais a mostra, pode ser solicitado a qualquer momento. 131
CONCLUSÃO 3
O inventário da coleção Leopoldo Gotuzzo trouxe à tona informações que estavam
faltando na documentação do museu, e pôde organizar por exemplo, a questão da procedência
dos itens, pois havia uma certa confusão quanto a segunda doação do artista, feita
postumamente. Da pesquisa da procedência foi possível desenvolver um histórico da coleção
Leopoldo Gotuzzo. E, ainda que esteja em processo de correções e revisão atualmente, já é
utilizado pelo público pesquisador e visitante do museu, este último através das exposições.

Foram inventariados, entre obras de arte, objetos, documentos, fotografias e livros que
compõem a coleção, setecentos itens, sendo 144 obras de arte, 59 livros e revistas, 144 objetos,
185 documentos (cartas, convites, documentos oficiais como atestados de óbito e escrituras de
terras, etc., anotações, cadernos de visitantes de exposições, vendas de quadros e despesas,
recortes de jornal e revistas), e 168 fotografias.
Durante a conferencia não foram localizados seis itens, que constavam em listagens
antigas e não foram identificados. Os casos ainda estão sendo analisados, pois há suspeita de
que pode ter havido erro durante a conferencia do inventário que havia sido iniciado antes do
trabalho atual, e esses itens podem ter sido inventariados duas vezes. Houve ainda o caso de um
item que foi roubado em exposição, dez anos atrás, mas o fato não foi devidamente registrado.
Um produto do inventário foi o Guia da Documentação Museológica do MALG, no qual
estão elencadas as orientações de preenchimento e consulta do inventário, bem como dados
gerais da coleção de forma resumida. Tal documento engloba também as outras coleções
inventariadas, e é atualizado anualmente.
Além da documentação museológica, o inventário têm permitido um controle maior do
estado de conservação dos itens, graças ao sistema de localização das peças na reserva técnica,
e pela sua relação com a Ficha de Conservação e Restauro, elaborada e utilizada pelo
conservador-restaurador do museu, mas que utiliza o mesmo sistema de numeração e a
terminologia do inventário.
O acesso do público aos resultados ainda tem se dado, de forma mais abrangente pelas
exposições. O exemplo do texto foi uma tentativa inicial, mas que uniu diretamente a pesquisa 131
do inventário com o conteúdo da exposição. Além de permitir o acesso a itens do acervo que
nunca haviam sido expostos, demostrou a importância da contextualização e da pesquisa sobre 4
o acervo do pintor. Pesquisadores interessados em Leopoldo Gotuzzo possuem um apanhado
de todos os itens da coleção, garantindo mais uma forma de divulgação do acervo.
Assim, embora o inventário da coleção ainda não esteja totalmente fechado, tem se
revelado um instrumento importante para o museu e tem conseguido atingir as demandas para
o qual foi pensado. O trabalho se mantém em sua contínua atualização e comunicação
permitindo a produção e divulgação de conhecimentos, uma das premissas básicas do museu.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMARGO-MORO, F. de. Museu: aquisição/documentação. Rio de Janeiro: Eça, 1986.


CÂNDIDO, M. I. Documentação Museológica. In: IPHAN/DEMU. Caderno de Diretrizes
Museológicas. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura/ Superintendência de Museus,
2006.
CÂNDIDO, M. M. D. Gestão de Museus, um Desafio Contemporâneo: Diagnóstico
Museológico e Planejamento. Porto Alegre: Mediatriz, 2013.
DESVALLÉES, A. e MAIRESSE, F. Objeto (de museu) ou museália. In: DESVALLÉES, A.
e MAIRESSE, F. Conceitos-chave de museologia. Florianópolis: Fundação Catarinense de
Cultura, 2014.
GÓMEZ DE CHÁVES, M. I. e BOTERO DE ANGEL, M. Bienes Culturales Muebles –
Manual para Inventario. Editorial Escala: Bogotá, 1991.
YASSUDA, S. N. Documentação Museológica: uma reflexão sobre o tratamento descritivo
do objeto no Museu Paulista. 2009. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação
em Ciência da Informação da Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual
Paulista.

131
5
MUSEU DO COLÉGIO MAUÁ: UM RELICÁRIO PAR A CIDADE DE SANTA
CRUZ DO SUL*759

Elsa da Silva Sott**760

RESUMO

Esta pesquisa é fruto do estágio no Museu do Colégio Mauá em Santa Cruz do Sul-RS. Durante
este tempo pude constatar a importância que o Museu tem para o município e ao mesmo tempo
o descaso que sofre por órgãos responsáveis pela cultura. Peças antigas que não são valorizadas
se transformam em ferramentas de ensino sobre a história, fascinando o público. O objetivo
deste é refletir sobre a importância do Museu não somente como ponto turístico, mas como
instituição responsável por preservar a história, a memória e as dificuldades que possui para
manter-se aberto e conservar o acervo. Como procedimento metodológico, foi realizado:
Revisão bibliográfica, levantamento da história do Museu, coleta de material, organização e
análise. As fontes utilizadas são: Diários, fotografias, boletins informativos e jornais entre os
anos 1966 e 2016 e entrevistas. O Museu não é um depósito de "coisas velhas", mas um
endereço nobre onde se preserva, valoriza e resgata a história. No espaço museológico se
guardam “relíquias” que contam a história. Nos 50 anos de existência tem sido o único órgão
na cidade, que realiza o trabalho de preservação da história A equipe do Museu vem trabalhando
em cada visita, junto ao público, a importância de se preservar a história, pois sem o apoio de
131
uma educação voltada para a cultura do preservar haverá a perda da memória local. 6
Palavras-chave: Museu – Memória – História

INTRODUÇÃO

A palavra museu possui um sentido ambíguo. Conforme SUANO (1996, p.10), o termo
Museu possuí origem grega, e significa o lugar que era considerado como o templo das musas,
museion.

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Graduada em História pela Universidade de Santa Cruz do Sul- UNISC, elsa.history@hotmail.com.
As musas eram filhas de Mnemósine (Memória), filha de Urano e Gaia. Mnemósine
possuía nove filhas com Zeus. A deusa “Memória” dava aos poetas e adivinhos o poder de
voltar ao passado e de lembrá-los para a coletividade e nunca esquecer o passado.

Na visão de alguns os Museus têm se tornado apenas pontos turísticos que exaltam a
curiosidade, depósitos daquilo que muitos acreditam que é coisa velha, ou vai para o lixo ou
para o Museu. O principal objetivo de um Museu é preservar a história e a memória, essa
memória que deve ser resgatada e causar comoção no público que visita o espaço.

Museu e memória

O conceito de memória é amplo e trabalhado por múltiplas áreas das ciências e autores,
utilizei como base para esta pesquisa, a concepção que o historiador francês Jaques Le Goff
retrata em sua obra “História e Memória” (1992). O autor é frequentemente citado em pesquisas
que trabalham a importância da Memória na História.

A concepção de memória trabalhada por LE GOFF (1992) seria que a memória está
131
fortemente ligada com as ciências humanas e as propriedades de conservar apropriadas
informações, ela seria uma característica ligada a um conjunto de funções psíquicas que permite 7
ao indivíduo atualizar impressões ou informações passadas, ou reinterpretadas como passadas.

LE GOFF (1992) retrata em seu trabalho a importância da memória, seja ela ligada com
as ciências biológicas ou históricas fazendo distinção sobre os múltiplos conceitos sobre o tema.

A memória, como propriedade de conservar certas informações,


remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas,
graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações
passadas, ou que ele representa como passadas. [...] Certos aspectos do
estudo da memória, no interior de qualquer uma destas ciências, podem
evocar, de forma metafórica ou de forma concreta, traços e problemas
da memória histórica e da memória social. A noção de aprendizagem,
importante na fase de aquisição da memória, desperta o interesse pelos
diversos sistemas de educação da memória que existiram nas várias
sociedades e em diferentes épocas: as mnemotécnicas. (LE GOFF, 1992
p.423)
Ele ainda ressalta que:
Mas a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um
instrumento e um objeto de poder. São as sociedades cuja memória
social é sobretudo oral ou que estão em vias de constituir uma memória
coletiva escrita que melhor permitem compreender esta luta pela
dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória.
(LE GOFF, 1992 p.476)

Esta memória coletiva citada por LE GOFF, está fortemente ligada com o objetivo
básico da grande maioria dos Museus e acervos, que seria manter e preservar a memória da
comunidade.

Segundo CHAGAS (2006, p.33) os chamados lugares de memória devem estar a serviço
do desenvolvimento social na compreensão teórica e no exercício prático da memória como
direito de cidadania e não como privilégio de grupos economicamente abastados.

Conforme consta no Dicionário de Conceitos Históricos (2009), a História representa


fatos distantes, que estariam longe do indivíduo, mas a memória agiria sobre o que foi vivido e

131
nesse sentido, não seria possível trabalharmos a memória como documento histórico.

No caso de Museus históricos, que narram a história de uma cidade ou de um grupo


social, como é o caso do Museu do Colégio Mauá, que possui em seu acervo e em exposição 8
objetos que despertam memórias e sentimentos que não despertariam talvez em pessoas de
outras locais. Pois os mesmos somente fazem sentido para um determinado grupo social.

Na Idade Média veneravam-se os homens idosos, pois eram estes os responsáveis pela
memória, transmitida através da história oral. O surgimento da impressa é dos fatores que
contribuiu para auxiliar na preservação da memória.

Entre as múltiplas descrições que comprovam a enorme revolução trazida pela imprensa
de se conservar a memória, o autor destaca a necessidade de festas nacionais, instrumentos de
suportes para comemorações (moedas, medalhas, etc.), a construção de monumentos de
lembrança, a abertura de Museus e as fotografias.

Segundo NORA (1993) a memória é a vida, ela é carregada por grupos e pode estar
sempre em constante evolução, aberta para a dialética da lembrança e do esquecimento.
A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer [...] que
há tantas memórias quanto grupos existem; que ela é, por natureza,
múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. (NORA, p.
9, 1993)

Com a necessidade de se preservar a memória nasce a necessidade de criar-se espaços


físicos para se preservar o tipo de memória mais exigida na sociedade contemporânea: a
coletiva.

NORA (1993) declara em seu texto que os lugares de memória nascem e vivem da
ausência de memória espontânea, por isso nasce a necessidade de se criar ambientes que a
mantenha protegida do esquecimento. .

O Museu não deve ser simplesmente um depósito de objetos, mas um endereço nobre
onde se preserva, valoriza e se resgata o valor e a história dos objetos. No espaço museológico
se guardam “relíquias” que contam a história de um lugar, de uma comunidade e da
humanidade. Os Museus têm como papel fundamental na preservação da memória, seja ela,
local, nacional ou mundial. 131
Segundo LE GOFF(1992) cada país tem uma orientação na hora de ressaltar a memória 9
no espaço museal, como por exemplo, a França que possui uma orientação consagrando suas
glórias.

Em outros países o autor cita que:

Os alemães criaram o Museu das Antiguidades nacionais de Berlim (1830) e o


Museu germânico de Nuremberg (1852). Na Itália, a Casa de Savóia, ao
mesmo tempo que se realizava a unidade nacional, cria em 1859 o Museu
Nacional do Bargello em Florença. A memória coletiva, nos países
escandinavos, acolhe a memória "popular", pois que se abrem museus de
folclore na Dinamarca desde 1807; em Bergen, na Noruega, em 1828; em
Helsinque, na Finlândia, em 1849; esperando o museu mais completo: o
Skansen de Estocolmo, em 1891. (LE GOFF, 1992 p.465)
No Brasil, o primeiro Museu e a preocupação em se preservar a memória e a história
surgiram no século XIX, por intermédio de D. João VI criando em 1818 o Museu Real, hoje
conhecido como Museu Nacional, cuja a pequena coleção havia sido doada pelo monarca761.

Os Museus somente começam a ganhar evidência no Brasil, a partir da década de 1930,


com a criação do Museu Histórico Nacional que rompeu com a tradição do Museu enciclopédia,
esses Museus eram voltados somente para grandes personagens e fatos da nossa história.

Os Museus são responsáveis pelo patrimônio natural, cultural, material e imaterial de


uma comunidade. Sua principal responsabilidade é a proteção e valorização deste patrimônio762.

Ao contrário do início do século XIX, hoje o público que frequenta os Museus não é
mais só composto pela elite, ele é formado por pesquisadores, professores com seus alunos em
busca do ensino de educação patrimonial, mas a grande parcela frequentadora é a sociedade em
geral que busca por suas memórias.

O museu do Colégio Mauá

132
0
Em 2016 o Museu do Colégio Mauá completa seus 50 anos de criação, metade de um
século destinado a preservar, com muito cuidado a história, a memória local e a realizar o
trabalho de educação patrimonial. O Museu que faz parte da 5ª região/SEM-RS, durante esse
tempo tem sido o único órgão na cidade de Santa Cruz do Sul, RS que realiza este trabalho de
preservação da história.

Aberto ao público em 20 de setembro de 1966 por Hardy Elmiro Martin - professor e


diretor do Colégio Mauá, ex-aluno da instituição e falecido em 1996 - o Museu do Colégio
Mauá, é uma instituição privada, sem fins lucrativos, que é mantido pela mantenedora do
Colégio Mauá (Sociedade Escolar Santa Cruz), sem o auxílio dos órgãos públicos sejam eles,
municipais, estaduais ou federais.

761
Caderno de Diretrizes Museológicas, Apontamentos sobre a História do Museu, Letícia Julião 2006, 2º edição
762
Princípios Básicos da Museologia, 2006
O Museu tem se conservado aberto ao público, com grandes dificuldades. Desde a sua
inauguração tem permanecido fechado apenas por curtos períodos de tempo para reformas e
troca de exposições.

Em 1945 no mesmo prédio onde atuava o Colégio Mauá como internato, começa a
funcionar um modesto Museu escolar no qual encontrava-se algumas peças arqueológicas,
animais taxidermizados entre outras de caráter histórico, entre outros itens. Este pequeno Museu
escolar tinha como objetivo principal, servir de auxílio para os professores da instituição em
aulas de história, geografia e ciências.

O acervo do Museu Escolar era composto de doações que o Professor Martin recebia
da comunidade de Santa Cruz e interior, este acervo era constituído por mais de 3,000 peças,
material este que a comunidade julgava ter valor histórico e importância para a preservação da
memória local.

Conforme as doações iam aumentando, o espaço para armazená-las de maneira


adequada diminua. Na década de 1960, nascia a necessidade de Santa Cruz do Sul possuir um
local cultural onde as novas gerações e habitantes pudessem conhecer um pouco da história 132
local. (Schuster, 1999)
1
O Museu do Colégio Mauá durante esses 50 anos passou a ter um acervo bem eclético
e além de preservar a memória local ele conta com um acervo de peças de diversos lugares do
mundo, Inglaterra, Alemanha, Iraque, onde as formas de se trabalhar com a História são
inúmeras.

O Museu passou a ser um ponto de referência sobre a cultura local, sendo digno de
respeito e carinho dos habitantes da cidade, visitantes e da imprensa por todo o simbolismo que
ele representa.

Nos anos iniciais a Prefeitura de Santa Cruz do Sul, auxiliava o Museu, divulgando-o
durante a FENAF763e o exaltando como um dos principais pontos turísticos da cidade, além de
auxiliar financeiramente.

FENAF – Festa Nacional do Fumo, que ocorreu durante os anos de 1966, 1972 e 1978, depois substituída por
763

Oktoberfest em 1984.
O Museu nos recortes de jornais pesquisados e analisados entre os anos de 1969 até o
início dos anos 2000 é sempre retratado de forma digna de respeito pela comunidade, pois o
mesmo é o único que preserva a memória e atrai um grande número de turistas.

Neste período é muito comum encontrar nestes recortes, a importância do Museu para
a comunidade e até mesmo jornais da capital ressaltam este valor.

Em 1º de agosto de 1970, o jornal local Gazeta do Sul, lança um caderno especial em


homenagem ao aniversário do Colégio Mauá, neste o Museu é enfatizando sua importância para
a comunidade “O Museu do colégio Mauá, orgulho de toda uma região”.

A então curta história do Museu, o trabalho e a equipe são descritos nesta reportagem.
Alguns órgãos públicos como, por exemplo, a Câmara de Vereadores de Santa Cruz do Sul,
realizaram homenagens a Instituição Colégio Mauá e Museu, destacando-se os elogios feitos
ao professor Hardy E. Martin como eficiente e dinâmico, “o homem certo no lugar certo”.

A intensidade e a importância pela qual o Museu é retratado pela mídia, os comentários


do público que frequenta e o grande número de visitantes que o Museu recebeu até o final da
década de 1990 132
Entre os anos de 1966 e 1999, um dos fatores que podemos apontar para esse altíssimo 2
número de vistas, é a grande divulgação que o Museu recebia da impressa. Reportagens
especiais sobre o Museu eram muito comuns. Podemos incluir também o fator que neste período
o Museu não cobrava ingresso.

No final dos anos 90 e primeira metade de 2000 houve uma considerável queda no
número de visitas. O Museu deixa de ser alvo de grandes reportagens e passa a ganhar apenas
pequenas notas nos jornais locais.

Até a primeira metade dos anos 2000, o Museu sempre esteve presente em reportagens
nos jornais locais, conforme consta no Arquivo do mesmo. O Museu era exaltado pela sua
importância para a cidade.

A queda no número de visitantes também pode ter sido motivada pelas frequentes
reformas que o prédio exige de tempos em tempos ficando assim muitos meses fechado.
Nos períodos em que precisava manter se fechado, para obras em sua estrutura física, o
mesmo recebia matérias muitas vezes de destaque, que anunciavam com orgulho a reabertura
do Museu.

No ano de 2016 e a reabertura do Museu quase não ganhou destaque na mídia. A sua
reabertura recebeu apenas uma pequena nota online no site do jornal Gazeta do Sul (Portal
Gaz), sobre a reabertura do Museu e a sua nova exposição temporária.

O abandono da história local pela mídia regional, infelizmente não tem como passar
despercebida. Comumente o Museu é referência para pesquisa por parte da imprensa quando
ocorre o dia do Colono, Imigração alemã, dia do Município, chegada dos Imigrantes, Heranças
Germânicas e Oktoberfest. O Museu geralmente fica no esquecimento da mídia até o evento,
onde a falta de memória será resgatada junto ao Museu.

No final dos anos 90, cria-se a necessidade de cobrar ingresso. Ela nasce a partir do
momento em que o museu encontra-se com grandes dificuldades para se manter aberto. Entre
elas: a estrutura do prédio passa por frequentes problemas, devido a ação do tempo; telhado e
pisos foram trocados o que levou o Museu a fechar as portas por alguns meses. 132
Ainda no final dos anos 90, uma parte do público que passava a procurar o Museu, não 3
o procurava por fins culturais, segundo informações da atual Diretora do Museu, Maria Luiza
R. Schuster, alguns procuravam para realizar seções de fotos pessoais, algumas vezes
danificando objetos, indivíduos com más intenções, ocasionando furtos de pequenas peças ou
em dias de chuva o Museu servia de abrigo.

Devido a esses problemas e a falta de verba para manter o Museu, no ano de 2000,
seguindo exemplos de Museus de outros locais, o Museu do Colégio Mauá passa a cobrar um
valor simbólico de R$ 1,00 de ingresso para o público em geral e meia entrada para estudantes
e aposentados.

Hoje em dia algumas pessoas ainda protestam sobre o fato do Museu possuir este
ingresso, atualmente no valor de R$ 3,00 para o público em geral e meia entrada, R$ 1,50 para
estudantes e aposentados. Porém se não fosse esse pequeno ingresso haveria a possibilidade do
Museu ter fechado suas portas permanentemente.
Atualmente, no meio acadêmico, principalmente no curso de História, poucos são os
alunos que acessam o Museu para conhecer ou para realizar pesquisas. Sendo que o acervo do
Museu já foi utilizado inúmeras vezes como fonte de pesquisa nas mais diversas áreas ou até
mesmo utilizar o Museu como uma sala de aula alternativa.

E com esta baixa procura pelo espaço, tem ocorrido a diminuição da memória local, pois
poucos ainda a dispõe a conhecer e preservar a memória e o Museu tem tido a tarefa nestes anos
de não deixar que esta memória tão importante para a comunidade local se apague.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para alguns pode parecer uma visão romantizada, mas o Museu é a prova que sonhos
podem se tornar realidade. O sonho que o Professor de letras, Hardy Elmiro Martin possuía de
Santa Cruz do Sul, ter um Museu que contasse e mantivesse a memória sempre viva, tornou-se
realidade. É óbvio que só se tornou realidade porque sempre contou com auxílio de sua equipe
e também graças às pessoas que reconheceram o trabalho daquele modesto grupo e deram
continuidade a ele. Os professores Nestor Raschen e Maria Luiza R. Schuster nos últimos anos 132
tem trabalhado muito para manter o Museu aberto, mesmo muitas vezes não recebendo os 4
louros merecidos por seus esforços.

O Museu não possui problemas como os Museus Estaduais citados por SILVEIRA
(2009), o Museu do Colégio Mauá possui equipe habilitada que trabalha cotidianamente na
preservação do acervo.

Um dos maiores problemas nestes últimos anos tem sido lidar com a ausência de
memória, o descaso e a falta de preocupação em manter viva a história. O mais lamentável que
esse descaso não vem da população em geral, esta que por sinal é um dos maiores
frequentadores do Museu, o descaso parte do meio acadêmico e da mídia que prefere ignorar a
educação e a cultura.

No meio acadêmico, os alunos desconhecem o valor que peças, muitas vezes humildes,
tem em contar a história, como por exemplo, moedas, utensílios domésticos, roupas que são
ferramentas importantes para se escrever a história, seja elas utilizadas como pesquisas764 ou
para ilustrar as aulas de história quando ocorridas no Museu.

Não descarto o descaso da mídia que procura o Museu, quando convém, nos períodos
festivos para curtas explicações sobre os mesmos e o ignora quando lança exposições, ao
contrário do que ocorria em outros tempos em que a mídia, exaltavam a importância dele para
a cidade e a grandeza desse acervo e hoje são pequenas notas, isso quando o Museu é lembrado.

Esse esquecimento da mídia tem afetado a busca do público pelo Museu, pois a falta de
“aparecimento” tem gerado o esquecimento da população que muitas vezes acaba acreditando
que o Museu encontra-se fechado.

Atualmente o grande público do Museu do Colégio Mauá tem sido de escolas do ensino
municipal e particular, desde os anos iniciais até o ensino médio. Recebe alunos de várias
cidades, para conhecer o acervo arqueológico e histórico. Atualmente as turmas de estudantes
vêm ao Museu muito bem preparado pelos seus professores para uma visitação com a intenção
de aprendizagem e enriquecimento de seus conhecimentos.

Negar o valor do Museu do Colégio Mauá, é o mesmo que negar ao público que o 132
procura o direito a memória, o direito de conhecer a história da cidade. É negar o 5
reconhecimento aos fundadores, pois muitas pessoas se envolveram e ainda envolvem-se sem
fins lucrativos para manter esse espaço, o único da cidade destinado a guarda da história local
e regional.

O Museu do Colégio Mauá ao chegar ao seu cinquentenário tem buscado renovar-se em


cada nova exposição, buscando sempre possibilidades e conhecimento através da pesquisa, esta
que é uma das ferramentas básicas de um Museu.

Apoiar os lugares de história e de memória deve ser uma tarefa de todos. A preservação
da história e dos seus elementos, a cultura, os bens patrimoniais e o incentivo na busca do
conhecimento também devem ser repassados a todos.

764
Em 2008, a acadêmica da UNISC, Shana Cecilia Rich utilizou o acervo de Brinquedos como fonte de
pesquisa. – O Prazer Pueril em Santa Cruz do Sul 1850-1950
Somente através de incentivos na área da educação patrimonial, valorizando a memória,
tanto nas escolas, mídias e universidades conseguiremos que as instituições voltadas para a
preservação cultural consigam seu lugar.

Como já diz o ditado popular, um povo sem memória é um povo sem história.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Eça Editora, 1986. 309 p

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de Mario de Andrade/ Mario de Souza Chagas. - - Chapecó: Argos, 2006. 135 p.

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232p – Publicações técnicas.

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Nacional Pró Memória; Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro- RS; Belo Horizonte: UFMG,
132
1990. 99p. 6
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e
patrimônios - Rio de Janeiro, 2007.

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Paulo, PUC, n. 10, 1993, p. 7-28.
MENEZES, Ulpiano Bezerra. A crise da Memória, História e Documento: reflexões para
um tempo de transformações. In: SILVA, Zélia Lopes da (org.). Arquivos, patrimônio e
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POULOT, Dominique. Museu e Museologia/Dominique Poulot; tradução Guilherme João de


Freitas Teixeira-Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

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– CNPq/MCT – Museu da República – IPHAN/MinC. Rio de Janeiro: MAST, 1995.

SANTOS, Fausto. Henrique. Metodologia Aplicada em Museus. São Paulo Editora


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SILVEIRA, Éder da Silva (Org.). Ensino de história, história oral e museologia: reflexões
para a sala de aula. São Leopoldo: Oikos, 2009
SCHUSTER, Maria Luiza Rauber. A História do Museu do Colégio Mauá. Porto Alegre
1999
SUANO, Marlene. Oque é museu. São Paulo. Editora Brasiliense. 1986
ROUSSO, Henry. O arquivo ou o indício de uma falta. In: Estudos Históricos, Rio de

132
Janeiro, nº 17, 1996.
SILVA, Zélia Lopes da (org.). Arquivos, patrimônio e memória: trajetórias e

7
perspectivas. São Paulo: UNESP/ FAPESP, 1999
UM PALCO DE MEMÓRIA: A ESCOLA DE TEATRO LEOPOLDO FRÓES765

Ana Carolina Machado766


Bruno dos Santos Martins767
José Martinho Rodrigues Remedi768.

RESUMO
O presente artigo foi pensado devido ao pouco conhecimento e divulgação a respeito da Escola
de Teatro Leopoldo Fróes (ETLF). A Escola fundada em 1943, deixou um grande legado
cultural na cidade de Santa Maria, em que artistas amadores demonstrando seu grande amor em
levar a arte, mesmo com a falta de incentivo financeiro e de uma sede própria, nunca deixaram
de encenar suas peças, sempre unidos em prol do mesmo ideal, levar a arte para todos.
Movimentaram durante 40 anos o calendário cultural do município, tornaram-se parte do dia-
a-dia dos santa-marienses da época. Em 1983 as cortinas se fecharam pela última vez para as
apresentações da Escola, mas as cortinas para história, jamais se fecharam, continuam abertas
e vivas até hoje, ajudando a contar este período memorável para Santa Maria.
132
Palavras-chave: teatro, cultura, memória.
8
INTRODUÇÃO

O teatro inúmeras vezes parece uma expressão em crise. Em certas épocas


quase perde o sentido. Em outras é perseguido. Às vezes refugia-se em
pequenas salas escuras, às vezes sai para as ruas e redescobre a luz do sol. Sua
função social tem sido constantemente redefinida. Desde muitos séculos antes
de nossa era até hoje, nunca deixou de existir: há algum impulso no
conhecimento, prazer e denúncia. (PEIXOTO, 1985, p. 07).

Ir até um teatro, assistir uma apresentação, é por séculos, uma atividade praticada por
uma grande parcela da humanidade. O ser humano sempre possuiu a carência de se representar,

Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


765
766
Acadêmica de Lic. e Bacharelado em História da Universidade Federal de Santa Maria. e-mail:
anacarolinamenegotto@hotmail.com.
767
Acadêmico de Lic. e Bacharelado em História da Universidade Federal de Santa Maria, e-mail:
brunosmcacequi@gmail.com.
768
Prof. Dr. da Universidade Federal de Santa Maria do departamento do curso de Lic. e Bacharelado em História,
e-mail jose.remedi@gmail.com.
demonstrar suas paixões, suas emoções, sonhos, tristezas, alegrias, seus anseios, etc., utilizando
como uma das ferramentas para suprir essas necessidades, o teatro. Este antes de tudo é uma
arte, uma arte que está relacionada à história do homem, um meio de comunicação, envolvendo
a literatura e expressão artística. Seja qual for o objetivo da obra, o teatro já faz parte do nosso
cotidiano.

A arte é necessária, é uma linguagem que mostra o que há de mais natural no


homem; através da qual é possível verificar, até mesmo, que o homem pré-
histórico e o pós-moderno não estão distantes um do outro quanto o tempo nos
leva a imaginar. A arte é baseada numa noção intuitiva que forma nossa
consciência. Não precisa de um tradutor, de um intérprete. Isso é muito
diferente das línguas faladas, porque você não entenderia o italiano falado há
quinhentos anos, mas uma obra renascentista não precisa de tradutor. Ela se
transmite diretamente. E essa capacidade da arte de ser uma linguagem da
humanidade é uma coisa extraordinária (OSTROWER, 1983, p. 53)

Não há como negar a importância do teatro na história da humanidade, desde os


primórdios de Platão, o teatro era usado como mecanismo visando à educação, difundindo
através das encenações quem eram apresentados para o povo, os pensamentos, valores,
tradições de seus respectivos períodos. Do teatro dá-se a luz a origem da televisão e do rádio.
É importante compreendermos o teatro a partir da sua etimologia. A palavra “teatro” é 132
uma palavra com significado ambíguo, deriva do verbo grego theastai, que significa: ver, 9
enxergar, contemplar, olhar, se perceber, perceber o outro e a sua relação com o outro. A partir
do seu significado, percebemos que ele tem como função: mostrar aos outros os
comportamentos sociais e morais a fim de difundi-los.

Inicialmente designava o local onde aconteciam espetáculos. Mais


tarde serve para qualquer tipo de espetáculo: danças selvagens, festas públicas,
cerimônias populares, funerais solenes, desfiles militares, etc. A idéia que a
palavra hoje desperta em nós só aparece definida no século XVII. Afinal, o que
distinguiria o teatro de outras manifestações semelhantes?
O princípio do teatro tem sido objeto de inúmeras especulações. Mas
praticamente todos situam dois pontos irrecusáveis: desde cedo o homem sente
a necessidade do jogo, e no espírito lúdico aparece a incontida ânsia de “ser
outro”, disfarçar-se e representar-se a si mesmo ou aos próprios deuses ou
assumir o papel dos animais que procura caçar para sua sobrevivência, às vezes
inclusive fazendo uso de máscaras; e ainda, ao que tudo indica, o jogo teatral,
a noção de representação, nasce essencialmente vinculada ao ritual mágico e
religioso primitivo. Estes pontos indicam questões pertinentes e estimulantes.
[…]
[...] Na verdade, o teatro nasce no instante em que o homem primitivo
coloca e tira sua máscara diante do espectador. Ou seja, quando existe
consciência de que ocorre uma “simulação”, quando a representação cênica de
um deus é aceita como tal: a divindade presente é um homem disfarçado. Aqui
começa o embrião da noção de ficção e também da noção de fazer arte. O
teatro define seu terreno específico. E, naturalmente, enquanto para os
idealistas sua essência pode ser até mesmo divina, para os materialistas seu
significado é concreto. E pertence aos homens. (PEIXOTO, 1985, p 14, 15-16)

Um espetáculo teatral seja ele feito para emocionar, divertir, conscientizar,


problematizar, polemizar, até mesmo educar e dentre várias outras formas de se fazer teatro,
sempre esteve presente na nossa sociedade, por muitas vezes com mais evidência e por outras,
com menos. O teatro, é uma arte que se recicla, adaptando-se ao seu contexto histórico e social
de cada local no qual ele se faz presente. Em Santa Maria - RS, não foi diferente, localidade
onde um grupo de atores amadores resolveu formar uma Escola, “eram gente da cidade -
funcionários públicos, profissionais liberais, empregados da iniciativa privada” (CORRÊA,
2005, p. 11), transformando a calendário cultural do município, com seus amores pela arte,
surgindo assim: a ETLF.

A escola de teatro leopoldo fróes

Santa Maria, uma das maiores cidades do interior do estado do Rio Grande do Sul, sendo
133
a quinta mais populosa, localizada região central, conhecida como Coração do Rio Grande. É
considerada uma cidade universitária, possui um grande número de universidades, destacando 0
a primeira universidade pública do interior do Brasil, a Universidade Federal de Santa Maria,
fundada em 14 de dezembro de 1960, outro ponto que movimenta o município, é o exército que
conta com o segundo maior contingente do País, fatores estes que influenciam na economia
local.
Na década de 1940, período de surgimento da ETLF, a cidade era um grande centro
ferroviário, já contava com um cenário do meio artístico, como o Teatro Treze de Maio,
“também o Clube União e a Sociedade Instrução Recreativa promoviam espetáculos e até a
Associação Protetora do Hospital de Caridade criou o seu corpo cênico, sob o comando de João
Belém769” (HESSEL, 1999, p 125).
A partir da década de trinta, a arte teatral da cidade ganhou destaque
com Lamartine Souza, Fernando do Ó e Rubéns Belém. Muitas peças de
autoria ou com a direção desses autores foram apresentadas com grande
sucesso. Algumas delas tiveram a participação de um grupo de amadores

769
João da Silva Belém nascido em Porto Alegre – RS em 24 de março de 1874, foi jornalista, professor e escritor
faleceu em Santa Maria – RS em 24 de junho de 1935
formado por pessoas apaixonadas por teatro, entre elas Edmundo Cardoso, e
que desenvolviam paralelamente às suas atividades profissionais (SIMÕES,
2011, p. 32).

Nessa conjuntura, ocorreu a organização de um grupo teatral que tinha como objetivo o
trabalho amador, surgindo a ETLF. Através da Escola, a cidade de Santa Maria se colocou como
um centro onde o teatro ocupava um papel central nas atividades culturais do município. Por
ter sido um forte agente cultural nos anos de 1943 a 1983, e possuir uma coleção de 40 textos,
dentre comédias e dramas, atendendo ao público infantil e adulto, algumas sendo apresentadas
no Theatro São Pedro em Porto alegre e também em festivais internacionais é que se dá a
importância de rememorar esse período que teve grande expressão para a cidade de Santa
Maria.
A ETLF foi fundada em 1943 por um grupo de teatro amador, entre eles estavam
Edmundo Cardoso770, a denominação da escola foi sugerida como homenagem ao grande
teatrólogo, poeta, empresário e ator teatral brasileiro da época, o carioca Leopoldo Fróes
(Niterói, 1882- Suíça, 1932). Na seção inaugural em 10 de dezembro de 1943, foi eleita a
primeira diretoria e a comissão para elaboração dos estatutos sociais da Escola de Teatro. Como
diretor artístico, foi escolhido Edmundo Cardoso. 133
1
Em 10 de dezembro de 1943, em reunião no salão da antiga Faculdade de
Farmácia (cedido pelo então diretor, Francisco Mariano da Rocha), foi fundada
a Escola de Teatro Leopoldo Fróes, que consolidou o teatro amador santa-
mariense. Na seção inaugural, foi eleita a primeira diretoria da Escola para
elaboração dos estatutos sociais. [...](CORRÊA, 2005, p. 40).

No ano de 1943 atendendo a solicitação do Grêmio da Formandas do Colégio


Centenário, Edmundo Cardoso e Setembrino de Souza, organizaram uma peça teatral, sendo
assim, formando um grupo para encenar a peça Saudade, esta foi escrita por Paulo Magalhães,
ocorrendo no Teatro Imperial, tendo grande êxito de público. Neste mesmo ano, inspirados no
grande sucesso que obtiveram com a apresentação de Saudade, montaram a comédia chamada
de “Compra-se um Marido”, escrita por José Wanderley, obtendo o mesmo sucesso. Essas peças
entusiasmaram o grupo, levando a criação da ETLF.
No ano de 1943 foram montadas e encenadas as comédias Compra-se um marido

770
Edmundo Cardoso nascido em Santa Maria – RS no ano de 1917. Foi teatrólogo, escritor, funcionário da justiça
e jornalista. Além de fundador da Escola de Teatro Leopoldo Fróes, fundou Clube de Cinema de Santa Maria.
Participou Academia Rio-Grandense de Letras e foi ator no filme “Os Abas Largas”, rodado em Santa Maria na
década de 1960 pela Lupa Filmes do Rio de Janeiro. Faleceu em 2002.
(encenada em 31 de agosto), a Escola de Teatro percorreu várias cidades do interior do Estado
como as cidades como Cachoeira do Sul e São Pedro do Sul, no qual, levaram um repertório
formado por Saudade de Paulo Magalhães que foi encenada em 30 de julho de 1943. Em 1994:
Marido número cinco e Os divorciados (encenada primeiramente em 28 de novembro). Em
1945 acentuou-se o repertório nacional: Deus lhe pague (encenada primeiramente em 24 de
abril), Maria Cachucha (encenada primeiramente em 04 de junho), Feitiço (encenada
primeiramente em 05 de junho), A barbada (encenada em 05 de novembro) e Pertinho do céu
(encenada primeiramente em 06 de novembro). Neste ano, ocorrem duas mortes de membros:
Miguel Dequech, que era o maquinista e de Murias Bastos que era locutor da Radio Imembuí771
Nestes 40 anos, muitas peças foram encenadas, vários gêneros foram apresentados de
acordo com o público que visava ser atingindo, eram comédias e dramas, apresentados para as
crianças e para os adultos, algumas aqui já mencionadas e dentre outras: Era uma vez um
vagabundo, Pense alto, O burro, Calcanhar de Aquiles, Lar, do lar, Avatar, É proibido
suicidar-se na primavera, As bodas do diabo, Curvas perigosas, Espectros, A camisola do anjo,
A raposa e as uvas, Delito na Ilha das Cabras, Esta lá fora um inspetor, O casaco encantado,
O caixa que foi até a esquina, Pluft o fantasminha, Via Sacra, O cavalinho azul, O Asilado, 133
Roleta Paulista, A Falecida, Maria Minhoca, A história do zoológico, Pic-nic no Front A
canção dentro do pão, A revolta dos brinquedos, Soraya Posto 2, Dona Patinha vai ser miss, 2
Maroquinhas Fru-fru. A última peça a se encenada pela ETLF foi: Joãozinho anda pra trás.
Os espaços culturais usados para as encenações tinham que ser divididos com outras
atividades de cunho educacional e artísticos e principalmente com o cinema, grande concorrente
do teatro. As pessoas que integraram a Escola foram muitas durante o período de existência,
eles eram: atores, dirigentes, técnicos e colaboradores e dentre esses, alguns ingressaram, outros
saíram, mas alguns assim como, por exemplo, Edmundo Cardoso, sempre se fizeram presentes,
desde a fundação até extinção da ETLF em 1983. Cabe aqui mencionar, sem menosprezar as
demais, a Edna Mey Cardoso772, atriz de destaque, atuou em várias peças do grupo, estando na

771
A Rádio Imembuí foi fundada em 13 de fevereiro de 1942, foi a pioneira,, contava na década de 50 a 60 com
programas de auditório, radionovelas transmitiam eventos esportivos e festivos, desenvolvendo um papel na
cidade de Santa Maria, se fazendo presente até os dias de hoje.
772
Edna Mey Cardoso, esposa de Edmundo Cardoso, nasceu em Cruz Alta, em 1º de março de 1919. Completou
o Curso de Guarda-Livros, fundou uma escola de dança clássica.. Em 1941, em Porto Alegre concluiu o curso na
Escola Superior de Educação Física. Cursou pós-graduação em Orientação Educacional, na antiga Faculdade de
Filosofia Imaculada Conceição (FIC) Em 1943 casou-se com Edmundo Cardoso, Na ETLF fundou e dirigiu o
Departamento de Teatro de Fantoches. Participou do filme “Os Abas Largas” em 1961, produzido pela Lupa
companhia da Escola até o seu falecimento no ano de 1979 com cinquenta e nove anos de idade.
O grandioso sucesso que a Escola, pode ser exemplificado com as temporadas que foram
realizadas no Theatro São Pedro, em Porto Alegre. Em 1954, apresentaram Curvas Perigosa,
em 1995 levaram as peças: Espectros, de Ibsen, As Bodas do diabo do Argentino Aurélio
Ferretti, A raposa e as uvas, de Guilherme de Figueiredo. Além disso, realizaram várias
participações em festivais, como os: Expansão do Teatro Infantil em Santos e o Oitavo Festival
Internacional de Teatro em Pelotas. Foram realizadas excursões às cidades de Florianópolis,
Santa Catarina e Salvador, Bahia, A viagem para Salvador, em 1960, os integrantes (12 pessoas)
foram conhecer o Teatro Castro Alves, que encantados com a beleza do Teatro, buscavam
materializar mentalmente como seria a sua sede, Edmundo Cardoso conseguiu as passagens
aéreas com o Governador Leonel Brizola.
A ETLF sempre esteve envolvida com eventos sociais, tanto de cunho comemorativos
quanto beneficentes. Em 10 de dezembro de 1968 em comemoração aos 25 anos, foi inaugurado
o busto de seu patrono Leopoldo Fróes, que teve como escultor, o artista Ermenegildo Marotto,
neste mesmo dia, a formação do coral sob a regência de Cacilda Bohrer. No seu 30° aniversário,
ocorreu uma série de atividades, como a iluminação festiva do busto de Leopoldo Froés, visita 133
ao túmulo dos integrantes falecidos, exposição fotográfica, agradecimentos aos sócios-
fundadores e apresentações artísticas. Nos 35 anos, com a designação da Câmara Municipal de 3
Vereadores tornaram a denominação de ruas como Deus lhe pague, Martins Pena e Travessa
Leopoldo Froés. Realizaram-se além das mencionadas, inúmeras outras atividades no decorrer
de seus 40 anos de existência.
O Coral que foi criado em 1968, esteve presente em vários festivais nacionais de coros,
apresentou-se também em cidades aos arredores de Santa Maria, obtendo muito sucesso. O
Coral da ETLF tinha como regente a maestrina Cacilda Frantz Bohrer e teve a participação de
vários cantores elegidos. Outra atividade realizada pela Escola foi à criação do Teatro de
Fantoches, que foi criado e dirigido pela atriz e professora Edna Mey Cardoso, este
departamento realizou algumas apresentações.
As peças encenadas pela ETLF se constituem em 40 textos distribuídos entre comédias
e dramas, destinados ao público infantil e adulto, os temas das peças são bem diversificados,

Filmes. Faleceu em 19 de fevereiro de 1979 em Santa Maria.


atingindo um grande público das mais variadas faixas etárias.
Com o empenho da escola, iniciou-se uma intensa atividade do teatro na cidade de Santa
Maria. Em 1953 realizaram a tentativa de conseguir um terreno com então prefeito da época,
Heitor Silveira Campos (sua administração foi de 1952 à 1956 ), enviaram a Câmara Municipal
de Santa Maria em memorial, no qual, contaram as atividades que a Escolar realizava, as
necessidades e o que ele pretendiam, justificando o motivo de necessitarem a aquisição de um
terreno. Em setembro de 1953, a Câmara aprovou a doação de um terreno para a ETLF, sendo
este recebido em janeiro de 1954.
[…] O Dr. Walter Cechela, Presidente da Câmara (…) declarou aprovado o
Projeto de Lei do Executivo, concedendo assim, à Escola de Teatro Leopoldo
Fróes a doação do terreno sito na Rua Dr. Bozano, esquina Appel medindo
17.80 de frente por 36 metros de fundos (Ata n. 13. 15 set 1953, p. 14 apud
CORRÊA, 2005, p. 53)

O terreno que havia sido doado pela prefeitura, foi vendido para aquisição de um novo
terreno que estivesse mais próximo do centro da cidade. Mesmo chegando a ter um terreno, a
Escola não conseguiu colocar seu projeto da construção da sua sede em prática, devido à falta
de recursos financeiro. Sem conseguir lograr a construção de sua sede, a Escola nunca deixou
de encenar suas peças, o sentimento de amor e união sempre fez com que estivessem guiados 133
pelo mesmo ideal, ajudando-os a superar as dificuldades.
4
O ano de 1983 foi marcado pelo término das atividades artísticas da escola, nos anos
anteriores a Escola sofreu grandes perdas, como a já mencionada morte de Edna Mey Cardozo
em 1979, neste mesmo ano, ocorreria o fechamento do Cine-Teatro Imperial, local onde
aconteceram inúmeras apresentações da Escola. Em 1981 morreria o ator José Medeiros.
Uma de suas características principais era as suas produções que foram realizadas de
formas amadoras. Houve um conflito constante entre os integrantes sobre continuar de forma
amadora ou se eles deviam se profissionalizar, a profissionalização teve certa resistência, era
vista como algo comercial, da qual não viam com bons olhos.
A última peça encenada foi em 1983, ocorrendo os encerramentos de suas atividades
artísticas. Somente em 26 de abril de 2001 que a ETLF deixou de existir juridicamente,
passando a ser extinta. Neste dia ocorreu uma Assembleia Geral Extraordinária, na residência
de Edmundo Cardoso.
A Escola de Teatro Leopoldo Fróes atendeu a todas as exigências de seu
próprio Estatuto e que nesta data já não resta nenhum valor a ser cumprido,
pois não existem credores, nem devedores de espécie alguma e seu patrimônio
conforme exigência do referido estatuto já foi doado a Prefeitura Municipal de
Santa Maria, conforme contrato de transferência a cessão de direitos
contratuais e de posse, em 17 de abril de 2001, e que pouco material
cenográfico que por ventura poderia existir já está totalmente deteriorado
porque na maioria era material cenográfico que por ventura poderia existir já
está totalmente deteriorado porque a maioria era material recebido por doações
e já reciclado e o saldo bancário que imaginava ter, foi totalmente consumido
pela inflação e por tarifas bancárias. Assim sendo, esta Escola de Teatro
Leopoldo Fróes fica dissolvida (Ata n. 47, 2001, p.42 apud CORRÊA, 2005,
p. 52)

O terreno que foi fruto de doação da Prefeitura foi devolvido ao poder público no ano
de 2001, neste ato, os membros remanescentes, ao assinarem o documento, o sonho de uma
sede própria se desfez, mas este sonho continua vivo na memória de todos, imaginando como
seria este lugar onde a imaginação se faria realidade, no palco de memória, ele se faz realidade.
Devido à tamanha importância e atuação da ETLF no município e também no estado se
dá a necessidade de resgatar e reviver as memórias dessa escola, que teve grande influência
cultural no período do seu funcionamento.

CONCLUSÃO
133
É importante ressaltar o espírito de luta que os integrantes tiveram durante os quarenta 5
anos de existência ativa, nos quais mesmo sem grandes incentivos monetários, demonstraram
seu grande amor em levar a arte no ato de resistir. Carregaram o nome da cidade de Santa Maria
para várias regiões do Brasil. A Escola sempre teve um grande público, que englobavam todas
as classes sociais, vinham para o espetáculo, famílias inteiras, desde as vilas mais pobres.
Nos quarenta anos, o grupo passou por altos e baixos, saídas de atores, mudanças de
repertório, a morte de integrantes, mas mesmo com dificuldades, permaneceram unidos
durantes esses longos anos. O sonho de uma sede própria infelizmente nunca se concretizou,
talvez a palavra “nunca”, não caiba aqui, porque este sonho ainda está vivo no coração dos
remanescentes e daqueles que apreciam e admiram a incrível história da ETLF.
Santa Maria tem muito a agradecer a esta Escola, que tanto a ajudou no seu
desenvolvimento cultural e porque não, social. Foram 40 anos, estes são impossíveis de ser
contemplado em um artigo, a extraordinária estrada percorrida nestes longos anos, não pode ser
esquecida, ela deve ser motivo de orgulho, grandes referências estão atualmente no cotidiano
da cidade: placas comemorativas, nome de ruas, bustos, nomes de escolas; a ETLF continua
sempre presente, seja nestes símbolos mencionados, seja na memória daqueles que um dia
aplaudiram suas encenações e daqueles que se dispõem a pesquisar o material e daqueles que
se dispõem a ler o material produzido. A Escola de Teatro Leopoldo Froés transpassou o palco
para se fazer presente no coração santa-mariense, o especulo não pode parar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERRETTINI, Célia. O teatro ontem e hoje. São Paulo: Editora Perspectiva, 1980.
BOROBIO, Luís. El arte y sus tópicos. Pamplona: Editorial Gomez, 1970.
CORRÊA, Roselaine Casanova. Cenário, cor e luz: amantes da Ribalta em Santa Maria
(1943- 1983). Santa Maria: Editora da UFSM, 2005.
HESSEL, Lothar. O teatro no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da
Universidade/UFRGS, 1999.
OSTROWER, Fayga. Universo da Arte. 13ªed. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1983.
PEIXOTO, Fernando. O que é teatro. 7ªed. São Paulo: Brasiliense, 1985. 133
SIMÕES, Greta Dotto. Guia do arquivo da casa de memória Edmundo Cardoso. 2011. 86
p. Monografia (Bacharel em Arquivologia)- Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria. 6
WEISHEIMER, Susan Deisi. O teatro em espaços alternativos: um estudo etnográfico
sobre dois grupos de teatro de Santa Maria- RS. 2013. 140 p. Dissertação (Pós-Graduação
em Ciências Sociais) – Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria.
O PALMEIRENSE É NOSSO, AME-O”: O ENVOLVIMENTO DA POPULAÇÃO
LOCAL COM O CLUBE DESPORTIVO EM 2001 E 2013*773

Matheus Valduga Martins**774

RESUMO

A seguinte pesquisa está buscando mostrar o envolvimento da população de Palmeira das


Missões, RS, com o futebol local, usando como base de estudos o Esporte Clube Palmeirense.
Entendendo que mesmo o Brasil sendo considerado como o país do futebol, a prática do esporte
de modo profissional em diferentes contextos é muito mais complexa do que se divulga nas
mídias, jornal e televisão. Essa pesquisa tem o objetivo de tentar retratar a ligação de
sociabilidade da população com um pequeno clube de futebol de uma cidade do interior do sul
do Brasil. A delimitação temporal do estudo que está sendo pesquisado, tentará traçar
semelhanças entre os dois anos dentro de suas particularidades e diferenças culturais e sociais.
Tanto em 2001 quanto em 2013, à população mostrou algum apoio ao clube, tenha ele sido
demonstrado nas arquibancadas, ou em diferentes atividades de arrecadação. Em 2001, o
Palmeirense tinha uma importância e relevância maior na cidade, diferente de 12 anos depois,
onde uma parcela menor de pessoas teve interesse em acompanhar o clube ou ao menos soube
da volta do time aos campeonatos regionais. Através da análise de documentos administrativos 133
do clube, jornais locais e fonte oral (de pessoas ligadas ao clube) tentar-se-á achar o
entendimento para esse afastamento da ligação do povo com o clube. Também se apresenta a
proposta do futebol não só como um esporte recreativo e/ou de “lazer”, mas como uma
7
modalidade esportiva ligada diretamente a história social e cultural da cidade. Como a pesquisa
está em desenvolvimento serão apresentados os resultados parciais que obtivemos através das
fontes orais.

Palavras-chave: Futebol, História Social, História Oral.

INTRODUÇÃO

Essa pesquisa, trás em seu desenvolvimento, diferentes perguntas sobre o mesmo tema,
a serem respondidas. Em um primeiro plano, busca-se entender como a população de Palmeira
das Missões, uma cidade do interior do noroeste do estado do Rio Grande do Sul, se relacionou

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Graduando em História Licenciatura e Bacharelado, Universidade Federal de Santa Maria (UFSM),
matheusvalduga@hotmail.com.
e se identificou com um clube desportivo local, em dois períodos diferentes. Ambos os
momentos já nos anos 2000, são separados por um breve intervalo de 13 anos. Porém, nesse
“breve intervalo”, consegue-se encontrar possíveis diversidades e semelhanças culturais e
sociais que puderam vir a influenciar a sociabilidade dos moradores com o futebol local, e mais
especificamente, o Esporte Clube Palmeirense.

Sabemos que em um âmbito nacional, o futebol teve, e continua tendo, uma grande
importância no cotidiano de nosso país. Gostando ou não, a prática do esporte, e a exibição do
mesmo, são fortemente difundidas nas grandes mídias. Aproximando um pouco mais da
realidade do Palmeirense e da cidade em que está localizado, a nível acadêmico, muito se está
sendo estudado e desenvolvido sobre o aparecimento do futebol no RS ou a algumas cidades
do estado (e seus clubes, obviamente), como Rio Grande, Caxias, Pelotas e Porto Alegre.
Algumas cidades possuem em sua história, influências de países da América Platina (Argentina,
Paraguai e Uruguai) no desenvolvimento do futebol, porém, o surgimento e o andamento do
futebol em Palmeira das Missões não teve influência latina ou estrangeira (SOARES, 2004).

Em um segundo plano, entendemos que ao tentarmos estudar as relações da população


com o clube, tiramos a prática do esporte como apenas sendo esse presente a uma “história do
133
lazer”. Mas que sim, o futebol trás influências, e é influenciado pela a história social e cultural 8
da sociedade em que está inserido. Cabe aqui ressaltar, que a nível nacional, a produção
acadêmica sobre o estudo do futebol (suas relações com a história social e cultural) e não só
como uma modalidade esportiva, mas como parte de expressão da sociedade (DAMATTA,
1982), é relativamente nova e recente. Sendo enorme a ausência de pesquisas sobre tais áreas,
nosso trabalho tenta compreender como se deram essas ligações entre o Palmeirense, sua torcida
e a população local.

O clube e o envolvimento “da Palmeira” em suas primeiras décadas

Fundado em 27 de maio de 1919, o Esporte Clube Palmeirense surge como a primeira


agremiação futebolística na atual Palmeira das Missões. Teve Pompílio Gonçalves como seu
primeiro presidente, e Setembrino Cañellas (também jogador), Romeu Vargas, Carlos Kummel,
dentre outros, como membros fundadores. Mesmo tendo sido fundado por membros de uma
elite local, o clube logo passou a ser conhecido e teve uma enorme participação da comunidade
local em geral. Em seus primeiros anos, disputava jogos com clubes da região e da própria
cidade. Podemos citar aqui, seu primeiro grande rival: o Esporte Clube Brasil. Fundado apenas
um ano após o início do Palmeirense, segundo Mozart Pereira Soares em seu livro “Santo
Antônio da Palmeira” ambas as torcidas, levavam o futebol, muito a sério:

Pelos anos vinte e trinta, a rivalidade entre esses dois clubes de futebol mantinha a
sociedade palmeirense mais dividida do que os partidos políticos. O choque-rei dessa
guerra permanente era vivido todos os anos a 7 de setembro, quando as inimizades
recrudesciam, não poupando sexo nem idade. Em 1923 possuíam suas sedes e praças
de esportes bem próximas uma da outra, entre as ruas Silveira Martins e Pinheiro
Machado, separadas pela Silva Jardim. (SOARES, 2004. p. 286).

Se já nos anos 20 e 30 a rivalidade entre os dois clubes era latente, e muitas vezes
“levada às vias de fato”, podemos perceber que um envolvimento da população local com o
futebol, se tornará real e bastante difundido. Atentamos aqui que tal ligação entre “povo” e
“bola” pode ter sido criada através da simples prática desportiva. Porém, é no status de torcedor
que a população se dividia e a rivalidade se manifestava quase que de forma tradicional, no
133
mínimo uma vez ao ano. E nos jogos do Palmeirense contra times da região, era possível que
torcedores do Brasil, torcessem a favor do clube local, uma vez que era sua cidade que “vestia 9
as chuteiras”, porém, comparando com a rivalidade estadual atual entre Internacional e Grêmio,
dificilmente vimos colorados torcendo pelo rival tricolor em um campeonato internacional, por
exemplo. Interpretamos que era mais fácil um torcedor do Brasil “fazer figa” e torcer pelo
adversário do Palmeirense.

Já em 1943, após ter interrompido suas atividades, vimos o nascimento do novo, e maior
rival do Palmeirense, o Esporte Clube Ouro Verde. Fundado em 25 de novembro, seus criadores
pertenciam à Indústria Palmeirense do Mate Limitada. Mesmo após tantos anos, conseguiu-se
ainda o registro dos fundadores, presentes no livro de Mozart: Nilo Pires, César Westphalen
(então Exator Estadual de Palmeira), Darci Azambuja (médico-chefe do Posto de Saúde),
Marcelino Bianchini, Nassif Azen, Abílio Soares da Silva, Sakis Curry e outros. Vendo o Brasil
fechar suas portas, muitos torcedores que se tornaram saudosistas ou “órfãos”, passam agora a
vibrar e se identificar com o Ouro Verde. A partir de 1949, as disputas entre esses dois times
só passa a crescer, tendo em vista que agora ambos disputavam para ser o “campeão da cidade”,
onde o time vencedor viria a representar Palmeira em disputas regionais e estaduais.
Enfrentando times como o E. C. Ipiranga e/ou E. C. Harmonia, ambos de Sarandi (RS).

Muito ainda poderíamos dissertar sobre os anos seguintes dessa rivalidade entre o
Palmeirense e o Ouro Verde. Porém, ao trazermos essa recuperação de aproximadamente 30
anos, tentamos mostrar que desde sua fundação, Palmeira se ligou com o futebol, e
consequentemente com o “Merêncio” (apelido dado pelos torcedores, ao Palmeirense).

Desenvolvendo a ideia de trazer o esporte, e especificamente em nosso caso, a prática


do futebol, a um nível de interação direta de expressão da própria sociedade, conseguimos
abordar a questão da identidade relacionada ao futebol. Em “A dança dos deuses: futebol,
cultura, sociedade”, Hilário Franco Júnior (2007, p. 321) trás um debate entre identidades
coletivas e identidades individuais, e mostra que “torcer para um clube é partilhar emoções com
um número forçosamente bem menor de pessoas, o que aumenta a intensidade do afeto e
estabelece uma identidade futebolística própria para cada torcedor”.

Porém, cremos que para entendermos o Palmeirense e a população local, devemos focar
mais no Rio Grande do Sul e nas práticas do futebol aqui em nosso estado. Cesar Guazzelli, em 134
diferentes momentos consegue reconstruir uma grande parte relevante da história do futebol
gaúcho, mas focando num artigo seu em especial, intitulado de “500 anos de Brasil, 100 anos
0
de futebol gaúcho” em que mostra desde a fundação do primeiro clube de futebol do RS em
1900, vimos que diferente do Brasil, esse sendo a “pátria de chuteiras”, no sul se dá a criação
da “província de chuteiras”.

Os diferentes momentos: o ápice e o retorno

Antes de adentrarmos aos dois momentos que estão sendo estudados em nossa pesquisa,
complementando o contexto de região e futebol no interior do sul, e trabalhando a ideia do
“torcedor” e de “futebol gaúcho”, no artigo de Arlei Damo Ah! Eu Sou Gaúcho! O Nacional e
o Regional no Futebol Brasileiro publicado em 1999 (parte de sua dissertação de mestrado de
1998) o autor defende a ideia de vários futebóis. Sendo o Brasil um país enorme muito
diversificado geograficamente e culturalmente, cada região do país tem seu próprio futebol, e
então passa a mostrar a criação e caracterização do “futebol gáucho”.
Aprofundando mais ainda no futebol do sul, entende-se que o interior também tem um
estilo de praticar o futebol, e aqui conseguimos pensar na inserção do Esporte Clube
Palmeirense, que a falta de infraestrutura, pouca renda disponível, poucos sócios ou apoiadores
nos clubes, fazem a profissionalização do futebol ser mais difícil. Arlei (1999) mostra que
“outros fatores como o clima hostil - frio, chuvoso, etc- e, por extensão, os gramados
enlameados do interior do estado, exigiriam mais ênfase na preparação física dos jogadores em
detrimento da técnica [...] pensando assim, têm-se na dificuldade, o sentimento de
pertencimento e ajuda, levando a torcida a se identificar mais com a luta de conquistar a vitória
ou montar um plantel completo, por exemplo.

Obviamente a conquista da Divisão de Acesso (equivalente também à segunda divisão


do campeonato gaúcho segundo a FGF775) do Palmeirense em 2001 não surgiu “de uma hora
para a outra”. Sem adentramos muito aos detalhes “burocráticos” e aos resultados de jogos,
destaquemos que o clube permaneceu quase que esquecido e “abandonado” até 1993, ano em
que retornou para a 3ª Divisão (profissional), tornando-se vice-campeão da competição,
subindo agora para a 2ª Divisão. De 1996 até 2000, disputou a série B, nela permanecendo por
cinco anos. E então em 2001, finalmente, conquistou seu maior título: a Divisão de Acesso, que 134
lhe rendeu disputar no ano seguinte, a primeira e grande divisão do Campeonato Gaúcho. Com
1
uma excelente campanha, fora campeão invicto com 12 vitórias e um empate.

Durante a elaboração de tal pesquisa, usamos O Manual de história oral, de Verena


Alberti para as formulações das questões, e dos perfis para as escolhas dos entrevistados.
Analisamos que, segundo Verena, há mais de um tipo de entrevista para se trabalhar a história
oral. Em nosso trabalho, estamos optando pelas entrevistas temáticas, que diferem das de
história de vida:

As entrevistas temáticas são aquelas que versam prioritariamente sobre a


participação do entrevistado no tema escolhido, enquanto as de história de vida têm
como centro de interesse o próprio indivíduo na história, incluindo sua trajetória
desde a infância até o momento em que fala, passando pelos diversos acontecimentos
e conjunturas que presenciou, vivenciou ou de que se inteirou. (ALBERTI, 2005, p.
38).

775
Federação Gaúcha de Futebol, é a entidade maior e responsável pela organização do Campeonato Gaúcho de
Futebol. Tem ainda o papel de representar os clubes gaúchos junto à Confederação Brasileira de Futebol.
Como citado anteriormente, relacionando com o artigo Arlei Damo, mesmo tendo o
clube se tornado campeão do torneio que disputou em 2001, nesse mesmo ano o Palmeirense
enfrentava sim, uma grande dificuldade financeira e uma já instaurada falta de infraestrutura.
Em nossos estudos, tivemos a oportunidade de entrevistar Lair Antônio Vieira, Carlos Lauxen
e Pedro Cañellas. Os três já foram presidentes do Palmeirense, enfatizando aqui, que Vieira e
Lauxen foram respectivamente, presidente e vice-presidente em 2001. Em ambas as entrevistas,
temos relatos de que muitas vezes, tiveram de tirar dinheiro do próprio bolso, para pagar o
ônibus que faria o transporte do time, em dias de jogo, por exemplo. Porém, frente a toda a
dificuldade financeira e estrutural (vide que a capacidade máxima do estádio passou de 3500
para 5000 torcedores), o clube ainda podia contar com sua torcida e com a população
palmeirense.

Em sua entrevista, Vieira nos relatou que a seu ver, juntamente com os bons resultados
que o time vinha conquistando em 2001, o que mais uniu o torcedor e a população ao clube, era
a “expectativa”. Porém, que expectativa era essa? Segundo o mesmo (e Cañellas também nos
disse isso), a torcida tinha a expectativa de ver o clube subir de divisão. Os resultados eram
bons, e o time empolgava, a população passou a abraçar o clube frente à expectativa de ser 134
campeão e chegar à primeira divisão do gauchão. Outra expectativa que abarcou o sentimento
2
de união entre a cidade e o time, fora a de ver os dois grandes clubes do estado, jogando em
seus domínios palmeirenses. Sabendo que Inter e Grêmio eram os clubes com maior número de
torcedores (e continuam sendo) no sul a fora, naquele momento, o torcedor do Merêncio
também sendo colorado ou gremista, queria poder assistir tal embate, sendo que agora o “sonho
se tornaria realidade”.

Porém em 2002, Internacional, Grêmio, Juventude e Pelotas, não participaram da


primeira fase do torneio, pois estavam competindo na Copa Sul-Minas776. Logo, o
descontentamento da torcida e da população de Palmeira (como a de todos os outros clubes
pequenos do estado naquele ano) fora maior que o sentimento que vinha impulsionando e
lotando o estádio Luciano Ferreira Martins. A tal “expectativa” que fora citada logo acima,
desapareceu. Se antes ela era presente em todos os bons jogos que o clube vinha fazendo, e a

776
Em 2002, A Copa Sul-Minas teve sua terceira edição, com clubes de Minas Gerais, Santa Catarina, Paraná e
Rio Grande do Sul. O torneio durou de janeiro até maio, tendo o Cruzeiro (MG) como campeão.
chance de ser campeão era real, com a conquista do título em 2001, ela se concretizou. E junto
ao fato dos grandes clubes não participarem também da primeira fase, os resultados que não
eram tão bons antes, culminaram em um abandono quase que completo da torcida e da
população com o clube.

Já em 2013, a história fora diferente, mas nem tanto assim. Tendo fechado suas
portas em 2005, o Palmeirense ficou oito anos com suas atividades suspensas. Em Palmeira,
muitos torcedores que participaram de 2001, 2002, 2003 e 2004, buscavam a volta do “Leão
das Missões”. Unidos a esses, a jovem população também era motivada pela “tradição” que o
clube tivera no passado (não tão longe assim). Novamente Lair Vieira volta como presidente, e
segundo ele, a falta de estrutura, falta de investimentos e uma direção “com a mesma cabeça”
que a de 2001, sem uma atualização na maneira de retomar o clube, culminou em uma volta
cheia de obstáculos, que mesmo sem conquistar um título, ainda conseguiu abrir as portas em
2014 e 2015 (nesse ano, não tendo mais Vieira na presidência).

Jogos com horários marcados para às 16:00 horas em dia de semana, a falta de
divulgação e um envolvimento pequeno entre o clube e a população (lembrando do baixíssimo
número de sócios), foram obstáculos para o andamento do Palmeirense. Porém, tanto Cañellas,
134
quanto Vieira e Lauxen, citaram um ponto em comum frente a à dificuldade em manter as 3
contas pagas. Sendo Palmeira uma cidade voltada à pecuária e a grande plantação (de soja, por
exemplo), muitos de seus moradores envolvidos nessa cultura, os popularmente conhecidos
como “granjeiros”, mesmo morando em Palmeira, acabam não sendo naturais da cidade, ou
suas famílias também migraram de outros municípios. Logo, não possuem uma identidade ou
uma “vontade” de investir no futebol local, em sua prática ou até mesmo no próprio
Palmeirense. Sem um investimento da prefeitura municipal, ou até mesmo do estado do Rio
Grande do Sul, fica o futebol palmeirense, e o próprio Merêncio, a deriva, beirando não voltar
a abrir seus portões.

CONCLUSÃO

Mesmo que ainda em desenvolvimento, podemos analisar em nossa pesquisa, através


dos relatos dos entrevistados, que na relação entre clube e população diferenças e semelhanças
foram encontradas tanto em 2001 quanto em 2013. A má divulgação dos jogos, e o
funcionamento problemático do dia-a-dia do clube, teve uma interferência na perda da
identidade do torcedor com o Palmeirense. A falta de verba (tanto municipal quanto em uma
esfera estadual e nacional), financiamento e investimento de terceiros, destinada às práticas
desportivas, também foram cruciais nos dois momentos, e culminaram em um afastamento e
ausência, da população em referência ao clube.

Em suma, a expectativa da conquista da divisão de acesso em 2001, para disputar a


primeira divisão do campeonato gaúcho em 2002, fora crucial para uma ligação de identidade
entre torcedor e clube. Em que a própria cidade de Palmeira das Missões, “entrava em campo”.
Já em 2013, a falta de expectativas frente aos resultados negativos, levou ao esvaziamento do
estádio em dias de jogo, e por consequência, a perda de identidade fora mais rápida e maior que
no primeiro momento estudado.

Trazendo para a Academia, até o momento em que essa pesquisa está sendo
desenvolvida, nem teses ou artigos foram encontrados sobre o desenvolvimento do esporte,
conceito de identidade e/ou envolvimento com a população, no noroeste ou interior do estado,
fora encontrada. Dificultando assim, uma maior aproximação com outras cidades pequenas, e
134
seus clubes pequenos. 4
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SOARES, Mozart Pereira. Santo Antônio da Palmeira. Porto Alegre: AGE, 2004.

DAMATTA. Roberto e outros. O Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira. Rio


de Janeiro: Pinakotheke, 1982.

FRANCO JUNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade e cultura. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.

GUAZZELLI, Cesar, Augusto Barcelos. 500 anos de Brasil, 100 anos de futebol gaúcho:
construção da "província de chuteiras". Anos 90. Porto Alegre, 2000. Disponível em:
<http://hdl.handle.net/10183/31530> Acesso em: 28 de agosto. 2016.
DAMO, Arlei . Ah! Eu Sou Gaúcho! O Nacional e o Regional no Futebol Brasileiro. Estudos
Históricos (Rio de Janeiro). Rio de Janeiro, p. 87-118, 1999. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2085> Acesso em: 28 de agosto.
2016.

VERENA, Alberti. Manual de História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.

Entrevistas

Lair Antônio Vieira, realizada em Palmeira das Missões (RS), em agosto de 2016.

Carlos Lauxen, realizada em Palmeira das Missões (RS), em agosto de 2016.

Pedro Cañellas Sobrinho, realizada em Palmeira das Missões (RS), em agosto de 2016.

134
5
OS ACHADOS ARQUEOLÓGICOS DE KESEL: PORQUE JÚLIO CÉSAR TEMIA
AS TRIBOS GERMANAS DOS USÍPETES E TENCTERES?

Renan do Amarante Gonçalves

Graduando em História pela UFSM

E-mail: renan.a.g.2.9@gmail.com

RESUMO

Este trabalho objetiva apresentar algumas considerações sobre os achados arqueológicos


encontrados próximo à cidade de Kesel, na atual Holanda, que coincidem com um episódio de
conflito entre germanos e romanos durante as campanhas gálicas, empreendidas sob o comando do
General Júlio César em 58 a. C. Esse episódio ficou marcado pelo extermínio de duas tribos
germanas, os usípetes e tencteres, que pediram asilo aos romanos devido à ameaça constante que
sofriam dos suevos, a mais forte e violenta tribo germana liderada pelo rei Ariovisto, o que, no
entanto, como vemos, não aconteceu por parte dos romanos. Para compreendermos melhor nosso

134
objeto de estudo utilizamos como fontes as obras Comentários sobre a Guerra Gálica, escrita pelo
próprio General Júlio César, algumas informações arqueológicas sobre o achado e informações
adicionais analisadas a partir da obra Germânia, do historiador romano Públio Cornélio Tácito. A
principal informação que os achados arqueológicos nos apresentam é que as tribos usípetes e 6
tencteres foram exterminadas em massa pelos romanos comandados por Júlio César. Diante disso,
ao analisar a documentação escrita pelos próprios romanos, buscaremos responder às questões: Por
que Júlio César temia tais tribos germanas a ponto de exterminá-las totalmente? Por que Júlio César
e seus soldados preferiram o extermínio a negociações e inserção de tais tribos no Império
Romano?

PALAVRAS-CHAVES: História e Arqueologia; Guerras Gálicas; Extermínio; Júlio César;


Commentarii de Bello Gallico.

INTRODUÇÃO

No ano 58 a. C, Júlio César, militar e político romano da República Romana, investe


em uma campanha de anexação da Gália, território que corresponde atualmente à França. Como
sabemos, naquele contexto, a Gália era dividida em três partes: em uma delas viviam os povos
belgas, em outra os aquitanos e por último os chamados celtas ou galos pelos romanos. Os
belgas vizinhavam dos povos germânicos, por sua vez, viviam além do rio Reno e em contínua
guerra com os vizinhos (CÉSAR, Júlio). A seguir um mapa da região em questão:

134
Imagem I: As divisões da Gália romana. Disponível em:
http://www.quickiwiki.com/pt/Guerras_da_G%C3%A1lia Acesso em: 02/02/2016 7

No dia 20 de dezembro de 2015 foi noticiado aqui no Brasil, pelo Site do Yahoo, que
arqueólogos da Universidade de Amsterdã encontraram diversos artefatos como esqueletos,
lanças, espadas, cintos e elmos, na região próxima à cidade de Kessel. Além disso, os estudos
indicaram que os corpos foram recolhidos, juntos as suas armas, e depositados no leito do rio.
Estes achados correspondem a um massacre efetuado pelas legiões romanas contra as tribos
germanas dos tencteres e dos usípetes, fato este que foi relatado pelo próprio General Júlio
César, idealizador das guerras gálicas. Segundo o Gen. romano, cerca de 430 mil pessoas foram
aniquiladas, em sua maioria mulheres e crianças, entretanto, nenhuma prova foi encontrada para
tornar verídico esse episódio. Segundo todos os dados já colhidos na história até então, pode ter
sido esta a primeira invasão romana em território germânico. De acordo com o arqueólogo Nico
Roymans da Universidade de Amsterdam, conforme a matéria, é possível se questionar se a
ação do General romano não tenha sido um ato de genocídio.
Imagem II: Achados arqueológicos na cidade de Kessel. Disponível em:
https://br.noticias.yahoo.com/arque%C3%B3logos-encontram-local-onde-j%C3%BAlio-
c%C3%A9sar-152948202.html. Acesso em: 02/02/2016

Segundo o que consta na reportagem, as tribos citadas, ao que parece, não vinham com
intenções bélicas em direção aos romanos, justamente pelo contrário, eles pediam asilo a estes,
pois sofriam ameaças da tribo dos suevos, a maior e mais poderosa da Germânia, liderada por
134
Ariovisto, o rei dos Suevos.

Diante do que foi exposto, surgem algumas questões aos historiadores: Quais razões
8
levaram o General Júlio César a exterminar estas duas tribos germanas que não ofereciam
perigo aos romanos? Por que os romanos lhes negaram asilo? Teria Júlio César evitado um
confronto contra eles e sua ferocidade? Ou o massacre teria sido apenas mais uma jogada
política para seu destaque no cenário romano?

Buscando levantar possíveis respostas para estas questões, a melhor fonte a ser
utilizada é Commentarii de Bello Gallico, cujo título é traduzido comumente como
Comentários sobre a Guerra Gálica, livro composta pelo próprio Júlio César durante suas
investidas na Gália. A obra é composta por oito livros, sendo sete deles escritos por Júlio César
e o oitavo por Aulo Hircio, um de seus generais. Comentários sobre a Guerra Gálica tem por
intuito descrever aquilo que Júlio César estava presenciando no momento.

Além de ser considerado um dos maiores Generais da história, Júlio César também é
um dos mais importantes historiadores latinos da Antiguidade, acompanhado de Caio Crispo
Salústio e Tito Lívio, um trio de escritores do período clássico e grandes componentes da
literatura latina. Sóbrio e preciso, claro e metódico, brilhante e sem alardes, Júlio César escreveu
esta obra sem a assistência de pessoa alguma, são escritos originais compostos por ele, relatando
a história que ele viveu, buscando enaltecer seus feitos e enaltecer a grandeza de Roma.777

A riqueza de detalhes descrita por César vai desde a geografia local até a cultura e
costumes das tribos que compunham a Gália, as batalhas travadas, personagens célebres como
Vercingentorix e Ariovisto, as condições em campo de batalhas, estratégias utilizadas contra e
pelos inimigos e os discursos para elevar a moral de suas tropas, estão todas contidas nos
Comentários sobre a Guerra Gálica.

Passemos, então, para a descrição do confronto entre romanos e germanos em questão


e para análise da obra de Júlio César, buscando responder as perguntas acima propostas em
torno do confronto entre os soldados romanos e as tribos germânicas dos tencteres e dos
usípetes. Para nosso estudo neste texto nos apoiaremos fundamentalmente na análise
documental do material legado por Júlio César, uma vez que não foram encontrados textos
historiográficos que tratassem especificamente de tal conflito, talvez pela natureza recente dos
achados arqueológicos.
134
9
Capítulo I: Romanos e Germanos, diferentes culturas ambições em comum

Antes de nos aprofundarmos mais sobre o extermínio das tribos dos tencteres e
usípetes, devemos contextualizar os fatos anteriores a este. É preciso entender as ameaças que
os germanos estavam causando na Gália e evidenciar nesse momento os fatores que levaram o
General Júlio César a preocupar-se com as tribos do além Reno e tomar essa atitude radical sob
os tencteres e usípetes.

777
Não caberia no objetivo deste artigo levantar as diferenças de estatuto sobre a história/historiografia da
Antiguidade romana das atuais concepções sobre o fazer historiográfico, mas sobre este tema não podemos deixar
de mencionar o caráter enaltecedor da historiografia romana sobre o poder de Roma, o que fica perceptível neste
texto de Júlio César. Mais informações sobre essa ideia, indicamos a leitura de: GUARINELLO, N. L. Roma, O
Poder e a História. In: SILVA, G. NADER, M. B. FRANCO, S. P. (orgs.). As identidades no tempo: ensaios de
gênero, etnia e religião. Vitória: Edufes, 2006.
Os primeiros contatos entre romanos e as tribos germânicas, segundo Comentários
Sobre a Guerra Gálica, foi em uma tentativa de invasão a Roma. As tribos dos cimbrios e dos
teutões confrontaram os romanos, que foram liderados pelo General Caio Mano. Este, por sua
vez, conseguiu repelir a ameaça das tribos germanas. Agora era a vez de Júlio César confrontar
Ariovisto, o rei da tribo dos suevos, considerada a maior e mais violenta de todas as demais
tribos da Germânia.
Ariovisto competia territórios com outras tribos da Germânia, forçando-as a emigrarem
em busca de terras para a criação de seus gados, as tribos dos tencteres e usípedes, foram umas
dessas vítimas. Mas antes disso, os germanos estavam interessados em outro território, a Gália.
Diviciaco, um gaulês da tribo dos heudos, fiel a Júlio César, conta, aos prantos, para o General,
a ameaça que se aproximava as suas fronteiras:

Que em duas facções estava a Gália toda dividida, de uma das quais
tinham os heduos o principado, e da outra os arvernos e, disputando-se
elas a supremacia muitos anos, acontecera socorrerem-se os arvernos e
sequanos de germanos mercenários; e, passando destes primeiramente
o Rim uns quinze mil, depois mais, quando em sua barbaria e ferocidade

135
foram tomando gosto a fertilidade da terra, polícia e abundâncias dos
gauleses, existiam ora na Gália cerca de cento e vinte mil [….] — Mas
ainda pior sucedera aos sequanos vencedores do que aos heduos
vencidos, porque o rei dos germanos, Ariovisto, em suas fronteiras
deles fizera assento, ocupando-lhes a terça parte das terras, as melhores
0
da Gália, e os mandava agora sair de outra terça parte, por lhe haverem
chegado vinte e quatro mil harudes, aos quais era mister preparar terras
e mansão — Que dentro em poucos anos aconteceria serem expulsos da
Gália todos os gauleses, e passarem o Reno todos os germanos, pois
nem o terrão germano era para comparar em bondade com o gaulês,
nem este com aquele bárbaro costume de viver (JÚLIO CÉSAR, De
Bello Gallico, Livro I, XXXI).

Após estes relatos, começa, então, a narração sobre a investida de Ariovisto e seu
interesse de tomar a Gália. As descrições que Diviciaco passa para Júlio César sobre o suevo
são a de um bárbaro, violento e impiedoso:

Que, depois de vencer os gauleses em Magetobria, se tornara Ariovisto tão


soberbo e tirano, que exigia em reféns os filhos dos mais nobres, e os castigava
com todo gênero de tormentos, quando não obedeciam a seu menor aceno ou
vontade; e era bárbaro, iracundo, violento, a ponto de não poder seu jugo ser
mais tempo suportado (JÚLIO CÉSAR, De Bello Gallico, Livro I, XXXI).
Começa a aparecer, a partir daí, a imagem que os germanos vêm causando aos povos
aliados de Júlio César e ao próprio general. Ariovisto é descrito como um ser impiedoso,
violento e cruel, imagem essa que se consolidará, mais adiante, com o restante das tribos
germanas.

Os gauleses foram forçados a tomarem rumo, caso contrário, Ariovisto faria o que bem
entendesse com os reféns no qual foi exigido das tribos vencidas por ele. No final, Diviciaco
pede a Júlio César, que prestasse atenção aos germanos, pois estes seriam capaz de tomar a
Gália para si e também em tornar uma ameaça aos romanos.

Júlio César percebe que a ameaça do suevo é comprometedora, não somente as tribos
aliadas aos romanos, mas poderia corromper a estabilidade do local e se ignorado, Ariovisto
poderia em poucos anos tomar a Gália para os germanos. Portanto era um confronto inevitável,
pois ambos os lados tinham como intenção ter para si a posse da Gália.

Por mais que Roma ganhasse em vantagem bélica, a batalha contra as tribos
germânicas deveria ser tomada com uma cautela, pois nunca Júlio César e suas legiões, haviam 135
enfrentado uma tribo de guerreiros famosos por tamanha barbárie e violência, aos olhos dos 1
romanos, e, até mesmo, seus aliados galos, os temiam como se fossem bestas.778 Portanto, Júlio
César e suas legiões partem ao encontro de Ariovisto, o rei dos suevos.

Capítulo II: Antes das batalhas, a negociação

778
A criação do conceito de bárbaro (βαρβαρος - barbaros) surgiu entre os gregos antigos. Já nas obras
atribuídas ao poeta Homero, Ilíada e Odisseia, possivelmente do século VIII a.C., temos a percepção do que era
ser bárbaro, embora a identidade grega em si estivesse pouco definida em tal contexto (HARTOG, 2004). Do
modelo de bárbaro de Homero, Heródoto e Tucídides, as representações desse outro chamado de bárbaro foram
sendo estendidas para todos que fossem diferentes da cultura grega e romana, como podemos ler nas obras de
escritores do período imperial, como em Tácito (Germânia), por exemplo. Bárbaros (gentes barbarorum) passam
a ser, em geral, aqueles que não compartilham da paideia grega e/ou da humanitas latina, modelos de formação e
cultura das elites imperiais de Roma e das províncias.
Diplomaticamente, Júlio César manda ao rei dos suevos, embaixadores com o qual
pudessem marcar encontro para um diálogo entre eles. Seguindo na narração, Ariovisto
responde:

Que se ele necessitasse o que quer que fosse de César, iria procurá-lo;
assim, se César lhe queria alguma coisa, viesse ter com ele — Demais,
não ousava ir sem exército às partes da Gália ocupadas por César, nem
podia reunir exército sem grande abastecimentos e aparatos — Muito
se admirava, porém, que tivesse ou César ou o povo romano de ver
absolutamente com a sua Gália por ele conquistada (JÚLIO CÉSAR,
De Bello Gallico, Livro I, XXXIV)

César responde mandando novamente embaixadores, agradece aos elogios que


Ariovisto o dá e que o vê como amigo devido ao título de Rei que o Senado romano o deu, mas,
mesmo assim, cobrava algumas exigências por parte dele:

[…] primeiro, não passar mais aquém do Rim multidão alguma de


homens para a Gália; depois, restituir os reféns que tinha dos heduos, e
permitir aos sequanos restituírem livremente os que dos mesmos
também possuíam; nem empecer, nem fazer guerra aos heduos e seus
aliados — Que, se nisso viesse, César e o povo romano teriam com ele 135
2
perpétua paz e amizade: senão, não havia César desprezar os agravos
dos heduos, pois decretara o Senado no consulado de Marco Messala e
Marco Pisão, que todo o que tivesse o governo da província da Galia,
protegesse os heduos e mais amigos dos romanos, quando fosse
possível fazê-lo sem gravame da República (JÚLIO CÉSAR, De Bello
Gallico, Livro I, XXXV).

A resposta de Ariovisto foi simples. Alegou que não consentiria a nenhuma solicitação
do General, e que nada era mais justo, do que o direito dos suevos explorarem suas vitórias e
imperar sobre o vencido, pois estes escolheram lutar e tentar a sorte com as armas e por isso
deveriam ser tributários seus. E grande injustiça cometia Júlio César em intervir em assuntos
desse tipo, pois se Roma tivesse feito o mesmo era direito dos romanos fazerem o mesmo que
Ariovisto fizera. Ainda neste diálogo o suevo profere palavras de tom ameaçador aos romanos,
caso ousassem querer testá-los:

E quanto a dizer César, que não desprezaria os agravos dos heduos,


ninguém combatera com ele sem ficar destruído; experimentasse-o,
quando quisesse, e conheceria qual era o valor dos germanos
invencíveis e adestrados nas armas, a ponto de se não abrigarem
debaixo de teto por espaço de quatorze anos (JÚLIO CÉSAR, De Bello
Gallico, Livro I, XXXVI).

Ao mesmo tempo em que a mensagem fora transmitida ao general, se aproximaram


dele embaixadores dos heuduos e dos trevicos. Aqueles se queixavam que nem mesmo com
reféns conseguiram comprar a paz de Ariovisto, e que os haraudes já atravessaram o Reno e
assolavam suas fronteiras, já estes acamparam a margem do rio Reno, com intenções de adentrar
em território suevo.

Preocupado com a situação, Júlio César decide que não havia mais tempo a ser perdido,
pois a ameaça dos germanos crescia cada vez mais, e se as antigas tropas de Ariovisto se
reunissem ao novo contingente, um enxame de suevos assolaria a Gália. Às pressas, o general
romano dirige uma grande marcha contra o exército germano que ameaçava toda a Gália,
conforme suas intenções anunciadas anteriormente.

Pela análise da documentação, percebemos a esta altura que os germanos eram uma
ameaça aos planos de Júlio César, e se não fossem combatidos a tempo poderiam tomar para si 135
a Gália, ou, pelo menos, parte dela, e quando muito poderiam ameaçar as fronteiras da Itália, 3
podendo invadi-la também. As tribos germânicas estavam adquirindo um status de perigo em
relação aos romanos. Portanto, ao que nos parece, uma guerra contra esse povo era inevitável e
necessário para a hegemonia romana. Essa é nossa análise sobre o confronto cujos materiais
arqueológicos foram encontrados recentemente, intrigando os pesquisadores sobre as razões
para o extermínio já que os tencteres e usípetes, outras tribos germanas perseguidas pelos
Suevos, não ofereciam ameaça alguma. Mas, será mesmo que não eram ameaças? Essa é uma
resposta que buscaremos também na análise da obra de Júlio César.

Capítulo III: Sem trato, à guerra!

Os germanos eram conhecidos por sua ferocidade e habilidades em campo de batalha,


até mesmo os romanos reconheciam isso. Tácito, (55 – 120 d. C), senador romano que viveu
na Gália quando esta já havia se tornado uma província romana, dedicou uma obra inteira sobre
os povos do além Reno. Germânia, escrita por volta de 98 d. C trás as maiores e melhores
informações sobre as tribos que viviam por lá. Por mais que nesse período as Guerras Gálicas
já tivessem terminado e a Gália já tivesse sido anexada por Júlio César, as descrições sobre os
germanos permanecem as mesmas feitas pelo antigo general que combateu contra os gauleses,
o que é um fato até curioso.

O próprio significado do nome germano já fazia jus ao seu povo: GUERRE = guerra,
MANN= homens, ou seja, HOMENS DE GUERRA (TÁCITO, Publios Cornelius,
GERMANIA) Segundo as descrições de Tácito na Germânia (Germânia, cap. IV), os germanos,
“possuem uma perfeita analogia de figura entre eles, ainda que tão numerosos; são de olhos
azuis e selvagens, de cabelos ruivos, corpo avantajado e forte só para o ataque violento, mas
não suportam com resignação os trabalhos e as fadigas, metem-lhes medo o calor e a fadiga,
todavia toleram a fome e o frio por afeitos à avareza e à inclemência do clima.”

Seguindo a descrição de Tácito, a Germânia aparentava ser um território muito ingrato,


terras poucas férteis, frios extremos, poucas árvores frutíferas, e o máximo de abundância que
se conseguia eram alimentos eram grãos e carne de caça. A terra também não parecia os
favorecerem em minérios, pois suas armar de ferro eram delgadas, como as frâmeas, uma
espécie de dardo composta com ferro, curto porém agudo e de fácil manejo que podia ser
135
empregada nas batalhas corpo a corpo ou como escaramuça. 4
O general Júlio César também dá as suas descrições sobre os germanos, que não
diferem muito as do historiador Tácito sobre esses mesmos povos, apesar do intervalo de tempo
que separa estes dois romanos. E por estas características que Júlio César tem de saber lidar
com o medo que assolava suas tropas, segundo ele (De Bello Gallico, Livro I, passagem
XXXIX,): “[...] os germanos de grande corpulência, incrível esforço e exercício em armas, a
ponto de não poderem os gauleses suportar-lhes no combate nem a catadura nem o olhar sequer,
apoderou-se tal terror do exército, que não pouco perturbava o entendimento e ânimo a todos.”

Portanto, eram esses os inimigos que César teria de enfrentar, um exército não muito
bem equipado belicamente, mas cuja ferocidade, violência, resistência e força compensavam a
ausência de armas tecnicamente bem elaboradas.

No decorrer de três dias da marcha das tropas romanas rumo ao encontro de Ariovisto,
este estava tomando rumo para conquistar a cidade de Vesonção, a maior e mais abundante
cidade dos sequanos, que possuía todos os víveres para saciar as tropas, e também os germanos
já haviam ganhado três campanhas, além de suas fronteiras.

Dos primeiros conflitos realizados entre romanos e germanos, o resultado, conforme


as descrições da obra, foi um grande pânico por parte das tropas de Júlio César. Os gauleses
que combateram Ariovisto recuaram e fugiram, pois não aguentavam tamanho horror e medo
que esses bárbaros causavam, um terror causado por eles assolavam as tropas romanas.
Tribunos dos soldados e prefeitos pediam a César afastamento da guerra alegando causas justas,
mas não conseguiam esconder em suas feições o medo que possuíam dos germanos e a
vergonha de terem que se humilhar diante ao general, os mais corajosos alegavam que o terreno
era inapropriado para a batalha contra o inimigo, outros diziam que os viveres não eram o
suficiente para a campanha. O horror foi se alastrando de tal maneira aos romanos e seus aliados
que até mesmo os centuriões e a cavalaria romana evitou o confronto contra Ariovisto.

Júlio César reúne seus oficiais e permite a participação dos centuriões de todas as
graduações. Com sua oratória treinada, elaborou um discurso de motivação as suas tropas
afirmando que possuíam sim condições de guerrear contra Ariovisto, pois, no passado de Roma,
Caio Mano havia antes vencidos as tribos dos cimbrios e dos teutões e dos escravos germânicos,
135
usando as táticas militar pelos romanos aprendido. O abastecimento não era um problema, pois 5
os sequanos, leucos e lingones os forneciam trigo já maduro. E mesmo assim, se as tropas não
obedecessem a Júlio César, ele partiria solo acompanhado somente da 10° legião, que o serviria
como corte pretoriana. Logo após o discurso do General, os soldados ali presentes se
tranquilizaram e motivaram-se em seguir em frente com a batalha.

Ariovisto sabendo da aproximação de Júlio César enviou embaixadores para exigir um


encontro sem tropas, somente acompanhados da cavalaria. César vendo um momento oportuno
aceita o convite e é acompanhado da 10° legião, a de sua maior confiança. A conversa entre os
dois, no início fora a mesma, os romanos exigiam de Ariovisto o que fora pedido na primeira
vez, acrescentando os benefícios que o senado poderia oferecer ao suevo, pois recebera o título
de rei por parte deles e era visto como amigo. O rei suevo não parece ter se importado com o
que foi dito, ele continuou negando as exigências. Alegou que não fora ele o causador da guerra,
pois os gauleses, acompanhados de todas as cidades da Gália, os atacaram e tiveram de revidar.
Essas numerosas tropas de gauleses foram por ele destroçadas e vencidas em uma batalha. Ao
concluir, Ariovisto diz:

Que o ter César exército na Gália com capa de amizade, suspeitava ser para
oprimi-lo, e se dali se não retirasse com o exército, havia tê-lo em conta, não
de amigo, mas de inimigo; pois faria, se o matasse, coisa agradável a muitos
nobres e principais de Roma, como sabia dos mensageiros que lhe os mesmos
enviavam, e podia com isso comprar a proteção e amizade de todos eles: - ele
porém, se César se retirasse, deixando-lhe a livre posse da Gália, havia
remunerá-lo, fazendo sem trabalho nem risco do mesmo César todas as
guerras que quisesse feitas (JÚLIO CÉSAR, De Bello Gallico, Livro I, XLIV).

Durante o diálogo entre os dois líderes, a cavalaria de Ariovisto se aproxima de César


e começa a arremessar dardos e pedras em sua direção, um ato de extrema grosseria em um
encontro organizado para o diálogo e não para o confronto. Júlio César pede a sua cavalaria
para não revidar, pois estavam em menor número e não valia por em risco a legião que o
acompanhava, com isso a conferência foi encerrada. O resultado foi que a notícia da arrogância
de Ariovisto se espalhou entre os soldados romanos, então o clamor à guerra apoderou-se do
exército. 135
Depois de lida essa parte do texto, chegamos a seguinte dúvida: As relações diplomáticas 6
entre ambas as culturas foram em vão, a eles não cabia o caminho da paz, ou seria a rendição?
Se Ariovisto se rendesse as exigências de Roma, o seu poderio bélico investido até o momento
perderia o ritmo e seu povo, com certeza, se aborreceria contra seu rei. Se o suevo aceitasse as
ofertas do Senado provavelmente a tribo teriam se tornado um estado cliente, assim como os
heudos, e teria de fornecer soldados como auxiliares e suplementos a Roma, portanto estava em
jogo a liberdade e hegemonia da tribo germânica na Gália. Já César, além de uma campanha de
anexação da região, estava também investindo em uma jogada política para se manter como
líder em Roma, em hipótese alguma se passou em sua narrativa outra proposta mais branda ao
inimigo, o General estava focado e determinado que a aquele terreno deveria ser de Roma, e
não a um povo bárbaro. Portanto, romanos e suevos se preparavam para uma batalha.

Capítulo IV: A luta, uma vitória sem dificuldades por motivos religiosos
O que demorou em diplomacia e ameaças se fez ao contrário em batalha. Seguidas
vezes Júlio César posicionou suas tropas com a intuição de provocar Ariovisto, que estava em
seu acampamento. Porém, os germanos apenas revidavam com escaramuças a cavalo,
arremessando dardos, o que era estranho, pois eram famosos por sua ferocidade e violência em
batalha nas representações romanas.779 Mesmo assim, o General continuou seguindo a mesma
estratégia. Novamente César coloca suas tropas em posição oferecendo uma oportunidade de
batalha, e, mesmo assim, não revidam. Mais tarde, Ariovisto envia parte de suas tropas para
atacar os pequenos arraiais romanos. Ali houve uma sanguinária batalha, mas após terem
causado e recebido grandes danos, todos retornam as suas bases.

Mais tarde os romanos descobre as razões de Ariovisto evitar tanto o conflito, o motivo
era que uma mulher da tribo aconselhara não atacar os romanos antes da lua nova, como os
germanos levavam muito a sério o que as mulheres de suas tribos diziam, era mister do rei
suevo não desobedecer esse conselho, mas ele fracassa. Não aguentando as provocações do
General romano, Ariovisto decide atacá-lo, coloca todas as tropas fora dos quarteis, seu exército
era composto por várias tribos, dentre elas os harudes, marcomanos, triboces, vangiones,
nemetes, sedusios e, por último, os suevos. Posicionaram suas carroças para evitar fugas em 135
campo, onde ficavam as mulheres aos prantos dizendo para não retrocederem da batalha e que
7
não as deixassem serem escravas dos romanos.

Ariovisto ataca, gritantes correm os germanos em direção as tropas romanas que


também iam ao seu encontro, a fúria desses era tamanha que alguns soldados saltavam por cima
das tropas romanas e arrancavam os escudos com as próprias mãos, assim ferindo o seu alvo.
Porém, a ala esquerda fraqueja e desertam do campo de batalha, à direita se fortificava causando
danos aos romanos, mas Publio Craso, general da cavalaria, envia a terceira linha para o reforço,
os germanos não conseguindo manter a posição recuam e fogem, correm até a margem do Reno

779
Em sua Dissertação de Mestrado, defendida em 2016 na UFRGs, a historiadora Juliet Schuster defende a ideia
de que se construíram lugares-comuns retóricos na caracterização do modo de fazer guerra de celtas e bretões do
norte nas obras de escritores romanos. Assim, muitos autores romanos não chegaram nem a conhecer os povos
“bárbaros” que representavam, mas tinham deles uma imagem preconcebida por esses lugares-comuns. Segundo
Schuster (2016, p. 60): “Essa constatação se sustenta porque, segundo alguns acadêmicos, existia aos olhos dos
romanos um arquétipo bárbaro e que todos os indivíduos e grupos a quem os romanos catalogavam como bárbaros
respondiam a esse arquétipo”. Assim sendo, a realidade do povo representado podia se diferir muito da
representação em si na literatura latina, o que nos parece cabível de reflexão sobre a informação dada nessa
informação sobre Ariovisto e seus guerreiros.
e atravessam a nada ou a barcos que se encontravam por lá. Ariovisto se aproveita de um barco
a remos que se encontrava à margem e foge para o outro lado do rio, os que não puderam se
salvar foram trucidados pela cavalaria romana.

Encerrada a batalha, os germanos são afastados e mandados de volta para o outro lado
do rio Reno. A Germânia, assim, recolhe Júlio César as suas tropas para o quartel de inverno,
um pouco antes do que requeria a estação.

A guerra acabou com os germanos, Ariovisto não é mais uma ameaça e as tribos
germânicas se recolheram novamente às suas terras. Porém, por mais que a batalha tenha sido
rápida, segundo afirma o general, os germanos causaram certos problemas aos romanos. A
ferocidade e corpulência que a eles é colocada a todo momento era uma preocupação aos
romanos, pois eram povos guerreiros que aprendiam a caçar desde sua infância e a viver em
terreno extremamente hostil aos olhos dos romanos. Não se podia ignorar que sim, os germanos
eram uma afronta a Roma.

Apesar de tudo isso, os suevos não foram exterminados, apenas foram expulsos da
região da Gália e ainda persistirão na história. Nas invasões bárbaras da Antiguidade Tardia 135
formarão um reino germano na Península Ibérica, na região da Galícia no séc. V d.C.
(FRIGHETTO, 2012). Mesmo Ariovisto estando longe, no outro lado da margem do rio Reno,
8
ele continuava causando pânico às outras tribos presentes pela Germânia, inclusive, às tribos
dos usípetes e tencteros.

Capítulo V: Usípetes e tencteros, o dilema de duas tribos.

Os usípetes e tencteres resistiram bem aos ataques dos Suevos, devido as suas
fortificações. Porém, os ataques frequentes de Ariovisto fez com que estas duas tribos
enfraquecessem acabando na submissão dos Suevos que os coibiam a lavrar a terra. A solução
para isso foi a migração. Durante três anos vagaram pela Germânia, indo parar na margem do
rio Reno. Nesta mesma região, já habitavam os Menápios, tribo gaulesa que ocupava o local
citado, que ocupavam as duas margens do rio e, tendo avistado a tamanha quantidade de pessoas
se aproximando, os gauleses se recolheram para a margem oposta a chegada dos imigrantes
germanos, que fadaram na tentativa de atravessar o rio. Assim, simularam uma retirada de volta
a Germânia e, tendo os Menápios certeza de que os povos invasores haviam se retirado,
retomaram à outra margem do rio. Três dias depois, Usípetes e Tencteres realizam uma
investida surpresam e tomaram os barcos para si, cruzando o Reno em enorme quantidade de
pessoas.

Informado desse acontecimento, Júlio César providencia seus estoques de trigo e reúne
a melhor cavalaria auxiliar, marcha com seu exército em direção aos novos invasores germanos.
Já passara por situação delicada com certo povo provindo de terras da mesma região, logo não
era um povo a se confiar.

Passado poucos dias de marchas, embaixadores dos Usípetes e Tencteres, se


aproximam dos romanos para uma tentativa de negociação com Júlio César. Seus discursos se
resumiram em estas palavras:

Que nem os Germanos atacariam primeiro os Romanos, nem


recusariam tão pouco medir-se com eles, se fossem provocados, pois
observavam o costume, transmitido por seus maiores, de resistir, sem
135
recorrer às súplicas, a quem quer que lhes fazia guerra — Era porém
de saber terem vindo contra sua vontade, e expulsos da pátria; — se os
9
Romanos lhes quisessem a aliança, seriam bons amigos; mas nesse
caso, ou lhes assinassem terras, ou lhes consentissem ocupar as que
possuíam pelas armas; — que só aos Suevos, aos quais nem os mesmos
deuses imortais podiam ser parelhos, cediam o passo; e mais ninguém
havia no mundo, a quem não pudessem vencer (JÚLIO CÉSAR, De
Bello Gallico, Livro IV, VII).

Nota-se nesse fragmento, que a intenção última dos Usípetes e Tencteres é o conflito
com os romanos, pois já vinham sofrendo há anos a pressão dos Suevos. Os embaixadores
deixam claro também as intenções de quererem firmar uma aliança com os romanos em troca
de um lugar para ocupar. Uma atitude inesperada comparada com a de seus conterrâneos
Suevos, liderados por Ariovisto.

A resposta que Júlio César deu aos germanos foi um pouco desoladora: não havia terras
desocupadas na Gália que os servissem devido à imensa quantidade de pessoas que compunham
as tribos, ainda mais terras fronteiriças. Além disso, uma aliança com os usípetes e tencteres de
nada acrescentaria aos romanos, pois estes não foram capazes de defenderem suas terras, jamais
conseguiriam defender a fronteira gálica. Aos refugiados restavam a proposta de pedir auxílio
aos úbios, que nesse momento estavam sofrendo ameaças, novamente, dos Suevos.

Os embaixadores afirmaram que levariam as propostas ao conhecimento de suas tribos


e que dentro de um prazo de três dias dariam aos romanos uma resposta ao que fora conversado.
As tropas de César continuaram marchando até o local, mesmo depois do diálogo. Os
embaixadores, então, suplicam para que ele cessasse a caminhada e lhes dessem tempo. César
consente com o pedido, mas envia a tropa de cavalaria para ir em frente caso avistassem as
tribos germânicas, e que permanecessem em guarda, mas se fossem atacados pelos mesmos,
que revidassem.

Dito e feito, a cavalaria romana havia encontrado um grupo germano de tencteres e


usípetes forrageando o local, estes, assustados pelos homens armados resolveram atacar,
causando grandes perdas à cavalaria romana, inclusive um esforçadíssimo varão, Pisão, o
Aquitano, de linhagem nobre, cujo avô havia sido nomeado rei na sua cidade pelo Senado
romano.
136
Nessa altura pode-se imaginar que este grupo, que forrageava a região, não fora
informado sobre a intenção de fechar um acordo amistoso com os romanos, ainda que boa parte
0
da Germânia já sabia das boas novas sobre Júlio César ter derrotado Ariovisto, que intimidava
toda a região do além Reno. Portanto, deparando-se de frente com o exército que derrotara os
suevos, resolvem atacar bravamente.

Júlio César decide, então, jamais confiar nas palavras dos germanos, pois com a boca
propunham a paz, mas faziam guerras traiçoeiras e ataques inesperados. As tropas são
mandadas de imediato ao local do assentamento germano, que sem perceber e despreparados,
notam a sua chegada e armam-se de imediato, mas de maneira desorganizada. Os que podiam
pegar em armas defendem as mulheres e crianças que juntos vieram na travessia do rio Reno,
mas estes foram pegos pela cavalaria ordenada por Júlio César. Vendo que não podiam mais
combater contra as tropas romanas, usipites e tencteres largam suas armas e insígnias para
fugirem do campo de batalha, assoberbados do terror, do cansaço e a forte corrente do Reno,
muitos padecem na tentativa de atravessar ao outro lado da margem.
O resultado de tudo isso fora um grande genocídio, as intenções dos romanos eram
claras, eliminar de vez os tencteres e usípetes na preocupação de que novamente outros
germanos causassem estragos como fora com Ariovisto e os suevos. Foram mortos quatrocentos
e trinta mil germanos, enquanto isso não houve nenhuma baixa e poucos feridos do lado
romano.

Mas mesmo tendo realizado esse massacre, isso não bastava a César, que toma a
decisão de atravessar o Reno para poder, ainda, eliminar os poucos que conseguiram sobreviver
depois de tudo isso. O alvo era a cavalaria dos usípetes e tencteres que saíram para forragear na
região do Mosa, estes se absteram em participar da batalha a pouco empregada e se juntaram
aos sugambros. Júlio César exige destes a entrega dos acolhidos que fizeram guerra a ele e a
Gália. O pedido é negado. Nesse meio tempo, embaixadores úbios chegam até o General e
solicitam apoio, pois novamente estavam sendo fortemente atacados pelos suevos, e tão grande
se tornara o nome de César, e tal reputação adquirira o seu exército, que estariam seguros
somente com uma aliança com o povo romano. Prometeram um grande número de embarcações
para o transporte das tropas romanas para o curso do rio Reno.

Com as causas mencionadas pelos embaixadores úbios, Júlio César decide atravessar
136
o rio de vez, mas por embarcações seria perigoso, pois o rio era largo e profundo, então, o 1
General decide construir uma ponte, para que houvesse segurança na travessia. A ponte é
construída e marcham as tropas e direção a Germânia, muitos embaixadores foram enviados até
o General para firmar um tratado de paz, respondendo com a oferta de reféns aos romanos. Os
sugambros, alertados pelos tencteres e usípetes, abandonam suas fronteiras fugindo para os
bosques levando o que possuíam.

Demorado poucos dias em suas fronteiras, depois de incendiar os suplementos das


tribos, Júlio César se retira e assegura aos úbios que tudo fora resolvido. Os romanos se
recolhem à Gália e cortam a ponte que construíram para atravessar o Reno. Enfim, estão
afastados os germanos da Gália e exterminada qualquer forma de ameaça que poderia eclodir
contra Roma. César preocupava-se agora com uma investida na ilha da Bretanha para evitar as
resistências celtas que partiam de lá. Mas essa já é outra história.
CONCLUSÃO

Em nossa análise, os motivos que levaram o general romano a tomar essas medidas
contra os usípetes e tencteres, que extraímos de reflexões a partir da obra Comentários das
Guerras Gálicas, somadas com reflexões sobre os achados arqueológicos na região próxima de
Kessel, na Holanda, pode ter sido uma prevenção contra uma ameaça futura. As tribos
germanas, em especial a dos suevos, causaram muitos danos e medo na região da Gália, e
poderiam tomar para si aquela região, pois eram considerados pelos romanos como guerreiros
assíduos e valentes. Mas, nesse caso em específico, quando as tribos dos tencteres e usípetes
buscavam firmar um tratado de aliança com Júlio César, parece que o que acarretou o conflito
foi uma falha no circuito de informação com outra parte das tribos, no caso dos forrageiros que
encontraram com a cavalaria romana na região do rio Mosa. Tendo já os germanos uma
reputação arredia nas representações dos romanos, Júlio César decide, pelo que pudemos
analisar, “cortar o mal pela raiz”, antes que esses povos se alastrassem, novamente pela Gália,
região conquistada pelos romanos e posse do poderoso Império de Roma.

136
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes documentais:
2
CÉSAR, Júlio. Livo I. In:______ Comentários sobre a Guerra Gálica. Tradução de Francisco
Sotero dos Reis. São Paulo: Cultura, 1941. cap. 1, p. 41 – 80.

TÁCITO. Germânia. Tradução de João Penteado Erskine Stevenson. São Paulo: Brasil Editora
S.A, s/d.

Fontes Bibliográficas:

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j%C3%BAlio-c%C3%A9sar Acesso em: 22 abr 2015.

136
3
ISLÃ: PRECONCEITO, TERRORISMO E O ENSINO DE HISTÓRIA*780

Matheus Duarte Claus**781

RESUMO

As informações sobre o Islã para o público em geral são acompanhadas de muita confusão,
principalmente com alguns termos, não sendo possível distinguir ou conceitua-los. O trabalho
procura também identificar as possíveis origens desses preconceitos, buscando na história do
islamismo e do imperialismo razões para essa hostilidade. Outra parte diz respeito aos grupos
fundamentalistas islâmicos, que tem interesses que transpassam a religião, atingindo a política
e a economia, podendo em muitos casos estarem envolvidos com o terrorismo, que por conta
dos meios de comunicação em massa acabam sendo generalizados e propagando uma imagem
de um islamismo opressor. Criando assim muitos mitos sobre o Islã para atender a expectativa
vinda do Ocidente. Por fim o papel do ensino de história em um cenário tão dominado pela
mídia. Tendo a responsabilidade do professor de combater a discriminação religiosa em sala de
aula, promovendo a tolerância e o respeito ao “outro”.

136
4
Palavras-chave: Islã; Discriminação; Mídia; Ensino de história.

INTRODUÇÃO

Terrorismo. “homem-bomba”. 11 de setembro. Al-Qaeda e Estado Islâmico. São


palavras que chegam a mente de muitos quando se fala em islamismo. Ou poderiam vir imagens
exóticas e até mesmo fantasiosas de: gênios, lâmpadas, tapetes voadores ou danças do ventre.
Outra possibilidade seria deparar-se com: mulheres de burca, desertos, beduínos, camelos,
governos ditatoriais e petróleo. Contudo, nem sempre essas visões condizem com a realidade,
muitas podem ser perspectivas manipuladas pela mídia e pelo ensino de história. Com
demasiada confusão e ignorância sobre o tema, acaba gerando um desafio para o professor de

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Graduando, UNASP-EC, matheuscdd@hotmail.com.
história, trabalhar com o “outro”, que não é uma tarefa fácil, pois, é necessário tanto um trabalho
de desconstrução como de construção do conteúdo.

O “Ocidente” é um termo técnico usado para se referir ao que antes se chamava


Cristandade Ocidental da civilização europeia, que depois englobará a América do Norte e o
Atlântico do Norte. Atualmente se refere a uma civilização, no sentido de abranger algumas
práticas comuns entre as populações, que de certa forma se identificam umas com as outras. O
Ocidente foi a única civilização que exerceu impacto devastador sobre as outras
(HUNTINGTON, 1997, p. 53, 227). Afinal, “as grandes religiões são os alicerces sobre os quais
repousam as civilizações” (DAWSON apud HUNTINGTON, 1997, p. 54). Os países do Islã e
árabes não sofreram o mesmo tipo de colonização do Ocidente, eles se mantiveram muçulmanos
e em muitas partes falando o árabe (GUEDES et al., 2011, p. 4). Carregando grandes tradições
culturais muito diferentes das do Ocidente (HUNTINGTON, 1997, p. 229).

É preciso fazer uma distinção entre os termos “árabe” e “muçulmano”: “árabe” pode se
referir a cultura e etnia de quem é da Península Arábica ou do idioma árabe, enquanto
“muçulmano” se refere aos adeptos dos Islã (GUEDES et al., 2011, p. 3). Aliás, dentro do
próprio Islã existem várias culturas distintas como: árabe, turca, persa e malaia
136
(HUNTINGTON, 1997, p. 51). Sendo ele a segunda maior religião do mundo (FARAH, 2001, 5
p. 8), e a que mais cresce (BARCHI, 2013, p. 6). Apesar, do Islã não ser apenas uma religião,
ele é um “conjunto de concepções culturais e normas de conduta” (ARBEX JÚNIOR, 1996, p.
8). Arbex Júnior (1996, p. 9) salienta que não existe um “Islã” atualmente, e sim “islãs”, vivendo
cada um de acordo com sua interpretação (ARBEX JÚNIOR, 1996, p. 9). Deve-se ter o cuidado
com as generalizações, que podem ocorrer tanto no Ocidente como no Islã (FARAH, 2001, p.
10). Que segundo Huntington (1997, p. 137): “As generalizações amplas são sempre perigosas
e muitas vezes erradas”.

Portanto, o tema do islamismo é um tarefa complexa, cheia de grandes discriminações,


que acabam ofuscando um real entendimento da temática, fazendo muitos acreditarem que os
atos parecem nem ilógicos. Mas, uma análise profunda dos acontecimentos acompanhada de
um aporte teórico mostrará as razões dos movimentos fundamentalistas extremistas islâmicos
do século XX e XXI. Pois “A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do
passado” (BLOCH, 2001, p. 65).
9. Capítulo I - Visões sobre o Islã
Devido a complexidade dos conflitos no Oriente Médio, seu entendimento se torna
difícil, apenas por meio do conhecimento profundo será possível compreender suas origens,
objetivos e características, podendo assim tirar considerações mais fundamentadas e menos
emotivas e parciais (STEPHAN; ATAYA, 2010, p. 10). Ao entender a riqueza histórica do Islã,
será possível apreender como ele funciona internamente, podendo assim ser mais compassivo
e efetivo no assunto (DEMANT, 2008, p. 13). Por conta dos conflitos no Oriente Médio é
preciso incentivar discursos científicos e reflexões sobre a Segurança Internacional, sendo
preciso um mínimo de imparcialidade para escrever ou discursar sobre relacionados ao
terrorismo (STEPHAN; ATAYA, 2010, p. 15). Já Schiocchet (2011, p. 77), afirma que o
problema em entender o Oriente Médio está em utilizar uma visão orientalista, que não permite
que a modernização e o Islã estejam em harmônia. Pois a informação só se transforma em
conhecimento quando está devidamente organizada (KARNAL et al., 2007, p. 22).

Barchi (2013, p. 1, 2, 10) saliente que existe uma quantidade exorbitante de notícias
sobre o islamismo e terrorismo. Essa grande quantidade ocorreu após os atentados do 11 de
136
setembro ao World Trade Center, fazendo parte de uma série de eventos: Guerra do Golfo, 6
Revolução Iraniana, choque do petróleo e os movimentos de resistência. Na época a Al-Qaeda
assumiu a autoria do atentado, deixando a imagem do líder Osama bin Laden como padrão para
muçulmanos do mundo inteiro. Não sendo possível fazer a distinção de grupos de resistência e
o hiperterrorismo de bin Laden (STEPHAN; ATAYA, 2010, p. 10).

De acordo com Stephan e Ataya (2010, p. 2), foi a partir do 11 de setembro que a
Segurança Internacional e o mundo acadêmico voltou os olhos para o “terrorismo”. Assumindo
assim o papel de “problema mundial” exigindo uma “resposta” dos historiadores (BARCHI,
2013, p. 10). Não é possível encontrar uma única definição para “terrorismo”, pois a palavra
se modificou na história por meio de contextos políticos, ideológicos, militares e religiosos. A
mídia faz uso dessa nomenclatura como mais lhe convém, para o uso em jornais, revistas e na
televisão. Utilizando a palavra “terrorismo” para uma infinidade de atos violentos, dificultando
assim sua definição, outro meio de propagação é a internet, em que a palavra é usada de forma
tão “livre”, chegando ao ponto de ser cotidiana (STEPHAN; ATAYA, 2010, p. 10, 13).
O suposto radicalismo inerente aos árabes e muçulmanos hoje é um desenvolvimento
do século XX, que não encontra justificativa nos textos islâmicos ou na tradição islâmica
(SCHIOCCHET, 2011, p. 38). Radicalismo esse, que é favorecido por uma grande população
jovem (15-25 anos) em países islâmicos, que tem favorecido tendências, tais como: o
fundamentalismo, o terrorismo, a subversão e a migração. Esse crescimento tem sido uma
ameaça tanto para os governos muçulmanos como para as sociedades não-ocidentais
(HUNTINGTON, 1997, p. 126).

Para Huntington (1997, p. 135-139) o Ressurgimento do Islamismo aconteceu como


“uma fonte de identidade, sentido, estabilidade, legitimidade, desenvolvimento, poder e
esperança”. Disseminado por meio do slogan “O Islamismo é a solução”. Sua influência chegou
a quase todos a quase todos muçulmanos. Tendo como intensão a reforma fundamental, sendo
uma reação a ocidentalização, e não a modernização. Huntington (1997, p. 137) salienta ainda
que “Ignorar o impacto do Ressurgimento Islâmico sobre a política no Hemisfério Oriental no
final do século XX equivale a ignorar o impacto da Reforma protestante na política europeia
no final do século XVI”.
136
Capítulo II – Possíveis causas para o preconceito contra o Islã
7
“Mas, por que tanto preconceito contra o Islã?” Essa é uma pergunta complexa, pois
não existe um consenso entre os teóricos. Alguns com Said (1990, p. 38), vão dizer que três
fatores contribuíram para a disseminação do preconceito com os árabes, que em sua maioria
são islâmicos (GUEDES et al., 2011, p. 3): A história do preconceito anti-islâmico e antiárabe;
a luta árabe contra o movimento sionista de Israel, que acabou influenciando judeus americanos;
a quase total ausência de qualquer cultura identificável com os árabes e o Islã (SAID, 1990, p.
38). Já Ferro (1983, p. 91), vai dizer que em todo mundo islâmico o imperialismo ocupa o
principal lugar na memória coletiva, principalmente na luta contra os conquistadores, que já
foram turcos, mongóis e ingleses (FERRO, 1983, p. 91, 95).

Huntington (1997, p. 263, 292) propõe uma justificativa distinta dos demais, em que
alguns ocidentais como Bill Clinton podem achar que o Ocidente não tem problemas com o
Islã, mas apenas com os extremistas muçulmanos. Mas mil e quatrocentos anos de História
provam o contrário. Uma vez o Islã foi a única civilização que colocou em dúvida a existência
do Ocidente. As causas dos conflitos entre essas duas civilizações não estão em fenômenos
passageiros como o fervor cristão que gerou as cruzadas no século XII ou o fundamentalismo
muçulmano do século XX. Elas decorrem das duas religiões e as civilizações que as sustentam
(HUNTINGTON, 1997, p. 263, 264). Sendo que os conflitos entre ambos tem sido
caracterizado por questões intercivilizacionais, como por exemplo: A proliferação dos
armamentos, direitos humanos, democracia, migração, terrorismo fundamentalista e
intervenção ocidental (HUNTINGTON, 1997, p. 266).

De acordo com alguns, os muçulmanos envolvidos com o extremismo contra o Ocidente


são uma pequena minoria, que tem seus atos repudiados pela maioria de muçulmanos
moderados. Contudo, faltam provas para apoiar essa teoria. Afinal, não existem protestos contra
extremistas islâmicos em terras muçulmanas (HUNTINGTON, 1997, p. 272, 273). Todavia,
segundo Armstrong (2009, p. 486), uma vasta maioria, até mesmo de fundamentalistas
islâmicos se opõe aos atos terroristas.

A tolerância entre as civilizações tem diminuído bastante desde a década de 90 e com o


Ressurgimento islâmico. Já que, ao mesmo tempo em que ocorria a anti-ocidentalização no Islã,
136
aconteceu no Ocidente a propagação da ideia da “ameaça islâmica”. Sendo visto com uma fonte 8
proliferação nuclear, terrorismo e imigrantes indesejados na Europa (HUNTINGTON, 1997, p.
259, 269). O problema do Ocidente não é o fundamentalismo islâmico. É o Islã, pois se trata de
uma civilização diferente, de pessoas convencidas da superioridade da sua cultura e obcecadas
por ter um poderio inferior. O problema do Islã não é a CIA. É o Ocidente, pois se trata de uma
civilização diferente, com pessoas convencidas de que seu poderio é superior e obrigadas a
impor sua cultura para todo o mundo. Esses são os elementos que aumentam o conflito entre
essas civilizações (HUNTINGTON, 1997, p. 273).

Já Farah (2001, p. 8, 9, 72), discorda da teoria do “choque das civilizações” de


Huntington, não acreditando se tratar de dois campos excludentes. Schiocchet (2011, p. 77)
percebe que essa teoria de Huntington tem aumentado o estranhamento cultural entre
muçulmanos e o Ocidente, muito comum entre: paquistaneses, iranianos, afegãos, entre outros.
É nos acontecimentos de 11 de setembro que se reforça ainda mais o preconceito. O discurso
de George W. Bush apresenta esse conceito maniqueísta, que passou a gerar detenções a
estrangeiros por motivos étnicos e religiosos, chegando ao ponto de xenofobias e intolerância
religiosa. Exemplos aconteceram principalmente nos EUA, com a morte de pessoas até mesmo
não-muçulmanas, sob a justificava de apresentarem feições árabes ou usavam turbante. Esse
desconhecimento do Islã acabou levando pessoas a morte e a discriminação. Essa tendência de
associar o islamismo como uma ameaça global veio para suprir o comunismo. Só que essa
impressão de que o Islã é uma ameaça direta para a Europa não condiz com a realidade, uma
vez que a maioria dos cidadãos muçulmanos são amantes da paz e não fanáticos religiosos,
sendo que o número de conversões tem sido pouco expressivo (ANTES, 2003, p. 22, 135). É
que a maioria da presença muçulmana na Europa ocorre por meio da imigração (ANTES, 2003,
p. 22, 135).

Ao contrário de Huntington, Farah (2001, p. 12, 66) destaca a presença pacifica árabe e
muçulmana nos nove séculos na Península Ibérica, entendendo assim que tolerância e
islamismo são compatíveis. E que esse preconceito para com o Islã é fruto de colonizadores
europeus, com a justificativa de legitimar sua “missão salvadora”, discriminando eles como
inferiores e selvagens. Só que essa imagem é ilusória, pois, apesar dos ataques ao World Trade
Center em 2001, o presidente iraniano Khatami propôs para a ONU que fosse realizado o “Ano 136
do Diálogo Entre Civilizações”, com a resposta positiva de que a proposta foi aceita (FARAH,
9
2001, p. 71). As causas atuais do preconceito estão no discurso de George W. Bush, sobre o
antiamericanismo no Oriente Médio e na Ásia central, principalmente pela política de dois
pesos e duas medidas. Os EUA contribui financeiramente e militarmente para a manutenção de
regimes autoritários. Saddam Hussein acredita que os Estados Unidos escolheu uma forma
desumana de combatê-lo, matando cerca de 500 mil crianças por desnutrição e doenças
(FARAH, 2001, p. 82, 83).

Durante a Guerra do Golfo (1990-1991) a mídia disseminou imagens de famílias de


soldados americanos, mas não propagou sobre soldados árabes aliados. O que foi mostrado
foram imagens do exótico, caricatural e folclórico “Oriente”. Enquanto os soldados americanos
eram mostrados como vistosos e alegres, os iraquianos eram mostrados como pessoas a miséria
que imploravam por comida aos EUA. A mídia americana transmitiu assim uma imagem de um
“inimigo” invisível, o qual estava nos estereótipos, esse meio propagou para o mundo essa
perspectiva parcial da guerra. Observa-se por exemplo, o ataque a Bagdá que matou cerca de
170 mil iraquianos, em sua maioria civis, que foi censurado pela mídia americana (ARBEX
JÚNIOR, 1996, p. 95, 96).

“A pressa em se noticiar em primeira mão e a rápida aceitação do público e do


patrocinador transformam os acontecimentos em atrativos publicitários, em cenas
sensacionalistas que atrai o telespectador não pela informação, mas pela emoção.” (GUEDES
et al., 2011, p. 8, 9) Com os interesses dos Estados Unidos em questão, foram esquecidos
completamente a visão árabe. Fazendo as produções jornalísticas com apenas uma versão.
(GUEDES et al., 2011, p. 14). Estando cheias de informações erradas sobre as guerras travadas
no: Iraque, Afeganistão, Líbia e Síria (NASSER apud COCKBURN, 2015, p. 18). “Em geral,
uma cultura nega a outra para poder se afirmar como a única fonte de grandeza e legitimidade”
(ARBEX JÚNIOR, 1996, p. 96)

Não é apenas nos meios de comunicações em massa que o Islã é transmitido de forma
preconceituosa. Declarações políticas, diplomatas, intelectuais e nas conversas populares são
muitas vezes carregadas dessa mesma visão (ARBEX JÚNIOR, 1996, p. 7).

Arbex Júnior (1996) afirma que o preconceito para com o Islã vem sendo disseminado 137
desde as cruzadas. Desde a infância a população do Ocidente é ensinada que o islamismo é uma
“ameaça” que o cristianismo deve lutar para sobreviver (ARBEX JÚNIOR, 1996, p. 97). Ferro
0
(1983, p. 11) já dizia: “Não nos enganemos: a imagem que fazemos de outros povos, e de nós
mesmo, está associada à História que nos ensinaram quando éramos crianças.”

É possível perceber essa perspectiva no cinema, principalmente nos filmes de


hollywoodianos, que apresentam uma imagem de muçulmanos como seres irracionais que
precisam ser domesticados e podem ser facilmente exterminados, tais como The Siege.
(FARAH, 2001, p. 12). Outros como filmes como Aladdin, mostram de uma forma “simpática”
o preconceito contra o “Oriente”, como se lá só houvesse “fanáticos” (ARBEX JÚNIOR, 1996,
p. 42).

Capítulo III – Os grupos fundamentalistas islâmicos

Os grupos fundamentalistas surgiram com a intensão de retornarem aos fundamentos da


religião. No Islã tem sido difundida a ideia de que deve-se interpretar “literalmente” o Alcorão
e Hadith, junto de uma modo de vida mais tradicional, para que assim possa ser possível
encontrar uma solução para os problemas modernos (FARAH, 2001, p. 71, 72). Só que nem
mesmo os seguidores de bin Laden fazem uma leitura literal do Alcorão, o que eles fazem é
utilizar uma interpretação radical da escrituras (KAMEL, 2007, p. 176, 177).

Uma das formas de fundamentalismo é o wahhabismo, fundado por Muhammad ibn


Abdul Wahhab, que professava um islamismo puritano, rigoroso e proselitista. A Arábia
Saudita tem em sua família real descendentes de Wahhab, sendo decretado por lei que as lojas
fechem em horário de oração. Nas regiões do Afeganistão controladas pelo Talibã, não fazer as
preces pode levar a prisão (FARAH, 2001, p. 71, 72). Não há incompatibilidade entre ser
pacífico e fundamentalista, o problema está no extremismo, quando se fala em “justificar” a
violência. Essa tendência é recente, começando a partir do século XX. Sua ligação com o Islã
se dá por meio de uma distorção com o intuito de legitimar seu atos. Por conta disso, ele é
condenado pela maioria muçulmana (FARAH, 2001, p. 72). Para Cattani (2008, p. 59-62), a
maior parte dos terroristas islâmicos está ligada ao takfirismo e o wahhabismo. O wahhabismo
nos último 30 anos fez: atentados suicidas, execuções coletivas, ódio mortal a cristãos e judeus,
destruiu monumentos sagrados de outras religiões e do Islã, cobriu as mulheres da cabeça aos 137
pés, proibiu elas de estudar e trabalhar e reprimiu minorias religiosas. Essa corrente é deriva da
1
Irmandade Muçulmana, que foi um movimento que combateu a influência do Ocidente no
Egito, sua fundação ocorreu em 1928 com o professor Hassan al Banna, que propôs essa revisão
do Islã, o movimento foi exterminado em 1954, por se tratar de uma ameaça ao governo egípcio
(FARAH, 2001, p. 67).

O wahhabismo ocupa 15% do Islã. Logicamente, a maioria não apoia o terrorismo, mas
o principais terroristas são ligados a ele e ao takfirismo, que seria a ala mais extrema ainda do
islamismo. O takfirismo é contra a: mística, filosofia, teologia, direitos da mulher, liberdade
religiosa e todas as formas de cultura, civilização e pensamento (CATTANI, 2008, p. 59-62).

De acordo com os wahhabitas, algumas regras devem ser impostas até mesmo para
estrangeiros, como por exemplo, não comprar bebidas alcoólicas e não deixar mulheres
dirigirem carros. Por conta da grande prosperidade financeira vinda do petróleo da Arábia
Saudita, e sua vinculação com o wahhabitas, permite que uma grande quantidade desse
conteúdo seja disseminado pelos mundos muçulmanos (ANTES, 2003, p. 87, 88).
Os wahhabitas estão convencendo a opinião pública de que o Islã é apenas uma luta
contra a “modernização” e a civilização ocidental. O desemprego, baixa escolarização e
insatisfação com os regimes políticos criam um terreno fértil para essa mensagem
fundamentalista terrorista. Segundo o muçulmano Muhammad Yunus, ganhador do Nobel da
Paz em 2006, a principal causa e a base do terrorismo islâmico está na miséria da população
(CATTANI, 2008, p. 64, 65).

O problema atual está em entender o Oriente Médio por meio de uma visão orientalista,
visão que não permite que a modernização e o Islã coexistam juntos (SCHIOCCHET, 2011, p.
77). Disseminada por meio de jornais e revistas, sendo unânimes em afirmar que os
muçulmanos odeiam a modernidade e desejam voltar para a Idade Média (ANTES, 2003, p.
23). Nem mesmo os chamados fundamentalistas são antimodernos em muitas áreas, como por
exemplo a tecnologia. Seu embate se baseia numa luta ideológica, e não numa luta contra
realizações tecnológicas (ANTES, 2003, p. 19). Contudo, é possível que alguns grupos
extremistas, como o Talibã, possam proibir até mesmo essa tecnologia, como foi realizado com
aparelhos de: Internet, televisão e rádio (FARAH, 2001, p. 74).

O Hamas é outro exemplo de grupo fundamentalismo islâmico, que é motivado pelo


137
suposta negação do islamismo na Palestina. O grupo prega a necessidade de se combater a 2
ocupação israelense, para que assim se possa fundar um Estado islâmico na Palestina.
Sustentando ainda campos de concentração de refugiados em situações precárias (FARAH,
2001, p. 74-81).

Um dos grupos terroristas que mais tem tido impacto na atualidade é o autointitulado
Estado Islâmico (ISIS). Por meio das lentes ocidentais da mídia ele aparece como irracional,
que não tem motivos políticos, agindo exclusivamente pelo ódio religioso. As imagens de
decapitações reféns são transmitidas largamente (NASSER apud COCKBURN, 2015, p. 10). É
preciso compreender os acontecimentos atuais por meio da sua história, principalmente por
meio de sua distinção entre sunitas e xiitas, peça essencial para entender o terrorismo e o
sacrifício praticado por eles (GUEDES et al., 2011, p. 2). Enquanto os xiitas estavam no poder
do Iraque, os sunitas foram reprimidos, disseminado a ideia de que a única alternativa era se
opor a hegemonia xiita, como tem sido feito (NASSER apud COCKBURN, 2015, p. 14).
Existem os movimento de resistência, que por conta da mídia acabam sendo
generalizados. Pois os movimentos de resistência organizados são distintos historicamente dos
grupos terroristas, como a Al-Qaeda. Ao contrário do que muitos pensam, os movimentos de
resistência nem sempre são violentos, um bom exemplo disso é o de Gandhi, que 1947 liderou
o movimento de independência da Índia. A distinção entre os movimentos de resistência e os
terroristas se encontra na fronteira que separa a violência legítima da gratuita. (STEPHAN;
ATAYA, 2010, p. 10-15).

Devido essa desinformação sobre o islamismo, algumas informações generalistas e


falaciosas acabaram sendo propagadas. Um dos mitos do Islã é que a existe um alto número de
casos de poligamia. Mas, segundo o Alcorão, o homem pode ter mais de uma mulher desde que
tenha condições financeiras para arcar com todas de igual forma, mantendo um quarto para
cada, fazendo assim raros os casos de poligamia, com exceção de algumas tribos africanas.
Sendo possível que no casamento o homem assine uma cláusula, em que se limita a ficar casado
com uma só mulher. Mais um mito diz respeito a impossibilidade do divórcio, que na verdade
é permitido tanto para o homem quanto a mulher. Já que desde do início do Islã, a mulher tinha
direito a ter propriedades em seu próprio nome, enquanto nos Estados Unidos, só foi permitido 137
a partir do século XX. Outro mito diz respeito a mutilação genital feminina, só que essa prática
3
é mais cultural que religiosa, uma vez que ela é praticada por tribos africanas tanto islâmicas
quanto cristãs e judias (FARAH, 2001, p. 87, 88). E o chamado apedrejamento das mulheres,
que é uma prática comum apenas entre minorias radicais, e não com a maior parte da população,
tanto é verdade que não acontece na maioria dos países islâmicos (KAMEL, 2007, p. 133).

Capítulo III – Papel do ensino de história

Dentro de toda essa realidade de discriminação para com o Islã, como fica o papel do
professor de história? Ainda mais no Brasil? Bem, no país é utilizada a história universal de
raiz francesa, que só vai inserir o Islã a partir do século XX (BARCHI, 2013, p. 1, 2). Só que
ele tem uma grande relevância para o Brasil, pois foi com seus adeptos que aconteceu o maior
levante urbano escravo do país: a Revolta de Malês em 1835 (FARAH, 2001, p. 10, 11). Apesar
de ainda se contar com a presença parcial no ensino de história, deve-se ter em vista que o
islamismo ocupa grande parte dos noticiários da atualidade, sendo extrema relevância para o
professor (BARCHI, 2013, p. 1, 2). Logo, o professor precisa se manter atualizado em relação
ao conteúdo (KARNAL et al., 2007, p. 23). Afinal, são cerca de 1,5 milhões fiéis no país
(FARAH, 2001, p. 10, 11). Em escala mundial, ele ocupa 20% de toda população, nas áreas
mais problemáticas e potencialmente explosivas da terra (ARBEX JÚNIOR, 1996, p. 9).

Tanto nos EUA, na Europa ou no Brasil, de uma forma geral, não são dedicadas nem
uma aula para tratar sobre o Islã (FARAH, 2001, p. 12). Como Ferro (1983, p. 11) já dizia que
é por meio de Estados, Igrejas, partidos políticos e interesse privados são moldados os livros
didáticos, as histórias em quadrinhos, os filmes e os programas de televisão. Moldados por uma
história uniforme, que tem sua revolta por aqueles cuja história é “proibida”. Pois, “Controlar
o passado ajuda a dominar o presente e a legitimar tanto as dominações como rebeldias”
(FERRO, 1983, p. 11).

De acordo com o xeque Ragip, no Brasil há uma forte impressão negativa sobre os
islâmicos (FARAH, 2001, p. 92). Portanto, é dever do professor combater esse preconceito em
sala de aula (KARNAL et al., 2007, p. 31). Mas, antes o educador, indiferente da fé que professa
ou não professa, deve perguntar a si mesmo se sua visão sobre outras religiões não é
estereotipada ou preconceituosa. Utilizando o exercício comparativo, que é fundamental para a
137
tolerância e a convivência com as mais diferentes culturas. É importante que o professor tenha 4
em vista que o tema das religiões desperta as mais diversas paixões em sala de aula. Não
fazendo da aula catequese, e sim um estudo das religiões. Podendo encontrar visões sobre o
Islã, como “um mundo lascivo (com odaliscas e danças do ventre) ou violento (com terroristas)
[realidade que demonstra: o desvio] de uma análise mais profunda da Religião muçulmana.”
(KARNAL et al., 2007, p. 213).

CONCLUSÃO

No presente trabalho foi apresentado uma noção das visões que se tem para com o Islã,
tratando como foi a origem de muitas delas e do preconceito, que devido a grupos terroristas da
atualidade tem aumentado ainda mais, gerando um ciclo de discriminação e generalização por
ambas as partes.
Num tema tão delicado, é fundamental o trabalho do professor para a desconstrução do
estereótipo sobre o islamismo. Atualmente, o tema tem se demonstrado relevante. Porém,
devido a essa imagem pejorativa, as pessoas acabam gerando discriminação, por acreditarem
estar num choque ontológico entre as forças culturais do “Ocidente” contra as do “Islã”
(SCHIOCCHET, 2011, p. 38). Não se pode negar que os muçulmanos estão envoltos numa
mentalidade de um imperialismo tão presente, que ocupa grande parte da memória coletiva,
principalmente na luta contra seus conquistadores (FERRO, 1983, p. 91). Contudo, não se deve
ter essa interpretação de que se está em uma guerra entre grandes civilizações.

O Islã é uma religião diferente, entretanto, não se pode justificar essa intolerância como
algo natural. Porém, não tem se apresentado atualmente um quadro favorável a uma mudança
de paradigma na informação midiática, em que num curto espaço de tempo a imagem do Islã
passará a ser realista. No entanto, o professor tem o poder de transformar as gerações que
passam por ele. Podendo trazer um futuro mais aprazível para os muçulmanos do Brasil e do
mundo.

137
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
5
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Disponível em: <revistaliter.dominiotemporario.com/doc/Disseminacaodossie.pdf>. Acesso
em 18 jul. 2016.
DO ESGOTAMENTO DO MODELO ASSISTENCIAL NA SAÚDE À SUA
DEMOCRATIZAÇÃO (1975-1990)782

Amaral Jr, Orlando Luiz783

Martins, Paulo Henrique Silva784

Giordani, Jessye M Amaral785

Unfer, Beatriz786

RESUMO

Durante o fim da década de 70, chegaram ao Brasil as consequências da crise mundial


relacionada ao petróleo que culminou em um crescimento do desemprego e da desigualdade
social. Junto a outras pautas que foram evidenciadas pela crise, o modelo de saúde
previdenciário foi posto em debate e foram estabelecidas diversas ações para a sua melhoria em
âmbito nacional, como por exemplo, a realização de Conferências Nacionais de Saúde e lutas
de movimentos sociais, construindo uma mudança desse modelo para que atendesse de forma
integral, mais democrática e não mercantil, a classe dos trabalhadores, a qual era a mais 137
7
prejudicada pela crise. Com esses movimentos, que teve como protagonistas os trabalhadores
da saúde, representantes da sociedade civil, representantes dos trabalhadores das indústrias,
intelectuais e estudantes, tornou-se necessário uma formulação de políticas sociais amplas,
junto com a perspectiva de promover saúde e torná-la um bem público. A partir desse contexto,
este trabalho realizado pelo grupo de pesquisa Coletivo Saúde do curso de Odontologia, visa
analisar a conjuntura do período que levou a reforma sanitária e, em sequência, a criação e
implantação do Sistema Único de Saúde no Brasil.
Palavras-chave: Reforma Sanitária, VIII Conferência Nacional de Saúde, Sistema Único de
Saúde;

INTRODUÇÃO

782
Trabalho Apresentado no I Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
783
Estudante de Odontologia, UFSM, orlandodoamaraljr@gmail.com
784
Estudante de Odontologia, UFSM, martinsphsm@gmail.com
785
Prof. Adjunto, Curso de Odontologia, UFSM, jessyesm@hotmail.com
786
Prof.ª Associada, Curso de Odontologia, UFSM, unfer@terra.com.br
Para descrevermos o contexto da década de 70 no Brasil, precisamos trazer o que
ocorreu cerca de dez anos antes no país. No ano de 1964, através de um golpe militar, foi
colocado um governo militar no controle do Brasil e essa transformação trouxe novas formas
de organização do Estado brasileiro e, consequentemente, no sistema sanitário. Entre as mais
variadas mudanças, destacam-se o crescimento do setor privado via financiamento público e a
ênfase na assistência médica, medicamentosa, especializada, tendo no hospital os lócus
privilegiado e primordial da assistência sanitária (MATTA, 2007). Na economia, a ideia
adotada pelo então Ministro da Fazenda, Delfim Netto, durante o governo do presidente da
república, Garrastazu Médici, foi a de “deixar o bolo crescer para depois dividir”. De fato, o
bolo cresceu durante o período chamado de “milagre econômico”, houve grande crescimento
da economia juntamente com arrocho salarial e transnacionalização crescente da estrutura
produtiva (COHN; ELIAS, 2003). O problema foi que o “bolo” cresceu, mas não ocorreu a
distribuição.

No ano de 1974 o Brasil vivia uma grande crise econômica, em conjunto com uma crise
no capitalismo internacional (ACÚRCIO, 2007). A população estava cada vez mais
empobrecida, existindo um alto índice de desigualdade social, uma vez que os pobres se 137
tornavam mais pobres e os ricos, mais ricos (ESCOREL, 2008). Com esta crise a população
8
começou a conviver com o desemprego cada vez maior, colocando o modelo de saúde
previdenciário a evidenciar as suas deficiências. Tanto a classe dominante quanto as classes
mais pobres estavam sofrendo diversas conseqüências econômicas e políticas, fazendo com que
a sociedade civil começasse a se organizar em prol da descentralização.

Capitulo I – Década de 70

Foi em meio a este período cheio de mudanças e crises que fez o ano de 1975 se tornar
referência para a Reforma Sanitária no Brasil, começando com diversas discussões sobre a
mudança da medicina, de cunho assistencialista, curativa e individual. O Movimento da
Reforma Sanitária criticava a mercantilização da medicina e a concessão de privilégios ao setor
privado (BRASIL, 2007). Como as pessoas acessavam o sistema de saúde? Quais eram as
dificuldades? Foram surgindo classes de pessoas, como profissionais da saúde, representantes
da Sociedade Civil, intelectuais da época e pesquisadores que buscavam transformações do
setor de saúde, visando melhorias na atenção à saúde da população.
O 1º Simpósio Nacional de Política de Saúde aconteceu no ano de 1979 e foi
considerado um marco expressivo na política de saúde e da reforma sanitária. Neste simpósio
foi discutida a primeira proposta de reorientação do sistema de saúde, buscando instituir
características de descentralização, regionalização, universalização da cobertura e do
atendimento, integralidade das ações, hierarquização e participação social (COTTA et al.,
1998).

Na década de 1980 deflagraram-se diversos movimentos que, de um lado lutavam pela


democratização do País nos âmbitos políticos e sociais, e de outro propunham mudanças no
campo da saúde, no qual estudantes, professores, setores populares e entidades profissionais da
saúde levantaram a bandeira da mudança (PAIM, 2008). Neste período tornou-se necessário a
formulação de políticas sociais amplas, com a perspectiva de promover saúde, de conhecer e
intervir sobre as condições de vida dos indivíduos e população, e de entender a saúde como um
bem público (CORDEIRO, 1978).

No período de 1983 a 1993 é possível identificar três movimentos com repercussões


importantes na configuração do setor saúde: Ações Integradas de Saúde - AIS (1983-1987),
Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde nos Estados - SUDS (1988-1989) e Sistema
137
Único de Saúde - SUS (a partir de 1990) (BERENGER, 1996). A existência de três propostas 9
de reorganização do setor saúde, num período de 10 anos, tempo que pode ser considerado
escasso para mudanças estruturais, suscitou a questão da continuidade/descontinuidade das
políticas de saúde neste período. A década de 1980 constitui-se, sem dúvida, um momento de
redefinição das relações Estado-Sociedade. Representa o início do processo de
redemocratização do País (BERENGER, 1996). Em setembro de 1981 acontece o Encontro
Popular pela Saúde do Rio de Janeiro. Organizado pela Federação de Associações de Moradores
do Estado do Rio de Janeiro - FAMERJ e com a participação da Federação de Associação de
Favelas do Estado do Rio de Janeiro - FAFERJ e do Movimento de Amigos de Bairros de Nova
Iguaçu – MAB (BRAVO et al., 2007).

Capitulo II – Década de 80

Em 1986, a VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS) reafirmou e consolidou as


propostas existentes para a reformulação do setor, ao ratificar a importância da saúde como
direito de todos e dever do Estado (PAIM, 2008). A partir da VIII CNS a sociedade brasileira
passou a dispor de um corpo doutrinário e um conjunto de políticas voltadas para a saúde, que
apontavam para a democratização da vida social e para a reforma Democrática do Estado.
No ano de 1987, como estratégia de reorganizar o setor de saúde, surgiu o Sistema Único
Descentralizado de Saúde (SUDS), que era uma parceria pública-privada com o Instituto
Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), o qual foi criado pelo regime
militar em 1974 pelo desmembramento do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e
agia em conjunto com os municípios. A extinção do INAMPS significou a reversão do sistema
de saúde vigente e do autoritarismo das políticas privadas em curso no Brasil (NORONHA et
al., 2008).

A questão da importância da VIII CNS em termos de representação e como espaço de


luta foi expresso por vários conferencistas e consta também do relatório final do evento:

Ao longo dos 45 anos de história deste evento, pela primeira vez conta-se aqui com a
representação maciça da sociedade civil através de seus sindicatos e associações,
partidos políticos e entidades de representação de moradores. Isto é um avanço
significativo, em relação às conferências anteriores, quando havia predominância
quase absoluta dos próprios formuladores da política oficial, sustentando discussões
138
fechadas ( ... ) ( ... ) gostaria de pedir licença aos sanitaristas, aos médicos, aos 0
profissionais da área, aos pesquisadores, aos funcionários do Ministério da Saúde,
para destacar um convidado especial, um participante que conseguiu um lugar nesta
Conferência com bastante sacrifício: a sociedade civil organizada. E a 8 º
Conferência marcará e demarcará um ponto de inflexão nas políticas de saúde e na
estrutura do setor saúde; ela significará e está significando, certamente, a
consolidação de lutas que travamos, e que todos travamos, nas oposições ao regime
autoritário. O presente relatório final reflete um processo de discussão que iniciado
nas pré-conferências preparatórias estaduais e municipais, culminou com a
participação, na VIII Conferência Nacional de Saúde, de mais de 4.000 pessoas,
dentre as quais 1.000 delegados. (BRASIL, 2016a)

O relatório final serviu como base para os deputados elaborarem o artigo 196 da
Constituição Federal. A partir da promulgação da Constituição, em 1988, a saúde ganhou
rumos diferentes com a criação de um Sistema Único de Saúde (SUS) que tem como preceitos
a universalidade, a equidade e a integralidade da atenção.
Capitulo III – Constituição Brasileira

A proposta de um novo Sistema Único de Saúde foi incorporada na Carta Constitucional


de 1988, no Título VIII - Da Ordem Social, no Capítulo II - Da Seguridade Social, cujo
conteúdo abrange previdência, saúde e assistência social, refletindo uma preocupação com o
bem-estar, a equidade e a justiça, possível pela articulação de políticas inter setoriais, na Seção
II - Da Saúde, nos Artigos 196 a 200, com princípios e diretrizes válidos em todo território
nacional. O Artigo 196 descreve que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação” (BRASIL, 2016b). Como preceito constitucional, foi destacado que a saúde será
garantida por meio de políticas sociais e econômicas abrangentes, com atuação em todos os
âmbitos do processo saúde doença, ou seja, da promoção da saúde à reabilitação e controle de
doenças, com acesso universal e igualitário a todos brasileiro.

O Artigo197 deixa clara a relevância pública das ações e serviços de saúde, cabendo ao
Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle,
devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física
138
ou jurídica de direito privado. O Artigo 198 destaca que as ações e serviços de saúde se organizam 1
por meio de uma rede regionalizada e hierarquizada seguindo as diretrizes: “I - descentralização, com
direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades
preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade”. O financiamento
do SUS contará com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, além de outras fontes. (BRASIL, 2016b)

O artigo 199 diz que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada e prevê os critérios
de participação de empresas privadas no SUS, de forma complementar:

“§1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar


do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito
público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins
lucrativos; §2º - É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou
subvenções às instituições privadas com fins lucrativos; §3º - É vedada a participação
direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no
País, salvo nos casos previstos em lei; 4º - A lei disporá sobre as condições e os
requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para
fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e
transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de
comercialização”(BRASIL, 2016b).

No artigo 200 estão dispostas outras atribuições que competem ao SUS:

“I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a


saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos,
hemoderivados e outros insumos; II - executar as ações de vigilância sanitária e
epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador; III - ordenar a formação de
recursos humanos na área de saúde; IV - participar da formulação da política e da
execução das ações de saneamento básico; V - incrementar em sua área de atuação
o desenvolvimento científico e tecnológico; VI - fiscalizar e inspecionar alimentos,
compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para
consumo humano; VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte,
guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; VIII
- colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do
trabalho”(BRASIL, 2016b).
138
2
Capitulo IV – Sistema Único de Saúde

Os princípios doutrinários e operacionais do SUS são regulamentados pelas Leis


Orgânicas da Saúde nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, e nº 8.142, de 28 de dezembro de
1980 (BRASIL, 2016 c,d).

A Lei n. º 8.080 regulamenta o Sistema Único de Saúde (SUS) dispondo sobre a


organização e o funcionamento dos serviços e das ações de promoção, proteção e recuperação
da saúde.
A Universalidade expressa o direito de todas as pessoas às ações e serviços de saúde de
qualquer natureza, independente de sua cor, classe social, religião, tornando-se um dever do
Estado (Governos federal, estadual e municipal) sua garantia a todos os cidadãos brasileiros
(BRASIL, 2016b; NORONHA et al., 2008; PAIM, 2008; MENDES, 2001).
A Integralidade determina que as ações e serviços de saúde devem ser combinadas e
voltadas ao mesmo tempo para promoção, prevenção cura e reabilitação, considerando
indivíduos e coletivos, em todos os níveis de complexidade do sistema (serviços de média e alta
complexidade) (BRASIL, 2016b; NORONHA et al., 2008; PAIM, 2008; MENDES, 2001).

A Equidade difere do conceito de igualdade, significando assistir indivíduos e


comunidades sem discriminação, privilégios ou preconceitos de qualquer espécie, de acordo
com suas necessidades, oferecendo mais a quem mais precisa e menos a quem requer menos
cuidados. Busca-se, com este princípio, reconhecer as diferenças nas condições de vida e saúde
e nas necessidades das pessoas, considerando que o direito à saúde passa pelas diferenciações
sociais e deve considerar a diversidade. (BRASIL, 2016b; NORONHA et al., 2008; PAIM,
2008; MENDES, 2001)

Como princípio organizativo do Sistema Único de Saúde (SUS) a Descentralização da


gestão e das políticas da saúde no país é feita de forma integrada entre a União, Estados e
Municípios. O poder e a responsabilidade sobre o setor são distribuídos entre os três níveis de
governo, objetivando a prestação de serviços com mais eficiência e qualidade e também a
fiscalização e o controle por parte da sociedade. A partir do conceito constitucional do comando
138
único, cada esfera de governo é autônoma e soberana em suas decisões e atividades, mas 3
respeitando os princípios gerais e a participação da sociedade. Neste sentido, a autoridade
sanitária do SUS é exercida: na União, pelo ministro da saúde; nos estados, pelos secretários
estaduais de saúde; e, nos municípios, pelos secretários municipais de saúde. (BRASIL, 2016b;
NORONHA et al., 2008; PAIM, 2008; MENDES, 2001)

Outro princípio organizativo é a Hierarquização e Regionalização, o qual prevê que os


serviços devem ser organizados em níveis crescentes de complexidade, circunscritos a uma
determinada área geográfica, planejados a partir de critérios epidemiológicos, e com definição
e conhecimento da população a ser atendida. A regionalização é um processo de articulação
entre os serviços que já existem, visando o comando unificado dos mesmos. Já a hierarquização
deve proceder à divisão de níveis de atenção e garantir formas de acesso a serviços que façam
parte da complexidade requerida pelo caso, nos limites dos recursos disponíveis numa dada
região. (BRASIL, 2016b; NORONHA et al., 2008; PAIM, 2008; MENDES, 2001)
A Participação social é um princípio organizativo para concretizar o SUS na prática, ou
seja, a sociedade deve participar no dia-a-dia do sistema. Para isto, devem ser criados os
Conselhos e as Conferências de Saúde, que visam formular estratégias, controlar e avaliar a
execução da política de saúde. A Lei n. º 8.142 instrui sobre os recursos financeiros da área da
saúde e institui as Conferências de Saúde e os Conselhos de Saúde como instâncias de Controle
Social. O Decreto n. º 99.438, de 7 de julho de 1990, regulamentou as novas atribuições do
CNS e definiu as entidades e órgãos que comporiam o novo plenário, com 30 membros. Essa
legislação fixou na composição do CNS entre representantes dos usuários, trabalhadores da
saúde, gestores (governo) e prestadores de serviço de saúde. Os usuários ficaram com 50% das
vagas, e os outros 50% eram divididos entre trabalhadores, gestores e prestadores de serviço. A
composição do CNS foi fruto de longa negociação do movimento social com o Ministério da
Saúde. (BRASIL, 2016b; NORONHA et al., 2008; PAIM, 2008; MENDES, 2001).

CONCLUSÃO

Com isso é possível compreender que todo o processo de construção de um Sistema


138
Único de Saúde teve como protagonismo a sociedade civil, que via a necessidade de 4
democratizar o sistema de saúde vigente na década de 70 e 80. A democratização veio
alicerçada na mobilização do povo brasileiro e concretizada na legislação, trazendo benefícios
a muitos trabalhadores e trabalhadoras e demais pessoas do país que antes não tinham acesso a
um sistema de saúde. Sendo um sistema que deve ser regularmente aprimorado, pode-se dizer
que está em permanente construção.

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138
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138
6
RELAÇÕES DE PODER: A DIDÁTICA DA HISTÓRIA, O CURRÍCULO DA
UNIVERSIDADE E A FORMAÇÃO DO/A PROFESSOR/A DE HISTÓRIA

Maria Caroline Aguiar da Silveira787

RESUMO

Nesse trabalho apresentaremos nossa pesquisa, que trata de alguns aspectos relacionados a
Didática da História e qual o seu papel na formação de nossos/as professores/as de História?
Acreditamos que nossa proposta, de se pensar a didática da História enquanto uma disciplina
fundamental para a formação de professores/as de História, demonstra uma carência de
orientação percebida por alunos/as que se encontram em momento de estágio. O Estágio é o
momento da prática, no qual esses/as alunos/as experimentam e põem a prova os conhecimentos
que construíram ao longo de sua graduação. Porém, o que se percebe é que muitos/as se veem
despreparados no momento do estágio. Isso porque ao longo de sua formação, os conteúdos
muitas vezes não são propostos de uma forma eficiente, atrativa e significativa. Essa carência
de orientação fica evidente quando, analisando o currículo de História proposto nas
Universidades Federais do RS, encontramos uma clara predominância da História sobre a
Educação, da formação de Bacharel sobre os/as Licenciados/as. Entendemos que a Didática da
História tem um papel fundamental para o aprendizado histórico. A didática da história, quando pensada
em organização curricular, pertence a área da História, e não da Educação. Portanto, é um aspecto
138
relacionado ao currículo acadêmico da História e a falta dela demonstra como ainda persiste um
distanciamento entre a História e a Educação dentro da formação de nossos/as professores/as de História,
7
sendo as disciplinas voltadas a formação pedagógica relegadas a verdadeiros apendices da História
propriamente dita, a história tradicional. A Didática da História, auxiliaria os/as futuros/as professores/as
de História, e também, aos alunos e alunas a entenderem-se como sujeitos, pois essa perspectiva de
ensino de História vê a História, em todos os seus âmbitos como algo ensinável, que constrói e permite
com que os homens e mulheres construam-se e entendam seu papel ativo no mundo.

Palavras-chave: Didática da história, Formação de professores/as, Currículo universitário.

INTRODUÇÃO

Nessa pesquisa, temos como objetivo apresentar de forma teórico e conceitual alguns
aspectos relacionados a Didática da História e qual o seu papel na formação de nossos/as

787
Graduanda em História, Universidade Federal do Rio Grande. maria.a.silveira@hotmail.com
professores/as de História? Além de trazer a discussão acerca das análises dos QSL da
licenciatura em História das Universidades Federais do Rio Grande do Sul.
Para a discussão teórica, dois trabalhos se tornaram centrais em nossa análise, foram
eles “Didática da História: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão” de Jörn
Rüsen e “Didática da História: contribuições para a formação de professores” de Ana Claudia
Urban. Essas obras nortearam nossa pesquisa justamente por trazerem em sua abordagem
aspectos centrais de nossos questionamentos. Rüsen, em sua obra, tratará da didática da história
na Alemanha Ocidental, porém, sua conceituação teórica e análises do que se configura
enquanto didática da história são centrais para nossa própria concepção do assunto; enquanto
que Urban tratará dessa temática de forma mais empírica, trilhando uma busca pela Didática da
História no que tange a formação de professores/as no Brasil. Ambos nos mostram a relevância
do papel da didática da história para uma formação competente, crítica e eficiente, no que diz
respeito ao ensino e a aprendizagem histórica, dos nossos futuros professores e futuras
professoras de História.
Após a conceitualização e apresentação das concepções que permeiam a Didática da
História, buscamos analisar mais profundamente a natureza do código disciplinar da Didática 138
da História, tomando como objetos da análise os Quadros de Sequência Lógica (QSL)/ Grades
Curriculares/Fluxogramas das Universidades Federais do Rio Grande do Sul, bem como as 8
ementas das disciplinas voltadas a Licenciatura em História, pertinentes ao campo da educação.
Optou-se por realizar a pesquisa apenas em universidades federais do Rio Grande do Sul, de
modo a ter um parâmetro mais igualitário de grade curricular para as análises. As universidades
federais do RS são UFRGS, FURG, UFSM, Unipampa, UFpel e UFFS, totalizando assim 6
(seis) cursos de História Licenciatura, sendo que a UFSM possui licenciatura e bacharelado
integrado e a Unipampa apenas licenciatura. Essas informações foram cooptadas através do
sítio eletrônico e-MEC, no qual foram localizadas as seis universidades acima citadas, com seis
cursos de História – Licenciatura devidamente regulados e em atividade.

Capítulo I – a didática da história e a formação do/a professor/a de historia


Seguindo para nossa pesquisa, a opinião comum que se tem acerca da funcionalidade
da didática da história que tange o ensino de História, conforme nos aponta Rüsen, é que a
mesma se configura enquanto a transposição de conhecimento acadêmico para o ensino básico,
ou seja, os historiadores profissionais convertem-se em professores; “é uma disciplina que faz
a mediação entre a história como disciplina acadêmica e o aprendizado histórico e escolar.”
(RÜSEN, 2010, p. 23). Porém, essa opinião é falha, pois não se centra nos reais problemas que
concernem o aprendizado histórico, o ensino de história e conhecimento histórico, nem a
relação entre didática da história e pesquisa histórica; sem qualquer tipo de reflexão, adequação
ou preocupação com os alunos e alunas e a realidade em que se situam, essa perspectiva da
Didática da História não passa de uma transfusão do rico conteudismo acadêmico para cabeças
vazias de alunos e alunas. Sobre esse aspecto de se perceber a didática específica da história,
Jörn Rüsen traz a nós a relevância que esta tem para o aprendizado histórico, uma vez que uma
verdadeira didática da história preocupar-se-ia com os usos que a História tem para a vida
humana. Esse questionamento já foi central nas discussões de historiadores e historiadoras, uma
vez que antes de focarem-se apenas em questões teóricas e metodológicas, estes

[...] discutiram as regras e os princípios da composição da história como


problemas de ensino e aprendizagem. Ensino e aprendizagem eram
considerados no mais amplo sentido, como o fenômeno e o processo
fundamental na cultura humana, não restrito apenas na escola. (RÜSEN, 2010,

138
p. 24)

Ou seja, conforme nos aponta o autor, podemos dizer que a História e o seu ensino
perderam o foco quando os/as historiadores/as passaram a focar seus esforços apenas em
9
questões teóricas e metodológicas, abstendo-se de pensarem, refletirem e resignificarem a
História enquanto seu objetivo vital: os problemas práticos da vida e a sua difusão através do
ensino. Os fatores que contribuíram para esse “fechamento” da história para abordagens que
não mais priorizassem o ensino deve-se, principalmente, a institucionalização e
profissionalização dessa disciplina, ocasionando o seu endurecimento em processos puramente
acadêmicos.

A didática da história, aquela que buscamos identificar aqui e que Rüsen traz a nós,
proporciona sairmos da estagnação metódica e técnica que ainda permeia os cursos e disciplinas
da História, para olhar para a mesma com um olhar focado no aprendizado desses conteúdos e
na sua resignificação; não mais pelo viés tradicional, mas na busca de saberes sociais e culturais
dentro da nova perspectiva que desejamos para o ensino de História.
Um fato que merece destaque e que também é um ponto de reflexão desse trabalho é
justamente a falta de localizar geograficamente a Didática da História em um campo específico,
uma vez que a didática da história não encontrava local específico na história ou na pedagogia,
uma vez que os historiadores ainda renegavam qualquer assunto relacionado a educação e que
se inferisse reflexões acerca do próprio conhecimento histórico. Conforme nos diz Rüsen
[...] a didática da história serviu como auxiliar à didática geral; ela ainda era
vista como uma disciplina pedagógica. Isso foi exacerbado pela tradicional
mentalidade estreita de muitos historiadores profissionais que excluíam todas
as questões de função prática da história de uma autorreflexão histórica séria.
O resultado dessa atitude foi empurrar a didática da história para o mais perto
da pedagogia e abrir uma lacuna entre ela e os estudos normais da história.
(RÜSEN, 2010, p. 31)

Percebemos, através disso, que a dicotomia História e Educação é uma realidade


presente no âmbito acadêmico, científico; a didática da História encontra mais espaço nas
discussões que tangem a educação sem que, no entanto, a compreendamos enquanto um fator
essencial nas discussões do ensino e aprendizagem em História. A História, enquanto disciplina
acadêmica e escolar possui suas especificidades tanto na compreensão dos processos históricos
quando na fomentação de uma instrumentalização para que se ensine história, de forma crítica
e reflexiva.

Entendemos que a didática da história possui os instrumentos que proporcionam tanto


139
um quanto outro, afinal o pensamento histórico possui uma natureza específica e peculiar. 0
Segundo Rusen, uma definição modesta do que seria a didática da história é justamente a
investigação do aprendizado histórico, no momento em que compreendemos esse aprendizado
enquanto uma manifestação da consciência histórica, “[...] é necessário reformular ideias sobre
a consciência histórica como sendo um fator básico na formação da identidade humana
relacionando estes conceitos com o processo educacional, que também é básico para o
desenvolvimento humano.” Rusen nos mostra, a partir dessa reflexão, que consciência histórica
está intimamente ligada ao processo de aprendizagem histórica, afinal a constituição de uma
identidade humana é como me percebo e me situo no mundo onde vivo, não apenas enquanto
sujeito passivo, mas agente histórico dos processos que acontecem a minha volta; a consciência
histórica precisa ser levada em consideração no momento da aprendizagem, assim como a
história precisa ser percebida enquanto um fator vivo, prático e formador de sujeitos ativos e
reflexivos.
A didática da história vem justamente ao encontro dessas ideias, e pode ser capaz de
proporcionar instrumentalizações acerca do conhecimento histórico e seu crescimento na vida
prática.

Jorn Rusen nos traz então uma reflexão bastante rica sobre o que é a didática da história
bem como qual papel esta deveria desempenhar no que tange o aprendizado histórico e a relação
da História com a vida prática dos homens e mulheres no tempo. A partir disso, procuramos
pela Didática da História nos cursos de formação de licenciados/as em História e para tal as
analises realizadas por Ana Claudia Urban foram de extrema relevância para nosso trabalho.

Em sua obra “Didática da História: contribuições para a formação de professores”,


Urban traz até nós uma série de pesquisas sobre a Didática da História no Brasil; suas fontes
foram legislações referentes aos cursos de formação de professores/as de História e manuais de
formação de professores/as de História e seu referencial teórico foram Transposição didática
de Yves Chevallard e Educação Histórica de Jorn Rusen. Segundo Urban

Buscou-se problematizar a formação do professor de História, questionando-

139
se a forma como são encaminhadas as reflexões acerca da Didática da História.
Tomou-se a formação de professores, os manuais e legislações, mais a
experiência de alunos acadêmicos, com a intenção de estabelecer um diálogo
em que os alunos em processo de formação construíram a sua forma de pensar
a Didática da História. (URBAN, 2011, p. 25)
1

Portanto, as reflexões e as fontes utilizadas por Ana Claudia Urban são extremamente
pertinentes ao trabalho que propomos realizar nessa pesquisa, uma vez que se volta justamente
para a Didática da História no que tange os aspectos da formação dos professores e professoras
de História no Brasil, bem como a percepção dos acadêmicos e acadêmicas sobre sua
perspectiva formativa em relação a Didática da História. Salientamos que a pesquisa está sendo
proposta no contexto do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande
do Sul, Brasil.

Entendemos a Didática da História enquanto um aspecto fundamental de uma formação


realmente eficiente de nossos professores e nossas professoras no que diz respeito ao ensino de
História, pois visa, justamente, o desenvolvimento da consciência histórica de crianças, jovens.
Porém, quando buscamos pela disciplina Didática da História não a encontramos, esse assunto
não existe enquanto disciplina no currículo de História da Universidade Federal do Rio Grande;
mas, mais que isso, as pesquisas de Ana Claudia evidenciam que, apesar da solidificação e
crescimento das pesquisas relacionadas ao Ensino de História, percebemos que estas ou se
encontram mais na educação ou são programas de pós-graduação.

No âmbito acadêmico de graduação não encontramos essas discussões e sentimos a


necessidade de trazer esse debate a esse meio, pois entendemos a necessidade dessa disciplina
na universidade durante a graduação, durante o período em que estamos de fato formando
nossos e nossas professores e professoras.

A Didática da História que defendemos está preocupada com o processo de ensino e


aprendizagem histórica, e que proporcionará aos alunos e alunas dos cursos de Licenciatura em
História se relacionar com o conhecimento histórico e suas próprias formas de compreender a
História, para além do conteudismo recorrente nas disciplinas voltadas à História propriamente
dita. Servirá para sustentar e instrumentalizar as relações de ensino e aprendizagem da História,
indispensáveis para a real formação de futuros/as docentes.

A partir disso, procuramos encontrar no currículo das Universidades Federais do Rio 139
Grande do Sul aspectos do QSL e das Ementas das disciplinas voltadas à educação que nos
forneçam um código disciplinar da Didática da História.
2

Capitulo II – OS QSLS e a Didática da História: o que os documentos dizem sobre a


Licenciatura em História

O Brasil conta com 216 cursos de História Licenciatura, em atividade em Universidades


e instituições Federais, na modalidade presencial. Após ter conhecimento das instituições
públicas no RS que possuem cursos de Graduação em História Licenciatura, foram examinadas
suas grades curriculares, por meio de consulta aos sítios eletrônicos dessas instituições. O foco
da consulta foi fazer levantamento das disciplinas relacionadas a educação dentro da grade
curricular, além de fazer um comparativo da forma como estão organizados os QSLs desses
cursos em suas instituições. Analisamos o QSL de modo a perceber a partir da própria
organização do curso qual a proposta de ensino e aprendizagem em História.
O QSL da FURG, por exemplo, conta com 4 (quatro) focos, sendo eles: as áreas
especificas da História, os conteúdos teóricos, as disciplinas relacionadas a licenciatura e as
disciplinas de patrimônio (no caso do bacharelado), isso se tratando de disciplinas obrigatórias.
Achamos pertinente trabalhar apenas com as disciplinas obrigatórias, tendo em vista que são as
disciplinas realizadas pelos alunos e alunas ao longo da graduação, uma vez que disciplinas
optativas podem ou não ser escolhidas ao longo do percurso acadêmico. Partimos do
pressuposto que, dentro da FURG bem como inúmeras Universidades, ainda existe um
distinção curricular entre Licenciatura e Bacharelado e o objetivo de nossa análise é justamente
sobre o currículo que forma nossas/os professoras/es de História, a partir disso nosso foco na
pesquisa é justamente a grade curricular da Licenciatura.

A busca pela Didática da História dentro da Licenciatura em História, ou seja, um curso


de formação de professoras e professores de História, bem como nas ementas das disciplinas
voltadas a educação, nos permitem averiguar que existe sim um código disciplinar da Didática
da História. Os objetos analisados, QSL e ementas, evidenciam em sua constituição formas de
argumentar, pensar e instrumentalizar, tanto teórico quanto prático, os/as alunos/as que
futuramente irão lecionar História; portanto, atentamos para o fato de corroborar as afirmações 139
que foram feitas em nossas discussões acerca da existência de um código disciplinar voltado
3
exclusivamente ao ensino e aprendizagem em História que, mesmo não tendo a nomenclatura
de Didática da História, pode sim ser pensada enquanto tal.

Olhamos para como a formação dos/as professores/as de história está organizada dentro
das grades curriculares das seis universidades pesquisadas, a partir da análise das disciplinas
que compõem a grade específica da Licenciatura no curso de História, ou seja, buscamos apenas
pelas disciplinas voltadas a educação.

Abaixo, construímos uma tabela, a partir do levantamento de dados disponibilizados nos


sites das Universidades, que visa comparar, em termos de disciplinas, os QSL das
Universidades já citadas, tendo como base o Quadro de Sequência Lógica da FURG:

F U U U U U
U F F F N F
R P I
R G S E P F
G S M L A S
M
DISCIPLINAS P
A
LICENCIATURA/EDUCAÇÃO
Didática da História
Psicologia da Educação x x x x
Elementos filosóficos da educação X x x x x
Práticas pedagógicas módulo 1º sem. X x
Elementos sociológicos da educação X x x x
Práticas pedagógicas módulo 2º sem. X
Didática X x x x x
Políticas Públicas da Educação X x x x x x
Práticas Pedagógicas módulo 3º X X x x x
sem.
Práticas pedagógicas módulo 4º sem. X x x x x 139
Estágio Supervisionado I X x x x x x 4
Práticas Pedagógicas módulo 5º sem. X x x
Metodologia do Ensino de História I X x x
Estágio Supervisionado II X x x x x x
Metodologia do Ensino de História X x
II

O que podemos inferir, a partir da análise realizada, é que os currículos se configuram


de forma muito similar. Todos possuem um molde semelhante em relação a divisão das
disciplinas, sendo conteúdos históricos; teóricos, disciplinas relacionadas a licenciatura. E
achamos de extrema pertinência ressaltar que sim, existe uma clara divisão das disciplinas
educacionais, de formação pedagógica, sendo inclusive responsabilidade de outros
departamentos. Porém, a Didática da História não é localizada em nenhuma grande
curricular/QSL enquanto uma disciplina.
Buscamos pela didática da História no âmbito acadêmico, destinado a formação de
nossos e nossas futuros e futuras professores e professoras de História, justamente por
entendermos que essa formação está sendo deficiente no que tange ao ensinar História, mas
principalmente, tem sido deficiente em proporcionar um aprendizado histórico adequado aos
nossos alunos e alunas. Portanto, sobre a presença de um código disciplinar da Didática da
História no que tange a formação de professores e professoras, Ana Claudia Urban trará as
analises de legislações referentes aos cursos de formação de professores e professoras. O
Parecer 292/62 analisado pela autora tem grande relevância quando se propôs a tornar
obrigatório um conjunto de disciplinas que visavam a formação pedagógica do/a professor/a,
conforme explicita autora

Compreende-se que todas as disciplinas de um curso de Licenciatura precisam


ter como preocupação a formação pedagógica do futuro professor, mas a
relevância desse Parecer reside no fato da institucionalização legal de
disciplinas voltadas a uma formação pedagógica, valorizando ou destacando
a necessidade de que os cursos de Licenciatura privilegiassem um espaço
(carga horária), voltada à especificidade da prática do professor.” (URBAN,
2011, p. 61)

139
A relevância desse Parecer consiste no fato de ter sido o primeiro a estabelecer uma
5
série de disciplinas obrigatórias que objetivavam uma melhor instrumentalização do/a aluno/a
para tornar-se professor/a e dentre essas disciplinas estão a Psicologia educacional, a Didática
e a Prática de Ensino.

O Parecer atribui a esse tripé o método que tornaria o aluno/a em professor/a, um/a
professor/a apto a lidar com o ambiente da sala de aula e desenvolver o seu trabalho de forma
eficiente; é um conjunto de lentes para trazer a “realidade”, que aqui entendemos como prática
e sentido, as teorias do conteudismo, ou seja, trazer algum sentido de vida e de prática aos
conteúdos docentes. Conforme elucida Urban

aluno e método são as palavras-chave que nortearam a Legislação [...] em que


a prática de ensino, aliada à Didática e somada à Psicologia, constituíram-se
em um tripé fundamental, capaz de instrumentalizar eficientemente o futuro
professor quanto a sua futura prática. (URBAN, 2011, p. 64)
Dessa perspectiva, podemos concluir que a Didática aliada ao Estágio Supervisionado
é que garantiriam esse sucesso na formação docente.

A prática de ensino, que hoje chamamos Estágio Supervisionado, demonstra uma clara
preocupação com a falta de prática aliada a teoria, ou seja, o/a aluno/a sabia o conteúdo, mas
precisava de um ambiente onde pudesse colocá-lo em prática. Porém, exigir que os alunos e
alunas realizassem essa prática de ensino não é capaz de garantir que eles e elas estejam aptos
e aptas à realizá-la de forma crítica, experimental, atentando para as especificidades de seus
alunos e alunas, da escola, e do tempo em que vivem; o que percebemos então é que, na falta
de uma formação realmente eficiente nesse sentido, de proporcionar criticidade e reflexão
acerca do conteúdo histórico, os/as futuros/as professores/as acabam por reproduzir o
conteudismo que aprendem na faculdade e o estágio, ao invés de ser seu laboratório, passa a ser
um ambiente assustador e desanimador, pois não realizam seu trabalho como desejam e nem
cativam seus alunos e alunas a se interessarem por aquilo que estão aprendendo.

Sabemos que muito se avançou nessas discussões e que a formação docente, bem como
as teorias e práticas educacionais, são campos de pesquisa consagrados e que aprimoram seus
debates constantemente, e através disso, as cadeiras relacionadas à educação proporcionam
139
certas reflexões e questionamentos sobre o dar aula, o ensinar e o aprender. Elas nos mostram 6
métodos de trabalhar com a nossa especificidade, que é a História, mas a História não mostra
como trabalha-la, como vive-la e como ensina-la.

Ainda sentimos a imensa distância que permeia as relações História e Educação, quando
pensamos que um curso que forma licenciados/as em História perpassa esses dois aspectos, a
História e o Ensino. Estamos formando apenas historiadores e historiadoras? Ou professores e
professoras de História? Percebemos que as cadeiras relacionadas à educação parecem
verdadeiros apêndices da História, não há diálogos ou qualquer conexão entre esses dois
âmbitos, que deveriam relacionar-se por uma formação eficiente e não ser vistos como aspectos
separados de um mesmo espaço formativo. A qualidade e inovação do ensino, seja ele qual for,
está intimamente ligada com uma formação ampla e eficiente de professores e professoras.
Conforme Elza Nadai, “As primeiras medidas concretas no sentido da inovação do ensino em
geral, e o de História em particular, ocorreram com a instalação dos primeiros cursos
universitários direcionados para a formação do professor secundário, em 1934.” (NADAI,
1993, p. 153-154).

Portanto, como pensar um ensino de História na educação básica se não pensarmos a


formação daqueles e aquelas que serão os mediadores desse ensino? Há um alerta para que se
saia do conteudismo e se faça reflexões, mas será que a Universidade faz isso? As cadeiras da
História auxiliam no pensamento critico dos processos históricos, mas mais do que isso,
auxiliam ao futuro professor e futura professora de História pensar os processos históricos de
forma a mediar esse conteúdo em sua futura profissão? Isso fica evidente quando buscamos a
Didática da História dentro da academia, através dos QSL; ela não existe. A Didática da
História, com essa nomenclatura, existe enquanto campo de estudos e pesquisas apenas em
cursos de pós-graduação. Mas se encontramos a Didática enquanto uma disciplina obrigatória
de nossos cursos de Licenciatura em História, por que não a Didática da História?

Como um dos objetivos da pesquisa é proporcionar a análise da constituição dos


Currículos e Grades Curriculares/ Quadros de Sequência Lógica da Licenciatura em História
colares, ressaltamos que no contexto da ditadura Civil-Militar, o ensino de História distanciou-
se da produção historiográfica acadêmica, envolvida em discussões a respeito de objetos,
139
fontes, métodos, concepções e referenciais teóricos da ciência histórica. A aproximação entre a 7
Educação Básica e a Superior, logo as discussões entre educação e academia, seria retomada
apenas a partir da década de 1980, com o fim da ditadura militar e o início do processo de
redemocratização da sociedade. Ou seja, durante aproximadamente 10 anos, onde a disciplina
de História incorpora à de Estudos Sociais na educação básica e o curso superior, onde História
e Geografia eram disciplinas autônomas, passam a ser em 1969 licenciaturas curtas e em 1971,
licenciaturas curtas e longas em Estudos Sociais, contendo as áreas de História, Geografia e
período de duração de três anos. Segundo Selva Guimarães Fonseca, essas novas leis e reformas
universitárias e escolares tinham o objetivo de investir contra o profissional de história, com o
intuito de não formar mais cidadãos críticos e hábeis a questionar o controle e as metas do
Estado:

O profissional oriundo da licenciatura curta estava mais propenso a atender


aos objetivos do Estado, aos ideais de segurança nacional [...] A licenciatura
curta generalizante, não preparando suficientemente o professor para o
trabalho nas escolas, acabava, na maioria das vezes, empurrando-o para a
alternativa mais cômoda, ou seja, utilizar o manual didático, reproduzindo-o
de forma quase absoluta, reforçando um processo de ensino em que não há
espaço para a crítica e a criatividade. (FONSECA, 2011, p. 29)

Podemos relacionar então, conforme a citação acima, que esse distanciamento, tanto dos
saberes produzidos dentro da academia com a escolarização básica, bem como a deficiência
formativa dos professores e professoras de História do período e a desintegração e encurtamento
do curso de História nas universidades como fatores que contribuíram, e continuam a contribuir,
para a falta de diálogos e de criticidade no que se refere aos saberes institucionalizados,
transpostos para os manuais didáticos.

A realidade educacional brasileira, podemos ressaltar, não é uma força do acaso,


configura-se na maneira como é hoje por ser o resultado de decisões e determinações
historicamente construídas, que insistem e persistem, principalmente quando reforçadas por
posturas de exclusão presentes nos atos repetitivos da ação cotidiana escolar.

Dentro dessa lógica, a formatação dos currículos de História, tanto no Ensino Superior
139
quanto no Ensino Básico, ainda se configuram de uma forma extremamente tradicional, e isso
se reflete também na configuração dos cursos formadores de professores e professoras de 8
História e em sua maneira de lidar com a Educação.

CONCLUSÃO

Concluímos, portanto, que não existe uma disciplina de didática da História, mesmo
com os currículos das universidades sendo tão parecidos. Porém isso não deixa de demonstrar
que existe sim um código disciplinar, uma vez que as ementas disponibilizadas pelas
Universidades demonstram as concepções que norteiam as disciplinas relacionadas a educação
dentro da Licenciatura, são concepções que se voltam a compreender, desenvolver técnicas,
métodos e normas para o ensino de História. São disciplinas muito mais preocupadas com a
normatização do ensino e com a Didática Geral do que com os processos reais de ensino e
principalmente da aprendizagem em História e com as premissas da Didática da História. Cabe
ressaltar que apenas a UFFS, dentro do QSL e da ementa, faz menção a Didática da História e
utiliza, inclusive, em sua referencia bibliográfica a obra de Jörn Rüsen.

Além disso, podemos inferir nossa concepção de que a Licenciatura encontra-se em


desvantagem em relação ao Bacharelado. Tendo em vista todo o percurso que as licenciaturas
tomaram no período da Ditadura Militar e sua posterior reconstrução no período da
redemocratização, encontramos Licenciatura muito fracas, ainda sob muitos olhares e análises,
críticas, desconstruções e construções. Mas principalmente, podemos notar o quanto o
distanciamento da acadêmica com a educação básica, e o engessamento da disciplina História
em uma série de procedimentos metodológicos e teóricos afasta a licenciatura da História, ou
seja, afasta a preocupação e a tarefa educacional da História dos olhares dos historiadores e das
historiadoras.

Uma prova disso é onde estão localizadas as disciplinas da licenciatura dentro das
grades curriculares dos cursos de Licenciatura em História; ou seja, a qual departamento,
instituto ou unidade acadêmica estas estão colocadas. Muitas disciplinas não pertencem ao
departamento da História, mas estão sob a
139
Com isso, não estamos querendo dizer que a forma como os currículos estão construídos
são os grandes culpados das falhas que ocorrem na formação dos professores e professoras de
9
História, mas que isso demonstra uma clara falta de diálogo entre a História e Educação, entre
a História e a sala de aula, entre a bolha da disciplina História e a formação daqueles e daquelas
que lidarão com seus conteúdos dentro das salas de aula.

Do ponto de vista curricular, a História não esta preocupada com os processos de


aprendizagem de sua própria disciplina, que contem uma série de particularidades para que
aconteça, nem em como fazer com que os conteúdos históricos sejam realmente significativos
para a vida prática dos alunos e alunas a quem esse conhecimento é destinado.

O Estágio, outro ponto da pesquisa que está em andamento, pode ser encarado
justamente como esse momento, o momento de integração entre os saberes da educação e da
História, porém, o que percebemos é justamente o oposto. Os alunos e as alunas que se
encontram em momento de estágio sentem um enorme despreparo em relação a sua prática
docente e em sua falta de capacidade para ministrar os conteúdos, não em termos metodológicos
ou de recursos didáticos, mas em relação a desconexão presente entre a História e a Educação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Universidade.
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da Universidade.
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UFSM. Disponível no site da Universidade.
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Universidade.
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Curitiba: Juruá, 2011.
OS EDITAIS DO PNLD 2012-2015 E O MANUAL DO PROFESSOR:
CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS 788

Virgínia da Silva Xavier

RESUMO

No presente trabalho, que é fruto nas discussões realizadas através do LABEC (Laboratório
Independente de pesquisa em ensino de ciências humanas), visamos analisar como os atuais
Manuais do Professor de História que somados aos livros didáticos de História, voltados para
o Ensino Médio, são utilizados pelos docentes para o ensino de História nas escolas públicas
estaduais da cidade do Rio Grande. A princípio analisaremos os próprios editais de 2015 do
Plano Nacional do Livro Didático, devido ao seu caráter regulador da produção dos mesmos,
assim como dos livros didáticos. Esses editais tem uma função central na elaboração do
conjunto de coleções dos livros didáticos, sejam os de História ou de outras áreas do
conhecimento, pois em sua estrutura apresenta condições e regras para que as coleções 140
participem da concorrência pública a que o edital se propõe, e assim, buscam dirigir as formas 2
de aprendizagem histórica. Fundamentado no pensamento de autores como Jörn Rüsen, o livro
didático é um material impresso e agora também digital, estruturado para a sua utilização no
processo de ensino aprendizagem e por esse ser um objeto complexo, um leque de possíveis
pesquisas, precisa ser mais explorado em suas potencialidades. Pesquisa como de Vitória
Rodrigues e Silva preocupa-se em discutir sobre a política pública responsável por regulamentar
o produto final que conhecemos: o livro didático. Antes de termos o manual didático em mãos,
ele passa por uma série de etapas rigorosas estipuladas através de editais. Dentre essas
exigências, o manual do professor também sofre alternâncias, sua utilização deixa de ser apenas
apoio teórico-metodológico, mas também que a auxiliar o professor no processo de ensino-
aprendizagem histórica.

Palavra chave: Ensino de História – Editais – Livros didáticos-PNLD- Manual do Professor

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


Graduanda do curso de História Licenciatura da Universidade Federal do Rio Grande (FURG)-Brasil
INTRODUÇÃO

A relação entre o ensino de História e as aprendizagens históricas no universo escolar é


mediada pelos livros didáticos. Essa afirmação pode parecer forte aos olhos de um leitor a
primeira vista, mas, ao analisarmos o contexto escolar logo veremos que os livros didáticos
possuem um papel destacado nas relações traçadas entre professores e alunos. Nessa dimensão
de pesquisa, no presente trabalho propomos uma análise dos critérios e regulamentos do edital
que convoca as editoras para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas para o Plano
Nacional do Livro Didático 2015.
Nosso foco de estudo são os editais de seleção exigidos para as obras de História, que
são nosso objeto de pesquisa, pois essas, após passar por minuciosos critérios de avaliação,
quando aprovadas, constam no Guia do Livro Didático de ensino médio 2015 e conseguinte,
ficam disponíveis nas redes de ensino da cidade de Rio Grande. Esse guia é uma ferramenta
oferecida aos professores através de resenhas e orientações para facilitar o processo de escolha 140
quanto a melhor obra a ser utilizada aos seus pressupostos educacionais ou pressuposto projeto
3
da escola. Observamos que os critérios exigidos às editoras para a produção o manual do
professor não sofreram grandes alterações, entre os anos de 2012 e 2015, pois foi inserido
somente mais um critério que diz que o manual do professor “oferece orientações sobre
princípios, critérios e instrumentos de avaliação, considerando a especificidade da disciplina
História” (edital 2015). Entretanto, ainda podem-se questionar, os critérios de exigência e
avaliação do Edital do PNLD influem apenas nas estruturas das obras didáticas de História ou
também na forma de apresentação dos conteúdos? Qual a relação direta entre edital e o manual
do professor? Essa problemática e discussão serão um eixo do trabalho aqui apresentado.
Utilizaremos como marco teórico Jörn Rüsen por este fazer o elo entre livro didático e
consciência histórica como mostra em seu artigo “o livro didático ideal”. Segundo Rüsen, o
livro didático é o guia mais importante da aula de história e é a partir dele que se deve favorecer
a aprendizagem histórica. O autor também aponta que há um déficit na análise de livros
didáticos e justifica que ainda não houve uma pesquisa mais profunda e contínua sobre as
potencialidades e limitações na sua utilização. A proposta em analisar os editais do PNLD é de
perceber como esse propõe critérios de seleção e produções dos manuais do professor, assim
como dos próprios livros didáticos. Esse tema vai ao encontro à teoria de Rüsen em que aponta
quatro aspectos da utilidade do livro didático para o ensino prático que são: formato claro,
estrutura didática clara, relação produtiva com o aluno e relação com a prática da aula. A
presença ou ausência desses quatro itens estão presentes nas resenhas contidas no Guia do
PNLD para facilitar o norteamento de docentes e selecionar melhor os livros didáticos a serem
utilizados nas suas aulas. Nesse mesmo viés percebemos o aumento das exigências do PNLD e
proporcionalmente a exigência de uma melhor postura teórico-metodológica por parte do
docente no qual é demonstrado através do manual do professor. Essa postura exigida aos
docentes tem relação com desenvolvimento de uma consciência histórica de modo que seja
transmitida sob a perspectiva da aprendizagem histórica aos discentes.

Na resenha do livro Caminhos do homem de Adhemar Marques e Flávio Berutti por


exemplo, apontam que “(...) a abordagem da cultura histórica deve relacionar presente e
passado, problematizando mudanças e permanências que constroem o sentido histórico das
sociedades” (PNLD 2015-História). Desse modo, as ferramentas para o desenvolvimento da
consciência histórica precisam estar articuladas nos livros didáticos de forma que este possa 140
incitar nos discentes a percepção e experiências históricas. Esta relação desconstrói o velho
4
atributo que o ensino de História seja apresentado como “mera sequência de temas” e a “falsa
ideia da história como fato fixo” (RÜSEN, 2010: 124), ele deve desenvolver a reflexão e
interpretação histórica e formação crítica e reflexiva de alunos e alunas. Concomitante ao
pensamento de Rüsen, atribuímos essa maneira de aprendizagem histórica à proposta teórico-
metodológicas inseridas no manual do professor. Optamos utilizar como metodologia a análise
de conteúdo proposta por Roque Moraes, que segundo o autor: “Uma análise textual envolve
identificar e isolar enunciados dos materiais a ela submetidos, categorizar esses enunciados e
produzir textos, integrando nestes, descrição e interpretação (...)” (MORAES, 2007, p89). Essa
metodologia será aplicada nos editais de seleção dos PNLD de 2012 e 2015. Dessa forma, a
análise será importante para compreendermos quantitativamente e qualitativamente os
objetivos propostos nos editais.

O programa (PNLD) atende a distribuição de livros didáticos é o mais antigo em vigor


no Brasil. Indubitavelmente o livro didático é um instrumento de intercessão entre ensino e
aprendizagem e é nessa direção, que observamos que os processos de avaliação dos livros
didáticos tiveram como um de seus pilares no Brasil a criação do Instituto Nacional do Livro
no ano de 1929, responsável para que os livros didáticos chegassem até as escolas. Para isso,
o INL tinha como função legislar as políticas públicas que iriam ser incorporadas a esse
material. Esse órgão foi criado com o intuito de “fiscalizar a nacionalização” do livro didático,
já que antes disto, o governo precisava comprar livros fora do Brasil, ou seja, o objetivo do INL
era criar uma identidade nacional que fosse perpassada através do ensino escolar. A reforma
educacional começou a passar por mudanças a partir do momento em que o governo provisório
de Getúlio Vargas decretou a lei de número 19.402 de novembro de 1930, no qual criou o
Ministério da Educação e Saúde. Mas, foi somente 7 anos depois que o INL foi posto em prática
através da Reforma Capanema. Segundo Andrea Lemos Xavier Gaulucio antes disso:
Em sua primeira fase de atuação o INL não teve uma centralidade no sentido da
produção, mas foi um dos braços do Estado em seu projeto mais amplo de
desenvolvimento que beneficiou a estruturação do sistema empresarial do livro
brasileiro (GAULUCIO, 01).

A partir do pensamento de Gaulucio percebemos que o momento de sua criação, o INL


não apresentou grandes mudanças significativas, pois sua atuação foi maior entre as décadas de
1960 e 1970. Assim, como mencionado pela autora, esse projeto favoreceu futuramente a
140
consolidação do livro didático no Brasil. Nessa direção, a Reforma Capanema implantada sob 5
o decreto de número 1.006 de 30 de novembro de 1938 apresentou a primeira política de
legislação e controle de produção do livro didático no Brasil, a CNLD. A Comissão Nacional
do Livro Didático (CNLD) tinha como função, segundo Rita de Cássia Cunha Ferreira,
fiscalizar os materiais didáticos servindo de filtro autorizando ou não a utilização dos mesmos
nas redes educacionais de ensino primário e secundário do país (FERREIRA, 2008). Dessa
forma, a CNLD foi o órgão responsável pelo controle não apenas pedagógicos, mas também
ideológicos, a partir de uma cultura política que se apresentava no período do Estado Novo.
Conforme Ferreira: “A CNLD foi um pequeno alicerce no projeto do Estado Novo de
construção as identidade nacional” (FERREIRA, 2008:17). Com o fim do Estado Novo e a
saída de Gustavo Capanema do Ministério da Educação, os 40 anos posteriores até a
implantação do PNLD foram marcados por adequações que reestruturavam a legislação quanto
às condições de produção, importação e utilização do livro didático. Ainda sobre as
continuidades da política de avaliação e regulação, devemos perceber que em 1964 tivemos
outra modificação nas políticas que legislaram os livros didáticos. No período do Estado Novo
a preocupação com a construção de uma identidade nacional, agora no período de Ditadura
Militar, a preocupação eram de cunho ideológico, marcados pela censura e a ausência de
liberdade democrática.
Diversos setores da sociedade ou indivíduos de alguma forma sofriam repressões por
parte do governo e o ensino de História também sofreu restrições em meio ao período ditatorial
no qual o Brasil atravessava. Nesse contexto, a disciplina de História deu lugar à disciplina de
Moral e Cívica. Um exemplo dessas novas adequações foi que sob o decreto- lei 8.460 na qual
restringia a liberdade da escolha do livro didático ao professor De acordo com Rezende e Nunes
os valores propostos por esta disciplina:

(...) faziam parte dos conteúdos presentes dos livros didáticos de EMC, o que leva a
considerar a disciplina como parte da estratégia psicossocial elaborada pelo governo
militar, uma vez que atuava nas formas de pensamentos e nas subjetividades
individuais com o objetivo de interferir na dinâmica social. Desejava-se moldar
comportamentos e convencer os alunos acerca das benesses do regime para que estes
contribuíssem com a manutenção do regime. (NUNES & REZENDE, pp 2, ).

O surgimento dessa disciplina nos faz perceber a necessidade que o então governo tinha 140
em promover uma educação cívica centrada na ideologia do Estado, através da criação de uma
cadeira que apoiava a manutenção do regime militar sustentado pelo um suposto ideal
6
democrático. Entretanto, de forma mais explícita, essas reformas se somavam a estratégias de
intervenção por meios mais duros e às vezes com consequências físicas como nos casos de
repressões para aqueles cidadãos que tentavam burlar a censura. De um modo ou de outro, a
repressão ditatorial esteve em todos os âmbitos da sociedade não poupou tampouco o ensino de
História. Foi somente em 1985 com o fim da Ditadura Militar, que o Brasil aspirou ares de uma
recém-consolidada democracia, o ensino mais uma vez passou por novas transformações e uma
delas foi às comissões que fiscalizavam os materiais didáticos, com a implantação do Plano
Nacional do Livro Didático (PNLD) que nas palavras de Rita de Cássia Cunha Ferreira:

(...) enquanto as duas primeiras foram formadas em governos autoritários e suas


funções imbricaram-se às ideologias de seu tempo, o PNLD assume características de
uma política de Estado, uma vez que tem havido continuidade na avaliação dos livros
escolares, de forma independente do governo (FERREIRA, 2008:12).
A autora divide em três momentos o processo de transformação dos livros didáticos: os
dois primeiros foram marcados por políticas públicas que regiam as demandas para a veiculação
de conhecimentos estabelecida sob os olhares de governos autoritários, enquanto que terceiro
momento teve o PNLD como destaque, foi uma política implantada em um período em que o
Brasil passava por uma reestruturação democrática. É nesse momento em que o ensino inicia
um processo que aspirava se desprender de uma história positivista, patriótica e limitada
passando a almejar e produzir uma história centrada nos sujeitos que fazem a história. Mas,
mesmo sobre as régias de um país democrático, o livro didático ainda assim, carecia de uma
política pública que o fiscalizasse e designasse o que seria “aceitável” para ser abordado em seu
conteúdo.
Como sabemos, o livro didático oferece certas limitações quanto a suas dimensões e
tamanho, o que torna uma missão impossível dar conta de uma História totalizante, se
pudéssemos chama-la assim. É a partir de 1996 que o PNLD assumiu a função de fiscalizador
e avaliador dos livros didáticos que serão distribuídos para as escolas públicas brasileiras. Mas,
é somente em 2002 o PNLD começou a atender a distribuição dos livros didáticos através de
coleções. Também em 2002 os editais classificatórios passaram a constar no site do FNDE 140
relacionando todos os critérios que devem ser obedecidos pelos editores de livros didáticos.
Segundo Vitória Rodrigues e Silva: Os editais para a participação no PNLD são bastante 7
técnicos e detalhados. Uma infinidade de disposições, exigências e determinações são feitas,
relativas a diversos âmbitos: administrativo, jurídico, comercial, editorial especialmente os
aspectos físicos das obras e conteúdos (SILVA, 2011:03). Os livros que passarem por essa
seleção e estarem de acordo com esses minuciosos critérios serão assim aprovados para serem
lançados no mercado editorial dos materiais didáticos e oferecidos às escolas públicas
brasileiras. Dessa forma, os editores que produzem o material didático e se inscreverem para o
processo de seleção, terão direito a concorrer a uma das vagas. Passando por esse método de
seleção, o livro (coleção) será aprovado pelo MEC e oferecido aos professores junto com a
resenha da obra para facilitar o processo de escolha.
A partir dessa última transição de governo com criação do PNLD, podemos observar as
mudanças estruturais e didático-pedagógicas dos manuais didáticos, essas modificações
segundo Maria Margarida Dias de Oliveira ocorreram em grande parte, graças às pesquisas
sobre livro didático que se surgiram a partir do século XX, e que se intensificaram ao longo dos
anos. A autora afirma que os trabalhos sobre livros didáticos “Foram importantíssimos, pois
mapearam um elemento que se tornou indispensável nas escolas.” (OLIVEIRA, 01)
E mais do que mudanças estruturais, o livro didático passou a ser distribuído nas escolas
públicas de ensino fundamental a partir do ano de 1996 e especificamente o livro didático de
História e Geografia em 1997. Já para o ensino médio a distribuição de livros didáticos foi
progressiva, atendendo em 2005 alunos de 1º ano das regiões norte e nordeste com manuais de
português e matemática. Entretanto, somente a partir de 2007 o governo passa a atender os
livros de História. Faz-se fundamental ressaltar que esse material que chega até as escolas
destinados a alunos e professores é escolhido através de editais que tem como objetivo convocar
editores para o processo de inscrição e avaliação de suas obras.
Nessa perspectiva, analisando as transições de governo que o Brasil atravessou, com
dois governos autoritários que compreende o período do Estado Novo e ditadura militar, nos
quais a produção de material didático era regulamentada pelo Estado. Após, a redemocratização
brasileira essa mesma produção continuou sendo regulamentada pelo Estado, mas através de
outra “roupagem” com o Plano Nacional do Livro Didático com a possibilidade de
padronização dos manuais escolares através dos editais. A justificativa para esta premissa 140
atribui-se ao perceber que os editais são repletos de minuciosos critérios, como exemplo,
número máximo de páginas para livro do professor e livro do aluno, o que limita a mão do autor 8
e do editor na construção do material didático, essas são tarefas muito particulares que não
dependem apenas do autor e sim de diversos personagens envolvidos nessa composição. Entre
tantas orientações, percebemos que a linguagem é um dos pontos centrais de atenção, pois como
aponta o edital de 2015, o livro didático de história deve superar o verbalismo e dar conta dos
conteúdos a serem estudados. No entanto, pensar na linguagem dos livros didáticos é um
problema para os autores, isso porque, no século XX, as formas de escrita, como bem apontou
Renan Silva (2015:77), passaram a ser um ponto importante no ofício do historiador. Assim
como nas tendências historiográficas do século XX, segundo Silva (2015:78), o Edital de 2015
solicita que a escrita da história supere o etnocentrismo e por consequência o anacronismo,
apesar de que esse último, pode ser facilmente associado à escrita didática. Nessa direção, Ana
Maria Monteiro (2012:195), alerta para um ponto que também aparece destacado no Edital do
PNLD 2015, que é a relação entre os saberes históricos e as vivências dos estudantes, de
maneira a criar uma ponte comunicativa entre o docente e o discente no ambiente escolar.
Podemos perceber, então, que o autor fica basilado pelas exigências do edital do PNLD e as
próprias tendências da historiografia vigente.
É o caso citado por Roger Chartier em “A mão do autor e a mente do editor” onde o
autor cita o caso de Dom Quixote quando visita uma gráfica em Barcelona e percebe de um
lado a tiragem de folhas, de outro a revisão, a correção, ou seja, ocorre uma divisão de tarefas
na qual autores não desempenham papel principal ( CHARTIER, 2014). De fato, essa realidade
percebida entre os séculos XV e XVIII era um processo que se destinava a produção de uma
cópia correta que não dependiam somente da vontade do autor, mas também de ordens de
discurso já pré-estabelecidas que conduzissem a obras e as condições para sua publicação. A
questão levantada por Chartier serve como base para esse trabalho é se esta situação é diferente
nos dias atuais, já que os livros textos são redigidos e corrigidos pelos autores na tela de um
computador? Mesmo com a modernização e facilidade advinda da era da informática, não
exime intervenções e mediações entre os autores, já que o trabalho final é realizado por um
conjunto no qual remeterá o livro como selecionado em um dos planos que recebe mais
investimentos no Brasil.
No livro Projeto Araribá de 2007 consta dividido em 20 tarefas para a elaboração deste 140
material, sendo elas: elaboração dos originais, coordenação editorial, edição de texto,
assistência editorial, preparação de texto, coordenação de design e projetos visuais, projeto 9
gráfico e capa, coordenação de produção gráfica, coordenação de arte, edição de arte,
assistência de produção, coordenação de revisão, revisão, coordenação de pesquisa
iconográfica, pesquisa iconográfica, coordenação de bureau, tratamento de imagens, pré-
impressão, coordenação de produção industrial e impressão e acabamento. Cada setor de
produção muitas vezes está composto com mais de um profissional que se utilizam da divisão
do trabalho para mais próximo o livro possa estar do que Rörn Rüsen chama de “o livro didático
ideal” e atender a infinidade de requisitos exigidos pelo edital. Segundo Chartier “O livro não
é uma entidade fechada: é uma relação; é um centro de inúmeras relações.” (CHARTIER,
2014:42) Da palavra relações subtende-se a priori a apropriação das categorias intelectuais e
estéticas com a palavra escrita, depois o poder sobre a escrita como forma de controlar a
interpretação. Essas relações de poder estão diretamente ligadas à construção de editais, que
não apenas limitam autores e editores, mas que estabelecem normas técnicas.
Mas não são somente as relações de poder determinantes na construção dos editais, as
novas concepções teórico-metodológicas também obrigaram os editais a exigirem outras visões
de História, dessa forma, os livros didáticos permitiram uma reflexão sobre a História que antes
era construída de estruturas narrativas pré-concebidas disseminadas nos manuais, como
exemplo de Carlo Ginzburg, que segundo Roger Chartier, contribuiu para uma mudança
historiográfica com sua proposta de análise histórica indiciária ou reflexões a partir de estudos
de caso, microhistórias ou estudos comparativos.
Ao analisar os editais (2012 e 2015), ao mesmo tempo em que percebemos renovações
historiográficas, também percebemos arbitrariedades e jogos de dominação. O edital nada mais
é do que regramentos cada vez mais rigorosos que possibilitará as editoras participarem do
PNLD, com isso, podemos relacioná-lo também a um jogo, a uma competição como exposto
por Durval Muniz de Albuquerque Júnior em “História a arte de inventar o passado: ensaios de
teoria da História”. Assim como o futebol, o uso livro didático é uma prática comumente
utilizada na cultura ocidental e da mesma forma também é contaminado por interesses
ideológicos e mercadológicos desvirtuado da sua função pedagógica. Segundo Durval Muniz

O jogo passa a ser um modelo de representação do mundo; a luta, a rivalidade, a


141
emulação e a guerra passam a ser pensadas como a base de todo edifício social, como
atividades centrais na elaboração de qualquer cultura. (ALBUQUERQUE 2007: 167) 0
De fato se pensarmos nos editais como um jogo e, consequentemente resultados de
embates, perceberemos os enfrentamentos e a competição incessante de forças. Isso porque
segundo Júlia Matos “perceber que o livro adquire uma face de produto, mercadoria, dentro de
um jogo editorial de consumo” (MATOS 2013:27). Quando o historiador consegue interpretar
esses editais ele está analisando um sistema de regras para assim poder visualizar uma
inteligibilidade.
Portanto, ao analisarmos a longa trajetória de consolidação e afirmação do livro didático
no Brasil, um olhar mais atencioso deve se voltar para as diversas facetas que o livro didático
possui. Ora considerado como um produto cultural através de dados do INEP de 2012, onde ele
é considerado o 2º livro mais lido do Brasil e por estar presente nas memórias escolares da
grande maioria dos brasileiros e por ser, muitas vezes, a única leitura e referencial acessível aos
discentes. Sobre o papel dos livros didáticos para a constituição das memórias dos sujeitos,
discorreu Antonia Terra de Calazans Fernandes:
No caso do trabalho de coleta de depoimentos referente à pesquisa em curso, uma
outra entrevista exemplifica o processo de construção do valor atribuído ao livro. A
depoente foi entrevistada na seguinte situação: o livro didático estava sendo estudado
em sua faculdade e por isso ela foi solicitada a procurar seus antigos manuais para
analisá-los em sala de aula. Por essa razão, vasculhou sótãos e encontrou livros do
tempo em que frequentou o antigo primário e o ginásio. Com os livros na mão, passou
a lê-los e a recordar as vivências da escola. Passou, então, a avaliar a sua escolaridade
e a recordar sua trajetória (FERNANDES, 2004: 536).

O trabalho solicitado na faculdade levou a depoente a rememorar suas vivências


escolares a partir da materialidade do livro didático. Outra face do livro didático é o caráter
ideológico, segundo a autora Júlia Silveira Matos isso aponta “(...) o quanto são materiais
imersos em uma face ideológica que transcende a visão do autor, mas adentra as expectativas
de mercado.” (MATOS, 2009: 10). Um exemplo é o já mencionado nesse trabalho sobre os
diferentes governos já transitados no país e, consequentemente, os ajustes sofridos na educação,
como a direitos conquistados a partir dos movimentos afirmativos com a inserção das leis 10.
639 de 2003 e 11.445 de 2006, respectivamente, cultura afro e indígena, mas também a própria
interferência dos autores, mesmo que inconsciente, com seu posicionamento e visões de mundo.
Quanto à outra faceta sobre o ponto de vista mercadológico, os investimentos realizados
no PNLD transformaram esse programa no maior do mundo. Em 2015 foram distribuídos 141
gratuitamente mais de 137 milhões de livros didáticos nas cinco regiões do Brasil. O governo
1
é o principal financiador desse plano e é ele quem estabelece os critérios para a aceitação ou
não para que determinadas obras adentrem as escolas brasileiras através de editais. De acordo
com Matos

a influência de Estado na própria seleção dos livros que compõe o Guia, demonstra
como os livros didáticos estão comprometidos com um conjunto de demandas abertas
por programas oficiais e, dessa forma, longe de serem meros instrumentos ou recursos
puramente didáticos, mas sim documentos repletos de ideologias sejam elas oficias
ou não ( MATOS, 2009:31).

Ao encontro dessa premissa podemos concluir que os critérios para inserção das obras
exigido nos editais são observados constantemente não apenas para evitar a ocorrência de
falhas, “(...) mas também pela renovação das políticas educacionais que desde a
redemocratização brasileira, vêm mudando de acordo com o Ministério e a visão de governo.”
(MATOS, 2010:67). Os manuais que encontramos no Guia do Livro Didático são aqueles que
obedeceram todos os critérios contidos no edital e consequentemente, estão habilitados para
serem utilizados nas escolas.

CONCLUSÃO

A partir da análise dos critérios atribuídos nos editais de convocação para o processo de
inscrição e avaliação de obras didáticas para o Programa Nacional do livro didático PNLD 2012
e 2015 constatamos não só a necessidade que o livro didático tem de atender uma infinidade de
disposições e exigências feitas de diversos âmbitos tanto administrativo, jurídico, comercial,
editorial e reflexos de políticas públicas, mas também revelam a preocupação quanto ao
desenvolver das potencialidades da aprendizagem quanto ao ensino de História. De acordo com
Vitória Silva também nos últimos editais, as concepções teórico-metodológicas ganharam
maior relevância obrigando que alterassem a visão ou a concepção de História atribuída na
escola. Isso mostra que as transformações ocorridas nos editais são mais do que ampliações da
lista de critérios, mas essas atitudes manifestam a renovação do ensino de História, despreza a

141
mera transmissão de conhecimento e atribui ao discente uma postura crítica reflexiva
oferecendo condições para o desenvolvimento de uma consciência histórica e
consequentemente, a busca pelo livro didático ideal. 2
Portanto, pensar o papel dos editais no processo de produção dos livros didáticos
apontam para um cenário fundamental que é a própria atuação dos docentes em sala de aula.
Sendo assim, qual a relação direta entre os manuais do professor de História e os editais? Seque
a mesma dos livros didáticos? Com vistas a responder essa problemática, no próximo capítulo
analisaremos a relação entre os manuais do professor de História e os editais do PNLD de 2012
e 2015.

FONTES

Edital de convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas para o


Programa Nacional do Livro Didático 2012- Ensino Médio.
Edital de convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas para o
Programa Nacional do Livro Didático 2015- Ensino Médio.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBUQUERQUE, JR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Bauru:
Edusc, 2007.

BARCA, I., MARTINS, E. R., SCHMIDT, M. A. (orgs). Jorn Rüsen e o ensino de história.
Curitiba: Ed. UFPR, 2010.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. O saber Histórico na sala de aula. 11°ed. São
Paulo: ed Contexto, 2010.

CERRI, Luís Fernando. Ensino de história e consciência histórica. Rio de Janeiro: Ed. FGV,
2011.

CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. 2º ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: Unesp, 2014.

FERNANDES, Antonia Terra de Calazans. Livros didáticos em dimensões, materiais e 141


3
simbólicas. São Paulo: Educação e pesquisa, 2004.

FERREIRA, Rita de Cássia Cunha. A Comissão Nacional do Livro Didático durante o


Estado Novo (1937-1945). Dissertação de mestrado. Universidade Estadual Paulista. Assis,
2008.

GAULUCIO, Andrea Lemos Xavier. A política Editorial no Instituto Nacional do livro no


regime militar. II Seminário internacional políticas culturais. Universidade Federal
Fluminense.

MATOS, Júlia Silveira. Ensino de História, diversidade e livros didáticos: história, políticas
e mercado editorial. Rio Grande: Ed da Universidade Federal do Rio Grande, 2013.

MONTEIRO, Ana Maria. Tempo presente no ensino de história: o anacronismo em


questão. In: GONÇALVES, Márcia de Almeida et.al. (org). Qual o valor da história hoje¿ Rio
de Janeiro: FGV, 2012.
MORAES, Roque. Mergulhos Discursivos; análise textual qualitativa entendida como
processo integrado de aprender, comunicar e interferir em discursos. 2°ed. Ijuí/RS:
Ed.Unijuí, 2007.

NUNES, Nataly & REZENDE, Maria José de. O ensino da Educação Moral e Cívica durante
a ditadura militar. UEL.

OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. Livros didáticos de História: pesquisa, ensino e novas
utilizações deste objeto cultural. Professora do departamento de História da UFRN. Rio
Grande do Norte.

SILVA, Vitória Rodrigues e. Para onde vamos? O ensino de história segundo os critérios
dos editais do PNLD (2000 a 2013). Universidade Positivo.

141
4
A MULHER ‘IDEAL’ NAS PÁGINAS DA REVISTA O CRUZEIRO

DURANTE A DÉCADA DE 1950*789

Angélica Nascimento**790

RESUMO

A década de 1950, mesmo sendo, pouco abordada apresenta a possibilidade de se pesquisar a


maneira que o modelo norte-americano, foi introduzido na cultura brasileira, influenciando os
comportamentos da mulher brasileira, principalmente de classe média alta. Para tanto, a
pesquisa procura respostas para a seguinte questão: De que maneira, o projeto norte-americano
de mulher ideal replicado pela revista O Cruzeiro reafirmou a consolidação de uma cultura
machista no Brasil? Além disso, pretende-se verificar as ideias de submissão feminina presentes
na imprensa da época. Sendo assim, a pesquisa utilizará como fonte a revista O Cruzeiro, dos
anos de 1951 a 1958. As revistas encontram-se disponíveis no CEDOC-UNISC (Centro de
Documentação da Universidade de Santa Cruz do Sul). Ao todo, sessenta e três revistas do
período serão analisadas, com destaque para a sessão titulada “Para a Mulher” e na coluna "Da
Mulher para Mulher" escrita por Maria Teresa, ambas direcionadas especificamente para o
público feminino. É possível observar a influência que a revista possuía sobre as famílias do
período, de classe média alta, colocando o ‘papel’ de cada integrante, principalmente o da
141
mulher. A coluna em questão tratava de temas referentes a sexualidade, aparência, postura e
comportamento, dando “conselhos” de como as mulheres deveriam tratar seus maridos.
5
Portanto, é possível considerar até aqui que a publicação sugeria às mulheres um papel de
submissão, afirmando que o lugar delas na sociedade seria dentro de casa, desempenhando as
tarefas domésticas. Observa-se nas entrelinhas da revista, uma espécie de “idealização” do
modelo feminino.
Palavras-chave: Mulheres. Imprensa. Anos dourados.

INTRODUÇÃO

Este artigo aborda parte da pesquisa que estou desenvolvendo para a disciplina de
Seminário de Pesquisa em História do Curso de História - Licenciatura Plena da Universidade
de Santa Cruz do Sul – UNISC, onde trará uma perspectiva da revista O Cruzeiro de 1951 a
1958, tendo como foco principal a influência norte-americana no conceito de ‘mulher ideal’,

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Graduanda no Curso de História - Licenciatura, Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC,
angelicaandradenascimento@hotmail.com .
inserido no Brasil pela imprensa da época, buscando nela indicativos que expliquem, de certa
forma, a cultura machista e a submissão feminina no país.

As mulheres pela ótica da revista O Cruzeiro

Meu interesse pelo debate sobre as questões referentes ao universo feminino e as


contradições históricas observadas na relação entre homens e mulheres, despertou ainda no
início de minha trajetória acadêmica quando fui bolsista PUIC no ano de 2014, e conheci de
perto o acervo do CEDOC-UNISC (Centro de Documentação da Universidade de Santa Cruz
do Sul). Neste projeto, tive a possibilidade de pesquisar alguns processos crimes sobre o
infanticídio praticado por uma escrava, o que, de certo modo, acarretou no meu interesse pela
a História das Mulheres.

Um pouco mais tarde, ainda dentro deste projeto acima citado, me deparei com a revista
O Cruzeiro, e folhando suas edições percebi as propagandas onde em sua maioria apareciam
mulheres com cabelos bem arrumados, seus aventais em suas casas e principalmente em suas
cozinhas, rodeadas de novos eletrodomésticos, o que me deixou intrigada quanto ao 141
comportamento peculiar expresso nas páginas, engessando um ‘ideal’ feminino nas mulheres
6
de classe média alta.

Imagem 1 – Propaganda O Cruzeiro 16 de janeiro de 1954

Ao escolher o tema de meu Trabalho de Conclusão do Curso de História, no ano


passado, voltei-me para o periódico O Cruzeiro, que havia me chamado a atenção no Centro de
Documentação (CEDOC), decidindo me dedicar a História das Mulheres pelo viés da imprensa.

Utilizando a premissa de que: diversas mulheres sofrem agressões físicas e emocionais,


preconceitos sociais pelo seu gênero, e normalmente a culpa permanece com a vítima, sendo
por sua roupa, atitudes, emprego, classe social, cor, orientação sexual, etc. Quase sempre, há
uma justificativa, mas não de que em nosso país exista uma cultura machista/ patriarcal.

Esta representação do machismo não advém dos dias atuais, mas de vários séculos
anteriores, onde era discutido se as mulheres poderiam ser consideradas seres humanos:
No século XVIII ainda se discutia se as mulheres eram seres humanos como
os homens ou se estavam mais próximas de animais irracionais. Elas tiveram
que esperar até o final do século XIX para ver reconhecido seu direito à
educação e muito mais tempo para ingressar nas universidades [...]. (PINSK
apud PERROT, 2007, p.11).

No Brasil, esta cultura misógina, já era ocorrente nas primeiras décadas do século XX,
mas foi impulsionada na década de 1950 com a influência norte-americana, que foi reforçada
pela imprensa, que nada mais é, do que um ator social, que exerce influência nos modos de vida
da sociedade.

Na década de 1950 as mulheres além de serem submissas aos homens, possuíam

141
7
pouquíssimos espaços de atuação profissional. É importante lembrar que somente na
década de 1960 as reivindicações femininas tomam fôlego na Europa, o que talvez justifique o
tema das mulheres ainda ser pouco abordado na década de 1950 pela historiografia nacional.

A delimitação do meu objeto de pesquisa e a escolha pela década de 1950, compreende


esse valioso material que encontra-se no acervo, sendo ao todo 67 exemplares, 63 edições
pertencem a este período. Sendo que o primeiro exemplar é datado de 03 de março de 1951 e o
último de 02 de dezembro de 1961. Tendo enfoque maior, na sessão titulada “Assuntos
femininos”, que posteriormente, dentro da década, torna-se: “Para a Mulher” e na coluna "Da
Mulher para Mulher" escrita por Maria Teresa, ambas direcionadas especificamente para o
público feminino.

O período acima citado, também chama a atenção por ser de um pós-guerra e de advento
da Guerra Fria, ocasionando grandes transformações politicas, tecnológica, cultural e
econômica nos Estados Unidos e nos demais países aliados. A ascensão norte-americana fica
evidente com sua influência nos demais países, trazendo o avanço da classe média consigo,
público alvo da revista O Cruzeiro.
141
8
O período de maior sucesso da revista O Cruzeiro coincide com o segundo
pós-guerra e o advento da chamada Guerra Fria. Tratava-se de um momento
de redefinição de forças e afirmação da hegemonia econômica e cultural dos
Estados Unidos. [...] defende enfaticamente a adesão do país ao modelo norte-
americano de sociedade em um artigo acerca da americanização da vida [...].
(COSTA; BURGI, 2012, p. 28)

Os “Anos Dourados” no Brasil tem como características, o otimismo e esperança da


população quanto ao crescimento urbano e à industrialização como nos lembra Bassanezi
(1997). Trazendo, assim, o advento do consumismo:

[...] os anos 1950 foram dominados pelas marcas internacionais, dos mais
diversos setores que aportaram no Brasil e ajudaram a criar um novo padrão
de consumo num pais cada vez mais industrial e urbano. Carros, geladeiras,
enceradeiras, bancos, sabonetes, pasta de dente, perfume e remédios – muitos
remédios! [...] (COSTA; BURGI, 2012, p. 274).
Na historiografia brasileira, há certa ausência de obras que retratem o cotidiano
feminino, embora esse campo venha sendo mais explorado nos últimos anos. A submissão
feminina na década de 1950 é ainda menos abordada pela historiografia. A história das mulheres
ganha maior enfoque somente com estudos que procuram retratar os anos de 1960 em diante.
Esse período intitulado de “Anos rebeldes”, caracteriza-se por ser um momento no qual as
mulheres passaram a reivindicar sua liberação sexual, impulsionada pelo aumento dos
contraceptivos. Com a citação de Michelle Perrot (2007), podemos entender, o motivo pelo qual
a história das mulheres no Brasil, passou a ser mais evidente na historiografia a partir deste
período.

O desenvolvimento da história das mulheres acompanha em surdina o


"movimento" das mulheres em direção à emancipação e à libertação. Trata-
se da tradução e do efeito de uma tomada de consciência ainda mais vasta: a
da dimensão sexuada da sociedade e da história. (PERROT, 2007, p.15).

Mas outro fator, que pode ser analisado como justificativa da ausência da historicidade
feminina nos anos 1950 é a falta de obras e fontes sobre o cotidiano feminino.

[...] As mulheres deixam poucos vestígios diretos, escritos ou materiais. Seu 141
9
acesso à escrita foi tardio. Suas produções domésticas são rapidamente
consumidas, ou facilmente dispersas. [...] Existe até um pudor feminino que se
estande à memória. Uma desvalorização das mulheres por si mesmas. Um
silêncio consubstancial à noção de honra. (PERROT, 2007, p.17).

Como mencionado acima, a abordagem em estudos historiográficos no período são


poucos, o que apresenta a possibilidade de se pesquisar a maneira que a influência norte-
americana foi introduzida na imprensa brasileira, influenciando no modelo de mulher brasileira,
trazendo o conceito de “rainha do lar”, onde espera-se que a mulher sonhe com os
eletrodomésticos que aparecem nas propagandas dos magazines.

[...] Betty Friedan, apoiando-se nos postulados teóricos do estudo de


Beauvoir, recolhe nos Estados Unidos uma série de depoimentos de mulheres
de classe média que correspondiam ao ideal da “rainha do lar” [...] Afinal,
por que se queixavam aquelas mulheres, em suas cozinhas modernas, com seus
carros na garagem, seus filhos saudáveis, sua segurança econômica? Como
encaixar esta insatisfação na auto-realização que, teoricamente, deveriam
sentir? [...]. (ALVES; PITANGUY, 2007, p. 52-53).
A revista O Cruzeiro apesar de ter sido criada por Carlos Malheiros Dias, teve seu
projeto levado a diante por Assis Chateaubriand, no final de 1928, mas somente teve seu auge
nos “Anos Dourados” tendo uma média anual de 630 mil tiragens, seu maior alcance está na
classe média brasileira. Sendo que foi o principal periódico brasileiro, ao qual tinha grande
influência sobre as mulheres.

O Cruzeiro alcançava, na década de 1950, circulações invejáveis mesmo para


os dia de hoje. Sua importância era incomparável: O Cruzeiro tinha mais
leitoras do sexo feminino do que todas as revistas dedicadas às mulheres. [...]
Era, em resumo, a maior e melhor revista da época. As pesquisas do Ibope
comprovam esta liderança. (COSTA; BURGI, 2012, p. 27)

Nesta revista, é possível observar a influência que possuía sobre as mulheres de classe
média alta, principalmente através da coluna "Da Mulher para Mulher". A coluna em questão
tratava de temas referentes a sexualidade, aparência, postura e comportamento, dando
“conselhos” de como as mulheres deveriam tratar seus maridos. A publicação sugeria às
mulheres um papel de submissão, afirmando que o lugar destas na sociedade seria dentro de
casa, desempenhando as tarefas domésticas. Neste caso, é possível ver nas entrelinhas da
revista, a mistificação da feminilidade, como pode-se perceber em Bassanezi (1997): “Ser mãe,
142
esposa e dona de casa era considerado o destino natural das mulheres”, além da caracterização 0
de ser ‘do lar’, estaria predeterminada a ser sensível, obediente, passiva e dependente, como se
esta predeterminação estivesse ligada a própria natureza da mulher, sendo de um fator
biológico. Segundo Alves e Pitanguy (2007): “[...] Este reducionismo biológico camufla raízes
da opressão da mulher, que é fruto na verdade de relações sociais, e não de uma natureza
imutável [...]”.

No livro ‘História das mulheres no Brasil’, organizado por Mary Del Priore, Carla
Bassanezi assina um capítulo intitulado de: “Mulheres dos Anos Dourados”, que possibilita
compreender a influência que as revistas do período tinham sob as mulheres de classe média:

As páginas das revistas que tratavam de ‘assuntos femininos’ nos levam ao


encontro das ideias sobre a diferença sexual predominantes nessa sociedade.
[...] as seções para mulher de O Cruzeiro traziam imagens femininas e
masculinas, o modelo de família – branca, de classe média, nuclear,
hierárquica, com papéis definidas –, regras de comportamento e opiniões
sobre sexualidade, casamento, juventude, trabalho feminino e felicidade
conjugal. Essas imagens, mais do que refletir um aparente com senso social
sobre a moral e os bons costumes, promoviam os valores de classe, raça e
gênero dominantes de sua época. Como conselheiras, fonte importante de
informação e companheiras de lazer – a TV ainda era incipiente no país –, as
revistas influenciaram a realidade das mulheres de classe média de seu tempo
assim como sofreram influencias das mudanças sociais vividas – e algumas,
também promovidas – por essas mulheres. (BASSANEZI,1997,p.609)

Como pode-se perceber na citação, a revista O Cruzeiro, trazia um conceito de mulher


ideal, em suas imagens e seus ‘conselhos’, estes conceitos estavam definidos, onde esta mulher
era dona-de-casa e de classe média. A influência das revistas e o conceito, de mulher ideal,
também é perceptível na obra de Michelle Perrot (2007).

As revistas femininas tiveram um papel crescente nos séculos XIX e XX [...].


Os patrocinadores procuravam, principalmente, captar consumidoras
potenciais, guiar seus gostos e suas compras. A indústria dos cosméticos, a
das artes domesticas, visam, de inicio, às mulheres mais sofisticadas [...].
(PERROT, 2007, p.34).

No capítulo ‘Recônditos do mundo feminino’, escrito por Marina Maluf e Maria Lúcia
Mott, do livro “História da vida privada no Brasil”, podemos observar a imagem de mulher
que era repassada: 142
A imagem de mãe-esposa-dona de casa como a principal e mais importante
função da mulher correspondia àquilo que era pregado pela Igreja, ensinado
1
por médicos e juristas, legitimado pelo Estado e divulgado pela imprensa.
Mais que isso, tal representação acabou por recobrir o ser mulher – e a sua
relação com as obrigações passou a ser medida e avaliada pelas prescrições
do dever ser. (MALUF; MOTT, 1998, p.374)

Tendo em vista, as referências bibliográficas citadas, é possível apontar que a imprensa


propagandeava a imagem de “mulher ideal”, colocando-a como dona de casa, mãe e esposa
exemplar, fazendo com que as mulheres tivessem o conceito do ‘ser’ mulher já estabelecido.
Em uma publicação da revista O Cruzeiro, intitulada “Queixam-se os maridos”, pode-se
perceber qual a funcionalidade feminina dentro da família:

Um inquérito há pouco nos Estados Unidos, por um estudioso da matéria,


entre cem maridos, levou a conclusões interessantes, que passamos a
transcrever: A grande maioria dos maridos queixou-se, não de que as espôsas
são relaxadas como donas-de-casa, mas que elas são exageradas,
reclamando constantemente contra as coisas que o marido e as crianças tiram
do lugar [...]E’ claro que isso não leva à conclusão revolucionária de que o
interessante é que a casa fique desarranjada, para o marido viver feliz... Não,
tudo a seu têrmo. E’ mais agradável, porém, para um espôso que chega em
casa depois de um exaustivo de trabalho poder deitar-se à vontade, sem a
preocupação de desfazer a cama, do que ficar observando as regras de
arrumação que a espôsa, zelosa do seu mister, lhe impõe a cada momento. Se
tudo deve ficar arrumado e limpo como num hospital, se o marido tem que
observar uma centena de pequenas regras domésticas, é claro que êle não se
sentirá à vontade dentro da sua própria casa[...]Finalmente, queixam-se os
maridos de que as espôsas, depois de um certo tempo, só sabem conversar
sôbre crianças, alimentação e roupa. (O Cruzeiro, de 14 de julho de 195, p.
124).

Na citação acima, consegue-se perceber a influência do modelo norte-americano no


Brasil, sendo replicado pela revista como um ‘modelo de vida’ a ser seguido, no qual a mulher
tem como obrigação os afazeres domésticos, não devendo questionar o marido, que chegou de
um dia exaustivo de trabalho, e nem exigir que este evite desorganizar a casa.

O HOMEM e a mulher encaram o casamento de modo diferente. Para ela é a

142
aspiração máxima da vida. Teme não realizá-lo, não apenas pela insatisfação
dos seus sonhos de amor, como porque espera, com o casamento, desenvolver
a personalidade, consequentemente, ganhar maior evidência no meio social
em que vive. O homem receia casar-se. Encara o casamento como uma
restrição à sua liberdade. [...] Nada mais natural que um homem e uma 2
mulher pensarem de modo diferente a respeito do matrimônio. Essa
diversidade de pensar é inerente á natureza de cada um. [...] A impressão que
o homem solteiro faz do casamento é a que representa o golpe fatal que lhe
cercará a independência e o prazer de amar sem responsabilidade. Além
disso, as obrigações que o casamento impõe ao homem como chefe de família
[...]. (O Cruzeiro, de 14 de julho de 195, p. 124).

Conseguimos perceber a predeterminação da mulher quanto ao casamento, que traria a


ela sua felicidade, personalidade e relevância social. Nesta concepção, a mulher somente
poderia participar da sociedade após o casamento, tendo como responsabilidade, como já
mencionado outras vezes, cuidar da casa, do marido e dos filhos, enquanto a ele caberia ser o
‘chefe de família', responsável pelo sustento da casa.

CONCLUSÃO
Nos Estados Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial, a mão-de-obra feminina foi
utilizada, com o término, do conflito, foi necessário que as mulheres cedessem seu lugar aos
homens. Sendo criado o modelo de ‘Rainha do Lar’, o qual foi transmitido para os demais
países, principalmente os aliados. Sendo introduzido no Brasil, na década de 1950, pela
imprensa, como no caso, da revista O Cruzeiro a qual como ator social do período, retratou em
suas publicações o conceito de mulher ‘ideal’, tendo como enfoque a classe média alta
brasileira, leitora da revista. Classe pela qual, teria condições financeiras de comprar os
produtos propagandeados pela revista, que coincidentemente eram fabricados por marcas norte-
americanas. Neste conceito, estava incutido a predeterminação da mulher quando aos afazeres
domésticos e sua submissão ao homem.

O presente trabalho, não ousa colocar a raiz do machismo/patriarcalismo brasileiro nos


“Anos Dourados”, pois esta cultura advém de vários séculos, onde a natureza da feminina
explicaria sua inferioridade, mas afirma que a revista O Cruzeiro, durante os anos 1950 ajudou,
mesmo que de forma velada, a disseminar a ideia de haver um ‘modelo de mulher ideal’ no
qual a mulher deveria ser submissa ao seu marido.
142
3
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo:


Brasiliense, 2007.

BASSANEZI, Carla. Mulheres dos anos dourados. In: Del Priore, Mary (org.); Bassanezi,
Carla (coord. de textos). História das Mulheres no Brasil – 2. ed. – São Paulo: Contexto, 1997.

BASSANEZI, Carla Beozzo. Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e


relações homem-mulher, 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

COSTA, Helouise; BURGI, Sergio. As origens do fotojornalismo no Brasil: um olhar sobre


O Cruzeiro. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 9. ed. São Paulo: EDUSP, 1995.


MALUF, Marina; MOTT, Maria Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In: Novais, Fernando
A. (coord.) História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

NETTO, Accioly. O império de papel – os bastidores de O Cruzeiro. Porto Alegre: Sulina,


1998.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução de Angela M. S. Corrêa. São
Paulo: Contexto, 2007.

142
4
A LIGA DA JUSTIÇA EM PERSPECTIVA: APONTAMENTOS
METODOLÓGICOS*791

Lucas Machado Cardoso**

RESUMO

A presente comunicação pretende contribuir no debate acerca dos usos de histórias em


quadrinhos e animações abordando as potencialidades de interlocuções entre ensino e pesquisa
em história. Os episódios analisados exploram sensivelmente a questão de terrorismo e do
medo. Como, afinal, pensar contextos e conceitos centrais no mundo contemporâneo
compreendendo as relações entre ensino e pesquisa?
Palavras-chave: Animações, Ensino, História

INTRODUÇÃO
142
Superman, Batman, Mulher Maravilha...Esses são os nomes de alguns dos muitos heróis
5
que fizeram e ainda fazem parte da história de muitas crianças pelo mundo. Em suas aventuras
heroicas, usam seus poderes e habilidades, chegam ou ultrapassam seus limites, arriscando suas
vidas, tudo isso para cumprir o seu principal objetivo: Salvar o mundo dos vilões. Enquanto
crianças, dificilmente procuramos refletir sobre quem são os vilões dos quais esses super-heróis
tentam nos proteger, e muito menos, os motivos que levariam esses “Super Vilões” a ter como
objetivo “destruir o mundo”. A única coisa que sabemos, como fãs, como crianças, como
“futuros super-heróis” é que eles são do mal e, portanto, precisam ser detidos.

Contudo, com um olhar mais criterioso, podemos observar que esses vilões possuem
sim múltiplas referências nos diferentes contextos sociais, culturais e políticos; e sim, essas
histórias tentam nos passar muito mais do que uma simples luta entre o bem e o mal. Esses

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Graduando no curso de História – Licenciatura, Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC –
lucasmc@mx2.unisc.br
heróis e esses vilões não surgem soltos, mas carregam em seus traços, portanto, características
do contexto no qual foram criados, se inserindo no mesmo e agindo em prol ou contra o cenário
que os cercam. É Joatan Preis Dutra que coloca que “as histórias em quadrinhos, como todas as
formas de arte, fazem parte do contexto histórico e social que as cercam. Elas não surgem
isoladas e isentas de influências. Na verdade, as ideologias e o momento político moldam, de
maneira decisiva, até mesmo o mais descompromissado dos gibis” ou, no caso do presente
artigo, das animações baseadas nesses quadrinhos.

Esses são apenas alguns exemplos de como essas histórias em quadrinhos e animações
trazem em suas páginas, não apenas uma história cativante, mas também uma dose de realidade
e de contexto; contexto ao qual o autor está inserido e, assim como qualquer outra manifestação
artística, como citado anteriormente, busca através dessas histórias se expressar e colocar o seu
posicionamento em relação a esse contexto.

Com isso, vem o seguinte questionamento: Por que é importante estudar essas
animações e contextualizar com o período à qual ela foi criada? A Resposta é simples: As
animações devem ser compreendidas como representações socioculturais e políticas de
contextos diversos. Os modos pelos quais esses heróis interagem uns com os outros, ou ainda
142
com os seus “inimigos” ou “vilões” inscrevem-se como representações dos dilemas das 6
sociedades nesses mesmos contextos. Podemos perceber que o discurso inicial do nascimento
de todos os super heróis é completamente diferente dos discursos desses mesmos heróis na
contemporaneidade. Podemos observar na própria formação da Liga da Justiça, principal objeto
de estudo dessa pesquisa, que sofreu alterações de acordo com o contexto histórico, sendo
composta, inicialmente, por seis homens e uma mulher, todos brancos, e já na nova Liga da
Justiça (2001) nós já temos cinco membros homens e duas mulheres, sendo um deles negro.

As possibilidades de utilização desse tipo de mídia para o ensino em ambientes escolares


ainda é muito incipiente. Mesmo em termos de pesquisa, não há muitos trabalhos que se
dedicaram aos estudos dessas mídias e as suas potencialidades para a compreensão dos
diferentes contextos históricos. O próprio estudo dessas animações é algo muito recente, visto
que os primeiros estudos acerca do contexto dos quadrinhos datam a partir de 2010, e ainda é
visto com muito preconceito por historiadores, que não consideram uma fonte muito confiável,
apesar de muitos autores terem comprovado justamente o contrário, mostrando todo o discurso
político e social que essas histórias possuem.

Amparado neste contexto histórico, o presente artigo pretende analisar o cenário inicial
da Guerra Fria juntamente com o contexto do início do século XXI, trabalhando com o
momento de tensão causado por um possível armamento nuclear das nações, relacionando com
a Liga da Justiça, que nasceu no período da Guerra Fria e teve um retorno em função de um
novo contexto político/ global: O Terrorismo.

Animações e Escola Criando pontes entre esse abismo

Estamos em pleno século XXI e ainda encontramos professores que aderem a


metodologias mais tradicionais em sala de aula, na qual, muitas vezes, utilizam o livro didático
como principal ferramenta no Ensino de História e desconhecem a realidade do aluno que
compõe essa sala de aula, e toda a tecnologia que o rodeia. Nesse mesmo contexto, encontramos
estudantes cada vez mais integrados no mundo de informações que a internet oferece e
aprendem a selecionar, nesse montante, o conhecimento que querem para si (CIAMPI, 2000).

Essas duas figuras, em primeiro olhar com práticas antagônicas, normalmente são as
142
compõem nossas salas de aula e, por terem práticas tão diferentes, acabam desconstruindo uma 7
disciplina que tem um papel fundamental na formação do estudante, não apenas no sentido
institucional, mas na questão de identidade (BITTENCOURT, 2004).

A história tem grande importância na formação da identidade dos alunos, e,


consequentemente, na formação de um cidadão crítico. É o que podemos observar no PCN de
História de Ensino Médio, o qual diz:

A História para os jovens do Ensino Médio possui


condições de ampliar conceitos introduzidos nas séries
anteriores do Ensino Fundamental, contribuindo
substantivamente para a construção dos laços de identidade
e consolidação da formação da cidadania. (BRASIL, 2000,
p. 22)

A história não é simplesmente uma disciplina onde os alunos são levados a decorar datas
e acontecimentos, assimilando-os a algum herói ou personalidade, mas sim uma disciplina que,
segundo Jaime e Carla Pinsky (2003), deve estimular o aluno a interrogar o passado a partir de
questões que o inquietam no presente. Se não for por isso, estudar história por estudar realmente
não teria sentido nenhum dentro de uma sala de aula. Ainda segundo Jaime e Carla Pinsky
(2003), “as aulas de história seriam muito melhores se conseguirem estabelecer um duplo
compromisso: com o passado e o presente” (2003, p. 23). Então, o professor em sala de aula
tem que ser um problematizador, e não apenas um canal de informações.

A tecnologia tem tomado um grande espaço na vida de nossos jovens estudantes. Desde
que nascem já são submergidos nesse mundo, e normalmente a escola culpa os meios digitais
por essa distância que vem crescendo todos os dias. Segundo Sandro Bortolazzo (2015), ignorar
ou criar barreiras a essas mudanças seria um tanto quanto ingênuo sendo que, desde que a
instituição escola começou a existir, sempre teve que se adaptar as mudanças ocorridas no
exterior; desde a criação do rádio e da televisão até os dias de hoje, com o avanço da internet e
outras tecnologias.

Outra questão muito importante de se ressaltar é que o aluno de hoje não é o mesmo que
o de ontem. As necessidades que hoje eles têm, ou a forma como aprendem já não são mais as
mesmas que as de vinte ou mesmo dez anos atrás. E o professor, mesmo que ainda seja o mesmo
dentro da sala de aula, precisa acompanhar essas mudanças e se atualizar. Ainda segundo
142
Bortolazzo, “a maioria das experiências que os jovens mantêm com as tecnologias, se dão para 8
além dos muros escolares” (2015, p. 184). Nós, como instituição escola, não podemos permitir
que a tecnologia crie um abismo entre o aluno e a escola, mas fazer dela uma ponte.

Não estou dizendo que todas as aulas a partir de hoje devem ter recursos digitais na
metodologia. Mas também não podemos nos apegar mais uma vez ao tradicionalismo sendo
que essa metodologia, ao invés de preparar o aluno para ser um cidadão crítico e participativo
na sociedade, “tenta” afastar o aluno do mundo que o rodeia: o mundo digital.

Partindo desse pressuposto, no ano de 2004, foi lançado nos Estados Unidos, a partir de
uma parceria entre a Warner Bros e a DC Comics, a continuação da animação Liga da Justiça,
intitulada de Liga da Justiça: Sem Limites, que foi dividida em três temporadas e possuindo o
total de 39 episódios e foi criada por Bruce Timm e Paul Dini. A animação dá sequencia
diretamente à sua antecessora, no qual a Liga da Justiça e inicia com um grupo receoso de uma
possível nova invasão extraterrestre, o que os motiva a ampliar o grupo – originalmente
composto por sete heróis, sendo eles Super Man, Flash, Batman, Mulher Maravilha, Mulher
Gavião, Lanterna Verde e Ajax. Em busca de solucionar esses problemas, muito presentes em
nossas salas de aula, trabalharemos com alguns episódios dessas animações, propondo formas
como os mesmos poderiam ser utilizados dentro de uma sala de aula, como uma poderosa
ferramenta para construção do conhecimento de nosso alunos e, até como um forte mecanismo
para estimular a pesquisa a partir dos discursos políticos contidos nesses episódios.

Episódio número 01 – Iniciação

O episódio se passa logo após a invasão Tanagariana, ocorrida na série Liga da Justiça.
Nela, os heróis da Liga acabam recrutando heróis do mundo todo para fortalecer o poder do
grupo, visto que após a invasão, o grupo ficou receoso de uma nova tentativa de invasão,
aumentando o os membros da Liga para fortalecer a defesa da terra. Entre esses heróis, eles
chamam o Arqueiro Verde, herói conhecido por proteger as minorias nas cidades. O Arqueiro
fica receoso de se unir à liga, alegando que eles passam muito tempo cuidando do universo,
enquanto a população fica desprotegida. Após decidir seguir sua vida normalmente, ele se
desloca juntamente com os heróis que são enviados para uma missão na China afim de 142
aproveitar a carona. Chegando lá, eles prontamente são atacados pelo exército chinês e são
ameaçados, caso decidam se envolver num problema que não é deles. Com muita tranquilidade,
9
Lanterna Verde alega que eles não estão ali para lutar, mas sim para lutar. Já na nave, Ajax
aconselha que os heróis deixem as coisas temporariamente do jeito em que estão, justamente
por não terem o direito de interferir na política de outro país por acharem que essa política está
errada. O Arqueiro Verde, insatisfeito com a condição de esperar, decide ir sozinho ao encontro
do problema. Um montro radioativo movido a energia nuclear. O motivo da construção do
monstro seria para defesa da nação chinesa, porém o monstro teria perdido o controle,
mostrando a insegurança do uso de energia nuclear na construção de armas. Notando a ausência
do herói, os outros membros envolvidos na missão – Lanterna Verde, Super Moça e Capitão
Átomo – vão atrás do Arqueiro e se envolvem numa batalha explosiva. Mas eles insistem e
acabam vencendo o monstro, mostrando pro Arqueiro Verde como os perigos que ele
determinou como vindos de fora podem atingir as pessoas que ele tanto tenta defender.

Nesse primeiro episódio, podemos estabelecer com os alunos uma relação entre o medo
de uma guerra nuclear existente na contemporaneidade com o medo de um novo confronto no
contexto da guerra fria, trabalhando com o sentimento de insegurança que permeava a terra
nesse período, visto que todos os países se preparavam para algo que nem eles tinham muita
certeza. Ao mesmo tempo, podemos trabalhar com a comparação do discurso defendido pelo
Ajax, quando ele diz que “Não podemos sair fazendo o que quisermos. Temos que respeitar os
desejos de um governo, não importa o que pensamos dos seus métodos” ou com a fala do
Lanterna Verde, quando ele diz que eles não foram para lá para lutar contra ninguém, mas sim
para oferecer ajuda, com a verdadeira atuação dos Estados Unidos no cenário mundial, criando
uma discussão questionando os alunos como eles veem essa postura em problemas
internacionais trabalhando, por exemplo, com o Brasil no contexto da ditadura militar, onde os
Estados Unidos estiveram envolvidos no golpe que levou à renuncia de João Goulart, ou com
o envolvimento deles nos confrontos no Oriente médio.

Episódio 10 – Coração Negro

Um organismo tecnológico cai em Nevada, e começa a engolir todo o Estado. Toda a


Liga da Justiça é chamada com urgência, porém, mesmo em maioria numérica, são incapazes 143
de deter o imenso robô. Eles chamam então Eléktron, um super herói que tem super inteligência
e trabalha com nanotecnologia, ao mesmo tempo que consegue reduzir seu tamanho para ficar
0
do tamanho de uma molécula. Ele entra dentro da máquina e descobre que essa tecnologia havia
sido desenvolvida em outro planeta, para ser uma arma de guerra. O planeta criador venceu a
guerra, porém a máquina continuou se reproduzindo e destruindo todos os planetas pelos quais
ela passava, chegando agora no planeta terra. Para conter o monstro, Ajax ativa uma arma
nuclear que existia na torre da Liga, alarmando todo o exército. Quando o monstro é vencido,
o exército pega pedaços de sua tecnologia para levar para Análise. Superman questiona o
porquê deles quererem uma tecnologia tão perigosa. O general diz que eles não poderiam ficar
tranquilos sabendo que existia uma arma nuclear sobrevoando o planeta terra (Torre da Liga)
sem eles saberem se os heróis poderiam usar para o bem ou para o mal. Elékton indaga que a
ambição deles pode levar a terra a ter o mesmo destino que o outro planeta, porém Superman
discorda, alegando que a Terra possui algo que esse outro planeta não tinha: A liga da Justiça.

Nesse episódio temos vários fatores que podemos trazer a tona para discutir com nossos
alunos, sendo um dos principais a própria questão de o Coração Negro ter destruído seus
criadores, questionando a eles se na história temos algum episódio semelhante, onde a criação
se voltou contra seus criadores. A partir disso, podemos trabalhar com questões como o desastre
ocorrido em Chernobil no ano de 1986, a partir da explosão de uma usina nuclear, mapeando
outros desastres com essa tecnologia ocorridos desde então.

A partir dessa animação, também podemos pegar partes dos discursos dos super heróis
quando eles alegam, por exemplo, que a terra não terá o mesmo destino que esses outros
planetas porque diferentemente destes, a terra possui a Liga da Justiça em sua defesa e, mais
uma vez, comparar com o papel dos Estados Unidos em conflitos internacionais, questionando
com os alunos a atuação do mesmo, trabalhando a partir disso com conceitos como o de
Imperialismo e até mesmo o próprio Capitalismo.

CONCLUSÃO

A partir disso, podemos concluir que hoje estamos enfrentando inúmeras dificuldades
dentro de nossas salas de aula; sejam elas questões políticas, econômicas e até metodológicas.
E nós, como professores e historiadores, não podemos permitir que exista um abismo tão grande 143
entre a instituição escola, responsável por uma importante etapa da vida de nossos alunos, com 1
o mundo ao qual eles estão inseridos, mas buscar formas de integrar esses mundos utilizando,
muitas vezes, as mídias que rodeiam nossos alunos como um poderoso instrumento para
construção de conhecimento. Uma alternativa seria a utilização da animação Liga da Justiça –
Sem Limites que, além de possibilitar uma análise de discurso para compreensão do contexto
vivido pelos criadores no período no qual a mesma foi criada, podemos trabalhar com esses
discursos em sala de aula, criando comparações e até formas dos alunos se sentirem estimulados
a compreender esses discursos e até a própria realidade que o rodeia de uma maneira mais
crítica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São


Paulo: Cortez, 2004.
BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do século XX. 2. Ed. São Paulo: Fundamento
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BORTOLAZZO, Sandro Faccin. Narrativas acadêmicas e midiáticas produzindo uma


geração digital. 2015. Tese de Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Educação).
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015

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SEB, DICEI, 2013.

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Ciências Humanas. Brasília: MEC/SEF, 2000.

CIAMPI, Helenice. Ensinar História no Século XXI: Dilemas Curriculares. Disponível em:
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LIGA DA justiça – Sem Limites – Volume 2=Justice League Unlimited Vol. 2. Direção de
Dan Riba e Butch

Lukic. Roteiro de Dwayne McDuffie. Produzido por Bruce Timm e Paul Dini. Distribuído por
Warner Home Video. EUA, 2006

143
4
ANÁLISE DE CONTEÚDO: OS JORNAIS A FÔLHA E GAZETA DO SUL COMO
ATORES POLÍTICOS NO PLEBISCITO DE 1963 (1961-1963)*792

Diego dos Santos**793

RESUMO

Em 1963, os eleitores brasileiros foram às urnas decidir sobre a forma de governo do país em
um plebiscito ocorrido em janeiro do referido ano. Em jogo estava a continuidade do
parlamentarismo ou o retorno ao presidencialismo. Desde setembro de 1961, o presidente João
Goulart governava em um sistema parlamentar, adotado de maneira preventiva. O plebiscito,
em questão, é o objeto de estudo da presente pesquisa, que utiliza como fontes primárias os
periódicos a Fôlha de Rio Pardo e Gazeta do Sul de Santa Cruz do Sul, ambos disponíveis no
Centro de Documentação da Universidade de Santa Cruz do Sul. O objetivo da pesquisa é
apresentar a visão dos jornais, quanto a realização da consulta popular buscando nas entrelinhas
das notícias, dos editoriais e das colunas de opinião, indicativos que possam enquadrá-los como
atores políticos de um determinado espaço social. A metodologia adotada na pesquisa tem como
base a análise de conteúdo. Primeiramente, houve um contato inicial com os documentos, a
chamada leitura “flutuante”, que permitiu elaborar objetivos e hipóteses para a pesquisa.
Posteriormente, organizou-se a categorização das fontes, na qual as publicações dos jornais 143
foram divididas e classificadas em editoriais, colunas de opinião, publicações a pedido e,
notícias nacionais, estudais e locais. Essa classificação facilitou a análise das fontes, pois
permitiu de maneira mais rápida constatar as posições políticas dos periódicos, buscando
5
através da linguística conhecer aquilo que está por trás do significado das palavras presentes
nos textos dos jornais. Esse método permitiu principalmente, a observação da maneira como os
jornais noticiaram o plebiscito a partir dos acontecimentos nacionais e estaduais, sendo possível
analisar de que maneira as publicações influenciaram os leitores locais a votarem a favor ou
contra o parlamentarismo.

Palavras-chave: plebiscito de 1963; jornais, análise de conteúdo.

INTRODUÇÃO

A campanha do plebiscito de 1963 ocupa apenas uma pequena parte dos trabalhos
dedicados a analisar o período do governo de João Goulart. Em grande parte das bibliografias

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Graduando em Licenciatura em História, UNISC, diegodossantos95@hotmail.com.
sobre o governo janguista, o plebiscito ganha pouco destaque. Nestes casos, há maior espaço
para a maneira como o sistema parlamentarista foi executado no Brasil, sendo a campanha do
plebiscito, citada apenas de forma breve. Deste modo, um estudo minucioso sobre o plebiscito,
oportuniza pensar novas questões sobre essa fase da história nacional, ainda pouco abordada na
historiografia brasileira, embora muito tenha se escrito sobre o período João Goulart.

Pensar a questão do plebiscito através da imprensa, é mais um dos desafios deste


trabalho, visto o caráter mobilizador que esta desempenha em consultas populares, como a de
1963. Além disso, a imprensa evidencia as ideologias e os discursos de um determinado
contexto histórico, requerendo do pesquisador certo cuidado com a interpretação do conteúdo
impresso nos jornais. Paralelo a isso, é importante ressaltar que a imprensa deve ser vista como
um elemento atuante na política, devendo os jornais serem compreendidos como atores
políticos, visto as influências que estes exercem sobre o ideário social.

Neste sentido foram selecionados dois periódicos, a saber, jornal a Fôlha, do município
de Rio Pardo, e jornal Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul. A partir da análise destes jornais,
busca-se respostas para a seguinte questão: de que maneira os jornais Gazeta do Sul e a Fôlha
posicionaram-se frente a campanha do plebiscito de 1963 e de que modo estes influenciaram o
143
voto dos eleitores? O presente trabalho, no entanto, não trará respostas para essa questão, já que 6
faz parte de uma pesquisa em andamento. Sendo assim, o foco deste ensaio será, numa primeira
parte, apresentar o contexto de crise vivido pelo país nos primeiros anos de 1960, que ocasionou
a instauração de uma República parlamentarista e posteriormente a realização de um plebiscito
para a reversão desta. Seguindo, de uma caracterização dos passos operativos da pesquisa, tendo
como referencial o método de “análise de conteúdo” de Laurence Bardin (2011).

1. Contexto político dos primeiros anos da década de 60: da renúncia de Jânio ao


plebiscito de 1963
Os primeiros anos da década de sessenta no Brasil, ficaram marcados por uma forte
crise política, iniciada com a renúncia do presidente Jânio Quadros em 1961. Quadros, um
político de aparência simplista, conhecido por sua eficiência na administração de São Paulo, foi
eleito em 1960, sob a promessa de “varrer a sujeira” do sistema político brasileiro. Herdou de
seu antecessor, Juscelino Kubistchek, diversos problemas de ordem econômica, sendo o maior
deles, a inflação, com o qual, desde o início, mostrou dificuldade em lidar. O historiador Boris
Fausto destaca que o presidente:

vinha administrando o país sem contar com uma base política de apoio. O
PSD e o PTB dominavam o Congresso; Lacerda passara para a oposição [...].
O presidente agia praticamente sem consultar a liderança udenista no
Congresso. Além disso, a política externa independente causava
preocupações, assim como a simpatia presidencial pela reforma agrária
(FAUSTO, 1995, p. 440).

Frente a essas dificuldades e acreditando que obteria maiores poderes presidenciais,


Jânio Quadros submeteu ao Congresso, em 25 de agosto de 1961, sua carta de renúncia à
presidência, que foi prontamente atendida. Quadros se considerava imprescindível para o Brasil
como presidente e acreditava que de maneira alguma os conservadores e militares iriam querer
seu vice-presidente, João Goulart, no comando do país (FAUSTO, 1995, p. 442). No entanto,
a sucessão seria considerada um caso à parte, e logo estes grupos encontrariam uma solução
para o problema.

A Constituição brasileira previa que o vice-presidente devia assumir no caso de vagar a


cadeira presidencial. No entanto, João Goulart estava em visita à China Comunista, o que
aumentava ainda mais os temores de grupos militares conservadores, que viam na posse de
143
Jango uma ameaça à democracia e à ordem pública e uma brecha de entrada para o comunismo 7
(ALMEIDA, 2007, p. 55), assim como ocorrera em Cuba dois anos antes. Por sua vez, os
militares pretendiam forçar o Congresso a vetar a posse de Jango. Os congressistas, no entanto,
negaram-se a praticar este ato, recomendando, em vez disso, uma solução parlamentarista
(SKIDMORE, 1979, p. 256). Paralelo a isso, ocorria no Rio Grande do Sul, sob o comando de
Leonel Brizola e com o apoio do III Exército, uma mobilização popular exigindo a posse de
João Goulart na presidência. As pressões vindas do movimento pela legalidade e as ameaças
militares, levaram o Congresso a aprovar a proposta da emenda parlamentarista. Ao concordar
em governar em um sistema parlamentarista, Jango logo poderia voltar a Brasília, onde tomou
posse no dia 7 de setembro de 1961, uma data simbólica para o país.

O Ato Adicional nº 4, que instituiu o parlamentarismo previa a realização de um


plebiscito nove meses antes do término do mandato de Goulart, possibilitando à população
decidir sobre a forma de governo a ser adotada no país. Abria-se, portanto, uma porta de entrada
para o retorno do presidencialismo.
No período em que perdurou, o parlamentarismo foi marcado por diversas crises, muitas
provocadas pelo próprio presidente, que procurou demonstrar a fragilidade e a ineficiência
desse modelo de governo. Além disso, eram constantes as crises nos gabinetes do Primeiro
Ministério, que nos quatorze meses do parlamentarismo, passou pelas mãos de três políticos:
Tancredo Neves, Brochado da Rocha e Hermes Lima.

João Goulart, esteve desde o início motivado a antecipar a realização da consulta


popular. O presidente solicitou ao Congresso Nacional que a votação ocorresse junto com as
eleições de outubro de 1962. Não obtendo sucesso nessa primeira investida, Jango voltou a
requer a antecipação do plebiscito, dessa vez para o final do mesmo ano. No entanto, acabou
conseguindo que a votação fosse realizada no dia 6 de janeiro de 1963. Em meio a debates
políticos, comícios, campanhas em rádios, jornais e televisão, troca de ataques entre velhos
defensores do parlamentarismo e do presidencialismo, além da polêmica quanto aos gastos
excessivos do plebiscito, Jango conseguiu sair vitorioso da situação. Os resultados das urnas
apontaram para uma esmagadora vitória do “não” ao sistema parlamentarista794.

O pesquisador norte-americano, Thomas Skidmore (1979) define a vitória do sistema


presidencialista no plebiscito como uma oportunidade de Jango “entrar para a história com
143
todos os direitos, como um verdadeiro presidente” (SKIDMORE, 1979, p. 273). O autor 8
caracteriza, ainda, toda a manobra política de João Goulart e de seus partidários para a
antecipação do plebiscito. Sendo assim, como destaca Skidmore:

as perspectivas dum governo eficaz, sob o híbrido regime parlamentar,


apresentavam-se más, em virtude do Presidente e de seus aliados políticos não
desejarem, realmente, que o sistema funcionasse, especialmente depois de
princípios de 1962. Pelo contrário, esperavam capitalizar sua aparente
ineficácia para a qual contribuíam, a fim de apressar o plebiscito
(SKIDMORE, 1979, p. 270).

Para Fausto (1995) a vitória do “não” ao parlamentarismo, representou uma vitória de


Goulart que buscava “enfrentar os problemas econômico-financeiros com seriedade”
(FAUSTO, 1995, p. 455), sendo que, para isso, era necessário um governo centralizado na
figura do presidente, tendo ele uma maior soma de poderes.

794
Os resultados da consulta apontaram uma vitória esmagadora do “não”. Foram 9.457.448 votos contrários ao
parlamentarismo contra 2.073.582 votos a favor. O resultado geral encontra-se disponível no site do TSE. Ver
em: <http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/referendo-de-1963/>. Acesso 01 out. 2016.
Um dos elementos de importância na campanha em favor do presidencialismo, foi o
governador gaúcho e aliado político de Goulart, Leonel Brizola. Diego Dal Bosco Almeida
(2007) demonstra que desde a instituição do parlamentarismo Brizola já se mostrava crítico a
esse sistema, criticando veemente o conservadorismo do Congresso Nacional, que a partir
daquele momento teria mais poderes em relação ao presidente. O autor destaca ainda, a projeção
nacional que Brizola passava a ter em todo o país durante a campanha a favor do
presidencialismo, na qual atuou intensivamente. Para o autor, fica:

evidente a participação de Brizola na realização do plebiscito e na campanha


pelo “não”, é possível perceber, também, de forma explícita, um dos
resultados de sua projeção política nacional, pois, naquele momento, Brizola
passava pelas cidades do país direcionando seu discurso para o
presidencialismo. Não era mais só no Rio Grande do Sul que Brizola se dirigia
à população. A partir da Legalidade, Brizola dirigia-se à nação e ao Brasil.
Na campanha pelo presidencialismo passou a fazer isso de forma concreta
contando com o respaldo que obtivera com a campanha da Legalidade. A
questão da posse Constitucional de João Goulart, ainda que aparentemente
estritamente legal, tornou-se uma questão política (ALMEIDA, 2007, p. 79).

Em um completo estudo sobre o plebiscito de 6 de janeiro de 1963, Demian Bezerra


de Melo (2009), destaca que o parlamentarismo foi instituído de forma casuística, sendo um
“golpe possível” articulado pelas forças mais conservadoras e feito de maneira improvisada.
143
Melo insere o plebiscito em um momento de “crise orgânica”. Caracterizado, segundo o autor, 9
por diversos fatores: colapso no sistema político; incapacidade do Estado em controlar
movimentos sindicais rebeldes; influência comunista pós-Revolução Cubana (1959);
rompimento da hierarquia nas Forças Armadas; e, a forte mobilização das massas camponesas.
Prossegue afirmando que para entender essa “crise orgânica” no país é necessário estudar a
arena política da época e suas representações. Para tanto, o autor analisa o discurso das classes
dominantes e dominadas, enfatizando suas ideias, suas ações e, observando aqueles que se
demostraram favoráveis ou contrários ao parlamentarismo. Além disso, aponta também as
cisões em partidos opositores ao PTB, tais como a UDN e o PSD, nos quais existiam divisões
entre membros favoráveis e contrários ao sistema parlamentarista.

Demian de Melo destaca também o jogo político de Jango e sua política conciliatória,
que no caso do plebiscito procurou obter apoio em diversos setores da sociedade, para que dessa
maneira fosse possível restabelecer o presidencialismo no Brasil.
Toda a máquina de propaganda montada pelos favoráveis ao retorno do
presidencialismo, os milhões de cruzeiros – denunciados pelos parlamentares da UDN
–, os cartazes, jingles, comícios, artigos de jornal, os apelos e, mais que tudo, a ideia
de que o plebiscito significaria a “redenção” de todos os males que afligiam o povo,
conseguiu comover a opinião majoritária do corpo eleitoral do país, que deu um “voto
de confiança” ao presidente da República, tal como definiu o Jornal do Brasil, dois
dias depois da consulta. Prometendo às esquerdas as reformas de base, à burguesia a
“ordem e a tranquilidade”, ao povo o “fim da crise social” e aos cristãos um “governo
cristão”, Goulart conquistou algo similar ao que seria sua própria e “verdadeira”
eleição presidencial (MELO, 2009, p. 205).

Como é possível perceber, Melo considera o resultado do plebiscito como a


“verdadeira” eleição presidencial de João Goulart, pois é a partir desse desfecho que ele passa
a disfrutar de plenos poderes para executar seus projetos reformistas, nas áreas agrárias,
administrativas, previdenciárias, universitárias, entre outras.

Como já mencionado neste trabalho, as pesquisas entorno do plebiscito de 1963 ocupam


pouquíssimo espaço nas produções historiográficas. A utilização da imprensa para a análise da
consulta popular é ainda mais rara. Reconhecendo a importância da imprensa ao longo da
história, o presente trabalho abordará na sequência, a utilização de dois periódicos – a Fôlha e
144
Gazeta do Sul, como instrumentos para a análise do período parlamentarista e da campanha do
plebiscito. A metodologia empregada para a verificação destes periódicos baseia-se no método 0
de “análise de conteúdo” de Laurence Bardin (2011), o qual foi adaptado às necessidades desta
pesquisa.

2. Da categorização das fontes ao significado das mensagens de um texto: os


diversos usos da “análise de conteúdo”

Durante as décadas de 50 e 60 a imprensa brasileira passou por um processo de


modernização. Neste período, foram adotadas novas técnicas advindas do jornalismo norte-
americano. Passou-se a priorizar a objetividade e a informação, substituindo o caráter literário
e político dos jornais de então. Embora os jornais brasileiros tenham adotado um pensamento
mais independente, deixando de serem essencialmente instrumentos políticos, Ana Paula
Ribeiro defende a hipótese de que:

o aspecto político jamais desapareceu totalmente, exercendo um papel


fundamental – estrutural – na dinâmica das empresa jornalísticas. Apesar de
se terem afirmado imperativos de gestão e de administração, estes ainda não
eram suficientes para garantir a autonomia das empresas. Por isso, os jornais
jamais deixaram de cumprir um papel nitidamente político. O apoio a
determinados grupos que estavam no poder ou na oposição (dependendo da
conjuntura) era essencial para garantir a sobrevivência de algumas empresas,
fosse através de créditos, empréstimos, incentivos ou mesmo publicidade
(RIBEIRO, 2003, p. 156).

Diante desta consideração, é necessário ressaltar, como faz Paulo Sérgio Pinheiro
(1980), que os jornais devem ser vistos como “elementos atuantes no processo político global”
(PINHEIRO, 1980, p. XI). Sendo assim, é importante notar os jornais como atores políticos,
que exercem um papel influente no ideário social.

Na procura por entender a atuação político-social da imprensa durante a experiência


parlamentarista até a realização do plebiscito de 1963, foram selecionados dois periódicos de
nível local, ambos disponíveis no Centro de Documentação e Memória da Universidade de
Santa Cruz do Sul (CEDOC-UNISC). São eles: o jornal Gazeta do Sul, de Santa Cruz do Sul e,
o jornal a Fôlha de Rio Pardo.

Nesta pesquisa, foram analisadas as edições publicadas por esses jornais no período que
se estende de setembro de 1961 a janeiro de 1963, sendo observado o conjunto de notícias, 144
editorais, colunas opinativas e publicações “a pedido” presentes nas páginas destes periódicos.
Esta análise teve como objetivo principal, situar os posicionamentos dos jornais frente a
1
campanha do plebiscito, buscando indicar a forma como estes influenciaram o voto dos
eleitores.

A metodologia de análise destes periódicos, está pautada no método de “análise de


conteúdo” de Laurence Bardin (2011), que segundo a pesquisadora é um “conjunto de técnicas
de análise das comunicações” (BARDIN, 2011, p. 37). Bardin (2011, p. 37) prossegue
afirmando que “não se trata de um instrumento, mas de um leque de apetrechos [...] adaptável
a um campo de aplicação muito vasto: as comunicações”.

Desta forma, sendo um modelo adaptável, a “análise de conteúdo” de Bardin foi


adequada às necessidades e às possibilidades desta pesquisa. Num primeiro momento, ocorreu
a chamada “leitura flutuante” dos documentos, um contato inicial com as fontes, que
possibilitou formular os objetivos e as primeiras hipóteses da pesquisa.
Na sequência, os materiais fotografados no acervo foram organizados em pastas no
computador e classificados em: editoriais, colunas de opinião, publicações a pedido, notícias
nacionais, notícias estaduais, notícias locais e resultados do plebiscito. A divisão do material
obedeceu as regras de categorização estabelecidas por Bardin (2011, p. 149-150), na qual o
conteúdo deve ser organizado pelos princípios de:

 Exclusão mútua: os elementos não podem existir em mais de uma categoria.


 Homogeneidade: os dados devem referir-se ao mesmo tema e serem coletados
da mesma maneira.
 Pertinência: os documentos devem ser adaptados aos objetivos da pesquisa.
 Objetividade e fidelidade: as diferentes partes de um material devem ser
codificadas da mesma maneira.
 Produtividade: o conjunto de categorias deve ser produtivo e fornecer resultados
férteis, além de novas hipóteses.
Finalizado o processo de organização dos documentos em categorias, estes receberam
indicadores, pensados de maneira que as publicações dos jornais ficassem dispostas em ordem
cronológica. Sendo assim, adotou-se um indicador para cada categoria. Os documentos 144
pertencentes a categoria Editoriais, por exemplo, receberam o prefixo ED seguido do ano da
2
publicação (ex: ED61). O indicador continua com a definição do mês e dia de publicação,
exemplo: M09 (mês setembro) e D05 (dia 05). Desta forma, o editorial publicado pelo jornal
Gazeta do Sul em 05 de setembro de 1961 recebeu o indicar E61 M09 D05, como mostra a
figura abaixo.

Figura 1 – Indicadores da categoria Editoriais


Fonte: O autor

As demais categorias receberam os seguintes prefixos: AP – publicações a pedido; O –


colunas de opinião; N – notícias nacionais; E – notícias estaduais; L – notícias locais; e, R –
resultados do plebiscito.

Com todos os indicadores organizados, iniciou-se o trabalho de transcrição dos


144
documentos para arquivos de um editor de texto. Nesta etapa, os indicadores se fizeram 3
presentes junto aos textos transcritos, já que estes códigos permitem uma rápida localização dos
documentos nas pastas em que foram agrupados, possibilitando a comparação entre a imagem
da fonte original e a transcrição.

Estando concluído o processo de transcrição, a pesquisa encaminhou-se para mais uma


importante etapa, a da análise dos significados das palavras. Essa análise se resume numa
tentativa de compreender os atores e as posições políticas de determinado ambiente, observando
a partir da semântica os significados reais das palavras presentes nos textos dos periódicos.
Assim, conforme destaca Bardin (2011, p. 50), “a análise de conteúdo procura conhecer aquilo
que está por trás das palavras sobre as quais se debruça. [...] a análise de conteúdo é uma busca
de outras realidades por meio das mensagens”. Deste modo, saber os significados das palavras
permite ao pesquisador inferir sobre uma realidade que não a da mensagem, ou seja, possibilita
compreender o contexto e a linguagem de uma época, afinal, além dos relatos dos fatos, os
jornais evidenciam também, as aspirações, as ideologias e os discursos de um dado momento
histórico.

Na busca pelo real significado das mensagens, utilizou-se um web software,


desenvolvido pelo Grupo de Linguística da Insite795, que fornece um relatório detalhado sobre
o vocabulário do texto, indicando a quantidade de ocorrências de cada palavra. Tal ferramenta
viabilizou constatar os conceitos que mais de fizeram presentes nos textos dos periódicos
durante o período analisado (1961-1963). Dentre tantas palavras, os conceitos povo, eleitores,
crise, inflação, ordem e desordem, comunistas e comunismo, parlamentarismo,
presidencialismo e plebiscito, foram os mais utilizados pelos dois jornais – Gazeta do Sul e a
Fôlha –, e demonstram não só o interesse destes jornais com o plebiscito, mas também com
questões de ordem constitucional, social e econômica. A imagem a seguir, mostra uma tabela
com as palavras mais recorrentes em uma das publicações do jornal Gazeta do Sul, o número
de ocorrência de cada uma delas e os predicados, definições e significados, que acompanharam
os termos durante a mensagem.

144
Imagem 2 – Palavra com maior número de ocorrências na publicação Amanhã o
plebiscito: povo dirá “sim” ou “não” – Gazeta do Sul, 05/01/1963.
4

795
O Grupo de Linguística da Insite tem como objetivo pesquisar e desenvolver produtos relacionados com as
áreas de Processamento de Linguagem Natural (NLP), bases de dados para organização de conhecimento com
sistemas de recuperação de informação e aplicações de Inteligência Artificial. Disponível em: <
http://linguistica.insite.com.br/>. Acesso 04 out. 2016.
Fonte: O autor 144
Este processo de significação das palavras, contribui para a leitura precisa do conteúdo 5
das mensagens, sendo viável ler nas entrelinhas das publicações, ideias, discursos e
posicionamento políticos próprios dos jornais. No caso do plebiscito, essa questão fica mais
evidente, pois os jornais assumem a função de mobilização das massas, convocando os eleitores
a comparecerem na votação. Além disso, é possível observar a quem as emissões dos jornais
deram maior voz – se aos parlamentaristas ou aos presidencialistas –, o que evidencia as
posições políticas dos periódicos. Em suma, os jornais devem ser analisados como instrumentos
de intervenção do ideário social, pautados pelas conjunturas políticas e econômicas de
determinada época. E nesse ponto, a “análise de conteúdo”, principalmente no que diz respeito
ao estudo das mensagens, contribui de modo a encontrar a significação dos discursos e das
ideias de um dado período.

CONCLUSÃO
A imprensa adotou, nas décadas de 1950 e 1960, novas técnicas jornalísticas,
priorizando a objetividade e a informação, sem abandonar, no entanto, o aspecto político de
suas publicações. Para tornar-se possível a investigação das ideologias e dos discursos políticos
da imprensa, a “análise de conteúdo” fez-se necessário, como instrumento para o desvendar
crítico das comunicações, oportunizando que os jornais e outros meios de comunicação fossem
vistos como dispositivos de intervenção das ideias sociais. Enxergar os jornais como atores
políticos no meio social, a partir da análise de seu conteúdo, proporciona inferir sobre suas
ideologias e anseios, que variam conforme o contexto histórico. Desta forma, acredita-se que
este estudo possa de alguma maneira contribuir para novas pesquisas que tiverem como meio
norteador o método da “análise de conteúdo” de Laurence Bardin. Vale mencionar, mais uma
vez, que a metodologia aqui descrita foi adaptada às necessidades e possibilidades da pesquisa,
sendo apenas uma das alternativas propiciadas pelo método.

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144
7
ANÁLISE DA IMPRENSA GAÚCHA E SUAS ABORDAGENS DURANTE A
CAMPANHA DA LEGALIDADE (1961)

Mariele Henn Heck 796

RESUMO

Durante o breve período democrático brasileiro, que perdurou entre 1946 e 1964, a sociedade
se viu assombrada por forças que desejavam governar o país a partir de meios não democráticos,
ou seja, a partir de golpes institucionais. Não foi em poucos momentos que a sociedade se viu
persuadida de que a intervenção seria o meio mais correto para solucionar os problemas que
estavam sendo enfrentados no momento em questão. Vivemos, neste período democrático,
quatro momentos em que se foi colocado a constituição para “escanteio” e tentado um golpe
para assumir o poder. Em 1954, 1955, 1961 e finalmente 1964, quando os poderes golpistas
estavam bem articulados e foi-se dado o golpe civil-militar e constituiu-se uma ditadura militar
no Brasil. O trabalho em questão, vai tratar da crise político-militar que se deu devido à renúncia 144
8
de Jânio Quadros à presidência da República, quando os Ministros Militares, vendo no vice-
presidente forças agitadoras de esquerda, vetaram a posse do mesmo, e por este motivo foi
articulada a campanha da Legalidade pelo governador do Rio grande do Sul, Leonel Brizola,
amigo, companheiro de partido e cunhado de João Goulart. A centralidade de Brizola neste
momento é inquestionável, assim como a importância histórica do movimento liderado pelo
mesmo, porém Brizola via na posse de seu cunhado ao mais alto mandato político uma forma
de inserir as reformas de base, principalmente a reforma agrária, dentro dos projetos do
plenário. Dentro disso qual vai ser a visão da Folha de Rio Pardo e a Gazeta do Sul sobre a
campanha da legalidade movida pelo governador do Rio Grande do Sul, o veto dos Ministros
Militares e a renúncia de Jânio Quadros? Qual seria o discurso abordado por ambos os jornais
referente a cada ponto da campanha? Como, afinal, o conteúdo das notícias articulava as
questões nacionais, estaduais e locais?
Palavras-chave: Politica; Legalidade; Imprensa.

INTRODUÇÃO

796
Licencianda em História - UNISC – Santa Cruz do Sul. marielehennheck@hotmail.com
Para o “povo gaúcho”, poder reviver a revolução farroupilha, não voltando no tempo
como nos filmes de ficção científica, mas na sua realidade, seria poder lutar por um ideário
adormecido em cada cidadão rio-grandense. Foi isso que aconteceu em 1961, quando se deram
as condições para que o “povo gaúcho” se visse como libertador do Rio Grande do Sul e do
Brasil não mais como mero coadjuvante. Joaquim José Felizardo (1988, p. 63) comprova o
pensamento quando afirma, em sua obra:

O “ideário farrapo”, centrado em torno de algumas vagas, como a defesa da


liberdade, da honra e dos direitos dos gaúchos, seria uma das molas mestras de uma
realidade cultural e ideológica, a ser usada continuamente pelas lideranças
regionais. (Joaquim José Felizardo, 1988, p. 63)

Os “gaúchos” na visão de Joaquim José Felizardo, não eram massa de manobra do


governo, mas, na verdade, pensavam e lutariam pelos seus ideais, mesmo se eles estivessem
lutando com revólveres calibres 38 contra o Exército bem mais equipado. Revólveres calibre
38? Sim… Brizola equipara a população com revólveres calibre 38 requisitados da fábrica 144
Taurus. E não só revólveres foram distribuídos como também metralhadoras, tudo isso mediante
a assinatura de um recibo. A distribuição das armas se deu devido à ameaça de bombardeio do
9
Palácio Piratini na madrugada de 28 de agosto de 1961. Foi decidido lutar!
Neste momento de crise, um número significativo da população de Porto Alegre se
mobilizou de forma que até mesmo a criminalidade diminuiu, bancos de sangue dos hospitais
lotaram e os auxiliares de enfermagem estavam dispostos a cuidar dos feridos caso houvesse
um confronto entre as partes sem alguma remuneração. Vamos salientar aqui: o que poderia vir
a contribuir para essa solidariedade toda do “povo gaúcho” se não o “ideário farrapo”?

Capitulo I – Renúncia de Jânio Quadros


Segundo o Historiador Thomas Skidmore, o governador do estado da Guanabara, Carlos
Lacerda, já havia feito ataques pessoais a outros presidentes, como Getúlio Vargas e tentado
com Kubitschek, agora ataca incessantemente Jânio por rádio e televisão, tentando assim entrar
em confronto direto com o mesmo. Jânio, dias antes da sua renúncia deixou a direita enfurecida
quando condecorou Ernesto Che Guevara com a maior distinção que o Brasil outorga a um
estrangeiro que é a Grã-cruz do cruzeiro do sul.

Na noite do dia 24 de agosto Lacerda desencadeou um violento ataque na rádio


contra Quadros dizendo que o mesmo o estava tramando um golpe com Oscar Pedroso Horta
no qual Lacerda tinha sido convidado a participar.
No dia 25 de agosto, sob grave erro de cálculo, Quadros pediu sua renúncia da
presidência da República. Como relata o jornalista Flávio Tavares 797, Jânio deixa como
renúncia apenas um bilhete, nem mesmo se dá ao trabalho de redigir um documento oficial. Ao
contrário do que o presidente imaginou não havia de ser feita nenhuma votação referente à
renúncia, pois a mesma era um ato de vontade pessoal, livre de qualquer votação. Ao congresso,
agora, cabia apenas tomar conhecimento e convocar o substituto. A interpretação mais comum
entre os historiadores sobre o fato acontecido em 25 de agosto foi a de que Jânio Quadros teria
a intenção de renunciar a fim de que o congresso e a maioria da população brasileira não
aceitassem a sua renúncia, também pelo repúdio a Goulart, e ele voltasse à presidência com
poderes ditatoriais, tentativa denominada de “golpe Branco”, o que não acontece.

Flávio Tavares798 deixa claro que nada, naquele agosto de 1961, aconteceu que não
145
pudesse ter sido resolvido com negociações ou um diálogo. 0
A ideia de “golpe branco”, é publicada no jornal Gazeta do Sul, assim como também é
publicada a visão de que a renúncia poderia ter se dado devido a pressões golpistas, como
demonstra o excerto:

Como é obvio, em tais ocasiões, também desta feita começaram a surgir de


todas as partes os mais desencontrados comentários e interpretações ao gesto do sr.
Jânio Quadros.
Alguns taxaram desde logo a atitude de Jânio como mais um golpe espetacular
de publicidade como muito bem se sabe fazê-lo JQ, o que aliás ficou comprovado na
campanha eleitoral, quando também renunciou à sua candidatura para consolidar-
se definitivamente no posto e eliminar resistências que estava enfrentando então.

797
TAVARES, Flávio. 1961: o golpe derrotado: luzes e sombras do Movimento da Legalidade. Porto Alegre:
L&PM, 2011.
798
TAVARES, Flávio. 1961: o golpe derrotado: luzes e sombras do Movimento da Legalidade. Porto Alegre:
L&PM, 2011.
Estes mesmos observadores afirmaram logo que dentro de horas, Jânio voltaria ao
seu posto, mais forte e mais prestigiado, com ampla liberdade de ação, graças ao
esmagamento das forças que se opunham a sua ação governamental.
Outros interpretaram o seu ato como consequência da pressão de setores das Forças
Armadas e forças ocultas de plano internacional contra o reatamento de relações com
a Rússia. Mas, esta versão não se coaduna com a realidade dos fatos, de vez que se
notava a total ausência dos elementos militares nos debates que vinham se travando
em torno do problema. (26.08.1961)

Segundo o excerto anterior, haveria duas hipóteses especulativas para a renúncia de


Jânio Quadros, porém, o Jornal Gazeta do Sul, demonstra-se inclinado a defender a primeira,
sendo que afirma que os militares se mostravam ausentes dos debates referentes à política
externa.
Desta forma, foi entregue no dia 25 de agosto às 13h a Carta de Renúncia, em uma 6ª
feira no ano de 1961. Na carta Renúncia, Jânio quadros admite ter deixado o poder por forças
terríveis estarem se levantando contra ele, Flávio Tavares (2011, p.14) afirma sobre as palavras
em sua carta de renúncia:
145
Em partes as palavras recordavam as da carta testamento de Getúlio Varga, escrita
no bojo de uma crise política que o levou ao suicídio sete anos antes, em 1954. Ou,
1
num plágio da História buscavam criam emoções desencadeadas pela carta de
Getúlio, copiando-lhe a mesma ideia mestra. ( Flávio Tavares, 2011, p. 14)

Se Jânio tinha a intenção de se fazer repetir as emoções passadas, conseguiu em partes,


quando em sua capa, o jornal Gazeta do Sul anunciou a renúncia de Jânio comparando o fato
com o suicídio do presidente Vargas. A notícia, que tem por título “Estupefação e perplexidade
diante da renúncia do presidente Jânio Quadros”, relata o seguinte:

Com um efeito semelhante ao constatado quando do suicídio do presidente Getúlio


Vargas, em 24 de agosto de 1954, começou a ocorrer nas primeiras horas da tarde de
ontem a notícia da renúncia do atual presidente da República, sr. Jânio da Silva
Quadros. (26.08.1961)

A folha de Rio pardo vai publicar, no dia 27 de agosto de 1961, apenas um enunciado
no topo da página onde diz “Dia 25 renunciou presidente Jânio Quadros. Assume o Governo o
Deputado Ranieri Mazilli, Presidente da Câmara dos Deputados. Aguardado hoje o Vice João
Goulart, para assumir a presidência da República.”, de resto ela silencia-se não dá maiores
detalhes sobre a renúncia, sobre o veto militar, sobre a crise que o Brasil está vivenciando
naquele momento.

Capitulo II – Campanha da Legalidade

Segundo a constituição, quem assume a Presidência da República neste cenário é o vice-


presidente, porém João Goulart, o vice-presidente, estava na China comunista. Diante deste
fato, quem assumiu a presidência do Brasil foi o presidente da Câmara dos Deputados Ranieri
Mazillii. Neste momento já se cria um cenário de intensa tensão, pois os Ministros Militares se
opuseram a posse de Goulart e os setores nacionalistas populistas defenderam o direito de o
vice-presidente assumir o cargo. Já Goulart estava muito longe de Brasília e ainda demoraria
alguns dias para chegar. Nesta perspectiva, de tensão e disputa de poder, um amigo de João
Goulart vai entrar em cena, fazendo o seu papel de protagonista na história destes 14 dias de
crise do Brasil. Este alguém seria o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola que ainda 145
no dia 25 de agosto já vai tomar as primeiras medidas em nome da Legalidade e do veto dos
2
Ministros Militares quando a Goulart assumir a presidência. Por aconselhamento do Marechal
Henrique Lott, Brizola buscou apoio dos generais Oromar Osório e Pery Beviláqua da 1 divisão
de Cavalaria (Santiago, RS) e da 1 Divisão de Infantaria (Santa Maria, RS), além do general
Amaury Kruel que não tinha comando, mas se prontificou a vir ao RS comandar tropas de
resistência. No caso de políticos, o único que aderiu a causa da legalidade foi o governador de
goiás Mauro Borges de Teixeira (PSD), como abordado por Luciano Aronne Abreu799.
Os Ministros Militares não se calam quanto à eloquência de Brizola e o jornalista Flavio
Tavares800 vai nos relatar os episódios de ameaças ao Palácio Piratini durante a Campanha da
Legalidade. Tudo começa quando o general Muricy chefe do Estado-Maior do III Exército está
preparando uma ação para subjugar Brizola, pois o veto à posse de Jango é concreto e os

799
ABREU, Luciano. O Rio Grande em tempos de Legalidade. In: KLÖCKNER, Luciano; ABREU, Luciano;
MONTEIRO, Charles (org.). Segunda Legalidade: Registros Históricos e Jornalísticos.
800
TAVARES, Flávio. 1961: o golpe derrotado: luzes e sombras do Movimento da Legalidade. Porto Alegre:
L&PM, 2011.
ministros vão impedir a posse de Jango. Os brigadianos montam barricadas nos portões e nas
calçadas com sacos de areia, é o ataque, por onde atacarão? Soldados pedem que as pessoas que
ali se encontram se dispersem, porém haviam muitas pessoas e algumas estavam segurando
faixas escritas “O Rio Grande Resistirá”. O comando do III Exército percebeu que não teria
como obstáculo apenas Brizola e a Brigada Militar Rio-Grandense, mas sim a população que
naquele momento se encontrava mobilizada pela imprensa e pela Rádio da Legalidade. Naquela
tarde de domingo, 27 de agosto, não foi possível concretizar o ataque, porém, ainda no dia 27,
João Carlos Guaragna, funcionário dos correios e telégrafos, intercepta mensagens em código
Morse uma delas era de oficiais de Guanabara que instruíram o general Machado Lopes a
manter a firmeza e a energia a fim de não permitir que cresça a força do inimigo potencial, que
neste caso é o Brizola. O comandante coronel mandou armar os dispositivos de matança para
silenciar Brizola pelo ar bombardeando o Palácio. Caso as tentativas de convencer Brizola a
parar com as transmissões não dessem certo, o bombardeio começaria ao raiar do dia.
Dia 28, o general Machado Lopes entra em contato, às 10h e 30min, com o governador
Brizola comunicando-lhe que gostaria de uma audiência. O que seria abordado nesta audiência?
Seria um taque ao Palácio Piratini? 145
Não apareceram os tanques, apenas Machado Lopes. Das 08 pessoas presentes na
reunião marcada para as 11h 30min, nenhuma está armada, o general Machado Lopes foi direto 3
ao assunto e relata que os generais do III Exército decidem que a solução da crise deve ser feita
dentro da constituição, ou seja, deve ser seguida a constituição e quem tomará a posse da
presidência da República seria João Goulart. Segundo o autor Diego Orgel Dal Bosco Almeida
(2007 p.65), a decisão tomada pelo III Exército foi para evitar uma guerra civil e não por aderir
à causa Legalista ou simpatizar com Brizola e/ou Jango, segundo seguinte excerto:

Esse fragmento mostra que a decisão tomada pelo comandante do III Exército nada
tinha a ver com simpatia ou com cooptação política de Brizola, com civismo político,
ou mesmo com o fato de o general nutrir qualquer tipo de simpatia a João Goulart.
A decisão de apoiar o movimento pela Legalidade, segundo Machado Lopes foi uma
decisão no sentido de evitar a Guerra Civil… (Diego Orgel Dal Bosco Almeida, 2007
p.65)
Segundo o Flávio Tavares801, o que também teria acontecido para que Machado Lopes
desobedecesse à ordem de Brasília, seria o pedido de soldados de seis companhias localizadas
no comando do III Exército para que o mesmo seguisse a legislação.

O Jornal Gazeta do Sul, realizar uma publicação onde vai expor essa decisão do general
Machado Lopes, sendo ela:

O General Machado Lopes, porém, que aderiu à causa da legalidade, isto é que se
cumpra a constituição e se dê a posse ao vice-presidente, permanece firme em seu
posto. Inclusive enviou um rádio ao Ministro de Guerra, Mal. Denys, dizendo que não
acatava mais as suas ordens. Desta maneira, ficaram mais definidas as posições, com
o III Exército solidário com o Rio Grande do Sul, em defesa da Legalidade.
(31.08.1961)

Ainda com receio de um enfrentamento, A cruz vermelha de Rio Pardo comunica pelos
auto falantes da cidade que estão sendo recebidos doações de sangue e também estão abertas
inscrições para fazer parte da Cruz Vermelha. Conforme confirma também realiza o
chamamento a Folha de Rio Pardo:
145
A Cruz Vermelha, núcleo de Rio Pardo, dirigido pelas sras. professor Amélia 4
Kraemer, Joana Wunderlich Pellegrini e Zulmira Schultze Saccarello, comunicou
todos, pelo alto-falantes, que se acham abertas as inscrições para o corpo da mesma,
com livro de inscrições no Escritório Bordim.

Pelos altos-falantes do Comando de Resistência, foi também divulgado que o


Corpo Médico do Hospital dos Passos pede que ali se apresentem, para organização
do Banco de Sangue, os doadores para caso de emergência.(03.09.61)

Capitulo III – Mobilização popular

Em Porto Alegre, no pavilhão de exposições Mata-borrão, foi instalado um comitê


Central do Movimento de Resistência Democrática, órgão com o fim de unificar outros comitês.

801
TAVARES, Flávio. 1961: o golpe derrotado: luzes e sombras do Movimento da Legalidade. Porto Alegre:
L&PM, 2011.
As refeições eram doadas por bares, armazéns ou restaurantes, havia pessoas que
voluntariamente entregavam seus caminhões, automóveis ou motocicletas para formar a “frota
da legalidade”. Os postos de gasolina doavam “vales” ao comitê, para que assim a frota fosse
abastecida gratuitamente. Ajudando-me com alguns dados, Jorge Ferreira802 disponibiliza em
sua obra a informação de que até a meia-noite de 30 de agosto, já havia 45mil voluntários
apresentados. Flávio Tavares803 vai complementar relatando que até o final de 12 dias de
resistência haviam 50 mil inscritos, dos quais 12 mil são mulheres, algo inusitado, pois a mulher
recém-começava a participar da política. Ainda, para realizar o fechamento deste pensamento
da mobilização do “povo gaúcho”, segundo Joaquim José felizardo (1988 p.48):

A mobilização do povo gaúcho atingia um nível surpreendente. Em porto Alegre e em


todas as cidades, grandes e pequenas, já se formavam comitês de resistências e
voluntariado. O espírito cívico do povo gaúcho impregnava todos os espaços e ia
atingindo e envolvendo a tudo e a todos. (Joaquim José Felizardo, 1988 p.48)

O jornal Gazeta do Sul, vai novamente ter uma publicação, esta do dia 31 de agosto de 145
1961, onde expõe os acontecimentos, quem seriam os culpados, qual seria a solução para a crise
e quem poderia salvar o Brasil das forças que levam o mesmo a declinar. Ainda, no final, pede
5
a Deus que ajude estes que tem o poder de salvar a Nação, sobre o título de “unidade gaúcha
em prol da legalidade”, segue a publicação abaixo:

Continua abalando a opinião pública os últimos acontecimentos políticos de


nosso país. Ninguém, nem mesmo o mais pessimista observador, poderia prever que,
de uma hora para outra, a aparente tranquilidade nacional pudesse degenerar no que
atualmente estamos presenciando. Um raio em pleno céu azul não poderia causar
maior estupefação de que os fatos que se iniciaram com a renúncia do primeiro
magistrado da Nação, Sr. Jânio Quadros.

802
Ferreira, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-1964. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
803
TAVARES, Flávio. 1961: o golpe derrotado: luzes e sombras do Movimento da Legalidade. Porto Alegre:
L&PM, 2011.
As verdadeiras causas desse gesto extremo do presidente ainda não estão
esclarecidas. A opinião pública exige que seja lançada um raio de luz sobre o que
levou o presidente a abandonar o pôsto, porque é claro que êle assim não agiu levado
por capricho ou temperamento. Algo de muito grave ocorreu nos bastidores. Ainda
mais levando-se em conta os fatos graves se que se sucederam. Quando, tendo
renunciado o presidente o caminho normal parecia ser a posse do Vice-Presidente,
eis que surgiram opiniões contrárias a que tal sucedesse. A atitude dos chefes
Militares, fazendo sentir ao presidente provisório e ao Congresso Nacional a
“absoluta inconveniência” de o Vice-Presidente assumir o poder.
De opinião contrária, porém, é o Rio Grande do Sul, em peso, pois todos os
gaúchos entendem que se deva cumprir a Constituição, que assuma o Vice, seja ele
quem fôr. Queira Deus que a admirável unidade gaúcha vá mudar a situação em
Brasília, a fim de que seja evitado o derramamento de sangue numa luta fratricida.
(31.08.1961)

CONCLUSÃO

Luciano Aronne Abreu804 nos explana que João Goulart ficou sabendo da renúncia de
Jânio por João Etcheverry jornalista de “última Hora” que acompanhava a comitiva do Vice-
Presidente a China comunista. Fez uma longa viajem de volta para o Brasil. Quando enfim
145
chegou a Montevidéu, discutiu uma solução para superar a crise que havia se instaurado no 6
Brasil com alguns senadores e deputados. Recusou-se a conversar sobre a sugestão de renunciar
em nome da paz, porém, o mesmo aceitou ir adiante quando Afonso Arinos comentou-lhe sobre
uma emenda parlamentar. Raul Pila era um político bem respeitado no parlamento e uma de
suas emendas sempre foi o parlamentarismo, porém, ela sempre foi uma emenda negada. Desta
vez, seria aceita?

Jango optou por uma emenda parlamentarista, por mais que ela podasse seus poderes.
Em dois anos haveria um plebiscito com a votação pela volta, ou não, do presidencialismo o
que ditaria pela volta do mesmo, pela tradição da cultura brasileira. Jango optou pelo não
derramamento de sangue. No dia 03 de setembro a Folha de Rio Pardo vai publicar uma nota
sob o título de “Notas de última hora” na qual afirma que:

804
ABREU, Luciano. O Rio Grande em tempos de Legalidade. In: KLÖCKNER, Luciano;ABREU, Luciano;
MONTEIRO, Charles (org.). Segunda Legalidade: Registros Históricos eJornalísticos.
Ao encerrarmos o expediente, havia grande expectativa e desejo que o senado
rejeitasse a emenda Constitucional.
Também se aguardava, com grande interesse, a mensagem oficial a ser expedida,
sábado, pelo presidente Dr. João Goulart. (03.09.1961)

Já o congresso, aprovou a emenda parlamentar por 233 votos contra 55. Isso aconteceu
na madrugada de sábado, em Brasília. No dia 03 de setembro já estava sendo promulgada pelo
presidente do congresso, senador Auro Moura Andrade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). Rio de Janeiro:
Ed saga, 1969.
TAVARES, Flávio. 1961: o golpe derrotado: luzes e sombras do Movimento da Legalidade.
Porto Alegre: L&PM, 2011.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo : 2 ed. Edusp, 1995.
FELIZARDO, Joaquim José. A legalidade: último levante gaúcho. 2. ed. Porto Alegre: Ed. da
Universidade/UFRGS, 1988.
145
FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945- 7
1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
BANDEIRA, Moniz. Brizola e o trabalhismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
1979.
KLÖCKNER, Luciano; ABREU, Luciano; MONTEIRO, Charles (org.). Segunda Legalidade:
Registros Históricos e Jornalísticos. Porto Alegre: EDIPUCRS , 2014
ALMEIDA, Diego Orgel Dal Bosco. O Brasil doente e o povo eleito: Leituras da legalidade
na imprensa do Rio Grande do Sul (1961). In: SILVA, Giselda; MATOS, Julia; SCHURSTER,
Karl (Org.). Campos da Politica - Discursos e Práticas. 1. ed. São Paulo: LP-Books, 2012, v. p.
486-504.
ALMEIDA, Diego Orgel Dal Bosco. Jango e Brizola: tão perto e tão longe (1961-1964). 2007.
133f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de Passo Fundo, 2007.
145
8
O ANTICOMUNISMO CATÓLICO EM SANTA MARIA E ATUAÇÃO NA
IMPRENSA: DA CAMPANHA DA LEGALIDADE AO GOLPE DE 1964*805

Yan Baggiotto Giuliani**806

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo apresentar o projeto e seus resultados parciais na pesquisa que
vem sendo realizada para o Trabalho de Conclusão de Graduação em História (TCG), a qual
procura analisar a atuação da maioria da Igreja Católica na imprensa de Santa Maria,
representada pela ação do Bispo Luis Victor Sartori e o viés anticomunista de seus discurso na
conjuntura política do período compreendido entre agosto e setembro de 1961, momento em
que eclode a Campanha da Legalidade, passando pelo lançamento das Reformas de Base, pelo
Plebiscito de 1963, até o Golpe Civil-Militar de abril de 1964. Da pesquisa, pretende-se
compreender como se deu essa atuação, o posicionamento e o grau de participação destes
setores majoritários da Igreja na articulação de uma oposição ao governo João Goulart na cidade
de Santa Maria, através da realização de revisão bibliográfica para ampliar o entendimento do
contexto político, bem como a construção do “imaginário anticomunista” católico.
Concomitantemente, far-se-á a revisão de uma pesquisa realizada no acervo do Arquivo
Municipal de Santa Maria, nas edições do Jornal “A Razão” (o maior órgão de imprensa da
cidade de Santa Maria e da Região), buscando explorar as diversas matrizes políticas e
145
ideológicas deste processo. Assim, o objetivo é elaborar uma síntese deste processo, buscando
contribuir para a produção historiográfica gaúcha em um tema pouco explorando,
9
especialmente por Santa Maria ser uma cidade estratégica econômica e militarmente, bem como
importante para a Igreja Católica, de tal forma que, na década de 1960, era a sede da Diocese
que compreendia mais de 40 paróquias, sobre as quais exercia grande influência política através
da ação religiosa.
Palavras-chave: Politica, Anticomunismo católico, Santa Maria

INTRODUÇÃO

O recorte cronológico estabelecido para a pesquisa (1961-1964) compreende um


período de intensas agitações políticas e sociais em ambos os países focos da análise. Nesse
contexto, a América Latina foi marcada por um conjunto de processos que irromperam sob a
lógica do conflito. Foi o momento em que atores sociais estiveram envolvidos em acirradas

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


**Academico do décimo semestre do curso de História da universidade federal de Santa Maria. Email:
yan.giuliani@hotmail.com.
disputas e embates político-ideológicos. O conjunto de análises pontuais mostram, enfim, que
o anticomunismo esteve presente nas disputas políticas brasileiras de grande parte do século
XX. Dentro da conjuntura estudada, podemos observar parcela significativa da Igreja Católica
em atuação como oposição ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e suas propostas de
reformas. E um dos propósitos desta pesquisa é analisar ação e o discurso na região de Santa
Maria e suas consequências para a articulação de uma frente oposicionista aos governos João
Goulart e Leonel Brizola.

O cenário internacional desse período se configurou a partir da eclosão dos mais


diversos processos que remontam ao fim da Segunda Guerra Mundial e ao surgimento dos
Estados Unidos e da União Soviética como duas superpotências econômicas e militares, que,
sob a égide da denominada Guerra Fria, polarizaram a escalada de conflitos na busca pelo
aumento de suas respectivas áreas de influências. Sendo assim nesse trabalho procura-se
compreender de que forma o discurso e o imaginário anticomunista adotado pela igreja
influenciaram movimentos, ações da igreja em Santa Maria. Pois nesse momento, a história
brasileira viveu um momento forte de anticomunismo dentro da igreja católica. O
anticomunismo, aqui neste trabalho, é definido por Carla Rodreghero como um conjunto das 146
atividades realizadas por grupos diversos, que constroem e se guiam por uma série de
0
representações que têm sido chamada de “imaginário anticomunista”.

“Tratam-se de atividades como a produção de propaganda, o controle e a ação


policial, as estratégias educacionais, as pregações religiosas, a organização de
grupos de ativistas e de manifestações públicas, a atuação no Legislativo, etc.
O anticomunismo assumiu diferentes papéis e formas em conjunturas
específicas, como naquelas em que ele parece ter sido mais intenso, de 1935 a
1937 e de 1961 a 1964[..]. (RODREGUERO,2002)

No Brasil, as tensões durante o governo de Jânio Quadros (1961) e principalmente com de João
Goulart (1961-1964) marcaram a emergência de novos movimentos sociais que iam de encontro
às aspirações de Jango, cujos discursos pautavam-se em temas como reforma agrária e distribuição
de renda. A oposição a Jango começou desde a sua posse, sendo o mesmo empossado a partir de
um arranjo político do “Parlamentarismo”, que limitava os poderes do então presidente gaúcho.
Com efeito, os adversários de Jango, o empresariado, a hierarquia da Igreja e jornais como o
“Correio do povo ”, viam no presidente um sinônimo de comunismo. A construção do golpe de
1964 é um tema decorrente em nossa historiografia principalmente após 50 anos do inicio da
ditadura civil-militar buscou-se rememorar principais atos, conspirações e movimentos que
culminaram neste momento e importância da igreja católica como opositor as reformas do governo
Jango e do Partido Trabalhista em vários momentos da vida política inclusive no golpe de 1964,
sendo que Conselho nacional dos bispos assumiu em nota que foi um erro histórico impulsionado
por setores da igreja afim de combater o comunismo . Em 3 de abril de 2014 o conselho nacional
dos bispos enviou a seguinte nota publica:

“Se é verdade que, no início, setores da Igreja apoiaram as movimentações


que resultaram na chamada 'revolução', com vistas a combater o comunismo,
também é verdade que a Igreja não se omitiu diante da repressão”. A CNBB
reiterou ainda que defende a democracia e ressalta que a Igreja reviu sua posição
após constatar como o Estado atuava, de forma repressiva e violenta.

O golpe de 1964, que instituiu a ditadura no Brasil, teve apoio de vários


setores da sociedade. Nesse contexto, a Igreja Católica se posicionou a favor do
golpe, em um país constituído por mais de 75% de analfabetos e mais de 95% de
católicos. “Recontar os tempos do regime de exceção faz sentido enquanto nos 146
1
leva a perceber o erro histórico do golpe, a admitir que nem tudo foi devidamente
reparado e a alertar as gerações pós-ditadura para que se mantenham atuantes
na defesa do Estado Democrático de Direito”, disse a CNBB.

Nesse contexto de Santa Maria nos anos 60 vivia uma ascendência no setor econômico com um
dos polos ferroviários mais importantes da região sul tendo influencia na política tendo associação
ferroviária um importante movimento e que influenciava na vida política sendo fundamental no
apoio da campanha da legalidade em 1961, a cidade também era naquele período um importante
centro militar contendo o segundo maior contingente. Com grande circulação de comando, entre
eles General Olympio Mourão filho que vinha a ser o homem que inicio o movimento de tropas
que acabou culminando no golpe de 1º de abril de 1964. Nesse período era a sede da Diocese que
compreendia mais de 40 paróquias, sobre as quais exercia grande influência política através da
ação religiosa ações essas que contam com inserções em rádios, jornais sobre figura e o comando
em Santa Maria do bispo Luis Victor Sartori .
Por todo o Brasil surgem pesquisas demostrando a influência da igreja católica no poder
político isso foi retratado no trabalho pioneiro de Marcio Moreira Alves, a igreja e o poder no
Brasil (1979), e o trabalho da já citado da historiadora Carla Rodreghero807 que analisa o discurso
anticomunista dentro da igreja católico e que serve de referência nesse trabalho. Porém
percebemos a escassa pesquisa em termos locais da capilaridades desses discursos em âmbito
regional como podemos ver a pequenas citações diante da grande participação do bispo local nos
movimentos, tendo a sua disposição quase semanalmente uma coluna no jornal “a razão” e um
programa diário na rádio medianeira sendo citado por Mourão filho em suas memorias (1978) “
como um revolucionário entusiasmado”. Estrutura essa semelhante a de outros bispos que
declararam apoio e ajudaram articular o golpe em suas cidades um desses exemplos do bispo
metropolitano de porto alegre, Dom Vicente Scherer que como relata Ianko Bett em sua pesquisa
do uso da imprensa para difusão anticomunismo católico.

“As alocuções semanais do arcebispo metropolitano de Porto Alegre,


D.Vicente Scherer também podem ser elencadas para se pensar o papel da
imprensa na difusão do anticomunismo católico. O fato de algumas vezes o
anúncio das alocuções estarem na primeira página deve ser ressaltado, e,

146
pode indicar, além da considerada importância que estas recebiam por parte
dos jornais, a própria respeitabilidade com que estas poderiam ser
consideradas no âmbito dos leitores. Um aspecto que chama atenção, neste
sentido, é que as alocuções em geral não necessariamente tratavam de temas
políticos, contudo aquelas selecionadas para compor a primeira página dos
2
jornais, como anúncio de chamadas ao leitor, a pauta anticomunista era
presente, conforme publicação do DN em dia 28 de novembro de 1961:
“Inaceitável a Colaboração Entre os Comunistas e Promotores de
Reformas”. Este foi o título de uma das manchetes da capa do DN, a qual
anunciava o assunto a ser tratado por D. Vicente Scherer na sua alocução
semanal.” (BETT,Ianko ,pg 79)

Neste projeto busca-se analisar a atuação da Igreja Católica na imprensa de Santa Maria,
representada pela ação do Bispo Luis Victor Sartori e o viés anticomunista de seus discursos na
conjuntura política do período compreendido entre agosto e setembro de 1961, momento em que
eclode a Campanha da Legalidade, passando pelo lançamento das Reformas de Base, pelo
Plebiscito de 1963, até o Golpe Civil-Militar de abril de 1964.

807
Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rev. Bras. Hist.
vol.22 no.44 São Paulo 2002
1- Fundamentação Teórica e Metodologia aplicada no projeto.
Iniciei com uma revisão bibliográfica a respeito do tema que vai da cronologia do pensamento
anticomunista católica e suas fases no Brasil a questão institucional especifico da igreja católica e das
formas de mobilização da mesma nesses período em Santa Maria assim podendo fazer uma síntese e
comparações dos processos em âmbito local ,estadual e nacional .
No que se refere a fontes pretende-se três a midiática no jornais “A razão” o principal órgão de
imprensa na região, a revista “Rainha” importante publicação da igreja católica disponíveis ambas no
arquivo municipal de Santa Maria e as atas da reuniões da Cnbb no período para uma melhor
compreensão dos debates ocorridos no período dentro conselho nacional dos bispo.
O Objeto de pesquisa é atuação do Bispo Luiz Sartori nessa podemos averiguar mais de 10
inserções radiofônicas que era usadas como destaques no jornais do período isso durante a campanha
da legalidade . Foram levantadas na pesquisa informações a partir de diários de General Mourão filho
publicadas no livro já citado que citaram atuação e importância do bispo na articulação de
movimentos oposicionistas.
Com isso o trabalho está fundado em dois campos teóricos da História, a social e a nova História
146
política baseado no entendimento que historiografia do século XX, ao acenar com uma nova História 3
Política que redefiniu seus objetos, suas fontes e metodologias, trouxe à tona duas das mais
promissoras interfaces da historiografia moderna: de um lado o diálogo e a interação entre a História
Política e a História do Discurso, e de outro o estudo do Imaginário como caminho importante para
perceber as relações de poder e as suas correspondentes apropriações políticas. O presente projeto
pretende adotar estes dois caminhos de inter-relações. Será importante lembrar aqui o contraste
radical entre a Velha História Política que se fazia no século XIX e a Nova História Política que
começou a emergir no último século, e que se viu particularmente revitalizada a partir das suas últimas
décadas. Para considerarmos este contraste, serão necessários termos em vista que o que autoriza
classificar um trabalho historiográfico dentro da modalidade da História Política é naturalmente o
enfoque no “Poder”. É o Poder, com as suas apropriações e as relações por ele geradas, com os seus
mecanismos de imposição e transmissão, com a sua perpetuação através da Ideologia, com a sua
organização através das redes de atores sociais e com as suas possibilidades de confrontação através
de fenômenos coletivos como as Revoluções ou as resistências individuais no âmbito dos micro-
poderes, e com tudo o mais que ao Poder se refere, o que constitui mais propriamente o território do
historiador político. Mas de que tipo de Poder aqui falaremos? Teremos aqui uma primeira indagação,
capaz de introduzir um estudo mais atento deste contraste entre a Velha e a Nova História Política.
Enquanto a História Política do século XIX mostrava uma preocupação praticamente exclusiva com
a política dos grandes
Estados (conduzida ou interferida pelos “grandes homens”), a Nova História Política -
principalmente nos seus desdobramentos de a partir dos anos 1980 - passa a se interessar também
pelo “poder” nas suas outras modalidades (que incluem também os micropoderes). No metodológico
em História dos, nós e por meio de periódicos (In: BASSANEZI, C. 2005), Tânia Regina de Luca
faz um estudo dos periódicos como fontes de pesquisa. Segundo a autora, “até a década de 70 eram
raros os trabalhos que se valiam de jornais e revistas como fonte para o conhecimento da História no
Brasil.” (p. 111) Ainda seguindo a argumentação da autora “preocupação era escrever a “História da
Imprensa”, mas era preciso mobilizá-los para a escrita da história por meio da imprensa”. (p. 112).
Porém, para que isso acontecesse seria necessário utilizar os jornais impressos como fontes
documentais. Isso como demonstra a autora era praticamente impossível segundo os limites impostos
á tradição historiográfica do século XIX que tinham como pressuposto a busca da verdade. Para
realizar esta tarefa o historiador “[...] deveria valer-se de fontes marcadas pela objetividade, 146
neutralidade, fidedignidade, credibilidade, além de suficientemente distanciadas de seu próprio
4
tempo. ” (p 112)
Nestas condições os jornais estariam fora de qualquer possibilidade de servirem como fonte de
pesquisa para a História. Eles “pareciam pouco adequados para a recuperação do passado, uma vez
que essas “enciclopédias do cotidiano” continham registros fragmentários do presente, realizados sob
o influxo de interesses, compromissos e Paixões.”(p 112)
Essa visão depreciativa em relação aos jornais passaria a ser questionada a partir da década de 30
quando os adeptos da Escola dos Annales passam a reconhecer a importância dos meios impressos
nas pesquisas históricas.
Apesar de um significativo reconhecimento da imprensa como fonte de pesquisa por essa
Escola, o reconhecimento de fato só ocorreria pela intermediação da terceira geração dos Annales.
Estes proponentes lançaram novas perspectivas para as análises históricas cujas temáticas passavam
a incluir “o inconsciente, o mito, as mentalidades, as práticas culinárias, o corpo, as festas, os filmes,
os jovens, as crianças, as mulheres, aspectos do cotidiano, enfim uma miríade de questões antes
ausentes do território da História”. (p. 113)
Essa renovação temática abre consideravelmente as possibilidades de fontes para as pesquisas em
História. Além da abrangência das fontes para pesquisas, abriram-se também novas perspectivas
analíticas. Os marxistas, sobretudo encabeçados por E. P. Thompson seguiram na idéia de escrever
uma história pela ótica dos vencidos. Assim se sairia daquela visão positivista que baseada em
documentos oficiais escrevia a história dos heróis e das grandes personalidades. Além da abordagem
marxista, outro aspecto importante foi o desenvolvimento da chamada “História Cultural”, “História
imediata” e “história política”. Essas inovações no campo historiográfico trouxeram perspectivas
abrangentes para o estudo da história. Ainda segundo Luca

Os debates ultrapassaram as fronteiras dos novos objetos, abordagens e/ou


problemas e introduziram outras fissuras no trato documental. Como assinalou
o Historiador Antonio Prost, alterou se o modo de inquirir os textos, que
interessemos menos pelo que eles dizem do que pela maneira como dizem,
pelos termos que utilizam, pelos campos semânticos que traçam e, poderíamos
complementar, também pelo interdito, pelas zonas de silêncio que
estabelecem. (2005, p. 114)

2– Revisitando o anticomunismo Católico.


146
Nas últimas duas décadas, houve um paulatino crescimento de trabalhos 5
historiográficos cuja temática central consistiu em compreender o fenômeno do
anticomunismo. Sobre esse aspecto, o historiador Rodrigo Patto Sá Motta aponta dois
momentos históricos de análise desse fenômeno: o contexto de investigação concentra-se, a
priori, no surgimento do anticomunismo, ou seja, nas suas matrizes no contexto da Revolução

Russa de 1917, e sua influência no Brasil, até o período de 1935. Ainda temos,
posteriormente, o período referente à Guerra Fria até o governo de João Goulart, com maior
intensidade nos anos de 1961 a 1964, período que culmina com o golpe de 1964 e a implantação
da Ditadura Militar no Brasil. Motta classifica esse dois momentos, em que podemos identificar
a latente atuação desse fenômeno, como “ondas” ou “surtos” anticomunistas.

De acordo com Motta, as pesquisas historiográficas, até então, abordavam o


anticomunismo como aspecto secundário, como um elemento auxiliador às análises de um
determinado contexto histórico.
A superficialidade das análises inibia a compreensão da diversidade das práticas e ações
do fenômeno e resulta, diversas vezes, na simplória concepção de que o anticomunismo se trata
somente de um instrumento da classe dominante para manipular o psicológico e incumbir os
seus interesses políticos frente à sociedade.

Esse projeto de pesquisa surgiu após uma pesquisa para disciplina de prática do
historiador em arquivologia meu trabalho no período foi com a campanha da legalidade no
Jornal “A razão” onde foi observado a intensa tentativa no bispo local de segurar qualquer
ímpeto popular com alertas sobre o tal “perigo vermelho” entre jargões do imaginário
anticomunista que mais tarde com a leitura do livro de Rene Dreyfuss2 sobre o golpe de estado
no Brasil e sua articulação citando setores da igreja fui formulando algumas perguntas de como
esse setores ganhavam parte da massas? Qual eram os discursos além do econômico? Sendo o
PTB o maior partido no período qual seria o discurso homogeneizador tais classes
conservadoras?

Pergunta essas que no decorrer do curso e da investigação foram sendo respondidas


primeiramente eu quis entender o que era o anticomunismo e uma obra que foi fundamental
para entrar e me inteirar a cerca do tema que foi a obra de Rodriga Pato Sá Motta, “Em guarda
146
contra o perigo vermelho : o anticomunismo no Brasil (1917/1964). 6
E lá podemos observar que alguns dos aspectos menos privilegiados na Ciência Política
brasileira diz respeito à atuação das forças anticomunistas ao longo de nossa história.
Orquestrado por grupos conservadores e em certos momentos até por alas progressistas, o
anticomunismo brasileiro é sem dúvida um dos fenômenos políticos mais relevantes nas duas
fases de colapso institucional da democracia no Brasil (especificamente, a ascensão do Estado
Novo (1937) e o golpe de 31 de março de 1964). Esses períodos são sublinhados na obra de
Rodrigo Patto Sá Motta, que apresenta um notável levantamento de fontes acerca do assunto e
configura-se como uma interessante contribuição para o escasso conjunto de trabalhos sobre o
tema. René A. Dreifuss, analisando o papel da burguesia no período, sustenta que sua ação
política foi orientada por uma elite “orgânica”, no sentido gramsciano, composta por
empresários e oficiais militares. Tais atores organizaram-se no complexo IPES-IBAD3,
liderado pela “burguesia nacional e associada ao capital estrangeiro” (DREIFUSS, 1981, p.
162-172); suas atividades conspiratórias teriam provocado o colapso do sistema midiático do
governo. Como se pode observar, tais obras elegem determinados atores como núcleos
desencadeadores das crises políticas. A nosso ver, o problema dessas interpretações reside em
compreender os movimentos de 1937 e 1964 a partir de um único prisma, não estabelecendo
uma relação articulada do sentimento anticomunista com as questões políticas e econômicas
que permeavam os posicionamentos conservadores na época. Sá Motta chama atenção para os
efeitos deterministas que essa linha interpretativa tende a impor ao fenômeno. Sua sugestão
para contornar esse impasse reside em uma discussão acerca das representações
(especificamente a visão de mundo anticomunista referente às fases históricas em questão),
juntamente com as ações (eventos e atividades, realizados pelos grupos que combateram o
comunismo, sobretudo as alas conservadoras):

“Nosso objetivo é estudar o anticomunismo tanto no aspecto de constituição


de representações – principalmente ideário, imaginário e iconografia –,
quanto das ações – estruturação de movimentos e organizações
anticomunistas, perseguição aos comunistas e manipulação oportunista do
anticomunismo” (SÁ MOTTA, 2002, p. XXV).

Para atingir tal objetivo, o autor estrutura seu trabalho em narrativas sincrônicas e
diacrônicas. O primeiro capítulo busca proporcionar um panorama das primeiras manifestações
146
anticomunistas no Brasil, especificamente no período 1917-1935. As cinco seções seguintes 7
tratam das características ideológicas, organizacionais e políticas das forças anticomunistas
(brasileiras e estrangeiras), ficando as abordagens acerca da instauração do Estado Novo (1937)
e da deposição do presidente João Goulart (1964) destinadas aos dois últimos capítulos.
Apoiado em um amplo leque de fontes primárias (documentos oficiais de inúmeras instituições)
e secundárias (jornais, revistas e panfletos), o autor identifica três “matrizes ideológicas” que
fomentaram o anticomunismo brasileiro: o catolicismo, o nacionalismo e o liberalismo.

No que diz respeito ao catolicismo, por meio dos argumentos de cartas pastorais e
outros ofícios da cúpula da Igreja Católica, Sá Motta revela que uma elaborada dicotomia entre
comunismo e religião foi adotada pelos anticomunistas do período 1930-1964, que justificavam
seus discursos enfatizando que a filosofia comunista “negava a existência de Deus e professava
o materialismo ateu;

[...] pretendia substituir a moral cristã e destruir a instituição da família;


defendia a igualdade absoluta contra as noções de hierarquia e ordem,
embasadas em Deus” (idem, p. 20)
Nesse ponto que entra a questão religiosa que é o anticomunismo dentro da Igreja
católica se aproxima do meu objeto e delimitação do tema qual era o ideário da igreja a esse
respeito? Qual sua concepção de comunismo e construção desse imaginário e foi nesse
momento que entrei encontro com trabalha de Carla Rodreghero.

O trabalho da historiadora Carla Simone Rodeghero, intitulado O diabo é vermelho:


imaginário anticomunista e a Igreja Católica no Rio Grande do Sul (1945-1964), inova ao
imprimir destaque à complexidade das ações, imaginário e práticas do fenômeno anticomunista
na Igreja Católica do Rio Grande do Sul. Várias obras na historiografia apontam a Igreja
Católica com um dos principais grupos responsáveis pela disseminação dos preceitos
anticomunistas. Isso porque, a Igreja atua diretamente na sociedade em que está inserida, seja
como religião, e como espaço de sociabilidade em missas, pregações, eventos e festividades.

146
8
A autora analisa o imaginário anticomunista através dos impressos Jornal do Dia,
Correio Riograndense e Boletim Unitas, encíclicas papais e entrevistas com católicos gaúchos,
leitores dos referidos jornais. Por meio das fontes arroladas, Rodeghero teve como principal
objetivo identificar como a pregação anticomunista interferiu em uma série de situações na vida
cotidiana e nas relações familiares e sociais, ou seja, a sua abordagem não foi exclusiva ao
enfoque político ou nas aglomerações partidárias de esquerda. Em seu artigo denominado
Religião e patriotismo: o anticomunismo católico nos Estados Unidos e no Brasil nos anos da
Guerra Fria (2002) ela aprofunda questão do anticomunismo católico agora com enfoque nas
ações e transformações tanto no discurso no Eua e no Brasil assim colaborando para entender
ação política religiosa que a instituição exerceu nesse período.

“Do início dos anos 50 até o golpe de 1964, alguns setores da Igreja
Católica no Brasil — ligados à direção da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB) e a grupos de Ação Católica — passaram a assumir posições
de apoio a lutas populares, o que fez com que as críticas ao comunismo ou a
determinados aspectos do capitalismo (como o laicismo e a secularização)
dessem lugar ao questionamento das injustiças sociais. Estava surgindo, nesse
momento, uma espécie de esquerda católica que, todavia, ocupava posições
não-majoritárias dentro da instituição, a qual se mantinha como atuante
batalhadora contra o comunismo. 146
9
No início da década de 1960, o propósito de uns de combater o
comunismo e de outros de romper com as estruturas injustas se manifestou na
atuação da Igreja no processo de sindicalização dos trabalhadores rurais. Já na
década anterior, uma série de iniciativas visava contribuir para a melhoria da
situação dos trabalhadores do campo, retirando assim os motivos para a
difusão de idéias subversivas. Movidos pelas possibilidades abertas pelo
Estatuto do Trabalhador Rural e pelo temor do comunismo, localizado
especialmente nas Ligas Camponesas, católicos de diversos Estados do Brasil
criaram Frentes Agrárias. No Rio Grande do Sul, por exemplo, foi criada em
1961 a Frente Agrária Gaúcha (FAG), através da qual foram organizados
muitos sindicatos de trabalhadores rurais.

Vê-se, então, que ao longo do século XX, o combate ao comunismo


foi um dos ingredientes do discurso e da prática da Igreja Católica no Brasil.
Visava combater uma série de manifestações identificadas ao comunismo, da
mesma forma que permitia à Igreja reservar um espaço importante de
participação na discussão dos rumos políticos do País. O trabalho de
comparação com o anticomunismo católico norteamericano permitirá levantar
novos elementos sobre o brasileiro. A comparação será feita em torno de cinco
temas: o lugar da religião católica em cada um dos países e a relação disso
com o anticomunismo; a exploração do tema da perseguição à Igreja no
México, na Espanha e nos países sob a "cortina de ferro"; as clivagens dentro
da Igreja em ambos os países no que se refere ao anticomunismo; a recepção
do anticomunismo católico; e finalmente, uma breve menção às sociedades
nas quais, no período pós-guerra, esses católicos brasileiros e os norte-
americanos viviam.” (RODEGUERO,2002).

CONCLUSÃO

Esse projeto de pesquisa pretende aprofundar o debate e a pesquisa sobre o tema principalmente
em relação o aspecto regional onde os trabalhos são escassos e investigação até aqui nos leva a
considerar tanto pela influência política, religioso e militar no estado, que Santa Maria tem mais a
oferecer no sentido historiográfico do período entre 1961 e 1964, onde assistimos o ápice do discurso
anticomunistas no país e dentro de igreja católica onde na cidade podemos observar nessa fase inicial
de pesquisa nas fontes regionais um Bispo atuante na política local e que apresenta todas
características discursivas e ideológicas que levam a deduzir na contribuição no golpe de 1964 e no
aumento da oposição ao governos trabalhistas no estado do Rio Grande do sul e na esfera do executivo
nacional. Essa pesquisa pretende intensificar suas investigações e levantamentos de dados locais a
partir de julho e concluir suas pesquisas em setembro utilizando do arquivo municipal de Santa Maria
e acervos da imprensa local assim juntando a revisão bibliográfica já concluída para possibilitar um
síntese do tema a ser trabalhado mais especifico no trabalho final de graduação . 147
Aqui neste artigo pretendeu-se apresentar um panorama da pesquisa com alguns pontos que prezo 0
ser fundamentais para o andamento do projeto . Estruturando o contexto do período estudado, os
pontos gerais da pesquisa, os objetivos e justificativas e as duas frentes de trabalho a revisão
bibliográfica, Teórica e a pesquisa nas fontes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Nacional – Casa da Moeda, 1985.
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imprensas brasileira e argentina no contexto dos golpes militares de 1964 e 1966.
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Vicente Scherer e a infiltração comunista no governo do RS (1961). In: Anais do XXVI
Simpósio Nacional de História. São Paulo. 2011.
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PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 5. ed. v. I. Brasília: UnB, 2000.
CHARTIER, Roger. À beira da falésia. Porto Alegre: UFRGS, 2002.

DE LUCA, T. R. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, C. B. (org.).
Fontes Históricas. São Paulo; Contexto, 2005. p. 111-153.

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RODEGHERO, Carla Simone. O diabo é vermelho: imaginário anticomunista e Igreja
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______. Religião e patriotismo: o anticomunismo católico nos estados Unidos e no Brasil 147
nos anos da guerra fria. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 44, p. 463- 488,
2002.
1
SKIDMORE, T. . Brasil : de Getúlio a Castelo. 10ª ed. Rio de Janeiro : Paz & Terra 1996.

THOMPSON, J. 1995. Ideologia e cultura moderna : teoria social crítica na era dos meios
de comunicação de massa. Petrópolis : Vozes.
OS USOS DO JORNAL COMO FONTE PARA A PESQUISA HISTÓRICA:
APONTAMENTOS METODOLÓGICOS E ANÁLISE DE CONTEÚDO DO JORNAL
GAZETA DO SUL ACERCA DA CAMPANHA “O PETRÓLEO É NOSSO” (1946-
1954) *808

Gustavo Henrique Kunsler Guimarães**809

RESUMO

A presente comunicação busca contribuir com pesquisas que tenham o jornal como fonte ou
objeto de estudo. Se por um lado é possível compreender o jornal como ator político, por outro,
em seu conteúdo, é possível diagnosticar elementos que podem ser pistas para a compreensão
de um determinado contexto de disputas político-partidárias, por exemplo. No que se refere aos
passos operativos que norteiam este estudo, é necessário salientar inicialmente a escolha das
fontes, bem como a análise documental que acompanhou este processo, tendo como objetivo
dimensionar o material de maior relevância, considerando problematização, a temática e os
objetivos propostos. Em um momento onde os questionamentos acerca utilização dos recursos
naturais nacionais é tão acalorado, é interessante analisar a postura do jornal, sendo este o de
maior circulação na região. O primeiro passo então, condiz em uma leitura flutuante, visando
compor o quadro geral de análise. Posteriormente, dada a temática de relevância nacional, 147
2
estruturou-se a categorização do tema da campanha do petróleo em três níveis: local, estadual
e nacional. Nos níveis estadual e nacional procura-se analisar a forma que o jornal narrou as
notícias vinculadas à campanha do petróleo do ponto de vista do governo federal e estadual. No
caso específico da esfera local, procura-se compreender de que modos tais notícias
reverberaram no contexto político de Santa Cruz do Sul dada a conjuntura. Efetivamente, a
metodologia compreende o jornal como ator político em, pelo menos, dois sentidos: o primeiro,
com relação à forma pela qual o conteúdo dos jornais manifestou-se em relação à campanha do
petróleo, sobretudo no que diz respeito aos níveis estadual e nacional; o segundo,
especificamente relacionado ao nível local, pretende perseguir e delinear o contexto político da
campanha do petróleo e seus reflexos no jogo de poder entre os partidos do município de Santa
Cruz do Sul.
Palavras-chave: Imprensa - Campanha O Petróleo é Nosso – Apontamentos Metodológicos

INTRODUÇÃO

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Graduando em Licenciatura em História, Unisc, ghkunsler@mx2.unisc.br.
O uso de jornais como fonte histórica, implica necessariamente ao historiador
questionar o próprio documento, para que então possa identificar que tipo de posicionamento
este visa explicitar. É necessário ter a percepção de interpretar o documento ponderando os
pensamentos vigentes na época em que este foi produzido. Considerando que a imprensa é uma
construção posicionada acerca de um objeto ou sujeito específico, o cuidado para interpretá-lo
deve ser minucioso, devendo então problematiza-lo e não considerá-lo verídico ou não.

No momento em que se escolhe utilizar o jornal como fonte histórica, esta escolha se dá
por motivos bem definidos, analisar o posicionamento do jornal e a forma que suas mensagens
reverberam no pensamento de seus leitores. Fazendo um gancho com a conjuntura política
atual, nota-se que a mídia exerce papel fundamental na formulação dos pensamentos críticos (e
suas ausências) de grande parte da população. Apesar dos jornais não terem o mesmo efeito
sobre seu público no período pesquisado (1946-1954), estes atuavam no sentido de atores
políticos, defendendo o posicionamento dos grupos que lhe apoiavam. Para a historiadora Maria
Capelato:

147
3
É preciso considerar, contudo, que a empresa jornalística coloca no mercado
um produto muito especifico: a mercadoria política. Nesse tipo de negócio há
dois aspectos a se levar em conta – o público e o privado (o público relaciona-
se ao aspecto político; o privado, ao empresarial). (CAPELATO, 1988, p. 18).

Reside aí a importância para tal estudo, é necessário analisar a qual ideais o jornal
Gazeta do Sul era próximo, que tipo de discurso está veiculado junto as notícias relativas ao
petróleo, de que forma esse discurso chega aos leitores e com que objetivo, ou seja, qual a
“mercadoria política” que foi vendida aos leitores ao longo dos anos pesquisados. Para isso,
estruturou-se uma metodologia a partir de passos operativos, visando organizar a pesquisa
otimizando as informações disponíveis.

10. A Necessidade de Categorizar as Fontes


Os passos operativos na pesquisa, tem o objetivo de tornar viável a compreensão e
apreensão do material encontrado, após o momento empírico exercido no Centro de
Documentações (CEDOC) da Universidade da Santa Cruz do Sul. Fundamentalmente, o recorte
cronológico de 1946 a 1954 foi escolhido por dois motivos essenciais. O primeiro deve-se a
própria criação do jornal, que entra em circulação no ano de 1945, então a escolha pelo ano de
1946 dá-se no sentido de analisar a partir do governo Dutra. O fechamento do recorte
cronológico se dá em 1954 também pela questão governamental, neste caso, com a saída de
Getúlio Vargas do poder devido seu suicídio. É evidente que grande parte da questão
metodológica da pesquisa encontra-se na parte empírica da mesma. Para isso, foram feitas
diversas visitas ao Centro de Documentação para a análise destes oito anos de publicações do
jornal Gazeta do Sul. Estas publicações foram analisadas dentro de uma perspectiva qualitativa
já que esta “levanta problemas ao nível da pertinência dos índices retidos, visto que seleciona
esses índices sem tratar exaustivamente todo o conteúdo” (BARDIN, 2011).

Alcançado o primeiro passo operativo da pesquisa, a angariação das fontes, é necessário


analisá-las para identificar quais são pertinentes ao trabalho e quais não dialogam com o objeto
de pesquisa. Para que seja feita essa categorização, vários agentes entram em cena, trazendo 147
questionamentos que contribuem para o interpretação e questionamento de tais fontes. Quais
4
destas são relevantes para o tema da pesquisa? Como estas auxiliam na configuração do jornal
como ator político? Quais partidos tinham maior visibilidade nas páginas do jornal? Quais
posicionamentos estão direta ou indiretamente expostos nos editoriais analisados? Qual é o
posicionamento do jornal acerca da questão do petróleo? Tais questionamentos buscam
problematizar as notícias encontradas nas páginas da Gazeta, utilizando estas como fontes
históricas, de acordo com Capelato:

Com Michel Foucault a reflexão sobre o documento intensificou-se.


Questioná-lo é o problema fundamental da história, afirma o autor. O
documento é resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da
sociedade que o produziu e também das épocas sucessivas durante as quais
continuou a viver esquecido ou manipulado. (CAPELATO, 1988, p.24).
Ao passo que tais notícias se sustentam como fontes históricas, cabe a nós historiadores,
interpretá-las para que estas possam nos dizer algo. No caso desta pesquisa, a ênfase é discernir
qual o posicionamento do Jornal Gazeta do Sul acerca da Campanha do Petróleo é Nosso e da
questão do Petróleo.

11. Estruturação dos Passos Operativos


Para que tal interpretação seja feita, é necessário que haja uma categorização das fontes
utilizadas na pesquisa. Nesta categorização as notícias foram organizadas em três níveis:
Nacional, Estadual e Municipal. Para que a organização de tais fontes, foram levados em conta
alguns princípios salientados por Laurence Bardin em sua obra intitulada “Análise de
Conteúdo”. O primeiro critério utilizado para a organização das fontes foi o princípio de
exclusão mútua. Este princípio foi escolhido devido a necessidade de categorizar as fontes nas
áreas descritas anteriormente, para isso, a exclusão mútua não permite que o elemento possa
estar em mais de um grupo, podendo assim categorizá-los somente uma vez. Considerando a
pluralidade de fontes e o tempo hábil para analisá-las é mais coerente que seja feito tal análise
nas menores repetições, para que não dilate o tempo da pesquisa. A categorização nos três
grandes níveis se dá pelo princípio da homogeneidade. Considerando a categorização como 147
processo chave para a análise das fontes, é necessário que estas estejam agrupadas em espaços
5
semelhantes, logo a utilização deste princípio norteador é evidente. Feito tais procedimentos,
lança-se mão do princípio da pertinência. Aqui é necessário especificar ainda mais o objeto de
estudo, pode-se criar subdivisões para os três níveis. Na presente pesquisa estas subdivisões
encontram-se em Posicionamentos Partidários e Questão do Petróleo. Há escolha pelo termo
“Questão do Petróleo” ao invés da “Campanha do Petróleo é Nosso” se dá por uma questão
pontual. Há um maior número de notícias vinculadas ao petróleo e que não tem diretamente
ligação com a campanha do petróleo, apesar existir um diálogo entre tais conceitos.

A parte estrutural que organiza o corpo metodológico da pesquisa está contemplada


dentro dos aspectos de categorização acima expostos. Contudo, o carro chefe da análise
documental está no processo de inferência sobre as notícias. Dentro da análise de conteúdo
utiliza-se o procedimento de inferência para fazer uma interpretação controlada, tendo os
devidos cuidados para que tais notícias sejam interpretadas com um olhar próprio do período
estudado. Para isso, é mister analisar elementos organizacionais das notícias, tornando viável
incidir uma apreciação mais minuciosa sobre a mensagem que estas pretendem informar ao
leitor.

O primeiro elemento neste sentido, é analisar o emissor ou produtor da mensagem. No


caso desta pesquisa o emissor da mensagem é o jornal que veicula as notícias, a Gazeta do Sul.
É muito importante atentar à mensagem veiculada, pois, “a análise do discurso político fornece
dados sobre o orador etc.” (BARDIN, 2011, p.166). Neste sentido, é possível delinear dados
sobre o emissor, que transparecerão de acordo com o direcionamento da mensagem que o
mesmo imprimirá ao seu leitor. Leitor este que será o segundo elemento, assinalado como
receptor. O receptor, ou seja, o indivíduo ou grupo de indivíduos que recebem a mensagem, são
os leitores de que tem acesso ao jornal de forma direta ou indireta. Isso significa que dentro de
suas interpretações subjetivas, as notícias publicadas no jornal se pluralizam entre a
comunidade em que os mesmos estão inseridos. No que se refere a mensagem, esta constitui
um elemento único, considerando a importância que incide sobre o receptor. A mensagem, é de
fato, o conteúdo da notícia publicada. Esta pode estar explícita ou implícita ao leitor. Dentro
dessa pesquisa, a um maior cuidado com os pontos que se referem a questão
desenvolvimentista, considerando principalmente as questões ligadas ao petróleo, que tiveram 147
maior propagação por meio da Campanha O Petróleo é Nosso, que é um dos indicadores para
6
a seleção das notícias analisadas. No que diz respeito a mensagem é necessário analisá-la tendo
em vista que esta busca “se dirigir a este indivíduo (ou conjunto de indivíduos) com a finalidade
de agir (função instrumental da comunicação) ou de se adaptar a ele (ou a eles)” (BARDIN,
2011, p.166). Feito estes passos, se dará o processo de significação da mensagem. Este passo
operativo consiste em ler nas “entrelinhas” da notícia, captar a mensagem e o posicionamento
político (ou a busca pelo afastamento deste) que levou o jornal a publicar a notícia daquela
forma. Muito bem, há inúmeras possibilidades de noticiar um acontecimento. A informação
pode ser feita sem maiores interpretações, mas, fundamentalmente, está carregada pelo ótica do
emissor da mensagem, que tem seu posicionamento sobre esta. Uma das notícias catalogadas
nas visitas feitas ao Centro de Documentação, um editorial da edição de 19/01/1951 trazia o
seguinte título “Em nome do bom senso e da democracia”. A notícia que fala sobre a
Convocação extraordinária do Congresso Nacional, expressa em seu título um posicionamento
que busca discorrer sobre a prorrogação dos mandatos dos parlamentares. A maneira que se
coloca o título do editorial, indiretamente mostra ao receptor, ou seja, aos leitores do jornal, que
a solução desta questão é essencial para o andamento do Congresso Nacional. Caso o jornal não
mostrasse grandes preocupações com a situação no Congresso Nacional, colocaria títulos
genéricos, como “Tramita no Congresso Nacional a prorrogação dos mandatos dos eleitos em
1945”, ou provavelmente, este assunto não seria pautado no editorial do jornal, que
fundamentalmente exprime a opinião da instituição (neste caso a Gazeta do Sul) acerca do
assunto abordado.

CONCLUSÃO

Estruturar os passos operativos que norteiam a pesquisa é fundamental para uma


interpretação mais consistente e minuciosa sobre o objeto de estudo. No caso desta pesquisa,
analisar o discurso político que envolve as questões do petróleo é um processo que requer tal
estruturação. No período pesquisado, o petróleo é o bem em disputa, mas nas entrelinhas o jogo
político que se trava é entre nacionalistas e conservadores. Portanto, a análise do jornal para
elucidar a forma que a notícia chega ao leitor e que tipo de informação consta nesta, pode dizer
muito acerca do posicionamento do jornal sobre o tema pesquisado, considerando assim, o 147
jornal como um ator político, com influência pra manipular o imaginário das massas. Após a
execução dos passos operativos da pesquisa, pode-se notar que o jornal manteve uma 7
neutralidade, sendo mais factual acerca das questões que envolvem o petróleo. Levanto a
hipótese que esta postura deve-se a ausência deste recurso natural na região e a inclinação
regional para a fumicultura, que é ainda muito presente no cenário da região de Santa Cruz do
Sul, onde o jornal Gazeta do Sul está localizado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e história do Brasil. São Paulo: Contexto, 1988. 78 p.

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Imprensa Carioca nos 50. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, 2003.

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de Janeiro: Paz e Terra, 1979. 512 p.

147
8
A DEPENDÊNCIA DA ORIENTAÇÃO EXISTENCIAL NO TEMPO DA
CONVERGÊNCIA NARRATIVA: RUSEN E RICOEUR*810

Jivago Furlan Machado**811

RESUMO

Este trabalho consiste em uma aproximação das ideias do historiador Jorn Rusen sobre os
fatores que fundamentam o pensamento histórico das de Paul Ricoeur a respeito da narrativa
como criadora da concordância para a discordante experiência humana no tempo. Rusen propõe
uma série de fatores do pensamento histórico que são interdependentes entre si. Seu ponto de
partida é uma necessidade cotidiana de orientação existencial das pessoas no tempo, algo
inerente aos seres humanos, que constantemente apresenta carências a serem satisfeitas. Essa
satisfação se dá mediante a investigação científica que, segundo ele, passa por ideias
significadoras da experiência, métodos que permitem organizar a experiência de acordo com as
ideias e a forma como o resultado do processo se apresenta. Essa resposta científica só tem seu
fim completo quando volta para o âmbito não-especializado da vida comum, permitindo o
exercício de reorientação, agora renovado pelo processo recém experimentado e pronto para
147
um novo, que partirá de uma situação diferente da primeira. Ricoeur trata a história como uma
narrativa que torna convergente a divergência da experiência humana no tempo, não negando a 9
dependência de sua escrita da condição histórica do autor e da própria significação do texto
criado. Sua elaboração se dá mediante um arranjo de experiências que, por si mesmas, não
possuem elos de ligação causal, havendo uma dependência entre elas somente por meio do
escritor que as experiencia. O problema principal a ser abordado é: em que consiste o
conhecimento histórico, tendo em vista a necessária condição histórica da compreensão do
mundo? Isso não diz respeito apenas à semântica do texto, mas à interpretação que os humanos
fazem da própria realidade. Até onde a historiografia consegue dar conta da realidade passada,
se a significação dos acontecimentos, experienciadas pelos documentos, depende do arranjo
que o historiador cria na escrita da história?
Palavras-chave: Jorn Rusen, Paul Ricoeur, Conhecimento histórico.

INTRODUÇÃO

810
* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa
Maria.
811
** Mestrando em Filosofia na Universidade Federal de Santa Maria, bolsista CAPES, e-mail:
jivafurlan@gmail.com.
No presente trabalho, abordaremos algumas ideias de Jorn Rusen e Paul Ricoeur a
respeito do conhecimento histórico.

Ao tratar da origem cotidiana do pensamento histórico, Rusen incorpora as críticas pós-


modernas e salienta a modéstia da razão histórica. Ele não nega a possibilidade de elaboração
de uma história que corresponda ao passado real, mas salienta a existência de lacunas
insuperáveis devido às limitações da razão humana. Ricoeur, por sua vez, salienta o caráter
ficcional da narrativa histórica, não negando com isso sua correspondência com a realidade,
mas atentando para sua origem comum com a das narrativas de ficção. Segundo ele, ambas são
atividades que exigem um esforço criativo e ordenador por parte de seus autores e, no caso da
história, busca-se tornar inteligíveis as experiências humanas no tempo por meio da composição
de intrigas.

1. Capítulo I – A teoria da história de Jorn Rusen


Para tratar do círculo do pensamento histórico proposto por Rusen, partiremos da sua
definição de teoria da história. Para chegar nela, salientamos sua diferenciação de história e 148
ciência da história. A primeira seria relacionada com uma necessidade inerente aos seres
humanos de compreenderem-se no tempo, algo que independe de conhecimento científico, mas
0
é inevitável na medida em que experimentamos mudanças constantemente em nossas
realidades. Para o autor, fazemos história sempre que buscamos compreender nossas
experiências no tempo, independente de ser considerada científica ou não. A ciência seria
posterior, fruto de um trabalho metodológico mais rigoroso que busca objetividade,
pretendendo uma validação para além do contexto que em foi produzida. Segundo ele, teoria
da história seria o aspecto racional que permite inteligibilidade, aquilo que é anterior à história
científica, não no sentido de causa, mas de fundamento racional não científico, originário. O
interessante é que a teoria da história não se origina do mesmo modo que a historiografia, ela
não é produto de análises documentais, mas existenciais de quem analisa os documentos, ou
seja, o aspecto teórico da história é o que permite que a investigação histórica seja feita, muito
embora nem sempre seja apresentado explicitamente por quem a escreve. De maneira mais
simples, podemos afirmar que Rusen considera a teoria da história como responsável por
fundamentar e criticar o pensamento histórico, científico ou não. Não se trata somente de uma
reflexão sobre a prática, pois ela vai além do aspecto empírico. O que a investigação teórica
permite é que pensemos a atividade dos historiadores como objeto de pesquisa. Inicialmente
pode parecer ambíguo o uso do termo “teoria” para designar essa atividade específica, já que
os próprios historiadores elaboram teorias – no sentido mais amplo do termo – a respeito de
seus objetos empíricos de pesquisa. Entretanto, Rusen trata-a como uma teoria da teoria, uma
“metateoria” (RUSEN, 2010a, p. 15), que trate teoricamente da atividade de elaboração teórica
que os historiadores fazem a respeito das realidades passadas com uso dos documentos.

Tendo em vista a definição de teoria da história acima exposta, resta-nos mostrar a


singularidade da de Rusen. Ele busca uma teoria da ciência da história que não seja alheia à
produção historiográfica científica, mas que redefina o percurso de suas elaborações empíricas.
Rusen propõe uma teoria que esteja diretamente ligada com a práxis dos profissionais da
história, que leve em conta a própria ciência da história como objeto e pesquisa. Ele pretende
superar a antiga dicotomia entre teoria e empiria para o trabalho dos historiadores, a teoria não
tendo mais um aspecto instrumental para a pesquisa empírica, mas jamais sendo deixada de
lado. A teoria da história de Rusen implica em analisar teoricamente todo o processo de
conhecimento histórico, científico ou não, efetuado pela práxis da orientação no tempo. Sua 148
proposta não pretende descartar toda a produção de conhecimento histórico com outras bases
1
teóricas como se estivesse errada, ou devesse ser refeita. Rusen não nega a influência que sua
teoria tem do que já foi produzido em outros contextos, sob diferentes influências, mas ele
contrasta com essas outras a fim de encontrar a melhor maneira de conhecer história.

Tendo em vista as breves considerações sobre teoria da história, podemos ir agora ao


ponto que mais nos interessa na presente investigação: o círculo do pensamento histórico de
Jorn Rusen. Em que consiste o círculo? O autor propõe cinco fatores que são necessários para
que o processo de orientação no tempo seja realizado. São eles: interesses, ideias, métodos,
formas e funções (RUSEN, 2010a, p. 35).

Rusen afirma que os seres humanos possuem carências de orientação no tempo inerentes
à sua existência. Essa necessidade de orientar-se é traduzida como interesses pelo passado, uma
busca por respostas para a inquietude natural de não saber como a realidade constituiu-se como
se apresenta para nós no presente. Esse é o ponto de partida de todo o conhecimento histórico
que é construído, científico ou não. Interessar-se pelo passado impulsiona as pessoas a
buscarem evidências de como eram as coisas antes de sua existência, acessando seus vestígios.

Para utilizar documentos que permitirão aos sujeitos elaborarem histórias, antes é
necessário que suas carências sejam organizadas em ideias que dão significado para elas.
Critérios que possibilitam a compreensão do que se busca no passado, conceitos que orientem
os interesses, que possibilitem a instrumentalização dos vestígios. É interessante atentar para a
importância desse segundo fator, pois sem levar em conta as ideias que dão sentido aos
interesses, os documentos são inúteis para a elaboração de uma história, é preciso saber o
porquê de abordar as fontes. É com as ideias que o pensamento histórico entra no âmbito da
ciência especializada. Não é comum esse rigor de ordenamento dos interesses quando se trata
de história considerada não científica.

O fator métodos é o que nos permite tratar consolidar a história como ciência. É através
da abordagem metódica que a história possui seu caráter empírico, justificando suas afirmações
com evidências devidamente abordadas. Esse fator é problemático, pois não há uma
metodologia da pesquisa histórica claramente definida, mas diversas maneiras de tratar os
documentos para escrever uma história. Esse fator é o responsável por contrastar as ideias
148
fundadas pelos interesses com uma realidade estranha ao historiador que busca conhecer, 2
fazendo-o experienciar na prática aquilo que o interessou no início do processo de satisfação
das carências de orientação temporal.

O próximo fator consiste na materialização do processo de análise metodológica dos


documentos, norteada pelas ideias fundadas nos interesses: trata-se das formas de apresentação
- historiografia. Rusen salienta a importância desta quarta etapa, resistindo a tentativa de
considerá-la secundária no processo de pesquisa científica da história. Para ele, a escrita da
história é fundamental no processo de conhecimento histórico, pertencendo à esfera científica.

As funções de orientação existencial são o fator final do processo de pensamento


histórico. Ela faz com que todos os outros façam sentido, pois só são desenvolvidos para
atenderem às carências de orientação da vida cotidiana. O que é produzido como historiografia,
ainda no plano científico, fruto da abordagem metódica nos documentos, norteada por ideias
atribuidoras de sentido para a experiência, só existe porque inicialmente existem carências a
serem contempladas. As funções respondem aos interesses iniciais de orientação existencial das
pessoas no tempo.

Tendo em vista que o último fator liga-se com o primeiro, a ideia de um círculo do
pensamento histórico faz sentido. No entanto, é importante salientar que essa nova situação em
que o sujeito se encontra após saciar alguma necessidade de orientação no tempo não é estável,
na medida em que novas carências surgirão. Isso é inevitável, tendo em vista as contingências
constantes que experienciamos no mundo. Assim, podemos afirmar que embora a escrita da
história seja feita cientificamente, sua origem causal não é científica, não responde estritamente
a interesses de historiadores profissionais, mas a necessidades pré-científicas, a uma
racionalidade anterior aos métodos científico. É interessante salientar que quando utilizamos os
termos “científico” e “ciência” estamos nos referindo ao modelo das ciências naturais que
tornou-se hegemônico a partir do século XIX, baseado em experimentações empíricas e normas
universais extraídas de casos particulares.

Reduzindo-se ao aspecto formal, a validade dos conteúdos passou a ser


medida pela validade dos resultados. E a ciência da natureza, com seu método
científico, fechou-se em si mesma e o mundo externo ganhou validade a partir
das relações de enunciados, e a filosofia coube se submeter. O modelo 148
3
científico de produção de conhecimento, em especial das ciências da natureza,
se tornou referência quase que exclusiva às outras áreas. (BARROM; CERRI,
2012 p. 06).

Embora o círculo do pensamento histórico saliente a dependência da ciência da história


da vida comum, de necessidades inerentes de orientação das pessoas no tempo, não é com ele
que Rusen explica o tipo de racionalidade próprio da história. Ao afirmar o caráter narrativo da
história, ele necessariamente põe em evidência sua cientificidade enquanto disciplina
especializada. Ao criticar a aplicação do modelo das ciências naturais na elaboração do
conhecimento histórico científico, Rusen entra na discussão entre modernidade e pós-
modernidade.

Embora não seja o objetivo do presente trabalho, podemos definir a modernidade em


poucas palavras, partindo da obra de Rusen. Para ele, a modernidade é um período em que os
sujeitos organizam sua vida em sociedade baseados em conhecimentos científicos. Dialogando
com as ideias pós-modernas, afirma haver uma crise de atribuição de sentido para os
desenvolvimentos da ciência na sociedade. Essa crença na ciência e no método das ciências
naturais vem sofrendo, após a segunda metade do século XX, constantes críticas de diferentes
autores (HALL, 2015; JAMESON, 1997) que, apesar de suas particularidades, afirmam a
ineficiência da ciência moderna para dar conta da complexidade da condição humana no
mundo. O próprio Ricoeur (1978; 2014), através de sua crítica ao cogito cartesiano, embasada
pela psicanálise freudiana e obra de Nietzsche, aponta insuficiências da razão moderna para o
conhecimento e organização do mundo. Mas, especificamente, em que a querela modernidade
e pós-modernidade influencia o conhecimento histórico? Justamente na possibilidade de acesso
que temos ao mundo que pretendemos explicar historicamente. Se a organização científica do
conhecimento está sendo criticada e a ciência da história baseia-se nela, resta-nos ao menos
mapear superficialmente como se dá o processo de pensamento histórico, tendo em vista as
críticas, em nosso ver plausíveis, ao conhecer cientificamente. Para tanto, iremos além da obra
de Rusen.

Capitulo II – A narrativa de Paul Ricoeur

A obra de Ricoeur abrange diversos temas, transitando por diferentes áreas do 148
conhecimento, sendo a narrativa um dos principais. Em Tempo e narrativa, ele investiga a
narrabilidade do real e do ficcional e sua relação com o tempo, partindo principalmente da
4
Poética de Aristóteles e das Confissões de Agostinho. Ricoeur defende a tese de que é através
da narrativa que tornamos nossa experiência no tempo compreensível. Quando narramos,
atribuímos sentido àquilo que experienciamos na vida. É importante salientar que esse processo
não necessariamente é consequência de uma elaboração científica clara, mas independente dela.
Nos termos de Rusen, podemos dizer que, para Ricoeur, a compreensão narrativa vai direto dos
interesses de orientação existencial - primeira etapa do círculo do pensamento histórico – para
as formas de apresentação, não passando por ideias norteadoras e métodos científicos. Isso não
quer dizer que Ricoeur negue a pretensão científica da história, mas sim que ele não se preocupa
em validá-la ou questioná-la, não atendo-se somente à historiografia, mas à narrativa de modo
amplo, que vai além da escrita da história. Embora Ricoeur trate de obras de historiadores sobre
seu ofício, seu foco não é a cientificidade da história.

Para tratar da narrativa histórica, especificamente, Ricoeur recorre à ideia de


composição da intriga, o mŷthos aristotélico (RICOEUR, 2010a, p. 56). Ele o define como
sendo a criação de uma concordância narrativa para acontecimentos que não apresentam
ligações inerentes entre si. O compositor trata de tecer uma intriga entre episódios para que eles
façam sentido e apresentem uma causalidade para o leitor (ou ouvinte). Essa ideia, para
Aristóteles, não diz respeito à escrita da história, mas ao poema trágico, não tendo a
preocupação de corresponder-se necessariamente com o mundo da vida. Desse modo, para
tratar da história, uma composição que leva em consideração o caráter temporal da vida,
Ricoeur investiga a possibilidade de representação do real que uma composição poética pode
ter. Sua tese propõe uma origem poética da narrativa histórica. Como se dá, então, a relação
entre a composição da intriga e a narrativa histórica?

Por embasar-se no conceito de composição da intriga (o mŷthos aristotélico), Ricoeur


assume a ideia de que narrar uma história é compor, assim como um poema trágico. Liga-se
episódios, havendo uma concordância interna no poema. Entretanto, não é somente uma intriga
composta e coerente, mas possui uma relação com o temporal, o externo, o inesperado, a
distentio (RICOEUR, 2010a, p. 37). Assim, ele acaba assumindo outra ideia aristotélica, a
mímesis, ou atividade mimética (RICOEUR, 2010a, p. 57).

A mímesis seria a ação de imitar ou representar o real. Ela divide-se em três tipos: a
148
mímesis I, relacionada com a ação e pré-figuração; a mímesis II, relacionada com a narração e 5
configuração; e a mímesis III, relacionada com a leitura e refiguração. Ricoeur atém-se
principalmente na mímese II, atividade narrativa do real, mas trata das outras duas, uma por ser
a base a partir da qual a configuração do real é realizada e a outra por reconfigurar a vida de
quem experiencia o configurado. Ele recorre à imitação para tratar da pretensão da história de
narrar o real. O autor afirma haver uma interdependência entre mímesis e mŷthos.

O ponto central de sua argumentação é de que ao representar ou imitar, o historiador


está compondo. Um exemplo claro é de que as noções de começo, meio e fim são criações
poéticas, não evidências coletadas nos vestígios do passado. Os documentos não falam por si,
apenas quando perguntados. Ao escrever histórias não imitamos a realidade com nossas
narrativas, mas criamos, compomos coerências que não se evidenciam por si mesmas no
mundo, embora busquem representá-lo. A imitação do real é sempre uma criação, jamais isenta
de imaginação de quem escreve ou conta.
É importante salientarmos que a dependência da história da criatividade imaginativa do
historiador não esvazia sua relação com o real. Se a história é sempre escrita (ou contada), e a
escrita jamais é a vida, não há outra saída, para quem pretende contar o real, do que narrar a
compreensão da vida. Isso não reduz a história à coerência interna de sua escrita porque não
basta, para ser história, que seja uma a composição de intriga, mas essa composição se proponha
a representar ou imitar o real.

Para historiadores habituados ao trabalho com os documentos e criação historiográfica,


a primeira vista, as posições de Ricoeur talvez pareçam redundantes, dando a impressão de que
ele apenas utiliza uma terminologia pouco usual para tratar de atividades básicas para os
profissionais da história. Entretanto, pensemos um pouco mais sobre a as implicações que a
ideia de concordância discordante pode acarretar para a escrita da história.

Se a composição de uma história é uma atividade ficcional, cabendo ao historiador


elaborá-la e não apenas reproduzi-la, não estaria Ricoeur negando a possibilidade da história de
tratar do passado? Essa pergunta não possui uma resposta simples, pois para respondê-la não
se pode negar nem afirmar completamente. Não se pode negar, porque a história realmente é
uma composição elaborada pelo historiador, ela não é coletada pronta dos documentos. Não se
148
pode afirmar, porque ao imitar ou representar, o escritor da história está criando um novo 6
sentido, não apenas reorganizando significados e conceitos prontos. Dessa forma, podemos
dizer que Ricoeur salva a historiografia de ser um gênero de escrita que resume-se a sua
coerência interna, indo, portanto, além do texto, relacionando-se com a realidade passada.

Ricoeur afirma a possibilidade de escrita de uma história fiel ao passado – guardadas as


devidas limitações – pelo fato de que a composição da intriga tem como conteúdo uma atividade
mimética que consiste em representar o passado. Mesmo que para essa representação o
historiador utilize palavras e significados já definidos pela sua língua e cultura, a escrita da
história, enraizada nos documentos, cria um novo sentido. Apesar de a narrativa não dar conta
do mundo da vida, está enraizada nele e essa dependência impulsiona o sujeito a narrar algo
que, por mais limitado que seja, tem ligação com a realidade. No caso da história, o contato
com os documentos viabiliza a constituição de uma narrativa que está ligada ao passado real.
Podemos dizer que a pré-figuração de nossa capacidade semântica não anula uma configuração
inovadora, ou que o trabalho ficcional da imaginação consiste na combinação de mŷthos e
mímesis criativa (AMALRIC, 2016, p. 150).

Essa ideia de pré-figuração nos leva a uma condição dos sujeitos que lhes é involuntária
e possibilita-nos responder uma das principais questões do presente texto: é possível compor
uma história que trate da realidade passada tendo em vista a situação histórica intrínseca à quem
a compõe? Em outras palavras, não estaríamos, ao escrever história, limitados pela
contemporaneidade de nossas possibilidades de significação e, por isso, emissão de juízo?
Novamente a resposta é ambígua.

Como visto acima, no rearranjo da linguagem na elaboração historiográfica,


desenvolve-se um novo sentido, ligado ao passado tornado presente pelas fontes. Ainda assim,
se analisarmos casos específicos de diferentes histórias sobre os mesmos acontecimentos,
facilmente notaremos versões variadas, histórias muitas vezes divergentes. Isso pode levar
alguém a pensar que a história é um conhecimento refém da subjetividade de quem o escreve,
dependendo sempre das características e preferências do compositor, não possuindo caráter
objetivo razoável. Quanto a relevância da singularidade dos autores para suas obras afirmamos
que Ricoeur reconhece-a, no entanto ele não resume a obra ao artista: ela possui algo que foge
148
do seu criador, embora nunca se torne independente dele. Com isso, ele considera a condição 7
do autor inerente à obra, embora ela, ao criar sentido novo, vá além de sua gênese, ligando-se
com a realidade pelo vestígio que é impessoal.

Ricoeur liga a ideologia à estrutura simbólica da significação, portanto, ao nível da pré-


configuração que é incontornável pelos sujeitos. Entretanto, mesmo havendo sempre
historiador na história, através da análise hermenêutica da própria obra pode-se atingir algum
nível de objetividade.

Ricoeur não pretende um distanciamento alienante e nem recua para uma redução
completa do real ao intencional. A saída que ele encontra para este impasse é a ênfase na
atividade interpretativa na obra ou, no caso da criação histórica, na evidência do passado,
através de uma dialética entre sua subjetividade particular e a objetividade do documento.

A proposta ricoeuriana de uma dialética entre o interno e o externo é similar com o que
Rusen afirma sobre a razão da história. Segundo ele, a ciência da história jamais pode perder
sua origem na vida cotidiana, pois depende dela para constituir-se enquanto conhecimento
válido aos seres humanos. Por outro lado, essa gênese não possui qualquer caráter impessoal de
objetividade científica tradicional, sempre atendendo à interesses particulares e subjetivos.
Dessa forma, a razão da história, para Rusen, consiste no confronto dialético entre esse terreno
não controlável da subjetividade humana e sua racionalização metódica pretensamente
universal.

CONCLUSÃO

A carência de orientação existencial no tempo, que origina todo o processo do


pensamento histórico, para tornar-se narrativa necessita de uma atividade organizadora da
experiência temporal que, ao organizar, cria uma nova condição para o sujeito compreender-se
no mundo. Essa atividade criativa só ocorre mediante uma composição que o historiador faz
com o que experiencia nos documentos. Ao narrar, criamos uma convergência para nossas
experiências divergentes no tempo. Embasados pelo universo simbólico preestabelecido que
involuntariamente temos disponível, elaboramos narrativas que inovam o sentido dado para a 148
realidade, alargando as possibilidades de compreensão do real.
8
Orientar-se no tempo consiste, então, em compor uma narrativa convincente que sirva
de embasamento semântico para nossa compreensão da realidade temporal.

Dessa forma, a história seria o resultado da dialética entre experiências particulares


ordenadas com base em um campo de significados comuns, cuja síntese constitui uma narrativa
que corresponde inevitavelmente ao mundo e a seu autor.

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149
0
A MEMÓRIA E A METAMEMÓRIA DE IBERÊ CAMARGO NA SÉRIE
CARRETÉIS: UMA NARRATIVA META-HISTÓRICA812

Mirian Martins Finger813

Jorge Luiz da Cunha814

RESUMO

O objetivo desta pesquisa é demonstrar a presença da memória propriamente dita


(recordações e lembranças) e da meta-memória (representações que fazia de sua memória), na
série Carretéis, sob o instrumental da meta-história. Os objetivos específicos são: entender
como Iberê percebia o tempo ao interpretar as memórias de infância nos Carretéis; mostrar os
recursos utilizados na transmissão das memórias de infância nos Carretéis; e elucidar como 149
estas memórias foram representadas nesta Série. Quanto ao referencial teórico, implica as 1
categorias: memória, meta-memória e representação; assim como referências à metodologia da
meta-história. Assim, são abordados autores como: Joël Candau (2014), Halbwachs (2006) e
Nora (1993) e suas concepções alusivas à memória; Cassirer (2001), Gombrich (2007) e
(Goodman, 1978) e as noções de representação; Pasta (2003), Siqueira (2009) e Camargo (1987,
2009, 2012), e percepções sobre a produção de Iberê; e ainda, Goodman (1976, 1978, 1995) e

812
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria. Título
da tese de doutorado em andamento do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Linha de Pesquisa: Cultura, Migrações e Trabalho, sob
orientação do professor Dr. Jorge Luiz da Cunha.
813
Professora adjunta do Deptº de Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), doutora em
Epistemologia e História da Ciência pela Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF-AR) e doutoranda
do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
mirianmfinger@gmail.com
814
Professor titular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutor em História Medieval e Moderna
Contemporânea - University Hamburg, integra o quadro docente permanente do Programa de Pós-Graduação em
História e também do PPG em Educação da UFSM. jlcunha11@yahoo.com.br
Hayden White (1994-1995), que abordam a metáfora como proposta para a narrativa filosófica
e histórica, respectivamente. Opta-se pela perspectiva qualitativa, o que possibilita a
diversidade de procedimentos, abarcando abordagens interpretativas dando sentido ao tema
estudado (Denzin & Lincoln,1994). O trabalho é de observação no espaço da Fundação Iberê
Camargo, analisando documentos, textos e obras de arte do artista e identificando relações entre
eles. Para isso, utiliza-se a linguagem que se julga mais adequada ao que se propõe: a estratégia
da metáfora, como narrativa tropológica proposta por Hayden White (1994-1995), na qual
garante maior diversidade ao que se refere à interpretação da história; aliada ao instrumental
filosófico de Nelson Goodman (1976-1995), no qual considera, na linguagem verbal e na
pictórica, a metáfora como um dos modos de referência.

Palavras-chave: Memória; Meta-história; Carretéis.

INTRODUÇÃO

Nos diferente ambientes formativos e culturais nos quais produziu, o artista plástico
gaúcho Iberê Camargo colocou-se na história da arte no Brasil como sujeito atuante 149
contextualizando sua obra e resignificando seus valores a partir de suas memórias. Desse modo,
o objetivo desta pesquisa é demonstrar a presença da memória propriamente dita (recordações
2
e lembranças) como mote para a produção gráfica, pictórica e textual, e da metamemória
(representações que fazia de sua memória). Desse modo, a análise desta proposta é investigar
como o artista representava suas lembranças de infância sob o instrumental da meta-história.
Para isso utilizamos como método narrativo a tropologia, mais especificamente a metáfora. Os
objetivos específicos estão pautados em: entender como Iberê percebia o tempo ao interpretar
as memórias de infância na série Carretéis; mostrar quais os recursos utilizados na transmissão
das memórias de infância contidas na série Carretéis; e elucidar como estas memórias foram
representadas nesta Série. A partir de um entendimento referente à constituição de sua memória
nas relações com sua prática artística e profissional, buscar-se-á inferir como as memórias de
infância do artista foram representadas na série Carretéis. Para isso, propõe-se como questões
de pesquisa: como o artista percebia o tempo ao interpretar as memórias de infância na série
Carretéis; quais os recursos utilizados na transmissão das memórias de infância contidas na
série Carretéis?; e como as memórias de infância do artista são representadas na série
Carretéis?

De grande importância para a história da arte no país, muitos estudos têm sido realizados
tendo como objeto o artista Iberê Camargo. O poeta, escritor e crítico de arte Ferreira Gullar
muitas vezes se debruçou sobre a obra do artista publicando textos e obras na busca de traçar
um viés crítico/estético sobre a produção do pintor. Entre eles “Do fundo da matéria” (1995),
texto publicado originalmente em “Piracema: uma revista de arte e cultura (Rio de Janeiro:
Ministério da Cultura/Funarte, nº 4, ano III, 1995) e exposto novamente na obra organizada por
Sônia Salzstein. Professora de história e teoria da arte da Escola de Comunicação e Artes da
Universidade de São Paulo, Salzstein organizou em 2003 “Diálogos com Iberê” pela editora
Cosac & Naify, obra que agrega diversos autores na tarefa de compreender o trabalho de Iberê
por meio de aspectos estéticos, históricos, filosóficos, afetivo. Do mesmo modo, a professora
do Instituto de Artes da UERJ, Vera Beatriz Siqueira, em “Iberê Camargo: origem e destino”
(2009) dimensiona a obra do artista em quatro capítulos onde apresenta cronologicamente as
diferentes fases do trabalho do artista. Na obra “Tríptico para Iberê” (2010), organizada pela
pintora e crítica de arte Daniela Vicentini, também da Cosac & Naify, é apresentado três ensaios 149
relacionando vida e obra do artista: no primeiro Vicentini analisa o processo pictórico de Iberê;
no segundo, a ilustradora de livros infantis Laura Castillos exibe sobre um olhar crítico/estético
3
sua tese de doutorado, defendida na Espanha, onde seu objeto de estudos aborda as questões
formais e lúdicas da série “Carretéis”; e o terceiro o professor e jornalista Paulo Ribeiro analisa
a obra textual produzida pelo artista. A professora do Instituto de Artes da Universidade do Rio
Grande do Sul, Mônica Zielinsky lança pela Cosac & Naify, em 2006 o primeiro volume do
“Catálogo Raisonné”, obra dedicada exclusivamente à produção de gravura de Iberê e que terá
mais dois volumes analisando a pintura e o desenho. Ronaldo Brito, discorre sobre os
“Carretéis” (In Salzstein, 2003), texto integrante do ensaio “O eterno inquieto”, publicado
originalmente em “Iberê Camargo” (São Paulo: DBA, 1994, p. 65-75). Iberê é também mote de
pesquisa no trabalho apresentado pelo fotógrafo, escritor e professor do Instituto de Artes da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Luiz Eduardo Achutti, “Iberê Camargo por
Achutti” (2004), pela editora Tomo, onde o autor faz uma retomada da obra do artista através
das lentes fotográficas entremeadas por depoimentos afetivos de amigos e do próprio Iberê.
Entretanto, ainda não há pesquisa acadêmica específica, sobretudo ao que tange a representação
da memória de Iberê Camargo na série Carretéis, sob o viés metodológico da meta-história.
Ainda ao que tange o estado da arte, está o trabalho realizado pela autora deste projeto. A
pesquisa de doutoramento em Epistemologia e História da Ciência na Universidad Nacional de
Tres de Febrero, em Buenos Aires-AR, sob orientação do professor Rogério Saucedo Corrêa
do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria. Naquele estudo o objeto
foi a série Carretéis de Iberê Camargo. O objetivo foi analisar o mundo das artes a partir do
instrumental teórico da Filosofia Analítica. Mais especificamente analisar imagens contidas em
uma das séries plásticas do artista Iberê Camargo a partir da teoria cognitivista de Nelson
Goodman. Sobre o mesmo objeto de investigação, mas sob outro viés, o instrumental histórico,
este trabalho busca aprofundar a pesquisa sobre Iberê Camargo, analisando como as memórias
de infância foram representadas nas séries Carretéis aplicando a isso a narrativa meta-histórica.

Quanto ao referencial teórico a pesquisa ora proposta implica as seguintes categorias:


memória, meta-memória e representação; assim referências relativas ao referencial
metodológico da meta-história. Desse modo aborda autores que abrigam estes temas, tais
como Bacherlard (1993), Bergson (1999), Joël Candau (2014), Halbwachs (2006), Huyssen
(2000) e Le Goff (1996) e suas concepções alusivas à memória; Cassirer (2001), Gombrich 149
(2007), (Goodman, 1978), Rorty (1994), Wittgenstein (1984), Wollheim (1993, 2002) e as
noções referentes à representação; Massi (2009), Pasta (2003), Siqueira (2009), e suas
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percepções sobre o trabalho artístico de Iberê Camargo, bem como textos de próprio artista
(1987, 2009, 2012), e ainda, Goodman (1976, 1978, 1995) e Hayden White, que abordam a
metáfora como proposta para a narrativa filosófica e histórica, respectivamente.

Capítulo I

Candau em suas obras Memória e identidade (2014) e Antropologia da memória


(2005), propõe em uma perspectiva antropológica, uma classificação das revelações da
memória. Sua contribuição diz respeito ao estudo das relações entre memórias individuais e
memórias coletivas. Para isso, o autor classifica a concepção de memória em três níveis: a
protomemória, a memória propriamente dita e a metamemória, além de opor conceitos de
memórias fracas e memória fortes. É possível afirmar que Candau reduz a dicotomia referente
às concepções de memória individual e memória coletiva, afinal, ele propõe que a
protomemória e a memória propriamente dita, são constituídas separadamente, e desse modo
não podem ser compartilhadas. Ainda que Candau não aprofunde estes conceitos nesta obra,
sua exposição é suficiente por ora, pois de Memória e identidade, será trazido outros momentos
para balisar o trabalho aqui proposto. Desse modo, o autor se interessa não somente pelas
concepções, memória e memória propriamente dita, mas também por outros aspectos, tais como
o conceito de memória fraca e memoria forte. Assim, de Candau, serão aproveitados conceitos
que se configuram como estruturantes de identidade capaz de estabelecer sentido. Do mesmo
modo, serão também vinculadas as contribuições de Maurice Halbwachs, a respeito de memória
coletiva, conceito este recuperado por Andreas Huyssen e por Michael Pollak e o debate
existente entre Bachelard e Bergson quanto a concepção de memória. Bachelard prioriza a
imaginação na sua totalidade, isso é a imaginação formal, a material, a poética e a dinâmica.
Enquanto Bergson vai reivindicar a intuição como liberdade para a busca do conhecimento,
uma liberdade que recusa as correntes preponderantes de seu tempo, em especial o materialismo
evolucionista e o determinismo (PESSANHA, 1970). A discordância entre Bachelard e Bergson
se acentua, quando o primeiro defende que a imagem e a lembrança são posteriores a
imaginação, que a lembrança é fixada pelos poderes do inconsciente e que a imaginação tem o
poder de nos desprender tanto da realidade quanto do passado. Enquanto para o segundo, para 149
relembrar o passado em forma de imagem, é necessário ter a capacidade de abstrair-se da ação
presente, é necessário valorizar o inútil, “é preciso querer sonhar” (PESSANHA, 1970, p. 90). 5
A reverência da filosofia ao problema da representação alça debates relevantes ao
estudo do conhecimento. Platão no livro X de A República (2009, p. 295), ao analisar a noção
de mimese, diz que a imagem refletida no espelho é aparente tanto quanto a representação do
real. Nesse sentido, Cassirer (2001, p. 13) afirma que Platão identificou o ser como um
problema. Por isso, superou a explicação mítica e cosmológica e tornou a organização sistêmica
e teleológica da existência do ser. Todas as concepções científicas não são mais entendidas
como reproduções de um determinado ser, mas sim como símbolos intelectuais concebidos por
ele mesmo. O conceito de imagem transforma-se internamente. Consequentemente, a ingênua
teoria da reprodução perde força e a exigência de semelhanças entre imagem e objeto é
suplantada. Surge a expressão complexa por meio de uma “relação lógica, uma condição
intelectual geral que deverá ser satisfeita pelos conceitos básicos do conhecimento físico”
(Cassirer, 2001, p. 15). Também abordado por Wittgenstein na segunda parte das Investigações
Filosóficas (1984), o tema da representação é definido como aquilo que relaciona o figurado
com o afigurado a partir daquilo que existe de comum entre ambos, porém a semelhança de
imagens não é “o que faz com que minha representação de alguém seja minha representação
desse alguém”. (Wittgenstein, 1984, p. 176). Para Wittgenstein, o que é válido para a
representação é o mesmo para expressão, ou seja, a descrição verbal pode substituir a
representação. Rorty, em A filosofia e o espelho da natureza (1994, p. 174), ao discutir os
dois tipos de representações (intuições e conceitos), que segundo ele estão em desuso no
movimento analítico, defende a representação de um ponto de vista holístico como o resultado
da conversação entre o dado, o contingente e o necessário. Isso significa que devemos fazer
distinções entre o que temos diante de nós, o que nossa mente acrescenta e o controle do que
temos na mente, para a ‘“reconstrução do racional’ de nosso conhecimento” (Rorty, 1994, p.
175).

Os problemas da noção de representação por imitação ou semelhança, seja como


apreensão de um objeto presente, seja na dificuldade de percebermos a relação entre ambos,
sofreu, e ainda sofre críticas incisivas. A noção de semelhança na representação abordada por
Gombrich (2007), fundamentada na análise psicológica da representação pictórica, diz que a
semelhança na representação tem a ver com “relações”. Tem a ver com o que ele chama de 149
“acento pessoal”, ou seja, o modo pessoal adotado pelo artista ou “estilo” e o olhar do 6
observador. Para ele, a representação fiel de um objeto está muito mais vinculada às convenções
e a educação adquirida ao longo da vida, do que aos aspectos peculiares do objeto, pois “Toda
a cultura e toda a comunicação dependem das interações entre expectativa e observação [...] a
relação entre o esperado e o experimentado.” (Gombrich 2007, p. 53). O que significa que para
Gombrich a semelhança é satisfeita à medida que obedece a relações vinculadas ao que estamos
habituados. No âmbito da representação convencional Gombrich e Goodman concordam.
Porém, Goodman refere-se à representação como um sistema de símbolos, enquanto para
Gombrich os símbolos são “ilusões”.

A representação como intencionalidade do autor da obra de arte é outra teoria que não se
sustenta. Em primeiro lugar, porque podemos não ter acesso à intenção do artista. Em segundo
lugar, porque o autor pode não ter a competência suficiente para convencer o espectador de sua
intenção. Em último lugar, por causa do caráter convencional, pois o que pode ser um carretel
para o artista pode ser uma ampulheta para o observador. Woolheim (2002) defende que aquilo
que o artista representa não é qualquer coisa, mas algo específico ou meramente de um tipo
específico, “pois toda pintura representacional representa alguma coisa de um tipo especial”
(Woolheim, 2002, p. 70). Desse modo, se a pintura estiver representando um objeto específico,
estará representando tudo o que este objeto é. Ora, sabemos que não é possível representarmos
“tudo” o que um objeto é numa pintura. Se representarmos um carretel, podemos estar
representando um brinquedo, mas não um conjunto de átomos, um pedaço de madeira ou de
plástico. Se tudo pode ser um objeto, nada também pode, afinal nada pode ser copiado em plena
posse de suas propriedades (Goodman, 1976, p. 6).

Capítulo II

Para esta pesquisa optou-se pela perspectiva qualitativa, o que possibilita a diversidade de
procedimentos, abarcando abordagens interpretativas do tema estudado, permitindo ao
pesquisador trabalhar com seu objeto dando sentido e/ou interpretando fenômenos (DENZIN
& LINCOLN, 1994). Este modelo de pesquisa envolve-se com significados mais profundos das
relações e busca desvendar informações sobre o sujeito pesquisado, neste caso, a representação
149
da memória do artista Iberê Camargo na série Carretéis. Na diversidade metodológica
possibilitada pela pesquisa qualitativa estão presentes os estudos de caso, a análise de 7
experiências pessoais e histórias de vida, sendo que as técnicas podem ser as mais variadas,
abrangendo, entrevistas, registros fotográficos, observações, análise de documentos, entre
outras.

Nesse sentido, o trabalho será de observação e análise da obra plástica e textual do


artista, bem como autores relacionados ao tema. A obra plástica está contida no espaço de maior
acervo do artista, ou seja, a Fundação Iberê Camargo, e as obras textuais estão disponíveis em
bibliografias, periódicos e referências digitais. Para esta análise, serão descritos documentos e
identificadas às relações entre eles, onde serão explicados usando uma linguagem que admite a
aplicação aos eventos analisados de forma mais adequada ao que este estudo propõe: a narrativa
tropológica proposta por Hayden White, juntamente com um dos modos de referência oferecido
por Nelson Goodman, a metáfora. Para isso o método utilizado incluirá análise de bibliografia,
identificação seleção e classificação de obras pictóricas e textuais de Iberê. Também serão
usadas estratégias como a análise formal, que para White é entendida como conteúdo. O
conteúdo da obra pictórica é construído por elementos cromáticos e formais, orgânicas ou
geométricas, elementos estes que serão considerados para a análise desta investigação.

Como técnica de recolhimento de dados utilizará procedimentos como: registro


fotográfico de documentos e obras artísticas do artista; material historiográfico, bibliográficos
e periódicos; documentos originais e pesquisa na Fundação Iberê Camargo, situada à cidade de
Porto Alegre. Logo após, estas técnicas serão aplicadas ao material recolhido que utilizarão,
junto à produção textual, três linguagens plásticas exploradas pelo artista, o desenho, a gravura
e a pintura da série Carretéis, das quais serão selecionadas para análise, cinco obras de cada
linguagem.

Para dar aporte à análise do material recolhido, esta pesquisa terá como fundamentação
teórica metodológica a proposta de representação historiográfica de Hayden White, mais
especificamente a narrativa tropológica. Aliado as noções de narrativa figurativa em White
buscar-se-á um paralelo com a noção de metáfora em Nelson Goodman; ainda que este aplique
símbolos verbais para a descrição e metáfora para a expressão, entendemos que por serem

149
análogas, linguagem plástica e linguagem verbal, conforme propõe Goodman, a metáfora pode
ser empregada em ambos os casos. Neste caso, o que se propõe na construção do texto é um
diálogo entre as propostas relativistas de White e Goodman. Do primeiro a sugestão 8
tropológica, mais especificamente a metáfora, para a narrativa histórica, e do segundo a
proposta da metáfora na expressão para a análise da obra de arte. Como técnica de recolhimento
de dados utilizará procedimentos como: registro fotográfico de documentos e obras artísticas
do artista; material historiográfico, bibliográficos e periódicos; documentos originais e pesquisa
na Fundação Iberê Camargo, situada à cidade de Porto Alegre, onde se encontra seu maior
acervo e documentos referentes ao tema aqui estudado. Logo após, estas técnicas serão
aplicadas ao material recolhido utilizando três linguagens plásticas utilizadas pelo artista, o
desenho, a gravura e a pintura da série Carretéis, das quais serão selecionadas para análise,
cinco obras de cada linguagem.

Para dar aporte à análise do material recolhido, esta pesquisa tem como fundamentação
teórica metodológica a proposta de representação historiográfica de Hayden White, mais
especificamente a narrativa tropológica. Aliado as noções de narrativa figurativa em White
buscar-se-á um paralelo com a noção de metáfora em Nelson Goodman; ainda que este aplique
símbolos verbais para a descrição e metáfora para a expressão, entendemos que por serem
análogas, linguagem plástica e linguagem verbal, conforme propõe Goodman, a metáfora pode
ser empregada em ambos os casos. Para White (2006, p. 193) “um relato narrativo pode
representar um grupo de eventos que tem a força e o significado de um épico ou uma estória
trágica, e um outro pode representar mesmo grupo – com igual plausibilidade e sem violar
nenhum registro factual – descrevendo uma farsa.” A opção por este método, que oferece fendas
flexíveis aos estudos, alia-se ao campo artístico, que, tanto em sua produção quanto em sua
leitura, pode ser relativizado. “Existe uma inexpugnável relatividade em toda representação do
fenômeno histórico.” (WHITE, 2006, p. 191). Neste sentido, a narrativa tropológica garante
maior diversidade ao que se refere à interpretação da história, pois as afirmações não são apenas
factuais, mas constituem-se de componentes “retóricos e poéticos pelos quais o que seria uma
lista de fatos é transformado em estória.” (WHITE, 2006, p. 193). Para White, está contido no
empenho do historiador, assim como no empenho do romancista, o intermédio até o leitor, em
que são alternativos os modos de linguagem empregados para descrever certo campo de
fenômeno, ou seja, são alternativas as “estratégias tropológicas”. (WHITE, 1994, p. 145).

A palavra tropo, que “no grego clássico significa ‘mudança de direção’, [...] e nas 149
línguas indo-européias modernas por meio de tropus, que em latim clássico significa ‘metáfora’ 9
ou ‘figura-de-linguagem’”, do inglês moderno que expressa o termo como style, e que
diferenciado da conceituação lógica e da casta ficção, “chamamos de discurso.” (WHITE, 1994,
p. 14, grifo do autor). A questão da representação tomada por White refere-se à representação
histórica. Neste modelo de representação White inverte a formulação debatida nas artes visuais
– que busca verificar os elementos “históricos” de uma obra “realista”, ao questionar quais são
os componentes “artísticos” da historiografia “realista”. Neste aspecto, o método empregado
por White é por ele denominado “formalista” (WHITE, 1995, p. 19), onde busca identificar os
elementos estruturais das descrições históricas de diversos historiadores do século XIX. Este
método não está sujeito à natureza dos “dados” utilizados, sejam eles de suporte teórico ou
explicativo, mas “depende, isto sim, da consistência e do poder iluminador de suas respectivas
visões do campo histórico.” (WHITE, 1995, p. 19).

White repreende a capacidade de alguns historiadores em alocar o histórico e o mítico


em dois polos, o que coloca a representação histórica como mais ou menos realista. “O
historiador deve interpretar os seus dados, excluindo de seu relato certos fatos que sejam
irrelevantes ao seu propósito narrativo.” (WHITE, 1994, p. 65). Desse modo, sustenta uma
historiografia onde a interpretação e a explicação tendem a conciliar-se “de modo a dissolver a
sua autoridade de representação do ‘que aconteceu’ no passado ou de explicação válida da razão
por que aconteceu como aconteceu”. (WHITE, 1995, p. 66). Aos diversos tipos de interpretação
da história White denomina “Meta-história”, que como sinônimo de “Filosofia especulativa da
história”, afirma que não pode haver história restrita sem a hipótese de uma meta-história. Este
pressuposto adota a oposição da vertente tradicional e rejeita o mito da objetividade. A abertura
que White sustenta, diz que o historiador diante a uma sequência de eventos pode interpretá-los
em formato de enredo, sejam de narrativas com formas de romance, de tragédia, de comédia. A
“estória” que o historiador busca “encontrar” antecede ao enredo, mas é revelada representando
uma estrutura reconhecível relacionada a um modelo essencialmente mítico. “Na narrativa
histórica, a estória está para o enredo assim como a exposição do ‘que aconteceu’ no passado
está para a caracterização sinóptica daquilo que toda a sequência de eventos contidos na
narrativa poderia ‘querer dizer’ ou ‘significar’”. (WHITE, 1994, p. 75). White busca romper
com a dicotomia existente no tradicional discurso histórico, onde há uma diferença entre a 150
explicação dos fatos e a estória contada sobre eles. No modelo clássico do discurso histórico
haveria a noção de que na explicação dos fatos estaria a realidade e na estória estaria a 0
imaginação. Na primeira, por ser considerada a literal, conteria a verdade, enquanto que na
segunda, por ser figurativa, abrangeria a falsidade. White defende que a verdade pode estar
contida no modo como o fato é narrado, pois “Há muitas histórias que poderiam passar por
romances, e muitos romances que poderiam passar por histórias, considerados em termos
puramente formais (ou diríamos, formalistas).” (WHITE, 1994, p. 137-138). Do mesmo modo,
quando Goodman diz que fazemos mundos, isso significa que fazemos versões815 e as versões
verdadeiras fazem mundos, “Tudo o que se pode dizer como verdade de um mundo depende
da ação de dizer – não do fato de que o que dizemos seja verdadeiro, se não de que o que
dizemos como verdade (ou como correto) participa e é relativo, a uma linguagem ou a outros
sistemas de símbolos que utilizemos.” (GOODMAN, 1995, p. 74). Como afirma White (1994),
não é a questão de levantar algum conflito entre os tipos de verdade, correspondência e

815
Sobre a noção de “versões de mundos” em Goodman, ver GOODMAN, Nelson. Ways of worldmaking.
Indianapolis: Hackett Publishing, 1978.
coerência, pois assim como a narrativa histórica precisa de coerência, a narrativa ficcional
necessita de correspondência. Na visão do autor, grande parte das “disputas historiográficas
[...] versa precisamente sobre a questão de saber qual dentre os muitos protocolos linguísticos
deve ser utilizado para descrever os eventos em controvérsia, e não sobre que sistema
explicativo deve ser aplicado aos eventos a fim de lhes revelar o sentido.” (WHITE, 1994, p.
150, grifo do autor). Os historiadores estudados por White, como Michelet, Ranke, Tocqueville,
Burckhardt, entre outros, reconheciam que qualquer grupo de eventos pode ser descritível de
maneiras variadas. Não há uma única maneira “correta” de se relatar algo, sem que
posteriormente não seja feito algum modo de interpretação. Desse modo, White avança o
debate referente às noções de que a honestidade da historiografia esteja submetida a duras
terminologias corretas e cientificas ou ao uso comum da linguagem. O que ele reconhece “é
que a linguagem comum tem suas próprias formas de determinismo terminológico,
representados pelas figuras de linguagem sem as quais o discurso em si é impossível.” (WHITE,
1994, p. 151).

Compreendendo a intepretação da história como um modo de referência – fatos


históricos, no discurso narrativo, o que White (2006) denomina de “figurativo”, Goodman 150
(1976) denomina de “metafórico”, mesmo que o último use o termo para se referir não somente 1
à linguagem verbal, mas também a linguagem plástica. Porém, ambos concordam que há uma
mudança de direção da representação, tanto na linguagem “figurativa” quanto na “metafórica”.
White (2006, p. 199) cita Lang sobre esta questão: “Lang assegura que a linguagem figurativa
não apenas muda a direção de literalidade de expressão, mas também retira a atenção do ‘estado
de coisas’ sobre o qual se pretende falar.” É possível contar a mesma história escolhendo uma
opção de narrativa para fazê-lo, sem que esta seja afetada em sua “verdade”. “Se for apresentada
como uma representação figurativa de eventos reais, então a questão da sua verdade cairia sob
os princípios que governam nossa forma de ver a verdade de ficções.” (WHITE, 2006, p. 194).
Aqui ousamos fazer outro paralelo entre White e Goodman. Quando Goodman (1978) defende
versões de mundos afirma que, apesar de toda a ficção ser literalmente falsa, alguma é
metaforicamente verdadeira, pois nenhuma versão de mundo é mais ou menos verdadeira do
que outra. Por exemplo, se transportarmos uma verdade literal a outro domínio podemos ter
uma falsidade literal ou uma verdade metafórica. Enquanto que a veracidade da metáfora é
compatível com a falsidade literal, a verdade metafórica contrasta com a falsidade metafórica
assim como a verdade literal com a falsidade literal. Para esclarecer melhor, Goodman afirma
que a maioria dos termos são ambíguos, seja literal ou metaforicamente e apresentam extensões
diferentes, mas isso não encobre a distinção entre a verdade literal e a metafórica (GOODMAN,
1995, p. 191). O uso da metáfora na linguagem diferencia-se, de maneira significativa, do uso
literal, mas não por ser menos compatível, menos prático e mais independente da verdade e da
falsidade do que o uso literal.

O fato singular é que a verdade metafórica é compatível com a falsidade


literal; uma oração que seja falsa quando se toma literalmente pode ser
verdadeira ao considerar-se metaforicamente. [...] As palavras têm com
frequência tantas aplicações metafóricas diferentes, como aplicações literais
distintas. (Goodman, 1995, pp. 117-118)

A verdade metafórica não é mais relativa que a literal. Para Goodman, a afirmação
verdadeira dependerá do sistema de classificação assumido. Ao fazermos classificações literais
do mesmo modo corretas, podemos chegar a diferentes verdades literais que podem estar em
conflito, isto é, “Podemos também transportar uma classificação literal para outro domínio e
obtermos assim uma classificação metafórica.” (D’OREY, 1999, p. 434). A verdade literal não 150
2
pode ser considerada como única realidade, pois há múltiplas versões de mundos reais.

White (1994, p. 91) propõe quatro estratégias tropológicas como as principais para a
narrativa, a saber: a metáfora, a metonímia, a sinédoque e a ironia. A primeira, a metáfora, é a
opção metodológica para a narrativa interpretativa desta pesquisa, pois “não importa o que ela
faça, afirma explicitamente uma similaridade numa diferença e, pelo menos implicitamente,
uma diferença numa similaridade. A isso podemos chamar provimento de sentido em termos
de equivalência.” (WHITE, 1994, p. 92). Ou ainda, “Quem quer que originalmente codifique o
mundo no modo da metáfora estará inclinado a decodificá-lo – ou seja, ‘explicá-lo’
narrativamente e analisa-lo discursivamente – como um amálgama de individualidades”
(WHITE, 1994, p. 144). Por exemplo, ao invés de dizermos sobre a pintura dos carretéis da
década de 60 de Iberê Camargo: “aquela mesinha com carretéis, [...] foi se tornando cada vez
mais simples, a mesa desapareceu; normalmente, ela se resumiu a uma linha apenas, depois
desapareceu a linha, aí os carretéis levitaram, compreende, ganharam outra dimensão.”
(CAMARGO, 2006, p. 83), podemos dizer: “aqueles personagens, os carretéis, foram flutuando
no espaço e ganhando movimento e leveza necessários para romperem com o poder da
gravidade e os limites do suporte”. Nota-se que no segundo enunciado foi usado uma
transferência de significados próprios das palavras, o que White (1994) chama de
“anormalidade” linguística. Para este modelo de “anormalidade” ele utiliza como exemplo a
obra de Darwin “A origem das espécies” e diz que esta “deve ser lida como um tipo de alegoria
– uma história da natureza que pretende ser entendida literalmente, mas que apela, em última
análise, para uma imagem da coerência e da ordenação que constrói apenas por meio de ‘desvios
linguísticos’.” (WHITE, 1994, p. 150).

Ao analisar a função simbólica da arte na obra Languages of art (1976), Goodman


considera minuciosamente os diversos sistemas simbólicos e os processos de simbolização
pelos quais essa função demonstra-se. A obra é originária de um material acumulado de seis
palestras pronunciadas em 1962, cuja relevância foi tamanha que anuncia o começo de
discussões que mesclam arte e linguagem. Como afirma o autor na introdução da obra, esta
apresenta duas vias de investigação. Uma via tem início no primeiro capítulo e expõe as
principais formas de simbolização na arte que são a representação e a exemplificação. A outra
via, que começa no terceiro capítulo, aborda questões referentes ao problema prático da
falsificação das obras de arte. Na última parte da obra, sexto capítulo, funde as duas vias 150
retomando as linhas gerais da teoria geral dos símbolos816 esclarecendo questões de caráter 3
estético. Neste trabalho, Goodman faz uma analogia entre a representação artística e a descrição
verbal, pois afirma que ambas integram a construção e caracterização do mundo. As
representações pictóricas são imagens que funcionam semelhantemente às descrições verbais.
Elas fornecem identidade a uma classe de objetos, que pertencem concomitantemente a certa
classe ou classes de imagens, ou de narrativa(s) verbal(ais). Em A metáfora viva (2005), Paul
Ricouer elabora uma complexa demonstração da linguagem poética como referencial
encontrando apoio na teoria de Goodman. A partir da análise de Languages of art (1976),
Ricouer sustenta que a tarefa de Goodman é esclarecer o funcionamento dos tipos de símbolos
verbais e não verbais, da descrição para a linguagem e da representação para as artes (Ricouer,
2005, p. 353). Ricouer aproxima Goodman de Cassirer e de Peirce. No que diz respeito a
Cassirer, há uma afinidade para com as formas simbólicas. No que diz respeito a Peirce, há uma

816
Goodman usa “símbolo” como “[...] um termo muito geral e neutro. Abrange as letras, as palavras, os textos,
as imagens, os diagramas, os mapas, os modelos e mais coisas, mas não veicula qualquer implicação com o oblíquo
e o oculto” (Goodman, 1976, p.xi)
afinidade quanto ao pragmatismo. Os sistemas de símbolos proposto por Goodman, segundo
Ricouer, “‘fazem’ e ‘refazem’ o mundo” (Ricouer, 2005, p. 353) e o caráter nominalista e
pragmático da obra é considerado a partir do pressuposto segundo o qual na experiência estética
não há distinção entre o emotivo e o cognitivo. Neste âmbito, o estatuto da arte não se limita a
contemplação, mas vai além, em defesa de uma estética funcional. Segundo Ricoeur (2005, p.
363), no plano da referência, Goodman relaciona a metáfora verbal e a expressão metafórica
não verbal, ordenando adequadamente as categorias da referência da seguinte forma: para a
denotação aplica uma etiqueta; para a exemplificação aplica uma amostra; para a descrição
aplica os símbolos verbais; para a representação aplica os símbolos não verbais; para aquilo que
possui uma propriedade aplica a literalidade; e para aquilo que expressa aplica a metáfora.
Como vimos, ao proporciona uma abordagem simbólica da arte Goodman (1976) apresenta
como um dos modos de referência de uma obra de arte, a expressão. Para ele, a expressão
exemplifica817 por meio da metáfora. Para Goodman referente literal é aquilo que possui
literalmente uma propriedade e pertence a um determinado domínio, enquanto que referente
metafórico é aquilo que possui metaforicamente uma propriedade, ou seja, pertence a outro
domínio ao qual foi aplicado. (GOODMAN, 1976, p. 50). Neste sentido, podemos dizer que no 150
exemplo dado acima, sobre os carretéis de Iberê Camargo, houve uma transferência de domínio.
Ou seja, a transferência verbal das palavras, levadas de um campo a outro, implicou na 4
transferência de domínio. Tomemos como outro exemplo o que Gullar diz ao analisar as obras
da série Carretéis de Iberê. Segundo Gullar, “as últimas referências explícitas ao mundo
exterior se apagam, e agora os carretéis que já não aparecem carretéis, flutuam no espaço do
peso da condição natural” (GULLAR, 1983, s/n. p.). O uso da metáfora pode estar na afirmação
de que os carretéis apresentam “leveza”, ou seja, os carretéis são denotados metaforicamente
pelo predicado ser “leve”. Assim como os carretéis exprimem a propriedade “leveza” em razão
de sua estrutura formal, exprime a propriedade “leveza” metaforicamente como símbolo
estético passível de gerar significados.

Em muitas obras da série Carretéis Iberê adota a metáfora do carretel exemplificado


como um brinquedo de infância. A interpretação de que “o carretel é um brinquedo de infância”
está relacionado não somente a identificação isolada da extensão da aplicação literal de

817
Para mais esclarecimentos sobre exemplificação buscar a obra de Nelson Goodman, Languages of art: an
approach to a theory of syimbols. Indianápolis and New York, Bobb-Merril, 1976.
“brinquedo de infância”, mas também do esquema que foi transferido ao termo alternativo
“brinquedo de infância”. Neste sentido, aproximamo-nos do que Goodman diz sobre a
metáfora, isto é, a metáfora “é uma questão de ensinar a uma palavra velha artimanhas novas –
tem a ver com aplicar uma etiqueta velha de uma maneira nova.” (Goodman, 1976, p. 69).

Das diversas maneiras de “fazer mundos” (GOODMAN, 1978), às diversas maneiras de


“narrar a história” (WHITE, 1994), este estudo alia os dois autores. White considera o trabalho
do historiador como “uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa que
pretende ser modelo, ou ícone, de estruturas e processos passados no interesse de explicar o
que eram representando-o.” (WHITE, 1995, p. 18, grifo do autor). Diz que um historiador não
é melhor que o outro pela natureza definidora de eventos, mas que é o modo como o historiador
estrutura o texto que dá o enfoque mais correto à pesquisa histórica. Enquanto que para o
relativismo de Goodman as diferentes maneiras de organizar e classificar as coisas são
igualmente possíveis, mesmo quando divergentes. Nenhuma versão-de-mundo é mais
verdadeira que outra, pois não há critério externo que permita avaliar tal situação. Assim, as
versões-de-mundo podem ser corretas ou incorretas dependendo de seus objetivos
(GOODMAN, 1978, p. 120). É partindo destes pressupostos que esta pesquisa propõe 150
interpretar, a partir de uma narrativa relativizada (figurativa/metafórica), como a memória de 5
Iberê Camargo foi representada na série Carretéis.

CONCLUSÃO

Este trabalho encontra-se em andamento e o exame de qualificação foi apresentado pela


pesquisadora e aprovado pela banca no mês de setembro de 2016. A banca está composta pelos
seguintes professores: Jorge Luiz da Cunha-Orientador (UFSM); Charles Monteiro (PUC-RS);
Sandra Regina Simonis Richter (UNISC); Semíramis Corsi Silva (UFSM); e Maria Catarina
Chitolina Zaninni (UFSM).

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TEMPORALIDADE E NAÇÃO EM “DIE NATIONALITÄTENFRAGE UND
DIE SOZIALDEMOKRATIE” (1907) DE OTTO BAUER*

Simone Maciel Margis**818

RESUMO

Otto Bauer publicou sua obra “Die Nationalitätenfrage und die Sozialdemokratie” em um
período cujo tema da nação inquietava não só na questão política interna austríaca – com as
investidas cada vez maiores de nacionalismos contrários ao Estado multinacional da Áustria -,
mas também como questionamento do movimento marxista a respeito dos antagonismos entre
internacionalismo de classe e as identificações dos trabalhadores com seus respectivos Estados-
nações. Desta forma, a questão da nacionalidade vinculada ao austromarxismo tem como
intenção elucidar, nas palavras de Bauer, “uno de los fenómenos sociales más complicados, un
complejo de las manifestaciones sociales más variadas” (BAUER, 1907, p. 3). E a forma

150
encontrada por Otto Bauer para que o conceito fosse finalmente encarado como objeto pensado
racionalmente foi demonstrar didaticamente que uma nação é formada por uma rede de
comunidades que se organizam hierarquicamente, cujo desejo de se chegar a um conceito
racional de nação acabou por trazer à tona dois dos grandes formadores da identidade dos 8
indivíduos: a comunidade natural (Naturgemeinschaft) e a comunidade cultural
(Kulturgemeinschaft). Assim, este trabalho, vinculado ao projeto de pesquisa “O Conceito de
Comunidade de Destino na Obra „Die Nationaltätenfrage und die Sozialdemokratie‟ (1907) de
Otto Bauer”, ao Grupo de Pesquisa “História Intelectual nos Séculos 19 e 20: Filosofia, Cultura,
Política”, coordenados pelo Profº Dr. Carlos Henrique Armani e às pesquisas realizadas no
desenvolvimento da minha dissertação vinculada ao Programa de Pós Graduação em História
da UFSM, tem como objetivo investigar a temporalidade que envolve o conceito de nação em
Bauer, mais precisamente, a questão da atemporalidade intrínseca que a comunidade natural, a
partir da ideia de hereditariedade, contém em seu significado.

Palavras-chave: Nação; temporalidade; História Intelectual.

INTRODUÇÃO

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria. Bolsista
Capes/DS, email: syssamargis@gmail.com
No próprio seio do pensamento marxista, a visão das mudanças de organização social e
política na Áustria, cujos preceitos estavam firmemente ancorados em um sistema agrário e
pequeno burguês, fez com que se tornasse necessário criar uma forma de se pensar esta nova
realidade econômica e cultural bastante diversificada e multiforme no cenário intelectual
marxista. Cenário este que fez parte da comunidade acadêmica da Universidade de Viena que,
segundo Galissot (1984), teve como estímulo a filosofia neokantiana e a “excepcional floração
intelectual da Viena daqueles anos” (GALISSOT, 1984, p. 227). Dessa forma, a intenção para
o desenvolvimento de trabalhos teóricos era trazer para dentro do movimento austromarxista
novas formas de enxergar esta realidade. Naspalavras de López (2011):

Era necesario, por tanto, posicionarse desde un punto de vista «crítico», y esto
implicaba una revisión del legado de Marx, otorgando bases sólidas a la teoría y
avanzando en campos que no se encontraban suficientemente desarrollados en su obra
(por ejemplo en una teoría sobre el Estado y sobre la nación). Esto dio lugar a una
práctica teórica flexible y atenta al diálogo con diversas tendencias, ya que creían que
esta actitud era imprescindible para otorgarle un firme estatus científico y actualidad
práctica.(López, 2011, p. 12).

Bauer escreve que o surgimento do movimento austromarxista se deve muito à


150
atmosfera de debates que envolviam diferentes áreas das ciências, inclusive dentro da
Universidade de Viena. Para ele: 9

Todos crecieron en una época en la que hombres como Stammler, Wildenband y


Rickert combatían al marxismo con argumentos filosóficos; así estos compañeros
sintieron la necesidad de confrontarse con las modernas corrientes filosóficas. Sí Marx
y Engels habían partido de Hegel, y los marxistas que los sucedieron, del
materialismo, los más jóvenes ‘austromarxistas’ se basearon en parte en Kant y en
parte en Mach. Pero lo demás, en los ambientes universitarios austriacos ellos debían
confrontarse con la chamada escuela austríaca de economía política; y también esta
confrontación influyó sobre el método y la estructura de su pensamiento. (BAUER,
1907, p. 10).

Para Baumer, este “retorno a Kant” esteve ligado a um movimento de revolta contra o
Positivismo daqueles tempos, com o intuito de limitar o campo científico. Segundo Baumer:

A ciência estava, nesse momento, a reexaminar os seus fundamentos, em parte como


resultado de novas descobertas empíricas, e em parte também por causa do movimento
de “retorno a Kant”, na filosofia. Começando a partir da limitação kantiana do
conhecimento dos fenômenos, um grupo de cientistas-filósofos, a maior parte dos
quais alemães, propôs-se purificar a ciência de todos os vestígios metafísicos,
limitando-a às experiências sensíveis e, por último, questionar se alguma vez podia
ser completamente libertada de subjectivismo. (BAUMER, 1977, p. 135-136).

O racionalismo filosófico kantiano aparece como base no pensamento de Bauer e o


acompanha durante toda a sua teorização da nação. Mesmo que no prefácio da segunda edição
de Die Nationalitätenfrage e Die Sozialdemokratie, de 1924, Otto Bauer admita que
desenvolveu novas concepções a partir de seus estudos posteriores, a forma de encarar a
problemática envolvendo sua questão nacional não abandona Kant. Bauer explica que “así
superé mis kantianas enfermidades infantiles y em conexión con ello revisé también mis
opiniones metodológicas”, mas admite que:

[…]si hoy tuviese que exponer mi teoria de la nación modificaría el modo de


exposición y expresaría más de una idea de manera distinta a como lo hice en 1906.
Pero así solamente cambiaría el modo de exposición de la teoría, y no la teoría misma
(BAUER, 1924, p. 7).

Segundo Galissot, a inspiração de Bauer nas formulações da chamada corrente


151
Neokantiana na produção de sua obra está em “como filosofia do conhecimento, o neokantismo 0
dirige a atenção dos jovens marxistas para a consideração da esfera intelectual e cultural[...]”
(GALISSOT, 1984, p. 227). Porém, importante ser mencionado aqui que o caráter neokantiano
do austromarxismo não pode, de maneira nenhuma, ser considerado como homogêneo dentre
os intelectuais do movimento. Segundo López, a força motriz do emprego das teorias críticas
desenvolvidas por Kant entre os intelectuais austromarxistas se deve à busca de critérios de
cientificidade e na tentativa de desenvolver uma corrente teórica coerente (López, 2011, p. 12).
Este aspecto é perceptível na obra de Bauer, cujo interesse em desenvolver um conceito de base
científica a partir de um método de análise crítico baseado numa gama de autores de diversas
áreas das ciências – como a Biologia, referente às teorias sobre a herança pela durabilidade do
plasma germinal de Weismann e a pangênese de Darwin, a Psicologia e a Antropologia, como
alicerces do entendimento da importância de uma comunidade de caráter natural e cultural na
formação da identidade do indivíduo organizado coletivamente – culmina em um ensaio que
questiona o conceito de nação, próximo ao que Kant fez com relação à obra Crítica da Razão
Pura, na qual Kant sugeriu que, antes de utilizarmos a razão para a análise e explicação do
mundo, devemos pensar a própria razão e seus limites. A crítica da razão nacional, para Bauer,
está no entendimento de que “No es [o conceito de nação] una explicación, sino algo por se
explicar” (BAUER, 1924, p. 30).

A questão da nacionalidade vinculada ao austromarxismo tem como intenção elucidar,


nas palavras de Bauer, “uno de los fenómenos sociales más complicados, un complejo de las
manifestaciones sociales más variadas” (BAUER, 1907, p. 3). Deste modo, a necessidade de se
compreender o fenômeno nacional ultrapassa o âmbito da política interna austríaca e abarca
uma questão muito maior envolvendo a política internacional e a relação entre nação, o
movimento operário e as diversas comunidades de caráter que compõem o homem como um
ser social.

A questão da nação tornou-se, para Bauer, uma necessidade frente à realidade a qual o
novo movimento austromarxista estava disposto a encarar. Dessa forma, Die
Nationalitätenfrage und die Sozialdemokratie, de 1907, apresenta-se como um exercício teórico
ancorado nas peculiaridades de um marxismo desenvolvido na Áustria e na filosofia racionalista
kantiana. A perspectiva de Bauer em agregar cientificidade a um conceito que até então
circulava entre discursos líricos e nas assembleias populares, bem como fazer frente às
151
discussões levantadas pela escola austríaca de economia, levou Bauer a discutir o conceito de 1
forma a se chegar a um juízo afirmativo sintético aos moldes da discussão de Kant em sua obra
Crítica da Razão Pura, entendendo que nação não é um fenômeno que se explica por si mesmo,
mas sim algo que deva ser explicado. E a forma encontrada por Otto Bauer para que o conceito
fosse finalmente encarado como objeto pensado racionalmente foi demonstrar didaticamente
que uma nação é formada por uma rede de comunidades que se organizam hierarquicamente –
mas que dependem umas das outras para existirem – para que se chegue ao conceito maior da
nação: a Comunidade de Destino.

Capítulo I - Crítica da nação

Começaremos a análise da extensa obra de Otto Bauer a partir de sua definição sintética
sobre a nação. Para Bauer, “La nación jamás es otra cosa que comunidad de destino”. É sob
este juízo que o autor austromarxista desenvolve toda a sua teoria da nação, desde a forma com
que o conceito é utilizado erroneamente por aqueles que não se importaram em pensar
racionalmente sobre ele até a estrutura hierárquica de comunidades que o compõem. Dessa
maneira é que Bauer expõe o conceito de comunidade de caráter nacional como “al complejo
de connotaciones físicas y espirituales que distinguen a uma nación de outra su caráter nacional”
(BAUER, p. 24). O entendimento disto acarreta na noção de que o caráter nacional é a
explicação do porquê de um grupo de indivíduos reagirem de forma relativamente semelhante
sob a influência de estímulos externos.

Antes de entrarmos no sistema hierárquico de Bauer, faz-se necessário entender as


motivações que levaram Otto Bauer a pensar criticamente sobre o tema. Para que o processo
de construção racional do conceito de nação fosse realizado, Bauer sentiu a necessidade de se
alertar sobre os abusos cometidos até então na formulação de discursos legitimadores nacionais
e as implicações de seus possíveis usos. Para ele:

En una época de grandes luchas nacionales, apenas si tenemos recién los primeros
despuntes de una teoría satisfactoria de la essencia de la nación. Y, no obstante,
necesitamos esta teoria. [...] Quien quiera entender la ideologia nacional, quien quiera
criticarla, no puede esquivar la pregunta por la esencia de la nación. (BAUER, 1907,
p. 23). 151
Esta busca pela essência da nação acabou por abrir lacunas e colocar em cheque as
2
perspectivas que até então julgavam o fenômeno nacional como manifestação atemporal de
indivíduos coletivos. A razão de ser da nação estaria, nesta perspectiva nacional atemporal,
assegurada no passado encarado como entidade ou localidade onde residiriam as lembranças
esquecidas e de onde a rememoração as extrairia. (RICOEUR, 2012, p. 331). Nesse sentido, a
legitimação da atemporalidade do ser-nação estaria intimamente ligada ao passado, já que o
caráter imutável do discurso resultaria da seleção de memórias caracterizadas como coletivas.
O passado possui papel fundamental no que diz respeito à tríade temporal dos discursos
nacionais, já que é dele que resulta o salvo-conduto que repreende qualquer questionamento
sobre a legitimidade da nação e justifica as ações deste grupo profundamente enraizado em
ações pré-determinadas por seus ancestrais, ou seja, é do passado que resulta a ideia de
obstinação e de luta pela existência (BAUER, 1907, p. 24). Para Bauer, porém, a determinação
do caráter nacional como atemporal se constitui como um “abuso que se há hecho del cencepto”,
já que “ante todo, se há atribuido injustamente al caráter nacional uma durabilidade que se pode
desmentir históricamente” (Ibidem, p. 24).

Bauer compreende que o papel da História – de forma reflexiva e não como salvo-
conduto - para apreender a relatividade da nação é essencial, tendo em vista a formação
complexa dos grupos humanos e a relação destes com o meio se dá de forma diferente com
relação ao tempo. A comunidade de caráter nacional, com relação à temporalidade, é vista como
modificável, já que o fator tempo tem extrema importância no entendimento da nação. A
pergunta sobre as origens de determinado grupo que se enxerga como nação deixa de ter um
caráter legitimador – como nos discursos nacionalistas apontados por Levinger e Lytle (2001)
em sua tríade da retórica nacionalista, em cada dimensão temporal tem papel fundamental no
discurso que se diz nacional e tem como objetivo mobilizar o povo para um devido fim comum.
Em suma, a invocação do passado tem um caráter de rememorar um fato considerado originário
e trazê-lo ao presente de forma a compará-lo com a situação que se mostra em sua
contemporaneidade. Para Bauer, porém, invocar no passado algo que possa ser considerado
originário da nação não seria possível, tendo em vista o caráter modificável das características
que envolvem a comunidade de caráter nacional, bem como dos estímulos externos com os 151
quais estes grupos humanos estão em constante contato. Afinal, “Cuándo hablamos de un
3
caráter nacional alemán nos referimos a las connotaciones caracteriológicas comunes de los
alemanes de determinado siglo o decenio” (Bauer, p. 25).

Interessante notar que Bauer tende a compreender os diversos fatores que compõem o
indivíduo como ser social autônomo e não como alguém suscetível a simples agregações
culturais apenas por estar em contato com elas. Dessa forma, o caráter nacional compõe apenas
um dos laços identitários que um indivíduo pode desenvolver no decorrer de sua vida. Trata-se
aqui do caráter nacional como comunidade relativa, já que “puesto que cada connacional, con
toda su concordancia en las connotaciones comunes a la nació entera, tiene además, y sin
embargo, connotaciones individuales” (p. 21).

A formação do intelecto do ser a que Bauer se refere está ligada às teorias, ainda que de
forma inicial, desenvolvidas com o advento da Psicanálise onde as manifestações psíquicas do
individuo diferem da ideia generalizante do espírito. O Volksgeist (espírito do povo) suprime
estas manifestações do pensar, do agir, do sentir e do querer individual. Bauer entende as ações
individuais a partir de uma ruptura com a ideia do Geist (espírito) da qual se manifesta uma
espécie de força que conduz as ações:

El espíritu del pueblo es uno de los modos de manifestarse de lo divino; el individuo,


uno de los modos de manifestarse del espíritu del pueblo. Fichte arribó a esta
metafísica de la nación, aunque antes (p. 52 de la edición de Reclam) haya llegado
muy cerca del concepto empírico correcto de nación. Resulta característico del
idealismo dogmático poskantiano que incluso allí donde éste consigue comprender
correctamente un fenómeno desde el punto de vista empírico-histórico, no se da por
satisfecho con ello, sino que quiere convertir el fenómeno empírico científica y
corretamente determinado en una forma de manifestación de una essencialidad
metafísica diferente de él. (BAUER, 1907, p. 23).

Servindo-se da filosofia kantiana para se contrapor a essa ideia, em que já não é mais
possível reconhecer nenhuma substância “anímica” na compreensão da psique humana, o
Volksgeist nada mais significa do que um “espectro romântico”. A razão nos faz entender que
o sentir, o querer e o imaginar são manifestações que se originam a partir das experiências
empíricas do indivíduo, e não como resultado de um simples espectro que dita as ações coletivas
de forma uniforme. A partir disso, Bauer compreende que o “espiritualismo nacional también
descansa en una falta de lógica” (p. 28). Otto Bauer considera um verdadeiro abuso determinar 151
4
o modo de agir dos indivíduos pelo próprio caráter nacional de que provinham. Ao observador
que determinasse o modo de pensar e agir de indivíduos apenas por fazerem parte de um
determinado coletivo não estaria levando em consideração as particularidades e as vontades de
cada indivíduo, o que seria um erro. Uma nação que abrange o singular e o coletivo não deve
diminuir as escolhas individuais como meros reflexos de uma predeterminação maior. Entender
as ações individuais a partir da ruptura com a perspectiva de alma coletiva da qual se manifesta
uma forma que predetermina as ações dos indivíduos em forma de substância animista seria
admitir as diversas manifestações presentes no coletivo, ou seja:

A menudo, también se há omitido injustamente que junto a la comunidad de caráter


nacional se da de toda uma serie de otras comunidades de caráter, las más importantes
de las cuales son, con mucho, la de classe y de la profesión. Respecto a ciertas
connotaciones, el obrero alemán concuerda con cada uno de los demás alemanes; esto
vincula a los alemanes a uma comunidad de caráter nacional. Pero el obrero alemán
tiene connotaciones comunes con sus compañeros de clase de todas las demás
naciones; esto hace de él un miembro de la comunidad de caráter internacional de la
clase. (BAUER, 1907, p. 25).
Podemos entender neste trecho, além da ressalva de Bauer sobre o caráter relativo que
a nacionalidade divide no campo da formação do intelecto individual, as primeiras colunas que
sustentam a teoria central desenvolvida por ele: a identificação internacional da classe
trabalhadora como vontade coletiva, ou seja, a comunidade de destino
(Schicksallgemeinschaft). A identidade de classe forma, na teoria de Bauer, uma das variantes
da formação do individuo como ser social coletivo, mas não é a única. Insere-se neste contexto
de formação a comunidade de caráter nacional e o que dela provém.

Segundo Benedict Anderson, Bauer desenvolveu Die Nationalitätenfrage und


Sozialdemokratie como forma de demonstrar que Socialismo e Nacionalismo podiam constar
na mesma frase sem causar tensões teóricas nem mesmo estranhamento, desde que a nação
fosse pensada racionalmente a partir dos pressupostos marxistas, mesmo que contrariando
muitos dos aspectos do próprio movimento; “Bauer contestou a ideia, então sustentada por
muita gente da esquerda, de que a vitória do socialismo criaria uma espécie de cosmopolitismo
plano e uniforme” (ANDERSON, 2000, p. 10). A similaridade dos fenômenos – como o
capitalismo – não significava identidade plena de classe, por exemplo. Otto Bauer acreditava
151
que o desenvolvimento da comunidade (Gemeinschaft) – ao estilo da diferenciação entre 5
comunidade e sociedade de Ferdinand Tönnies819 – se daria a partir da vontade referente a um
fim comum – o destino. “Essa vontade” escreve Anderson, “sujeita a mudanças constantes na
luta real, era precipitada – através da linguagem e dos hábitos comuns da vida cotidiana, da
cultura comum e, vez por outra, das instituições políticas comuns – no que ele chamou de
caráter nacional” (Ibidem, p. 10).

O caráter nacional entendido como vontade – ou destino – contém em seu significado


uma rede conceitual do qual provém toda a análise necessária para o seu entendimento. Forma-
se aqui a complexa rede hierárquica de conceitos formando o significado racional do caráter
nacional a partir de dois significantes fundamentais: a natureza e a cultura. Bauer contrapõe o
primeiro conceito a todas as teorias nacionais que se utilizam de argumentos cujo essencialismo

819
Mientras la sociedad (gesellschaft) se caracteriza por conformarse a través de una vinculación por normas
«exteriores» (como la moral, el derecho, la lengua, etc.), la comunidad (gemeinschaft) surge por la acción duradera
de una misma fuerza, el mismo modo de existencia o el mismo destino, transformándose en un vínculo intrínseco,
y por lo tanto una voluntad esencial. (LOPEZ, 2011, p. 19).
metafísico é encarado como fator de legitimação. A comunidade natural se apresenta como
elemento da hierarquia conceitual que legitima a análise científica do caráter nacional; a
comunidade cultural abarca as características que formam o indivíduo além das pré-
determinadas pela natureza.

Capítulo II - Hierarquia conceitual da Comunidade de Caráter Nacional

Na formação da hierarquia conceitual de significados da nação – ou comunidade de


caráter nacional – Bauer considera dois fenômenos principais no que diz respeito às conotações
que unem e fazem os indivíduos agirem de forma relativamente semelhante aos estímulos
externos: a comunidade natural (Naturgemeinschaft) e a comunidade cultural
(Kulturgemeinschaft), cada uma delas ocupando lugar de igual importância nesse sistema. Para
entender este sistema hierárquico de conceitos, devemos retornar às considerações de Bauer
acerca da crítica racional da nação a partir da ideia de caráter nacional.

O conceito chave na teoria nacional de Bauer circula em torno da Comunidade de


Caráter Nacional, que engloba todas as conotações referentes ao entendimento do mesmo. 151
Apenas o caráter nacional sustenta em seu significado os processos os quais Bauer assinala
6
como importantes na apreensão crítica daquilo que se quer denominar nação. Assim, o caráter
modificável e relativo formam inicialmente a apreensão do significado do caráter nacional que,
segundo Bauer, não se explica por ele mesmo.

Dando seguimento ao sistema, o caráter nacional é entendido por Bauer como


Comunidade de Destino. Mais do que isso, “la nación jamás es otra cosa que comunidad de
destino” (BAUER, p. 43) demonstra que o “destino” ocupa o lugar do topo da hierarquia
conceitual da nação para Bauer. Mais do que isso, o destino – ou a vontade – em uma
comunidade sinalizam a natureza e a cultura da qual provém:

La comunidad de destino tiene efecto, por un lado a través de la transmisión


hereditaria natural de las cualidades cultivadas por el destino comun de la nación, y
por el otro mediante la transmisión de los bienes culturales determinados em su
peculiaridad por el destino de la nación. (BAUER, p. 43).
A comunidade natural à qual Bauer se refere provém muito do que foi difundido pela
ciência no decorrer do século XIX. Em se tratando da importância da questão da
hereditariedade, temos a referida teoria de August Weismann (1834 – 1914) sobre o plasma
germinal, que vai de encontro à teoria de Charles Darwin (1809 – 1882) sobre a pangênese.
Weismann concluiu que a passagem dos caracteres paternos e maternos se deve pelo fato de
que as células responsáveis pela reprodução são inalteradas e se conservam no organismo dos
descendentes, diferentemente de Darwin, que assinalou a formação dessas células reprodutivas
a partir das informações coletadas de outras células do corpo humano dos pais. O caráter
inalterável destas características passadas dos pais para os filhos teve um grande impacto no
que se refere ao entendimento da formação nacional e dos laços que unem os indivíduos, já que
estas características dão à comunidade de caráter nacional um sentido de perpetuação e
materialidade à nação.

Para Bauer, porém, estas conotações científicas sobre a hereditariedade apenas


demonstram a importância das relações naturais dos indivíduos nacionais, mas nunca a levando
como salvo-conduto da formação das identidades nacionais. Para López:

Pero si estas versiones organicistas y cuasinaturalistas eran rechazadas por la mayoría


151
de los miembros de la Segunda Internacional, la particularidad del análisis de Bauer
consiste en su énfasis en que, lejos de tratarse de un mero constructo ideológico 7
burgués, o un fenómeno real pero de importancia fundamentalmente táctica en tanto
secundario frente al conflicto de clases, la conformación de las comunidades de
carácter nacional eran un hecho social. (LÓPEZ, 2011, p. 17).

A comunidade natural representa a materialidade na teoria da nação de Bauer por


apresentar o caráter científico de toda a sua obra. Embora se contraponha ao ideal de
atemporalidade no qual possam recair aqueles que se baseiam apenas na questão natural na
legitimação dos discursos nacionais, Bauer encara a comunidade natural como elemento de sua
hierarquia conceitual justamente por demonstrar as variáveis que perpassam as identidades.

Até 1906, ano em que Bauer finaliza a sua obra, as teorias acerca da hereditariedade
permeavam os discursos apenas como suposições no que se referia aos caracteres passados de
geração para geração. Nesse sentido, Bauer acaba citando a teoria do “plasma germinal” de
August Weismann, de 1893, que tinha como objetivo rebater Darwin (Teoria da Pangênese) e
Lamarck (Herança dos Caracteres Adquiridos) a partir de seu experimento com vinte gerações
de camundongos. Wesimann tentou provar, desta maneira, que mesmo o indivíduo sofrendo
mudanças físicas durante sua vida, estas não são transmitidas à prole. Assim, contrariando a
característica da nação apontada por Bauer de mutabilidade, a teoria do plasma germinal acabou
atribuindo certa noção de durabilidade ao caráter nacional. Mesmo contrariado com a ideia de
atribuir simples materialidade à nação como forma de legitimá-la, Bauer considerou que mais
importante do que as características herdadas biologicamente dos antepassados, são as
características desenvolvidas após o nascimento, provenientes do convívio social:

[...]procuramos explicar primero las acciones de una nación a partir de sus hábitos
actuales de vida, cuya eficácia es, em rigor, indudable, y sólo en la medida en que esto
no nos lleve a ningún resuldado perguntaremos por los efectos de las condiciones de
vida de los antepasados, que por via de la herancia también operan sobre los
descendientes. (BAUER, 1924, p. 41).

Em contrapartida, mesmo defendendo o caráter modificável da nação, em certo


momento Bauer aponta “Las cualidades herdadas por una nación son nada más que el
precipitado de su pasado o, como quien dice, su historia congelada” (Ibidem, p. 40). Para esta
questão, o próprio autor aponta que “Nuestro problema no es el surgimiento de determinado
caracter nacional, sino la comprabación de los médios con que una comunidad de caracter
151
nacional puede generar en geral latransmisión de los biéns culturales. (Ibidem, p. 44), onde 8
demonstra a importância da Comunidade Cultural entrelaçada à problemática da
hereditariedade. Bauer compreende que a busca pelo entendimento do caráter nacional deve se
começar pelo processo formal de seu surgimento, e não pela procura simplória de seu conteúdo.
Para Bauer “Tenemos que ver el processo formal de surgimiento del caráter nacional a partir
de una comunidad cultural y no la derivación de cualquer caráter nacional determinado quanto
a su contenido” (BAUER, p. 44).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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internacionalismo Meanings of nationalism and internationalism. Tensões Mundiais: revista do
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Isabella Duarte Pinto. O Austromarxismo e a Questão Nacional: Contribuições de Otto Bauer
e Karl Renner. Revista Eletrônica de Ciência Política, vol. 5, n. 1, 2014.
SOMATERAPIA, SAÚDE E ANARQUISMO NA

CRISE DO PARADIGMA MODERNO*820

Giovan Sehn Ferraz**821

RESUMO

Este trabalho visa apresentar a pesquisa "A Somaterapia de Roberto Freire na crise do
paradigma moderno", integrada à Linha de Pesquisa "Cultura, Migrações e Trabalho" do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria, que se
encontra em andamento sob orientação da Professora Doutora Beatriz Teixeira Weber. Nesta
pesquisa, buscamos compreender a criação de uma técnica terapêutica de cunho político, a
Somaterapia, no contexto das décadas de 1970 e 1980 no Brasil. A pesquisa está sendo realizada
em duas frentes: 1) em relação à crise do paradigma moderno e da racionalidade médica, no
contexto em que surgem diversas manifestações em resposta a estas crises, como a contracultura
e as “terapêuticas alternativas”; e 2) em relação às vertentes e dissidências do pensamento
freudiano no ocidente, visto que a Somaterapia é baseada primordialmente na obra de Wilhelm
Reich, um dos discípulos dissidentes de Freud. A Somaterapia é compreendida por seu
idealizador, Roberto Freire, como uma terapia anarquista e libertária, criada a partir de
exercícios corporais para o desbloqueio da criatividade desenvolvidos no Centro de Estudos
152
Macunaíma na década de 1970, com contribuições de Miriam Muniz e Sylvio Zilber, a partir
do contato de Freire com as técnicas reichianas utilizadas pelo grupo de teatro anarquista Living
0
Theatre, ao assistir a sua peça Paradise Now em Paris. No estágio inicial desta pesquisa,
compreendemos a Somaterapia como uma prática terapêutica alternativa que surge como
resposta a um contexto de crise da racionalidade médica moderna, conforme teorizado por
Madel Luz, e de crise da própria racionalidade e de todo o paradigma moderno, conforme
pensado por Boaventura de Souza Santos. Assim, buscamos investigar de que forma os
princípios da Somaterapia se relacionam com a crise da racionalidade moderna e com as
vertentes e dissidências dos pensamentos freudiano e reichiano no ocidente.

Palavras-chave: Somaterapia, Saúde, Roberto Freire

INTRODUÇÃO

O objetivo do presente trabalho é apresentar a pesquisa A Somaterapia de Roberto


Freire na crise do paradigma moderno, a qual se desenvolve junto à Linha de Pesquisa Cultura,

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Mestrando, Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), giovansf@gmail.com.
Migrações e Trabalho do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Santa Maria, e que se encontra em andamento sob orientação da Professora Doutora Beatriz
Teixeira Weber desde o primeiro semestre de 2016. Esta pesquisa visava, em um primeiro
momento, compreender como a Somaterapia surgiu e se desenvolveu no cenário das
movimentações culturais de questionamento a uma ideia de ordem e cultura hegemônicas no
contexto das décadas de 1970 e 1980. Buscávamos trabalhar em duas frentes: 1) em relação à
crise do paradigma moderno e da racionalidade médica, no contexto em que surgem diversas
manifestações em resposta a esta crise, como a contracultura e as “terapêuticas alternativas”822;
e 2) em relação às vertentes e dissidências do pensamento freudiano no ocidente, visto que a
Somaterapia é definida pelo próprio Freire como uma terapia anarquista de influência reichiana
e anti-psicanalista.

Tratando-se de uma pesquisa em andamento, salientamos o caráter dinâmico da


pesquisa em história, em especial quando esta se encontra em estágio tão incipiente e se
desenvolve junto a um programa de mestrado, com o aprofundamento teórico e as orientações
que lhe cabem. Entre a inscrição do trabalho no presente congresso, com envio do respectivo
resumo, e a elaboração deste texto, um período considerável de tempo se passou e, portanto, 152
muito mudou no caminhar da pesquisa. Este trabalho reflete, assim, esse percurso.
1
Apresentaremos, no primeiro item, o tema abordado, focando nos dois eixos principais da
pesquisa conforme a pensamos neste momento: o objeto da pesquisa, a criação da Somaterapia,
e seu contexto de emersão, a Contracultura. No segundo item, resgataremos as principais
discussões que procurávamos abordar no início da pesquisa e, por fim, no terceiro item, faremos
a devida discussão a respeito das atualizações e mutações que o projeto sofrera desde então.

Contracultura, Somaterapia e Roberto Freire823

822
A antropóloga Madel Therezinha Luz (1999) utiliza o termo “medicinas alternativas”, do qual compreende-se
as terapêuticas alternativas como interconectadas, não como um conceito, mas como um termo institucional, tal
qual definido originalmente pela Organização Mundial da Saúde, em 1962, para designar uma “prática
tecnologicamente despojada de medicina, aliada a um conjunto de saberes médicos tradicionais” (LUZ, 1999, p.
15), porém o termo posteriormente passou a abarcar também “práticas terapêuticas diversas da medicina,
geralmente adversas à esta medicina” (LUZ, 1999, p. 15). A autora ainda acrescenta que “atualmente, esse termo
se reveste de grande polissemia, designando qualquer forma de cura que não seja propriamente biomédica” (LUZ,
1999, p. 15).
823
Este item tem caráter de apresentação e introdução ao tema e boa parte de seu texto foi retirado do projeto
inicial da pesquisa. Salientamos, assim, que uma devida imersão teórica aprofundada no campo da história da
contracultura e do Brasil contemporâneo ainda não foi efetivamente realizada neste momento da pesquisa.
No início da Ditadura Civil-Militar, em 1964, o Brasil vivia um clima de ufanismo.
Graças à repressão militar, o país tornava-se uma “ilha de tranquilidade” para o capital
internacional. Era o “milagre econômico”: desenvolvimento tecnológico e econômico, obras
faraônicas, estradas, pontes e grandes monumentos para a “nação”; e carros, televisões
coloridas e eletrodomésticos para a crescente classe média urbana. Por outro lado, ou
justamente para possibilitar isso, a censura e a violência da repressão tornavam-se cada vez
mais fortes, principalmente após o AI-5 que jogou na clandestinidade todo e qualquer
movimento de oposição ao regime, o que não impediu que esses movimentos continuassem a
existir e a atuar (CAPELLARI, 2007).

Enquanto isso, nos países capitalistas ocidentais, a chamada Era de Ouro chegava ao
fim, e os problemas enfrentados pelo “socialismo real” pioravam cada vez mais, desacreditando
muitos jovens de esquerda dos países capitalistas. Frente a esta crise de ambos os lados, um
novo agente social surgia – a juventude, e o caminho que muitos deles escolheram ia além da
esquerda e da direita. De hippies824 a desbundados825, diversas manifestações culturais
expressavam-se em resposta e recusa ao paradigma moderno num fenômeno que foi chamado
de contracultura (HOBSBAWM, 1995; CAPELLARI, 2007; CARVALHO, 2008). 152
Neste período, não só a cultura capitalista tida como hegemônica ou as formas 2
tradicionais de luta da esquerda foram postas em xeque, mas a própria noção de racionalidade
moderna. A crítica era à própria forma de pensar. Do contato com religiões orientais à expansão
da consciência através de substâncias psicoativas, da crítica ao dualismo e ao racionalismo pela
afirmação do corpo, do sexo, das emoções e das intuições à crítica crucial ao adiamento ad
infinitum da realização – seja ela no consumo capitalista ou na revolução socialista – buscava-
se mais que uma revolução política, uma Revolução Cultural826. Desta forma, proliferaram-se

824
O movimento hippie, surgido nos EUA na década de 60, notabilizou-se, pelo “pacifismo (na época, pelo repúdio
à Guerra do Vietnã), pela negação do nacionalismo e pela recusa aos valores tradicionais da classe média norte-
americana, adotando aspectos de religiões como o budismo, o hinduísmo, o taoísmo e religiões das culturas nativas,
o uso de drogas, como a maconha, o haxixe, o LSD, bem como o ‘amor livre’. Costumavam se apresentar vestidos
com roupas coloridas e brilhantes, com calças boca-de-sino e camisas tingidas, as mais das vezes sob inspiração
de motivos indianos, tendo como predileção musical o rock psicodélico” (CAPELLARI, 2007, p. 27-28).
825
Desbundados era como eram chamados os jovens brasileiros que aderiam ao movimento alternativo ou
contracultural (vide Quadro Teórico, nesta pesquisa). “Desbundar, naquela época [décadas de 60 a 80],
significava, no jargão da esquerda, abandonar a militância. Fulano? Fulano dês-bun-dou, dizíamos, com desprezo”
(SYRKIS, 1980 apud CAPELLARI, 2007, p. 39).
826
Esta Revolução Cultural era compreendida por muitos, ainda na Contracultura, mas com ainda mais força no
movimento alternativo subsequente, como consequência da Revolução Interna. Compreendia-se a “teia cultural”
no período práticas alternativas de cura e manifestações críticas à ciência, inclusive dentro do
campo intelectual (CARVALHO, 2008).

Roberto Freire, o idealizador da Somaterapia, se insere no movimento intelectual da


anti-psicanálise e da anti-psiquiatria, bem como se relaciona fortemente com vários dos temas
da contracultura apontados acima. Nascido em 1927827 em um bairro de imigração italiana de
São Paulo, filho de uma “tradicional família” de médicos e advogados, Freire graduou-se em
medicina e especializou-se em endocrinologia em 1953. Após alguns anos trabalhando como
endocrinologista clínico, iniciou sua formação em Psicanálise através da Sociedade Brasileira
de Psicanálise em São Paulo, mas, devido a divergências teóricas e ideológicas, acabou
interrompendo sua formação ao mesmo tempo em que se aproximava cada vez mais do campo
artístico, literário e político. Militou contra a ditadura pela Ação Popular, foi preso diversas
vezes e numa dessas prisões escreveria seu primeiro romance, Cleo e Daniel (1966). A obra de
Freire abarca desde contos e romances828, a peças e direções de teatro829, memórias e ensaios
científicos sobre a Somaterapia.

A “Soma”, como também é conhecida a Somaterapia, é uma terapia que se pretende


libertária e anarquista, idealizada por Roberto Freire a partir de experiências dentro do Centro
152
de Estudos Macunaíma, junto aos teatrólogos Myriam Muniz e Sylvio Zilber e ao professor de 3
arquitetura da USP Flávio Império, onde pesquisavam técnicas de desbloqueio da criatividade
para atores. Segundo seu idealizador (FREIRE, 2002), a terapia nasceu a partir de seu contato
pessoal com a técnica teatral de um grupo estadunidense de teatro, o Living Theatre, em seu
espetáculo Paradise Now, cuja técnica se baseava nas teorias de Wilhelm Reich. A

como sendo conservada e reproduzida por cada nó, cada indivíduo (CAPELLARI, 2007, p. 104). Assim, ao romper
o nó através da Revolução Interna, a teia cultural naturalmente se desmantelaria, tornando-se, dessarte, Revolução
Cultural. Nota-se uma concepção análoga a esta também nas bases da Somaterapia (FREIRE, 2002, p. 435-439).
Movimento alternativo é a expressão que utilizamos em nossa pesquisa monográfica para designar um movimento
oriundo da contracultura no Brasil, a partir de meados da década 1970, e que teve por principal característica a
idealização das comunidades alternativas (FERRAZ, 2015). A aplicabilidade deste termo a outras realidades que
não à brasileira é uma questão que estava além dos limites daquela pesquisa.
827
As informações biográficas de Roberto Freire foram retiradas de Freire (2002) e Schroeder (2004, 2008).
828
Da obra literária de Freire, pode-se destacar o best-seller Cleo e Daniel (1966) e os romances Coiote (1986) e
Os cúmplices (1995).
829
De sua participação no teatro, destaca-se a direção da peça Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo
Neto, a qual foi musicada pelo estreante Caetano Veloso, a convite de Freire (SCHROEDER, 2008). Freire também
foi presidente da Associação Paulista da Classe Teatral, presidente do Teatro Brasileiro de Comédia, diretor do
Serviço Nacional de Teatro e autor do Plano Nacional de Popularização do Teatro, que usava o teatro “como um
instrumento de conscientização da realidade social e política” (SCHROEDER, 2004, p. 3).
Somaterapia, segundo Freire e seus seguidores, busca libertar o indivíduo da neurose e das
couraças musculares830 causadas pela sociedade repressora através de dinâmicas corporais,
jogos teatrais e capoeira de angola.

Percebe-se a relação de Freire com a contracultura tanto em sua trajetória pessoal, de


militante da Ação Popular no início da década de 1960 a anarquista e crítico dos próprios
movimentos “tradicionais” de esquerda nos anos seguintes, quanto em sua Somaterapia, na qual
o trabalho com as couraças musculares, a compreensão não dualista dos conceitos corpo/mente,
a valorização da sexualidade e o anarquismo se relacionam diretamente com temas da
contracultura, tais como: hedonismo, monismo, pensamento mítico, revolução sexual, crítica
anarquista às instituições e formas tradicionais de luta política (BOSCATO, 2006;
CAPELLARI, 2007; CARVALHO, 2007; CARVALHO, 2008; PEREIRA, 1986; TAVARES,
1985).

A crise da racionalidade médica e a crise do paradigma moderno

Compreendíamos, no início da pesquisa, a Somaterapia como uma prática terapêutica


alternativa, dentro de um contexto de crise da racionalidade médica moderna (LUZ, 1997; 2003; 152
2004; 2011) e crise da racionalidade moderna (SANTOS, 1988). Para Madel Luz (2011), a crise
da racionalidade médica pode ser explicitada por uma tripla cisão:
4

entre ciência das doenças e arte de curar [...], cisão na prática médica de combate às
doenças (práxis) entre diagnose e terapêutica, desenvolvida sobretudo a partir do fim
do século XIX; finalmente, a cisão no agir clínico (Techne) da unidade relacional
terapêutica médico-paciente, através do progressivo desaparecimento do contato com
o corpo do doente, pela interposição das tecnologias "frias", a partir da segunda
metade do século XX (LUZ, 2012, p. 12).

830
Para Reich, segundo Freire (1988), o corpo é “sobretudo um corpo energético se exprimindo pela musculatura
e pela motricidade cuja livre expressão encontra obstáculo no mundo exterior. Segue-se uma dissociação de
pulsões sendo que uma parte se volta contra o Ego. [...] cada pulsão contida por uma defesa faz ela mesma o papel
de defesa contra as pulsões vindas de uma camada mais profunda, e assim por diante. [...] A couraça, produzida
pela imobilização de grande quantidade de energia, realiza um bloqueio afetivo que se exprime por uma falta de
contato autêntico e sua substituição por contatos sociais estereotipados, criando o que se pode chamar de falso
Ego” (FREIRE, 1988, p. 57).
Esta tripla cisão explicaria também, segundo a autora, o florescimento nos últimos 30
anos no mundo ocidental, das terapêuticas alternativas, onde compreendemos se localizar a
Somaterapia de Roberto Freire. Para Santos (1988), é todo o paradigma moderno,
compreendido como dominante, que está em crise. A qual levará a uma transição crucial:

Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em


vez do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em
vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem;
em vez da necessidade, a criatividade e o acidente (SANTOS, 1988, p. 56).

Transição esta que compreendemos se encontrar no seio da contracultura e de muitas


das propostas alternativas que surgiram entre as décadas de 1960 e 1980 em resposta à crise do
paradigma moderno. Madel Luz (2004) trabalha com o conceito de racionalidade como
“conjunto de princípios de organização dos saberes e de sua ordenação do mundo” (LUZ,
2004, p. 57, grifo da autora). Para ela, a racionalidade moderna é uma “estrutura de
racionalidade que se inicia com a Idade Moderna”, sendo que a “Modernidade”, fazendo parte
152
dos dois últimos séculos “faz parte da racionalidade moderna como um todo” (LUZ, 2004, p.
27). A racionalidade moderna deve ser compreendida, portanto, como 5

o avanço histórico de uma forma específica de racionalismo. Um racionalismo


filosófico, é verdade, mas também social, que funciona como estrutura epistemológica
de explicação e ordenação dos seres e do mundo, e como princípio moral das relações
entre os homens e as coisas, e dos homens entre si (LUZ, 2004, p. 59)

Das características do “novo modo de produção de enunciados de verdades” (LUZ,


2004, p. 50), como é compreendido o método científico moderno, interligado ao conceito de
racionalidade moderna, a autora destaca o experimentalismo, que é utilitário, exploratório,
interventor e desbravador. Utilitário, porque “voltado para a solução de problemas imediatos
impostos pela realidade” (LUZ, 2004, p. 51), problemas tais quais a produção agrícola, domínio
dos ventos e oceanos, controle de mares e portos, revoltas populares, guerras, pestes, epidemias,
fomes. Exploratório por buscar “explicações novas para coisas e eventos já clarificados e
explicados pela antiga ordem do saber, mas cuja explicação é julgada insuficiente ou errônea”
(LUZ, 2004, p. 51). Interventor porque “cria instrumentos de observação empírica, iniciando a
era da tecnologia científica” que “ajudará a fazer da racionalidade moderna um modo específico
de produção de verdades: as disciplinas científicas”, de tal modo que “as verdades serão
reconhecidas e validadas pelo emprego do método de sua produção, que será cada vez mais
baseado na observação controlada” (Ibidem, grifo da autora). E, por fim, desbravador por se
constituir em “estratégia de desvelamento de ‘coisas ocultas’ na natureza. Sejam essas ‘coisas’
de ordem material [...], sejam de ordem intelectual [...].” (LUZ, 2004, p. 52).

Boaventura de Sousa Santos (1988) compreende a racionalidade moderna como


presidida por um “modelo de racionalidade” constituído “a partir da revolução científica do
século XVI” e “desenvolvido nos séculos seguintes basicamente no domínio das ciências
naturais” (SANTOS, 1988, p. 48). Para o autor, a racionalidade moderna se tornará o
“paradigma dominante”, um modelo global e totalitário, que “nega o caráter racional a todas as
formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas
suas regras metodológicas” (SANTOS, 1988, p. 48). O autor também ressalta o caráter utilitário
da racionalidade moderna, que é reconhecida “menos pela capacidade de compreender
profundamente o real do que pela capacidade de o dominar e transformar” (SANTOS, 1988, p. 152
51).
6
É consenso entre Luz e Santos que essa racionalidade moderna encontrar-se-á em crise
no século XX, seja na especificidade da racionalidade médica, seja no paradigma dominante
moderno. Para Santos (1988), esta crise “é não só profunda como irreversível”, pautada na
revolução científica que se iniciou com Einstein e sem previsão de fim (SANTOS, 1988, p. 54).
Da “pluralidade de condições” que resultaram nesta crise, o autor destaca, entre outros, o papel
da teoria da relatividade de Einstein, a mecânica quântica de Heisenberg e Bohr e a perda dos
contornos dicotômicos da distinção sujeito/objeto (SANTOS, 1988, p. 54-55).

Luz (1997) defende que há também uma crise da saúde e uma crise da racionalidade
médica moderna. A crise da saúde é vista pela autora “como fruto ou efeito do crescimento das
desigualdades sociais no mundo” (LUZ, 1997, p. 16), agravada por

problemas graves de natureza sanitária, tais como desnutrição, violência, doenças


infecto-contagiosas, crônico-degenerativas, além do ressurgimento de velhas doenças
que se acreditavam em fase de extinção, tais como a tuberculose, a lepra, a sífilis e
outras doenças sexualmente transmissíveis, que se aliam a novas epidemias como a
AIDS. Tudo isto, sem mencionar o consumo de drogas como cocaína e crack [...]
(LUZ, 1997, p. 17).

Quadro este que se torna ainda menos favorável devido à atual “onda político-ideológica
neoliberal, que tem gerado políticas econômicas e sociais agravadoras do quadro sanitário
descrito” (LUZ, 1997, p. 17). A autora, neste trabalho, aproxima-se de uma ideia de crise da
racionalidade moderna em si quando fala da “pequena epidemiologia do mal-estar” – “um mal-
estar difuso presente em grande parte da população urbana trabalhadora, desempregada ou
aposentada” (LUZ, 1997, p. 17). Este mal-estar é compreendido como sendo de “natureza tanto
sanitária como cultural, que tem suas raízes não apenas nas condições de trabalho do
capitalismo globalizado, mas na própria transformação recente da cultura que é seu fruto” que
tem solapado antigos valores humanos e éticos “em proveito da valorização do individualismo,
do consumismo [...]” (LUZ, 1997, p. 18).

Como deve ter ficado claro até aqui, no início da pesquisa compreendíamos a
Somaterapia como uma “terapia alternativa”, que emergiu em um contexto de crise da

152
racionalidade médica e da racionalidade moderna. Nosso objetivo era, portanto, analisar como
se deu a criação desta terapia nesse contexto, e analisá-la, também, em outra frente, em relação
às vertentes e dissidências do pensamento freudiano no ocidente. Na sequência, veremos como 7
o caminha da pesquisa nos levou a outros direcionamentos.

Discussões e atualizações

Sem nos delongarmos muito em questões de cunho aparentemente pessoal, salientamos


apenas, mais uma vez, o caráter dinâmico de toda pesquisa em história, e, em especial, o
percurso e as transformações que nossa pesquisa sofreu desde que foi iniciada. Entre a inscrição
deste trabalho no Congresso e a elaboração do presente texto, o autor desta pesquisa ganhou
muito em aprofundamento teórico na ciência histórica, e, consequentemente, muitos dos
fundamentos da forma de pensar o objeto de pesquisa, bem como a forma própria e a essência
da pesquisa na história como ciência, transmutaram-se substancialmente831. Dessa forma,
destacamos as principais mudanças na forma como viemos pensando a pesquisa832.

a. A crise do paradigma moderno e a crise da racionalidade médica


Retomamos a forma como pensávamos o objeto, descrito algumas páginas atrás da
seguinte forma: “A Somaterapia é compreendida aqui como uma prática terapêutica
alternativa, dentro de um contexto de crise da racionalidade médica moderna e crise da
racionalidade moderna”. Neste momento da pesquisa, já não mais compreendemos nosso
objeto, pelo menos não a priori, como uma terapêutica alternativa, tampouco emergente em um
contexto de crise da racionalidade médica moderna e crise da racionalidade moderna.

A respeito das noções de crise da racionalidade moderna e médica, pensamos que, para
analisar o objeto desta ótica, estaríamos partindo do pressuposto teórico de que existe de fato
uma crise da racionalidade médica e uma crise da racionalidade moderna. Compreendemos que
a averiguação de tais condições de realidade foge muito às limitações desta pesquisa. Além
disso, em uma aproximação incipiente às fontes, percebemos em Freire (1988; 2002) um
esforço de legitimação da Somaterapia enquanto prática científica. Evidência disto é o fato de
Freire demonstrar, em sua autobiografia (FREIRE, 2002), ressentimento pelo não
152
reconhecimento da Somaterapia nos círculos científicos e acadêmicos. Roberto Freire, médico 8
de formação, parece, assim, se aproximar muito mais do que seria expressão da racionalidade
moderna científica que de uma resposta a uma suposta crise desta mesma racionalidade. Freire,
com sua Somaterapia, coloca em xeque a eficácia de práticas como a Psicanálise e a Psicologia
no tratamento e na cura de seus pacientes, mas não parece se contrapôr às bases do método
científico das mesmas. Parece-nos, portanto, que a instituição Ciência não é alvo de crítica por
parte de Roberto Freire e da Somaterapia.

Da mesma forma, embora a concepção de crise da racionalidade médica moderna,


conforme proposto por Luz (1997; 2003; 2004; 2011), ainda nos pareça aplicável, tendo em
vista que a Somaterapia aparentemente se direciona no sentido oposto da tripla cisão proposta

831
Das obras que contribuíram para tal aprofundamento teórico, destacamos: ANKERSMIT (2004), ÁVILA
(2013), BARROS (2005), BONNEWITZ (2013), CHARTIER (2002), CUCHE (1999), DARNTON (1988),
FLECK (2010), GAGNEBIN (2006), JENKINS (2014), KOSELLECK (2014a; 2014b), LATOUR (2001; 2013),
RORTY (1997), RÜSEN (2010; 2007a; 2007b; 2015), WHITE (2006; 2010).
832
Salientamos, entretanto, que tais reflexões na sua maioria são bastante recentes e, portanto, pouco foram
aprofundadas.
pela autora, preferimos não pensar mais a pesquisa nesta direção específica devido à
necessidade de impor limites à pesquisa. Entendemos, também, que enveredar nesta direção
exigiria um aprofundamento que nos distanciaria de outras questões compreendidas como mais
importantes. Além disso, não definimos mais a Somaterapia como uma “terapêutica
alternativa”, uma vez que Luz define este termo como “prática tecnologicamente despojada de
medicina”, ou “práticas terapêuticas diversas da medicina, geralmente adversas à esta
medicina”, e mesmo em seu sentido amplo, no qual o termo é revestido de grande polissemia,
ainda assim a autora diz se tratar de “qualquer forma de cura que não seja propriamente
biomédica” (LUZ, 1999, p. 15, grifo nosso). Neste momento da pesquisa, não somos capazes
de afirmar que a Somaterapia se trata de uma “terapia alternativa” nos parâmetros defendidos
pela autora, uma vez que as relações entre a Somaterapia e as práticas medicinais
“convencionais” ainda não foram devidamente analisadas.

Como vimos anteriormente, além do foco no contexto de crise da racionalidade médica


e moderna, também pretendíamos desenvolver a pesquisa em relação às vertentes e dissidências
do pensamento freudiano no ocidente, principalmente pela difusão da obra de Wilhelm Reich,
um dos discípulos dissidentes de Freud, cujas pesquisas serviram de base à formulação da 152
Somaterapia. Porém, compreendemos que tal empreitada também extrapola os limites da
9
presente pesquisa, uma vez esse caminho dificilmente poderia ser trilhado sem prejuízo ao
aprofundamento dos aspectos centrais do trabalho.

b. A reformulação da pesquisa
Tendo em vista os elementos apontados até aqui, na reformulação da pesquisa vários
aspectos foram transformados, a começar pelo próprio título, que reflete os focos principais da
pesquisa. De “A Somaterapia de Roberto Freire na crise do paradigma moderno”, optamos,
provisoriamente, por “Ciência, saúde e anarquia: criação e desenvolvimento de uma técnica
terapêutica no Brasil das décadas de 1970 e 1980”. Este título traduz melhor os aspectos centrais
da pesquisa conforme a pensamos neste momento, delineia o objeto central - a criação e o
desenvolvimento da Somaterapia -, o recorte espacial e temporal, e os elementos centrais de
discussão, isto é, as concepções de ciência, saúde e anarquismo. Porém, como apontado, este
título também é provisório, e não apenas no sentido de que todo conhecimento científico é
provisório, mas também no sentido de ser intencionalmente provisório. Pensamos que,
possivelmente, debater as concepções de ciência, saúde e anarquismo num mesmo trabalho, em
igual profundidade, talvez se mostre um trabalho demasiado extenso para uma pesquisa a nível
de mestrado. Assim, provavelmente, no decorrer da pesquisa, precisaremos fazer um novo
recorte temático e optar por aprofundar apenas um destes aspectos, mesmo que os outros
também apareçam e sejam discutidos em segundo plano. Outro problema deste título é que ele
omite um aspecto que tem se pensado como sendo de maior centralidade em nosso tema: a
contracultura833.

Nosso objetivo central passou a ser, portanto, “compreender como se criou e se


desenvolveu a Somaterapia, uma técnica terapêutica de pretensão científica e anarquista, e
como a mesma se relaciona com as movimentações culturais de questionamento a uma ideia de
ordem e cultura hegemônicas no contexto das décadas de 1970 e 1980, especialmente a
contracultura”. Optou-se por tratar a Somaterapia como uma “técnica terapêutica de pretensão
científica e anarquista” para não a abordar de forma apriorística com tais adjetivações, mesmo
que, posteriormente, venha a se legitimar a utilização de tais adjetivos. Por ora, sabemos apenas
que Roberto Freire e seus seguidores afirmam sua terapia desta forma, porém há dissensos
dentro do movimento anarquista sobre a pessoa de Roberto Freire ser anarquista ou não 153
(SILVA, 2015), e o caráter científico ou não da terapia ainda não é de nossa alçada definir. Em
0
vez de um suposto contexto de crise do paradigma moderno, optamos por abordar o objeto de
pesquisa em um contexto um tanto mais “palpável”, isto é, o contexto das “movimentações
culturais de questionamento a uma ideia de ordem e cultura hegemônicas nas décadas de 1970
e 1980, especialmente a contracultura”. Porém, este aspecto também já tem sido repensado.
Abordar toda a gama de “movimentações culturais de questionamento...” possivelmente
também se mostre um objetivo por demais extenso, o qual dificilmente poderia ser realizado
sem prejuízo do aprofundamento nos diferentes movimentos834. Dessa forma, pensamos, no
presente momento, em suprimir toda esta sentença e tratar “apenas” da contracultura, como
discutiremos melhor no subitem seguinte835.

833
Sobre este assunto, discorreremos com mais afinco no próximo subitem.
834
Para tal intento, precisaríamos, para começar a pensar, analisar as possibilidades mais “óbvias”, como os
movimentos estudantis, sindicais, socialistas, marxistas, anarquistas, socialistas-cristãos, etc. Além disso, quantos
outros movimentos não teriam de ser analisados a fim de averiguar-se se os mesmos “questionam uma idea de
ordem e cultura hegemônicas” ou não?
835
Junto a este objetivo central, procuraremos, também, compreender de que forma a Somaterapia se relaciona
com o contexto de expansão das atividades terapêuticas alternativas às práticas dominantes do campo “psi” –
c. Contracultura836
Muito recentemente, o autor desta pesquisa deparou-se com um fator subjetivo que até
então vinha ditando os rumos da pesquisa, porém de forma inconsciente. Com as reflexões
incitadas por Rüsen (2010, 2007a, 2007b, 2015), compreendemos o quanto a subjetividade do
historiador está imersa no fazer científico do mesmo e que isso não significa, de forma alguma,
um prejuízo à teoria da história como ciência. Pelo contrário, é justamente ao reconhecer a
subjetividade e trabalhar com ela (e não contra ela), que o trabalho do historiador ganha sua
especificidade racional e científica. Assim sendo, percebemos, finalmente, o quanto vínhamos
rejeitando e “fugindo” da noção de contracultura em nossa pesquisa. Tratar das
“movimentações culturais...” se mostrou ser apenas uma estratégia até então inconsciente de
tentar escapar à análise do fenômeno da contracultura. Isso aconteceu porque ao trabalhar com
a noção de contracultura em nossa monografia (FERRAZ, 2015), deparamo-nos com uma
confusão conceitual de difícil apreensão. Por se tratar de um termo originário primeiramente da
imprensa estadunidense (e não de uma formulação teórica acadêmica), e de ter sido utilizado
das mais diversas formas, principalmente em meios não acadêmicos/científicos, terminamos a
pesquisa monográfica com a impressão de que o termo “contracultura” se trata, sumariamente, 153
de um rótulo utilizado sem critérios definidos para tratar de uma série de práticas, correntes de
pensamento e comportamentos os mais diversos. Em nossa monografia, chegamos a conclusões 1
satisfatórias para o momento acerca da conceituação de termos como “contracultura” e
“movimento alternativo”, porém, na redação do projeto inicial da presente pesquisa, aquelas

Psicanálise, Psiquiatria e Psicologia; compreender de que forma se articula o discurso científico em torno da
mesma e quais as concepções de ciência em debate; analisar quais as influências da Somaterapia, quais as
concepções em debate e como a mesma se apropria desses elementos; e, por fim, compreender como a proposta
da Somaterapia se relaciona com o pensamento reichiano no Brasil e com as concepções modernas de saúde e
terapêutica.
836
Haja vista a limitação deste breve artigo, não abordaremos aqui a discussão conceitual efetiva sobre a
Contracultura. Para uma aproximação mais apurada, ver: Boscato (2006), Capellari (2007), Carvalho (2007; 2008),
Ferreira (2005), Pereira (1986), Tavares (1985). Em nossa monografia (FERRAZ, 2015), também fazemos uma
discussão sobre o conceito, articulando as obras citadas. Para fins de esclarecimento, pensamos a contracultura,
neste momento, como “aquelas movimentações humanas de caráter contestatório que tiveram seu auge nas
expressões da década de 60 nos EUA, sendo marcada principalmente pelo movimento hippie. Compreendemos
suas raízes principalmente na literatura beatnik, porém não pensamos que tal movimento se enquadre no que
chamamos de contracultura, devido a suas peculiaridades e diferenças. Compreendemos também que a
contracultura “acabou” por volta de 1970, dando lugar a um novo movimento que aqui chamamos de movimento
alternativo, com suas particularidades e diferenças em relação à contracultura, justificando assim a separação dos
movimentos em categorias conceituais diversas. Tal compreensão do conceito contracultura não exclui que as
raízes do movimento possam ser anteriores, visto que as fontes em que bebe a contracultura são as mais diversas,
geográfica e historicamente, e que as ondas provocadas pelo movimento que “terminou” na década de 70 ainda
podem influenciar práticas e comportamentos atuais” (FERRAZ, 2015, p. 20-21).
conclusões já não convenciam, e o “medo” da indefinição conceitual agiu sorrateiramente
desviando nosso olhar de aspectos que compreendemos agora como centrais para a pesquisa,
isto é, a contracultura.

Uma reformulação sumária e provisória do objetivo central da pesquisa poderia ser


traduzida, portanto, da seguinte forma: “Como, da contracultura, surgiu e se desenvolveu uma
técnica terapêutica de pretensão científica e anarquista, a Somaterapia”. Poder-se-ia argumentar
a favor da caracterização da contracultura, na formulação acima, enquanto “brasileira”, porém
salientamos que as influências contraculturais que se exerceram sobre a Somaterapia
extrapolam os limites político-geográficos da unidade nacional Brasil. Poder-se-ia, por outro
lado, caracterizar essa “contracultura” como “internacional”, ou “transnacional”, porém aí
entraríamos em um outro debate, no qual se poderia argumentar que a contracultura é, na
realidade, um fenômeno originariamente estadunidense que dali migrou para outros outros
países. O aprofundamento temático e teórico necessário a esse debate é intencionado no
continuar da pesquisa. Outro ponto que poderia ainda ser levantado acerca da reformulação do
objetivo, seguindo a mesma lógica de raciocínio, seria a da caracterização, então, da “técnica
terapêutica” enquanto “brasileira”. A este argumento, não temos grandes discordâncias, apenas 153
salientamos que tal feito só faria sentido se a contracultura, acima, fosse caracterizada enquanto
2
estadunidense, internacional ou transnacional. Sem essa referência por oposição, caracterizar a
“técnica terapêutica” como “brasileira” nos soa como uma caracterização excessiva do objeto
que prejudicaria o caráter objetivo e sintético da formulação do objetivo.

CONCLUSÃO

Nestas poucas páginas, buscamos capturar o retrato de uma prática que está sempre em
movimento: a pesquisa em história. Podemos afirmar, com um percentual elevado de segurança,
que, entre a redação deste trabalho e o fim da pesquisa, muito haverá de mudar ainda.
Entendemos que este caráter dinâmico da pesquisa em nada prejudica o fazer científico, pelo
contrário: o aprofundamento teórico, bem como a pesquisa empírica junto às fontes, só tende a
acrescentar na constante reformulação e aperfeiçoamento das formas como pensamos o objeto
e o tema da pesquisa.
Pré-determinados pelo momento passado da inscrição e redação do resumo, optamos
por apresentar uma proposta narrativa de uma síntese do percurso caminhado pela pesquisa, de
suas primeiras formulações à forma como a pensamos no presente momento da redação deste
texto. As outras possibilidades que vislumbramos, de tratar exclusivamente da pesquisa
conforme a pensávamos anteriormente, ou de tratar apenas de como a pensamos hoje, não nos
pareceram tão profícuas ao diálogo com a comunidade científica, o qual, pensamos, é um dos
objetivos do próprio congresso a que este trabalho se apresenta.

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HISTÓRIA DAS IDEIAS DA LOUCURA E INIMPUTABILIDADE: ESTUDO DE
CASO MANICÔMIO JUDICIÁRIO RS *837

Joice Anne Alves Carvalho**838

RESUMO

Este trabalho propõe analisar brevemente, sob a perspectiva da História das Ideias, as
internações no Manicômio Judiciário do Rio Grande do Sul no decorrer primeira metade do
século XX percebendo os debates intelectuais que corroboram nas constituições das concepções
médico-jurídicas acerca da loucura e da imputabilidade penal. Neste contexto, no Brasil, os
homens da ciência propunham um novo país a se construir pautado no progresso e crescimento
urbano caracterizado pela limpeza social e moral. Desta maneira, pode-se afirmar que este

153
período carregou consigo movimentos intelectuais vinculados ao cientificismo, o que
possibilitou um processo de psicologização do crime. No contexto, o problema eugênico e de
profilaxia social no país adquiria características próprias e era compreendido como algo que 7
necessitava de solução em campo jurídico, social, moral, científico e deontológico. Juntamente
com o avanço das práticas médicas e da psiquiatria constitui-se o caráter do inimputável,
colocando o louco numa categoria de doente sob tutela não apenas do Estado, mas também, e
principalmente, do poder médico.

Palavras-chave: História das Ideias, Inimputabilidade Penal, Manicômio Judiciário.

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Doutoranda em História, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, CAPES,
Joice.carvalho@acad.pucrs.br
INTRODUÇÃO

Este trabalho é resultado inicial de uma pesquisa realizada junto ao corpo documental
do Manicômio Judiciário Maurício Cardoso (atual Instituto Psiquiátrico Forense Maurício
Cardoso) do período que compreende 1925-1950. A pesquisa visa trabalhar com o conceito de
inimputabilidade penal no contexto de análise de maneira interdisciplinar buscando elementos
na História, na Filosofia, no campo das Ciências Criminais e da Saúde para melhor compreender
a perspectiva do período acerca da periculosidade da loucura. No Brasil, no decorrer dos séculos
XIX e XX a perspectiva de mudança e a consciência do devir que os homens da ciência
acreditavam ter estavam vinculadas à ideia de progresso. Neste contexto, o problema eugênico
e de profilaxia social era compreendido como algo que necessitava solução em campo jurídico,
social, moral, científico e deontológico. Juntamente ao avanço das ciências o desenvolvimento
medicina legal e da psiquiatria construiu-se o caráter do inimputável, colocando o louco numa
categoria de doente sob tutela não apenas do Estado, mas também, e principalmente, do poder 153
médico. Neste sentido, pode afirmar que a medicina mental legitimou na construção da ideia de
loucura moral que possibilitaria desvios éticos que seriam de interesse da lei. 8
Desta maneira, o conceito de Medida de Segurança surge e assume a função de regular,
eficientemente, o tratamento aos portadores de patologias mentais. Ao trabalhar com as
constantes medo e esperança, constrói-se o discurso acerca da periculosidade da loucura e o
prognóstico de cura. Neste sentindo, constando-se que se o agente representaria algum perigo
à sociedade, sua internação tornar-se-ia obrigatória. Em um vasto campo de disputa de poder
sobre a constituição da sociedade, as Ciências Criminais e a Psiquiatria Forense defendiam a
necessidade de um espaço e tratamento isolado e diferenciado ao inimputável. A finalidade
seria proporcionar ao indivíduo o devido tratamento para a doença de que é portador,
separando-o dos criminosos comuns e o alocando em uma estrutura específica para isso, tendo
a internação um caráter preventivo e curativo.
Capitulo I – Medicina Legal e Moralização Social no Brasil

No Brasil, no decorrer do século XIX e XX pode-se observar a forte influência do


discurso médico no debate jurídico. Neste sentido, é possível afirmar a existência de uma
retórica médica acerca da definição dos conceitos de vida e morte e suas relações com padrões
de normalidade, cidadania e nação na composição da sociedade brasileira. As narrativas dos
intelectuais vinculados às faculdades de medicina e direito demonstravam uma leitura do que
precisaria se constituir enquanto Brasil, com base em movimentos intelectuais importados da
Europa e ressignificações a partir da realidade local.
Pode-se afirmar que o contexto de eugenia no Brasil constituiu-se com influência dos
quatro mundos expostos por Frankiln Baumer (1990) em sua análise sobre o século XIX.
Constatam-se elementos do Estado-Nação com base no Romantismo, no Positivismo e no Neo
Iluminismo, constituindo assim, um discurso evolucionista/darwinista com debate de ciência e 153
tecnologia para fins sociais. Evidenciando o que Baumer destaca em sua obra, que foram os
acontecimentos do século XVII e XVIII que possibilitam o evolucionismo no XIX, nota-se o
9
deslocamento e ressignificação da ideia de Deus em relação ao desenvolvimento científico. As
reformas ocorridas neste período na Europa e nas regiões colonizadas – como reformulação das
universidades e expulsão dos jesuítas para laicizar a educação – possibilitaram o
desenvolvimento da ideia de progresso/fluxo. Assim, com um pensamento otimista e racional
constitui-se a perspectiva de que se poderia reformar a sociedade a partir da construção do
homem. Neste sentido, acredita-se que o homem não nasce bom nem mau, podendo ser
moldado e melhorado e, cabendo a ele construir tudo, inclusive o próprio homem.
Os aspectos do movimento romântico trazem a esse contexto a ênfase no individuo meio
a ideia de um organismo social. Pensa-se a partir do biológico na constituição do ser. A
perspectiva de mudança e a consciência do devir que estes homens da ciência acreditavam ter
estavam atreladas ao almejo do progresso e crescimento urbano. Com as ideias do Novo
Iluminismo radicaliza-se o devir, o pensamento de movimento continuo contribui fortemente
para o desenvolvimento do pensamento evolucionista, no qual desloca-se o foco de Deus para
o Homem. A primeira metade do século XX carrega consigo os movimentos anteriores, mas
também, situa-se no cerne de um debate que também contemplaria as questões do
subconsciente. Possibilitando assim, um processo de psicologização do crime.
Desta forma, mesmo considerando as especificidades das narrativas dos homens da
ciência da primeira metade do século XX no Brasil, pode-se dizer que estes intelectuais
apresentaram uma proposta de regeneração da sociedade brasileira, a qual se pautou no
evolucionismo e cientificismo europeu. O problema eugênico e de profilaxia social era
compreendido como algo que necessitava mais que um processo de seleção e esterilização.
Juntamente com o avanço das práticas médicas e da psiquiatria constrói-se o caráter do
inimputável, o conceito de responsabilidade criminal medido pela sanidade e periculosidade,
colocando o louco numa categoria de doente sob tutela não apenas do Estado, mas também, e
principalmente, do poder médico. Desta maneira, a medicina mental corrobora na construção
da ideia de loucura moral que possibilitaria desvios éticos que seriam de interesse da lei.
Demonstrando assim, o saber médico que contribuiria para definição do campo jurídico.
Michel Foucault desenvolveu o conceito de biopolítica839 e tanatopolítica840 em sua
teoria da disciplinarização e politização da vida reconhecendo um elemento racial na 154
transformação de uma para outra. Desta forma, o cerne da análise não está em caracterizar a
morte biológica, mas no conceito de morte política e da instrumentalização discursiva para a 0
manutenção do temor desta. A narrativa presente nas teses médico jurídicas - de intelectuais
que se utilizaram de perspectivas eugenistas e higienistas no período – demonstra a ciência
pautada pela medicina influenciando a questão jurídica sobre o direito à vida plena. Neste
sentido, em tais discursos médicos do período a vida humana era caracterizada em sua dinâmica
de potencialização dos corpos, demonstrando uma perspectiva a fim de otimizar o tempo de
vida.
Problematizando a higiene mental dentro do projeto eugênico para o Brasil observa-se
também, a postura biodeterminista para a responsabilidade penal. Ciências como a biologia,

839
Compreendendo que o controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência
ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de
tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia bio-
política (FOUCAULT, 1997, p. 80).
840
Considera-se que as políticas da morte só serão produtivas à medida que estejam a serviço da morte da política.
Desta maneira, entende-se que a noção de morte deve ser compreendida como esvaziamento de qualquer
possibilidade de dotar a vida de um sentido e de promover a emancipação humana.
antropometria, psiquiatria e medicina articuladas geravam regimes de verdade sobre a sanidade.
Até a segunda metade do século XIX os doentes mentais no Brasil não tinham assistência
médica específica, ficam em prisões ou em salas especiais nos hospitais gerais. A partir de 1830
um grupo de médicos, principalmente no Rio de Janeiro, passa a reivindicar entre outras
medidas de higiene pública, que se construa um hospício para os alienados. Exigência de que
os loucos uma vez classificados como doentes mentais fossem tratados medicamente,
defendendo a existência de alas específicas para aqueles que apresentassem risco a sociedade.
Tal proposta eugênica desenvolve um processo de disciplinarização dos corpos, a partir
do controle do corpo, das atitudes, comportamentos, hábitos e discursos. No contexto estudado,
visava a produtividade máxima das potencialidades num aperfeiçoamento contínuo tendo como
fim mais produção para configurar uma sociedade progressista. Segundo Foucault (1997) no
século XVIII quando “nasce a prisão” há um processo de isolamento total ou parcial do
indivíduo, já o hospício, para além do isolamento constitui o louco como doente mental
individualizado a partir da instauração de relações disciplinares de poder. Nesta relação de
poder estabelecida por estas instituições, o poder médico sobre o paciente o aliena de qualquer
participação na construção da verdade sobre si mesmo. 154
Às portas fechadas, entre quatro paredes, aqueles que detêm o poder definem quem é
o indivíduo através de julgamentos, classificações, medições a fim de individualizá-
1
lo e assim direcionar sua convicção mental a realizar ações, assumir atitudes e
padrões mentais de pensamentos para que seja utilizado ao máximo pela máquina do
poder (FOUCAULT, 1997, p.150).

A ideia de “Deus Mortal” na imagem do rei com poderes divinos no século XVII
desenvolvida por Baumer (1990) pode ser deslocada no contexto de análise para a figura do
médico, pois é ele quem define os parâmetros de normalidade para fins de progresso nacional,
e, a partir destes parâmetros compõem-se as leis e as definições dos modos de viver e
regramentos morais e sociais. Desta maneira, são eles que detêm o poder sobre a vida. Pela
análise de Foucault (1997), o poder político da medicina instrumentalizado pela ideia de higiene
pública tem como alguns de seus objetivos o controle da circulação e organização social. Ou
seja, o poder de definição de “onde colocar os diferentes elementos necessários à vida comum
da cidade”. O processo de medicalização das cidades, no século XVIII, demonstra além do
contato da prática médica com outras ciências, as primeiras noções de salubridade 841, e o fato
da medicina urbana incumbir-se das “condições de vida e do meio de existência”.
O contato com ciências como a botânica e o deslocamento para um hospital que permitia
a experimentação e observação, a doença passa a ser compreendida como um fenômeno natural,
podendo assim, ser passível de classificação e catalogação. Frente a questão médico-jurídica,
também há incorporação de tecnologias que permitiriam com base científica o questionamento
e intervenção sobre a natureza.

Capítulo II – Periculosidade na Loucura e o Manicômio Judiciário


A história do Manicômio Judiciário Maurício Cardoso (atual Instituto Psiquiátrico
Forense Maurício Cardoso) ainda é pouco explorada devido a dificuldade aos arquivos da
instituição, segundo dados informados pela Secretaria de Segurança Pública e pela SUSEPE842,
o local foi criado através do decreto 3.454 de 1925. Um ano antes o então governador, Borges
de Medeiros, já havia assinado outro decreto autorizando a criação de um local específico para
fins de regulamentar e institucionalizar a assistência aos doentes mentais no Estado do Rio
Grande do Sul. Anteriormente, o funcionamento se dava nas dependências do Hospital São 154
Pedro e o órgão era subordinado à Secretaria de Estado dos Negócios do Interior e Exterior e,
até então, os indivíduos que cometiam crimes eram presos na Casa de Correção. Não podemos 2
deixar de mencionar a importância dos debates promovidos pela Liga de Higiene Mental e
publicações sobre o tema no período entre médicos e profissionais da saúde. Ao analisar as
publicações evidencia-se o forte vínculo com o Hospital São Pedro, para além do debate
intelectual Jacinto Godoy foi um nome proeminente no período, pois, era diretor do hospital no
momento da criação do manicômio e por ele passavam laudos e pedidos de transferência.

Em dezembro de 1937 novo decreto possibilitou nova organização à “Chefatura de


Polícia”, no seu artigo 186, subordinando a Assistência a Alienados ao Gabinete Médico-Legal.
Tal transferência tirou do Manicômio a sua feição inicial de hospital judiciário, equiparando-o

841
Salubridade é a base material e social capaz de assegurar a melhor saúde possível dos indivíduos. E é
correlativamente a ela que aparece a noção de higiene pública, técnica de controle e de modificação dos elementos
materiais do meio que são suscetíveis de favorecer ou, ao contrário, prejudicar a saúde. Salubridade e insalubridade
são o estado das coisas e do meio enquanto afetam a saúde; a higiene pública - no séc. XIX, a noção essencial da
medicina social francesa - é o controle político-científico deste meio (FOUCAULT, 1997, p. 93)
842
Superintendência de Assuntos Penitenciários do Rio Grande do Sul - Orgão que administra o instituto
Psiquiátrico Forense desde 1964.
a qualquer presídio de jurisdição policial, transformando o doente mental em condição de
recluso.

O conceito de imputabilidade penal (a capacidade de culpabilidade) é constituído por


dois elementos: intelectual (capacidade de entender o caráter ilícito do fato); volitivo
(capacidade de determinar-se de acordo com esse entendimento). O primeiro trata-se da
capacidade genérica de compreender as proibições ou determinações jurídicas, tendo o sujeito
poder de prever as repercussões que a própria ação poderá acarretar no mundo social, deve ter,
pois, a própria percepção do significado ético-social do próprio agir. O segundo é a capacidade
de dirigir a conduta de acordo com o entendimento ético-jurídico, sendo que é preciso que o
indivíduo tenha condições de avaliar o valor do motivo que o impele a ação e, do outro lado, o
valor inibitório da ameaça penal.

Compreendendo que o indivíduo não possui aptidão para entender a diferença entre o
certo e errado, este, ao cometer crimes não sofre juízo de culpabilidade. Constitui-se um aparato
legal de proteção e direitos para aqueles que não podem responder por si judicialmente,
aplicando-se aos inimputáveis uma Medida de Segurança, medida esta baseada na
periculosidade e diversa, portando, da culpabilidade. Esta Medida de Segurança surge e assume
154
a função de regular, eficientemente, o tratamento aos portadores de patologias mentais. 3
Anteriormente, estes indivíduos não eram submetidos imediatamente à internação caso não
oferecessem periculosidade à sociedade. Deste modo, o “delinquente louco” continua a não ser
apenado, porém, passa sofrer sanção privativa de liberdade, a medida de segurança.

Na análise das fontes encontradas no IPF843, pode-se dizer que buscou-se a construção
de espaços para a transferência dos inimputáveis para hospitais públicos ou pavilhões separados
até a construção de hospitais próprios para a internação dos inimputáveis. A finalidade da
obrigatoriedade de internação mediante a periculosidade se constrói no discurso de
proporcionar ao delinquente o devido tratamento para a doença de que é portador, separando-o
dos criminosos comuns e o alocando em uma estrutura específica para isso, tendo a internação
um caráter preventivo e curativo.

843
Instituto Psiquiátrico Forense.
A Criminologia e a Psiquiatria forense afirmavam insistentemente que o inimputável
deveria receber um tratamento completamente isolado e diferenciado daquele criminoso
comum. Essa afirmação influenciou o legislador e o jurista a alterar a forma de tratamento
dispensada ao “louco” (esquizofrenia, doenças afetivas e outras psicoses). A presença do
criminoso louco foi constante na história do Brasil, porém, o tratamento dispensado a ele foi
difuso e alterado constantemente conforme a evolução histórica e doutrinária das ciências que
compunham e definiam o caráter do “ser louco”.

CONCLUSÃO

Baumer (1990) argumenta que durante a Idade Média o lugar do homem é de


contemplação, com o método, na modernidade, ele passa a transformar a natureza. Neste
sentido, pode-se dizer que ao mudar a visão de natureza muda-se a visão de homem. Há um
deslocamento da contemplação para o domínio. Para Foucault (1997), “antes do século XVIII,
a loucura não era sistematicamente internada, e era essencialmente considerada como uma
forma de erro ou de ilusão” (p.149), o autor elucida que no começo da Idade Clássica, a loucura 154
era vista como “pertencendo às quimeras do mundo; podia viver no meio delas e só seria
separada no caso de tomar formas extremas ou perigosas” (p.150). Então, no cenário brasileiro
4
qual seria a posição do louco na sociedade?
Levando essas apreciações em consideração e, ponderando a ideia de limpeza urbana
das propostas do período, os hospitais psiquiátricos assim como os manicômios judiciários
tinham o papel de afastar a “loucura” da sociedade “normal”. Para Foucault (1997), os
internamentos que iniciaram no começo do século XIX, coincidiram com o período em que a
insanidade passa ser vista “menos com relação ao erro do que com relação à conduta regular e
normal”. Nesta conjuntura, a ciência médica e o psiquiatra têm o poder de definir a normalidade
e catalogar quando a loucura se torna perigosa, podendo assim, sanar os problemas e desordens
moral e social.
Por estes aspectos brevemente elucidados, pode-se dizer que apesar de momentos
difusos sobre os tipos de tratamento psiquiátrico a seguir, assim como para o psiquiatra francês
Jean Esquirol, a intelectualidade brasileira – refletida na instituição analisada - que promovia o
movimento eugênico tinha argumentações científicas e políticas para o isolamento dos loucos,
como: garantia e manutenção da segurança pessoal dos loucos e familiares; libertação das
influências externas; supressão de suas resistências e paixões pessoais; submissão ao regime
médico e imposição de novos hábitos intelectuais e morais. Promovendo assim, através de uma
psiquiatria moralizante, um poder de adestramento e disciplinarização, no qual o interno além
do isolamento é submetido ao do poder médico, tornando-se um cidadão sem direitos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMER, Franklin. O Pensamento Europeu Moderno. Volume I, séculos XVII e XVIII.


Volume II, séculos XIX e XX. Lisboa: Edições 70, 1990.

Código Penal Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-


lei/Del2848compilado.htm Acesso em: 01/09/2016.

FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Volume 1. 17ª ed. Rio de Janeiro:
Impetus, 2015. 154
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. 5
Oitenta Anos do Manicômio Judiciário. Disponível em:
http://www.ssp.rs.gov.br/?model=conteudo&menu=81&id=5769 Acesso em 15/09/2015.

SANZO BRODT, Luís Augusto. Da consciência da ilicitude no direito penal brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 1996.
A REDE LATINO-AMERICANA DE HISTÓRIA DAS IDEIAS: CONEXÕES
INTELECTUAIS E DISCURSOS IDENTITÁRIOS844

Luciano dos Santos845

RESUMO
O objetivo dessa comunicação é apresentar os resultados parciais de uma pesquisa de
doutoramento desenvolvida na Universidade de São Paulo. Partindo de um grupo variado de
fontes (livros, cartas, atas de eventos, resenhas, regimentos, autobiografias), como também de
uma perspectiva teórico-metodológica que se constrói, por um lado, na intersecção da história
conectada e comparada e, por outro, na história dos intelectuais e história intelectual, da análise
das sociabilidades e das escritas, na relação do cultural com o político, das práticas discursivas
e dos discursos identitários, a investigação tem mostrado que entre meados da década de 1940
e final da década de 1980, se desenvolveu na América Latina uma rede de intelectuais
preocupados em desenvolver reflexões e estudos sobre o pensamento latino-americano. O
refazer do itinerário intelectual e a análise das escritas dos principais membros dessa rede, que
superava as fronteiras do Estado-nação, tem mostrado que para além de uma “prática
historiográfica”, ela se constituiu também em um espaço de discursos identitárias.
Palavras-chave: Rede de intelectuais, História das ideias, Discurso identitários 154
INTRODUÇÃO 6
Entre meados da década de 1940 e final da década de 1980, se desenvolveu na América
Latina uma forma de produzir história das ideias que aglutinou diversos intelectuais em um
projeto que extrapolava as fronteiras do Estado-nação. Paulatinamente, a partir do final da
primeira metade do século XX, as várias iniciativas de âmbitos nacionais foram se conectando
e dando forma a uma verdadeira rede de intelectuais. Os membros dessa rede desejam produzir
estudos de caráter histórico sobre como as ideias filosóficas eram “adaptadas” em contextos
nacionais latino-americanos. Todavia, mais que um “projeto historiográfico”, o verdadeiro
objeto da maior parte dos membros do que chamamos de Rede latino-americana de história das

844
Trabalho apresentado no I Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria
845
Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), professor do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG). Bolsista FAPEG-CAPES, Membro do Núcleo de Estudos e
Pesquisas Interdisciplinares (IFG). E-mail: professorlucianosantos@yahoo.com.br.
ideias (de agora em diante chamada apenas de Rede) era promover um projeto filosófico-
identitário de caráter nacional e\ou latino-americanista.
Neste texto não analisaremos todos os pormenores do processo de desenvolvimento
dessa rede ou a totalidade dos discursos identitários presentes na produção de seus membros,
nos limitamos a abordar três objetivos básicos: primeiro identificamos os “despertadores
geracionais” (SERINELLI, 2006) que promoveram as bases da prática de história das ideias;
depois abordamos o processo de criação e institucionalização da Rede; para, por fim,
analisarmos um dos espaços de sociabilidade intelectual, em que as buscas por construir
linguagens comuns, disseminar ideias, arregimentar novos membros, afirmar afinidades
intelectuais e especificidades regionais davam a tônica das discussões, como foi o caso do: El
Primer Seminario de Historia de las ideas en América(1956). Assim, por mais que aqui não
tenhamos como objetivo principal analisar em profundidade os discursos identitários presente
nas obras dos principais representantes da Rede, à análise de sai formação deixa perceber que
as questões identitárias estiveram ao fundo das preocupações dos intelectuais que davam forma
a essa vertente de história das ideias.

154
Os despertadores geracionais: iniciadores da história das ideias na América Latina
7
As diversas fontes utilizadas nessa pesquisa (textos de caráter biográficos, entrevistas e
livros escritos pelos vários membros da Rede) possibilitaram compreender que alguns
intelectuais assumiram a função do que Jean-François Sirinelli (2006) chama de “despertadores
geracionais”;isto é, de agentes culturais que teriam levado as gerações futuras a se interessar
pela prática de historiar ideias, ao criarem espaços institucionais, promover a circulação de
ideias e a divulgação de “modelos teórico-filosóficos”.
Embora esses “despertadores” tenham existido em vários países da América Latina, os
dois principais focos de produção de história das ideias se desenvolveram no México e na
Argentina. Para tanto contribuiu as iniciativas institucionais de alguns intelectuais e acirculação
das ideias do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955) e do pensamento historicista,
sobretudo de matriz alemã.
No México, os principais responsáveis pela circulação dessas ideias, e também pela
criação das bases do que seria a história das ideias, foram o mexicano Samuel Ramos (1897-
1959) e o espanhol José Gaos (1900-1969). Tanto um quanto o outro,não defendiam uma
concepção clássica dafilosofia como conhecimento atemporal e universal, mas sim uma
perspectiva historicista que os possibilitava defender a historicidade desse conhecimento e o
seu vínculo àsespacialidades nacionais. À defesa dessa concepção levou Samuel Ramos, em
1941, a fundar uma cátedra de Historia de la filosofia en México na Universidad Nacional
Autónoma de México (UNAM). Nela além de ensinar as teorias historicistas, defendia que: “una
de las maneras de hacer filosofía mexicana es meditar sobre nuestra propia realidad filosófica,
la de los filósofos mexicanos y sus ideas” (RAMOS,1943, p.5). Logo depois, 1943, publicou
uma obra com o mesmo nome da cátedra para disseminar suas ideias. Já o espanhol José Gaos,
que havia sido aluno de Ortega, chegou ao México como exilado da Guerra Civil Espanhola
em 1938, e, dois anos depois, criou um Seminario de historia de las ideas na, então, Casa de
España (futuro Colégio de México). Em suas aulas ensinava que embora pela perspectiva de
clássicos da filosofia, como Platão, as ideias fossem entendidas como entidades abstratos,
imutáveis, e atemporais, seria possível perfeitamente a realização de uma história das ideias, na
medida em que a concepção platônica não era a única sobre o assunto, e mesmo que o fosse, a
historicidade das ideias estaria não nelas mesmas, mas nas formas pelas quais eram pensadas e
utilizadas (GAOS, 1940, p. 45). Em várias publicações (1945, 1952, 1954), Gaos defendeu a 154
existência de um pensamento em língua espanhola e refletiu sobre o que chamou de “filosofia
mexicana”. 8
Não demorou muito para que vários jovens começassem a se aglutinar ao redor desses
dois intelectuais. Aquele que mais se destacou foi Leopoldo Zea (1912-2004). Primeiro ele
entrou em contato com Samuel Ramos. Mas, logo depois, se aproximou de Gaos. Com o
pensador espanhol, Zea aprofundou o estudo sobre as ideias de Ortega, como também o
historicismo de Dilthey, a fenomenologia de Husserl, a filosofia da história de Hegel, a
sociologia do saber de Max Scheler, a sociologia do conhecimento de Karl Mannheim. Sob a
orientação do professor espanhol, desenvolveu sua dissertação de mestrado e tese de doutorado,
publicada, em 1944, sobre o Positivismo en México. Ao final da introdução de seu trabalho, Zea
defendia que: “El positivsmo será una doctrina con pretensión universal, pero la forma en que
ha sido interpretada y utilizada por los mexicanos, es mexicana” (ZEA, 1968 [1943], p. 28).
Em seus trabalhos posteriores, em uma perspectiva hispanista, Zea defendia que havia
uma mexicanidade construída em função de um “espíritu ibero”, que fazia esse “ser” não ter
propensão ao preconceito e, sim, à mestiçagem e as relações de “sentido concreto” (ZEA, 1957,
p.225). Isso os levava a não ser afeitos ao “abstracto” e sim a “adaptar” as ideias filosóficas as
“circunstancias mexicanas” (ZEA, 1952, p.23).
Além do México, do outro lado da América, no Cone Sul, se desenvolvia mais um foco
de produção de história das ideias. Nessa região, por mais que Brasil e Uruguai tivessem seu
peso, a Argentina assumia um papel destacado. Assim como no México, as ideias de Ortega
cedo passaram a circular neste país – a primeira vez que o pensador espanhol esteve na
Argentina foi em 1916 –, e parecem ter reforçado o crescente movimento de renovação
filosófica e busca de valorização de elementos nacionais (MEDIN, 1994). Nesse movimento
dois intelectuais importantes foram Alejandro Korn (1860-1936) e José Ingenieros (1877-
1925). Em 1912, Korn publicou um texto que busca abordar as Influencias filosóficas en la
evolucion nacional; dois anos depois, José Ingenieros lançou Las direriones filosóficas en la
cultura argentina. Korn e Ingenieros, ambos professores na Universidad de Buenos Aires
(UBA) e de La Plata, marcaram várias gerações de intelectuais latino-americanos, um desses
foi Francisco Romero (1891-1962), que, a partir de 1937, assumiu a função de Korn na UBA e
em outras instituições. Já em 1938, passou a estabelecer contato com José Gaos e trocar
correspondência em que discutiam os projetos de ensino de história das ideias, a preferência 154
por autores como Dilthey e Ortega y Gasset. Em 1939, Romero, em função de um convite da
Editora Losada, passou a dirigir a coleção Biblioteca Filosófica e a colocar um projeto de 9
difusão do pensamento hispano-americano com várias publicações sobre o pensamento latino-
americano. Logo, depois, em 1940, no Colégio Libre de Estudios Superiores, criou a Cátedra
Alejandro Korn – uma homenagem ao amigo e mestre – para o estudo e a difusão de obras de
intelectuais latino-americanos (JALIF DE BERTRANOU, 2013).
Logo as iniciativas de Romero chamariam a atenção de outros intelectuais que estavam
iniciando as investigações no campo da história das ideias na América Latina, como foi o caso
do uruguaio Arturo Ardao. Seguidor da tradição hispanista José Enrique Rodó e conhecedor
das produções argentinas, Ardao enviou uma carta a Romero, em 19 de junho de 1941, em que
dizia:

Quedo muy interessado en la labor americanista de que son Vd. Centro coordinador,
compartiendo decididamente la preocupación histórica que la preside. [...] Desde que
leí, tiempo atrás, la obra de Korn, Inf.[uencias] Filosóficas en la Ev.[olución]
Nacional, me seduce la idea de trabajos análogos sobre nuestro país (ARDAO,
1941)846.

Fruto dessas leituras e diálogos vai se gestando em Ardao a preocupação de produzir


uma história das ideias no Uruguai. No início da década de 1940, ele publicou vários artigos
sobre essa temática, e, em 1945, lançou seu primeiro livro efetivamente de história das ideias:
Filosofía pre-universitaria en el Uruguay. Em 1946, publicou um artigo, com o título de El
historicismo en Hispanoamerica, em que deixava entender que a melhor forma de pensar uma
filosofia latino-americana era afirmar suas especificidades (ARDAO, 1946, p. 177).
Outro intelectual que também, em meados de 1940, passou a trocar cartas com Romero
e a publicar obras de história das ideias foi o brasileiro João Cruz Costa (1904-1975). Professor
da Universidade de São Paulo, amigo de vários historiadores importantes (Braudel, Febvre,
Holanda, Caio Prado) e critico do que chamava de “imitação ornamental” da cultura europeia,
publicou, em 1945 A filosofia no Brasil. Livro que buscava abordar as formas de “adaptação”
das ideias filosóficas em terras brasileiras e que defendia que havia uma “constância do espírito
prático da boa tradição lusitana” que coordenava a “adaptação” (CRUZ COSTA, 1945, 37).
Essas concepções e o contato comum que esses intelectuais tinham com Romero, 155
0
possibilitou que a partir de meados de 1940 se conhecessem e dessem forma a uma rede de
intelectuais.

A tessitura de uma rede: a viagem de Zea pela a América

Há vários elementos que funcionam como suporte e meios para a ligação entre os
intelectuais: viagens;troca de cartas, de livros e artigos; intercâmbios de pesquisadores, entre
outros elementos que garantem o fluxo da informação e logo a constituição de uma conexão.
No caso da que ocorreu entre os produtores de história das ideias na América Latina houve a
utilização de quase todos esses elementos de ligação, mas um dos que tiveram maior peso nessa
configuração foi à viagem que Leopoldo Zea realizou pela América, entre 1945-1946. Por meio

846
A maior parte das cartas se encontra no arquivo de Francisco Romero e foram disponibilizadas, em 1992, pelo
projeto Memoria Académica, cujo repositório institucional está a cargo da Faculdad de Humanidades y Ciências
de laEducación de laUnversidade de La Plata. Para mais detalhes, acesse o site www.memoria.fahce.unlp.edu.ar..
dessa viagem, o mexicano se tornou uma espécie de elo entre os intelectuais que já vinham
realizando pesquisas e estudos nesse campo de estudo.
Contudo, como lembra Vavy Pacheco Borges (2006, p.222), os indivíduos não
constroem suas escolhas e seus caminhos fora da rede de relações pessoais e dos
condicionamentos sociais de cada época. Nesse sentido, Zea não escolheu desde o princípio o
destino de se tornar o ponto articulador deuma rede de intelectuais. Essa conexão e a
consciência dela foi algo que se construiu no decorrer das relações intelectuais, dos interesses
institucionais de sua época e, principalmente, na medida em que foram tomando conhecimento
das afinidades.

Para que a viagem de Zea fosse possível, muito contribuiu suas relações com José Gaos
e Alfonso Reyes. Graças a esses intelectuais (que possuíam cargos importantes dentro da
estrutura acadêmica mexicana), assim que Zea terminou sua tese de doutorado, recebeuuma
bolsa de estudo da Fundação Rockefeller para realizar uma pesquisa sobre o pensamento latino-
americano. Isto o possibilitou ficar por 4 meses pesquisando na Biblioteca Washington, e mais
um ano em várias instituições de países da América Latina. Depois da primeira parte nos EUA,
Zea seguiu, em 1945, para a América do Sul. Na Argentina conheceu pessoalmente Romero – 155
que já havia preparado os contatos de Zea com outros investigadores, em função de sua enorme
1
rede epistolar (PAREDES, 2012) – e o seu irmão, José Luis Romero (1909-1977); no Uruguai
estabeleceu amizade com Arturo Ardao (1912-2003); em setembro do mesmo ano foi a São
Paulo para estreitar os lações intelectuais com João Cruz Costa (1904-1978), logo depois,
seguiu para o Chile, onde conheceu Enrique Molina. No Peru estabeleceu contato com o
Francisco Miró Quesada (1918-). Continuando sua coleta de documentos e de estreitamento de
laços de sociabilidade intelectual, Zea ainda conheceu, na Bolívia, Guillermo Francovich
(1901-1990); na Colômbia, Danilo Cruz Vélez (1920-2008); no Equador, Benjamin Carrión
(1897- 1979); na Venezuela, Mariano Picón Salas (1901-1965); e, em Cuba, Raúl Roa (1907-
1982), entre outros intelectuais.
Conforme, demostra as cartas trocadas com João Cruz Costa847, acada intelectual que
conhecia, Zea colocava os demais colegas em contato, estimulava a troca de livros e artigos,
convidava-os a publicar seus trabalhos nas revistas mexicanas (com destaque para Cuadernos

847
No arquivo João Cruz Costa, da Biblioteca da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas da
Universidade de São Paulo, há várias cartas de Zea, Ardao, Romero, Francovich e outros intelectuais.
Americanos), falava das novidades, dos grupos de estudos que estavam se formando, das
pesquisas que sobre o passado intelectual estavam fazendo. Enfim, ia tecendo uma verdadeira
teia de intelectuais praticantes de história das ideias.
Pesava para a configuração da Rede o fato da maior parte dos intelectuais terem nascido
no início do século XX eterem vivido em países com problemas econômicos, sociais e políticos
parecidos. Porém, os elementos mais importantes eram: o fato de que todos possuíam interesses
em conhecimento filosófico; haviam seguido carreiras profissionais semelhantes (eram
professores e/ou homens ligados ao mundo da cultura); eram críticos do positivismo, defensores
do historicismo e de estudos que contribuíssem para o que acreditavam ser a afirmação da
identidade cultural de seus países. Assim possuíam afinidades que possibilitava o diálogo;
elementos que os aproximavam e contribuíam para a formação de uma rede de sociabilidade.
Zea, ao relembrar de sua viagem, dizia que:

En ningún momento me senti extraño. La Argentina, como posteriormente Brasil,


Chile, Perú, todo ese conjunto de pueblos de esta América que pude ir conociendo,
era sentido por mí como una natural prolongación. Pude sentir como mías sus

155
preocupaciones ante la dificultad de sus problemas, indignarme cuando la violencia
se hacía presente y dolerme cuando la misma parecía triunfar. Una nueva forma de
sentirse hombre entre hombres, igual entre iguales (ZEA, 1977, p.35).

2
Em um texto que rememorava o seu encontro com Zea, o intelectual brasileiro dizia que:

Durante lo sdías de la estancia de Zea en São Paulo, conversamos sobre los


problemas de nuestra América, sobre el sentido de nuestra cultura y, casi siempre,
nuestras opiniones coincidieron. Nació desde entonces una mutua simpatia que, con
el correr de los años y el mejor conocimiento de nuestras ideas, se transformo en
sólida amistad. (CRUZ COSTA, 1977, p.80).

A Rede não ficou apenas nos contatos informais, ela evoluiu para uma forma mais
orgânica de cooperação. Assim que o intelectual mexicano retornou ao seu país começou a
articular formas de organizar as iniciativas que havia conhecido, dando início a um verdadeiro
processo institucionalização do campo da história das ideias.

A institucionalização: o Comitê de História das Ideias e as fronteiras intelectuais


A disciplinalização de um conhecimento, muitas vezes, se inicia com a organização de
um grupo e a criação de instituições. É esse lugar institucional que dá validade a esse processo
e proporciona a sua consolidação. De tal forma, a institucionalização não dá apenas uma
estabilidade social a um “saber”, ela o torna possível (DE CERTEAU, 2007, p.70). As
condições para a institucionalização da Rede se configuraram em 1947. Nesse ano, com o apoio
do historiador e professor do Colégio de México, Silvio Zavala (1909-2014) – que também era
presidente da Comissão de História do Instituto Panamericano de Geografia e Historia (IPGH),
Zea cria, no âmbito do referido Instituto, o Comité de Historia de las Ideas en América.
Nesse processo, chama a atenção as resoluções presentes na ata de criação do Comité.
Nela é clara a intenção de fazer com que a história das ideias se irradiasse por toda a América
Latina e se fortalecesse nos ambientes acadêmicos, fazendo parte das práticas de ensino e de
pesquisa.Além de propor que às instituições universitárias oferecessem bolsas aos estudantes
que viessem a trabalhar com história das ideias e estimular o intercâmbio de pesquisadores que
possibilitassem estudos comparativos dos países americanos, o Comité recomendava a criação
de comissões, centros de investigação e de cátedras específicas sobre História das Ideias ou
História da filosofia nacional (ATA, 1947, p. XVIII) – o que diferenciava a nova “disciplina” da 155
já tradicional História da Filosofia que se limitava a tratar das correntes de pensamento europeu.
É interessante observar que, se por um lado, o documento deixava explicito que as novas 3
cátedras deveriam ter o México e a Argentina como modelos (ATA, 1947, p. XVIII), por outro, nada
falava da iniciativa de historiar ideias que também havia sido colocada em marcha, na década
de 1930, nos EUA, como a já conhecida History of Ideas de Arthur Lovejoy (1873-1962). Ao
que tudo indica, além da clássica oposição América Latina/América Saxônica, nesse
momento,existia outra questão. Possivelmente, o fato de a abordagem lovejoyniana apresentar
uma perspectiva universalista, abstrata e mais internalista de análise das ideias fez com que esta
não tivesse grande repercussão e apoio. Em seu principal livro, The Great Chain of Being: a
Study of the History of an Idea (1936), Lovejoy criticava todas as iniciativas de escrever
histórias das ideias em perspectivas nacionais e também autores como Hegel e Mannheim que,
a seu modo de ver, estabeleciam misticismo intelectual (LOVEJOY, 2005, p. 26). Os autores
que Lovejoy criticava estavam nas bases do projeto de história das ideias filosóficas colocado
em marcha por Leopoldo Zea. Ademais, o objetivo do estadunidense era estudar as
regularidades ocidentais para identificar grandes continuidades em que o fio condutor eram as
“ideias-unidade”. Já o mexicano e seus colegas ibero-americanos procuravam encontrar
especificidades nacionais e latino-americanas.
Assim, embora concordemos com Manuel Castells (1999), que as redes são estruturas
abertas capazes de expandir de forma ilimitada, integrando novos nós, isto não quer dizer que
não haja delimitação de territórios e estabelecimentos de fronteiras na configuração das redes
de intelectuais. No território nascente da institucionalização da história das ideias na América
Latina, dois elementos davam definição ao grupo e aos novos membros que viessem a agrupar-
se: não entrariam os defensores da concepção que as ideias eram entes imutáveis e totalmente
abstratos e nem os que desejassem historiar as ideias que não estivessem repercussão na
América. As afinidades intelectuais iniciais eram agora transformadas em parâmetros de
identificação e diferenciação, em regras de aceitação no grupo.
Além do projeto de incentivar o ensino e a pesquisa em história das ideias, Zea também
colocou em marcha um projeto editorial. Tal projeto foi possível graças a um convênio do
Comité com uma das principais editoras da época, a Fondo de Cultura Económica (FCE). Em
função dos contatos de Zea, vários membros da Rede receberam auxílio financeiro para escrever
obras que seriam publicadas em uma série chamada Historia de las ideas en América. Em 155
meados da década de 1950 saíram pela referida coleção da FCE os livros de Arturo Ardao:
Postivismo y espiritualismo en Uruguay (1950) e La filosofia en el Uruguay en el siglo XX 4
(1956). Em seguida os de Guillermo Francovich, El pensamiento boliviano en el siglo XX
(1956); de João Cruz Costa, Esbozo de una historia de las ideas en el Brasil (1957); José Luis
Romero, El desarrollo de las ideas en la sociedad argentina delsiglo XX (1965) e de vários
outros intelectuais envolvidos com a história das ideias.
Essas publicações além de promoverem a divulgação da história das ideias, eram
também uma forma de aumentar os laços intelectuais entre os membros da Rede. Pois, como
sustenta De Certeau (2007), o público geral não é o verdadeiro destinatário de um livro, mesmo
que seja o seu suporte financeiro e moral. O autor, na verdade escreve sempre para seus pares,
que apreciam seu trabalho segundo critérios próprios, diferentes daqueles do público geral, e
assim o validam ou não. As obras pela FCE assumiam essa característica e funcionavam como
elemento de identidade grupal. Elas construíam na verdade uma rede textual, que se davam não
somente pelo fato de terem o interesse comum por temáticas filosóficas, mas pela circulação
que produziam de certos autores de concepção historicista (Dilthey, Ortega, Hegel, Croce,
Groethuysen), pelas temáticas comum de estudo (todos abordavam o positivismo em seus
países), pelas ideias defendidas (viam no exercício de história das ideias uma forma de
construção de uma filosofia nacional e/ou latino-américa) e, principalmente, porque as obras
em conjunto criavam uma rede de circulação de nomes de autores latino-americanos. É
interessante, observar como Zea, por exemplo, em Dos Etapas del pensamiento en
Hispanoamérica: del romanticismo al positivismo (1949), citava os trabalhos dos argentinos
Alejandro Korn, José Ingenieros, Francisco Romero, José Gaos, Samuel Ramos, de João Cruz
Costa, de Guillermo Francovich, de Medardo Vitier, de Arturo Ardao, Enrique Molina, entre
outros que havia encontrado em sua viagem. Do mesmo modo, Arturo Ardao, em
Espiritualismo y positivismo en el Uruguay (1950), citava Korn, Ingenieros, Ramos,
Francovich, Cruz Costa e, evidentemente, Zea. O mesmo fazia João Cruz Costa tanto em seu
Contribuição à história das ideias no Brasil (1956), publicado no Brasil, quanto em Esbozo de
una historia de las ideas en el Brasil (1957), publicado no México. Essas citações não eram
coincidências, funcionavam como mecanismos de ligação, divulgação e, principalmente, de
trocas de reconhecimento e validação dos pares. Citar era reconhecer o valor do trabalho e
fortalecer os laços que os uniam. Quanto mais um validasse o outro, mais se fortalecia a ideia 155
de grupo.
Embora esses intelectuais já tivessem seus nomes conhecidos entre seus pares, muitos 5
não haviam se encontrado pessoalmente; Zea era o único que conhecia a todos.Mas, em 1956,
intelectual mexicano organizou um evento que reuniria investigadores de história das ideias de
quase toda a América, ele promoveu: El Primer Seminario de Historia de las ideas en América,

O seminário internacional de Porto Rico: um espaço de sociabilidade intelectual

O evento que reuniu os pesquisadores de história das ideias na América ocorreu entre
os dias 3 e 8 de dezembro de 1956, na cidade porto-riquenha de San Juan. A primeira parte do
Seminario foi de recepção aos convidados e de apresentação e relato das comissões nacionais
sobre seus avanços. A maioria dessas comissões era presidida por intelectuais que Zea havia
conhecido em sua primeira viagem.De suas várias funções, destacava-se a de servir de elemento
aglutinador de novos membros. Não por acaso, quando das apresentações, grande parte dos
presidentes começava fazendo uma lista dos membros vinculados e/ou em vias de se vincular.
João Cruz Costa, por exemplo, começava a apresentação da comissão brasileira dizendo: “Em
nome dos intelectuais brasileiros que integram a Comissão Brasileira de História das Ideias,
entre os quais estão grandes nomes de nossa cultura, em nome deles e no meu próprio,
apresento os meus agradecimentos [...]” (CRUZ COSTA, 1959, p. 19-20). E, logo mais à frente,
afirmava que tinham aceitado fazer parte da comissão brasileira de história das ideias: Sérgio
Buarque de Hollanda, Anísio Teixeira, Antonio Candido, Caio Prado Jr., Octavio Tarquino de
Souza, Fernando de Azevedo, Ivan Lins, Rodrigo de Mello Franco de Andrade, Arthur Versiani
Velloso e Gilberto Freyre (CRUZ COSTA, 1959, p.21).
É interessante notar que esses intelectuais – com a exceção de Ivan Lins – não eram,
necessariamente, estudiosos das ideias filosóficas e que nenhum deles parece ter comparecido
ao evento de Porto Rico ou fazer grandes esforços para que o modelo de história das ideias
defendido na Rede se consolidasse no Brasil. De modo semelhante, era a apresentação de José
Luis Romero (1959, p. 18-19), presidente da comissão argentina, em que apareciam, dentre
vários intelectuais, os nomes do sociólogo Gino Germani e dos historiadores Luis Aznar e Tulío
Halperín, além, é claro, do seu irmão, Francisco Romero. O mesmo ocorria com vários outros
presidentes das comissões que estavam no evento. 155
Não é fácil precisar quais seriam as razões das referências a nomes de grandes
intelectuais de seus respectivos países: poderiam ser motivadas por intenções dos referidos 6
presidentes de conseguir prestígio no interior da Rede, de mostrar seus laços de amizade e
contatos intelectuais; ou, simplesmente, a tradução de suas tentativas de colocar em evidência
seus projetos de história das ideias. Ou seja, convidar intelectuais de prestígio ou influentes
acabava por se tornar não apenas uma estratégia de cooptação, como também de visibilidade
da Rede, pois entrar em contato com os principais nomes da vida intelectual de seus respectivos
países, e apresentar o que se estava fazendo e/ou o que se desejava fazer, acabava sendo uma
das formas de divulgar as atividades do grupo, de não deixar que elas ficassem complemente
desconhecidas nos principais meios acadêmicos.
O evento também foi um momento de afirmação da unidade, da projeção de novos
objetivos e de busca de critérios comuns de pesquisa e de ensino da “nova disciplina”. Isto é
possível de perceber não só na nota de apresentação feita pelo presidente do Comité e do evento
(ZEA, 1959, p. 13), mas também nasresoluções aprovadas ao final das atividades e nos
trabalhos apresentados durante o Seminario.
Uma das apresentações que buscava criar unidade do grupo, estabelecendo tentativas de
precisar conceitos e estabelecer linguagens comuns foi a de Arturo Ardao, intitulada Sobre el
concepto de historia de las ideas. O uruguaio buscava dirimir a diferença de interpretação, ou
de linguagem, que havia entre os principais autores que davam sustentação teórico-
metodológica à prática de história das ideias filosóficas na América Latina. Ardao buscou dar
unidade às proposições teóricas de José Ortega y Gasset, José Gaos e Francisco Romero sobre
o que seria a “história das ideias”. Pois para ele, sobre as “[...] discrepancias, que en parte son de
palabra y en parte concepto, parece oportuno buscar el acuerdo por quienes encaran el desarrollo de
una empresa común en el campo de la historia de las ideas en América” (ARDAO, 1959, p.76). Como
uma espécie de programa, ao final de sua apresentação, Ardao colocava uma série de
proposições em que se destacava o primado dos estudos das ideias filosóficas sobre os demais
e que na América Latina era mais adequado o estudo das “[...] de las ideias filosóficas
relacionadas com sus concretas circunstancias históricas” (ARDAO, 1959, p. 77).
Domingo Marrero Navarro, em consonância não só com Ardao, mas também como
Zea, Cruz Costa, Ramos e outros, negava totalmente o que considerava como prática de
historiar ideias “desencarnadas”. Para o porto-riquenho: “Al estudiar ideas hemos de intentar
155
un método de interacción dialógica entre mundo, persona, idea [...] toda esa configuración
cultural que podemos llamar mundo, medio o situación. Seria un grave error del historiador 7
estudiar las ideas como si estuviesenen el aire” (MARRERO NAVARRO, 1959, p.161).
Para além das discussões teórico-metodológicas, muitos participantes do evento
manifestavam a preocupação de tornar a história das ideias um instrumento de busca das origens
e da afirmação identitária de um suposto ser nacional e/ou latino-americano, como, por
exemplo, o panamenho Diego Domínguez Caballero (1959, p.217), que defendia que em seu
país “[...] se han dirigido a la historia no conuna fán puramente curioso o de coleccionador
sino con la angustia del que desea comprender, a través de aquella, el origen de nuestra
existencia y el descubrimiento y justificación de nuestro ser”. E ele não estava sozinho, Ardao
já havia manifestado que havia um “[...] acercamiento más profundo entre o luso y lo hispano
que sigue operando acá en identico sentido que allá: es el que deriva de la afinidad esencial
entre el espíritu español y el espíritu portugués”.(ARDAO, 1963 [1955], p. 58). Para ele, a
especificidade do pensamento latino-americano derivava de um mesmo “espíritu Ibérico”. Ou
seja, uma característica única dada pelo que ele chamava de “sentido práctico y realista,
sudimensión vital y humana, su apego a lo concreto, en contraste con el abstraccionismo de la
especulación pura” (ARDAO, 1963 [1955], p. 59). Havia vários membros do grupo que
defendiam essa perspectiva, como o brasileiro João Cruz Costa, ou os mexicanos Samuel
Ramos e Leopoldo Zea, que nessa época já tinham escrito várias obras em que buscavam
caracterizar o ser nacional de seus respectivos países, acentuando o que chamavam de “espirito
prático” ou de “espírito concreto”848.
Além disso, em muitas apresentações se afirmava que era um momento de perceber que
havia “algo así como un destino común a toda América” (PIÑERA LLERA, 1959, p. 135); que
aquele era um momento que facilitava “el conocimiento y comprensión entre nuestros pueblos”
(DOMÍNGUEZ CABALLERO, 1959. p. 217). Ou como João Cruz Costa (1959, p.238), que
afirmava: “apezar (sic) das diferenças que nos caracterizam, há traços que nos são comuns [...]”.
A história das ideias era vista como uma forma de recuperar esses “traços comuns”,
como um estudo que possibilitava umaespécie de exercício de autoconhecimento que
possibilitava a descoberta da identidade nacional e a criação de uma unidade latino-americana.
Ao final das apresentações, houve uma reunião em que se aprovou 24
recomendações.Pela quantidade e amplitude das recomendações,é possível perceber como eram 155
grandes as pretensões e os interesses dos intelectuais que estavam no Primer Seminario de
Historia de las ideas en América. Mas, de modo geral, algumas recomendações demonstram 8
quatro intenções: a primeiraera a clara demarcação da primazia dos estudos das ideias
filosóficas sobre os demais, embora já aparecesse claramente um programa investigativo em
que outras construções intelectuais como, por exemplo, o pensamento político, as ideias
cientificas e, inclusive, as concepções culturais pré-colombianas passavam também a atrair
interesses; a segunda indicava que as instituições estadunidenses eram vistas como
patrocinadoras e não como fornecedora de “modelos” de produção de escrita da história das
ideias; a terceira mostrava que havia uma preocupação – provavelmente colocada pelo
presidente do Comité Central – que a UNAM fosse a sede do próximo Congresso Internacional
de Filosofia, este evento seria uma ótima oportunidade para Zea e seus colegas colocarem no
mapa mundial das discussões filosóficas suas formas de pensar a filosofia; quarta, e por fim,

848
Sobre o discurso de brasilidade de Cruz Costa e de mexicanidade de Zea, ver, entre outras obras:A filosofia no
Brasil (1945), Contribuição da história das ideias no Brasil (1956), Conciencia y posibilidaddel mexicano (1952),
Dos ensayos sobre México e lo mexicano (1952), Filosofia como compromisso y otrosensayos(1952), El Occidente
y laconciencia de México (1953). Obras que não analisaremos neste texto.
em meios às diversas recomendações, as ações mais defendidas se referiam ao aumento do
prestígio da disciplina,incorporação de novos membros e da difusão da história das ideias por
vários espaços acadêmicos e institucionais da América Latina para criar a base do conhecimento
mutuo sobre os elementos comuns que concorreram para o desenvolvimento histórico de cada
nação latino-americana.
Com o decorrer do tempo a Rede foi se expandindo, levando ao aparecimento de
membros com proposições de novas técnicas de estudo das ideias e, principalmente, a
afirmação, cada vez maior, do discurso latino-americanista. Discurso esse capitaneado por
instituições criadas por Zea, na passagem dos anos de 1960 a 1970, como foram: o Centro de
Estudios Latinoamericanos (criado na UNAM em 1966); a Sociedad Latinoamericana de
Estudios sobre América Latina y el Caribe (SOLAR) – nome sugerido pelo amigo de Zea, o
antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro (1922-1997) – e a Federación Internacional de Estudios
sobre América Latina y el Caribe (FIEALC) (ambas criadas em 1978). Todas essas entidades
eram coordenadas pelo Centro Coordinador y Difusor de Estudios Latinoamericanos
(CCyDEL) sediado na UNAM sob a presidência de Leopoldo Zea.
Embora, como mostramos, a questão identitária estivesse quase sempre presente nas 155
produções e ações dos intelectuais que fizeram parte da Rede, reservamos à outra oportunidade
o objetivo de análise mais profunda desses discursos. O que buscamos mostrar neste texto foi 9
como se deu o processo de conexão entre os intelectuais que vinham estudando as ideias
filosóficas em uma perspectiva nacional até formar uma rede de proporções supranacional.
Nesse processo, que deve muito às iniciativas de José Gaos e à rede epistolar criada por
Francisco Romero, Leopoldo Zea assumiu um papel de destaque a partir de sua viagem de
pesquisa, da rede de correspondências e relações que foi tecendo e, principalmente, com o
processo de institucionalização iniciado com a criação do Comité de Historia de las Ideas en
América que possibilitou a organização de regulamentações, projetos de publicações e eventos
que tinham como objetivo levar a validação, consolidação e difusão da produção de história das
ideias por toda a América.
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156
2
CONSIDERAÇÕES ACERCA DA NAÇÃO E SEUS EXTERIORES
CONSTITUTIVOS A PARTIR DAS NARRATIVAS DOS INTELECTUAIS
BRASILEIROS BOMFIM, LIMA E NABUCO *849

Renata Baldin Maciel**850

RESUMO

Esse artigo traz alguns elementos de uma pesquisa realizada no Doutorado em História da
Universidade Federal de Santa Maria, sendo a mesma financiada pela CAPES e orientada pelo
Prof. Dr. Carlos Henrique Armani. O objeto de estudo desse artigo é constituído pela narrativa
histórica dos intelectuais brasileiros Manoel Bomfim, Oliveira Lima e Joaquim Nabuco. Dessa
forma, procura-se discutir as principais ideias sobre o que seria a dependência ou independência
da Nação, ou seja, sobre os aspectos que permeiam a autonomia nacional em relação a que e a
quem esta problemática está vinculada. Para o desenvolvimento dessas reflexões serão
utilizadas as considerações de Reinhart Koselleck, de forma a expor algumas antíteses (muitas
vezes multiformes) em determinadas situações pragmáticas, ou seja, nesses discursos
construídos em um contexto histórico estabelecido. Ao propor uma abordagem a partir da 156
História Intelectual, intenciona-se realizar um trabalho que explore as dimensões teórico-
metodológicas dessa área, contemplando especialmente sua aproximação com a literatura e o 3
caráter hermenêutico no tratamento das obras-fontes. Em suma, verifica-se que ao pensar a
autonomia nacional, esses autores trazem a tona diversos exteriores constitutivos que envolvem
a própria ideia de América Latina, de Estados Unidos e de Europa.
Palavras-chave: Intelectuais. Nação. Exteriores Constitutivos.

INTRODUÇÃO

Ao tratar das concepções dos intelectuais do final do século XIX e início do século
XX devemos ter em mente o quadro de suas posições políticas em relação à proclamação da
República em 1889 e a aproximação no âmbito das relações internacionais do Brasil com os

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Doutoranda em História, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Santa Maria,
CAPES/DS, renatabmaciel@gmail.com.
Estados Unidos. A questão das fronteiras como aporte de autoafirmação é uma prática de vários
autores do final do século XIX e sobre ela Cancelli diz que:

Não fogem muito do pensamento desenhado por vários autores ao longo da construção
de pensamento sobre a América Latina ou, como querem alguns, da América Ibérica:
conseguir reconhecer-se apenas a partir da exterioridade em relação ao Velho Mundo.
Ser tido e se assumir como estranho, não mais porque índio, como definido por
Colombo, mas como latino-americano. Um exercício de construção política difícil de
entender se partirmos de um outro pressuposto: o de que não somos mais do que um
lugar de simbiose histórica. Como construção da América, como fruto da diáspora
europeia, somos o mesmo, não o outro. (CANCELLI, 2004, p.113-114).

Assim, pode-se destacar algumas temáticas recorrentes nas narrativas de Bomfim,


Lima e Nabuco que envolvem em termos gerais, noções de atraso, progresso, modernização,
raça e meio. Igualmente, pode-se observar a presença de múltiplas temporalidades
representadas nas concepções de presente, passado e futuro nas obras desses autores. Entre
essas tem-se, por exemplo, alguns atributos tidos como ideais, ora da Europa, ora das próprias

156
nações latino-americanas que são retomados no presente e projetados para o futuro da nação,
assim como críticas e glorificações do passado e/ou dos colonizadores, ideias de esperança de
regeneração e progresso da nação no futuro, crítica do presente e do passado pelos vícios 4
instaurados, degenerações e imperialismo e, por fim, uma problemática ética de fundo que
envolve os padrões esperados de comportamento a serem inseridos ou destituídos da Nação e
da América Latina.

1. Capítulo I – breves apontamentos teóricos

Tendo em vista que a realização dessas investigações fundamenta-se na interpretação


dos textos desses intelectuais, pode-se destacar a importância do aspecto “ser obra” dos textos,
descrito por D. LaCapra (2012). Esse item refere-se a aspectos ou componentes do texto que
podem se desenvolver em diferentes graus e se relacionar uns com os outros de diversas
maneiras. O “aspecto documentário” situa o texto em termos de dimensões literais que
implicam a referência à realidade empírica e transmitem informações sobre ela; enquanto o “ser
obra” complementa a realidade empírica com adições e subtrações, implica dimensões do texto
não redutíveis ao documentário que incluem a interpretação e a imaginação. A narrativa
histórica desses intelectuais também será analisada levando-se em consideração as concepções
de R. Koselleck quanto às categorias de espaço de experiência e horizonte de expectativa, ao
tempo histórico, seus estratos e suas relações com a aceleração, bem como os conceitos
antitéticos assimétricos.

Como possibilidade para interpretar a história, Koselleck apresentou duas categorias:


espaço de experiência e horizonte de expectativa, que, como categorias históricas, equivalem
às de espaço e tempo. Koselleck definiu a experiência como sendo o passado atual, no qual
acontecimentos foram incorporados ou podem ser lembrados. Em relação à expectativa,
Koselleck afirmou que ela está ligada à pessoa e ao interpessoal e que se realiza no hoje. Essa
pode ser vista como um futuro presente, voltado para o que ainda não aconteceu ou ao que pode
ser apenas previsto. Koselleck salientou que apesar desses conceitos se relacionarem, eles não
são proporcionalmente complementares, pois apresentam formas bem diferentes. Segundo o
autor, passado e futuro jamais coincidem, assim como, uma expectativa jamais pode ser
deduzida totalmente da experiência. O que Koselleck tentou mostrar é que há diferenças entre 156
a presença do passado e a do futuro. Essas duas categorias indicam a condição humana
5
universal, ou seja, tanto a experiência quanto a expectativa fornecem os subsídios necessários
para lidarmos com o tempo histórico, pois ambas entrelaçam passado e futuro.

Em relação ao espaço de experiência e ao horizonte de expectativa construído pelos


autores estudados, nota-se a presença de conceitos-chaves que estão atrelados ao presente que
deve ser superado e ao projeto futuro da Nação ou mesmo da ideia de América Latina
“regenerada” e próspera. O passado, para alguns intelectuais, deve ser deixado para trás,
promovendo uma total ruptura com o presente para no futuro dar lugar ao novo, mas para outros
escritores, ele é recuperado na constituição do horizonte de expectativa devido à presença de
alguns valores considerados ideais e benéficos para o “ser-latino-americano”. Nesse debate
relacionado às categorias de espaço de experiência e horizonte de expectativa, e
consequentemente ao próprio tempo histórico que estão atrelados os conceitos de progresso,
civilização, raça e democracia.
O tempo histórico é entendido a partir da relação dinâmica entre experiência e
expectativa e embora esteja ligado ao tempo natural, não coincide com o mesmo, pois está
muito mais atrelado ao âmbito político e social. Esse tempo seria, portanto, fruto das
experiências e expectativas de homens e instituições cujas ações engendram não um tempo
único e universal como o proporcionado pela cronologia, mas diversos ritmos temporais que
lhes são próprios. Em suma, o tempo histórico seria resultado da tensão entre experiências e
expectativas; tensão essa que pode ser analisada através da relação histórica entre passado e
futuro. Quando se trata de pensar o tempo histórico, Koselleck salienta que existem diversos
estratos de tempo com durações e origens diferentes, mas que atuam de maneira concomitante.
Sua tese defende a diferença existente entre o tempo histórico e o tempo natural, mesmo
considerando as influências mútuas entre ambos. Para o autor, inúmeras coisas acontecem ao
mesmo tempo e emergem em diacronia ou em sincronia, em contextos totalmente diferentes,
ou seja, as modificações da vida e das ações humanas apresentam diferentes estruturas de
repetição, que escalonadas se modificam em diferentes ritmos. Partindo dessas concepções,
Koselleck traz à tona a problemática da aceleração, a qual começou a transformar a realidade a
partir da modernidade. Nesse sentido, quando uma situação de atraso é apontada, há uma 156
referência a uma oportunidade perdida, a um desejo projetado sobre o passado a fim de se
programar ideologicamente uma recuperação acelerada. Essa situação é explicitamente 6
encontrada nas narrativas de Manoel Bomfim, Oliveira Lima e Joaquim Nabuco quando
apontam a condição de atraso em que se depara a América Latina frente a necessidade da
correção das causas para alcançar o efeito do progresso ideal.

Na concepção de Koselleck, todo conceito está articulado com o contexto sobre o qual
também pode atuar de forma a torná-lo compreensível. A condição de progresso da América
Latina está muito presente na narrativa desses autores, pois a mesma sustenta a confiança que
eles têm no futuro. Toda a discussão de como conquistar esse progresso no futuro está vinculada
as problemáticas geradas pelas faces da política em voga nesse período que preocupavam esses
autores e que estão relacionadas à democracia, ao utilitarismo e ao imperialismo, bem como ao
papel das raças na composição de uma civilização ideal. São a partir desses conceitos que
configuram-se os ideais desses autores do que deve parte de uma civilização considerada
regenerada, evoluída e próspera em contraposição àquelas antíteses que levam ao atraso e
degeneração.
Capitulo II – Exteriores constitutivos

Nas discussões sobre o “ser latino-americano” tem-se o estabelecimento de critérios de


diferenciação e de negação do “nós” em relação aos “outros”. Esse percurso é dotado de
inclusões e exclusões permitindo que um grupo se constitua como uma unidade de ação política
e social. É justamente nesse reconhecimento do “nós” e da atribuição de caráteres negativos aos
“outros”, que inclui-se os preceitos de Koselleck do que ele denominou de conceitos antitéticos
assimétricos. Fica evidente a importância de se estudar os conceitos na medida em que eles não
servem “apenas para indicar unidades de ação, mas também para caracterizá-las e criá-las. Não
apenas indica, mas também constitui grupos políticos e sociais” (KOSELLECK, 2006, p.192).
Muitos desses conceitos apesar de se referirem a grupos concretos podem ser utilizados de
maneira mais geral. Quando um grupo defende seu direito exclusivo à universalidade ao aplicar
um conceito linguístico apenas a si mesmo e rechaça qualquer comparação, suas
autodenominações produzem conceitos opostos que discriminam os excluídos. Isso pode ser 156
verificado quando esses intelectuais procuram definir o que é a América Latina e o próprio “ser
latino-americano”. Há um esforço em constituir um caráter identitário para demarcar as
7
diferenças em relação aos “outros”, ou seja, à Europa (especialmente Espanha e Portugal) e aos
Estados Unidos. É possível perceber a presença constante desses conceitos opostos
assimétricos, especialmente nos binarismos presentes nas narrativas históricas desses
intelectuais. Assim tem-se, por exemplo, progresso versus estagnação, civilização versus
barbárie, liberdade versus prisão, republicanismo versus liberalismo, entre outros.

Considerando que a temática identitária está presente nas narrativas históricas de


Manoel Bomfim, Oliveira Lima e Joaquim Nabuco principalmente nas delimitações do “ser”
latino-americano e suas relações com outros significantes de identificação, as concepções de S.
Hall tornam-se um importante referencial para esse estudo. Segundo Hall (2000) para otimizar
o entendimento do conceito de identidade é necessário levar em conta um outro, o de
identificação. Esta é condicional e não representa uma completa fusão entre o mesmo e o
“outro”. Para Hall a identificação é um processo de articulação ou uma sobre determinação e
como todos os processos de significação ela também está sujeita ao jogo da diferença. É nesse
processo de contrastes, que implica um trabalho discursivo, que as fronteiras simbólicas são
delimitadas. Para consolidar o processo de identificação é fundamental recorrer ao exterior que
a constitui. As identidades nascem dos jogos de poder e são muito mais produto da demarcação
da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade idêntica, em seu significado
tradicional sem diferenças internas. As identidades para Hall são constituídas na diferença e
não fora dela. Dessa forma a constituição da identidade do “eu” está atrelada ao seu exterior
constitutivo, ou seja, ao outro, ao diferente transformado em exterior, ao que foi deixado de
fora daquilo que se pretende constituir como cerne do “ser”. Assim, a pretensa unidade das
identidades é constituída no interior do jogo do poder e da exclusão. A identidade deve ser
entendida não como um elemento que fixa o jogo da diferença em ponto de origem e
estabilidade, mas sim como aquilo que é construído na própria diferença e por meio dela, sendo
frequentemente atingida por aquilo que deixou de fora. Partindo dessas concepções de Hall,
pode-se ter um maior entendimento de como esses intelectuais constituíram o “eu” e o “nós”
latino-americano, bem como percebiam os “outros” que não faziam parte desse meio. Quais
características que definem cada um desses seres? Ou, seja, de que tipo de identidade eles estão
falando. Nesse sentido, podemos apontar algumas concepções presentes nas obras de Bomfim, 156
Lima e Nabuco que elucidam em termos sintéticos os sujeitos em suas obras permeavam as
problemáticas da nação e da América Latina. 8
Em sua narrativa Bomfim atribui ao passado o surgimento dos males, ao presente a
permanência e disseminação dos mesmos e ao futuro a esperança de que poderemos romper
com esses laços e atingir o progresso e a plenitude civilizatória. Em outras palavras, a finalidade
da história no projeto de Bomfim é conquistada com a superação do período anterior, graças à
educação, que é uma espécie de veículo emancipador. Entre os males e vícios ressaltados por
Bomfim está o parasitismo, a degeneração, o conservantismo, a imitação, entre outros.

Em relação aos exteriores constitutivos Bonfim problematiza as ações de Espanha e


Portugal e como seus atos ao serem transplantados para a América Latina, influíram na
constituição da maneira degenerada em que a América Latina se encontrava. O parasitismo e a
degeneração são explicados por Bomfim a partir do fato de Portugal e Espanha, terem adquirido
uma educação guerreira e depredadora, que os impediam de adaptarem-se ao trabalho pacífico.
O heroísmo, aos poucos, foi sendo pervertido e curvou-se ao gosto da luta pela lula, pela
crueldade. A degradação, nesse sentido, avança até culminar no sedentarismo, fase de
exploração da terra e utilização dos negros africanos e dos indígenas para o trabalho. Nesse
momento, portugueses e espanhóis solidificam suas categorias de parasitas, espalham seus
tentáculos sobre todas as esferas da sociedade para viver às custas do trabalho alheio.

O parasitismo influiu diretamente sobre a vida das novas nacionalidades na América


Latina, relegando-as a inúmeros vícios que se perpetuaram no pós-independência. Sobre os
efeitos desse parasitismo, Bomfim agrupa-os em duas categorias, os efeitos gerais e os efeitos
especiais. Os efeitos gerais remetem as alterações ocorridas no organismo parasitado e
manifestam-se em três aspectos: “o enfraquecimento do parasitado; as violências que se
exercem sobre ele, para que preste uns tantos serviços ao parasita (...) e finalmente, a adaptação
do parasitado às condições de vida que lhe são impostas” (BOMFIM, [1903], 2000, p.700). O
organismo parasitado é descendente do parasita e por este foi educado. Desse fato emerge uma
contradição que ocorre simultaneamente, ou seja, a imitação e a repulsão. O parasitismo
também influenciou a vida social, moral e intelectual e teve como resultado a segregação da
população e o ódio mútuo entre os diversos grupos. Quanto aos efeitos especiais, esses
são distribuídos em três categorias: herança, educação e reação. Bomfim conceitua a 156
hereditariedade social como sendo a herança psicológica que configura o caráter de um grupo.
9
Ela é herdada pelo indivíduo e permite que este se identifique com sua classe, ordem, espécie
e caracteres individuais recebidos dos pais. A educação por sua vez, seria responsável por
completar a formação do caráter nesse indivíduo. Bomfim utiliza esse argumento para
esclarecer como as inclinações dos povos que nos colonizaram direcionaram a maneira das
gerações posteriores a eles em todas as áreas. Essa afirmação revela uma inclinação de Bomfim
aos preceitos deterministas, no entanto, ao admitir que a América Latina pode ter um futuro
diferente da situação de “inferioridade” característica de seu passado, observamos que Bomfim
imediatamente desvincula seu pensamento dessa concepção. Ao tratar dos males gerados pela
hereditariedade e da educação fornecida pelos parasitas, Bomfim diz ser o conservantismo a
herança mais funesta a nós transmitida. Bomfim vai mais além e diz que “na prática, todos esses
homens das classes dirigentes são escravos passivos da tradição e da rotina; são ativos apenas
para opor-se a qualquer inovação efetiva, a qualquer transformação real, progressista”
(BOMFIM, [1903], 2000, p.730-731).
Mesmo denunciando esses vícios e a situação triste em que se encontravam as nações
da América do Sul, Bomfim demonstrou esperanças de que essa situação poderia se modificar.
Para defender essa ideia, Bomfim criticou as alegações científicas referentes à inferioridade da
raça e à suposta incapacidade que alguns povos teriam de se autogovernarem. Para ele, que não
há nada na ciência que prove a existência de condições propícias para que isso ocorra, além
disso, para Bomfim, a chave para o remédio está no estudo da trajetória dos conquistadores e
dos vícios perpetuados. O autor analisa o passado das nações ibéricas e a situação das novas
nacionalidades da América Latina a fim de evidenciar a cura para seus males. O mal é
proveniente da herança e da educação recebida, no contexto de opressão parasitária. A
revolução foi uma das primeiras alternativas para livrar a nação dos males nela impregnados.
Porém, em parte devido a decepção com a implantação da República no do Brasil, Bomfim
procura outra alternativa que possibilite mudanças ainda mais profundas. É vislumbrando esse
quadro que Bomfim encara a instrução popular como remédio contra o atraso latino-americano.
A instrução é fundamental para um povo progredir, é por meio dela que a liberdade é alcançada.
É justamente a partir da difusão da educação e da prática da ciência que nossos males serão
curados. A riqueza material exige atividade e é por meio do conhecimento que os indivíduos 157
poderão dedicar-se a atividades inteligentes que garantem a prosperidade e o progresso. Para
Bomfim, difundir o conhecimento nas nações sul-americanas, seria a única forma de diminuir 0
as diferenças entre elas e as nações modernas, como os EUA e a Europa. Modernizando a
América Latina, conseguiríamos impor nossa nacionalidade e afastar nossas pátrias do perigo
termos que enfrentar possíveis investidas.

Como mencionado anteriormente, a proeminência dos Estados Unidos e a


problemática do imperialismo face as diretrizes estabelecidas pela Doutrina Monroe, faz com
que essa nação seja um dos principais sujeitos presentes nas obras desses intelectuais ao
questionarem-se sobre a nação e sobre a ideia de América. Nesse sentido, Oliveira Lima ao
tratar da Doutrina Monroe e da Doutrina de Drago, no contexto anterior e posterior à terceira
Conferência Pan-Americana realizada no Rio de Janeiro (Brasil) em 1906, enfatiza que a
Doutrina de Monroe até então pouco ou nada ajudou na proteção das repúblicas ibero-
americanas das agressões europeias. Para ele, essa doutrina serviu para afastar as ideias de
recolonização, sendo um instrumento de utilidade continental. Porém Lima ressalta que essa
doutrina não deve ser sua feição alterada, assando de arma de salvação para instrumento de
subjugação.

O autor destaca os perigos que a Doutrina Monroe apresenta, pois da forma como estaria
sendo empregada seria como abdicar da soberania pela consagração do princípio da
intervenção. Lima expõe que já no tempo de Monroe, e ainda no tempo de Roosevelt, os Estados
Unidos desejavam ser maior que todos, desejando atacar a soberania de suas irmãs latinas:

Nunca empregar outra linguagem nem poderiam razoavelmente pensar em


empreender contra o resto do continente guerras de conquista, como as que nos
meados do século XIX enterram com o conhecido êxito contra o México vizinho, que
foi o bode expiatório dos primeiros brutais arrancos imperialistas do colosso. (LIMA,
1907, p.43)

Para Lima, a Doutrina de Monroe serviu para impedir a extensão da influência europeia
na América e para vedar a reocupação das suas posições perdidas. Essa doutrina também
substituiu violentamente aquela ascendência tradicional pela sua própria, mais adequada
157
aqueles tempos, realizando anexações que aos outros estavam defendidas. Em resumo, Lima
destaca que a Doutrina Monroe não mudou com o desenvolvimento dos Estados Unidos, apenas 1
havia se transformado. “Na essência é sempre a mesma, feita de ciúmes e ambição, porém
indispensável quando surgiu, e fatal no seu presente aspecto” (LIMA, 1907, p.47). Essa
doutrina havia começado de forma defensiva, mas acabou assumindo um caráter ofensivo na
medida em que ganhava força para conquistar o que pretendia. Segundo Lima, na face em que
se apresentava no momento, o imperialismo passou a predominar na Doutrina Monroe. Em
relação à proteção oferecida pelos Estados Unidos, Lima adverte que a mesma só poderia
revelar um sentido interesseiro, pois essa proteção nunca havia sido oferecida generosamente
em prol das outras nações do continente.
Lima também destaca a importância da Doutrina Drago851, a qual seria incorporada no
programa da terceira Conferência Pan-Americana representando sua nova edição através do
secretário de Estado Root e estabelecendo um processo de arbitramento obrigatório das disputas
interamericanas. O autor diz que a Doutrina Drago em conjunto com a Doutrina de Monroe
além de simbolizarem a fusão dos dois mundos, anglo-saxônico e latino, representa também
uma fusão moral, sem sacrifícios das soberanias:

Sua adesão a tese argentina servirá para conservar seu prestigio americano, mais do
que isto, mundial, neste gênero de questão, que entram como um capitulo do
monroísmo, simultaneamente amparando as nações fracas do continente de outro
modo ameaçadas, e amparando-as por uma forma que já não traduz a aplicação de
humilde princípio tutelar, antes corresponde a aplicação de um princípio de direito
público, se quiserem americano. Assim ficariam de uma feita arredadas as suspeitas
que, quando infundadas, não são normalmente para desprezar, de que os Estados
Unidos ou a Europa, ou ambos, pensam em converter para da América do Sul num
novo Egito: um Egito em todo caso sem pirâmides e faraós, segundo a dias me
observava em carta um querido amigo. (LIMA, 1907, p.108-109)

Lima vê a mestiçagem como um atraso para a América Latina sendo essa responsável 157
2
por diversas desarmonias e incompatibilidades. Nesse sentido, a fusão das raças da América
Latina seria uma condição para a estabilidade social no futuro, possível após serem corrigidas
as diferenças de educação e realidade de cada nação.

Para Joaquim Nabuco os Estados Unidos também representaram um “outro” frente ao


qual a nação e a América Latina foram problematizadas. Em uma correspondência de 24 de
agosto 1905, Joaquim Nabuco escreve sobre o passado e o futuro da Nação ao afirmar que “é
preciso um pouco mais de tradição, um pouco mais de passado, sobretudo quanto aos costumes,
mas é preciso também, e muito mais, a transformação e futuro” (NABUCO, [1905], 2006,
p.578). Nesse sentido, pode-se verificar como Nabuco constitui o espaço de experiência e o

851
Inicialmente a Doutrina Drago foi proposta pelo ministro da Argentina Luis María Drago sob a forma de um
texto endereçado ao representante de seu país nos Estados Unidos, Martin Garcia, esclarecendo o posicionamento
de Buenos Aires em relação à desavença entre Venezuela versus Grã-Bretanha, Alemanha e Itália. Drago
participou da Conferência de Paz, em Haia em 1907, na qual a delegação norte-americana propôs a incorporação
dessa doutrina ao ordenamento internacional, porém com algumas alterações que incluía a permissão da utilização
de força, em caso do país devedor se recusasse a submeter-se à arbitragem, ou, sendo esta aceita, tumultuasse as
negociações, ou, por último, não aceitasse cumprir a decisão. Além disso, a proposta ianque não ficava restrita
somente à dívida pública, mas passou a englobar os débitos de maneira geral. Essa proposta, com alguns ajustes
seria aprovada em 1907 e, desse modo, incorporada ao direito internacional.
horizonte de expectativa da nação na medida em que aponta, por exemplo, o abolicionista como
um desbravador e o imigrantista como o semeador do futuro (projetado através da consolidação
de um povo branco, cujas raças tidas como inferiores acabem absorvidas no todo).

Em julho de 1901, Nabuco escreve uma carta na qual deixa explícito sua adesão as
diretrizes da Doutrina Monroe e seu alinhamento com as políticas dos Estados Unidos, ao dizer
que “não há no serviço852 maior monroísta do que eu. Se não fosse o espantalho norte-
americano, estou certo, a Europa já estaria tratando a América do Sul como a China, a África e
a Ásia” (NABUCO, [1901], 2006, p.473). Em outra correspondência de 12 de dezembro,
Nabuco trata da escolha entre o monroísmo e a recolonização europeia, salientando que o
equilíbrio dos dois mundos não permite que haja nações isoladas que deles tirem proveito.
Nabuco salienta que na América a única proteção existente é o poder naval, o qual é detido
somente os Estados Unidos. Nesse sentido, para ele o monroísmo seria a “afirmação da
independência e integridade nacional pelo único sistema que as pode garantir” (NABUCO,
[1905], 2006, p.589). Dessa forma, utilizar os benefícios do monroísmo sem reconhecê-lo seria
algo mesquinho e hipócrita. Nabuco demonstra em sua obra que os Estados Unidos são um
“problema” com o qual temos que lidar e, considerando seu poderio, melhor lidar como amigos 157
do que como inimigos. Assim, ele afirma em 1907 que há inúmeras coisas que por parte dos
3
Estados Unidos nos irritam e nos aborrecem, mas que devemos compreender que a nossa única
política externa é conquistar-lhe a amizade, pois não haveria país mais perigo em dar alfinetadas
(NABUCO, [1907], 2006, p.651). Em julho de 1877 Nabuco ainda destacou o caráter prático
e material dos Estados Unidos, pois ganhar dinheiro seria a última finalidade dessa nação e esse
intento estaria por trás da sua política estrangeira para com as demais nações da América do
Sul (NABUCO, [1877], 2006, p.168-169).

CONCLUSÃO

Em suma, nas narrativas de Oliveira Lima, Joaquim Nabuco e Manoel Bonfim, os


exteriores constitutivos da nação e da América Latina são elaborados e problematizados a partir

852
Diplomático brasileiro.
de inúmeras temáticas que formam elementos de identificação entre esses povos e que estão em
discussão nesse período. Entre as mesmas pode-se destacar a ideia de uma América unificada
graças ao ímpeto colonizador europeu, a ausência de qualidades morais e virtudes nos povos
latino-americanos, a incapacidade de autogoverno, a corrupção, a crise moral, a mestiçagem
como atraso e inferioridade, crítica ao passado colonial ibérico que se desencaminhou pela
inferioridade do processo de miscigenação, os contrastes com a América do Norte, América
Hispânica e América Portuguesa, as diretrizes e consequências da Doutrina Monroe e do Pan-
americanismo, a ideia de degeneração e atraso no presente o surgimento dos males provenientes
do passado, a esperança de que no futuro poderemos romper com esses laços e atingir o
progresso e a plenitude civilizatória.

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Janeiro: Editor Benjamin Aguila, 1911.
CRIANDO E RECRIANDO O BRASIL: RAÇA E MESTIÇAGEM EM GILBERTO
FREYRE E NINA RODRIGUES*853

Rodrigo Teixeira**854

RESUMO

Gilberto Freyre e Raymundo Nina Rodrigues são dois intelectuais bastante polêmicos na história das
ciências no Brasil. O primeiro tem seu nome relacionado a ideia ou mito da democracia racial, além
de ter tomado posições políticas conservadoras especialmente na segunda metade do século XX,
enquanto Nina Rodrigues é reconhecido enquanto médico racista, defensor da ideia da inferioridade
do negro. Para além das particularidades, esses dois autores, distantes temporalmente em
aproximadamente duas décadas e influentes em suas épocas, são representantes de dois momentos da
história do pensamento social brasileiro. Nina Rodrigues seguia o caminho explicativo, comum do
fim do século XIX, que encontrava na constituição biológica da população brasileira a origem dos
problemas da nação. Gilberto Freyre se insere no debate da geração seguinte que procurava no passado
colonial e cultural do país as explicações para o presente do Brasil. Observando essas diferenças entre
os dois autores, chegou-se ao questionamento: como são definidos os conceitos de raça e mestiçagem 157
para Nina Rodrigues e Gilberto Freyre em Casa-Grande e Senzala? Tendo como hipótese que esses
conceitos são balizadores para a visão, seja ela positiva ou negativa, que esses autores possuíam do
Brasil. A conclusão do trabalho é que Nina Rodrigues, tomando a perspectiva do determinismo
6
biológico, dava um prognóstico negativo quanto ao futuro do Brasil devido à inferioridade, em sua
perspectiva, do negro e do indígena e aos desequilíbrios (degeneração) psicológicos e fisiológicos que
a mestiçagem produziria. Gilberto Freyre, enfatizando elementos culturais e sociais, deixa em segundo
plano o debate racial e vê a construção do Brasil como grande feito, especialmente devido aos
equilíbrios produzidos pela miscigenação entre o europeu e o africano.
Palavras-chave: Pensamento Social Brasileiro; Sociologia da Ciência; Raça

INTRODUÇÃO

A primeira metade do século XX foi marcada no Brasil pela produção de algumas das
principais e mais ambiciosas interpretações sobre no que consiste esse país e quem é o povo brasileiro.
Dentro os autores estão Euclides da Cunha, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Paulo Prado,

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria,
rodrigotp315@gmail.com
Gilberto Freyre e Raymundo Nina Rodrigues. A análise desses intelectuais se faz presente até os dias
de hoje e, apesar de suas limitações, não podem ser simplesmente relegadas ao papel de peças de
museu sem contribuição a trazer para a compreensão do Brasil no século XXI.

Nesse trabalho, me proponho a explorar o trabalho de dois autores específicos, Nina Rodrigues
e Gilberto Freyre, enfocando sua principal obra Casa-Grande e Senzala. Percebo esses dois autores
como bons representantes de momentos distintos na análise sobre o Brasil, especialmente no que tange
a questão racial. Por essa razão me detive nos conceitos de raça e mestiçagem para esses autores para
compreender suas visões sobre o Brasil.

Para abordar a produção de Nina Rodrigues e de Gilberto Freyre, a partir de Casa-Grande e


Senzala, me utilizo especialmente da contribuição de Lilia Schwarcz, Mariza Corrêa e Stephen Jay
Gould.

Lilia Schwarcz em O Espetáculo das Raças (2014) salienta a dimensão da originalidade dos
autores brasileiros da primeira metade do século passado. Ainda que embasassem suas obras nas
teorias em voga na Europa e Estados Unidos, por vezes de forma bastante eclética, é importante
perceber também a originalidade desses autores referidos, aí incluídos Freyre e Rodrigues. Mariza 157
Corrêa (2001) nos alerta para quando se analisar autores tão distantes temporalmente deve-se percebê-
los através dos termos utilizados em seu período, sem deslocar as obras de seu contexto, atentando
7
também para

A contribuição de Gould (1991) vem no sentido de perceber enquanto legítimos cientistas


aqueles que se propunham a fazer ciência no século passado, mesmo com seus equívocos. O seguinte
trecho de Gould serve para frisar que não podemos simplesmente separar os cientistas do passado
entre bons e maus, mas perceber a ciência como um fenômeno complexo de se analisar:

Não pretendo estabelecer um contraste entre deterministas perversos, que se afastam do


caminho da objetividade científica, e antideterministas esclarecidos, que abordam os dados
com mente aberta e, portanto, enxergam a verdade. [...] Os cientistas não tem necessidade
de se tornar apologistas explícitos de sua classe ou cultura para refletir esses insidiosos
aspectos da vida. Não é minha intenção afirmar que os deterministas biológicos eram maus
cientistas ou que estavam sempre errados, mas, antes, a crença de que a ciência deve ser
entendida como um fenômeno social. (GOULD, 1991, p.5)
O que está colocado nesse trabalho não é destacar o quanto os pressupostos dos cientistas aqui
estudados estavam errados, mas compreender as concepções adotadas e suas conclusões, para, de uma
forma mais ampla, perceber que consequências essas conclusões significaram para uma percepção de
Brasil. Dessa forma, deixo claro que abordo a produção de Raimundo Nina Rodrigues enquanto um
cientista em sua época, da mesma forma que vejo Gilberto Freyre como um sujeito com formação
científica, mas que não se deteve apenas à essa esfera.

12. Capítulo I - Nina Rodrigues: Um Racialista Nos Trópicos


Conforme me propus no início desse artigo, agora pretendo detalhar a noção de Nina Rodrigues
sobre raça e mestiçagem através das principais obras desse autor, e, em sequência, fazer algumas
considerações sobre as consequências de tais posições do médico maranhense para sua visão de nação.
Ao fim compararei com a noção desses mesmos termos por Gilberto Freyre e sua visão de Brasil em
Casa-Grande e Senzala.

Nina Rodrigues não se deteve apenas em classificar as diferentes raças, mas, assim como
outros pesquisadores de seu tempo, também as hierarquizou (GOULD, 1991). Na sua visão, a 157
capacidade de civilizar-se demonstra a superioridade do branco, enquanto “até hoje não se puderam
os negros constituir em povos civilizados” (RODRIGUES, 1976, p.4). Já o índio consistiria no “menos
8
aproveitavel dos nossos elementos ethnicos” (RODRIGUES, [193?], p.151).

O autor argumenta que essa é uma análise científica da realidade, e por isso não se deveria
ficar “à mercê das simpatias e ódios de uma geração.” (RODRIGUES, 1976, p.4). Ou seja, negar a
realidade devido a crenças. Nesse sentido, não se deve, na sua visão, negar a inferioridade do negro.
Da mesma forma, Nina Rodrigues afirma que o que se analisa são as capacidades mentais das raças,
o que não significa considerar o negro pior que o branco, conforme o autor destaca no seguinte trecho:

O critério científico da inferioridade da raça negra nada tem de comum com a revoltante
exploração que dele fizeram os interesses escravistas dos norte-americanos. Para a ciência
não é esta inferioridade mais do que um fenômeno de ordem perfeitamente natural, produto
da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade nas suas diversas
divisões ou seções. ‘Os negros africanos, ensina Hovelacque, são o que são; nem melhores,
nem piores do que os brancos; pertencem apenas a uma outra fase de desenvolvimento
intelectual e moral’”. (RODRIGUES, 1976, p.5)
A proposta do médico maranhense é compreender dentro da escala evolutiva onde estão
situadas as diferentes raças humanas, percebendo psicologia, moralidade e cultura como
consequências do desenvolvimento biológico.

Essa abordagem evolucionista de Nina Rodrigues tem outras consequências em sua teoria. Na
sua visão, a evolução das raças possui duas interfaces: orgânica e psíquica. Conforme afirma Mariza
Corrêa, para Nina Rodrigues, “as ‘lembranças orgânicas’ são hereditárias, mas a ‘memória psíquica’
é adquirida, embora ambas, numa lógica não explicitada, sejam transmissíveis aos descendentes”
(CORRÊA, 2001, p.121). De um lado haveria uma influência psíquica, que permitiria aos povos mais
evoluídos comportar “a imposição revolucionaria de uma concepção social” de “direitos e deveres”
(RODRIGUES, [193?], p.84). Isso porque, nesses povos cultos, ao contrário das raças inferiores,
ocorreu uma “accumulação hereditaria gradual do aperfeiçoamento psychico que se operou no decurso
de muitas gerações” (RODRIGUES, 1976, pp.84-85).

Por outro, a interface orgânica, para Nina Rodrigues, é o que impediria que uma raça se
civilizasse abruptamente em poucas gerações, pois a capacidade mental estaria diretamente
determinada pelo desenvolvimento biológico. Assim afirma Nina Rodrigues:
157
no gradual aperfeiçoamento e crescente complicação de textura de um systema organico, 9
Simples funções organicas, presuppõem e têm ellas o seu substractum material e anatomico

o systema nervoso. Mas na série animal as complicações crescentes na composição


histologica ou biochimica da massa cerebral só se operam com o auxilio da adaptação e
da hereditariedade, de um modo muito lento e no decurso de muitas gerações. Assim
tambem, os gráos successivos do desenvolvimento mental dos povos. Não só, portanto, a
evolução mental presuppõe nas diversas phases do desenvolvimento de uma raça, uma
capacidade cultural muito differente, embora de perfectibilidade crescente, mas ainda
affirma a impossibilidade de supprimir a intervenção do tempo nas suas adaptações e a
impossibilidade, portanto, de impor-se, de momento, a um povo, uma civilisação
incompativel com o gráo do seu desenvolvimento intellectual. (Ibid., p.31)

Um outro elemento para ser destacado é a adaptabilidade das raças. Nesse sentido, Nina
Rodrigues é bastante claro. O autor acreditava que as raças, se estabelecidas em determinados climas,
acabariam por degenerar ou até mesmo se extinguir. Sendo assim, ao sul do Brasil estaria por se formar
“uma nação branca, forte e poderosa, provavelmente de origem teutônica” onde “o clima e a
civilização eliminarão a raça negra, ou a submeterão” (RODRIGUES, 1976, p.8). Enquanto no norte
do país se concentraria uma população de “mestiços, vegetando na turbulência estéril de uma
inteligência viva e pronta, mas associada à mais decidida inércia e indolência” que em razão disso
estariam “ameaçados de se converterem em pasto submisso de todas as explorações de régulos e
pequenos ditadores”. (Ibid., p.9)

Esses primeiros apontamentos que Nina Rodrigues faz sobre a questão racial estão
relacionados com sua preocupação em pensar a problemática da imputabilidade penal no Brasil.
Entretanto, conforme se aprofunda seu interesse em pesquisar o negro no Brasil, novas conclusões
surgem ampliando a questão racial em sua obra.

Com o crescente interesse em pesquisar o negro, novas questões se apresentam para serem
resolvidas na obra de Nina Rodrigues. Em Os Africanos no Brasil, surge uma nova questão, a origem
dos negros trazidos para o Brasil, onde o autor manifesta a necessidade de detalhar as diversas etnias
africanas. Considerando a abordagem determinista de Nina Rodrigues, essa é uma questão básica para
poder compreender a capacidade do negro brasileiro. Já que se brancos e negros tem capacidades
distintas de civilizar-se, o mesmo deveria ocorrer entre os diferentes povos da África. Desenvolvendo
sua pesquisa, em Os Africanos no Brasil, escrito no século XX, o médico maranhense parece mais
otimista quanto as capacidades do negro, pelo menos daqueles vindos da Costa da Mina.

Já ao considerarmos o conceito de mestiçagem para Nina Rodrigues, novos elementos surgem. 158
Da mesma forma que o autor maranhense se preocupa em diferenciar os diversos povos africanos
trazidos para o Brasil, também critica a generalização do mestiço enquanto uma única categoria para
0
os diversos tipos de misturas raciais no Brasil. Para Nina Rodrigues (2006b), ainda se estava longe da
constituição de um tipo racial mestiço uniforme para o Brasil. Tendo a mesma preocupação que para
com os negros em definir a origem dos povos traficados, observando em que estágio da escala
evolutiva cada um se encontrava, Nina Rodrigues discriminou os tipos mestiços de acordo com as
“raças puras” que os originaram.

A partir de sua perspectiva, “se pode dividir [...] a população nacional nos seis grupos
seguintes: branco, negro, mulato, mameluco ou caboclo, cafuzo e pardo” (RODRIGUES, 2006b,
p.133 - grifos do autor). Na teoria do médico maranhense se fazia necessário discriminar os diferentes
mestiços uma vez que, na sua visão, cada tipo antropológico acabaria por sofrer diferentes
consequências de acordo com as raças originárias. Nina Rodrigues dedicou mais de uma publicação
aos estudos das qualidades e da degeneração nos mestiços ([193?], 2008), mas é em seu artigo Os
Mestiços Brasileiros (2006b) que expõe mais amplamente tal questão, explicitando as motivações
para acreditar que não se deveria generalizar todos os mestiços em uma mesma categoria.
Nina Rodrigues conclui que a miscigenação levaria ao desenvolvimento de patologias, físicas
ou psíquicas. Dessa forma, a mestiçagem não teria a capacidade de produzir indivíduos com
características da raça branca. A explicação de Nina Rodrigues para isso é que a mistura racial levaria,
necessariamente, ao desequilíbrio, fazendo com que os mestiços tivessem grande propensão à
degeneração (RODRIGUES, 2008). Essas diferenças, consideradas pelo autor, de qualidades físicas,
fisiológicas e psíquicas é o geraria o desequilíbrio produzido pelo miscigenação das diferentes raças
(ibid.).

A degeneração como consequência da mestiçagem é uma constante na obra de Nina Rodrigues,


entretanto o mesmo faz algumas concessões. Ainda que a mestiçagem seja em geral um fenômeno
visto como negativo pelo autor, existem alguns casos em que ela pode ser viável para o Brasil. Este é
o caso dos povos indígenas, como já destacado anteriormente, considerados pelo médico maranhense
como os menos capazes de civilizarem-se entre as três raças originais do Brasil. Sendo assim, um
caminho possível, mas pouco provável, de se levar a civilização aos cantos longínquos do norte e do
centro-oeste seria através do mestiço. Da mesma forma, o indígena só conseguiria ser incorporado à
população brasileira através da mestiçagem, devido à sua pouca susceptibilidade a civilizar-se
(RODRIGUES, [193?]). 158
Nina Rodrigues, se afastando das teorias do branqueamento, alerta que “julgada nas condições 1
particulares da colonização do Brasil, seria erro deplorável reconhecer a utilidade relativa do
cruzamento afro-lusitano em que se vai absorvendo o elemento negro da nossa população”
(RODRIGUES, 1976, p.265). Dessa forma, fica evidente que a questão da mestiçagem possui nuances
para Nina Rodrigues. Se por um lado, na sua visão, ela tenderia à degeneração, como na comunidade
de Serrinha (RODRIGUES, 2008), podendo se manifestar de diversas formas (loucura, crime,
monstruosidade). Por outro, pode ser o caminho para levar a cultura europeia, e mesmo integrar a raça
indígena à população brasileira.

Capitulo II – A Positivação da Mestiçagem

Gilberto Freyre, ao contrário de Nina Rodrigues, não se deteve a vida acadêmica, participando
ativamente em diversas esferas, inclusive a política. Postura que se refletiu na produção de sua
principal obra, Casa-Grande e Senzala, onde segundo Glaucia Villas Bôas (2006) a preocupação do
autor residia muito mais na formulação de um ethos brasileiro do que na produção de uma obra
científica por excelência. Dante Moreira Leite não poupa críticas à Freyre, atacando justamente o
caráter científico do livro, destacando contradições na obra do autor e o subjetivismo deste ao escrever
Casa-Grande e Senzala (LEITE, 2007). Na visão de Fernando Henrique Cardoso (2013) 855 já nem
seria mais cabível retomar essa crítica, de tão repetida, ou mesmo refutá-la, já que seria inegável o
subjetivismo do autor de Casa-Grande e Senzala.

Ainda assim, é importante evidenciar alguns dos termos que Freyre utiliza em sua principal
obra. Se distanciando de qualquer objetivismo de conteúdo, o ensaísta caracteriza o português como
sendo “plástico” (FREYRE, 2013, p.65), e na sua visão a moral sexual católica fora “amaciada” pela
maometana “mais frouxa” (FREYRE, 2013, p.84). Dessa forma, Freyre segue em Casa-Grande e
Senzala utilizando termos como amolecida, oleoso, doce para caracterizar a sociedade brasileira ou os
povos português e africano. Para Glaucia Villas Bôas (2006) foi justamente por ter se afastado de uma
análise estritamente científica que Gilberto Freyre pode chegar às conclusões que chegou. Em outras
palavras, em razão disso, aliado à narrativa sedutora, pode alcançar a repercussão que logrou.

158
A própria narrativa de Freyre deve ser considerada como elemento fundamental em Casa-
Grande e Senzala. Dante Moreira Leite (2007), seguindo sua sequência de críticas ao autor
pernambucano, frisa a questão da pouca linearidade temporal e pequena preocupação em situar 2
geograficamente suas descrições. A questão fundamental é que Freyre, como bem destaca Fernando
Henrique Cardoso, “não visava apenas demonstrar, mas convencer” (CARDOSO, 2013, p.85 - grifos
do autor). Irei retomar isso adiante, mas antes cabe destacar que, em Casa-Grande e Senzala, Freyre,
empenhando-se em convencer, evita fazer distinções claras em alguns momentos, e mesmo situar
detalhadamente o momento histórico a que está se referindo856. Nesse sentido, o autor se utilizou das
mais diversas fontes possíveis, viajantes, biólogos, médicos, antropólogos... isso objetivando agregar
o maior número possível de argumentos a seu favor. Dessa forma, Freyre (2013) fez uso de estudos
que vão desde a endocrinologia até a antropologia cultural.

855
É importante destacar que entre a publicação de Dante Moreira Leite e Fernando Henrique Cardoso há um período de
vinte anos.
856
Se considerarmos que Freyre está preocupado em encontrar o que caracteriza o brasileiro, ou seja, sua singularidade
através do passado, mas que permanece presente na sociedade de seu tempo, a questão temporal não é essencial. Dessa
forma Freyre “amontoa” argumentos, ignorando elementos que poderiam conferir maior rigor científico à usa obra.
Freyre inicia com um resgate histórico de Portugal, que serve para reafirmar características do
brasileiro que já estariam presentes no país lusitano. Essa análise sobre o português falado no Brasil
já traz o elemento do equilíbrio de antagonismos, elemento central em Casa-Grande e Senzala. Nessa
análise, Freyre também traz o elemento psicológico presente no tratamento através de termos
formados no Brasil, mas que pode ser generalizado para o cotidiano do brasileiro nas mais diversas
esferas.

O autor encontra no passado o cimento não apenas do tipo de sociedade, mas do jeito de ser
brasileiro, o ethos brasileiro (VILLAS BÔAS, 2006). Passado que só pode ser encontrado na casa-
grande (FREYRE, 2013). Nesse sentido, a argumentação bastante subjetiva explica esse passado, pois
ao se estudar “a vida doméstica dos antepassados sentimo-nos aos poucos nos completar” (Ibid., p.45).
Por essa razão, de sentir-se completar, que Freyre, para poder alcançar as conclusões de Casa-Grande
e Senzala, somente conseguiria isso produzindo uma obra que se pretendia mais que apenas um
trabalho de ciência (VILLAS BÔAS, 2006).

O que diferencia Freyre da visão de Nina Rodrigues é considerar a mestiçagem antes que um
problema para o desenvolvimento da nação, como o médico, como uma qualidade, sendo elemento
158
necessário para a constituição do tipo de sociedade formada no Brasil. Pode-se, assim, perceber uma
positivação presente em Casa-Grande e Senzala da mestiçagem, positivação que se manifesta em tal 3
obra na visão da colonização do Brasil enquanto uma empresa bem-sucedida, em oposição a muitos
dos contemporâneos do autor:

Freyre atribui às características do português a formação do Brasil como primeira sociedade


moderna nos trópicos. Dada a sua mobilidade, plasticidade, mas também em razão da pequena
preocupação com raça, que o permitiu desde o início da colonização se mestiçar primeiramente com
o nativo e posteriormente com o negro. Dessa forma, para o autor, “o certo é que os portugueses
triunfaram onde outros europeus falharam. (FREYRE, 2013, p.73).

Em Casa-Grande e Senzala a mestiçagem também aparece na que, para o autor, seria a


principal característica da sociedade brasileira, o equilíbrio de antagonismos. Em um país marcado
pelas diferenças, o contato entre as diferentes raças tem a capacidade de produzir uma unidade,
singular no Brasil. Nas próprias palavras do autor:

A formação brasileira tem sido, na verdade [...] um processo de equilíbrio de antagonismos


[...] predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor
e o escravo. É verdade que agindo sempre, entre tantos antagonismos contundentes,
amortecendo-lhes o choque ou harmonizando-os, condições de confraternização e de
mobilidade social peculiares ao Brasil: a miscigenação, a dispersão da herança. (Ibid.,
pp.116-117)

Freyre deixa claro que, na sua visão, “a força, ou antes, a potencialidade da cultura brasileira
parece-nos residir toda na riqueza dos antagonismos equilibrados” (Ibid., p.418). Novamente o autor
evidencia que, para ele, a miscigenação é positiva.

Na análise do autor, a miscigenação, o equilíbrio de antagonismos, a própria flexibilização da


língua portuguesa, tem como consequência um reflexo específico na mente do brasileiro e a formação
de unidade. Dessa forma, para Gilberto Freyre, abdicar do “uso brasileiro” da língua “seria
sufocarmos, ou pelo menos, abafarmos metade de nossa vida emotiva e das nossas necessidades
sentimentais [...] seria ficarmos com um lado morto; exprimindo só metade de nós mesmos.” (Ibid.,
p.418). O elemento da unidade Freyre traz na sequência:

Não que no brasileiro subsistam, como no anglo-americano, duas metades inimigas: a


branca e a preta; o ex-senhor e o ex-escravo. De modo algum. Somos duas metades
confraternizantes que se vêm mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas.
(Ibid., p.418)
158
4
A qualidade “confraternizante” do brasileiro é exaltada em Casa-Grande e Senzala, em
oposição às outras experiências europeias na América. Nessa obra, a mestiçagem assume caráter
central, tendo a capacidade de produzir intercâmbio e equilíbrio entre as raças (VILLAS BÔAS, 2006),
ao contrário da visão de Nina Rodrigues, não há perda, mas soma, que se demonstra na língua, nos
sentimentos, na mobilidade social, enfim, em tudo que é caracteristicamente brasileiro.

Tendo abordado a questão da mestiçagem em Casa-Grande e Senzala, resta explorar o valor


e entendimento que Gilberto Freyre empregou ao termo raça nessa obra. No prefácio à primeira
edição, o autor expõe:

E dos problemas brasileiros, nenhum que me inquietasse tanto quanto o da miscigenação.


Vi uma vez, depois de mais de três anos maciços de ausência do Brasil, um bando de
marinheiros nacionais - mulatos e cafuzos – [...] pela neve mole de Brooklyn. Deram-me a
impressão de caricaturas de homens. E veio-me à lembrança a frase de um livro de um
viajante americano que acabara de ler sobre o Brasil: ‘the fearfully mongrel aspect of most
of the population’. A miscigenação resultava naquilo. Faltou-me quem me dissesse então,
como em 1929 Roquette-Pinto aos arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia, que não
eram simplesmente mulatos ou cafuzos os indivíduos que eu julgava representarem o
Brasil, mas cafuzos e mulatos doentes (FREYRE, 2013, p.31)

Talvez esse seja um dos trechos mais reveladores do autor pernambucano. Nele está exposto
a preocupação de Freyre com a mestiçagem e com o debate racial de seu período. Também está
presente no trecho parte da argumentação que seria exposta no livro deste prefácio, a doença como
condição comum ao povo brasileiro. Patologias estão entre os elementos exteriores à composição
biológico-hereditária dos indivíduos que Gilberto Freyre acreditava influenciar na eugenia de uma
população. Da mesma forma, aparecem o clima e a dieta, em Casa-Grande e Senzala.

No trecho destacado, aparece a preocupação em trazer elementos que vão além da explicação
racial, para a compreensão do Brasil. Mesmo se utilizando de argumentos que acentuam
predisposições biológicas, Freyre mantém o centro de seu ensaio na explicação na organização da
sociedade e cultura brasileiras.

A explicação que o autor se utiliza para articular esses fatores externos (clima, doenças,
alimentação) com o que ele mesmo chama de “eugenia”857 se dá através o seu entendimento acerca
das teorias da evolução. O autor emprega teorias, na época, recentes reafirmando a possibilidade da
158
transmissibilidade de caracteres adquiridos. Nesse assunto, Freyre toma ares de um verdadeiro biólogo 5
afirmando que:

Talvez o mais importante que agite a biologia moderna: o da transmissão de caracteres


adquiridos. Ninguém hoje se abandona com a mesma facilidade de há vinte ou trinta anos
ao rígido critério weismanniano da não transmissão de caracteres adquiridos. Ao
contrário: um neolamarckismo se levanta nos próprios laboratórios onde se sorriu de
Lamarck. (Ibid., p.375)

Somente aceitando os pressupostos da transmissibilidade de caracteres adquiridos que pode


Freyre chegar nas suas conclusões acerca da eugenia de uma população. Esse é o caso da sífilis, o lado
ruim da miscigenação, para o autor. Um dos piores males durante a colonização do país. Enfatizando
no que chama de “sifilização” fica evidente o esforço de Freyre em se afastar das teorias racialistas e

857
Em Casa-Grande e Senzala, Freyre faz uso dos termos eugenia e cacogenia significando, em última instância,
indivíduos saudáveis ou não, respectivamente. É importante ter em mente que Freyre não defendia a seleção dos melhores
indivíduos, mas que se utiliza desses termos para caracterizar indivíduos que tiveram acesso à melhores ou piores
condições de meio (dieta, doenças, clima).
trazer novos fatores para a explicação do atraso de grande parte da população brasileira. Além da
sífilis, assim como outras doenças, está presente a dieta como causa das mazelas da população pobre
brasileira. Para o autor “colonizou o Brasil uma nação de homens mal nutridos” (FREYRE, 2013,
p.313), os quais representariam parte da população. Por outro lado, uma pequena parcela, conforme
afirma o autor, da população viveu uma situação oposta, especialmente no clero, gente de um
“concurso genético de um elemento superior” e “capaz de transmitir à prole as maiores vantagens do
ponto de vista eugênico e de herança social” (FREYRE, 2013, p.533). Este estrato social serve como
exemplo, em Casa-Grande e Senzala, da possibilidade de se formar uma população “social e
eugenicamente superior” (FREYRE, 2013, p.535

Dessa forma, mesmo negando as teorias racialistas, Freyre atribui capacidades à constituição
física de alguns povos. Um exemplo é em relação às características psicológicas de diferentes raças e
a capacidade em se estabelecer nos trópicos. O autor evidencia os “traços étnicos ou ‘instintivos’ em
contraste com os evidentemente culturais ou adquiridos” (FREYRE, 2013, p.371), dando maior ênfase
aos culturais. No entanto, não deixa de reconhecer certa relevância a traços instintivos. Esse é o caso
de quando, “em termos modernos de psicologia”, confere ao “ameríndio a qualidade de introvertido e
ao negro de extrovertido” (Ibid., p.371). 158
Freyre ainda argumenta em relação ao negro “sua superioridade técnica e de cultura [...] sua 6
predisposição como que biológica e psíquica para a vida nos trópicos. Sua Maior fertilidade nas
regiões quentes” (Ibid., 2013, p.370). Novamente o autor explora os efeitos do clima no fisiológico,
justificando parte da adaptabilidade do negro nos trópicos pela sua mais fertilidade. Entretanto, quando
se trata da capacidade psíquica para a adaptação no Brasil, fica evidente sua inclinação para considerar
características raciais, inatas, no caso da psique de cada raça.

Feitas essas observações, seria equivocado não destacar o seguinte trecho do autor:

Não se negam diferenças mentais entre brancos e negros. Mas até que ponto essas
diferenças representam aptidões inatas ou especializações devidas ao ambiente ou às
circunstâncias econômicas de cultura é problema dificílimo de apurar. (Ibid., p.380)

Já quando destacando a “aclimatabilidade” do português, Freyre retoma o debate da


predisposição biológica em relação ao meio. Na sua argumentação, Portugal devido ao seu histórico
de contato com povos africanos, e sua localização “antes África que Europa”, deixaria o português em
vantagem em relação aos outros povos europeus para colonizar os trópicos (Ibid., pp.72-74). Freyre
exalta as qualidades do português, pois conseguiu fazer o que nenhum outro europeu conseguiu, ao
formar uma nação unificada nos trópicos. A seu favor, do português, trabalharam as condições
culturais, mesológicas e raciais.

CONCLUSÃO

Nessas poucas páginas procurei trazer da forma mais detalhada possível como esses dois
autores pensavam essas duas categorias que atualmente se encontram em desuso na análise da
realidade brasileira. Tanto Raça quanto Mestiçagem ocuparam papel importante na compreensão do
país em determinado momento. Freyre e Rodrigues são dois representantes de momentos diferentes
do pensamento social brasileiro, marcando um momento de passagem, onde essas duas categorias
sofrem um deslocamento, conforme tentei mostrar. Dessa forma, é possível encerrar destacando de
forma objetiva os seguintes elementos a partir da exposição.

Nina Rodrigues em sua época representou um tipo incomum de intelectual no contexto


brasileiro, dedicando sua breve vida a questões voltadas a medicina e a ciência. Ainda assim, sua 158
influência foi bastante limitada, se restringindo especialmente a Salvador e alguns continuadores de
seu legado, que em pouco tempo voltou ao ostracismo. Em sua produção, apesar de demonstrar
7
algumas mudanças no seu pensamento ao final da vida, há a continuidade de forte determinismo racial,
característico de alguns de seus contemporâneos.

Gilberto Freyre teve um impacto muito maior que Nina Rodrigues, seja em críticas positivas
ou negativas, inclusive devido a seus posicionamentos políticos, área que o médico maranhense evitou
ao longo de sua carreira. Sua obra enfoca nas particularidades da formação de um país de origem
lusitana nos trópicos, enfatizando as dimensões sociais e culturais centradas no engenho produtor de
açúcar. Apesar dessa mudança de foco, e mesmo crítica a outros autores de sua época, Gilberto Freyre
não teve como evitar a questão racial, a qual se apresenta de forma pouco sintética em Casa-Grande e
Senzala. Procurando evitar qualquer determinismo hereditário, o autor traz outros elementos, como
de meio (alimentação, doenças) e psicológicos, para se somarem à explicação social da formação do
Brasil. Ainda assim, mesmo não sendo determinante há alguma influência racial na argumentação de
Freyre, porém sem hierarquizar as diferentes raças.
Já a questão da mestiçagem aparece como condição necessária para a formação do Brasil
enquanto tal, sendo uma consequência das características “plásticas” do português. Através dela,
especialmente, o negro e o branco, mas também o indígena, têm seus antagonismos de alguma forma
equilibrados nesse tipo chamado brasileiro, marcado pelas características das diferentes raças. Dessa
forma, a formação do Brasil é por si um grande feito.

Nina Rodrigues aparece enquanto um autor cético sobre a viabilidade do Brasil enquanto país
civilizado. As limitações raciais e climáticas impediriam o negro de civilizar-se e o branco de ocupar
as regiões quentes do país. Já a alternativa apontada por alguns de incentivar-se a mestiçagem, para o
autor, tampouco seria a solução. A mestiçagem aqui seria vista como produtora de degeneração, as
diferentes raças, quando misturadas produziriam desequilíbrios, inviabilizando tal saída para o caso
brasileiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Zahar, 2013. 158
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Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

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VILLAS BÔAS, G. Mudança Provocada: Passado e futuro no pensamento sociológico brasileiro.


Rio de Janeiro: FGV, 2006.
158
9
EMÍLIO WILLEMS E OS ANOS 1930-40: OS INTELECTUAIS E AS TEORIAS
CULTURALISTAS NO BRASIL 858

Marlete Golke 859

RESUMO

A partir de um aporte teórico da História Intelectual pela perspectiva de Dominick LaCapra,


pretende-se contextualizar as ideias do intelectual Emílio Willems a partir da obra Assimilação
e Populações Marginais no Sul do Brasil (1940) nas teorias antropológicas do início do século
XX. Nesse sentido, o período em questão foi emblemático no Brasil por assistir à
institucionalização das Ciências Sociais. As mudanças que aconteciam na sociedade e
fenômenos sociais e culturais tiveram um considerável impacto na Sociologia e Antropologia
nos anos 1930. Na multiplicação das correntes culturalistas e sua concepção à heterogeneidade
permitiu uma versatilidade nas formas de abordar o homem e sua relação com o meio por uma
ótica conciliadora entre Natureza-Cultura, fugindo dos velhos modelos intelectuais que viam
nessa relação um determinismo racial biológico. Assim, considera-se esse momento crucial
para tentar definir o “tipo” brasileiro nos principais debates intelectuais. Essa questão era
propícia para o momento de transição do Brasil de um modelo arcaico do século XIX para se
inserir numa modernidade com a crescente urbanização que o país vinha apresentando. 159
Diversos discursos foram tomados para tentar definir uma identidade para a nacionalidade
brasileira. Foram construídas representações variadas desse tipo brasileiro que passavam pelas
teorias da mestiçagem à ideologia do branqueamento sob a perspectiva integradora do nacional.
0
Nesse ponto de vista da integração nacional, pretende-se inserir a temática da assimilação de
Willems no contexto intelectual do período.
Palavras-chave: Intelectuais, cultura, sociedade.

INTRODUÇÃO

Historiar sobre os intelectuais no Brasil nos anos 1930-40 requer situar alguns aspectos
da história política e institucional que se relacionavam no período, sobretudo, as temáticas que
se apresentavam no rol das ideias. Estas, por sua vez, não se encontram “soltas” ou mesmo
“circulam” entre os indivíduos em diferentes épocas e determinadas sociedades. Elas estão

858
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
859
Graduação e Bacharelado pela UFSM; Especialista em História do Brasil pela UFSM; Mestranda do Programa
de Pós-Graduação em História pela UFSM. Pesquisa financiada pela Capes. E-mail: gmgolke@gmail.com
engajadas a um(ns) indivíduo(s) que pensa(m) sobre determinados assuntos sob circunstâncias
variadas e mesmo particulares, quando não muito, associadas a grupos e/ou organizações
vinculadas ou não ao Estado podendo ser chamados de intelectuais. Desse modo, a partir da
noção de contextos apresentados por Dominick LaCapra (1983) abordaremos dois momentos
que permitem situar o autor Emílio Willems e sua obra Assimilação e Populações Marginais
no Brasil (1940) num contexto relacional das teorias culturalistas que estavam em voga no
início do século XX, especificamente os anos acima mencionados nos principais centros de
reflexão como Europa e EUA e no contexto intelectual brasileiro com algumas das ideias
culturalistas vigentes no cenário nacional daquele momento. Nesse contexto, o Brasil e os
intelectuais estão imersos na emergência do Estado Novo e sua renovação cultural do período
no que se referia a uma identidade nacional a ser pensada e legitimada pelos mesmos diante do
Estado, pois o momento era crucial para definição de uma identidade que se pretendia brasileira
num cenário de imigração e presença de variadas etnias no país. O período torna-se
emblemático nesse sentido, por tratar de questões de integração e fronteira no cenário nacional
por lançar a identidade do país diante de um quadro social que ora se apresentava homogêneo
e ora heterogêneo nas teorias culturalistas brasileiras, bem como oscilavam em significações 159
condicionantes e deterministas quanto à natureza e à cultura.
1
Na perspectiva da integração e fronteira lançamos a obra de Emílio Willems (1940) que
fez um estudo sobre a problemática assimilação dos imigrantes alemães no Brasil e o
entendimento que este trouxe aos estudos das Ciências Sociais e Humanas ao abordar as
diferenças culturais nesse panorama da busca de identidade brasileira que contemplasse as
diferenças existentes.

Emílio Willems e as teorias culturalistas no início do século XX

As principais teorias culturalistas que Willems860 utilizou em sua obra podem ser
localizadas em fins do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. O autor lançou mão

860
Emílio Willems foi um intelectual que abordou o Brasil em suas circunstâncias de pesquisa. Formou-se na
Universidade de Berlim em Filosofia e Economia como, também, acompanhou de perto o recente debate que
delineava as disciplinas de Humanas (História, Antropologia, Sociologia). Vindo para o Brasil no início da década
de 1930, o autor instalou-se no Sul do Brasil ministrando aulas num seminário católico em Brusque. Ali, bem perto
de seus conterrâneos imigrados da Alemanha, pôde fazer um estudo sociológico e antropológico dessas populações
da obra de autores como Simmel e Weber, centrais na definição de um paradigma mais
compreensivo das ciências humanas, bem como dos diversos debates realizados nos Estados
Unidos, em especial na Escola de Chicago que implicaram uma renovação, por meio da
Antropologia e da Sociologia, dos estudos sobre a cultura. As mudanças que aconteciam na
sociedade e seus processos sociais e culturais tiveram um considerável impacto na Sociologia
e Antropologia nos anos 1930. Na multiplicação das correntes culturalistas e sua concepção à
heterogeneidade permitiu uma versatilidade nas formas de abordar o homem e sua relação com
o meio por uma ótica mais conciliadora entre Natureza-Cultura, fugindo dos velhos modelos
intelectuais que viam nessa relação um determinismo racial biológico.

Enquanto intelectual-pesquisador Willems não apresentou um modelo “ideológico” ou


caminho a ser seguido, tampouco traçou estratégias de abrasileiramento, pensava que tais
definições ou mesmo direcionamento cabia aos educadores e governantes (WILLEMS, 1940).
Assim, analisou e abordou o quadro social das populações imigrantes na forma como se
encontravam. O quadro teórico por ele adotado aponta para um conceito amplo de assimilação,
no qual imigrantes e descendentes vivenciaram situações em que, de um lado, a sociedade
receptora seria o eixo principal – luso-brasileira – e, do outro, os que vieram de fora com 159
intenção de colonizar e ficar – imigrantes – que também teriam a oportunidade de passar a 2
integrar a vida nacional. Nesse sentido, não estariam alocados pelo autor como meros
coadjutores no processo econômico.

Sua análise sobre a assimilação e delimitação da região sul do Brasil implicou a mudança
social e cultural das diversas etnias existentes e salientou o fator diversidade, ao invés de
unidade e homogeneidade. Na abordagem teórica respeitou as particularidades dos grupos
sociais nessa região e notadamente o elemento explicativo se remete à heterogeneidade. Sobre
as diversidades, Albuquerque considerou as regiões brasileiras como retalhos culturais
existentes que por sua vez, compõem e cultivam a grande teia cultural nacional. Uma espécie
de micro territórios inseridos no macro territorial que contém no seu cerne as inúmeras
heterogeneidades que se manifestam na organização social, cultural e econômica. Desse modo,

que resultou no livro Assimilação e Populações Marginais no Brasil publicado em 1940. A partir de 1941, tornou-
se professor catedrático de Antropologia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São
Paulo. Na Faculdade de Filosofia também ministrou aulas de Sociologia, disciplina em que obtivera seu título de
livre-docência em 1937.
a origem da nacionalidade é buscada na história de cada região (ALBUQUERQUE JR, 1999,
p. 101).

A ideia em torno do conceito de cultura teve repercussão ampla e variada no início do século
XX. O significado mais simples desse termo abrange todas as realizações materiais e os
aspectos espirituais de um povo. Ou seja, em outras palavras, cultura se constitui de tudo aquilo
produzido pela humanidade, seja no plano concreto das instituições ou no plano imaterial das
ideias e crenças. E, além disso, engloba também todo comportamento aprendido no meio, de
modo independente da questão biológica. Em outras palavras, cultura seria todo conjunto
complexo de conhecimentos e habilidades humanas empregadas socialmente. A ênfase no
social permitiu a Antropologia e Sociologia, bem como as Ciências Humanas em geral, mais
do que explicar, compreender o comportamento do próprio homem na sua ação e reação frente
à dinâmica contextual em que o mundo se apresentava. No campo da sociologia, importantes
debates foram elaborados, sobretudo, para entender as sociedades e suas relações e
interrelações. Desse modo, a cultura ganhava contornos que fugiam ou mesmo refutavam os
valores deterministas ligados ao biológico-racial.

Baumer (1977) relacionou o final de século XIX à decadência de teorias filosóficas tidas
159
como modelos e que, ao mesmo tempo, prenunciavam um novo mundo de pensamento que 3
viria a tomar forma. Não tanto como um fim, o fim de século era um princípio, pois “continha
em si a semente de uma nova espécie de modernidade que era muito diferente da modernidade
científico-racionalista que viria a amadurecer durante o desenrolar do século XX” (BAUMER,
1977, p. 132). Era um tempo de mudanças e reações não só ao positivismo como aos valores
vigentes e convenções burguesas. O racionalismo era posto a indagações e a ciência passava a
dar espaço às incertezas, as quais, Baumer descreveu como uma “sensação de não saber
exatamente onde estava a certeza, ou mesmo se haveria uma certeza, para além da própria
mudança, e de não saber o que o futuro podia trazer” (BAUMER, p. 132). O próprio clima de
desorientação abria espaço para novas experiências e debates que traziam as Humanidades a
um campo menos racional e previsível para uma esfera mais compreensível para com a natureza
e o indivíduo. O fim de século e início do século XX não se caracterizaram para Baumer (1977)
como uma revolta contra a ciência, e sim, contra o cientismo que chamava a si todo
conhecimento na ideia do determinismo. Foi o momento em que se apresenta as tentativas de
autonomia à cultura, segundo a lógica própria das ciências humanas e não da natureza. Nesse
sentido, os debates floresceram com os intelectuais, a exemplo de Dilthey e Max Weber no
significado de “entrar em simpatia com a experiência de outros homens, seres humanos como
nós” (BAUMER, 1977, p. 135) para compreender os fatos sociais e culturais num contexto
menos determinista e objetivo a fim de integrar a subjetividade que permeava a ação humana.
Em tal clima efervescente de ideias “Bergson rejeitava a teoria mecanicista a favor de uma
natureza “criativa”, caracterizada mais pelo tempo do que pelo espaço. O tempo era a nova
dimensão principal” (1977, p. 138). Pode-se dizer que a noção de tempo trouxe uma perspectiva
mais dinâmica às relações sociais, pois para Bergson ele era sinônimo de “inovação” refutando
qualquer vinculação com uma essência eterna e inerte quanto uniforme como o espaço (1977,
p. 138).

A resposta em oposição aos determinismos sobre a natureza humana veio com as


implicações relativistas E apesar de surgir em fim de século, ganhou crescente campo no século
XX. Baumer elucida muito bem essa recepção no novo século a partir de uma citação de
Durkheim (1915) em crítica à decadência dos valores que consistia na falta de espiritualidade
mais existencial e humana. ““O que existe, na realidade”, escreveu ele, em oposição a lei do 159
progresso de Comte, “são sociedades particulares” (BAUMER, 1977, p. 164). Com o
4
relativismo cultural, e também histórico, o início do século XX trazia problemáticas variadas
que implicavam respostas na interdisciplinaridade das áreas humanas – História, Sociologia,
Antropologia, Psicologia Social. Esse campo interdisciplinar ampliou a noção de compreensão
do indivíduo nos seus processos sociais e permitiu estudar a diversidade cultural.

Os teóricos culturalistas do século XX, situaram a reflexão sobre o homem e a


sociedade, a partir das especificidades humanas na diversidade e esta na unidade. Esse se
constituiu em um desafio teórico metodológico. Da concepção particularista da cultura muitos
intelectuais se desvincularam de noções deterministas da ciência no sentido biológico. Para
Cuche (1999) a noção ciência se vertia em dois horizontes: um que prezava pela unidade, ainda
segundo um esquema evolucionista e, outro no sentido da diversidade sem se opor à unidade.
Assim como no século XIX a cultura e suas concepções num contexto alemão (particularista)
e francês (universalista), no século XX as duas correntes de pensamento continuavam a ter força
e constituíam modelos explicativos variados em metodologia e teoria. Ampliar esse modelo de
cultura alemã-francesa foi nos Estados Unidos, sem dúvida, um campo que abriu caminho para
inúmeras pesquisas acadêmicas sobre a natureza e o indivíduo. A concepção particularista de
Franz Boas, que estudara na Alemanha, concebeu que a organização social era determinada
mais pela cultura do que pelo ambiente físico. Nota-se, a independência que essa vertente tomou
em relação ao quesito biológico-racial. As culturas particulares entravam no rol das
investigações dos pesquisadores. Cada cultura representou nesse contexto relativista e
particularista uma totalidade singular e um esforço em pesquisar o que fazia a sua unidade
(CUCHE, 1999, p. 45). E nesse conjunto a “compreensão” tornou-se a máxima para tratar dos
costumes particulares, bem como os fatos culturais podiam ser interpretados se relacionados ao
seu contexto histórico cultural.

O indivíduo não era depositário de toda a cultura de origem. Ele seria antes um sujeito
que seleciona na cultura aquilo que necessita para sua comunicação no meio, conferindo uma
dinâmica a esse processo. A atenção que os antropólogos americanos estava centrada nos
processos de rupturas e descontinuidades, pois a cultura não era mais concebida como uma
transmissão de dados imutáveis e sim a capacidade de transformação da natureza pela cultura.
Pois esta possibilitava ao indivíduo inovar e isso implicava, por sua vez, conceber as mudanças 159
culturais no tempo em diferentes contextos históricos. Foram algumas dessas concepções que
5
Willems buscou conciliar e trabalhar em seu livro para compreender e dar um panorama geral
do problema da assimilação dos alemães no Brasil. Compreender como os indivíduos recebiam
e sentiam a cultura constituiu o desafio dessa geração de antropólogos frente às sociedades
complexas que se formavam na modernidade com o crescente fluxo migratório e
transformações sociais, políticas e econômicas. Essa percepção abriu caminhos para o estudo
da interação entre cultura e indivíduo, da qual o interacionismo simbólico foi a máxima da
Escola de Chicago. Elucidar os contatos com a cultura que acolhia os imigrantes foi o olhar
sensível dado à dimensão cultural das relações sociais e a forma como os indivíduos
interiorizavam e viviam a sua cultura. Sobretudo, se interessavam pela influência da cultura de
origem dos imigrantes e a inserção destes na sociedade que os acolhia. A interação da
sociedade, ou melhor, de grupos sociais num espaço territorial nacional foi analisada por
Willems na fronteira da assimilação, pois no caso do Brasil, a região Sul foi receptora da grande
imigração, disso decorreu a inquietação do autor em compreender o processo de assimilação
dessas populações e seus descendentes, de acordo, com as principais teorias modernas e
vigentes nos centros de reflexão como Europa e EUA.

O Brasil e os intelectuais na emergência do nacionalismo nos anos 1930

Diversas teorias, que já vinham se desenvolvendo desde o século XIX foram tomados
para tentar definir uma identidade para a nacionalidade brasileira. Foram construídas
representações variadas desse tipo brasileiro que se pretendia consolidar sob uma identidade da
pátria que iam desde teorias da mestiçagem que unia as culturas do branco português, o negro
africano e o índio à ideologia do branqueamento do Brasil com o incentivo da vinda dos
imigrantes europeus a integrarem a sociedade brasileira.

Na primeira metade do século XX, as ideias do período fizeram parte de um momento


de renovação com as relações de integração territorial nacional. As diferentes regiões se
apresentavam na sua forma heterogênea e serviram para a problemática dos intelectuais e do
Estado que pretendiam definir e integrar as questões de fronteiras e as identidades culturais do
Brasil. Nos anos 30, havia uma tentativa de mudança no quadro social brasileiro e de 159
legitimação de ‘uma nova ordem no cenário político que se pretendia nacionalizante. Não 6
tardou para que intelectuais “explicassem” o Brasil sob diversas teorias e ideologias, muitas
vezes atreladas a uma ideologia política do Estado. Não que ideias sobre a nação não existissem
antes dos anos 30. Havia muitas delas, mas foi somente a partir dos anos 20 e 30 que o Estado
começou a consolidar, de modo mais efetivo, essa busca de uma identidade nacional. Nessa
busca de afirmação de um passado que se integrasse a uma identidade nacional, os problemas
eram muitos. Skidmore (1976) em debate sobre raça e nacionalidade no pensamento brasileiro
escreveu sobre o temor dos intelectuais em apresentar um Brasil que se vê frente a frente com
seus dilemas. Um passado escravocrata, vazios demográficos, amplo território, “quistos de
imigrantes”861 entre outros. Este era o quadro que denotava a fragilidade da situação brasileira
no panorama internacional ampliando o fantasma da cobiça externa, como a penetração dos
Estados Unidos na tentativa de encontrar mercados externos para a crise, tanto quanto a
perspectiva da II Guerra em seu contexto, trazia a metáfora da oposição entre “democracia” e

861
Essa palavra causa certo desconforto para Willems. Pois em sua sociologia de perspectiva interacionista esse
termo traz uma conotação negativa no âmbito da intercomunicabilidade das culturas.
“totalitarismo”862. Tal oposição foi vista, ainda nesse contexto relacional, como ameaça de
barbárie à liberdade e à cultura.

Somou-se a esse quadro da situação social brasileira o “abismo entre a realidade


brasileira e os modelos que pensadores do passado tinham, tantas vezes, e tão erroneamente,
tomado por ela, foi mais geralmente percebido” (SKIDMORE, 1976, p. 164). Para o autor, a
desconfiança quanto às teorias que apresentaram o Brasil até o início do século XX passaram a
ser contestadas e os intelectuais se engajaram na sensibilidade de estudar a situação brasileira
por ela mesma, estimulando o pensamento nacionalista. Para Skidmore (1993) os intelectuais
se sentiram impulsionados e começaram, também, a sentir que podiam mudar o papel que o
darwinismo social, herdado da cultura europeia, tentava atribuir ao Brasil.

As teorias racialistas justificavam o suposto atraso brasileiro em relação à Europa. Não


se tinha a pretensão em apresentar uma positividade para o Brasil e criar a ideia de nação com
a originalidade brasileira. Qual originalidade seria esta? Trazer o contexto histórico para o
debate e cenário intelectual sob um viés culturalista independente da raça representou um
momento de originalidade do próprio lugar onde se pensava tais questões. Também, o fato das
pesquisas científicas apresentarem uma metodologia e temas variados colaborou para a
159
circulação de ideias e cultura de uma sociedade que já não era a mesma num processo de 7
transformação e modernização. Nesse engajamento, os artistas863, literatos864 e demais
intelectuais expressaram e direcionaram suas energias para diversas circunstâncias desse
cenário “nacionalista” que se mostrava cada vez mais programático diante do Estado. Os
modernistas também estavam no rol que envolvia a palavra de ordem da época: nação. Num
tom de urgência sobre o problema da identidade nacional, o papel do intelectual foi concebido
de forma radical. Projetos de cultura nacional despontavam de forma inquietante e o território
foi sintonizado no tom do debate. Nesse sentido, Velloso (1993, p. 1 – 2) escreveu que os

862
Consultar: MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. São Paulo: Cultrix: Ed. Da Universidade de
São Paulo, 19777-78.
863
Alguns artistas, também, expressaram o sentido de vincular as artes ao cenário cultural, político que o período
propiciava. Os modernistas também se engajaram num lugar de atuação de suas ideias por meio da arte com
conteúdo marcadamente nacionalista. O movimento teve grupos dissidentes conforme as visões que apresentavam
do processo e a própria ideia de brasilidade. Era hora de resgatar o Brasil na sua essência e criar essa imagem para
a nação. Alguns grupos apresentavam um eixo representativo próxima a uma unidade homogênea, outros uma
visão heterogêneas enfatizando o regionalismo. Para saber mais consultar: VELLOSO (1993).
864
Podemos citar alguns nomes de escritores que escreveram nesse período destacando as regiões como Érico
Veríssimo com a região Sul, Vianna Moog e a aculturação do imigrante germânico.
intelectuais brasileiros se auto-elegeram executores da missão de encontrar a identidade
nacional e romper com o passado de dependência cultural e direcionaram suas reflexões para o
destino do País. Em tal vanguarda patriótica dilemas como o Brasil seria retratado ou como o
era, se homogêneo ou heterogêneo na sua composição, eram recorrentes nos escritos de muitos
autores.

A relação nacional-regional foi amplamente discutida no interior do modernismo865. De


certo modo, tal relação trazia o pensar no seu interior esse hífen que integrava as diferenças
culturais regionais no cenário nacional. Assim, o regionalismo visto antes como atraso passou
a ter uma nova concepção, na qual as singularidades e diferenças eram capazes de informar o
conjunto. Mário de Andrade foi o intelectual mais representativo desse movimento defendendo
a ideia através da teoria da “desgeografização” chamando atenção para as questões temporal e
histórica, ao invés de sobrepor o espacial sobre estas. Dessa forma, o regionalismo era um
meio instrumental para se chegar à nacionalidade como unidade cultural. Contudo, o
movimento não apresentava um consenso sobre tal relação. Ainda que a partir das regiões
tentava-se resgatar as tradições em prol da nacionalidade enquanto unidade cultural, também,
se excluía as partes ao se tentar homogeneizá-las nessa unidade nacionalizante, o que configura, 159
como sabemos, qualquer discurso da nação. Como atesta Velloso (1993) à polêmica dessa
8
relação era expressiva por registrar os resquícios de uma tradição regionalista de fortes bases
locais devido à “postura ambígua assumida por alguns intelectuais frente à questão do
nacionalismo. Presos à tradição localista, eles tendem a identificar a sua região de origem como
núcleo da nacionalidade” (VELLOSO, 1993, p. 11). É nesse contexto que São Paulo ganhou
destaque na elaboração de um projeto de cultura nacional entre a elite intelectual. A geografia
desse estado foi destacada e o fator espacial e temporal ganhou atenção com os valores dos
bandeirantes paulistas. A brasilidade que se pretendia estava na tríade espaço-território-
geografia. Contudo, não é estranho que nessa perspectiva estava incumbida a relação natureza
e meio. Velloso (1993, p. 15) aborda essa questão quanto ao grupo modernista que retomou o

865
Não entendemos por modernismo (ou movimento modernista) apenas enquanto generalização de um conjunto
de movimentos culturais, escolas e estilos que permearam as artes e literatura na primeira metade do século XX.
Tampouco concentrá-lo em seu marco simbólico na Semana de 1922. Entendemos o modernismo na concepção
de GOMES (1993) como um movimento de ideias renovadoras que estabelece fortes conexões com a arte e política
e que se caracteriza por uma grande heterogeneidade. Como movimento de ideias GOMES toma emprestado de
Julliard (1988) a concepção de que as ideias “não circulam”, estas são portadas por homens que fazem parte de
grupos sociais organizados.
pensamento romântico e enfatizou o meio expressando a natureza e o homem vinculado a ela.
A brasilidade seria o resultado dessa relação e o território nessa concepção nacionalista teria o
papel integrador em si. Nisso reside uma polêmica sobre a assimilação que estaria circunscrita
na simplificação do processo. A “condição” do abrasileiramento estava no contato com essa
natureza e não no contato com os subgrupos da nação a exemplo da escola, família, religião,
política, trabalho, etc., como apresentava Willems em sua obra.

A questão problemática no que dizia respeito à nacionalização dos estrangeiros


decorrentes da imigração estaria “resolvida” com o “nacionalismo integrador”, no qual cabia
ao imigrante um papel passivo no processo. Ou seja, ele perdia a sua identidade original para
se integrar no “organismo etnológico nacional”. Assim ele não só seria um personagem
reificado da modernidade como símbolo do trabalho, como, também, da própria brasilidade.
Tal pensamento ia de encontro a teoria apresentada na obra de Willems. Para este, a identidade
do indivíduo era adquirida no meio de socialização, assim, o espaço não teria essa força de
integrar o indivíduo por si e transformá-lo em cidadão brasileiro, tampouco renunciar as suas
antigas origens culturais.

O clima parecia ser de disputa por um tipo nacional e para Martins (1977-78, p. 128)
159
“se a guerra e as ideologias propunham com agudeza nunca vista o tema da missão do escritor, 9
a volumosa e sempre crescente atividade intelectual começava a propor o da sua profissão” e a
criar personagens de “tipos sociais”866. Os romances e a literatura também estavam no rol das
discussões, assim como a singularidade das regiões estava para com esse debate. O que se
tentava expressar no período se aproximava muito do interesse em “descobrir” um “tipo social”
para a nação brasileira e que estivesse a contento do contexto nacional na sua forma política e
social. Nesse cenário das realidades demográficas, Martins (1977-78) escreveu que
considerando a realidade estatística que contornavam verdades psicológicas, a distribuição pela
cor circunscrita em alguns livros como era o caso de ““O Mundo que o Português Criou” e
“Uma Cultura Ameaçada: a Luso-Brasileira” de Gilberto Freyre que reagia em termos
emocionais, contra a nova temática anunciada pelo livro “Assimilação e Populações Marginais

866
Alguns exemplos desses tipos sociais são: “o filho de família tradicional; o descendente empobrecido das boas
famílias; o pequeno-burguês, os comunistas, e assim por diante” (MARTINS, 1977-78, p. 129-130). Percebe-se
que as temáticas eram proporcionais à realidade social do período, bem como o negro, o mestiço, o paulista e os
“dólicos-louros”. Estas categorias se inseriam não apenas nas realidades demográficas como nos debates teóricos
e científicos do momento.
no Brasil” de Emílio Willems” (MARTINS, p. 144-145). Destacou que “cultura lusa ameaçada”
que Freyre denunciava já era pura e simplesmente a cultura brasileira, a qual não podia estar
ameaçada tendo em vista o processo colonizador e sua suposta sedimentação como identidade
ideal do Brasil. Portanto, podemos notar o clima intelectual acirrado em torno da questão
identitária, a qual tomava partido para alguns intelectuais ao lado do Estado, como se
configurou Freyre.

Tais fatos permitiam observar quais os vínculos eram fixados por alguns intelectuais
nesse contexto a elencar o que entendiam por brasilidade ou ser brasileiro. Que noção de
identidade queriam dar ao país ou mesmo revesti-lo? Alguns intelectuais deram continuidade
às tradições da colonização e conectaram nesse elo identitário a figura do luso-brasileiro. As
teorias de identidade estavam inseridas num novo contexto de ideias no século XX. Ainda que
houvesse resquícios da velha teoria racial, esta era rejeitada na concepção cultural. As
diferenças culturais e sociais não eram mais explicadas pelo fator biológico racial, e sim, pelas
peculiaridades das diversas culturas. Chacon (1977) escreveu que o racismo exigia um urgente
combate e a diversificação de influências com outras presenças intelectuais no país
proporcionaram um novo panorama para a Sociologia no Brasil. Para Mendoza (2005), depois 160
das revoluções de 30 e 32, o clima intelectual e político não só mudaram como, também, e
0
trouxeram transformações principalmente na educação superior. A institucionalização das
Ciências Sociais no Brasil se expressou na fundação de instituições que contaram na sua
estrutura de ensino com as disciplinas de Sociologia e Antropologia. A criação da Escola Livre
de Sociologia e Política, fundada em 1933, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP
e da cátedra de Antropologia Social na Universidade do Distrito Federal criada em 1935, foram
iniciativas da "geração precursora" que institucionalizou o ensino superior da Sociologia e da
Antropologia no Brasil (MENDOZA, 2005), a qual Emílio Willems fez parte.

A Antropologia colocou seu aparato teórico construído no passado, com possibilidade


de, no presente compreender os intensos movimentos provocados pela imigração: de um lado,
os processos homogeneizantes da ordem social patriarcal com resquícios racialistas e, de outro,
contrariando tal tendência, a reivindicação das singularidades, apontando para a constituição da
humanidade como una e diversa. Ou seja, a heterogeneidade nacional e as particularidades
regionais se apresentaram recorrentes no questionamento que afetou as ciências humanas no
início do século XX. Ainda que esse movimento se intensificou, de modo geral na segunda
metade do século XX, esse primeiro momento, em particular na Antropologia e Sociologia,
emergiu com outras perspectivas teóricas, dentre as quais se destacaram os chamados estudos
culturais. Nesse moderno debate que se seguiu na Sociologia Brasileira, Willems apresentou
sua contribuição com os estudos de sociedade e de comunidade, bem como os processos de
contatos sociais vinculados à mudança social e cultural. Sua sociologia próxima ao pensamento
da Escola de Chicago apresentou um importante tema no cenário das heterogeneidades culturais
e sociais brasileiras. O tema da assimilação e marginalização do que se entendia no período foi
intensamente trabalhado nos conceitos que apresentou na obra Assimilação e Populações
Marginais no Brasil. Assim, a definição de uma identidade era um processo complicado e ímpar
ao imigrante, na qual suas representações e visões do mundo e de si próprio se defrontavam
num contexto completamente estranho e novo. Consequentemente, o desafiava a buscar
semelhanças que identificavam e ao mesmo tempo conflitavam com sua cultura num processo
dinâmico de adaptação. Nesse desafio de busca de semelhanças e diferenças não houve um
consenso entre os intelectuais. Alguns se engajaram na discussão da identidade nacional e
atuaram na empreitada da legitimação do Estado e sua identidade. Nesse sentido, Oliveira 160
Vianna (1934) não mediu esforços nas suas estratégias para atingir ou apropriar-se de um
discurso sobre identidade nacional e legitimar o Estado. Diante das novas situações exigentes 1
no período, este tinha de se validar com uma identidade.

Criar conexões de união e pertencimento, o que faz do brasileiro se sentir brasileiro era
uma reflexão que estava sempre presente na dinâmica do tempo. Conceituações nacionais na
construção da identidade foram incessantemente elaboradas a explicar um Brasil positivo diante
de seu passado escravocrata que agora estava perante o progresso na modernidade. Darcy
Ribeiro (1995) bem coloca essa questão do povo brasileiro que diante de ambiguidades,
alteridades e afirmações ele se revela um “ser” confuso de se definir. O autor qualifica que o
brasileiro estaria condicionado a uma vinculação com o tempo futuro, ou seja o brasileiro visto
como um povo que se forma num movimento temporal que não se encerra, sempre estaria na
condição de “vir a ser”. Uma espécie de projeto identitário condicional em construção. A
modernidade que se anunciava no Brasil através da expansão econômica não podia mais
compactuar com os modelos explicativos do século XIX que atribuía o “atraso” do país à
presença do negro. Para Ortiz (2012, p. 38) a escravidão colocava limites epistemológicos para
o desenvolvimento pleno da intelectualidade. Foi após o abolicionismo que possibilitou
algumas das transformações na sociedade, é que o negro vai integrar, de forma bastante
proposital por parte de alguns intelectuais, o lugar desse ser sujeito no cenário nacional.

Na primeira metade do século XX, Gilberto Freyre, contemporâneo de Emílio Willems,


se apropriou da região do Nordeste e buscou sua própria interpretação do país. Analisou aquela
região de modo que a generalizou para o país como um todo. Para Carlos Guilherme Mota
(1985), tal tentativa e posterior consolidação reclama uma postura frequente entre os
intelectuais. Quer dizer, que o tipo de explanação adotada pelos “explicadores do Brasil” não
se limitou a um campo específico, porque quando tratavam de uma região específica,
generalizavam as suas conclusões para o Brasil como um todo (MOTA, 1985, p. 30). Nisso
encontramos um modelo explicativo que visa integrar as diferenças na homogeneidade cultural
e social. A teoria da mestiçagem de Gilberto Freyre concebida através da miscigenação resultou
no “equilíbrio de antagonismos”.

Os estudos antropológicos e sociológicos de Emílio Willems enfatizaram a teoria da


assimilação e marginalização das populações da região Sul do Brasil e seu contato com outras
culturas, especialmente a luso-brasileira, a qual Gilberto Freyre seu contemporâneo, considerou
160
a mais positiva e bem-adaptada à realidade nacional. No início da década de 1940 aconteciam 2
os Congressos de Brasilidade com a discussão de ideias para a formação da nova sociedade
brasileira moderna. Casualmente coincidiam com as políticas educacionais nacionalizadoras do
Estado Novo (1937-1945) em prol do civismo na tentativa de nacionalização forçada para
integrar os grupos culturais a uma só cultura através da homogeneidade nacional das
instituições. A indagação concernente seria como situar os descendentes de imigrantes frente à
teoria da miscigenação e o luso-tropicalismo desse período. Nesse sentido, algumas teorias
culturalistas que se prendiam ao biológico buscavam sustentação através da adaptação ao meio
enquanto agente físico-espacial que transforma o indivíduo em algo “novo” com as
características desse novo meio. Em suma, o imigrante ao se integrar ao novo meio perdia sua
identidade devido à capacidade física dessa natureza tropical.

Já mencionamos que em contexto similar ao período, Freyre escreveu Casa-Grande


&Senzala (1933) sob a perspectiva da mestiçagem vinculada ao meio. O trópico seria esse meio
efervescente que propiciaria a adaptação biológica e a mistura de raças como elemento
integrador. Atento aos seus conceitos do período, Willems compreendeu o processo de
assimilação como uma incorporação gradativa dos estrangeiros na cultura do grupo dominante,
no caso a sociedade brasileira, cuja matriz lusa não era negada pelo autor. Sua compreensão
sociológica do processo de assimilação se aproximou da vertente compreensiva de Max Weber.
A metodologia de Willems para o estudo dos fenômenos sociais tratou de separar de forma
bastante útil, a metodologia das ciências humanas ou sociais das ciências naturais.

CONCLUSÃO

A temática da assimilação apresentada por Willems (1940) foi tratada pelo autor como
um fenômeno de ação social e que não poderia ser explicado pelas leis da natureza, nem por
um espaço integrador “em si”. Segundo seu pensamento na obra Assimilação e Populações
Marginais no Brasil a Sociologia, Antropologia e a História encontravam um caminho próprio
para compreender as ações humanas, pois elas eram resultantes de ações impregnadas de
subjetividade e não necessariamente orientadas pela objetividade. O indivíduo nas suas
diferentes manifestações sociais era apresentado sob a ótica da compreensão da Sociologia 160
vigente, um ser conectado com inúmeras causas no sistema como um todo. Mais que investigar
uma(s) causa(s) ele era visto como parte desse sistema causal que não apresentava uma resposta
3
objetiva. A assimilação não poderia sob essa perspectiva ser considerada como um processo
que ocorresse naturalmente no meio, ou melhor, que o meio ao integrar o imigrante fosse dotado
de uma metafísica que nacionalizasse o estrangeiro apenas pelo contato com a natureza.

Numa perspectiva weberiana, o sentido das ações humanas era compreendida por
Willems para dar sentido ao significado dos comportamentos de indivíduos ou de grupos. Os
métodos compreensivos seriam capazes de extrair os sentidos dessas ações dos indivíduos e das
relações sociais. Logo, esses sentidos seriam subjetivos permeados de valores e emoções. Do
mesmo modo, as causas dos fenômenos não seriam objetivas, mas sim, variadas conforme o
contexto relacional que as envolvia. Pode-se dizer que no contexto weberiano não cabe ao
cientista ou intelectual emitir juízos de valores em sua pesquisa, bem como preferências
estéticas ou políticas na análise científica. Ou seja, faz-se necessário diferenciar a ação do
cientista da ação política. Tão logo, diferente dos demais intelectuais envolvidos no período e
sua vinculação ao momento “nacionalista” do Estado não é aplicada a Willems, pois observou
a situação e a estudou segundo seus métodos de modo a apresentar um pensamento culturalista
sobre a problemática questão da assimilação sem orientar um caminho ideológico a ser seguido.
Sua ação intelectual mostrou que o Brasil não estava em um atraso intelectual quanto as teorias
culturalistas sem que com isso tomasse partido nessa renovação cultural que se pretendia dar
ao Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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PATRIMÔNIO: UM DIÁLOGO ENTRE A MEMÓRIA E O ESPAÇO867

Ricardo Kemmerich868
Alexandra Begueristain da Silva869

André Luís Ramos Soares870

RESUMO

A ampliação do entendimento do que é patrimônio no Brasil a partir da constituição de 1988,


que passou a ser caracterizado como cultural, para além do “histórico e artístico”, permitiu que
uma variada sorte de referências materiais e imateriais fossem depositárias de valores
vinculados à história e á identidade dos povos que formam o Brasil para além da tradicional
pedra e cal. A possibilidade da reivindicação local para o reconhecimento destes depositários,
suportes de memória, que podem ser materiais ou imateriais, permite refletir sobre como a
memória se manifesta em um espaço, ou como o espaço influencia a evocação de uma memória.
Neste artigo fez-se uso de dois manuscritos escritos por um imigrante italiano que se
estabeleceu na região central do Rio grande do Sul para se pensar a territorialização da memória
ou a circunscrição da memória em um território. A mediação da memória através de suportes –
como o patrimônio cultural - será aqui analisada em uma perspectiva que procura fazer uma
ligação entre o relativismo do conhecimento histórico proposto por Ketih Jenkins em A História
160
Repensada e a solidariedade versus objetividade da História na obra Objetivismo, relativismo e
verdade: Escritos Filosóficos de Richard Rorty, enfatizando uma espécie de mediação da
6
memória pelo patrimônio cultural. Para isto serão exploradas as discussões a respeito de espaço
e lugar do artigo publicado na Revista Britânica Theory and History, Space: a usefull category
for historical analysis de Leif Jerram, as relações de espaço e história estabelecidas por Reinhart
Koselleck em Estratos do tempo e de território da Geografia.
Palavras-chave: Patrimônio. Memória. História. .

867
Parte deste trabalho foi apresentada no II Colóquio de Estudos Históricos Latino Americano na Unisinos que
ocorreu entre os dias 23 a 25 de agosto de 2016 e no III Encontro de Pesquisas Histórica da PUCRS que ocorreu
do dia 30 de agosto até o dia 1º de setembro.
868
Mestrando/Universidade Federal de Santa Maria/Bolsista Capes
rikrdo_kemmerich@hotmail.com
869
Doutoranda/Universidade Federal de Santa Maria/Bolsista CAPES

abegueristain@gmail.com
870
Doutor/Universidade Federal de Santa Maria/Professor UFSM

alrsoaressan@gmail.com
INTRODUÇÃO

Desde a promulgação da chamada Constituição Cidadã em 1988, a consolidação do


regime democrático em construção fomentou a discussão e abertura da participação popular em
diversos campos institucionais, incluído nestes, os órgãos referentes às práticas de
reconhecimento e preservação patrimoniais. A possibilidade da reivindicação local para o
reconhecimento destes elementos, o patrimônio, suportes de memória, permite refletir sobre
como a memória se manifesta em uma determinada territorialidade. Se o Brasil possui um
território enorme onde sua formação histórica cultural deu-se pela miríade dos povos, onde
estes se identificam diferentemente nele, o patrimônio cultural como representante da cultura e
da identidade brasileiras não deveria ser circunscrito aos respectivos locais de abrangência das
memórias? Pode ser o patrimônio suporte de uma memória territorializada?
Neste artigo fez-se uso de dois manuscritos escritos por um imigrante italiano que se
estabeleceu na região central do Rio grande do Sul para se pensar a territorialização da memória
ou a circunscrição da memória em um território. A mediação da memória através de suportes –
como o patrimônio cultural - será aqui analisada em uma perspectiva que procura fazer uma 160
ligação entre o relativismo do conhecimento histórico proposto por Ketih Jenkins em A História 7
Repensada e a solidariedade versus objetividade da História na obra Objetivismo, relativismo e
verdade: Escritos Filosóficos de Richard Rorty, enfatizando uma espécie de mediação da
memória pelo patrimônio cultural, na perspectiva da emergência da memória social em
detrimento das políticas estatais de memória.

Narrativa e História
[Vale Vêneto] O nome nos indica a origem de proveniência dos seus primeiros
habitantes. Eram venetos: isto é, das províncias pertencentes aquela região da Italia
que se chama Veneto, nome derivado de Veneza, belíssima cidade, antigamente
capital da republica deste nome.871

O nome de São João do Polesine, foi dado pelos primeiros colonos, especialmente por
alguns que conheciam os vales fertilíssimos do rio Pó na Itália, vendo abundante
colheita de milho que deram as primeiras roças feitas pelos primeiros compradores,

871
Trecho do manuscrito “A História de Vale Vêneto”, p. 2, 19--, Caixa Vale Vêneto em AHNSC.
compararam esta terra, egual aquela em fertilidade, e por isso começaram chamar-lhe,
ao lugar, Polesine.872

Estas são as referências aos locais, temporal e espacialmente distantes, que Antônio
Ceretta usa para explicar a origem dos nomes onde viveu. Ceretta foi um imigrante italiano que
veio para o Brasil em 1880 com sua família aos doze anos de idade e assentou-se na região
central do Estado do Rio Grande do Sul no antes denominado Núcleo Colonial Silveira Martins,
mais precisamente em Vale Vêneto e, posteriormente, São João do Polêsine, hoje município
emancipado, onde falecera e jaz enterrado no cemitério municipal com o epitáfio “1º Prof. de
S. J. do Polesine”. Antônio Ceretta produziu dois manuscritos que, pretensamente, conta a
história de Vale Vêneto e São João do Polêsine, em conjunturas políticas diferentes, a “História
de Vale Vêneto”, escrito em italiano (vêneto), no final do século XIX, aborda a história da
região do Vale Vêneto. Foi traduzido em 1941873, pelo próprio autor, quando o país vivia sob a
ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas e o outro manuscrito, “A História de São João do
Polêsine” no final da década de 1930 também no governo de Vargas. Mesmo sendo produto da
ação da memória de um indivíduo só, segundo Ceretta, testemunha ocular874, esses manuscritos 160
8
são importantes registros da história da comunidade, pois resultaram das impressões e
testemunhos do autor acerca das dificuldades enfrentadas pelas famílias durante os primeiros
anos de ocupação da região. Ao que tudo indica Antônio Ceretta queria preservar as memórias
da região de Vale Vêneto e Polêsine875. O município faz parte de uma territorialidade simbólica
denominada de Quarta Colônia, antes denominado Quarto Núcleo de Colonização Italiana do
Império do Brasil, onde a imigração italiana é manifestadamente um baluarte das identificações
locais, onde esta territorialidade se “constitui a partir das relações sócio-culturais, da identidade

872
Trecho do manuscrito “A História de São João do Polêsine”, p. 2, 19--, Caixa São João do Polêsine em AHNSC.
873
Há uma referência no manuscrito escrita pelo arquivista Pe. Claudino Magro sobre sua tradução. A historiadora
Maíra Inês Vendrame trabalha com o manuscrito original, escrito em 1894 e atenta que Antônio Ceretta omitiu
alguns fatos relacionados às desavenças com o sacerdote Antônio Sório, e a comunidade de Vale Vêneto, na
tradução. Para os fins aos quais se propõe este trabalho, se fez uso do manuscrito traduzido.
874
Na capa de um dos manuscritos inscreve-se “História de Vale Vêneto. Desde o ano de 1877 ate ano de 1886 do
Prosescrito por testemunhas ocolares dos fatos”.
875
Vale Vêneto originou-se a partir da expansão da Colônia Silveira Martins em 1877. A região de Polêsine veio
a ser povoada mais tarde, em 1893. Hoje Vale Vêneto é um distrito do município de São João do Polêsine.
edificada em raízes históricas, culturais e políticas, capaz de valorizar as tradições, os costumes
e seus conhecimentos” (FROEHLICH, J. M., 2007, p.3).

Ser “colono” nem sempre foi sinônimo de uma coisa boa, e, até hoje, em muitos
contextos ainda não o é. Entretanto, a partir da comemoração do centenário da imigração
italiana em 1974, houve um processo de valorização da memória da imigração italiana. Neste
processo, a valorização das tradições relacionadas à cultura imigrante, seu patrimônio cultural,
nos leva a pensar se há como dialogar as versões de memórias em narrativas a partir do
patrimônio876 cultural com a História? Esta problemática reside no fato da sobreposição de
narrativas não científicas (por que não memoriais?) solaparem o conhecimento controlado da
História enquanto Ciência, num caminho de valorização do patrimônio cultural no contexto do
chamado boom da memória.

Os manuscritos constituem relatos e “nenhum relato consegue recuperar o passado tal


qual ele era, porque o passado são acontecimentos [...]” e “já que o passado passou, relatos só
poderão ser confrontados com outros relatos, nunca com o passado” (JEKINS, 2007, p. 32).
Assim, são alguns aspectos comuns das memórias que engendram e formam a história da Quarta
Colônia e de seus habitantes que pretendemos dar ênfase, afinal menos do que referendar uma
160
memória oficial “o que importa é a capacidade dessa memória em criar laços entre os homens.” 9
(CANDAU, 2012, p. 191) Assim, esse texto discute a possibilidade do diálogo entre as
narrativas expressas num documento (os manuscritos de Antônio Ceretta), entendido por alguns
moradores como um patrimônio cultural do município, e da História.
A história como interpretações do passado manifesta-se por meio de representações,
desse modo, a construção de uma narrativa sobre o passado (seja qual for) trata-se de uma
representação. Para Chartier (2002), a representação significa a correlação de algo (imagem)
presente por um ausente (objeto) por lhe estar conforme, como a história – presença da
representação do que passou e o passado – o que de fato passou. Neste sentido as narrativas que
compõe o passado de um grupo, para Fernando Catroga (2015), a memória coletiva, consistem
em uma representação que unifica a complexidade das inúmeras experiências dos indivíduos,
distinguindo-os dos outros a partir daquilo que possa ser entendido como uma trajetória comum.

876
Para os fins desta discussão, Patrimônio refere-se ao que está inscrito no artigo 216 da constituição brasileira
de 1988.
A memória consiste no principal esteio e motor nos campos do patrimônio e da História.
No patrimônio por tratar-se propriamente de um bem877,algo passível de fruição,herdado e que
transmite em si uma memória. Na História por problematizar essas memórias, por desconstruir
os mitos edificados pela memória. Compartilho da visão de Keith Jenkins ao distinguir as
diferenças entre o passado e o que se tem acesso a ele ou qual relação no presente pretende-se
construir sobre o passado. Seriam versões que sustentam uma história impregnada de
“determinadas memórias”, pois:
o passado e a história não estão unidos um ao outro de tal modo que se possa ter uma,
e apenas uma leitura de qualquer fenômeno; que o mesmo objeto de investigação é
passível de diferentes interpretações por diferentes discursos; e que, até no âmbito de
cada um desses discursos, há interpretações que variam e diferem no espaço e no
tempo. (JENKINS, 2007, p. 27)

A história entendida aqui como uma representação metódica propõe a construção de


uma narrativa que se baseia em um corpus teórico e metodológico que permite um tratamento
de fontes para a construção de um conhecimento universalmente aceito. A memória cumpre a
mesma função que a história – as duas pretendem manter uma relação entre o presente e o
passado a partir da construção de uma narrativa - doravante, os sentimentos de afetividade e
simpatia são seus principais aspectos cognitivos. Dessa forma a memória propõe a verdade,
161
embora de forma suspeita, pois se sustenta a partir da idoneidade do(s) agente(s) evocador(es) 0
da memória. Estas manifestações da memória partem de relações indissociáveis entre a
memória autobiográfica, que se contrapõe àquela em que o sujeito está inserido. Assim, para
Catroga “o sujeito, mesmo antes de ser um eu, já está, de certo nível, imerso na placenta de uma
memória que o socializa e à luz da qual ele irá definir, quer a sua estratégia de vida, quer os
seus sentimentos de pertença e de adesão ao coletivo” (2015, p. 12). Este entendimento parte
de uma aproximação em que o sujeito reconhece e é reconhecido em um determinado grupo
onde sua narrativa histórica é o constituinte de sua identidade.

O Patrimônio Mediador

Richard Rorty, em sua obra sobre o relativismo e a objetividade na História


(preocupações sempre presentes dentro do debate historiográfico), propõe uma discussão acerca

877
Cf. MENESES, Ulpiano Bezerra de. Texto: O Campo do patrimônio cultural: uma revisão de premissas. In: I
Fórum Nacional do Patrimônio Cultural. Vol. 1. Ouro Preto, 2009.
de dois posicionamentos possíveis do sujeito cognoscente ante uma significação consciente do
mundo onde:
o primeiro modo estabelece-se através da narração da estória da sua contribuição para
a comunidade. Essa comunidade pode ser a comunidade histórica atual na qual eles
vivem, ou outra comunidade atual, distante no tempo ou no espaço, ou ainda uma
comunidade totalmente imaginária que consista talvez de uma dúzia de heróis e
heroínas selecionados da história, da ficção ou de ambos. O segundo constrói-se a
partir da descrição de si mesmos estando em relação imediata com a realidade não-
humana [...] Eu diria que estórias do primeiro tipo exemplificam o desejo por
solidariedade, e que estórias do segundo tipo concretizam o desejo por objetividade.
(RORTY, 1997, p. 37)

Ao considerar esses dois posicionamentos, Rorty afirma que o pragmatismo pautado na


solidariedade é de que nós (historiadores) devemos substituir uma fundação meramente ética
em que as características metafísico-epistemológicas do paradigma científico devem ser
substituídas por nosso senso de comunidade. Isto quer dizer que “nós devemos pensar em nosso
senso de comunidade como não tendo nenhuma fundação para além da esperança compartilhada
e da confiança por um tal compartilhar” (1997, p. 50). Esse compartilhamento é efetuado em
cima de um solo prático aonde as preocupações entre a memória e a história, ou entre o social
e a ciência vêm sob as luzes dos estudos referentes ao campo do patrimônio e da identidade.
Talvez a busca pela construção de narrativas a partir do patrimônio seja a concretização da
161
busca por solidariedade, ao passo que a História, uma busca pela objetividade. Na solidariedade 1
a memória e a identidade são referências para o constructo das narrativas históricas em que o
patrimônio cultural é seu mediador.
François Hartog defendeu em Tempo e Patrimônio a ideia de que atualmente, a
modernidade, vive sob um regime de historicidade ao qual ele atribui o termo presentismo, em
que a ruptura de uma vivência orgânica com o passado é sintomática aos modos como lidamos
com a memória e o patrimônio. Sintomas esses que o autor chama “patrimonialização
galopante”,que gerariam identidades em delírio ensejadas por patrimônios em delírio
(CANDAU, 2012), isto no contexto europeu, mais especificamente na cidade de Berlim, em
que o autor se utiliza de uma realidade específica para ilustrar o que tem acontecido no mundo
Ocidental. A realidade europeia contrasta por certa forma com a da América na medida em que
os projetos nacionais de construção de memória e de identidade divergem na realidade e ações.
No Brasil estas discussões são aprofundadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, uma tradição que vem desde seu advento no Estado Novo. Com a Constituição
Federal de 1988, as diretrizes conceituais do IPHAN foram revistas, substituindo o que no
Decreto Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, era entendido como Patrimônio Histórico e
Artístico por Patrimônio Cultural. O que aconteceu com a mudança da Lei de 1937 em
comparação com a de 1988 fora um “deslocamento da matriz” ao qual Ulpiano Bezerra
Meneses muito bem articula em seu artigo O Campo do Patrimônio Cultural: uma revisão de
premissas (2009). Deslocar do Estado para a sociedade ações e problematizações do campo
cultural e do patrimônio ensejam reflexões que devem ser analisadas pelos historiadores,
especialmente pelo fato da memória ser um campo de lutas simbólicas onde a cultura
hegemônica tende a obscurecer memórias periféricas ou de grupos com menor visibilidade
social através da banalização da memória desencadeada pelo mercado do turismo cultural.
Paulo César Garcez Marins em um artigo recentemente publicado na revista Estudos Históricos
do Rio de Janeiro, Novos patrimônios um novo Brasil?,examina as práticas de preservação do
patrimônio cultural adotadas na esfera federal a partir da redemocratização do país na década
de 1980, tendo por foco os bens que alcançaram tombamento e registro. Marins procura analisar
em que medida os conceitos de identidade nacional, tradicionalmente acolhidos pelo IPHAN
desde 1937, foram efetivamente revistos ao se realizarem as seleções de novos bens protegidos.
Em seu trabalho defende a ideia de que a situação brasileira se encontra longe do que se poderia 161
chamar de “abuso monumental”, “banalização do patrimônio” ou “inflação patrimonial”, ou
nas palavras de Hartog uma “patrimonialização galopante”. Marins defende esta perspectiva a 2
partir da análise de 1.195 bens tombados e 38 bens registrados pelo IPHAN, que segundo ele
apenas começaram a cumprir a missão de representar a complexidade da formação cultural do
Brasil.
Esses autores nos mostram como as práticas de preservação do patrimônio podem ser
estimuladas por fatores diferentes. Em um, a realidade europeia é marcada pela industrialização
e modernização de forma muito mais ampla, espacial e temporalmente, além de um histórico
de experiências traumáticas legadas pela Primeira e Segunda Guerra Mundiais, onde o “tempo
presente” parece ser o novo regime de historicidade, segundo Hartog. Em contrapartida no
Brasil, pode-se inferir que a ampliação das práticas de levantamento, tombamento e registro de
bens é sinal de que a história do Brasil é reconhecidamente formada por variados povos das
mais diversas culturas. Se isto representa um avanço ou não e para quem isto é um avanço, e
como trabalhar este contexto, são temas explorados por Ulpiano Meneses (2007), Márcia
D’Aléssio (2015), Paulo Marins (2016), Márcia Chuva (2012), onde o historiador representa o
principal articulador, no sentido de questionar e de estabelecer uma crítica como medida contra
sua banalização, tema que também é explorado por François Choay em Alegoria do Patrimônio,
em uma realidade majoritariamente europeia .O patrimônio enquanto campo de litígio, assim
como a memória, carrega em si interesses dos quais determinados grupos pretendem defender,
apoiar, construir, dar ênfase, esquecer. Se a história não passa de múltiplas versões acerca do
passado, variando conforme as pessoas, o tempo e o espaço, assim como afirmou Keith Jenkins,
e essas perspectivas conjugarem-se aqueles interesses de quem os contam, estaríamos próximos
ao que Richard Rorty propõe ao defender a perspectiva de uma leitura histórica do mundo
pautada na solidariedade. Este mote intelectual é oportuno onde o foco na visão do “local”, do
habitante é central. Se há uma preocupação crescente quanto às deturpações aos abusos
memória em outros espaços, como no europeu, seus desdobramentos devem ser comparados
em certa medida com o Brasil para uma avaliação crítica. O deslocamento da matriz exposto
por Ulpiano Bezerra Meneses faz parte das novas interlocuções que a nova legislação
patrimonial permite serem pensadas na história, onde o habitante – aquele que pratica o hábito
– reconhece o patrimônio a partir de “uma relação de pertencimento – mecanismo nos processos
de identidade que nos situa no espaço, assim como a memória nos situa no tempo: são as duas 161
coordenadas que balizam nossa existência”. (MENESES, p. 26, 2009) O radical de habitante
vem do vocábulo latino habeo que significa possuir ou manter relação – esta relação se dá no 3
que concerne ao local em um espaço. A relação entre o habitante e espaço dentro das ciências
sociais e humanas, como na antropologia, psicologia, e na geografia dá-se a partir daquilo que
é chamada a territorialidade que se refere
às relações entre um indivíduo ou grupo social e seu meio de referência, manifestando-
se nas várias escalas geográficas – uma localidade, uma região ou um país – e
expressando um sentimento de pertencimento e um modo de agir no âmbito de um
dado espaço geográfico. No nível individual, territorialidade refere-se ao espaço
pessoal imediato, que em muitos contextos culturais é considerado um espaço
inviolável. Em nível coletivo, a territorialidade torna-se também um meio de regular
as interações sociais e reforçar a identidade do grupo ou comunidade. (ALBAGLI, p.
28, 2004)

Para defender a ideia do patrimônio cultural como portador de uma memória


territorializada deve-se primeiro estabelecer algumas balizas. Primeiramente devemos entender
que o local está inserido dentro de um determinado espaço e é neste espaço que a história tem
a possibilidade de manifestar-se. Koselleck em Estratos do tempo atenta para as dificuldades
dentro da história em estabelecer as relações entre história e espaço, pois apesar de fazerem
parte do jargão comum “no âmbito da ciência, porém, eles não são nada claros, e não há
consenso a seu respeito”. (Koselleck, p. 73, 2014) Debater sobre o espaço é oportuno para
problematizar a memória, referência temporal de uma narrativa, pois a história como sendo a
manifestação da memória através da linguagem (Koselleck, 2014) precisa de um espaço para
desenrolar-se e de um local para referenciar-se espacialmente. A virada espacial, tem debatido
sobre o espaço como uma categoria de análise dentro da história, Leif Jerram,. A definição de
conceitos para se pensar as possibilidades do espaço e liames e sua influência na história, parte
da confusão dos termos cuja definição de lugar (place) e espaço (space) é usada de forma
ambígua por muitos estudiosos. Para isto, em seu artigo, Space: a usefull category in historical
analisys faz a distinção de três categorias que segundo ele pretendem desambiguar os termos.
São elas, primeiro o espaço (space), que se refere à disposição de coisas em relação a outras
coisas ou pessoas e animais, sendo propriamente o meio material; em segundo o local
(location), ou a localização das coisas na superfície (geralmente) da Terra e as relações dessas
coisas nela; e terceiro o lugar (place), que se referem a valores, crenças, códigos e práticas onde
sua localização pode ser real e imaginária. Como afirma Jerram “is impossible to know with 161
our current chaotic vocabulary if scholars are addressing locations (“concrete places”) or the
cultures, practices, values, and symbols that cluster there” (p. 407, 2003). No campo do 4
patrimônio, o termo lugar de memória desenvolvido por Nora,
“(lieux) are both specifically geographical, marking defined locations on the surface
of the globe (like the tomb of the unknown warrior under the Arc de Triomphe), and
also about meanings and symbols and experiences that may cluster there. So in Nora’s
analysis, “lieu” refers both to location and place as I have defined them: sites with
specific geocoordinates (location), and complex sociocultural systems of managing
human experience associated with those sites (place). (p. 406, 2003)

Isto acontece quando há uma memória imanente ao lugar. Pode-se pensar o contrário,
quando há apenas o espaço e quando alguém o investe de significado, a partir da evocação de
uma memória referente á outro espaço, mas que se relaciona pelas similitudes gravadas na
memória do sujeito histórico. Ou seja, o sujeito evoca memórias a partir do espaço, similar ao
seu referente. Talvez a palavra pra isto seja a idiossincrasia. No início deste ensaio fora expostos
dois trechos de dois manuscritos escritos pela mesma pessoa. O referido personagem, imigrante
italiano que chega ao Brasil com doze anos de idade relaciona, quando mais velho, duas
localidades diferentes a partir dos referenciais de espaço e locais semelhantes – o povoado de
Polêsine no vale do rio Soturno e com isso faz referência ao vale do rio Pó, na Itália, por sua
fertilidade (disposição do espaço em relação a outro), assim como Vale Vêneto faz referência
ao Vêneto (um novo local ocupado em um espaço diferente, mas que se referencia por outra
localidade, por seus habitantes) província italiana de onde provinham a maior parte da massa
imigrante da região da Quarta Colônia.

As condições diacrônica, que constituem o espaço da experiência, participam tanto


dele tanto quanto as expectativas que, razoáveis ou incertas , lhe são vinculadas.
Proximidade e distância que delimitam um espaço de diversas maneiras, só podem ser
experimentadas no tempo, a partir do qual a proximidade imediata ou a distância
mediada podem ser exploradas ou transpostas. Remeto-me a esses diagnósticos
antropológicos para mencionar a relação cambiante entre espaço e tempo como
contexto que fundamenta qualquer interpretação ou auto interpretação humana.
(Koselleck, p. 83, 2014)

Os testemunhos de Antônio Ceretta sobre os acontecimentos das primeiras ondas


imigrantistas italianas são ricos em referenciais históricos necessários para o entendimento do
processo de formação da história e da identidade das comunidades ítalo brasileiras,
especialmente aquelas das comunidades de São João do Polêsine e de Vale Vêneto. Os 161
documentos suportes de memória constituem uma herança de valor histórico e cultural 5
significativo para a comunidade local, que merece a atenção dos historiadores enquanto
representação de um passado acerca da imigração italiana. Os manuscritos enquanto
documentos portadores de memória podem fomentar um debate profícuo com relação aquilo
que é entendido como patrimônio local. As impressões de Antônio Ceretta sobre as experiências
dos primeiros imigrantes chegados a região da Quarta Colônia de Imigração Italiana no RS, se
constituem também, em importantes documentos para que a comunidade possa acessar as
referências de seu passado, possibilitando as bases para o estabelecimento das negociações que
se pretende oportuno para a constituição e ressignificação das identificações locais. Pensar o
patrimônio a partir do local, do regional abre portas para que os manuscritos de Ceretta
endereçado “aos presentes e aos futuros” evoque a recordação da trajetória dos imigrantes
italianos da região da Quarta Colônia. Assim, neste sentido recordar é um ato comunitário, no
qual o patrimônio é condição para uma enunciação ordenadora, de identificação.
Quando dizemos que um depoimento não nos lembrará nada se não permanecer em
nosso espírito algum traço do acontecimento passado que se trata de evocar, não
queremos dizer todavia que a lembrança ou que uma de suas partes devesse subsistir
tal e qual em nós, mas somente que, desde o momento em que nós e as testemunhas
fazíamos parte de um mesmo grupo e pensávamos em comum sob alguns aspectos,
permanecemos em contato com esse grupo, e continuamos capazes de nos identificar
com ele e de confundir nosso passado com o seu. (HALBWACHS, 2004, p. 33).

A evocação de memórias a partir dos referenciais patrimoniais, símbolos da identidade


e da cultura, só se viabiliza quando mediada pela partilha comunitária, ou seja, a recordação
necessita da anuência do “outro”. Assim, aqueles bens que se constituem por referência a
história da comunidade, podem ser utilizados como forma de educação patrimonial, onde esta
possa problematizar os referentes culturais e seus usos. A historiadora Maria de Lourdes
Parreiras Horta (1999) identifica a Educação Patrimonial como um processo permanente e
sistemático de trabalho educacional, que se centra no patrimônio cultural como fonte primária
de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo. Destarte, um patrimônio dito
“nacional” não representaria tradições nacionais, senão em pretensão, ou seja, não subsumem
memórias propriamente “locais”.

CONCLUSÃO

As impressões acerca do passado de Polêsine e Vale Vêneto por parte de Antônio Ceretta
consistem de uma visão própria, particular sobre a história comunitária, assim dadas a partir de
161
suas memórias. É importante se ter isso em mente ao discutirmos a importância das memórias 6
para a relação do presente com o passado de uma comunidade, para que não se incorra na
legitimação de um discurso histórico que suprima a visibilidade de outros grupos sociais,
também presentes na composição das áreas coloniais italianas no Brasil, onde entramos
novamente nos problemas do não compartilhamento de memórias mediadas pelo patrimônio.
A relação que tentei estabelecer a entre o relativismo de Rorty e Jenkins junto às
reflexões patrimoniais, vai ao sentido de que a História teria como principal preocupação os
enunciados epistemológicos que distinguiriam o saber histórico de opinião, ao mesmo tempo
em que o patrimônio cultural representaria a memória territorializada. Hartog propõe que
estaríamos saindo de um regime de história-memória para história-patrimônio sintoma do
presentismo. Mas se no Brasil, a legislação patrimonial atual permite o corpo social eleger
aquilo que representa a trajetória histórica da comunidade e que reflita sua identidade através
de suas memórias (da memória coletiva), da memória local, assim territorializada pelo
patrimônio, ele o patrimônio é possuidor de memóriada população local que o elegeu. A própria
lei entende o patrimônio como municipal, estadual, nacional, da humanidade, etc. Desse modo,
é o patrimônio cultural territorializado, elencado pela comunidade queconscientiza os
indivíduos visando a compreensão da história regional. Assim, conciliar a História e a memória
mediada pelo patrimônio, contra a banalização é uma possibilidade quando o social é convidado
apresentar suas próprias referências (memórias mediadas pelo patrimônio). O manuscrito “A
História de São João do Polêsine desde sua fundação até o ano de 1936 escrita pelo Prof.
Antônio Ceretta” fora transcrito e transformado em um livro em parceria com o EaD/CTISM –
UFSM, e lançado na 60ª Festa Regional do Arroz de São João do Polêsine no ano de 2015, para
ser distribuído a rede municipal de ensino.
Este trabalho e suas problematizações são fruto das discussões propostas pelo Núcleo
de Estudos do Patrimônio e Memória (NEP/UFSM) e pelo programa de Pós Graduação em
História da UFSM, e incentivada financeiramente pela CAPES. As discussões acerca dos usos
da memória e do patrimônio enquanto construções sociais e das vias de diálogo
patrimônio/História não se encontram esgotadas. Espera-se ainda que novas reflexões sejam
suscitadas por historiadores e cientistas sociais para a promoção de atividades vinculadas à
educação patrimonial, permitindo a socialização de saberes científicos através do diálogo 161
constante entre a comunidade regional e a comunidade acadêmica, de modo a contribuir para a
compreensão e valorização dos elementos estruturadores das formas de identificações locais, 7
lembrando sempre que o patrimônio insere-se num rol eminentemente político, e por isto não
deve ser deslocado do social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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RORTY, Richard. Objetivismo, relativismo e verdade. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1997.

161
9
A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA FOTOGRÁFICA DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DE SANTA MARIA*878

Cristina Strohschoen dos Santos**879

RESUMO

O presente trabalho aborda o acervo fotográfico produzido pela Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM), o qual constitui-se em memória e patrimônio arquivístico da universidade – um
conjunto documental de interesse para a comunidade local, regional e nacional, tendo em vista
sua repercussão como registro de testemunho da sua atuação. O acervo, com mais de 85 mil
negativos flexíveis, é custodiado pela Divisão de Arquivo Permanente do Departamento de
Arquivo Geral (DAG) da UFSM. Percebe-se, em função da relevância desse recorte da
memória de Santa Maria, a necessidade de estabelecimento de políticas de preservação deste
patrimônio. No ano de 2010, em parceria com o Curso de Arquivologia e o Mestrado em
Patrimônio Cultural foi desenvolvido o Projeto de Extensão “A Preservação do Patrimônio
Cultural Regional de Santa Maria na Produção de Instrumentos de Pesquisa Arquivísticos”,
realizado com o apoio do Proext 2010 – MEC/SESu. Atualmente está em andamento a
digitalização dos negativos (1958–2002) para acesso ao pesquisador pela internet: a descrição
das fotografias segue a Norma Brasileira de Descrição Arquivística (Nobrade) utilizando-se a 162
ferramenta ICA-AtoM. Além disso - pensando na difusão arquivística e com objetivo de
aumentar o uso desse acervo pelos historiadores e pesquisadores foi elaborado o Projeto
Retalhos de Memória de Santa Maria. Iniciado em 2015, o projeto tem como alvo promover a
0
difusão da memória fotográfica institucional por meio da publicação semanal de artigos sobre
imagens selecionadas por acadêmicos de Arquivologia, História e Jornalismo na página on-line
do projeto. Em parceria com o Núcleo de Acessibilidade são produzidos também vídeos com a
tradução em Língua Brasileira de Sinais – Libras e audiodescrição das imagens. Segundo
Canabarro (2005) a cultura fotográfica é uma modalidade da cultura que participa na construção
da memória, tanto individual quanto coletiva, sendo evidente a preservação desta produção
imagética, a qual se constitui em patrimônio cultural.
Palavras-chave: Memória. Preservação do patrimônio fotográfico. Arquivologia.

INTRODUÇÃO

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Mestre em Patrimônio Cultural e Arquivista, Universidade Federal de Santa Maria, crisarquivista@gmail.com.
Imagens fotográficas integram o patrimônio cultural de um país, por este motivo
instituições que as custodiam em seus acervos devem definir políticas de preservação, acesso e
difusão específicas para as mesmas.

Para o estabelecimento de políticas de acesso e preservação às coleções fotográficas, as


instituições devem levar em consideração a legislação e neste sentido corrobora a publicação
da resolução n. 41/2014 pelo Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) recomendando aos
órgãos a implementação de política de gestão arquivística de documentos integrando todos os
gêneros documentais, incluindo os audiovisuais, iconográficos, sonoros e musicais,, bem como
a aplicação da descrição arquivística, com base na Norma Brasileira de Descrição Arquivística
(NOBRADE), visando o acesso às informações.

Tendo em vista a relevância e repercussão como registro de testemunho da sua atuação,


o acervo fotográfico produzido pela UFSM constitui-se em memória e patrimônio arquivístico
da universidade.

O Departamento de Arquivo Geral é o órgão da UFSM que custodia o patrimônio


documental, iconográfico e audiovisual da instituição, e o Arquivo Fotográfico da UFSM está 162
inserido neste contexto. Sua difusão é ação indispensável para que se cumpra a função dos
arquivos: o acesso às fontes de pesquisa.
1

Capítulo I – Fotografia, Memória e Acesso x Acessibilidade

Segundo Manini a fotografia considerada como fonte documental, passa a ser de acesso
público no momento em que integra arquivos históricos: “a fotografia só se torna um documento
de uso geral, de interesse público coletivo e de importância histórica e/ou cultural quando
inserida num arquivo” (MANINI, 2008, p. 127)

Para Kossoy a importância cultural e histórica das imagens reside nas intenções, usos e
finalidades que permeiam sua produção e trajetória.

A fotografia tem uma realidade própria que não corresponde necessariamente à


realidade que envolveu o assunto, objeto do registro na vida passada. Trata-se da
realidade do documento, da representação: uma segunda realidade, construída,
codificada, sedutora em sua montagem, em sua estética, de forma alguma ingênua,
inocente, mas que é todavia o elo material do tempo e espaço representado, pista
decisiva para representarmos o passado. (KOSSOY, 2002, p. 38)

Quanto às funções dos arquivos, Bellotto considera que devem ser agregadas funções
paralelas, as quais tem a ver com cidadania, com a aproximação da população de sua identidade
cultural e de seu patrimônio histórico.

Trata-se do uso popular do arquivo histórico, como detentor que é do patrimônio


documental da sociedade na qual se insere. Não mais só as buscas que um cidadão
pode fazer [...] mas também o papel de mediação cultural que o arquivo pode exercer
em seu benefício. (BELLOTTO, 2014, P. 133)

Arquivos fotográficos de instituições de ensino superior são riquíssimas fontes de


memória visual e sua difusão – uma das funções arquivísticas – deve ser implementada. Bellotto
(2004) cita três tipos de difusão: cultural, editorial e educativa. A difusão editorial ocorre com
a publicação do conteúdo do acervo, por meio de publicações que referenciam o acervo. São 162
canais de comunicação com o exterior, pois levam à comunidade e ao meio acadêmico 2
informações sobre o conteúdo do acervo. Desta forma, com as publicações, o arquivo pode
atrair novos usuários, ser reconhecido na comunidade e contribui para sua rentabilidade e
manutenção das atividades.

Aliado a tudo isso, há a inclusão social. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa


com Deficiência880 foi aprovada no ano de 2015, após 12 anos em tramitação no Congresso
Nacional. Nela estão contempladas inclusive as seis barreiras para exclusão social classificadas
por Sassaki (2010). No caso do presente projeto, ele converge em ações quanto a barreiras nas
comunicações e na informação - qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que
dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens e de informações por
intermédio de sistemas de comunicação e de tecnologia da informação.

880
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm>.
Quando abordamos a aprendizagem e a acessibilidade as tecnologias são propulsoras de
acessibilidade.

O uso crescente de recursos que possibilitam a interação e a comunicação vem


impondo transformações nos ambientes educacionais, devido a evolução e
desenvolvimento tecnológico. E essas mudanças afetam diretamente o modo como as
pessoas se comunicam, aprendem, tratam o conhecimento e interagem umas com as
outras. (SILUK, PAULO, 2013, p. 171)

Tratando-se de arquivos fotográficos, o recurso de audiodescrição e libras rompe uma


das barreiras para exclusão social classificadas por Sassaki, a barreira comunicacional.

Capítulo II – Organização do Arquivo Fotográfico da UFSM

Os registros fotográficos das atividades de ensino, pesquisa e extensão, bem como as


atividades administrativas da UFSM foram realizados desde o final da década de 50. O Setor
Fotográfico era o responsável pela produção de fotografias e estava vinculado ao Gabinete do
162
Reitor desde 1987. Naquela época, o “fotógrafo institucional” registrava o evento, voltava para 3
o laboratório fotográfico e revelava o filme. Algumas fotografias eram imediatamente
produzidas, pois era usual que diariamente alguma notícia referente a UFSM estivesse
estampada nos jornais da cidade. Os negativos fotográficos eram arquivados em envelopes
padronizados.

O acervo de negativos estava acumulado no Setor Fotográfico, localizado no quarto


andar do prédio da Administração Central no campus da UFSM. Em 1987 houve a primeira
iniciativa de organização do acervo. Visando padronizar a forma de acondicionamento, foi
adotado um envelope com abertura lateral, de papel mais resistente na cor branca e com campos
de identificação para data, nome do evento, nome dos personagens, número de fotogramas e
autoria das imagens (fotógrafo). As tiras de negativos, no interior desse envelope, foram
intercaladas com papel de seda para dar proteção e aumentar a sua durabilidade.
Figura 1: Envelope com negativo flexível e foto positiva do Arquivo Fotográfico da UFSM.

Fonte: Arquivo Fotográfico da UFSM - Departamento de Arquivo Geral.

O recolhimento deste acervo ao Departamento de Arquivo Geral aconteceu em 1994.


Seu volume é de mais de 85 mil negativos flexíveis tamanhos 6x6 e 35mm e mais de três mil 162
imagens positivas em papel dos anos de 1958 a 2002, como é apresentado na tabela abaixo.
4

Tabela 1: Volume de negativos flexíveis do Arquivo Fotográfico da UFSM

Período 6x6 35mm 6x7 6x9 16mm 110mm Fotolitos Total

1958-1970 16.185 1.582 13 17.780

1971- 1980 18.082 22.303 45 12 3 40.445

1981- 1990 683 18.537 1 44 19.265

1991- 2002 10 7.630 7.640

Total 34.960 50.052 1 57 45 12 3 85.130

Fonte: A autora
Em 1998, a criação da Coordenadoria de Comunicação Social fez com que a atividade
de produção de fotografias fosse absorvida por esse órgão. Atualmente, um dos maiores
produtores de fotografias digitais na instituição é a Agência de Noticias, da Coordenadoria de
Comunicação Social.

Capitulo III – Preservação e Acesso da Memória Fotográfica da UFSM

A partir de 2008, o arquivo fotográfico foi objeto de estudos de uma dissertação de


Mestrado em Patrimônio Cultural e a partir daí foram definidos o Atom como plataforma para
acesso e o Archivemática como repositório institucional de preservação. Portanto, o acervo está
sendo digitalizado e disponibilizado na internet881 para difusão e acesso a pesquisadores.

Durante a execução do projeto de extensão Preservação do Patrimônio Cultural


Regional de Santa Maria na Produção de Instrumentos de Pesquisa Arquivísticos, que foi
desenvolvido pelo Departamento de Arquivo Geral (arquivista Neiva Pavezi) em parceria com
o Departamento de Documentação da UFSM (Prof. Dr. Daniel Flores) foi elaborada a primeira
versão de um guia contendo orientações para descrição da documentação fotográfica. O projeto 162
5
obteve financiamento do PROEXT MEC/SESU 2010, Fundo de Incentivo a Extensão - FIEX
2011 e bolsas BAE – Bolsa de Assistência ao Estudante. De 2010 a 2013 diversos alunos do
Curso de Arquivologia participaram do projeto.

A partir de 2014 as atividades que vinham sendo desenvolvidas passaram por


reformulações e originaram o Projeto de Digitalização e Descrição do Arquivo Fotográfico da
Divisão de Arquivo Permanente do Departamento de Arquivo Geral da UFSM.

A descrição das imagens foi iniciada seguindo-se a ISAD-G - norma geral internacional
de descrição arquivística e atualmente segue as orientações da Nobrade – Norma Brasileira de
Descrição Arquivística.

Capitulo IV – Difusão do Acervo

881
Disponível em: <http://ptah.adm.ufsm.br/atom/>.
Pensando na difusão arquivística do acervo foi elaborado o Projeto Retalhos de
Memória de Santa Maria, coordenado pelo DAG em parceria com o Núcleo de Acessibilidade.
Iniciado em 2015, o projeto tem como alvo promover a difusão com acessibilidade da memória
fotográfica institucional por meio da produção de artigos para publicação.

Semanalmente é publicado um artigo sobre uma imagem pré-selecionada do arquivo


fotográfico, na página on-line do projeto, o qual é disponibilizado em formato pôster (imagem),
em texto com audiodescrição da imagem (em formato PDF), em áudio e em vídeo com a
tradução em Língua Brasileira de Sinais - Libras.

Figura 2: Artigo n. 50 do projeto publicado em formato pôster.


162
6
162
7

Fonte: Site do Departamento de Arquivo Geral.

Em decorrência da divulgação do Projeto Retalhos na imprensa local e estadual, a


difusão do arquivo fotográfico da UFSM aconteceu em outras mídias.

Na data da comemoração dos 55 anos da UFSM, 12 de dezembro de 2015, o Caderno


MIX do Jornal Diário de Santa Maria publicou a reportagem Um Salto No Passado. A matéria
abordou o projeto de digitalização do acervo fotográfico publicando diversas imagens. Como
podemos observar na figura abaixo, na própria capa da reportagem o jornalista usou uma
fotografia do acervo.

Figura 3: Reportagem no Caderno MIX do Diário de Santa Maria


Fonte: Site do Jornal Diário de Santa Maria 882.

A inovação no sentido do uso do recurso de audiodescrição no acervo de fotografias


resultou em reportagem veiculada em rede estadual no Programa Bom Dia Rio Grande de 30
de março de 2016.
162
Figura 4: Reportagem no Programa Bom Dia Rio Grande
8

882
Disponível em: <https://diariodesantamaria.atavist.com/um_salto_para_o_passado>.
Fonte: Site da RBS TV883.

Na universidade, o Programa Visibilidade desenvolvido pela Pró-Reitoria de Extensão


(PRE) da UFS, o qual objetiva divulgar ações extensionistas desenvolvidas pela universidade à
comunidade publicou uma reportagem na terceira edição da Revista Extenda. A figura abaixo
mostra a capa do periódico e a primeira página da reportagem.

Figura 5: Reportagem na Revista Extenda

162
9
Fonte: Site do Programa Visibilidade PRE – Revista Extenda884.

CONCLUSÃO

Com segurança é possível afirmar, que além da fotografia constituir-se em poderoso


veículo de comunicação visual, seu valor como fonte de informação e como patrimônio
documental corroboram a afirmação de Kossoy quanto a história da fotografia de um país estar
intimamente ligada ao processo histórico deste, sem possibilidade de dissociação.

Assim, considera-se a importância dos arquivos como instrumento de gestão


indispensável à eficácia e efetividade administrativas, e como garantia do direito à informação

883
Disponível em: <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/bom-dia-rio-
grande/videos/t/edicoes/v/universidade-disponibiliza-acervo-fotografico-em-audiodescricao-e-libras-no-
rs/4920381/?fb_action_ids=846813328764278&fb_action_types=og.likes>.
884
Disponível em: <http://w3.ufsm.br/pre/index.php/secretaria/visibilidade-novo#revista-extenda>.
e à memória. E essa garantia do direito à memória e informação pressupõe que além da função
arquivística preservação, as funções acesso e difusão são imprescindíveis e se complementam.

Percebemos a importância da preservação da memória fotográfica da UFSM quando


tabulamos a estatística de pesquisadores do último ano e visualizamos um aumento de 200%
nas demandas.

Além disso, a compreensão de que nas instituições de ensino é que se percebe evidente
a discussão sobre a necessidade de efetivação das políticas públicas de inclusão motivou
realizar não só a preservação da memória fotográfica desta universidade, mas também
promover a acessibilidade da informação por meio da parceria com o Núcleo de Acessibilidade
da UFSM.

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Arquivos permanentes: tratamento documental. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Editora FGV,
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cultura com a difusão do arquivo fotográfico da UFSM. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE
EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA, 7., 2016, Ouro Preto - MG. Anais... Ouro Preto:
Universidade Federal de Ouro Preto, 2016. p. 01 – 11.

163
1
A FERROVIA NA CIDADE DE SANTA MARIA – GÊNESE DO LUGAR DE
MEMÓRIA

Hugo Gomes Blois Filho885

“Se a imaginação nos projeta além de nós, enquanto que a


memória nos reconduz para trás de nós, o lugar nos apoia e
nos ambienta, permanecendo embaixo e em torno de nós”.

Edward S. Casey

RESUMO
Este artigo objetiva evidenciar as relações estabelecidas com o advento da vinda da Ferrovia
para a cidade de Santa Maria - RS, bem como seus reflexos socioeconômicos culturais, dentro
do recorte espacial/temporal que contempla o entorno da ferrovia, no final do século XIX e as
primeiras décadas do século XX. Para a realização deste estudo, foi proposta uma análise de
163
conteúdo, organizada em coleta de dados e preparo das informações selecionadas, unitarização,
seguida da descrição e categorização destas informações e por fim a interpretação dos 2
conteúdos. Assim buscou-se os conceitos relativos a lugar, lugar de memória, lugarização, em
diferentes autores com vistas a uma maior abrangência de sentidos. A partir da apropriação
destes conceitos, foi identificado o fenômeno de lugarização no espaço ferroviário e a gênese
de lugares, podendo ser entendidos, atualmente, como lugares de memória. E, para fins da
análise e comprovação, utilizou-se algumas das categorias de análise de Reinhart Koselleck
(1997), que possibilitou a compreensão do processo de segregação tanto socioeconômico
cultural, quanto territorial no espaço ferrocarril.
Palavras-chave: lugar de memória; lugarização; ferrovia.

INTRODUÇÃO

885
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria – RS - Brasil.
hgblois@gmail.com
Para alcançar o lado invisível das cidades, é preciso sentir a sua concretude. São
elementos que as materializam aos nossos olhos, aspectos e/ou características, tais como: ruas,
edificações, praças, bem como monumentos e símbolos. Há, porém, nelas, bem mais do que
isso. Quem as conhece e observa sabe que contêm ou possuem muito mais do que esses sinais
físicos, prontos para se revelarem. São vivências de outra ordem, muitas delas, capazes de ali
permanecerem e, até, de multiplicarem-se. Vivem nos objetos, dotando-os de uma espécie de
espírito do tempo.

Na segunda metade do século XIX, em razão do desenvolvimento do Estado do Rio


Grande do Sul, foi necessária a otimização das comunicações entre as localidades. Até 1869,
quando se iniciou a implantação da ferrovia, no Estado, os caminhos terrestres estavam
conjugados com as vias de navegação em rios. Nesse contexto, em 1873, a linha férrea chegou
a Santa Maria, assumindo grande importância no desenvolvimento dessa cidade passando a ser
um importante entreposto comercial, centralizando o tráfego de trens, no Rio Grande do Sul.

Este artigo tem como objetivo analisar a chegada da ferrovia na cidade de Santa Maria,
bem como seus reflexos na estrutura socioeconômica cultural e espacial, na perspectiva dos
conceitos de lugar, memória e lugar de memória. Para tanto, será abordado a compreensão do
163
processo de lugarização e a percepção da gênese de lugar, e consequente consolidação como 3
porções distintivas dentro do contexto urbano.

Para efeito de compreensão, serão adotadas as categorias de análise, as quais são


descritas por Reinhart Koselleck, no seu texto História y Fenomenologia (1997). Assim, serão
analisadas, ao longo deste estudo, algumas relações estabelecidas durante a implantação da
ferrovia e o processo de lugarização que resultou em segregações entre os grupos de
trabalhadores ferroviários.

METODOLOGIA

O procedimento metodológico compreende a análise de conteúdo considerando que os


dados aqui apresentados são qualitativos, referentes a fotografias, cartografia urbana, e acervo
documental. A análise qualitativa é aquela que, incorpora a questão do significado e
intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais, sendo essas últimas
tomadas, tanto no seu estabelecimento quanto nas suas transformações, como construções
humanas significativas (BARDIN, 1977). Nesse sentido, pretende-se, numa abordagem
qualitativa, buscar os elementos significativos que referenciam aspectos “invisíveis a olho nu”,
mas que estão presentes nos dados levantados. Assim, a abordagem qualitativa aplica-se ao
estudo da história, das relações, das representações, das crenças, das percepções e das opiniões,
produto das interpretações que os seres humanos fazem de como vivem, constroem seus
artefatos e a si mesmos, sentem e pensam (TURATO et al, 2008).

O processo seletivo dos documentos a serem trabalhados priorizou aqueles que


correspondiam ao recorte temporal, final do século XIX e início do século. XX. O recorte físico
considerou o espaço ferroviário de Santa Maria.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Para entender a chegada da ferrovia e a constituição do que chamaremos a seguir de


lugares de memória, devemos observar que o século XIX representa para Santa Maria a
compreensão da natureza do seu sítio urbano que, criado de um acampamento com função 163
geopolítica e militar no sul do território brasileiro, evoluiu para um aglomerado urbano com 4
projeção regional. As formas de uso e ocupação do solo em Santa Maria, ao longo dos anos,
tiveram, inicialmente, concentração comercial no centro da cidade. Mais tarde, com a instalação
da estação férrea, a partir de 1885, a expansão urbana toma rumo norte, além dos trilhos e
paralelamente a estes.

A ferrovia, implantada na porção norte da cidade, em região plana do sítio, entre o final
da serra geral e a elevação onde se assentava o povoado, acarretou uma nova reestruturação da
malha urbana. O novo centro ferroviário do Estado impulsiona-se com a implantação de novas
funções, integradas à economia brasileira, dependente do setor primário exportador, mas que,
ao desenvolver novas relações sociais e de produção, tem a sua evolução urbana influenciada
pelo crescimento do setor terciário que ocupava a maior parte da população ativa, promovendo
o desenvolvimento da cidade como entreposto comercial.

Essa dinâmica sócio/urbana definiu novos espaços e usos e, consequentemente,


promoveu a formação de novos grupos sociais, organizados por ofícios ou classe econômica.
Os novos espaços foram resultado de um reordenamento do meio urbano, no sentido de dotá-
lo de usos característicos às exigências que se impunham naquele momento.

Para compreender melhor o que significa a dinâmica de mudanças no panorama da


cidade, é necessário compreender o significado do conceito de lugarização, que, neste estudo,
refere-se ao processo886 pelo qual um determinado fato/evento contribui para a consolidação de
um lugar. O termo lugarização vem sendo empregado, ao longo do tempo, em diferentes áreas
do conhecimento, tais como, geografia, artes plásticas, comunicação e semiótica, dentre outras.
Para Veiga-Neto (2007), lugarização887 é definida como a capacidade diferencial de criar
lugares no espaço ou de trocar as posições relativas de modo mais ou menos controlado, com o
fim de maximizar as vantagens por ocupar essa ou aquela posição.

Na cidade de Santa Maria, o processo de lugarização iniciou-se com a chegada da


Ferrovia, considerando que o espaço urbano passou a ter uma nova significação. A
ressignificação espacial-urbana da cidade estava associada, num primeiro momento, ao
sentimento de modernidade. Traduz-se no elemento dinâmico, veloz, inovador, que é a máquina
sobre os trilhos. Se de um lado o pequeno povoado, no final do século XIX, ligado a atividade
agropastoril, via o tempo passar lentamente, com o advento da Ferrovia, o tempo foi acelerado.
163
Já, a gênese dos lugares está associada a vários fatores que colaboram para que, estes
5
fragmentos, possam ser reconhecidos pela sua simbologia como elementos especiais dentro de
um determinado espaço urbano. Ao mesmo tempo em que estes lugares ganham significado
passam a ter significado, ou seja, passam a dizer algo. Assim, pode-se afirmar que é quando o
lugar toma responsabilidade pelo seu destino.

Lugar pode ser definido como a porção que adquire características que a distinguem do
todo. É o conjunto simbólico dos elementos do lugar que o torna distintivo. Assim, o lugar é
expressivo e possuidor de aura888, espírito e tempo. O que começa como espaço indiferenciado

886
Processo: sequência contínua de fatos que apresentam certa unidade, ou que se reproduzem com certa
regularidade; andamento, desenvolvimento.
887
Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45. p. 249-264. jun. 2007.
888
Pode-se partir por registrar um lugar da aura natural, onde predomina a afloração do genius loci natural; e
seguir, progressivamente, ao longo de uma gradação que nos irá conduzir a um lugar da aura cultural, onde
claramente predominam as marcas deixadas por uma ação humana. (CASTELLO, 2007. p. 20).
transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor. O espaço
passa a ser identificado como lugar quando adquire definição e significado.

Castello (2007, p.2), em relação ao conceito de “lugar”, afirma que “[...] não há uma
definição única com a qual definir lugar: lugar é daqueles conceitos que, como paixão, têm sua
definição prejudicada quando posto em palavras”. Isso se deve, principalmente, às várias áreas
de conhecimento a que se vinculam os pesquisadores que trabalham com esse conceito e pelas
quais se orientam. Entretanto, há um consenso entre eles de que o estudo do lugar requer
contribuições interdisciplinares com implicações transdisciplinares.

O significado de lugar, mesmo ancorado em atividades e configurações físicas, não é


propriedade dessas características, mas, das intenções e experiências humanas (RELPH, 1976).

Yu-Fu Tuan (1980) como geógrafo, referindo-se à importância da contribuição de


enfoques da geografia, nas abordagens interdisciplinares dos estudos relativos a lugar, tais como
percepção ambiental, análise da paisagem, simbolização, cultura e aculturação, empregou o
termo topofilia, relacionando-o a diversos conceitos pertinentes à percepção ambiental, no
sentido de caracterizar o apego ao lugar. Tratou do amor e de laços do indivíduo com 163
determinado lugar e a influência desses sentimentos na percepção, estruturação e avaliação do
ambiente. O enfoque humanista e seu conceito de topofilia fazem-se úteis porque possibilitam
6
que aspectos da percepção de lugar sejam considerados, sem preterir o rigor e a objetividade
científicos, proporcionando uma visão das implicações subjetivas possivelmente neles contidas.

O lugar representa o compartilhamento do cotidiano entre as mais diversas pessoas,


firmas e instituições. Cooperação e conflito são a base da vida em comum, afirma Milton Santos
(2006). Cada indivíduo exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e a contiguidade
é criadora de comunhão.

O lugar é o quadro de uma referência pragmática do mundo, do qual lhe vêm


solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro
insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas
mais diversas manifestações de espontaneidade e da criatividade. (SANTOS, 2006, p.
322).

Nesse sentido, tendo como enfoque o papel que pode representar o lugar na vida
humana, deve-se associá-lo a características que contribuem para a ordem e o bem estar social.
Para Castello (2007, p.56), “Lugar é um componente crítico para o bem estar humano por
diversas razões: (1) Provê uma base para a congregação humana; (2) localiza o
desenvolvimento econômico e o consumo; (3) é o lócus da representação política; e (4) é o
palco onde as políticas públicas atuam sobre as pessoas”.

Há que se considerar, portanto, as inter-relações estabelecidas entre ser humano e lugar,


as quais representam concretude, acolhimento e bem estar, o que, numa dimensão
particularizada, difere das ideias que se tem a respeito de espaço.

Certeau (1998) distingue lugar e espaço - Lugar é a ordem onde os elementos


relacionam-se em coexistência. Portanto, exclui-se a possibilidade para duas coisas ocuparem
o mesmo lugar. Impera a lei do “próprio”, os elementos se acham uns ao lado dos outros, cada
um situado num lugar “próprio”. Assim, o lugar implica em estabilidade. O espaço existe
quando consideramos vetores de direção, velocidade e tempo. Espaço é o efeito produzido pelas
operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam. O espaço estaria para o lugar
como a palavra quando falada, isto é, quando é percebida na ambiguidade de uma efetuação,
mudada em um termo que depende de múltiplas convenções, colocada como o ato de um
presente (ou de um tempo), e modificado pelas transformações devidas a proximidades
163
sucessivas. Do mesmo modo, a leitura é o espaço produzido pela prática do lugar constituído 7
por um sistema de signos – um escrito.

Também podemos conceber o sentido de lugar conforme a perspectiva de Paul Ricoeur,

Da memória compartilhada passa-se gradativamente à memória coletiva e a suas


comemorações ligadas a lugares consagrados pela tradição: foi por ocasião dessas
experiências vividas que fora introduzida a noção de lugar de memória, anterior às
expansões e às fixações que fizeram a fortuna ulterior dessa expressão. (RICOEUR,
2007, p. 157)

O espaço como resultante de interação social passa a ser percebido como lugar quando
é particularizado através dos aspectos simbólicos, dos signos, de diferentes elementos da
memória individual e/ou coletiva, e do sentimento de pertencimento. Assim, há reconfiguração
do espaço, uma vez que passa a ser dotado de sensações, afeto, referências particulares ou do
grupo. Conforme identificado pela autora Cyntia Andrade, estes lugares representam os lugares
de memória, e como ela ressalta:
Mesmo lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é
lugar de memória se sua imaginação o investe de uma aura simbólica. São lugares que
se estendem uma história regada de cumplicidade, significações, afetividade,
pertencimento, ou simplesmente de alma. (ANDRADE, 2008, p. 570)

Podemos observar, também, segundo Castello, que o lugar de memória está vinculado
à memória afetiva e histórica local, sendo definido como aqueles que:

[...] se qualificam a partir de uma evocação da “memória” coletiva das pessoas a


respeito de fenômenos do ambiente onde vivem essas pessoas, evocam a formação
histórica de sua cidade, evocam as formas construídas de acordo com os padrões
arquitetônicos vigentes em diferentes períodos históricos, e evocam lendas, enfim,
resultam de fenômenos da memória estimulada por elementos do imaginário temporal
local. (CASTELLO, 2007, p.17).

3.1. A ferrovia: os lugares de memória


A segurança e a agilidade, que o meio de transporte representou à época, colocava a
cidade de Santa Maria num patamar nunca antes atingido. O espaço urbano passou a dar
sustentação e fazer parte da logística de transportes sobre trilhos. Toda essa alteração físico-
espacial terminou por indicar nova configuração urbana, induzindo o desenvolvimento atraído
pela estação férrea, elemento central de organização em novos usos. E contribuindo para definir 163
uma estratificação espacial marcada pela diferenciação de lugares. Assim, Avenida Rio Branco
ligou o centro da cidade à estação férrea, através de um eixo sul-norte chegando até o Largo da
8
Gare889. A Vila Belga, projetada por Wauthier890, tinha a finalidade de abrigar os trabalhadores
administrativos da companhia belga Compagnie Auxiliaire des Chemins de Fer au Brésil, tendo
como bordo norte a ferrovia e a oeste a Avenida Rio Branco. O Bairro Itararé, margeando a
ferrovia, abrigou a moradia dos trabalhadores responsáveis pela manutenção da estrada de ferro,
chamados pejorativamente de tucos891. Limitado ao norte pelo contraforte da Serra Geral, ao
sul pela estrada de ferro e, ao leste, pela Rua Euclides da Cunha. (Figura 1).

889
Expressão utilizada para denominar o edifício da Estação Férrea e sua praça adjacente.
890
Gustave Wauthier. Engenheiro Belga. Recebeu a incumbência da companhia Belga: “Compagnie Auxiliaire
des Chemins de Fer au Brésil” para realizar o projeto da Vila Operária Belga, em Santa Maria.
891
Tuco: denominação atribuída ao trabalhador responsável pela manutenção de ferrovia, originada da expressão
Tuco –tuco, que significa pequeno mamífero roedor. Muitas das espécies são restritas a determinadas regiões,
como, por exemplo, o ctenomys minutus, que habita as planícies litorâneas arenosas do Rio Grande do Sul. É
predado por aves de rapina, como o chimango do sul e outros pequenos gaviões, cobras, etc... Para proteção
mantém-se próximo à saída da toca. Seu nome é onomatopeia do ruído que ele faz, quando cava o chão. Também
chamado simplesmente de tuco. Pode ser observada, em relação aos tucos, trabalhadores que faziam a manutenção
das vias férreas, uma analogia, uma vez que estes últimos, ao baterem constantemente com os martelos nos trilhos,
para efetuar consertos, produziam um ruído semelhante ao do tuco-tuco ou tuco, fazendo com que a população os
Figura 1– Núcleo urbano de Santa Maria, recorte.

3.2. O lugar de memória - Bairro Itararé


O estudo toponímico do nome "Itararé" indica que o termo tupi, significa "pedra
escavada". Designa rios subterrâneos, que correm no interior de pedras calcárias, no entanto,
tal significação não se aplica, diretamente, ao bairro em estudo. O nome do Bairro Itararé
associa-se à cidade de Itararé, no Estado de São Paulo, para onde o ramal ferroviário santa-
mariense se ligaria. 163
O bairro está limitado a norte pelo contraforte da serra geral, a sul pela estrada de ferro,
o que terminou por limitar a sua expansão; a leste pela Rua Euclides da Cunha e, a oeste pela
9
Rua Sete de Setembro. Esta delimitação foi adotada pelo autor por entender que esses limites
representam a origem histórica do bairro, embora hoje os limites legais estabelecidos não sejam
os mesmos. A morfologia urbana do bairro, considerando as características topográficas, é
irregular o que lhe confere características muito particulares.
A história do Itararé está intimamente ligada à história da ferrovia, em Santa Maria. Sua
origem deu-se paralelamente à implantação da via férrea no final do século XIX, com a chegada
dos primeiros obreiros, chamados de tucos, que tinham como ofício a manutenção da estrada.

chamassem pelo mesmo nome do roedor. Surge, então, uma singularidade deste fato, a onomatopeia de uma
onomatopeia, ou seja, enquanto o nome do tuco-tuco foi-lhe dado pelo ruído que fazia, os trabalhadores receberam
o nome de tuco, pelo ruído das marteladas que lembravam o roedor. É possível estabelecer uma analogia entre
roedor e os trabalhadores ferroviários da manutenção, isto é, da mesma forma que o roedor raramente afastava-se
de sua toca, os tucos também mantinham uma relação quase umbilical com os troleis – suas “casas viajantes”,
passando a maior parte do dia ao lado ou sobre elas (BRUNO, 2008).
A escolha do sítio para fixação de suas moradias estava relacionada à facilidade de acesso ao
seu local de trabalho, uma vez que o mesmo margeia a ferrovia.

As primeiras unidades habitacionais de que se tem notícia estavam assentadas junto ao


leito da ferrovia; essa era uma prática recorrente. Estes assentamentos estavam situados em
áreas totalmente desprovidas de qualquer infraestrutura, a localização junto aos trilhos,
possibilitava um ganho em termos de qualidade de acessibilidade. Outro importante elemento
a considerar é, também, a facilidade de deslocamento dos trabalhadores em todo território rio-
grandense.

No que se refere à habitação, eram executadas em madeira, com telhado de chapas


onduladas de aço zincado, em duas ou quatro águas. A distribuição espacial em planta era em
forma retangular. Os sanitários eram desprendidos do corpo da habitação, uma vez que, não
existia rede de saneamento. A leveza do material empregado nas unidades estava relacionada à
facilidade que se impunha no deslocamento em vagões da ferrovia.

Os serviços ferroviários, dadas as suas características, especificidades e importância,


atraíram, do final do século XIX até meados do século XX, um grande número de trabalhadores 164
que, consideradas as condições que lhes eram oferecidas, representava uma grande
possibilidade em termos de ganho financeiro e promoção social. Os trabalhadores, desde cedo,
0
se ocuparam em organizar a categoria. Sua capacidade de organização era invejável,
especialmente não só no que se referia aos direitos dos trabalhadores, mas, também, à garantia
de acesso à saúde, educação, alimentação. A CCEVFRGS, fundada em 1913, deu inicio à
instituição organizativa que iria representar a maior cooperativa de trabalhadores da América
do Sul. Tinha, por objetivo, assegurar amparo a seus funcionários. Suas ramificações e serviços
iam desde clubes sociais, escolas, açougues, armazéns de gêneros alimentícios e vestuário,
farmácia para oferta de medicamentos, saúde bucal, até hospitais – Casa de Saúde, que
complementavam a assistência integral à saúde dos trabalhadores e suas famílias.

O bairro era composto por uma população bastante diversificada, no que se refere a sua
origem. Eram judeus, oriundos da colônia Philippson892 de Itaara; italianos, que chegaram

892
Instalada em 1904 na cidade gaúcha de Itaara, foi a primeira colônia de judeus no Brasil.
através da quarta colônia de imigração italiana893; e, alemães894, vindos de São Leopoldo. Os
primeiros dedicaram-se ao comércio, enquanto que os últimos iniciaram atividade industrial
relacionada à produção de bebidas, cerveja e gasosa895. O panorama econômico, somado ao
poder aquisitivo da população local, proporcionava um comércio bastante emergente durante o
período de apogeu da ferrovia. No entanto, todo o ambiente propício ao acesso de bens e
serviços não teve reflexo na produção arquitetônica local e modos de vida. Observa-se que a
maioria das famílias levava uma vida bastante modesta.

O que se observa hoje, é que as referências de suas memórias afetivas ficaram abaladas,
uma vez que, enquanto no passado ser ferroviário era sinônimo de status social, hoje, tal relação
com esse passado histórico, remete a uma condição de subalternidade ao restante da cidade
(Figuras 2 e 3).

164
1
Figura 2 – Bairro Itararé, ao fundo vê-se o Figuras 3 – Bairro Itararé.
hospital Casa de Saúde. Data não identificada.
Data não identificada. Fonte: Casa de Memória Edmundo Cardoso
Fonte: Casa de Memória Edmundo Cardoso Cardoso

3.3. O lugar da memória - Vila Belga


Situada a norte da cidade, a Vila operária Belga (Figuras 4 e 5), projetada e construída
entre os anos de 1905-1909, concentra-se em pouco mais de dois quarteirões. O primeiro é
compreendido pela Av. Rio Branco e Ruas Manoel Ribas, Dr. Vauthier e Ernesto Becker, e o
segundo pelas Ruas Manoel Ribas, André Marques, Ernesto Becker e Dr. Vauthier e, ainda, nos
prolongamentos das ruas André Marques e Dr. Vauthier, tendo como fundos o Largo da Gare

893
A quarta colônia, denominada Silveira Martins, foi fundada em 1876, localizada na região central do Estado do
Rio Grande do Sul.
894
A chegada dos primeiros imigrantes a São Leopoldo foi em 1824, data de surgimento do primeiro núcleo de
colonos alemães.
895
Bebida aromatizada, gaseificada feita á base de açúcar, água e ácido cítrico.
da viação férrea. Trata-se de um dos primeiros conjuntos horizontais de habitação operária,
implantado no Rio Grande do Sul. Destinado a abrigar trabalhadores administrativos da
Compagnie Auxiliaire de Chemins de Fer au Brésil e suas famílias.

Figura 4 – Foto aérea de Santa Maria (1940) . Figura 5 - Vila Belga, final do séc. XX.
Fonte: Casa de Memória Edmundo
Cardoso

Projetado nos moldes do estilo belle époque, com influência art-nouveau da Bélgica. O
conjunto habitacional operário destaca-se pela variedade nos tipos, tamanhos das unidades,
164
mas, principalmente, de sua modenatura. Verificou-se que, além das variações de tipos - planta 2
e volumetria, e do número e posições diferentes em aberturas, a modenatura – os conjuntos de
moldura e ornamentação – não se repete em nenhuma edificação geminada, sendo quarenta e
dois tipos diferenciados de habitações, o que confere variedade e principalmente
individualidade, mesmo que estando em conjunto.

3.4. O lugar de memória - Avenida Rio Branco


A Avenida Rio Branco (Figura 6), cujas denominações anteriores foram Rua General
Pinto Bandeira, Rua do Coronel Valença e Avenida Progresso, teve sua atual denominação
associada ao Barão do Rio Branco, professor, político, jornalista, diplomata, historiador e
biógrafo. A abertura da Avenida estava relacionada à necessidade de criar um eixo sul-norte,
ligando, o então núcleo urbano à ferrovia. A Avenida inicia-se na Praça Saldanha Marinho,
importante espaço geopolítico-cívico, com trajeto sul-norte retilíneo e descendente chegando
até o Largo da Gare.
Vê-se na esquina com a Rua
dos Andradas a Capela do
Império do Divino, templo que
abrigou os cultos católicos
entre 1898 e 1909.

Figura 6 – Início do século XX – Av. Rio Branco.


Fonte: Casa de Memória Edmundo Cardos

A configuração espacial que a Avenida Rio Branco assumiu tinha como preceito básico
dotar o espaço urbano de características de modernidade representada pela largura da via, com
canteiro central arborizado e uma arquitetura diferenciada que aproximasse essa nova
volumetria a um padrão edilício representado pela arquitetura eclética.

3.5. Interpretação das relações de interação

A chegada da ferrovia na cidade de Santa Maria transformou significativamente, como já

164
exposto, a estrutura urbana, não somente por ser um divisor físico-territorial e segregacionista,
mas também porque agiu como estruturadora deste novo cenário. Desta segregação física,
anteriormente analisada, é possível observar como resultante a segregação socioeconômico 3
cultural verificada nos diferentes ofícios: os tucos, os funcionários administrativas e a elite
comercial. Para compreender melhor estas relações, faz-se uso das categorias de análise, citadas
na literatura de Koselleck (1997).

A descrição das categorias de análise está referenciada na obra História y Hermenéutica de


Koselleck (1997), em que são apresentadas cinco categorias analíticas - poder matar e poder
morrer, amigo e inimigo, interior e exterior, finitude e maturação, senhor e escravo. Para fins
desse estudo serão abordadas apenas três destas categorias.

A primeira a ser abordada tratará da análise do espaço urbano ferroviário sob a ótica das
relações estabelecidas na sua ocupação, distinguindo diferentes categorias de trabalhadores,
representando estratificação social. Assim, a categoria denominada amigo/inimigo permite-nos
estudar as relações entre o trabalhador braçal responsável pela manutenção da ferrovia, bem
como o funcionário administrativo desta, e a elite urbana, representada pelos comerciantes.
Visto que, conforme Koselleck afirma,
[...] o que las unidades de acción se conciban como sujetos de clases para suprimir las
clases en general, la expansión empírica presupone siempre, en su sucesión
diacrónica, el par antitético amigo-enemigo. En lenguaje categorial se trata aquí de
una oposición formal, que permanece abierta a toda atribución de contenido; por
consiguiente, se trata de una especie de categoría trascendental de posibles historias.
(KOSELLECK, 1997, p. 99 - 100)

Dessa análise é possível observar relações de distanciamento, uma vez que os três grupos
de diferentes ofícios ocupavam espaços distintos no contexto urbano. Este distanciamento
representado, em boa parte pelos ofícios considerados hierarquicamente de menos valia,
tinham, naturalmente, reflexos diretos nas relações sociais estabelecidas entre os grupos.
Aqueles que trabalhavam na manutenção da ferrovia, os tucos, exerciam tarefa complementar
a dos trabalhadores administrativos, no entanto, esta complementariedade, ao invés de
aproximá-los, os distanciava uma vez que suas condições sociais eram menosprezadas em
relação ao grupo administrativo. E estes, por sua vez, também estabeleciam relações de
distanciamento daquela que era considerada como elite, representada pelos comerciantes.

Enquanto isso, a segunda categoria contempla as relações locacionais que cada grupo social
supracitado ocupava na malha urbana, denominada pelo autor como interior/exterior, visto que, 164
segundo Koselleck
4
No hay ninguna unidad de acción social o política que no se constituya delimitando
otras unidades de acción. Si todos los hombres son nuestro prójimo, cosa innegable,
históricamente lo es cada uno de manera diversa. No hay historia de amor que no se
cree sus propias relaciones internas y externas, por cuya tensión no se deje al mismo
tiempo transportar. Y la oposición entre «interno» y «externo» aparece en todas las
historias, incluso cuando las unidades de acción configuran un agregado de más de
dos personas. (KOSELLECK, 1997, p. 100)

Assim, podendo ser definida como aquela que analisa o distanciamento espacial
estabelecido através das alocações dos diferentes grupos de trabalhadores no entorno da
ferrovia.

Os Tucos estavam estabelecidos à norte - porção espacialmente definida pelos limites


dos contrafortes da serra geral, e, à sul, pelo ramal ferroviário - local denominado Bairro Itararé.
A localização desses trabalhadores neste território obedecia a uma lógica de segregação espacial
que pode ser observada pelos limites físicos da porção, a norte a serra e a sul a ferrovia. É
possível inferir que os limites representavam simbolicamente a fronteira do território.
Os trabalhadores administrativos, por sua vez, localizados na Vila Operária Belga,
habitavam a porção territorial que apresentava cota planialtimétrica mais elevada em relação ao
Bairro Itararé. Nos elementos fronteiriços a serem observados, nesta categoria, é possível
elencar que a diferença de nível entre as duas porções Bairro Itararé e Vila Operária Belga
associado ao divisor físico – ferrovia – estabelecia a fronteira entre o exterior e o interior. Está
aqui presente, simbolicamente a ferrovia, novamente evidenciando a linha de fronteira, divisor
físico, entre essas duas porções urbanas.

Finalmente, a Avenida Rio Branco era o ramal que ligava o centro urbano ao Largo da
Gare, concentrando a elite comerciante e todos os serviços que davam suporte a ferrovia estando
caracterizada como o eixo/canal de ligação da cidade aos bairros dos trabalhadores ferroviários.
Avenida que tinha sua origem físico/espacial à sul, estendia-se a norte em cota descendente
criando a ilusão, para quem desembarcasse no Largo da Gare, de que a vida urbana se
estabelecia a partir deste deslocamento que se dava através da Avenida, criando um cenário
alegórico da elite santa-mariense.

Finalmente, a categoria definida pelo autor como senhor/escravo, estruturada a partir de


relações determinadas como relações de poder, segundo expõe Koselleck
164
Me refiero a «amo» y «esclavo». Platón enumera seis diversas relaciones conforme a
5
las cuales surgen por naturaleza vínculos de dependencia que ayudan a crear
relaciones de dominación (Herrschaftsverhältnisse) en el campo de lo político, pero
igualmente conflictos políticos. Platón define como dependencia, que por naturaleza
no provocaría conflictos o pretensiones heterónomas, sólo una relación: vivir según
leyes.15 Desde el punto de vista formal, se trata, [p. 84] por consiguiente, de
relaciones [jerárquicas] de arriba abajo. También ellas pertenecen a las
determinaciones de la finitud, sin las cuales, a pesar de todos los adelantos técnicos
de la autoorganización política, no son posibles historias. Una de estas características
es la desnuda relación de poder (Machtverhältnis) de los fuertes frente a los débiles.
(KOSELLECK, 1997, p. 104)

Nos possibilita, para fins de estudo, analisar estas relações a partir da produção do
espaço edificado. A habitação operária do Bairro Itararé era produzida, via de regra, por grupos
cooperativos de moradores locais, cuja tipologia era marcada pelo uso de materiais leves, forma
regular e ausência de adornos que, em sua essência, era a expressão da simplicidade reproduzida
unidade por unidade executada pelos próprios moradores do local. Esses elementos distintivos
da arquitetura ali produzida, caracterizavam muito bem a condição de subserviência
representada nos elementos edilícios.

Já, a habitação operária Belga, cujo projeto arquitetônico fora elaborado em modelo
importado sem a referência daquilo que era, até então, padrão tipológico. Sua arquitetura,
embora de volumetria simples, marcava como elemento de fachada, nos quarenta pares de
unidades habitacionais, quarenta modenaturas diferentes, o que por fim caracterizava a intenção
de individualizar o próprio indivíduo, dando a ele uma marca distintiva dentro do seu grupo
local, e destes, com o grupo de trabalhadores, moradores do Bairro Itararé.

Os edifícios que compunham o cenário da Avenida Rio Branco, estavam destacados por
uma arquitetura que marcava o apelo da elite em evidenciar, a partir da produção arquitetônica
local, elementos que às distinguissem daqueles dos quais queriam se distanciar. Trata-se de uma
arquitetura cujo padrão estilístico eclético era, naquele momento, a aspiração da elite.

Para fins de conclusão deste estudo – ainda que esta discussão não se encerre somente
nesta análise – observou-se que há efetivamente uma segregação físico-territorial e
socioeconomico cultural, no espaço compreendido como ferroviário, com base numa leitura de 164
lugar de memória, considerando a implantação da ferrovia na cidade, no final do século XIX.
As categorias de análise de Koselleck (1997) nos auxiliam a compreender que, por trás da
6
gênese e consolidação de lugar de memória, há sem dúvidas aspectos invisíveis. Esses aspectos
podem ser percebidos simbolicamente através de uma categorização considerando os espaços
de domínio e poder que cada grupo representa no contexto estudado.

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curriculares. Educação em Revista, Belo Horizonte (MG), n.45, p.249-264, jun. 2007.
A HISTÓRIA COMO RECURSO EPISTEMOLÓGICO PARA A COMPREENSÃO
DA IMPLANTAÇÃO DOS COLÉGIOS TÉCNICOS NA UFSM

Julio Cesar Ausani896

RESUMO

O presente trabalho é parte do projeto de pesquisa integrante do Programa de Pós-Graduação


em Educação profissional e Tecnológica, Curso de Mestrado Acadêmico em Educação
Profissional e Tecnológica, do Colégio Técnico Industrial de Santa Maria (CTISM). Através de
pesquisas bibliográficas, análises de periódicos impressos ou online e de depoimentos,
pretende-se refletir sobre a importância da história política enquanto recurso teórico
epistemológico para a compreensão do processo de implantação dos Colégios Técnicos na
Universidade Federal de Santa Maria, na década de 1960. A justificativa para tal abordagem se
dá pelo fato de que as políticas públicas para a educação profissional e tecnológica estão
intimamente relacionadas às demandas sociais e econômicas do contexto histórico que as
determinam. Por isso a importância de, no presente, compreendermos as experiências
produzidas no passado, as quais poderão estabelecer determinadas expectativas acerca do
futuro. Nesse sentido, algumas inquietações nos motivam a pesquisar o contexto histórico de
implantação das unidades de ensino técnico na UFSM. São elas: quais as razões para a
164
implantação de duas unidades escolares voltadas para o ensino profissionalizante de nível
médio, no âmbito da Universidade, na década de 1960? Em que ambiente local e regional se 8
deu tal implantação? Sob a égide de um novo modelo produtivo internacional, decorrente da
chamada “Revolução Verde”, qual o papel destinado ao Brasil e de que forma esse modelo
refletiu na criação das duas unidades? Que influência o convênio “MEC-USAID” teve nessa
decisão?

Palavras chave: História Política, Ditadura Civil-Militar, Educação Profissional, Trabalho.

ABSTRACT

This work is part of an integral research project of the Graduate Program in Professional and
Technological Education, Academic Master in Professional Education and Technology,
College of Industrial Technical Santa Maria (CTISM). Through bibliographical research,
printed periodic reviews or online, and testimonials, we intend to reflect on the importance of
political history as epistemological theoretical resource for understanding the implementation

896
Autor, Licenciado em Estudos Sociais com ênfase em Geografia, Graduado em História; Bacharel em Direito
e Mestrando do Curso de Mestrado Acadêmico em Educação Profissional e Tecnológica, do Programa de Pós-
Graduação em Educação Profissional e Tecnológica do CTISM/UFSM.
process of Colleges Technicians at the Federal University of Santa Maria, in the 1960s . The
rationale for this approach is given by the fact that public policies for professional and
technological education are closely related to social and economic demands of the historical
context that determine them. Hence the importance of the present, understand the experiences
produced in the past, which may establish certain expectations about the future. In this sense,
some concerns motivate us to research the historical context of implementation of technical
education units in UFSM. They are: the reasons for the implementation of two school units
focused on vocational education medium level within the University, in the 1960s? Where local
and regional environment is given such a deployment? Under the aegis of a new international
production model, due to the so-called "Green Revolution", which the paper intended to Brazil
and how this model reflected in the creation of two units? What influence the agreement "MEC-
USAID" had this decision?

Keywords: Political History, Civil-Military Dictatorship, Professional Education, Labor.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objeto examinar sob a ótica epistemológica da ciência
histórica, o processo de criação dos colégios técnicos de nível médio da UFSM, a saber,o
164
Colégio Agrícola fundado em 1963, e o Colégio Técnico Industrial fundado em 1967. Para tal,
pretende-se relacionar a gênese da história das instituições escolares aos ambientes local e 9
nacional,influenciada pelasorientações econômicas da chamada Revolução Verde, gestada nos
EUA e espalhada pelo mundo, as quaisdeterminaram uma nova configuração do modo de
produção capitalista, em contraposição aquele vivenciado pelos países socialistas.

Na época, o convênio MEC-USAID897 inspirou e apoiou essa nova configuração,


dando suporte econômico e técnico a todo o processo educativo relativo ao novo modelo. O
pano de fundo de todo esse projeto e sua construção foi o conflito entre o capitalismo e o
comunismo, o qual caracterizou o período histórico conhecido por Guerra Fria. Valer-se da
ciência da história para interpretar esse período impõe que se lance mão de vários ramos desta,
quais sejam, a história econômica, a história social e a política, ou história e poder.

897
Série de acordos celebrados, nos anos 1960, entre o Ministério da Educação brasileiro (MEC) e a United
StatesAgency for InternationalDevelopment (USAID). Tinham como objetivo estabelecer convênios de assistência
técnica e cooperação financeira à educação brasileira
A análise de um determinado período histórico implica em utilizarem-se não somente
as informações que estão registradas através de diversas fontes, mas, sobretudo, emprestar uma
nova significação aos fatos registrados com a visão do presente, o que será sempre uma tarefa
difícil, complexa e altamente desafiadora. Nessa posição teórico-metodológica, o historiador se
depara com questões do tipo: que conceitos inferir para tornar o texto atraente, informativo e
cientificamente adequado? Quais os ramos da história se aproximam mais dos objetivos
dimensionados? De quais elementos filosóficos, técnicos e ideológicos do extenso ferramental
que a filosofia, a ciência histórica, a arqueologia, a antropologia, a sociologia ou mesmo a
economia oferecem, irá se valer o investigador? Antes de enveredar pela senda do tema central
é indispensável delimitar com quais desses elementos irá trabalhar e, ao enfocá-los, definir qual
o ponto onde o observador está colocado e de onde faz as suas investidas na tentativa de
construir seu discurso.

A afirmação de DUBY de que o homem em sociedade constitui o objeto final da


pesquisa histórica (DUBY, apud, CASTRO, 1997) conforta essa preocupação de situar o
enfoque deste trabalho a partir dessa ideia sem, entretanto, perder de vista a sua alteridade na
tentativa de construção do discurso historiográfico. Para tanto, como referenciado 165
anteriormente, indispensável se faz a utilização de ramos diversos da ciência histórica. Estaria
0
a história econômica relegada a um plano inferior na escala da produção científica que
merecesse ser desprezada nessa tarefa, como sugerem alguns que apregoam que a história
econômica agoniza (FRAGOSO, FLORENTINO, 1997).

O século XXI se mostra profícuo em transformações, precedidas por profundas


alterações nas relações de poder entre as nações que emergiram como potências no pós-guerra
(1945). Porém, aparentemente o que ocorre é o contrário em face das novas relações
estabelecidas por uma sociedade da informação, ou como preconizava MCLUAN (1968) a
aldeia global. Daí serindispensável lançar mão da história econômica como instrumento de
pesquisa. Retroceder aos anos sessenta do século XX e interpretar as circunstâncias locais e
regionais em que se deu a implantação das duas escolas técnicas da UFSM sem utilizar os
elementos informativos sob o enfoque da história econômica, nos parece impossível.

Para sustentar essa afirmação vale lembrar JEAN BATISTE SAY, que definiu o
empresário como um organizador e coordenador de fatores de produção que compra, combina
e vende ( Traité d’economiepolitiqu, 1803).Esta afirmação permite dimensionar o quanto estava
limitada a forma de construir a narrativa histórica. Nessa mesma linha de pensamento, também
Schumpeter(1912) afirma que o empresário é o “motor das transformações”. Note-se que entre
uma e outra afirmação passou-se pouco mais de um século, tempo várias de transformações.Nas
duas afirmações há uma gritante ausência: os operários que movimentaram as máquinas! Aqui
se faz presente a corrente histórica do trabalho social que vicejou na Inglaterra no final do século
XIX. Para interpretar o processo histórico local e regional em que se deu a implantação das
duas escolas técnicas da UFSM, é fundamental tomar emprestado da história social e da história
econômica elementos estruturais que ajudem a configurar os diversos aspectos que se fizeram
presentes nessa construção, quais sejam, o político, o social, e o empresarial expressos por
políticas públicas gestadas a partir de um Estado em transformação, que precedeu a chegada da
ditadura (político) civil-militar ao poder, advindo desde então, profundas transformações na
sociedade brasileira que perduraram por mais de duas décadas.

História Econômica
Impossível realizar a tarefa interpretativa a que se propõe este artigo sem explicitar o
165
método utilizado na análise das referências do passado. Por isso, interessa examinar que 1
elementos da História Econômica e qual a escola a qual se vinculará o historiador para atingir
seus objetivos. Como dito na introdução, é preciso ter claro que se pretende reinterpretar–por
óbvio porque já houve outras interpretações – o período em que se deu a criação das duas
escolas de Ensino Profissionalizante da UFSM, bem como os objetivos e os interesses
envolvidos direta e indiretamente na criação dessas.

A dialética que envolveu a gênese da implementação dessas duas unidades de ensino na


UFSM, impõe métodos e processos de reflexão que nos remetem aos pressupostos teóricos da
História Econômica do pós –1945, especialmente domaterialismo histórico, pelo instrumental
que acreditamos oferecer ao pesquisador. Trata-se não de uma opção pela ideia socialista do
Marxismo, mas da utilização do método que fornece elementos seguros, experimentados e
facilmente comprováveis ao buscar reinterpretar aquele período histórico, conquanto possa
parecer que se contradiz a ideia de lançar mão de elementos da história econômica, social e
política, impõe-se esclarecer que os elementos históricos serão examinados sob o enfoque do
materialismo histórico, pois essa posição nos levaráàs conseqüências políticas e sociais do
processo econômico objeto desseestudo. Conforme Thompson (1987, p. 10), a experiência
de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens
nasceram – ou entraram involuntariamente-. Assim, ao examinar o processo de estruturação
dos dois colégios profissionalizantes da UFSM não se pode perder de vista para que público se
destinaram, ou seja, a que classes sócio-econômicas se visava atender, na medida em que estas
nasceram em circunstâncias locais sob a égide das relações econômicas ali estabelecidas e,
portanto,vivenciadas por seus elementos - sujeitos-. Poder-se-ia incursionar por um caminho
aparentemente mais tranqüilo inspirado pela forma e não pelo conteúdo, a exemplo do que
representaram os Annales da Era Broudel e o marxismo típico da Guerra Fria (Fragoso e
Florentino, pg. 32, 1987). Entretanto, a tarefa a qual nos propusemos é mais desafiadora na
medida em que, ao reinterpretarmos o passado e as circunstâncias do processo de criação dos
dois colégios técnicos da UFSM na década de 60 do século passado, encontraremos um cenário
repleto de informações não examinadas com profundidade e método em toda a sua extensão e
consequências. Isso, não porque não se pretendeu tal análise, mas porque, aparentemente, as
ideias da época não davam importância a ela, preferindo apenas os registros da vetusta 165
historiografia oficial.
2
Labrousse, (apud, Fragoso e Florentino, pg. 33, 1987) oferece “alguns enunciados
interessantes do ponto de vista de produção do saber – especialmente do saber econômico - cuja
depreciação seria, no mínimo, lastimável”.São eles:

Toda investigação histórica deve ser construída tendo como pressupostos a


formulação clara da hipótese de trabalho;

A escolha e o manejo das fontes devem levar em conta a sua pertinência e seus limites,
sempre em referência ao objeto a ser trabalhado;

Os fenômenos sociais (no sentido fato do termo) devem ser apreendidos como
históricos, isso é, levando-se em conta a sua pertinência temporal mais ampla.

Os anos de 1960 do século passado foram profícuos em autores que se dedicaram a


construir uma “história econômica stricto sensu”, preocupados quase que exclusivamente em
interpretar os fenômenos da economia e seus efeitos através de números e gráficos.
Para Berend(I.T. Berend,1978), “tratava-se de examinar uma situação na qual a pura
existência e o manejo de índices econômicos não autorizava a formulação de teorias
globalizantes eficazes”. Tal afirmativa encorpa o que dissemos anteriormente, ou seja, ao
apenas examinar índices econômicos e teorias econômicas, não se consegue interpretar
adequadamente o processo histórico no qual o objeto de estudo encontra-se inserido. Por isso,
reafirmamos que se impõe examinar os elementos sociais, econômicos e políticos pelo enfoque
do materialismo histórico.

Retomando a linha de análise dos fatos que foram pano de fundo para a instalação das
escolas técnicas da UFSM, importa ter em mente o crescimento dos Estados Unidos enquanto
nação hegemônica no cenário mundial e o processo de internacionalização do capital. De outra
monta, tínhamos também, a afirmação da economia socialista em sentido contrário, com sua
estrutura planificada e produção voltada para o atendimento das demandas internas,bem como
as consequências da intensificação dos conflitos Leste-Oeste.

Na época, o Brasil estava ainda sob os efeitos da aceleração do processo de substituição


de importações iniciado por Vargas (Getúlio Vargas, 1882-1954) e a política
desenvolvimentista de JK (Juscelino Kubitscheck, 1902-1976). Portanto, impossível
165
reexaminar e refletir sobre o processo de criação das escolas técnicas da UFSM, apenas sob o 3
aspecto episódico, com o exame puramente econômico dos vetores que atuaram nesse processo.
Necessário ter presente que, os sistemas econômicos organizam o esforço humano para
transformar os recursos dados pela natureza em artigos úteis, em bens econômicos (HUNT
&SHERMAN,1985,pg. 21). Nessa linha de pensamento, não apenas os números que relatam os
valores em capital investidos, o número de pessoas empregadas, os números relativos ao
Produto Interno Bruto (PIB), os censos demográficos ou a área territorial abrangida pelo
projeto, explicam a criação dos dois estabelecimentos de ensino. Impositivo levar em conta o
processo internodeterminante da diferenciação hierárquica entre os membros da sociedade da
época e como a distribuição em classes determinava o processo de tomada de decisões do ente
público. Esta é a ideia de MARX (KARL MARX e FRIEDRICH ENGELS, O Manifesto
Comunista, Rio de Janeiro, Zahar, 1967, p.93), ou seja, sustentar que a base econômica
determina, de maneira absoluta e rígida, todos os aspectos de superestrutura é incorrer numa
inexatidão grosseira ”.
História Social

Segundo Hobsbawn (From Social History to the History of Society, 1972, pg. 1-3) a
expressão história social até a primeira metade do século XX encontrava-se ligada a três
acepções diferentes. Nas décadas de 1930 e 1940, marcadas pelo ideário liberal, com eventos
que determinaram o século XX como a quebra da Bolsa de New York e as duas guerras
mundiais, a história social aparecia vinculada a uma abordagem culturalista, com
proeminêncianos costumes e tradições nacionais, em geral ligada ao pensamento conservador
(CASTRO,1997,p.47). Essa acepção tendia a afastar-se das posições acadêmicas mais
prestigiadas do campo específico de atuação dos historiadores.

Importante referir que tratava de dar especial atenção ao campo dos acontecimentos da
diplomacia e da política. Utilizando-se o método Rankeano (Leopold Van Ranke, 1795-1886)
de profunda influência positivista, cuja contribuição maior foi sua observação acerca das
limitações das fontes narrativas e da necessidade de se fazer uma crítica dos documentos
oficiais. 165
Uma segunda abordagem deu-se a partir do avanço das ideias socialistas e do 4
crescimento do movimento operário, o que levou(Castro,1997,p. 47)ao desenvolvimento de
uma história social do trabalho e do movimento socialista, frequentemente identificada como
“história social”(id. IBID.), que prosperou especialmente na Inglaterra. O que distingue a nova
história social, das abordagens anteriores, é a contraposição entre o individual e o coletivo. Seu
principal objeto passou a ser, então, a ação política coletiva.

Sob a inspiração dos Annales (Bloch/Lefbvre, 1929), desenvolveu-se a “história


econômica e social”, cuja maior enfoque nos anos iniciais da revista, década de 1920, foi para
a história econômica, abordando também a “psicologia coletiva” e as hierarquias e
diferenciações sociais (CASTRO,1997,p. 47). Tal enfoque não permite, no entanto, assim nos
parece, aprofundar alguns aspectos estruturais que motivaram a criação das escolas
profissionalizantes, pois ao nos limitarmos ao econômico veremos apenas o impulso da
máquina estatal e dos agentes econômicos empresariais, com o respaldo de uma corrente
política de cunho aristocrático que dominava a política regional havia quase um século e cujo
modelo produtivo pouco havia se alterado desde o início do século XX.

Assim, parece não haver dúvida quanto à necessidade de mesclar os elementos que são
oferecidos pelas teorias da história econômica com o enfoque da história social do trabalho para
permitir uma adequada compreensão dos aspectos da economia e da sociedade locais no período
estudado, lançando-se mão do método de análise empregado pelo materialismo histórico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto anteriormente, não é possível pela ótica que empregamos reexaminar o
processo de criação e implantação dos colégios profissionalizantes da UFSM apenas pelo
aspecto meramente historiográfico tradicional, embasado em elementos econômicos, como
também não se pode pretender uma abordagem meramente pelo viés social, ou indo mais longe,
pela visão estritamente política dos acontecimentos.
165
O método que oferece uma visão dialética e que permite uma interpretação em que
5
dialogam conceitos e definições presentes em ambos os campos de estudo da história, buscando
informações da antropologia, geografia, sociologia, estatística, política e filosofia é o
materialismo histórico.

A dialética enquanto método de construção do conhecimento busca uma visão de


totalidade. O local, o regional e o universal, de forma lógica, se estruturam como instâncias
subalternas mas que não se sobrepõe e não se contradizem, mas surgem como distintas visões
na formulação de uma proposição ou pensamento.

Retomemos o pensamento de Karl Marx quando propõe duas grandes abordagens


epistemológicas: o empirismo inglês e a fenomenologia alemã (TRIVIÑOS, p. 50, 1987).
Talvez por essa razão se explique a ideia prevalente de uma abordagem histórica do trabalho
social, reiterando o que já foi sustentado na abertura deste singelo trabalho.

Trata-se de optar por uma corrente de pesquisa denominada crítico-dialética, na qual se


configuram os estudos sobre experiências, práticas pedagógicas, processos históricos,
discussões filosóficas ou análises contextualizadas a partir de um prévio referencial teórico
(GAMBOA, in FAZENDA, 2010, p. 106).

Desta forma, caberá ao investigador fazer suas escolhas pelos métodos de pesquisa, de
acordo com os seus interesses na investigação. Parece-nos útil para uma melhor compreensão
o que ensina Dewey (1980, p. 137).

Qualquer problema importante encerra situações contraditórias. A solução só será


obtida se nos afastarmos do ponto de vista em que seus elementos parecem chocar-
se, para buscarmos outro, de onde esses fatores se mostrem suscetíveis de uma
harmonização. Reconstrói-se, assim, o problema. A apresentação original é revista.
Mas essa reconstrução importa num árduo trabalho de pensamento. Mais fácil será
encarar somente um dos aspectos do problema, elidindo os outros e insistir em que a
solução esteja na consideração exclusiva desse elemento.

Nessa linha de raciocínio, não se pode perder de vista que o materialismo apresenta três
variantes: a filosófica, a dialética e a histórica.O materialismo filosófico considera que a matéria
precede o espírito vez que a consciência permite que o homem reflita esta que é fruto da
matéria.O materialismo dialético se traduz em uma tentativa de buscar explicações lógicas,
coerentes e racionais para os fenômenos naturais, sociais e do pensamento. Assim, a realidade 165
humana se enriquece pela prática social dos seres humanos cujo pensamento evolui pela 6
história. Por fim, o materialismo histórico é a ciência filosófica do marxismo que estuda as leis
sociológicas que caracteriza a vida da sociedade, de sua evolução histórica e da prática social
dos homens, no desenvolvimento da humanidade (TRIVIÑOS, 1987, p. 51).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEREND, Op. cit., pp. 41-44. Tal é também a conclusão a que chega Kula para explicar o
comportamento econômico aparentemente paradoxal da aristocracia polaca na época moderna,
que se pauta pela menor produção em momentos de alta dos preços internacionais dos cereais
que produzem (cf. nota 16, passim).

BRAUDEL, F. – “Histoire et Sciences Sociales. La Longue Durée”, Annales, dez. de 1958.


Ver também, Burke, P. A escola dos Annales, 1929-1989. A revolução francesa da
historiografia. Trad. De Magda Lopes. São Paulo UNESP: 1991, PP. 53-54; Dosse, François.
A história em migalhas: dos Annales à Nova História. Trad. De Elias Thomé Saliba. São Paulo:
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Martins Fontes, 1992; e Goy, J. & Le Roy Ladurie (orgs). Les fluctuations du produit de la 165
dime. Paris-La Haya, 1972.
7
FEBVRE, Lucien – Combats pour l’ histoire. Paris: A. Colin, 1953, pp. 114-118.

FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo – O arcaísmo como projeto. Rio de Janeiro:
Diadorim, 1993, PP. 104-105.

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educacional. In FAZENDA, Ivani (org.) Metodologia da pesquisa educacional 12ª Ed. São
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FAZENDA, Ivani (org.) Metodologia da pesquisa educacional, 12ª Ed. São Paulo, Cortez,
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TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva – Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa


qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

165
8
DIVERSIDADE, ARTE E VANGUARDA: GRUPO DE TEATRO VIVENCIAL E A
REPERCUSSÃO DA CONTRACULTURA INTERNACIONAL E NACIONAL NA
CENA PERNAMBUCANA *898

Mateus Melo dos Santos**899

RESUMO

O presente estudo visa propor um debate acerca das reverberações do trabalho do Grupo de
Teatro Vivencial, de Olinda, ativo no Nordeste entre os anos de 1974 e 1983. Com a utilização
de jornais, entrevistas com atores, atrizes e intelectuais contemporâneos ao grupo que
prestigiavam as noites de apresentação, vai ser esboçado um esqueleto das contribuições do
grupo para a história do teatro brasileiro, da contracultura nordestina e do vanguardismo do
Vivencial enquanto portador de discursos que se chocavam com a moral conservadora posta
das décadas em que o grupo esteve em atividade, no bojo dos governos militares. Dando voz e
visibilidade a atores e atrizes declaradamente homossexuais, bissexuais e travestis, o Vivencial
virou sinônimo de desbunde e resistência, trazendo para a cena teatral pernambucana, nos seus
últimos anos de atividade, um quê de music-hall, caféconcerto e teatro de revista. O trabalho

165
também pretende abarcar como o Vivencial foi influenciado culturalmente pelo movimento
hippie norte-americano e europeu, pelo tropicalismo, pela psicodelia pós-woodstockiana e
outras correntes frutos da contracultura ocidental dos anos sessenta e setenta. Do ponto de vista
teórico, nos orientam as considerações de Pierre Bourdieu sobre as noções de campo, habitus e 9
bens simbólicos.
Palavras-chave: teatro; sexualidade; contracultura

INTRODUÇÃO

Atrás dos muros do Mosteiro de São Bento, em maio de 1974, se organizava um grupo
de teatro que chocaria com o público de Olinda e Recife nos anos seguintes. Apesar de radicados
na Igreja Católica, esses jovens, agrupados pela ARMA – Associação de Rapazes e Moças do
Amparo – buscaram em seu primeiro espetáculo, Vivencial I, chocar, pôr para fora toda uma
sexualidade reprimida e se expressar da maneira mais pulsante possível.

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Mestrando pela Universidade Federal de Pernambuco. Email: mateusmelosantos@gmail.com.
A incompatibilidade da estética e das propostas do grupo com a Igreja Católica fez
com que procurassem outro local para se apresentarem; isso também porque o sucesso
alcançado com as primeiras apresentações foi destacável, o que empolgou aqueles rapazes e
moças. Aproveitaram o nome da primeira peça e se batizaram como Grupo de Teatro Vivencial.
À sombra do AI-5, ainda vigente, montaram outras peças, até angariarem recursos para
adquirirem sua própria casa de espetáculos, uma espécie de café-teatro que exibia uma série de
apresentações durantes as noites olindenses. Com sua nova casa, estrearam em 1978 Repúblicas
Independentes, Darling, que fez com que o grupo viajasse ao Rio de Janeiro e a São Paulo.
O Vivencial ficou marcado como grupo transgressor. Mas afinal de contas, por que ele
chocava tanto? Esta é a problemática que esse trabalho pretende dar partida, sendo aprofundada
a discussão com o passar da pesquisa de mestrado. A princípio, acredito que a quebra dos
conceitos de masculinidade então vigentes na sociedade pernambucana – e brasileira – dos anos
setenta é que deu ao Vivencial seu carimbo de contestador e polêmico. As vivecas, como eram
conhecidos os integrantes do grupo, não escondiam sua sexualidade: desfilavam de salto e
peruca, se autoafirmando enquanto bissexuais e, mais que isso, portadoras de uma estética
queer900, desbundada, com textos ácidos e marcantes. 166
A escolha da temática e sua inegável importância se deram diante de três frentes:
primeiro, pouco se pesquisa e estuda a história do teatro pernambucano. A área carece de 0
aprofundamento historiográfico, analisando as fontes primárias à luz dos referencias teóricos
condizentes. Nas primeiras pesquisas empregadas, foram encontradas algumas monografias de
graduação em artes cênicas referentes ao Vivencial, mas nada mais específico em História –
apesar de porventura citado. É um grupo que, pretendo mostrar, é relevante para a compreensão
do processo histórico da cultura e da resistência artística pernambucana em tempos de forte
censura, além da quebra com os padrões de virilidade.
A segunda base de justificativa se dá diante da construção historiográfica acerca do
teatro brasileiro, que foca no eixo Rio-São Paulo, praticamente fechando os olhos para a
produção teatral no Nordeste – salvo raras exceções. Acredito ser importante lembrar dos
conceitos de História e do ofício do historiador trabalhados por Walter Benjamin. O intelectual
alemão defendia se fazer uma história a contrapelo, ou seja, um estudo da história que buscasse

900
Termo usado em referência àqueles que negam o padrão heteronormativo ou binarista de gênero;
analisar suas estruturas além do senso comum, além do que enxerga-se à primeira vista.
Benjamin roga pela busca das ruínas da história, ou a história dos esquecidos901.
Estudar o Grupo de Teatro Vivencial é buscar as ruínas da história. A história do teatro
brasileiro e do movimento de contracultura encontra-se resumida a um eixo que não ilustra a
pluralidade dos movimentos ativos em todo o século XX em inúmeras outras partes do país. É
importante diversificar o olhar para essa arte que ainda necessita de tanto aprofundamento
historiográfico e, principalmente, de cada vez mais estudos sobre suas correntes no estado de
Pernambuco. Além disso, é dar espaço e visibilidade para minorias sociológicas, que
compunham o Vivencial, principalmente no tocante à suas realidades socioeconômicas e
sexualidades.
Por fim, o Vivencial merece um olhar mais atento porque choca os valores e os
conceitos de masculinidade hegemônicos. Lança nos ares recifenses e olindenses uma
contestação veemente ao padrão estabelecido de comportamento e sexualidade, através de uma
estética escrachada e homoerótica.
Nesse estudo, em um primeiro momento, se anseia pela discussão acerca das fronteiras
conquistadas pelo Vivencial, tanto em um exercício de fora para dentro – de assimilação de 166
uma contracultura produzida fora (e dentro) de Pernambuco – quanto de dentro para fora, no
tocante ao alcance da obra do grupo olindense. Em um segundo momento, será debatida a 1
produção teórica que incita debates acerca das configurações sociais nas quais se encaixa o
Vivencial, bem como suas propriedades referentes à sexualidade.
Como referências teóricas, pretende-se esmiuçar os conceitos de campo, habitus e
disputas dos espaços sociais, trabalhadas pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu. Para debater
a sexualidade pulsante do Vivencial, será escalada a História da Sexualidade, de Michel
Foucault, em diálogo com as questões levantadas pela teórica Judith Butler.

Capítulo I - Pernambucália902

901
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. (Obras
Escolhidas, vol. I). São Paulo: Brasiliense, 1994.
902
“O oposto do bem comportado, bem afinado e de bom gosto caracter pernambucano ou saudosista
pernambucanidade”. (BRITTO, 1973, p.51).
Dentro do contexto de explosão da contracultura no Ocidente, o Brasil, e mais
especificamente Pernambuco, vive também expressões desse período ímpar e curioso. Segundo
o intelectual Jormard Muniz de Brito, vive-se a Pernambucália, o Tropicalismo pernambucano.
A contestação aos padrões culturais firmados ascende a partir dos anos 1960 e tem em Recife
e Olinda manifestações nos mais diversos campos, como na música, nas artes plásticas e no
teatro.

Enquanto na música o Udigrudi traz artistas que se consagraram e até hoje são
referências do vanguardismo musical fruto da psicodelia transgressora dos anos setenta – como
Alceu Valença, Ave Sangria e Lula Côrtes (LUNA, 2010) – o teatro mostra sua face com
desbunde, irreverência e poesia, mas também com politização e engajamento903 (GENÚ, 2016).

Surgem e amadurecem muitos grupos de teatro em Recife e Olinda, como o TEO


(Teatro Experimental de Olinda), o THBF (Teatro Hermilo Borba Filho), a FETAPE904
(Federação do Teatro Amador de Pernambuco), o Teatro Ambiente do MAC e o Vivencial. É,
sem dúvidas, um momento de politização do teatro, de criação e inovação, seja esteticamente,
com a influência do tropicalismo, seja textualmente, no bojo da resistência ao regime militar. 166
Em um debate com os integrantes do Vivencial registrado no livro Memórias da Cena
Pernambucana, Romildo Moreira sintetiza:
2
[...] os anos 70, aqui na cidade do Recife, foram marcados por dois grandes
acontecimentos. Um, a criação da Federação de Teatro de Pernambuco, entidade que
está promovendo estes encontros905. O outro foi o surgimento de vários grupos que
tiveram uma importância ímpar para o momento do teatro pernambucano, porque
enfrentaram uma série de dificuldades: políticas, de liberdade de expressão,
econômicas, enfim, espaço de um modo geral. Alguns grupos tiveram a felicidade de
burlar essas dificuldades. O Vivencial, que a gente tá recebendo aqui, com certeza, foi
um deles (Romildo Moreira Apud FERRAZ, 2005).

Não há dúvidas que o Grupo de Teatro Vivencial é uma forte expressão contracultural
cênica pernambucana entre os anos setenta e oitenta (FIGUERÔA, 2011). O Vivencial trouxe
um teatro despojado, desprofissionalizado, rebelde, sensível e espontâneo. Seus atores e atrizes

903
A criação do MCP, e dentro deste o TCP, no início dos anos 1960 articulou grupos de esquerda e artistas,
trazendo linhas progressistas ao teatro pernambucano.
904
Hoje FETEAPE, Federação de Teatro de Pernambuco.
905
O Memórias da Cena Pernambucana, que tem quatro volumes, promoveu encontros e debates com os
integrantes dos mais variados grupos de teatro de Recife e Olinda das últimas décadas.
muitas vezes pisaram pela primeira vez em palco com esse grupo, experimentando novas
formas, novos textos e conhecendo seus talentos.

Dentro da ARMA, Associação de Rapazes e Moças do Amparo, ligada à Arquidiocese


de Recife e Olinda, a liderança de Guilherme Coelho começou a trazer jovens para participarem
do teatro e discutirem questões de sexualidade, drogas, política, tecnologia, esoterismo e outros
temas polêmicos. Rapazes e moças, por vezes, marginalizados pelas condições
socioeconômicas, pela identidade sexual ou por outros tabus. Em outros casos, “convertia” bons
moços e moças para a transgressão, para a transformação, para a busca da liberdade.

Guilherme e o Vivencial começaram um processo de transformação, seja nos palcos e


no público, seja nos atores e atrizes. Segundo Ivonete Melo, atriz do Vivencial:

Guilherme tinha o poder de transformar. Quando entrei no Vivencial, fazia balé


clássico, era do Corpo de Baile, minha família era católica e queria que eu fosse freira.
Mas, em 1977, eu estava com os peitos de fora. Ele pegou uma fruta verde e me virou
pelo avesso906.

O processo de construção do Vivencial integrava seus participantes e colocava-os em


uníssono, ao que parece. A revolução individual de cada componente fazia parte de um processo
166
de amadurecimento do coletivo, um autoconhecimento particular e ao mesmo tempo enquanto 3
grupo. Essa unidade não era novidade, historicamente. Desde as comunidades hippies, nos
Estados Unidos, até os Novos Baianos, no Brasil, a cooperação coletiva passou a implementar
as formas de convivência de grupos alternativos, que nutriam interesses, objetivos, jeitos e
trejeitos em comum. Analisando o sociólogo francês Halbwachs, o também francês Pierre
Francastel expõe:

Como observou Halbwachs, o grupo não é apenas, com efeito, uma reunião de
indivíduos; o que constitui essencialmente é a existência de um interesse, de uma fonte
de ideias e de preocupações especiais que refletem, em cada um dos membros do
grupo, alguma coisa da personalidade dos outros, revelando-se ao mesmo tempo
demasiado gerais e impessoais para conservar seu sentido, mesmo quando ocorrem
no grupo desaparecimentos e substituições de pessoas (FRANCASTEL, 1973, p.42).

906
DUARTE, A. Guilherme Coelho: Deus da transformação. Revista Aurora, Recife, p. 4, 11 jan. 2014.
A visão de Francastel e Halbwachs corrobora para a força do coletivo, no Vivencial.
Apesar da liderança de Guilherme, a arte do Vivencial não girava em torno de uma estrela, que
ofuscasse os demais. Para estruturação dos espetáculos e para a sobrevivência cotidiana, juntos
cozinhavam, varriam, costuravam, colavam, construíam cenários e figurinos. Dividiam as
tarefas domésticas e artísticas, sob o mesmo teto, por anos, repartindo os frutos, podres ou
deliciosos. Nas palavras de Roberto de França, o Pernalonga, “O que foi o Vivencial? Fomos
subversivos, anárquicos, mas fomos sérios. Transformamos e acontecemos. A gente trabalhou!
Fomos pedreiros, cozinheiros, atrizes, atores. Fomos mulheres”. (Roberto de França Apud
FERRAZ, 2005).

E o Vivencial rompeu as fronteiras. Da Igreja para a periferia de Olinda. Desta para


pescar o público recifense, entre esses intelectuais, artistas, jornalistas e professores. De Recife
para outras cidades no Nordeste até irem para o sudeste, com o espetáculo Repúblicas
Independentes, Darling, em 1979. Segundo Jefferson Del Rios, crítico da Folha de São Paulo:

A primeira impressão causada pelo espetáculo Repúblicas Independentes, Darling do


Grupo Vivencial de Olinda, é de um trabalho original, elaborado a partir de
descobertas do próprio elenco e que chega a uma linguagem teatral livre que não
procura copiar o teatro tradicionalmente realizado em outros lugares. Uma invenção 166
4
local com o visível propósito de causar um certo espanto, e até mesmo de fazer alguma
provocação, no seu meio social907.

Apesar de matérias nos jornais e revistas do sudeste, como O Globo, Lampião de


Esquina e Jornal do Brasil, a repercussão do Vivencial é limitada e desperta raros comentários
do gênero: “já ouvi falar desse grupo”. Pretendo no decorrer do mestrado mostrar também que
a recente onda de pesquisas e debates sobre o Vivencial se dá por um maior espaço para as
discussões LGBT no Brasil.

De alguma maneira, posso supor, então, que o Vivencial sofreu um efeito mola,
recebendo uma carga externa e alcançando voos mais altos que seu estado inicial. Ainda está
em aberto na pesquisa de que maneira se deram essas influências; de que maneira a estética do
Dzi Croquettes chegava nas favelas de Recife e Olinda? Ou melhor, refazendo a pergunta: os

907
RIOS, Jefferson Del. O Calor de Olinda na Noite dos Mambembes. Folha de São Paulo, São Paulo, 13 jan.
1979. Ilustrada, p. 29.
atores e atrizes do Vivencial sofreram influências do grupo carioca? Como reverberava em
Pernambuco as contestações internacionais ao status quo?

Não é possível afirmar categoricamente como o movimento hippie ou outras


manifestações contraculturais da juventude dos anos sessenta e setenta influenciaram o
Vivencial. Mas é bastante razoável identificar elementos estéticos e comportamentais que me
fazem crer que existe, no mínimo, um processo osmótico de recepção da cultura de resistência
das juventudes dos centros políticos do Ocidente, vide Estados Unidos e Europa Central. Entre
esses elementos, posso citar a liberdade sexual, a cooperação coletiva, o uso de drogas e a
negação aos protocolos tradicionais de família, propriedade e religião.

A neblina de como funcionava o rompimento das fronteiras do Vivencial ainda é turva.


Tanto de fora para dentro, como sugerido acima, como de dentro para fora. Apesar da reunião
parcialmente exitosa de matérias de jornais e revistas, ainda resta procurar saber como foi a
recepção fora do público longe de Pernambuco; se inspiraram outros grupos, se deixaram
marcas mais fortes – porém escondidas – dentre outras consequências de suas breves
apresentações em outros estados do Brasil.
166
5
Capitulo II – Sexualidade e habitus na cena pernambucana

Os conceitos de campo e habitus do sociólogo francês Pierre Bourdieu podem ser


usados como lentes para enxergarmos, de certa maneira, o Grupo de Teatro Vivencial e suas
práticas e representações, tanto dentro do campo teatral de Olinda dos anos 1970 quanto no
desenvolvimento do movimento contracultural brasileiro de resistência e vanguarda, inspirando
jovens à transgressão e a afirmação de novos parâmetros comportamentais e artísticos.

A primeira hipótese de reflexão deriva do contexto da representação que o Vivencial


alcançou; o quão longe repercutiu sua obra, seja geograficamente, seja simbolicamente. Longe
de fazer qualquer juízo de valor, primeiramente quero colocar em questão a exposição e
valorização de outro grupo da época que também era marcado pela dança, pelo escracho, pelo
humor regado à sensualidade, pela homoerotização, pelos textos fortes e ácidos, pelo rebolado
e pelo novo teatro dos anos 70 que tanto lembrava os cabarés e os teatros de revista.
O Dzi Croquettes, famosos grupo radicado no Rio de Janeiro, goza hoje de uma
reputação quase sacra, apesar da estética profana da trupe908. Claro que os louros conquistados
pela equipe liderada por Lenny Dale não eram em vão; o grupo da capital carioca tinha uma
performance mais profissional e planejada que as vivecas de Olinda. Mas, afinal de contas, o
que gerou esse capital teatral?

Para Bourdieu, os troféus estipulados dentro de cada campo tem um alcance e uma
validade só compreendidos e só cobiçados pelos jogadores desse jogo específico (BOURDIEU,
2003. p. 119), nesse caso, o jogo do teatro. A primeira pergunta é: até que ponto o Vivencial
não conseguiu uma reverberação maior graças à sua marginalização? Isto é, pobre de capital
específico, o grupo de Olinda parecia não dispor de credibilidade simbólica suficiente para ter
sua obra “validada” e aprovada pela crítica enquanto merecedora de maior respaldo. O que se
pretende dizer aqui é que, talvez, os resultados e as conquistas obtidas por grupos de teatro não
espelhem mais o capital artístico e teatral já estabelecido e conquistado do que a obra em si.

O exemplo levantado não busca desmerecer a potencialidade cênica do Dzi Croquettes,


mas busca colocar em paralelo grupos com estéticas e propostas parecidas, que tiveram
caminhos bem diferentes. Um, o luxo, a glória, Paris e o reconhecimento nacional. O outro, o
166
lixo, o subúrbio de Olinda e a admiração local e temporal de uma parcela. A reflexão que fica 6
é: podemos legar os resultados desses grupos ao seu conteúdo ou à sua representação simbólica
e ao seu capital específico acumulados respectivamente? Estar no Rio de Janeiro parece ser um
trampolim maior do que estar em Olinda, ao passo que ter como líder um coreógrafo
internacionalmente conhecido (como Lanny Dale) tem um peso maior do que um monge fruto
da teologia da libertação que sonhava com a salvação dos jovens da periferia através da arte.

Isso tudo faz refletir sobre a flexibilidade no entendimento de arte e a fronteira entre o
que é consagrado através da consideração dos dominantes do campo. A intenção não é
desconsiderar a particularidade de cada indivíduo de se apaixonar pela obra de arte, mas
entender como a criação dessas paixões se dá por meio de uma construção social do que é belo,
do que merece aplauso, arquitetado incontestavelmente pelas cabeças de cada campo.

908
DZI CROQUETTES, Tatiana Issa e Raphael Alvarez, 2009, 110min.
Uma segunda interpretação dos conceitos de Pierre Bourdieu aplicados ao Vivencial
concerne ao habitus dos próprios integrantes, imersos no movimento autoafirmartivo
contracultural artístico de Olinda e Recife da época. Para o sociólogo francês, cada campo,
relativamente autônomo em relação aos demais campos, possui suas regras e comportamentos
estruturados (BOURDIEU, 1998. p. 11).

Apontando os olhos para o campo underground de Olinda de meados dos anos setenta,
podemos enxergar uma certa tendência de comportamento, estilo e pensamento. Para manter-
se no campo, segundo Bourdieu, é preciso obedecer as leis gerais dos campos (BOURDIEU,
2003. p. 119). Os atores e atrizes do Vivencial se preocupavam com isso? Aplicando sua teoria
aqui, esse habitus empregado deriva de uma estratégia de luta no campo, de participação e
acumulação de capital específico.

Por outro lado é preciso ter cuidado na análise e lembrar da oportunidade de se expressar
mais livremente após um período de forte controle às liberdades. Bourdieu é importante mais
do que para das respostas: é fundamental para criarmos questões quanto ao contexto social em
que se insere o Vivencial. Ele torna complexa a reflexão acerca da construção do grupo e dos
indivíduos nele inseridos. Suas estruturas podiam derivar de uma liberdade de expressão maior
166
ou de uma estratégia de conquista de espaço. Ou ambos: em primeira análise, uma base não 7
desestrutura a outra.

Entretanto, ainda assim, o Vivencial é encarado como um marco no teatro


pernambucano (tal qual o Dzi para o teatro nacional), como transgressor, rebelde e iconoclasta.
E de onde advém esse choque? Apesar dos textos fortes, não era pela defesa da democracia, é
o que parece inicialmente. As drogas, apesar de presentes cotidianamente, não eram o estandarte
do grupo. Afinal, por que motivo o Vivencial chocava? Que jogo jogava o Vivencial?

Acredito que, tanto quanto uma disputa dentro do campo teatral, o grupo se destacava
pelo vanguardismo quanto à sexualidade. O que chocava, pretendo mostrar com as pesquisas,
entrevistas e discussões teóricas, não era o espetáculo enquanto valor cênico, mas sim a
flexibilização das possibilidades de masculinidade e a amplitude aumentada das sexualidades.

O teatro era o meio pelo qual esses atores e atrizes gritavam para a sociedade suas
contestações ao que era ser macho, questionando o que a comunidade tradicional pregava
enquanto decente. E como, para Judith Butler, o gênero é uma ficção, esses grupos são
importantes porque cortam a linha que sustenta esses paradigmas de gênero. Nas palavras de
Ronaldo Sousa Sampaio e Claudia Amorim Garcia:

Segundo Butler (1990), o gênero é uma construção social tributária da forma como o
poder atua produzindo e regulando os corpos em conformidade com a ideologia
vigente nas sociedades. É, antes de mais nada, uma ficção, um modelo de constituição
subjetiva e conduta social produzido culturalmente e que se torna distintivo do
humano. Assim, a cultura insere nos corpos essa marca, produzindo a ficção de uma
identidade estável e coerente. Nesse sentido, a estabilidade e coerência do gênero são
ilusões sustentadas socialmente e que tornam mais eficaz a regulação cultural dos
corpos. (SAMPAIO, 2010)

Acoplando a teoria de ficção de gênero de Butler ao Vivencial e seu contexto, é possível


afirmar que o grupo encontrava na caretice pernambucana uma falsa e pretensa conduta de
comportamento masculino.

Assim, o habitus do Vivencial, essa disputa dentro de um campo, parecia colocar como
elemento estruturante a bichisse, o homem feminino, enquanto o elemento estruturado era o 166
homem sisudo, macho, representante da família tradicional e dos bons costumes.
8
Em A História da Sexualidade, vol II, Michel Foucault faz um levantamento do
pensamento elitista na Antiguidade Clássica quanto à sexualidade. Ele analisa, dentre outros
pensadores, Sêneca, que escreve:

A paixão doentia de cantar e dançar enche a alma de nossos efeminados; ondular os


cabelos, tornar a voz suficientemente tênue para igualar a carícia das vozes femininas,
rivalizar com as mulheres através da lassidão de atitudes, estudar-se em perquirições
muito obcenas, eis o ideal de nossos adolescentes... (Sêneca Apud FOUCAULT, 2007.
p. 21)

Ora, o que podemos aproveitar disto nesse tópico? O que fica claro durante essa parte
do livro de Foucault é que a rejeição pública não se dava pela orientação sexual, mas sim pela
efeminização do homem livre. E, ao que parece, esse traço da visão geral da sociedade
permanece e era forte no Pernambuco dos anos setenta. Isto é: o Vivencial não chocava por ter
homossexuais no elenco, mas sim por mostrarem ali uma abertura no leque das possibilidades
de comportamento de um homem.
Nesse sentido, se saia do que era o mundo masculino e se adentrava em um universo de
possibilidades, enquanto esse mundo nutria um padrão rígido e pouco maleável. É um embate
ao que a sociedade entendia como possível, na qual agora um homem do sexo masculino se
tornaria um homem do sexo feminino. Os anos setenta, não nos esqueçamos, também marca o
crescimento das correntes feministas, que diriam, acredito, que o Vivencial porta homens, pelo
menos em cena, com sexo masculino e gênero feminino.

Já Judith Butler, à partir dos anos 1990, apontaria que não só o gênero é cultural, mas o
sexo também. Contradizendo Simone de Beauvoir, que diria “não se nasce, torna-se mulher”,
Butler afirma que “Não há nada em sua explicação [Beauvoir] que garante que o ‘ser’ que se
torna mulher seja necessariamente fêmea” (BUTLER, 2016. p. 29).

CONCLUSÃO

Quanto a primeira hipótese, posso avaliar que o Vivencial conseguiu se esgueirar por
onde podia. Disputou um lugar na cena pernambucana e não mais que isso, fruto de seu
respectivo capital cênico – usando um termo bouderiano. Ademais, pode-se refletir sobre que 166
campo realmente o Vivencial se apresentou mais fortemente, visto que o principal elemento
que o destaca é a sexualidade, analisando inicialmente.
9
Em segunda instância, o Vivencial se destacou e chocou pela imagem desmascarada
que propôs do homem. Quem sabe poderíamos arriscar elucubrar que ali os homens, enquanto
público, poderiam se conectar com seu lado mais feminino retraído e escondido pelos padrões,
e gargalhar com o que poderiam ser, mas não conseguem.

Essa efeminização capitaneada pelo Vivencial o fez ser lembrado e hoje estudado, não
só como um grupo de teatro, mas como um grupo de teatro que marcou época, enquanto
vanguardista, batendo contra a censura, nos textos e nos gestos, enquanto marco da
contracultura pernambucana, enquanto porta-voz de jovens das periferias de Olinda e Recife
que sentiam naqueles anos setenta ventos de uma liberdade sexual antes muito mais vigiada e
controlada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. (Obras Escolhidas, vol. I). São Paulo: Brasiliense, 1994.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 2 ed, Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil. 1998.

__________. Questões de Sociologia, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Ed. Fim de Século,
2003.
BRITTO, Jomard Muniz de. Escrevivendo. Editado e copiado em 1973.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. 11ª Ed.


Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2016.

DZI CROQUETTES, Tatiana Issa e Raphael Alvarez, 2009, 110min.

FERRAZ, Leidson; DOURADO, Rodrigo; JUNIOR, Wellington Castellucci (org.) Memórias


da cena pernambucana. Ed. dos autores. Recife, 2005.
167
0
FIGUEIRÔA, Alexandre; BEZERRA, Cláudio; SALDANHA, Stella. Transgressão em 3 atos: nos
abismos do Vivencial. 2011.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 2, o uso dos prazeres. 12ª edição. Rio de
Janeiro: Graal. 2007.

FRANCASTEL, Pierre. A Realidade Figurativa: elementos estruturais da sociologia da arte.


Perspectiva/EDUSP. São Paulo, 1973.
GENÚ, Luiz Felipe Batista. O Teatro de Cultura Popular em três atos: articulações entre o
teatro e a política em Pernambuco (1960-1964). 2016. 141 f. Dissertação (Mestrado em
História). Departamento de História. Universidade Federal de Pernambuco, Recife. 2016
LUNA, João Carlos de Oliveira. O Udigrudi da pernambucália: história e música do Recife
(1968-1976). 205 f. Dissertação (mestrado). CFCH. Universidade Federal de Pernambuco,
Recife. 2010.

SAMPAIO, Ronaldo Sousa; GARCIA, Claudia Amorim. Dissecando a masculinidade na


encruzilhada entre a psicanálise e os estudos de gênero. Psicologia em Revista, Belo
Horizonte, v. 16, n. 1, p. 81-102, abr. 2010;
167
1
HISTÓRIAS SILENCIADAS QUE GANHAM VOZ NA LEI FEDERAL 10.639/2003 E
NA LEI MUNICIPAL 10.695/2010*909

Cássio Michel dos Santos Camargo**910

RESUMO
O presente trabalho é fruto de estudos realizados na disciplina “História, Ensino e Educação
das Relações Etnicorraciais no Brasil”, do PPGEDU-UFRGS, ministrada pela Professora Dra.
Carla B. Meinerz. Buscou-se aprofundar, analiticamente, as temáticas que foram alvo de debate
durante os encontros da disciplina, cotejando-as com os estudos realizados no Mestrado em
Educação (UFRGS). Para tanto, refletimos sobre a Lei Federal 10.639/03 e a Lei Municipal
10.695/10. A última é relativa à obrigatoriedade do ensino do Holocausto nas escolas da rede
municipal de Porto Alegre. Para pensar o desafio do Ensino de História pautado por essas
demandas, retomamos os conceitos de história e memória, que foram articulados para pensar a
ideia de dever de memória, ressentimento e de reconhecimento evocadas pelas leis analisadas. 167
2
Palavras-chave: Ensino de História, Memória e Leis Raciais.

INTRODUÇÃO

A História tem, como um de seus propósitos, fazer o acerto de contas. Nesse sentido,
alinha-se e, por vezes, serve de instrumento para que grupos possam disputar espaços de
memória e de reconhecimento de sua dor, garantindo, dessa forma, a possibilidade de contar a
sua história. Para Ricouer, este reconhecimento ocorre quando a dor e o trauma são lançados as
vistas claras na “sociedade” que os causou. O autor entende o reconhecimento como um
“pequeno milagre”, “nenhuma outra experiência dá a este ponto a certeza da presença real da

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


**Graduado em História, Mestrando em Educação – FACED-UFRGS. Sem financiamento, e-
mail:cassiomichel@yahoo.com.br

.
ausência do passado. Ainda não estando mais lá, o passado é reconhecido como tendo estado.
É claro que podemos colocar em dúvida uma tal pretensão de verdade.”(2003).

Para o filósofo francês, o fenômeno repousa no desejo de memória coletiva, mas não
necessariamente pertencente a todos os grupos sociais que compõem a mesma sociedade.
Segundo Ansart, os conflitos em torno do reconhecimento da memória são frutos de processos
históricos guiados e marcados por ressentimentos. Nessa perspectiva, o autor assinala que o
conceito desenvolvido “na perspectiva nietzschiana, pelo cruzamento de três abordagens
complementares: histórica, psicológica e sociopolítica.”. O ressentimento teria sido fruto da
própria sociedade judaico-cristã ocidental, assim a sua existência traz consequências sociais nas
formas de sociabilidade, sendo à base dos grandes movimentos de contestação. (ANSART,
2001, p. 11)

Capítulo I –Lei federal 10.639/2003 e da Lei Municipal 10.695/2010 e seus Cenários


Históricos

A partir destes pressupostos, analisaremos, primeiramente, a Lei Federal 10.639/2003 e 167


as suas diretrizes que estabelecem a obrigatoriedade do ensino de história afro-brasileira e 3
africana nas redes públicas e particulares de educação e, em seguida, a Lei Municipal
10.695/2010 que, no bojo dos estudos das relações etnicorraciais, torna obrigatório o ensino do
Holocausto nas escolas da rede municipal de Porto Alegre. As duras orientações legais trazem
temas sensíveis de debate, ligados a processos de reparação histórica, nos quais os direitos de
história e de memória foram negados ou silenciados. Desse modo, a problemática da história
do ressentimento deixa vestígios em ambas, porém não marcas eternas. Para Ansart (2001, p
15-16.), existem quatro formas de expressão do ressentimento: a primeira diz respeito ao ódio
dos detentores do poder frente às rebeliões dos dominados; a segunda pontua que o
ressentimento ocorre em intensidades diferentes, o que levará, ao fim e ao cabo, ao conflito ou
ao mero afastamento; a terceira considera não só os sentimentos, mas também os afetos
(pensamentos e crenças de toda a espécie); a quarta leva em conta as funções desempenhadas
pelos sujeitos e conjuntos sociais, e a quinta trata sobre as consequências do ressentimento,
devido a sua formação baseada no “ódio recalcado”.
O desafio das demandas das duas leis requer cuidado, porque ambas remontam
cicatrizes remotas: de um lado o povo negro brasileiro, fruto do tráfico transatlântico, da
escravidão, do racismo e, de outro, as perseguições históricas realizadas contra os judeus na
Europa, que foram alvos prediletos de pogroms e chacinas, sobretudo a partir do início do
século XX, como o Holocausto na Segunda Grande Guerra. Os dois temas de debate nos são
úteis para pensar o ressentimento e o silêncio, primeiro, o Holocausto e em segundo, a História
afro-brasileira e africana.

O Holocausto911 inaugura-se como evento da modernidade contemporânea, que é


marcada pela técnica a favor da morte, do racismo e do xenofobismo. O sociólogo Zygmunt
Baumann (1998) afirma que, antes da ascensão nazista, o ódio aos judeus praticamente era
inexistente na Alemanha e que o antissemitismo não era algo novo na Europa, remontando à
Idade Média, com seus medos e imaginários. Mas, diferente do esperado, foram os civilizados
alemães que desenvolveram a intolerância que levou à morte cinco milhões de judeus entre
1939 e 1945. Desta forma, “o Holocausto foi o clímax espetacular de uma história de séculos
de ressentimento religioso, econômico, cultura e nacional.” (BAUMANN, 1998, p.51). A Lei
Municipal 10.695/2010, que torna obrigatório o ensino do Holocausto, é fruto da disputa dos 167
grupos sociais judeus de Porto Alegre, que imigraram para a parte sul do Brasil. A chegada
4
desse grupo étnico no Rio Grande do Sul iniciou em 1904, pela região de Santa Maria, através
da Associação Judaica de Colonização e, posteriormente, a cidade de Quatro Irmãos (NEVES
at., 2008, p. 2). No município de Porto Alegre, os judeus se estabeleceram a partir da década de
1920 e 1930, no bairro Bom Fim, exercendo atividades comerciais na região e, no entorno, foi
desenvolvida a sua cultura (SANTOS, 2004, p. 6). Com o tempo,f oram ganhando espaço e
importância social na capital gaúcha.

Outro ponto de disputa e luta contra os silêncios está na Lei 10.639/2003, que torna
obrigatório o ensino de História da África e Afro-brasileira. No contexto da História da África,
temos que valorizar o continente africano como berço da humanidade, possuidora de culturas
milenares, como a Egípcia, a Cuxe e a do Reino de Mali. No século XV, esse mesmo território

911
Para saber mais informações sobre o antissemitismo ver: BENSOUSSAN, G. História da Shoah. Espanha:
Bivir. 2005.
teria um grande fluxo comercial ligado à presença de ouro, o que representou a ligação do
mundo árabe com parte da Ásia através do comércio. Neste mesmo século, a chegada dos
portugueses alterará os caminhos comerciais que ficavam situados no interior para a costa,
estabelecendo também o tráfico negreiro, que servirá de força motriz para o desenvolvimento
das colônias portuguesas, espanholas, inglesas e francesas entre os séculos XVI e o XIX.
Segundo Albuquerque, nos séculos XVI e XVII, quase 11 milhões de escravos foram
comercializados com a América, dos quais quatro milhões chegaram ao Brasil, onde foram
utilizados como mão-de-obra na produção agrícola, que era base da economia colonial (2006,
p.40). No nosso país, os cativos africanos foram explorados nas mais diversas atividades, sendo
alvos de maus-tratos, o que ocasionava fugas e rebeliões constantes. Além, de impulsionarem
a construção da nação brasileira, os cativos africanos também contribuíram na construção da
cultura brasileira. O fim do regime escravista brasileiro, oficialmente ocorrido no ano de 1888,
deixou marcas na população que saiu da senzala, pois esta não foi integrada à sociedade
brasileira de forma harmônica pelas classes de senhores. Não podemos esquecer que, antes do
fim da escravidão, a cultura herdada dos cativos africanos já fazia parte da sociedade brasileira,
estando parcialmente integrada, mas, com o tempo, ganhará espaço e deixará de ser parte para 167
ser toda a cultura brasileira. Mesmo que a população negra culturalmente seja integrada, ainda
continuou a sofrer com o racismo no período subsequente a o da abolição. 5
No século XIX, o Brasil era um país mestiço, mas o racismo estava institucionalizado
por meio de políticas estatais de branqueamento. A mestiçagem era considerada um problema,
que seria corrigido pelo “clareando da população”. Neste contexto, ocorre a ampliação da
compreensão da constituição da nação em termos biológicos. Segundo SCHWARCZ (1994, p.
38), a chegada tardia das teorias raciais no Brasil reverberou na criação de uma idéia de raça
negociada no país. Na década de 1930,com o Estado Novo, o mestiço surge como ícone
nacional. Assim, estabeleceu-se a construção sincrética tanto da cultura (no caso dos cultos
afro-brasileiros) como do povo, pelo menos no discurso oficial. Junto com o Estado Novo, surge
a ideia de democracia racial e valorização da mestiçagem. No exterior, o Brasil é visto como
um país exótico e mestiço, que impulsiona a ideia de um racismo inexistente. (SCHWARCZ,
1998, p.189-190). Desta feita, o Estado Brasileiro ingressará na última metade do século XX
com o mito da democracia racial, no qual os silêncios e descasos quanto à presença e inclusão
do negro na sociedade brasileira serão mascarados. A educação, salvo melhor juízo, será um
cenário de disputas pela inclusão social do afrodescendente e pelo seu direito de voz através da
inserção dessa temática no currículo escolar.

Ambas as legislações já apresentadas trazem a concretização de ações de movimentos


sociais organizados, no sentido da construção e consolidação de reconhecimento de uma
determinada memória social, capaz de se tornar memória histórica aceita e compartilhada. Nesta
perspectiva, Halbwachs (1990) afirma que a memória individual está contida nos quadros
sociais, mas o acesso à rememoração se estabelece na intersecção das memórias coletivas que
são construídas nos espaços de convivência, pois os elos de referência estruturam a memória
pertencente a cada sujeito e a cada grupo a que ele pertence. A função social da memória é
portar um poder institucionalizado, que revigora a coesão social, não ocorrendo uma ação
coercitiva, e sim construída pela ação afetiva ligada ao grupo que a evoca como sua. A memória
coletiva não é cristalizada, pois está sempre em construção, em alvo e local de disputa,
composta pela seletividade e pela negociação capaz de conciliar as memórias individuais e
coletivas. O processo de construção da memória coletiva/individual se estabelece pela
lembrança, que nos traz a ideia de reconhecimento. Este reconhecimento só e possível através
da sua escuta, do olhar alheio, da possibilidade de fala que estabelece o processo de 167
“negociação” da memória, da luta contra o ressentimento que impede este processo. Este
6
reconhecimento tem como base a memória histórica que é constituída pela herança social –
contada ou lida - e que compõe o que Halbwachs (1990, p. 55) chama de “memória da nação”.
Logo, esta memória de nação é fruto de disputas de poder ocorridas entre os grupos sociais ao
longo de anos.

É interessante perceber que o mesmo ressentimento que levou às guerras, aos conflitos
de independência e às disputas por liberdades hoje traz o desejo de memória, que por si só
retoma a máxima do reconhecimento, tendo os espaços escolares como microcosmo da
representação social, assim, a educação transformou-se em um cenário de disputa e construção
da memória histórica. Os grupos sociais que tiveram seu passado social negligenciado pelos
grupos sociais dominantes atualmente podem estabelecer discursos e práticas livremente, tendo
a oportunidade de compor a sua memória social e reescrever a sua história, rompendo com os
silêncios e os esquecimentos. Não podemos apenas romper o esquecimento e retomar a
lembrança no presente, mas, de outra forma, a memória social deve buscar o encontro das
memórias dos outros, estabelecendo intersecções contínuas que instituam um lastro comum
(POLLACK, 1989, p.11).Inúmeras vezes o silêncio, segundo Pollack, é fruto da falta de desejo
daquele que foi vítima de contar, da ridicularização da sua fala, que é tratada como mentira ou
falácia. Além disso, nem sempre esta lembrança é apaziguada com seu portador. Para Polack:

“O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência


que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo
tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e
de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e
ideológicas. (POLACK, 1989, p.).

A visão de Pollack é reveladora acerca das atrocidades inerentes à Segunda Guerra e aos
traumas deixados pela República de Vichy na França. Devemos saber que “historiador não
duvida da importância decisiva dos ódios coletivos, embora encontre extrema dificuldade de
compreendê-los em todas as suas nuanças e contradições.” (ANSART, 2001, p.18). Assim,
como ler os silêncios é um desafio da história, também o é dar voz aos silenciados, se configura
como um grande desafio. Devemos perceber que o silêncio ressaltado se estabelece pelo
tormento de não encontrar quem lhe dê ouvidos. Sendo assim, o dizível e o indizível, o
confessável e o inconfessável estão no limiar para Pollack (1989). A lembrança lançada por
167
este trabalho busca o presente para estabelecer os nuances do passado em via de reconstrução. 7
O grande desafio atual é romper o silêncio sem deixar que o ressentimento cegue ou
tome os espaços de debate sobre os temas etnicorraciais. Por isso é interessante retomar o
argumento de Pollack (1989), pois, mesmo falando de um processo europeu, destacando o caso
da URSS, seu texto traz reflexões úteis sobre o processo de rompimento dos silêncios e a
conquista de espaços de grupos sociais anteriormente dominados. No caso do Brasil, a
colonização afetou também as múltiplas formas de pensar, ser e agir. Para pensar a construção
do pensamento colonizado, Quijano afirma que esta mudança só pode ser possível com a
denúncia do eurocentrismo como projeto político e teórico, inaugurado simbolicamente pela
violenta conquista da América Colonial. Logo, uma nova ordem de controle deve partir de
dentro do Estado para romper com as barreiras institucionais e dar voz à multiculturalidade e
multinacionalidade formadora da América Latina, pois o fim destas barreiras traz novas
necessidades. Para este autor, um rompimento real só é possível quando há uma mudança na
forma de pensar, por que passamos por um processo de imposição de uma maneira de refletir,
logo, a colonialidade se esconde na nossa própria racionalidade domada. (QUIJANO, p.122)

No Brasil, as tentativas de rompimento destas barreiras começaram a ocorrer no final da


década de 1950, devido à perda de âncoras de memória, tendo em vista que pessoas que haviam
vivido o processo escravista brasileiro na pele acabaram falecendo. Assim, através de um desejo
de reconhecimento e de preservação das memórias daqueles que sofreram com o período
escravista brasileiro e que estavam no fim da sua vida é que nasceram representantes, ou
melhor, testemunhas secundárias que herdaram este dever de memória e estes começaram a
buscar espaços. Nesta busca, as organizações negras brasileiras tiveram papel decisivo
denunciando e combatendo o preconceito racial, lutando pela preservação da memória do negro
no Brasil.

No caso judaico, as demandas de identidade começam além do Estado Nacional


Brasileiro, neste mesmo período, mas ganharam maior ressonância com o Julgamento de
Eichmann que ocorreu em Jerusalém, no ano de 1960. Desta forma, uma série de obras
testemunhais, oriundas de escrita dos sobreviventes do Holocausto começa a ganhar espaço, e
as questões inerentes à memória deste período tornam-se alvo de debate, lançado
167
principalmente pela comunidade judaica internacional. Os sobreviventes destes eventos trazem 8
uma demanda de tornar públicas as suas memórias, por meio do testemunho que, segundo o
autor Primo Lévi, era:

A necessidade de contar “aos outros”, de tornar “os outros” participantes,


alcançou entre nós antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e
violento, até o ponto de competir com outras necessidades elementares. O livro
foi escrito para satisfazer essa necessidade em primeiro lugar, portanto, com a
finalidade de liberação interior (1988, p. 02).

Mesmo como os esforços intelectuais em recontar estes fatos pela escrita testemunhal,
esta não consegue dar conta das reconstruções representativas destes atos de violência, assim
sendo, nós historiadores assumimos a tentativa de construir e estabelecer representações
históricas do evento da Segunda Guerra Mundial e, por consequência, do Holocausto.
Capitulo II - Possíveis relações entre Leis 10.639/2003 e a lei municipal 10.695/2010
e o Dever da Memória

Para podermos pensar estas leis devemos lembrar que ambas se encontram no âmbito
de medidas governamentais reparadoras. A Lei 10.639/2010 inaugura o pensar na esfera federal
sobre a função reparadora da educação brasileira frente aos temas sensíveis. As diretrizes sobre
as questões etnicorraciais retomam o dever constitucional da garantia de acesso igualitário à
educação, com o objetivo de romper com os empecilhos baseados no preconceito racial (2006,
p.11) tendo em vista que, institucionalmente, foram mantidos os privilégios para os que
nasceram em berço esplêndido. Neste mesmo caminho, está a educação, que não é privilégio
de um, e sim, de todos, e que deve abrir caminhos para aqueles que não tiveram voz. Para poder
dar esta voz, como já afirmamos, se faz necessário reconhecimento. A Lei 10.639/2003,
segundo as suas diretrizes atende:

A demanda da comunidade afro-brasileira por reconhecimento, valorização e


afirmação de direitos, no que diz respeito à educação, passou a ser particularmente
apoiada com a promulgação da Lei 10.639/2003, que alterou a Lei 9.394/1996,
estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e
africanas. (BRASIL, 2003) 167
9
Logo, o trabalho com a temática remonta sentimentos e desejos de reconhecimento,
frutos de um desejo de memória que se transpõe em um dever de memória, que luta contra o
esquecimento. Segundo Joutard (2005, p.224), o esquecimento pode ser pensado de duas
formas: o esquecimento do que é insignificante, ou seja, do que é indigno de memória; e o
esquecimento de ocultação/voluntária que não se quer lembrar, pois perturba. Na perspectiva
de Joutard, podemos ver que o esquecimento, que é a base tanto da construção da memória
coletiva como da individual, também enfrenta seus males. Na luta contra estes males, as
Diretrizes dos Estudos Etnicorraciais (2006) empregam e enumeram a palavra
“reconhecimento” como chave, seguindo a linha de pensamento de Ricouer (2003) que
estabelece o reconhecimento como elemento essencial para o estabelecimento da memória
social.

Desta forma, podemos pensar as diretrizes que enumeram necessidades, entre estas
podemos destacar o desejo pelo reconhecimento da cultura afro-brasileira e africana, como
parte formadora da identidade nacional, objetivando a desconstrução do mito de democracia
racial e da inferioridade do negro através de medidas pedagogias que visem a valorização da
diversidade cultural formadora da nação brasileira. Questionando as práticas discriminatória e
preconceituosas baseadas na ideia de raça no Brasil, Assim, o ensino de História deverá
disseminar a história de luta e resistência dos grupos negros. Como também, compreender
processos de construção histórica da cultura brasileira. E por fim preparar os educadores para
formar com qualidade os seus educandos evitando que a escola seja um local de preconceito,
discriminação e marginalização da população afro-brasileira. (BRASIL, 2006, p.12).

As diretrizes expõem necessidades sociais e desejos de memória que só serão sanadas


através de um processo de reconciliação, que ocorre como fruto de um processo histórico de
reparação e apaziguamento. Paul Ricouer estabelece a reflexão sobre as políticas de interdição
da história quando cita um decreto ateniense que proibia os cidadãos de se lembrar de uma
guerra civil. Segundo o documento, citado por Ricouer, os cidadãos não deveriam recordar das
infelicidades. (2003, p. 6). As leis que discutimos vêm romper com estas barreiras, nascem na
sociedade civil como memória social que passa a ser legitimada por lei.

As diretrizes curriculares da Lei Federal 10.639/2003 abrem caminho para o debate dos
168
estudos etnicorraciais e para o rompimento dos silêncios didáticos acerca das minorias étnicas 0
formadoras da cultura brasileira. Em seu segundo artigo, as Diretrizes elucidam o seu dever de
estabelecer e construir o conhecimento sobre a pluralidade étnica e cultural como sendo
necessária para a construção de uma nação democrática. No segundo parágrafo declara seus
objetivos:

A Educação das Relações Étnico-Raciais tem por objetivo a divulgação e produção


de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos
quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de interagir e de negociar
objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de
identidade, na busca da consolidação da democracia brasileira. (2006, p.31).

As diretrizes da Educação das Relações Etnicorraciais estabelecem o debate sobre


outros temas ligados aos preconceitos raciais, entre estes se encontra a Lei Municipal
10.695/2010, que estabelece o ensino do Holocausto contra o povo judeu dentro do conteúdo
programático de História em toda a rede do município de Porto Alegre. Tais memórias sociais
decretadas por lei são como qualquer memória presa às paixões, dores, e remorsos que desejam
espaços de fala e representação, que só podem ser saciadas pela memória histórica. Desta feita,
o dever da memória nestas leis é retomado como uma obrigação que o país ou grupo social tem
para conscientizar-se sobre um mal realizado a determinado grupo populacional, passando para
o Estado o dever de reparação e reconhecimento. (HEYMANN, 2007). Nesse sentido, a
História, como disciplina escolar, é ferramenta privilegiada para realizar este processo de
construção da memória histórica. Claro que não podemos esquecer que a construção desta
perpassa pelo trabalho do historiador/professor e de seus juízos e escolhas.

CONCLUSÃO

Nessa reflexão, tentamos retomar as ideias defendidas por Todorov (2000) em seu livro
“Los abusos de la memória” e sua forma de distinguir os bons e maus usos da memória. Estes
usos podem ser percebidos através dos vestígios do passado que se mantiveram no presente,
estas memórias podem ser vistas de forma exemplar ou literal. 168
Na forma da memória literal, os fatos são lembrados conforme a sua essência e
1
sintetizados em si. Já a memória exemplar traz uma posição mais generalizada, sem nunca negar
a sua forma única, por que transpõe o passado em princípio de ação para o presente. Logo, a
memória exemplar quer ser usada para pensar o presente; a memória literal se fecha e acaba em
si mesmo. (TODOROV, 2000, p.30-31).

Destacamos que muitos são os desafios do trabalho com os temas sensíveis ligados a
estas memórias traumáticas, silenciadas e sensíveis. O caminho para o desenvolvimento das
práticas educativas permeia o ofício do historiador e o papel de gerar exemplos do passado.
Deste modo, o passado servirá como experiência no presente. A memória é um direito social,
pois é ela que redime os que padeceram, logo, é herança. Mas, é apenas no presente que a
memória ganha sentido como experiência. Portanto, cabe à educação realizar o acerto de contas
com estes passados históricos por meio do conhecimento escolar e isso é fruto do trabalho do
historiador.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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3
LE GOFF, J. Memória e História. SP, UNICAMP, 2002.
LICENCIADOS E SUAS PROFISSÕES (NÃO)
EMANCIPADAS/REGULAMENTADAS: UM ESTUDO DE CASO SOB A
PERSPECTIVA DA TEORIA HOLÍSTICA DA ATIVIDADE912

Felipe Freitag913

RESUMO

Esse trabalho tem por objetivo investigar a questão da (não) emancipação e/ou regulamentação
profissional dos licenciados segundo a abordagem da Teoria Holística da Atividade (RICHTER,
2008) no contexto da Equipe Multidisciplinar da Universidade Aberta do Brasil-UFSM.
Consideramos a classe de licenciados como um grupo, ou uma esfera de atividade humana
formadora de um sistema (LUHMANN, 1990) e, como tal, criadora de discursos e de ações
sobre si. A questão problema dentro dessa premissa é que, mesmo sendo um sistema, a classe
de licenciados sofre ingerências do entorno (LUHMANN, 1990) por padecer de emancipação
e/ou regulamentação profissional (com exceção da Educação Física). Utilizamos como
metodologia de pesquisa a Análise Quantitativa e a Análise Qualitativa (MYNAYO, 1994;
BOENTE e BRAGA, 2004) e o Paradigma indiciário (GINZBURG, 1989) que fundida a
conceitos teóricos da Teoria Holística da Atividade mensura as respostas obtidas com um
questionário investigativo aplicado a alguns profissionais que compõem a EMUAB-UFSM.
Pretendemos expor um panorama das profissões e dos profissionais envolvidos em uma equipe 168
multidisciplinar de aprendizagem em contexto de UAB e do desenvolvimento de suas
funcionalidades atributivas por meio das seguintes contraposições: profissão emancipada e 4
profissão não emancipada; conhecimento do enquadramento de trabalho de uma profissão e não
conhecimento do enquadramento de trabalho de uma profissão; uso de jargão profissional para
dizer seu papel social e para dizer sua prática de trabalho e não uso de jargão profissional para
dizer seu papel social e para dizer sua prática de trabalho. Como foco específico e como
resultado final de investigação está o profissional licenciado em Letras que atua como revisor
linguístico instrucional na EMUAB-UFSM (como e de que maneira a não regulamentação de
sua profissão afeta negativamente o exercício do seu trabalho especializado-formação superior).
PALAVRAS-CHAVE: Teoria Holística da Atividade; Emancipação e/ou regulamentação
profissional; Estudo de caso.

INTRODUÇÃO
Geralmente, as instituições de ensino que ofertam cursos em EaD possuem uma equipe

912
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
913
Autor. Licenciado em Letras Português e respectivas literaturas pela Universidade Federal de Santa Maria.
Mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Santa Maria. Professor pesquisador no projeto
CADREL (formação inicial e formação continuada de docentes de Educação Básica em língua e literatura) do
curso de Letras da UFSM. Revisor linguístico instrucional da EMUAB-UFSM (Equipe Multidisciplinar de
aprendizagem). Educador linguoliterário. E-mail: feletras2007@hotmail.com
multidisciplinar de produção de materiais didáticos interativos. Podemos chamá-los de
designers educacionais/instrucionais e, ainda, de designers de interação (PREECE; ROGERS;
SHARP, 2005), pois suas funções são dividias em: 1) análise do conteúdo didático-pedagógico
do material elaborado pelos professores-autores; 2) revisão linguística do material elaborado
pelos professores-autores; 3) produção de imagens, de vídeos, em suma, de recursos didáticos
interativos para o material elaborado pelos professores-autores.
Nesse sentido, investigaremos a funcionalidade de cada setor da Equipe Multidisciplinar
da UAB da Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul, pertencente ao Núcleo
de Tecnologia Educacional dessa, de modo a analisar o enquadramento de trabalho de cada
profissão que compõe tal grupo, perspectivando uma pesquisa quantitativa que demonstre: 1)
as funções específicas de cada setor; 2) o enquadramento de trabalho de cada profissão
envolvida; 3) as implicações de profissões regulamentadas e/ou emancipadas e das não
regulamentadas e/ou emancipadas no contato com os professores-autores (interrelação e
instrução).
Utilizamos o conceito de enquadramento de trabalho advindo da Teoria Holística da
Atividade (RICHTER, 2008). Ele trata, resumidamente, da especificidade do papel social (dado 168
por discursos de legitimação, como, por exemplo, o da academia, o do diploma, o da sociedade,
o do próprio profissional e o dos seus pares, etc) e das práticas interventivas (as ações 5
conglomeradas dentro do exercício da profissão, ou seja, as tomadas de decisão
paradigmatizadas) dos sujeitos habilitados para o exercício de dada profissão.
Intentamos como base final do estudo examinar se a profissão de licenciado em Letras,
a qual não é regulamentada e/ou emancipada, contrasta com as profissões regulamentadas e/ou
emancipadas que compõem o cenário das demais profissões da EMUAB em questão e se esse
fato prejudica (e de que maneira) a valorização dos profissionais das Letras em termos de
aprovação do seu papel social e de suas práticas interventivas no trabalho com o material
didático interativo dos professores-autores (revisão linguística instrucional) e com os próprios
professores autores (relação interpessoal).
1. Capítulo I – Uab e equipe multidisciplinar
A UAB (Universidade Aberta do Brasil) é um sistema criado pelo Ministério da
Educação em 2005, e tem parcerias de empresas estatais. Tal sistema procura criar políticas de
gestão da Educação Superior no Brasil, articulando o Plano de Desenvolvimento da Educação
(PNE) e a Diretoria de Educação a Distância (DED/CAPES). Assim, a UAB é um sistema que
pretende desenvolver a modalidade de ensino a distância, a fim de expandir e de interiorizar
cursos e programas de Educação Superior no Brasil. A UAB-UFSM foi implementada na
metade dos anos 2000, pela Resolução n. 021/2011, e por conta dessa resolução foi criado na
UFSM, o Núcleo de Tecnologia Educacional (NTE), que atua como agente de inovação do
processo de ensino-aprendizagem, tanto na modalidade educativa presencial quanto na a
distância.
A EMUAB-UFSM, enquanto equipe de trabalho, ou equipe de execução, está dividida
por setores, os quais são separados por profissões e por enquadramentos de trabalho. Na equipe
em questão, existem os seguintes setores: 1) Análise didático-pedagógica; 2) Revisão
linguística instrucional; 3) Design; 4) Audiovisual; 5) Tecnologias de Informação e 6)
Monitoramento e veiculação midiática.

2. Capítulo II – Regulamentação/e ou emancipação profissional: o enquadramento


de trabalho e seus desdobramentos

168
A Teoria Sistêmica de Luhmann (1990) traz a noção de sistema para as atividades
humanas, inclusive as profissionais. Dessa maneira, o sistema de uma profissão pressiona-a 6
para um acordo quanto ao exercício de desempenho interventivo das funcionalidades
concernentes a ela. Assim, é preciso que o profissional selecione possibilidades compatíveis
com a autodeterminação de sua profissão. Em suma, toda profissão legisla e normatiza um
modus operandi de papel social (postura atributiva ao profissional) e de tarefas acionais
(funções ditadas ao profissional).914
Discutimos, portanto, a premissa de que toda profissão, por ser um sistema, deve
autogerir-se a ponto de não sofrer com discursos e com ações do entorno. O entorno é um
conceito luhmanneano que diz respeito àquilo que está fora do sistema e que, por consequência,
não deveria interferir no papel social e nas tarefas acionais dos profissionais de dada profissão.

914
“Por profissões regulamentadas destacam-se aquelas que possuem seus respectivos Conselhos Profissionais,
reguladores e fiscalizadores do exercício profissional; e não regulamentadas aquelas que, apesar de serem
reconhecidas e legalmente amparadas e, apesar de possuírem escolas de formação autorizadas por autoridades
competentes, não podem desfruta de um exercício profissional regulado pelos respectivos profissionais, isto é, por
seus pares” (KIST, 2014, p. 04).
Profissões emancipadas/e ou regulamentadas possuem princípios norteadores de seus papeis
sociais e de suas posturas de atuação, pois têm autonomia e respaldo legal via conselhos
profissionais e/ou códigos de ética profissionais.
O conceito de enquadramento de trabalho, então, surge, na Teoria Holística da Atividade
(RICHTER, 2008) como uma característica primordial das profissões emancipadas, haja vista
que há a criação não apenas de uma identidade profissional comum, mas, sobretudo, de práticas
estáveis para tal identidade. A noção de enquadramento de trabalho aliada à questão da
regulamentação e/ou emancipação profissional gera “práticas autodefensivas de estabilização e
preservação do papel no ecossistema social” (BRAIDA, 2012, p. 54. O enquadramento de
trabalho desdobra-se, então em três fatores, segundo a Teoria Holística da Atividade. Os fatores
de atribuição que dizem respeito ao papel social institucionalizado pela profissão (em interface
com o papel social construído pelo próprio profissional); os fatores de mediação que dizem
respeito ao conteúdo atitudinal das práticas profissionais (as funções que competem, ou não ao
profissional); os fatores de controle que dizem respeito ao (auto) monitoramento do profissional
quanto ao seu papel social e quanto às suas práticas (reflexão sobre a ação).
As licenciaturas não são regulamentadas e/ou emancipadas (com exceção da Educação 168
Física que conseguiu isso em 1998) e em razão disso, o graduado em Letras, que pode atuar
como professor da Educação Básica, como revisor textual, como crítico literário, etc., encontra- 7
se imerso em uma gama de representações sociais difusas para sua profissão, uma vez que
ditadas por expectativas exógenas (discursos e ações da sociedade civil, geralmente, de
desprestígio). O profissional de Letras enquadra-se em um sistema alopoiético (LUHMANN,
1990), isto é, um sistema aberto à diferentes interferências de diversas determinações exteriores
à sua formação. Assim, por não ser um sistema autopoiético (LUHMANN, 1990), produzido e
reproduzido autonomamente a partir de uma operacionalização de papel social e de práticas
funcionais autorreferenciais, a profissão do profissional de Letras não tem uma identidade
sistêmica própria. Isso decorre da não emancipação e/ou regulamentação da profissão. Como
atestam Freitag e Richter (2015, p. 17), o procedimento formativo de um profissional perpassa
pelo “aprender a dizer em jargão profissional, sem o que não há como construir o indispensável
espaço de assimetria sistêmica, nem mesmo entrar em enquadramento”, ou seja, o dizer a si e
o dizer a sua profissão dentro de um sistema linguístico de profissionalização possibilita a
construção de ego social e de práticas interventivas desacopladas de um imaginário e de um
simbólico porque pautadas na realidade orientada pela ação que precede o discurso.
A falta de jargão profissional, de enquadramento de trabalho e da regulamentação e/ou
emancipação profissional são fatores que a THA aponta como os principais responsáveis pelo
que é denominado pela teoria em questão como acrasia, a qual é a dissociação entre o que se
diz e o que se faz. Assim, os profissionais de toda e qualquer profissão deveriam assumir uma
espécie de combate a esse esvaziamento de fala que não condiz com a prática e vice-versa, de
modo a inverter, em sua profissão, sobre a discrepância “entre o que a pessoa diz que pensa e
assume e o que ela efetivamente pratica no contexto considerado” (FREITAG; RICHTER,
2015, p. 01).
Pretendemos, por conseguinte, examinar, nesse estudo, de que maneira o não domínio
deontológico (RICHTER, 2008) que determina e que regula um conjunto de deveres e de
responsabilidades profissionais (enquadramento de trabalho, jargão profissional e emancipação
profissional) apresenta-se, sobremaneira, no profissional de Letras que atua na EMUAB-UFSM
(como revisor linguístico e como instrutor) em contraponto com as demais profissões da mesma
equipe (os com profissões regulamentadas e os com profissão não regulamentadas).915

168
3. Capítulo III – Metodologia da pesquisa
8
Arrolamos nosso trabalho em uma coleta de dados (estudo de caso) de pesquisa de
campo, utilizando um questionário investigativo composto por seis perguntas norteadoras.
Nossos sujeitos de pesquisa são profissionais (seis) da Equipe Multidisciplinar da UAB-UFSM,
os quais responderam as perguntas do questionário em questão, apontando suas perspectivas,
ou pontos de vista sobre: 1) sua função na equipe multidisciplinar; 2) seus conhecimentos sobre
regulamentação e/ou emancipação profissional (no todo e em sua profissão e 3) seus
conhecimentos sobre o conceito de enquadramento de trabalho (o que é, como se aplica à sua
profissão, como se aplica à sua função na equipe multidisciplinar).

915
O autor desse artigo é um dos revisores linguísticos instrucionais da EMUAB-UFSM e em sendo licenciado
em Letras Português pela UFSM, profissão que lhe garante atuar no mercado de trabalho como docente, como
revisor textual, como crítico literário, etc., trará as seguintes perspectivas para a análise e interpretação dos dados
dessa pesquisa: a de licenciado em Letras que sabe que sua profissão não é emancipada e/ou emancipada; a de
mestre em Estudos Linguísticos pela UFSM (com foco na questão do enquadramento de trabalho e na questão da
emancipação e/ou regulamentação do profissional de Letras), a de funcionário da equipe em questão e a de
pesquisador (realizador dessa pesquisa).
Segundo Boente e Braga (2004), o método descritivo de pesquisa é caracterizado
segundo seus objetivos. Assim, o método descritivo será utilizado por nós, uma vez que nossa
pesquisa guia-se por análise quantitativa (levantamento de dados) e por análise qualitativa (o
porquê desses dados; a análise e interpretação desses dados). Para a interpretação de dados, a
análise qualitativa será utilizada em conjunto com o Paradigma indiciário (GINZBURG,
1989), isto é, a primeira, por suas características, comporá o cenário de autoatribuições
interpretativas dos sujeitos pesquisados e o segundo, por suas características, comporá o
cenário das interpretações do pesquisador a partir das respostas dadas pelos sujeitos de
pesquisa. O Paradigma indiciário auxiliará o pesquisador a encontrar índices semióticos
(na textualidade escrita) a partir dos elementos linguísticos (uso da língua) verificados nas
respostas dos sujeitos de pesquisa. Destarte, abaixo, elencamos o questionário investigativo
aplicado aos seis sujeitos de pesquisa do nosso estudo, profissionais da EMUAB-UFSM916:
1) Descreva a sua função na EMUAB-UFSM.
2) Descreva o que você considera como profissão regulamentada e/ou emancipada.
3) A sua profissão é regulamentada e/ou emancipada? Se sim, qual é a especificidade dela (isso
ajuda no seu trabalho, ou não; justifique)? Se não, o que você acha disso (atrapalha no seu 168
trabalho não ser um profissional regulamentado)?
4) Descreva o que você considera como enquadramento de trabalho. 9
5) Como o enquadramento de trabalho, ou a falta dele, promove, ou atrapalha a sua interrelação
com os professores-autores?
6) Como o enquadramento de trabalho, ou a falta dele, promove, ou atrapalha a “autoridade”
em instruir os professores-autores?

4. Capítulo IV – Descrição, análise e interpretação de dados


Os seis sujeitos de pesquisa correspondem a um profissional de cada setor que compõe
a EMUAB-UFSM. Esses sujeitos não terão seus nomes revelados, sendo identificados como
informantes numerados (Informantes 1, 2, 3, 4, 5 e 6), por questões de ética de pesquisa. São
divulgadas apenas as suas idades e o conteúdo verbal (linguística) escrito por eles no
questionário investigativo. Salientamos que o uso da língua (ortografia, pontuação e sintaxe,

916
Existem mais profissionais que compõem a EMUAB-UFSM, entretanto, por questões de delimitação de
amostra, decidimos aplicar o questionário investigativo a um representante de cada setor da equipe multidisciplinar
em questão, construindo um corpus com um sujeito por profissão.
sobretudo) das suas respostas será mantido. Elencamos, a seguir, a partir de uma tabela (método
quantitativo), os dados obtidos (as respostas dos informantes ao questionário investigativo)
para, em seguida, tecermos considerações analítico-interpretativas acerca dos mesmos:

Sujeitos de Pergunta 1 Pergunta 2 Pergunta 3 Pergunta 4 Pergunta 5 Pergunta 6


pesquisa
Informante 1 “Designer.” “Profissões que “Não é “Seria “No momento “Sempre
(28 anos) sejam regulamentada. O posicionamento não tive maiores tentamos passar
reconhecidas pelo fato de não ter de hierarquia problemas com aos professores
governo, e essa dentro do os professores, como ficaria a
possuam estatutos regulamentação ambiente de mas houve relatos melhor maneira
e sindicatos para dificulta o trabalho.” dos mesmos não de se apresentar
defesa e prática recebimento de aceitarem as um conteúdo ou
da profissão.” salários melhores, sugestões vindas sugerimos novas
ou simplesmente das equipes abordagens de
a definição de um anteriores.” ensino, mas
teto salarial.” sempre vai caber
a ele decidir se
vai utilizar ou não
o que é
proposto.”
Informante 2 “Auxiliar de “Uma profissão “Profissionais de “O posto que “Creio que “Seu
(24 anos) informática com que é prevista por Tecnologia da cada um se situa auxilie pois é enquadramento
foco em lei no ministério informação e dentro da equipe, possível designar correto dá mais
desenvolvimento do trabalho, desenvolvedores ter a função a pessoa correta credibilidade ao
de sistemas.” existem leis que não tem profissão correta dentro do para ajudar no instruir um
dão benefícios regulamentada. ambiente de problema que o professor no
para as profissões Não vejo isso trabalho, um professor está assunto de sua

169
como o piso como um programador tendo.” área.”
salarial, exame problema pois exercer sua
médico, etc.” várias profissões função, um
estão na mesma designer trabalhar
situação, mas
creio que não
conheça o total
com design, não
haver desvio de
função.”
0
benefício de uma
profissão
regulamentada.”
Informante 3 “Na Equipe “Profissão “Minha formação “Entendo como “O “Apesar do
(25 anos) Multidisciplinar, regulamentada, é em enquadramento enquadramento, enquadramento
atuo como na minha opinião, Comunicação de trabalho a(s) assim como a de trabalho e da
revisora, com a refere-se às Social – função(ões) compreensão do formação ao
função de revisar profissões que Jornalismo. A desempenhada(s) fluxo de trabalho longo da
os materiais possuem uma profissão está pelo profissional adequado da graduação e do
didáticos textuais, legislação atualmente dentro da Equipe, Equipe, pode mestrado
audiovisuais, específica, que aguardando instituição ou promover uma conferirem a
textos de contempla as regulamentação empresa.” otimização no “autoridade”
pesquisas, particularidades pela Câmara dos tempo e na necessária para o
revistas, folhetos de cada área.” Deputados. A relação com os cumprimento das
e demais regulamentação professores funções e
demandas que só viria a autores, na desenvolvimento
chegam à Equipe. contribuir com a medida em que se das demandas
Também sou qualidade do explicita para eles que chegam à
responsável por trabalho o fluxo adequado Equipe para
produzir desenvolvido, de demandas e as revisão, o
periodicamente facilitando em etapas necessárias trabalho de
relatórios a questões como para o revisão exige
respeito das direitos, deveres e desenvolvimento uma relação
atividades funções do do material, constante com o
desenvolvidas na profissional.” desde a professor, pois há
Equipe. Além de solicitação até a questões que
participar de entrega do somente podem
grupo de produto final.” ser alteradas a
pesquisa, partir do diálogo
desenvolvendo com ele, assim
atividades como como acréscimos
produção de que necessitam
artigos, de informações
participação em que apenas o
eventos e docente possui.”
apresentação de
trabalhos.”
Informante 4 “Trabalho no “Considero uma “Não. Acredito Não respondeu. Não respondeu. “Do meu ponto
(28 anos) setor pedagógico, profissão que tem que se fosse de vista não vejo
a função é o todos os seus regulamentada esse como um
assessoramento direitos teria maiores e problema do
pedagógico tanto assegurados e melhores enquadramento
para o uso do regulamentados condições de de trabalho e sim
ambiente Moodle (piso, carteira trabalho.” de algumas
quanto para a profissional, questões mais
produção de órgãos ideológicas que
material reguladores, permeiam o
didático.” etc.).” trabalho que
envolve a
produção dos
professores-
autores.”
Informante 5 Audiovisual. Não respondeu. Não respondeu. Não respondeu. Não respondeu. Não respondeu.
(idade não
informada)
Informante 6 Monitoramento e Não respondeu. Não respondeu. Não respondeu. Não respondeu. Não respondeu.
(idade não
veiculação
informada)
midiática.

A análise e interpretação de dados, dentro da abordagem metodológica qualitativa e


dentro do Paradigma indiciário, será realizada por meio de uma tabela (método quantitativo) 169
que demonstrará a partir de um campo semântico (reunião indiciária de significação comum do
material linguístico da coleta de dados) as recorrências sobre as categorias analíticas “jargão
1
profissional”, “enquadramento de trabalho” e “emancipação profissional”.

Sujeitos de pesquisa Campo semântico indiciário Interpretação de dados


Informante 1 Jargão profissional: Nomeação; O informante 1 não utiliza jargão profissional
Classificação. para descrever a sua função na EMUAB-
Regulamentação da profissão: Governo; UFSM, pois apenas utiliza um substantivo de
Sindicato; Estatuto; Defesa. Não nomeação e de classificação de sua profissão
regulamentada (salários, teto salarial). (não destacando suas especificidades).
Enquadramento de trabalho: Hierarquia; O informante 1 considera que a
Ambiente de trabalho. Não tem problemas com regulamentação da profissão diz respeito à
a falta de enquadramento (ouviu dizer que construção de um estatuto de defesa da
equipes anteriores tiveram). Sugestão aos profissão, atrelando-o a implementação por
professores (aceitar, ou não elas). conta do Governo (abstrato, sem definição) e
comenta que pelo fato de sua profissão não ser
regulamentada, os itens que a atingem
negativamente é a falta de um teto salarial
(aponta apenas para questões financeiras
decorrentes da regulamentação da profissão).
Segundo o informante 1, o enquadramento de
trabalho funciona como uma hierarquização
(destaca o papel social dado pela profissão)
dentro do ambiente de trabalho e destaca que
não sofre represálias por conta disso na
interação com os professor-autores que fazem
parte do seu escopo trabalhista.
Informante 2 Jargão profissional: Nomeação; O informante 2 não apenas nomeia a sua
Especificidade, ou habilidade da área. profissão através de um substantivo, como
Regulamentação da profissão: Lei; também destaca a especificidade do seu
Ministério do trabalho; Piso salarial; Exame enquadramento de trabalho em sua função na
médico. Não regulamentada (não demonstra EMUAB-UFSM por meio do uso vocabular do
problema com isso-outras profissão não o são- termo “com foco em”, o qual destaca uma
e afirma desconhecer os benefícios de uma habilidade, ou aptidão de sua área de trabalho
profissão regulamentada. (aqui o papel social da profissão e o papel
Enquadramento de trabalho: Designar social contextual estão em interrelação).
funções; Ambiente de trabalho; Não desvio de Demonstra assim, mesmo que primariamente,
funções. Auxilia (dá credibilidade para ajudar o uso de jargão profissional para dizer a si e
os professores). para dizer a sua profissão.
O informante 2 entende por regulamentação da
profissão uma lei criada pelo Ministério do
trabalho (utiliza um órgão legislador nomeado)
que garanta, entre outras coisas, piso salarial e
exame médico (aponta para duas questões:
financeiras e direitos básicos de saúde no
tocante à regulamentação da profissão). Ainda,
aponta que sua profissão não é regulamentada,
mas que não vê isso como um problema, pois:
a) existem outras profissões não
regulamentadas e b) desconhece os benefícios
de uma profissão regulamentada.
Segundo o informante 2, o enquadramento de
trabalho é responsável por delegar funções
dentro do ambiente de trabalho, de modo que
cada trabalhador cumpra com a sua designação
profissional (não menciona se o
enquadramento de trabalho prescreve práticas
interventivas particulares e encadeadas para
cada profissional). Quanto ao trabalho de
interação com os professores-autores em

169
contexto de EMUAB-UFSM, o informante em
questão afirma que o enquadramento de
trabalho auxilia nesse processo, pois tal
designação profissional dá credibilidade ao

Informante 3 Jargão profissional: Nomeação;


profissional.

O informante 3 é o que mais utiliza jargão


2
Especificidade (revisar materiais diversos, profissional para dizer-se e para dizer a sua
produzir relatórios, participar de grupos de função na EMUAB-UFSM (atentar para o fato
pesquisa, produzir artigos, participar de que ele diz-se e diz sua função e não sua
eventos, apresentar trabalhos em eventos). profissão, que é jornalista). Além de nomear a
Regulamentação da profissão: Legislação sua função dentro do contexto de trabalho do
específica; Particularidades de cada área. qual tratamos, o informante 1, elenca uma série
Jornalismo (profissão não regulamentada; de atribuições (uso de verbos no infinitivo)
aguarda regulamentação na Câmara dos concernentes ao seu cargo no ambiente de
Deputados). Contribuir (qualidade do trabalho, trabalho em questão.
direitos, deveres e funções do profissional). O informante 3 atesta que a regulamentação da
Enquadramento de trabalho: Funções; profissão é uma legislação específica que
Equipe; Instituição; Empresa. Fluxo de particulariza cada área de trabalho (não
trabalho (etapas de solicitação e entrega de descreve qual, ou quais órgãos legais fariam
trabalhos). Graduação e mestrado (autoridade); isso, entretanto, salienta a regulamentação
Alterações e acréscimos textuais apenas com o profissional contribuiria para a qualidade do
diálogo com os professores (levar em conta a trabalho, para estabelecer direitos, deveres e
perspectiva deles). funções de cada profissão). O uso generalista
do termo “qualidade de trabalho” implica não
conseguirmos precisar que espécie de
qualificação seria essa. O informante 3, ainda,
afirma que a sua profissão (jornalista) não é
regulamentada, mas certo órgão legislador do
Governo Federal brasileira está tramitando tal
processo. Interessante notar que, em nenhum
momento, o informante 3 menciona o fato de
sua profissão não condizer com a
especificidade de sua função na EMUAB-
UFSM (revisor linguístico como especificidade
de profissionais formados em Letras).
Segundo o informante 3, o enquadramento de
trabalho são funções que dados profissionais
exercem em uma equipe, em uma instituição e
em uma empresa (não há afirmação de que
essas funções devam atender às formações
profissionais dos trabalhadores alocados nesses
espaços de trabalho citados). O informante 3
destaca que o enquadramento de trabalho tem
relação com o fluxo de trabalho (etapas de
produção e de entrega) de demandas de
trabalho (não há menção às práticas
interventivas de cada profissional dentro desse
fluxo).
O informante 3, ainda, aponta que a graduação
e que o mestrado (realizados por ele) são
fatores de autoridade frente aos professores-
autores, mas que a perspectiva desses deve ser
considerada (por meio do diálogo) para que as
alterações textuais sejam efetuadas (não há
menção explícita de como se dá esse diálogo e
se há uma metodologia de revisão textual dos
materiais desses professores). O termo
“perspectiva”, utilizado pelo informante 3, é
genérico e amplo, o que não nos dá índices para
interpretações precisas.

Informante 4 Jargão profissional: Nomeação; O informante 4 utiliza jargão profissional a


Especificidade funcional. partir da nomeação de sua função dentro da
Regulamentação da profissão: Direitos; Piso EMUAB-UFSM (setor pedagógico) e de
salarial; Carteira profissional; Órgão regulador. encargos decorrentes dela (assessoramento
Não regulamentada (traria melhores condições pedagógico para…), entretanto, não deixa clara
de trabalho). qual é a sua formação profissão, a qual fica
Enquadramento de trabalho: Não respondeu implícita (Pedagogia).
as questões 4 e 5. Enquadramento de trabalho O informante 4 compreender a regulamentação

169
não é um problema; Ideologias dos professores profissional como uma promulgação de direitos
é um problema para o seu trabalho interativo aos profissionais de dada área (não estabelece
com eles. por quem eles seriam construídos; não destaca,
também, a existência de deveres profissionais

advindos da regulamentação da profissão,


segundo o informante 4, giram em torno de
3
na regulamentação da profissão). Os direitos

materialidades (carteira profissional), de


valores (piso salarial) e de leis (órgão
regulador), mas, de modo algum destacam
como se conseguir que eles sejam assegurados.
O informante em questão destaca que a
regulamentação da profissão acarretaria
melhores condições de trabalho, entretanto, não
descreve quais seriam elas.
Segundo o informante 4, o enquadramento de
trabalho não é um problema, pois não prejudica
na a “autoridade profissional” diante dos
professores-autores (afirma que o que atrapalha
são questões ideológicas, mas não define o que
essas seriam). Por não responder às questões 4
e 5, não temos dados gerados que possam
suscitar interpretações de dados.
Informante 5 Não encontramos pistas linguísticas e/ou A abstenção do informante não gerou dados
atitudinais que indicassem a abstenção do que, por consequência, não geraram
informante. interpretação de dados.
Informante 6 Não encontramos pistas linguísticas e/ou A abstenção do informante não gerou dados
atitudinais que indicassem a abstenção do que, por consequência, não geraram
informante. interpretação de dados.

Com base na tabela de interpretação de dados, podemos verificar que há uma assimetria
interna no ambiente de trabalho da EMUAB-UFSM, uma vez que são as expectativas cognitivas
as que regem os cargos e as atribuições dos profissionais que compõem tal equipe. A maioria
dos informantes não faz uso de jargão profissional para dizer-se dentro da profissão e para dizer
a sua profissão (utilizam, sobretudo, nomeações e classificações das suas funções dentro da
equipe multidisciplinar em questão). Quanto à emancipação e/ou regulamentação da profissão,
a maior parte dos informantes aponta para normas jurídicas que tragam para os profissionais
um respaldo, sobremaneira, financeiro e não para um instrumento preponderante para o
empoderamento das profissões em suas especificidades. Os informantes, podemos afirmar a
partir da interpretação de dados, não atrelam a emancipação e/ou regulamentação da profissão
a uma regularidade atribucional que institucionalize o seu exercício profissional em relação às
outras profissões, isto é, não veem suas diferenciações/especializações e paradigmas de trabalho
como a construção de uma identidade profissional autogerida, autorreflexiva que iniba
interferências exógenas à profissão. O enquadramento de trabalho conceituado pela maioria dos
informantes nos dados obtidos apresenta como foco central a organização do fluxo de trabalho
em dado ambiente de trabalho, delimitando e definindo etapas e funções para cada componente
de uma equipe de trabalho.

169
CONCLUSÃO
O Edital n. 02/2016, de 26 de fevereiro de 2016 atesta a não especificidade do 4
profissional de Letras na EMUAB-UFSM por conta da não emancipação e/ou regulamentação
da profissão, uma vez que ele concorre a um mesmo cargo junto de outra profissão que não é
especializada para o exercício de revisor linguístico:

Figura 01: Dos Cargos, Pré-requisitos e Carga Horária Semanal.


AUTOR: UFSM (2016).

O revisor linguístico instrucional (autor desse trabalho), diante do não enquadramento


de trabalho, escolheu uma fundamentação teórica-os fatores de mediação da THA, o Process
writing de White e Arndt (1991) e o dialogismo problematizador freireano (1985) e uma
metodologia (os fatores de mediação da THA, o Process writing de White e Arndt e o
dialogismo problematizador freireano) para alicerçar seu cargo e suas práticas dentro dele.
Diferentemente da maioria dos informantes dessa pesquisa, o autor desse trabalhado (revisor
linguístico instrucional da EMUAB-UFSM) acredita que a falta de enquadramento de trabalho
e que a não emancipação e/ou regulamentação da profissão “atrapalha” negativamente a
interrelação com os professores-autores e “atrapalha” a “autoridade” em instruí-los. Essa
constatação deve-se ao fato de que em junho de 2016, um professor-autor (por ética de pesquisa,
o seu nome não será mencionado) afirmou que não aceitaria a maior parte das alterações e das
sugestões de melhoria textuais realizadas, pois não via sentido nelas. O revisor contra-
argumentou expondo a sua metodologia de trabalho (Process writing; Dialogismo
problematizador freireano; fatores de mediação da THA) e utilizando jargão profissional
durante a interação dialogal como estratégias de legitimar seu papel social e sua prática
interventiva de profissionalização, mas o docente em questão não quis seguir as indicações de
melhorias textuais sugeridas pelo revisor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
169
BOENTE, Alfredo; BRAGA, Gláucia. Metodologia científica contemporânea. Rio de 5
Janeiro: Brasport, 2004.
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o entendimento da Teoria Holística da Atividade. Disponível
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FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antônio. Por uma Pedagogia da Pergunta. Rio de Janeiro: Paz
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o criador da Teoria Holística da Atividade, Marcos Gustavo Richter. In: V Fórum de
Estudos Interacionistas (PPGL-CEPESLI-UFSM). Entrevista audiovisual transcrita e editada
por Marcos Gustavo Richter. Universidade Federal de Santa Maria, 2015.
GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia. das Letras,
1989.
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mercado: assimetria interna aos sistemas alopoiéticos na área de Letras. (2013).
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KIST, Liane Batistela. O Desenvolvimento Profissional Corresponsável de professores de
língua materna como proposta de intercâmbio entre academia e mercado de trabalho.
(2014). Disponível em:<file:///C:/Users/visitante/Downloads/22435-106318-1-SM.pdf>.
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computador. Porto Alegre: Bookman, 2005.
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UFSM. Ministério da Educação. (2011). Resolução n. 021/2011. Disponível 169
em:<http://nte.ufsm.br/moodle2_UAB/pluginfile.php/32121/mod_page/content/25/resolucao_
regimento_NTE.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2016. 6
UFSM. Ministério da Educação. (2016). Edital n. 02/2016. Disponível
em:<http://estudio01.proj.ufsm.br/eadctism/editais/edital_02-2016.pdf>. Acesso em: 23
jun. 2016.
PODER, MANDO E SUBMISSÃO: REPRESENTAÇÕES NA TELENOVELA QUE
MOBILIZAM APRENDIZAGEM HISTÓRICA*917

Elisabete Zimmer Ferreira**918

RESUMO

Para pensarmos esta pesquisa devemos ter em mente que a aprendizagem histórica não é
unicamente propriedade do sistema escolar e como tal não se finda neste espaço, mesmo que
tenha nele seu lugar de referência. Ela está sim relacionada a historiografia e a forma com que
se ensina história, mas sobretudo, diz respeito a consciência histórica surgida no cotidiano, na
práxis da vida. A televisão é parte deste cotidiano, e dentre a sua programação destacam-se as
telenovelas, as quais inicialmente tiveram um caráter voltado a diversão, mas na década de 1980

169
tomaram o rumo da intervenção. Neste ponto devemos pensar que a telenovela se constitui
como uma narrativa, na qual os telespectadores encontram um padrão de identificação com suas
próprias vidas, que mobiliza a discussão e a reflexão. Diante desta premissa objetivamos 7
analisar as relações dialéticas entre uma cultura histórica construída através da historiografia
sobre os conceitos de coronelismo e clientelismo e a presença destes conceitos nas narrativas
dos telespectadores da telenovela Gabriela/ versão 2012. Para isso adotamos o método de estudo
de casos múltiplos, o qual foi sustentado nas técnicas de entrevista complexa e análise de
conteúdo. Obtivemos como resultados a construção dos saberes: mando, poder e submissão.
Consideramos que a telenovela Gabriela se portou como uma narrativa histórica mesmo que
seu autor não tenha tido esta pretensão. As cenas apresentadas na telenovela incidiram sobre as
narrativas dos participantes que demonstraram sua mobilização para a aprendizagem histórica,
pois em suas narrativas observamos a presença de estruturas cognitivas que atenderam as
dimensões da experiência, interpretação, orientação e motivação, mesmo que de forma distinta
entre os participantes, fator que evidenciou a individualidade do aprendizado.

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande, elisabetezimmer@yahoo.com.br
Palavras-chave: Telenovela; Aprendizagem histórica; Coronelismo

INTRODUÇÃO

O aprendizado se processa de duas formas, uma é a experiência da práxis, a qual se dá


no cotidiano e a outra, a escolar, experiência esta que não queremos de forma alguma negar,
mas demonstrar que o aprendizado histórico pode ocorrer também por meio de elementos
presentes em parte de nossas atividades diárias, como a televisão. Ressaltamos que aprendemos
com o que nos é e nos foi posto, no caso deste estudo com a telenovela, e com os outros, tal
qual outros aprendem conosco. Isso ocorre porque o ato de assistir os capítulos da telenovela
gera um aprendizado, mediante decodidicação de uma mensagem, bem como o debate acerca
da mensagem já decodificada pelo telespectador norteado por sua própria cultura, com outros
telespectadores que também imprimem seus pontos de vista no momento do repasse da
mensagem (THOMPSON, 2009a).
Sobre o aprendizado histórico é preciso enfatizar que ele tem início a partir de
experiências relativamente importantes no presente do aprendiz, momento no qual suas 169
carências de orientação são transformadas em questionamentos a respeito do passado,
revelando assim, o potencial da experiência da memória histórica. Isto demonstra que aprender 8
história é mais que acumular conteúdos, mas elaborar respostas a questionamentos provenientes
de conhecimentos prévios, sendo estas respostas tomadas por seu aprendiz como fator de
determinação de orientação para a vida prática (RÜSEN, 2015).
A televisão é parte deste cotidiano, e dentre a sua programação destacam-se as
telenovelas, as quais inicialmente tiveram um caráter voltado a diversão, mas que por volta da
década de 1980 tomaram o rumo da intervenção (HAMHURGUER, 2005). Ocorre que toda a
telenovela se constitui como uma narrativa, na qual os telespectadores encontram um padrão
de identificação com suas próprias vidas, que mobiliza a discussão e a reflexão.
Diante desta premissa objetivamos analisar as relações dialéticas entre uma cultura
histórica construída através da historiografia sobre os conceitos de coronelismo e clientelismo
e a presença destes conceitos nas narrativas dos telespectadores da telenovela Gabriela/ versão
2012.
Para atender o objetivo da pesquisa adotamos como metodologia o estudo de casos
múltiplos, que obedece a lógica da replicação evidenciando os fenômenos pelos quais a
aprendizagem histórica se processa, visando observar além da trajetória e da repercussão de
seus fenômenos, seus efeitos em todo seu contexto (YIN, 2011). O método teve como suporte
a entrevista complexa e análise de conteúdo. Destacamos que a entrevista complexa, é uma
técnica que orienta um diálogo com um determinado propósito, que se caracteriza como
promotora da abertura e aprofundamento em uma comunicação, trazendo perguntas abertas, as
quais permitem que o entrevistado exponha suas opiniões sem uma determinada condição pré-
estabelecida (POPE, MAYS, 2009), portanto nos possibilitou a coleta dos dados. Já, a análise
de conteúdo, uma técnica muito utilizada na análise de textos, divide-se em três fases: 1) Pré
análise, 2) Exploração do material e 3) Tratamento dos resultados obtidos e interpretação
(BARDIN, 2011), nos permitiu realizar uma análise detalhada de cada narrativa investigada.

Poder mando e submissão

Logo que procedemos a leitura das narrativas dos participantes observamos a construção 169
de um saber coletivo relacionando coronelismo ao mando, sendo este mando diretamente
9
interligado ao poder que os coronéis exerciam em suas regiões, bem como a submissão da
população que habitava os nichos sob seu domínio. Observamos também que esta foi a
categoria mais presente nas narrativas estando intimamente ligada as outras categorias presentes
nas falas dos participantes. Deste modo, apresentamos nesse momento uma discussão dos
extratos das narrativas que envolvem especificamente: mando, poder e submissão.
Compreendemos que os saberes históricos relacionados ao mando foram construídos
pelos participantes focando prerrogativas distintas como mostraram os extratos a seguir.

Os coronéis dominavam a política porque antes era assim, um coronel mandava em


toda a cidade na questão do voto, então era sempre ele que mandava na cidade. E,
quando o Mundinho chega ele tenta mudar aquilo ali, mas os coronéis tentam se
manter unidos para não perder o poder(Jade, grifo nosso)

o sistema coronelista é um sistema de mando, onde a política tem as trocas de


favores e vai em busca dos benefícios próprios (Granada, grifo nosso)
Notamos que Jade e Granada associaram o mando do coronel à política. Porém, Jade
colocou o mando como uma forma de sustentação do poder do coronel, enquanto Granada
percebeu o mando como coadjuvante numa política que teve por sustentáculo as trocas de
favores e o beneficiamento próprio. Ambos os sujeitos entrevistados apresentaram uma
compreensão clara de um dos fundamentos do sistema coronelístico e mais do que isso,
apresentaram a noção de mando como algo que sustentava o modelo político. Entretanto, Jade
conseguiu perceber uma diferença entre o presente e o passado ao expressar “porque antes era
assim”, ou seja, hoje é diferente. Essa percepção demonstrou que Jade avaliou o tempo presente
em relação ao passado e conferiu um sentido para ambos, que possui uma competência
narrativa, pois segundo Rüsen a narração “... tem a função geral de servir para orientar a vida
prática no tempo. Mobiliza a memória da experiência temporal, desenvolvendo a noção de um
todo temporal abrangente, e confere uma perspectiva temporal interna e externa à vida prática”
(RÜSEN, 2010 a: 62). Como bem discorreu o autor, ao demonstrar em sua narração a percepção
de que existiram diferenças entre o presente vivido e o passado analisado através da telenovela,
Jade, apresentou uma perspectiva e experiência temporal.

Da mesma forma a questão do mando no coronelismo foi construída por Ágata e 170
Turmalina.
0
Pelo que eu entendi coronelismo era uma época política que já havia uma estrutura
de lei, tinha um governador, um presidente e isso é salientado na novela, porém
isso não tinha valor nenhum. Isso não interessava ali, o que interessava era o que o
coronel decidia e como mandava (Ágata, grifo nosso)

Em cidades pequenas onde o poder é muito grande, o poder é muito aflorado, onde
o estado não manda tanto, existem as leis, é o coronel que assume as
responsabilidades e vai mandar como se fosse o dono da cidade, ele é aquele antigo
senhor de escravos, ou o dono de terras, e, ele acaba mandando no juiz, no delegado,
ele é o dono da cidade (Turmalina, grifo nosso)

Percebemos neste momento que as participantes demonstraram o conhecimento de uma


estrutura governamental e de um sistema de leis, mas afirmaram que quem mandava em regiões
pequenas era o coronel. Notamos que Turmalina, foi além e explicou que o coronel mandava
porque o estado não se fazia presente nessas localidades. Quanto à aprendizagem destacamos
na fala de Ágata um distanciamento temporal, ou seja, por meio das palavras “o coronelismo
era uma época”, a participante mostrou que percebeu o período coronelista como outro período
histórico e, portanto, diferente do atual, apesar de já contar com uma estrutura administrativa e
legislativa. Isso demonstrou a realização da operação mental da narrativa da experiência, a qual
pressupõe que o sujeito possa olhar o passado diferenciando-o do presente (RÜSEN, 2010 a).

Pérola, Zircônia e Citrino seguiram a lógica do mando dos coronéis:

o Mundinho e um coronel que era amigo dele se veste de padre para tentar resgatar a
Jerusa, mas não deu certo porque a madre tem medo do coronel porque o coronel
mandava lá. Mandava no padre, na escola em tudo, o coronel mandava em tudo.
O coronel Ramiro mandava em todos na cidade, até nos outros coronéis (Pérola, grifo
nosso)

O coronel mandava em todos, ou pelo menos queria mandar, já o Mundinho veio


para revolucionar e tirar aquele mando do coronel, fazer algumas mudanças. O
coronel Jesuíno era um machão, era um homem que não deixava nem sequer ter
opinião própria, as coisas tinham que ser do jeito dele, nada podia ser de outro jeito
(Zircônia, grifo nosso)

O coronelismo, naquela época, foi um sistema de mando visível. Eu me lembro do


170
Amâncio, do Ramiro do Jesuíno. Eles praticavam a força, tinham dinheiro e poder,
principalmente poder, e aquele que apresentava mais conquistas era superior aos
1
outros (Citrino, grifo nosso)

Eles apontaram que o mando era exercido sobre toda a população, atingindo todos os
indivíduos da sociedade. De acordo com Pérola e Citrino, um coronel podia exercer o mando
também sobre os outros coronéis, o que segundo Citrino acontecia em função das conquistas
deste coronel. Esta proposição nos levou a inferir que os participantes perceberam a existência
de uma hierarquia clara no sistema coronelista, a qual se estendia também sobre os próprios
coronéis, na qual um coronel exercia o mando enquanto os outros se submetiam a ele, fator este
que estava vinculado ao poder do próprio coronel. Esta percepção dos participantes denotou a
apreensão do conteúdo, pois os participantes aprenderam sobre a hierarquia do mando no
coronelismo, o que segundo Rüsen (2010 a), revelou a realização da operação mental da
narrativa da experiência, uma vez que esta se traduziu pela capacidade que os sujeitos tiveram
de ter experiências temporais. Deste modo, as cenas da telenovela se colocaram como o fato
experenciado, pois segundo Thompson (2009 b) os personagens tornaram-se referência comuns
para os telespectadores que podem não ter interagido entre si, mas partilharam, por meio de
uma cultura mediada, de uma experiência comum e da memória coletiva, que neste caso foi a
própria situação da hierarquia do mando.

Para os participantes o poder do coronel estava nas suas ações sobre as ações dos outros,
sendo que estas ações determinavam o comportamento daqueles sobre os quais o coronel
exercia a ação. Isto foi referenciado nas falas de outros participantes.

Eu lembro do Ramiro dizer que conhecia o governador, então ele tinha aliança
que ia além daquelas com os coronéis. O poder dele ia um pouco mais além da
cidade de ilhéus e isso era uma forma dele também conseguir se manter. (Jade,
grifo nosso)

O coronel Ramiro Bastos era o grande coronel e tinha também o Dr. Mundinho Falcão,
acontece que eles eram rivais um do outro, mas o Mundinho não era coronel. Só que
o coronel é quem mandava na cidade. O Mundinho era diferente do Ramiro, ele
veio do Rio de Janeiro, tinha inteligência e poder. O Ramiro não tinha poder, quer
dizer só na cidade onde ele morava, ele era bem dizer uma pessoa ignorante. Ele
era coronel porque ele comprou o nome de coronel (Pérola, grifo nosso)
170
2
Destacamos que os participantes entenderam que o coronel era um indivíduo que
detinha o poder, o qual era utilizado sob a forma de mando e este mando reafirmava-o como
um ser poderoso. No entanto, Pérola acrescentou que havia outro indivíduo na trama que
possuía relações em esferas superiores e que, portanto tinha poder maior que o coronel, fato
que evidenciou que o coronel era um individuo circunscrito em uma determinada zona de
mando, onde ele figurava como a personalidade dominante, situação esta que não poderia ser
posta sob ameaça conforme revelou Ametista:

eu aprendi sobre o poder dos coronéis. Eles mandavam na cidade, no povo e não
aceitavam que outro viesse de fora com ideias diferentes, que quisesse mudar aquela
realidade porque eles queriam manter o monopólio, manter o poder (Ametista, grifo
nosso)
Esta ameaça emergia em consonância com ideias divergentes das dos coronéis, ou seja,
de outros integrantes da sociedade que por ventura pudessem fazer colocações que pudessem
vir a desestabilizar o sistema vigente e, por conseguinte o seu poder.

Analisando as afirmações dos participantes pela lógica de Faoro (2012),


compreendemos que tanto o coronel como o Mundinho praticava ações hora de mando
(coronel) porque lhe era reconhecido esse direito num pacto não escrito, hora de
estabelecimento de parcerias (coronel e Mundinho) mediante cooptação de aliados. Sendo que
estas ações determinavam o comportamento destas pessoas em relação a eles.

Ainda em função do poder e do mando do coronel os participantes afirmaram que:

Os coronéis queriam explorar a população e não só a exploração, mas a acumulação


de riqueza e de poder, no sentido de eles se sobressaírem como donos e proprietários
da região onde eles moravam, de certa forma mantendo a população submissa a
eles (Turquesa, grifo nosso)

quando a Jerusa defendeu mundinho, porque para mim o Ramiro ter colocado ela num
convento foi uma violência. Ele tirou a liberdade dela, que era o que ela e a Malvina
prezavam muito, e ninguém fez nada nem o pai nem a mãe dela. Todos, mesmo não
concordando fizeram a vontade do coronel(Jade, grifo nosso)
170
3
A violência era usada para tudo. No primeiro capitulo mostra uma família que
morava na terra e eles chegaram, tiraram, mataram e tomaram a terra e já se
colocaram, então já começa a crescer aquela sociedade e um, que tem mais força
passa a mandar ali. Eles também usavam a violência para impor a lei, só que a
lei era próprio coronel (Jade, grifo nosso)

Observamos que tanto Turquesa quanto Jade trouxeram a ideia da submissão. Turquesa
vinculou a submissão ao poder e a riqueza do coronel e Jade ligou a submissão à supressão dos
direitos dos indivíduos, a qual estava diretamente relacionada ao mando. De qualquer forma, a
ação desempenhada pelo coronel resultava na submissão da população a sua pessoa. Jade
relatou que o mando esteve estreitamente ligado à violência e acumulação de terras. As terras
tornaram-se latifúndios e criou-se o imaginário que o mandante local possuía grandes fortunas,
usava o título de coronel e exercia o poder, digo, ações de mando de forma desmedida tornando
a população submissa.
Foi pertinente a construção da ideia do latifúndio como a base do coronelismo, por que
foi sobre a grande propriedade que se edificaram os primeiros coronéis. No entanto, lembramos
que de acordo com a historiografia, o coronel em primeira instancia era um líder nato,
geralmente tinha como base o latifúndio, mas também podia ser um homem com outras
atividades lucrativas bem sucedidas como o comércio, desde que essa atividade pudesse lhe dar
condições de realizar práticas clientelistas (QUEIRÓZ, 1975).

No que tange a aprendizagem histórica, os saberes construídos pelos participantes


demonstraram a apreensão de conteúdos veiculados na trama de “Gabriela” e estiveram em
acordo com a historiografia, mesmo que esta não tenha sido mencionada como fonte para as
cenas exibidas. Outro fato que destacamos é o fascínio que a trama exerce sobre os
telespectadores por seu caráter épico, o que funciona como estímulo para a aprendizagem, mas
este fator isolado não garante a aprendizagem histórica, sendo necessária uma discrepância
entre presente e futuro para atrair a atenção sobre o passado (RÜSEN, 2010 a).

Diante desta premissa, entendemos que “a aprendizagem histórica é o crescimento da


experiência ganha a partir do passado humano” (RÜSEN, 2010 a: 85). Logo, foi neste ponto
que as cenas de “Gabriela” promoveram a aprendizagem histórica, pois mesmo que os
170
participantes não tenham demonstrado em todas as falas, sabemos que eles tinham ciência que 4
a versão de “Gabriela” usada nesta pesquisa é uma obra ficcional do momento presente, que
trouxe em seu enredo uma representação do passado. Assim, as cenas exibidas na telenovela
configuraram-se como as experiências e interpretações no tempo, que foram apreendidas de
forma única, por cada telespectador. Isso possibilitou aos participantes estabelecerem uma
diferença qualitativa entre presente e passado, que veio a promover aprendizado histórico em
conjunto com os questionamentos do presente e este aprendizado determinou uma
ressignificação, ou seja, a mudança nos modos de interpretação do passado (RÜSEN, 2010 a).

CONCLUSÃO

Consideramos que os participantes interpretaram os fatos representados na telenovela


de forma particular, o que correspondeu aos pressupostos de Rüsen sobre a aprendizagem
histórica, pois a aprendizagem histórica se processa pela experiência a fim de responder como
orientações no vida prática. Destacamos que apesar do mando, do poder e da submissão ter
permeado os saberes de todos os participantes a cerca do coronelismo, eles não foram a essência
do coronelismo, pois a eles somaram-se outras práticas como as trocas de favores, a imposição
da força, a aliança entre os coronéis e o reconhecimento social desta figura perante a sociedade,
além de sua participação na política quer fosse como protagonista ou como coadjuvante. Logo,
podemos afirmar que os participantes demonstraram apreensão do conteúdo de forma
condizente com a historiografia, entendendo na experiência do mando, do poder e da submissão
um dos suportes para a manutenção do coronelismo, um sistema que vigorou no país, no
passado. Sendo assim, a telenovela Gabriela se portou como uma narrativa histórica mesmo
que seu autor não tenha tido esta pretensão. As cenas apresentadas na telenovela incidiram sobre
as narrativas dos participantes que demonstraram sua mobilização para a aprendizagem
histórica, pois em suas narrativas observamos a presença de estruturas cognitivas que atenderam
as dimensões da experiência, interpretação, orientação e motivação, mesmo que de forma
distinta entre os participantes, fator que evidenciou a individualidade do aprendizado.

FONTES
170
Gabriela. Telenovela. Produção Rede Globo de Televisão. Autoria: Walcyr Carrasco.
5
Direção: Mauro Mendonça Filho Mauro Mendonça Filho, Frederico Mayrinc e Noa
Bressane, 2012. Disponível em: <http://gshow.globo.com/novelas/gabriela/index.html>
(acesso em 10/08/2014 às 18h00min)
Entrevistas dos participantes

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.


FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato brasileiro. 5 ed. São Paulo: Globo,
2012

HAMBURGUER, E. O Brasil antenado: a sociedade da novela.1ª ed. Rio de


Janeiro:Zahar,2005
POPE, C.; MAYS, N. Pesquisa qualitativa na atenção à saúde. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed,
2009.
QUEIRÓZ MIP. Coronelismo. In: HOLANDA SB (org.). O coronelismo numa interpretação
sociológica. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História Geral da Civilização
Brasileira. O Brasil Republicano: Estrutura de poder e economia (1889-1930). Tomo III, V.1.
São Paulo: Difel, 1975

RÜSEN, J. Teoria da História: Uma teoria da história como ciência. Curitiba: Editora da
UFPR,2015
_______. O desenvolvimento da competência narrativa na aprendizagem histórica: uma
hipótese ontogenética relativa a consciência moral.in: SCHMIDT, MA; BARCA, I; MARTINS,
ER. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: ED. UFPR, 2010 a.
THOMPSON, J.B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. 11ª edição.
Petrópolis, Rio de Janeiro, Vozes: 2009 a
YIN, RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 4 ed. Porto Alegre: Bookman, 2010.
.
170
6
ATRAVESSAMENTOS ENTRE NAÇÃO E EDUCAÇÃO NO BRASIL NO INÍCIO
DO SÉCULO XX NAS PÁGINAS DA REVISTA DE ENSINO (1927-1931)*919

Rafaela Rech**920

RESUMO

O texto tem como objetivo problematizar as relações entre a constituição do ideal de nação e a
história da educação nos primeiros anos do século XX. Neste texto, este período da história
brasileira é compreendido como aquele que é marcado pelas discussões a respeito da questão
nacional e a educação é tomada como estratégica para a constituição da nação. No Brasil, desde
o século XIX as discussões se dão em torno do problema da inserção do negro na população
brasileira, especialmente após a abolição da escravatura. O debate sobre as relações entre raça
e civilização no Brasil marcou as primeiras décadas da República em um contexto em que
assistimos a emergência dos movimentos sanitaristas e eugenistas, nucleares, da própria ideia
de nacionalidade/nacionalismo que se constituía naquele período. Intelectuais em sua maioria
eugenistas/higienistas compreendiam que a nação necessitava ser construída e, neste processo,
a educação é eleita como uma das prioridades. Já em 1917, alguns higienistas defensores da
saúde pública publicaram um relatório conclamando a criação do Ministério da Educação e
Saúde. Ao debater o futuro da nação, educação, cultura e saúde passam então, a cumprir papel
fundamental. Nesse sentido, a escola, apoiada em um currículo, é compreendida como um
170
dispositivo normalizador que tem na ideia de raça contribuições para a constituição de sujeitos
eugênicos e essa educação eugênica torna-se uma aposta de intelectuais. Tomo como objeto de
7
análise para este texto, documentos da Revista de Ensino publicados entre 1927 e 1931, pois
compreendo que tais documentos contribuem para a história da educação brasileira no início
do século XX e apresentam discussões a cerca da constituição de uma identidade nacional pela
educação. Este texto constitui-se em uma parte da pesquisa, que está em andamento, para a
dissertação do Mestrado em Educação da UNISC.
Palavras-chave: Nação; Educação; História.

INTRODUÇÃO

O objetivo deste texto é problematizar a relação entre a constituição do ideal de nação e


a história da educação nas primeiras décadas do século XX no Brasil. Para que o objetivo
proposto seja atingido e a discussão seja efetiva, tomo como eixo de análise o periódico Revista
de Ensino, publicado entre os anos de 1927 e 1931. Tal periódico encontra-se disponível no site

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Mestranda em Educação, PPGEDU - UNISC, e-mail: rafaelapassasete@gmailcom
da Biblioteca Nacional e se torna uma ferramenta interessante para a compreensão da história
da educação brasileira no referido período.

O texto está estruturado a partir das discussões sobre a questão nacional e sobre
o seu atravessamento com a temática da educação. A pesquisa no periódico se torna relevante
para a análise dos discursos que permeavam a educação no período de sua publicação, ao
ressaltar, em suas páginas, assuntos relacionados à nação, à eugenia e à questão racial da
população brasileira.

1.1 A questão nacional no brasil e suas particularidades

O século XIX é considerado pelos estudiosos um período de afirmação das nações.


Movimento iniciado na Europa e que depois se estendeu para outras partes do mundo, entre
eles, o Brasil. No Brasil, o processo de nacionalização começou a ser discutido no fim do século
XIX e nas primeiras décadas do século XX. A questão nacional começou a ser debatida após a
abolição da escravatura, em 1888, quando a inserção do negro na população brasileira se tornou
um problema que precisaria ser resolvido. Neste momento as diferenças não apontavam mais 170
para o status jurídico do negro, mas sim para o status biológico. 8
Cabe, neste início de texto, fazer uma breve digressão sobre a constituição do Estado-
nação moderno, que de acordo com Habermas (1995, p.87), “tal tipo histórico de Estado surgiu
originalmente com as revoluções francesa e americana, difundindo-se depois por todo o
mundo”.

Os regimes democráticos se mostraram mais estáveis naqueles países onde a


identidade nacional se desenvolveu em ligação estreita com as lutas revolucionárias
por liberdades civis, dentro de Estados territoriais já existentes, enquanto as
democracias se mostraram menos estáveis onde quer que os movimentos nacionais,
e as Guerras de Libertação contra um inimigo externo tiveram de criar, antes, as
fronteiras para os nascentes Estados nacionais. (HABERMAS, 1995, p. 90).

Ou seja, o Estado-nação moderno se constituiu a partir do século XVIII, vindo a se


afirmar a nível mundial, no século XIX. Apesar de o conceito de Estado-nação moderno ter
originado da fusão de outros dois coceitos, Estado moderno e nação moderna, se refere a
processos históricos convergentes. O seu sucesso, como Habermas explica, é devido “haver se
tornado o mais eficiente instrumento para uma modernização social acelerada” (1995, p.88). O
Estado-nação moderno ao mesmo tempo em que foi legitimado, promoveu a integração social.

A nação é formada por constituir um modo de vida específico do Estado, bem como se
caracteriza pelas características em comum que possui, como origem, cultura, língua, história.
O sentimento de sentir-se parte da nação, nacionalismo, é importante para a unificação do
Estado-nação e como lembra Bauman “o nacionalismo queria educar e converter, mas se a
persuasão e doutrinação não funcionassem ou se seus resultados demorassem, recorria à
coação” (2003, p.84).

Zygmunt Bauman também afirma, a “construção da nação significava a busca do


princípio ‘um Estado, uma Nação’, e, portanto, em última análise, a negação da diversificação
étnica entre os súditos” (2003, p.83). Nesse sentido é que a questão racial favorece a busca pela
identidade nacional. E é o problema da raça que trará novos significados às estratégias do
Estado quanto à população.

As narrativas de identidade nacional são colocadas nos termos do cientificismo no final


do século XIX, momento em que se abria espaço para pesquisas sobre a cultura nacional e suas 170
particularidades. A ciência da época, apoiada na raça, discute o conceito de povo, que pode ser
relacionado à raça nacional, atendendo ao princípio “Um Estado, uma nação” como aponta
9
Silva (2015, p.07-08).

A América quando comparada à Europa pelos cientistas, era retratada como um


continente que exibia formas de vida pouco desenvolvidas que na maioria das vezes tal
inferioridade estava associada à questão racial. No Brasil, nas primeiras décadas do século XX,
a composição étnica da população era encarada como um “fator decisivo, que subordinava todos
os demais aspectos da vida nacional” (DE LUCA, 1999, p.132). Nesse sentido se pode afirmar
que a raça era parte integrante do imaginário intelectual brasileiro.

Entre os cientistas que visitaram o Brasil na passagem do século XIX para o século XX,
está o Conde Arthur de Gobineau, que visitou o país como diplomata francês entre os anos de
1869 e 1870. Gobineau enxergava o país como “um posto nada promissor para sua carreira,
bem como uma prova viva de suas teorias” (SKIDMORE, 2012, p.70). Afirmou em seus
escritos, que detestou o país, julgava como um lugar culturalmente atrasado e com uma
população mulata considerava ser o Brasil semelhante a fim de mundo na América do Sul
(SKIDMORE, 2012), a única coisa boa que restava era a natureza.

O Conde de Gobineau não vislumbrava futuro para a espécie humana, a miscigenação,


segundo o cientista, deteriorava a população, pois pela mistura entre a raça superior e a raça
inferior, as características superiores se perderiam. Especificamente para o caso brasileiro,
Gobineau apontava para a emigração europeia de alemães e italianos, inaugurando no país a
política eugenista de imigração.

A eugenia, ciência do melhoramento racial e estratégica para a constituição das nações


no século XIX, foi criada por Francis Galton em 1883 e está relacionada ao desenvolvimento
das nações no mesmo período, momento em que as “concepções de Estado-Nação estavam
vinculadas ao progresso e à evolução humana” (CARVALHO, 2015, p.70). Carvalho (2015,
p.67) lembra que “Galton enxergava o ‘outro’ através de sua lente cultural e sua bagagem
interpretativa do que seria o ‘ideal humano’ para o progresso da sociedade”.

A raça se constituía aos olhos dos intelectuais, como fator preponderante para a
constituição da nação brasileira. “A ideia de pureza, ou pelo menos de um tipo racial definido 171
que se pudesse identificar e atribuir um ‘stock’ genético homogêneo eram fundamentais nesse
processo de invenção da nação” (SILVA, 2015, p.10).
0
Os debates da época eram norteados por discussões eugênicas, sanitaristas e pela
condenação da civilização brasileira provocada pela miscigenação. Aliás, a relação entre a
eugenia e o sanitarismo, ou higienia, é característica relevante dos discursos brasileiros. Tais
movimentos aqui no Brasil andaram lado a lado, por muitas vezes confundindo-se um com o
outro apesar de seus objetivos serem diferentes como aponta De Luca (1999, p. 223),

a primeira (higienia) insistia na erradicação das pestilências, das doenças infecto-


contagiosas e nos benefícios da boa alimentação, da abstinência de toxinas, da vida
ao ar livre, da adoção de hábitos higiênicos; já a segunda (eugenia) pretendia, com
base nos conhecimentos acumulados a respeito da reprodução humana, aperfeiçoar
física e moralmente a espécie.

Como Renato Kehl afirmou, no Brasil “sanear é eugenizar”, o que aproxima a eugenia
brasileira do movimento sanitarista, que baseada no neolamarckismo se fazia presente nos
debates de médicos no início do século XX. O neolamarckismo tinha como base a ideia de que
os caracteres adquiridos eram hereditários, ou seja, os males e vícios dos pais passavam aos
filhos. Por isso, para os cientistas brasileiros, o neolamarckismo traria resultados mais rápidos
para os problemas da população brasileira. Os caminhos para a solução do problema nacional
passavam pelo branqueamento da população, seja pelo cruzamento, controle da imigração ou
ainda pela regulação de casamentos. Para sanear o Estado era necessário eliminar os resquícios
maléficos da miscigenação. “A eugenia tornara-se uma metáfora para a própria saúde”
(STEPAN, 2004, p.350).

Os eugenistas organizaram na década de 1920 campanhas antialcoólicas, encarado como


problema social e moral da população negra e pobre. O alcoolismo era conhecido como o
inimigo da raça pelos médicos, que afirmavam que os filhos de alcoólatras nasciam com
defeitos físicos e mentais. Além de ações como a campanha antialcoólica, os eugenistas, como
afirma Stepan (2004, p.351),

proferiram algumas das primeiras palestras e cursos públicos sobre hereditariedade


humana e ciência genética, (...) foram também responsáveis pela organização de
concursos populares para ‘famílias eugênicas’, dando prêmios em dinheiro às
crianças que fossem julgadas hereditariamente adequadas e eugenicamente ‘belas’,
representantes, portanto, do melhor da ‘raça’ brasileira. 171
Na busca pelo ideal de nação, amparada pelo conhecimento eugênico, a educação se
1
torna estratégica para que o objetivo seja alcançado, pois atendia as expectativas dos que
desejavam uma educação voltada ao corpo sadio, à orientação matrimonial e ao ensino de
hábitos de higiene. É o que se discute no próximo item.

2. Nação e educação: dois conceitos que se atravessam

A constituição da vida moderna, regida pelo ritmo das indústrias e da vida urbana
mudava o cenário brasileiro nas primeiras décadas do século XX. “Apesar das construções e
inovações advindas do mundo moderno das máquinas e dos grandes prédios, a pobreza e a
sujeira eram consideradas entraves à inserção do país na modernidade” (DANAILOF, 2005,
p.29). Com isso médicos higienistas passam a investir em uma nova orientação para um novo
modo de vida.
Essa nova orientação, passava pela educação, que “tendo como alvo a educação
higiênica da população, a obra sanitária abarcava em seu conjunto de iniciativas a imunização
contra doenças transmissíveis e a orientação sobre puericultura, entre outras”. (DANAILOF,
2005, p.30). Então, higiene, saúde e educação eram as premissas que definiriam a civilização
brasileira. À escola caberia moldar, disciplinar e gerir as crianças para que se tornassem
indivíduos participantes da nação. Como Danailof (2005, p.33) afirma, “pautado na eugenia e
no higienismo, o comprometimento escolar com a formação do aluno concentra-se na
hierarquização, ou seja, na idealização de modelos compatíveis com a construção de uma nação
forte”.

O antropólogo Edgar Roquette-Pinto já afirmava no seu livro Ensaios de Antropologia


Brasiliana, em 1928, que a mestiçagem “só é um mal quando realizada ao deus-dará dos
infortúnios, sem eira nem beira, sem higiene e sem eugenia, sem educação e sem família.”
(ROQUETTE PINTO, 1982, p.23 – grifos do autor). O que deixa claro a relação que os
intelectuais da época faziam entre educação, eugenia e higienia, elementos importantes para a
construção de uma nação branca.

Como Ghiraldelli afirma, após a Primeira Guerra Mundial se assiste no Brasil um


171
movimento de otimismo pedagógico, que apostava não apenas na abertura de escolas mas 2
também era preciso “alterar a pedagogia, a arquitetura escolar, a relação de ensino-
aprendizagem, a forma de administrar as escolas, as formas de avaliação e a psicopedagogia”
(GHIRALDELLI JR., 2009, p.33).

Paralelo ao movimento de otimismo pedagógico está a publicação de periódicos sobre


educação em todo o Brasil. Para este texto foi selecionado o periódico Revista de Ensino,
publicado entre os anos de 1927 e 1931. Importante deixar claro que tal periódico se encontra
disponível para pesquisa no site da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Como palavras-
chave para a pesquisa, utilizei os termos “nação”, “pátria” e “higienia”, embora em alguns
momentos se utilizem de citações que estas palavras não fazem parte. Da mesma forma, deixo
claro, que neste texto busquei como fonte, as publicações do ano de 1927 e 1929.

O periódico Revista de Ensino, que circulou entre os anos de 1927 e 1931, com tiragem
bimestral, se configura em uma fonte histórica de pesquisa, que produzido e divulgado pela
imprensa alagoana era destinado à formação continuada de professores alagoanos, ao divulgar
preceitos educacionais para os professores. O que torna esse periódico sugestivo para pesquisa
e análise, além do próprio título, são as discussões a respeito da relação entre educação e nação,
presentes em várias edições do periódico. Como exemplo, a primeira página do periódico
referente aos meses de novembro-dezembro de 1927:

171
3
(REVISTA DE ENSINO, novembro-dezembro de 1927, p.01).

No texto “Educação Cívica”, publicado em 1927, na edição de Março-Abril, o autor


Craveiro Costa, traça um caminho desde a ideia de família até a nação brasileira,

do lar deriva a idéa de Patria. Em cada familia, meninos, existe a miniatura de uma
Nação. (...) E’ o trabalho collectivo, a cooperação material de todos os habitantes,
fazendo a riqueza e a felicidade desse territorio. Eis o Municipio. São milhares de
pessoas formando milhares de famílias. (...) Há, acima do Municipio um território
maior, contendo em seus limtes muitos municípios, com a mesma organisação de que
vos fallei: esse território chama-se Estado. (...) A reunião dos Estado forma a Nação
(...) politicamente todos são iguaes; todos gozam dos mesmos direitos na communhão
brasileira. (REVISTA DE ENSINO, 1927, p.46-47).

O que Craveiro Costa destaca nesse texto é a importância dos indivíduos para a
construção da nação brasileira. Caminho que se constrói desde o indivíduo até a Nação e que
passa essencialmente pela educação da população. “O magno problema que preocupa em
nossos dias o norteamento das nossas instituições sociaes é, indubitavelmente, a missão da
escola na formação das gerações do futuro” (REVISTA DE ENSINO, maio-junho de 1927,
p.08). “O que, portanto, se faz mister no interesse da educação nacional é obsedar o alumno
desde logo com a feição symphatica dos vultos da nossa historia, que mais proximamente
influiram na organisação da patria.” (REVISTA DE ENSINO, maio-junho de 1927, p.52).

Fazer progredir o país por meio da educação de seu povo se tornava um objetivo a ser
contemplado pelos intelectuais, cientistas e estadistas brasileiros no período,

A educação do povo é o nosso primeiro problema nacional; primeiro, porque o mais


urgente; 1º, porque solve todos os outros; 1º, porque resolvido, collocará o Brasil a
par das nações mais cultas, dando-lhe proventos e honrarias e lhe afiançando a
prosperidade e a segurança, e se assim faz-se o primeiro, verdadeiramente, se torna
o unico. (REVISTA DE ENSINO, julho-agosto de 1927, p.65)

Entre as discussões apresentadas na revista para a construção da Nação está a questão


racial como fator preponderante para a constituição da unidade nacional. Em mais de um
momento na Revista de Ensino é discutida a composição étnica da população brasileira, pautada
na ideia das três raças, conforme citação que segue, ”tres foram os fatores ethnicos do nosso
povo – o portuguez, boa raça européa, o indio encontrado nas selvas, e o negro, introdusido na 171
colonisação como elemento de trabalho” (REVISTA DE ENSINO, maio-junho de 1927, p.26). 4
Além dos textos sobre a composição étnica da população, a eugenia é atrelada à
educação, quando se comemora o “dia da raça”,

Em 12 de outubro descobriu Colombo a América, e foi essa data que se escolheu para
a festa da eugenia, centralizando-se na criança a alegria da raça, a victoria da
capacidade corporal ao lado das aptidões da intelligencia para os trabalhos
rhythmicos da gymnastica. (REVISTA DE ENSINO, setembro-outubro de 1929, p.81).

A eugenia vinculada à higienia no Brasil, fica explícita nas páginas da Revista de Ensino,
como aquelas que promoveriam a unidade nacional da população.

A hygiene como problema social, até há pouco visava unicamente um objectivo que
se restringia á defesa dos seres ameaçados, pela agressividade do meio ambiente, na
sua integridade physiologica, isso com uma preoccupação, mais ou menos limitada,
dos recursos da prophylaxia com as possibilidades da nossa resistencia orgânica.

Hoje, porém, uma outra importancia reveste o magno problema, abrangendo não
sómente o individuo em contato com o meio, mais ainda o conjuncto da sua
individualisação como formadora da raça, do padrão da nacionalidade, dum factor
desdobravel em valores. (REVISTA DE ENSINO, novembro-dezembro de 1927, p.57).

O que fica evidente nesta citação é a preocupação com a constituição da população


nacional, onde não apenas o meio interferiria, mas as relações entre os indivíduos. Um
casamento orientado pela educação e eugenizado, seria responsável pela formação de
indivíduos racialmente “padronizados”, responsáveis pelo futuro da nação.

O “progresso” brasileiro passava necessariamente pela educação e pela modernização,


que seria proporcionada pela articulação interna e o planejamento do futuro do país como nação.
O papel a ser cumprido pela educação nessa conjuntura se torna relevante para os intelectuais
e estadistas da época, que pautados pela ciência eugênica e pelos preceitos higiênicos torna a
educação um campo de intenso debate sobre a constituição da unidade nacional, seja pelo
ensino de práticas higiênicas e alimentares ou pela orientação matrimonial.

CONCLUSÃO
171
5
O que se pretendeu problematizar neste texto foi a relevância assumida pela educação
nas primeiras décadas do século XX, no Brasil, para a constituição do ideal de nação tão
sonhado na época. A busca do ideal de nação estava pautada no discurso eugênico e sanitarista
do período, bem como a educação atrelada a tais discursos, foi discutida e amplamente
divulgada pelos meios de comunicação do período, como uma das estratégias do governo para
a organização e unificação nacional.

A Revista de Ensino, apesar de ser uma publicação do Estado de Alagoas nos


permite analisar e contextualizar os debates nacionais á cerca da educação no século XX. Os
textos do periódico, dedicados à formação de professores, deixam claras as proposições da
política educacional da década de 1920, que ao referirem-se ao desejo de progresso do país,
fazem claras referências às discussões entre intelectuais, cientistas e estadistas. Ao propiciar
essa análise, a Revista de Ensino, se constitui em uma fonte histórica de grande importância.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORMAÇÃO DOS HISTORIADORES-DOCENTES
NA FRONTEIRA: NUANCES COMPARADA ENTRE O BRASIL E O URUGUAI

Simone Gomes de Faria/ UFPEL

Júlia Silveira Matos/ FURG


Adriana Senna Kivanski/FURG921

RESUMO

O presente ensaio é um extrato da dissertação denominada “A formação de professores de


história na pós-redemocratização de 1980-2013: um estudo de educação comparada Brasil e
Uruguai” que teve como lócus específico de pesquisa a FURG (Brasil) e o IPA (Uruguai) com
os formadores de professores de História. A problemática pretendia compreender como decorre
a relação entre a docência e a pesquisa. O aporte metodológico utilizado foi ancorado pela
História Oral e a Educação Comparada tendo e como fundamentação teórica os pressupostos
da Educação Histórica. Assim, averiguamos quais as políticas públicas adotadas no Curso de
História, após a redemocratização, no Brasil e no Uruguai, no tocante a pesquisa e o ensino. 171
Partindo deste pressuposto observamos que o Brasil apresenta um número maior de
instrumentos normativos em que o assunto é posto com mais ênfase. O Uruguai tem se
projetado, mas, faltam políticas efetivas, para aliar a docência com a pesquisa até porque é um
7
ensino terciário que não se focaliza tecnicamente para o âmbito investigativo. Assim sendo,
através deste conferimos que embora as políticas públicas educativas demonstrem a
importância desta relação na prática é muito diferente da teoria, bem como, compreendemos a
diferença entre o Ensino Universitário e Terciário. Atualmente, os países estão alavancando
neste sentido, embora aja muita coisa para ser efetivada, principalmente, no caso uruguaio, com
assuntos que relacionem o conteúdo com a vida prática, a importância de informar e divulgar
pesquisas dentro da área para medrarmos os avanços e recuos, redefinição do desenho curricular
das licenciaturas, fragmentação curricular e aperfeiçoamento docente. Por fim, concluímos que
as políticas educativas devem ser fortalecidas e se tornarem mais efetivas na formação dos
profissionais do Ensino de História, pois, de que adianta haver tantas normatizações, no aspecto
brasileiro, se na execução acabam tomando o mesmo rumo do Ensino Terciário.
Palavras-chave: Historiadores-docentes; Educação Comparada; Docência-Pesquisa;

INTRODUÇÃO

** Titulação, Instituição de origem, agencia financiadora, email.


Compreender as políticas educativas que regimentam um sistema educativo é estar
aberto ao constante debate. Desta forma, Ball (1994, p.15) nos informa que aferir as políticas
educativas é caminhar em um terreno incerto que deveras emergirão muitas respostas e ao
mesmo tempo muitos questionamentos. Embora se saiba que os debates com relação às
políticas, na esfera universitária e terciária, tem se intensificado no mundo todo. Assim, de um
lado é perceptível que as políticas impostas nos currículos de licenciatura tanto de História
como nos demais estão extremamente contextualizadas e suas implicações dependem da
conjuntura em que foram inseridas, bem como, as políticas sofrem influências do mundo
globalizado, que por sua vez, causam efeitos profundos nos mais longínquos recantos.

Desde a Segunda Guerra Mundial as mudanças no cenário político internacional


ocasionaram profundas transformações diretamente em todo mundo, principalmente, nos países
industrializados. De certa forma, corroboramos com Kenway (1990) que nos desvela que é
muito difícil definir as políticas educativas de um país, contudo, é mais prudente pensarmos
nos processos de políticas educativas instaurados nos países, pois, muito destes, são acordos
econômicos, sociais e de relações de poder, ou seja, as políticas abarcam posições e pressões
de variadas agências e organismos e sofrem lutas de interesses que muitas vezes podem ser 171
atendidos ou não pelos legisladores destas políticas educativas.
8

Contextualizando as políticas públicas educacionais do Brasil e Uruguai

No caso brasileiro sabe-se que as políticas públicas das universidades foram constituídas
primeiramente para a elite. Assim, quando nos aportamos das universidades de elites é porque
estas foram instauradas para atender uma elite governamental, bem como, tal fato foi decorrente
do início da industrialização e a criação do primeiro Ministério da Educação e Saúde como uma
questão substantiva para as modificações da educação e a organização da universidade. Nesta
década, a de 1930, ocorre o Manifesto dos Pioneiros da Educação que embora surgisse com um
lema inovador e antagônico ao empirismo dominante, na prática, as políticas permaneceram
verticais, autoritárias, patrimonialistas, conservadoras e domesticadoras para todas as esferas
educativas. Assim sendo, embora até a década de 40 algumas políticas educativas tenham sido
expressivas se mantiveram para a elite intelectualizada permanecendo uma estrutura
conservadora e monárquica dentro do seio universitário. Mas, a partir da década de 40 é que se
inicia para a universidade a fase da autonomia com a criação de novos atores para o cenário
nacional. Em 1960 com o momento desenvolvimentista ocorre a expansão de ofertas nas
universidades, bem como, se fortalece o ensino privado que acaba limitando o crescimento do
ensino público do Brasil cedendo espaço para os organismos internacionais que passam a
intervir nos assuntos do Estado, principalmente, no período ditatorial. Durante esta década a
política educacional adotada foi o binômio: de segurança e desenvolvimento. As políticas
públicas educativas da década de 70 estavam ligadas na Teoria do Capital Humano que se
baseava nos aspectos econômicos, bem como, estas são regimentadas pelas recomendações das
agências internacionais acarretando uma desprofissionalização docente e o retrocesso no ensino
público, pois, houvera um aumento dos incentivos de empresários para o sistema privado. Em
suma, falar ao redor as políticas públicas educacionais não é algo fácil porque ao longo das
décadas esta vem incorporando diversos processos, ao redor do ensino universitário como:
autonomia, massificação, privatização, entre outros, que a fizeram passar por várias mudanças
e configurações jurídicas e organizacionais.

No Uruguai, as políticas educativas começam a ser delineadas a partir da década de 60


no tocante a formação de professores da secundária porque somente em 1951 é que o primeiro 171
Instituto de Profesores Artigas/IPA, local de formação de professores da secundária, ou seja,
9
dos professores de História dos liceus, dá segmento as suas atividades. Aferimos ao longo da
narrativa de vários estudiosos do sistema educativo uruguaio postularem que no Uruguai não
há uma política bem definida, pois, o sistema apenas traça linhas e estratégias políticas
propriamente dita, posto que, há uma lacuna muito evidente na coordenação dos subsistemas
de ensino que acaba não dando o suporte necessário para as ações educativas. Partindo do foi
mencionado à formação dos professores de secundária esteve atrelada aos princípios de José
Pedro Varela, embora, este tenha se dedicado com mais veemência para a primária seus
postulados teóricos perpassaram e perpassam para toda a educação nacional. As primeiras
instituições estavam baseadas no racionalismo, ou seja, somente por meio da razão seria
possível atingir ou conhecer a verdade muito embora obtivessem e obtém o princípio da
laicidade postulado intrinsecamente em uma sociedade conservadora, hegemônica e tradicional
de ensino em uma concepção humanística e de cultura geral. Em síntese o conhecimento
denotava uma verdade única, absoluta, enciclopédica, da atenção e do silêncio. Em 1935, com
a separação da Secundária da UDELAR começa a ser debatido a criação de um local para
formar professores da secundária em um sistema de ensino francês. O projeto
desenvolvimentista que está intimamente ligado com a industrialização capitalista esteve
integrado ao movimento escolanovista onde o pragmatismo e o humanismo estava em alta. Na
década de 50 é criado o IPA para formar os professores de secundaria perdurando ao longo das
décadas um ensino tradicional, embora tenha alterado o governo o sistema educativo acaba se
mantendo e baseado em três pilares com uma política curricular muito semelhante a da
universidade: conteudista embora não houvesse preocupações com as investigações na área. Na
década de 60 os organismos internacionais apresentam propostas compensatórias para
solucionarem diversos problemas; na de 70 observamos uma política utilitarista contrária aos
aspectos culturais e denominada de tecnicista e assistencialista. Por fim, denotamos que a
política até a década seguinte permanece tradicionalista, de escola francesa e etnocêntrica.

Visto sinteticamente algumas nuances que compõem as políticas educacionais dos


países medraremos como vem se desenrolando as políticas públicas educativas nos currículos
de licenciaturas de História do Brasil e do Uruguai tendo como foco, o nosso objeto, ou seja,
desvendar como ocorreu e ocorre a relação da pesquisa como a prática de ensino após a
redemocratização dos países. 172
0
Perspectivas das políticas públicas adotadas no Curso de História no tocante a
indissociabilidade da pesquisa com a docência.

Nesse limiar, a nossa indagação pretendia averiguar se existem perspectivas diferentes


para as políticas públicas adotadas no Curso de História, após a redemocratização, no Brasil e
no Uruguai, no tocante a indissociabilidade da pesquisa com o ensino. Partindo deste
pressuposto observamos que sim, pois, o Brasil apresenta um número maior de instrumentos
normativos em que o assunto é posto com mais ênfase. O Uruguai tem se projetado, mas,
faltam políticas efetivas, para aliar a docência com a pesquisa até porque é um ensino terciário
que não se focaliza tecnicamente para o âmbito investigativo. Neste momento, o que nós
precisávamos conferir era se as políticas públicas educativas demonstravam a importância
desta relação, bem como, compreendermos a diferença entre o Ensino Universitário e
Terciário.
O primeiro ponto de relevância a ser demonstrado é a diferença entre o Ensino
Terciário e Universitário. Sabemos que no Uruguai a principal, embora, não seja a única forma
para se tornar um professor de História da secundária acontece no Instituto de Formação de
Profesores “Artigas” e atualmente, após a Reforma de 1996, a inclusão dos seis CERPs (os da
Região Norte, Região do Litoral, Região Sudoeste, Região Oeste, Cento e Região do Leste) que
oferecem diversas ofertas de formação terciária, incluso, na Região do Litoral, duas pós-
graduações. Estes últimos apresentam um desenho curricular específico e atualmente estão
enquadrados no Plan de 2008 que visa a direcionar as premissas para os professores formadores
e os formandos de Licenciatura em História no IPA. Assim sendo, não é da competência deste
estudo analisar os CERPs, e sim, o primeiro Instituto de Formação de Professores de Secundaria
do Uruguai/ IPA, posto que, é desta instituição que surgem os primeiros professores de História
com diplomas expedidos pela ANEP e juridicamente de alçada terciária. No caso brasileiro,
devido a sua extensão territorial e seus instrumentos legais, existe um número maior de lócus
de formação de professores como faculdades, institutos universitários (assunto de controvérsia
pelos profissionais da educação e exposto na última LDB) e as universidades, contudo, nos
preocupamos somente em desvelar as políticas de formação de professores da universidade da 172
FURG. Além disso, no Brasil cada instituição cria o seu Projeto Político Pedagógico amparado
de um sistema aritmético de créditos se adequando as leis maiores que regimentam o país, no 1
Uruguai, existe um sistema único e integrado para as licenciaturas.

Afinal, o que difere o sistema universitário do terciário na formação de professores?


Inicialmente veremos quais as características inerentes em cada uma delas. As instituições
universitárias brasileiras podem expedir seus títulos e a LDB deixa bem claro este aspecto no
art.48, entretanto, nas instituições terciárias, do Uruguai, a expedição, até o momento, é de
competência da ANEP, bem como, em alguns países que se aportam deste sistema os
consideram de pré-graduação significando uma continuação da secundária; na condição
universitária é de sua alçada expedir os títulos de graduação. O terciário é conhecido como um
curso diminuto porque requer menos tempo para o seu término direcionado para conteúdos
teóricos para área escolhida interligando conteúdos teóricos, práticos e de labor profissional,
em suma, técnico instrumental. Os desenhos curriculares da universidade dão privilegio para o
domínio de uma área do conhecimento se dirigindo para as necessidades próprias da atividade
a que se direcionam com vínculos mais estreitos com os setores de produção; o terciário se
relaciona intimamente com as necessidades do mercado do trabalho. Os programas do terciário
possuem conteúdos muito semelhantes aos universitários, contudo, mais específicos e com uma
orientação mais aplicada ou teórico-prático, neste caso, para a formação de professores. Há na
universidade um sistema de crédito para que o estudante conclua a sua formação havendo a
necessidade de aprovação em algumas disciplinas para poder avançar, no terciário, do Uruguai,
não há sistema de acreditação. No Curso de História, como em outras licenciaturas, para realizar
o exame de Didática I deve ser aprovado na disciplina de Teoria e Metodologia de História e
Introdução a Didática, bem como, no Brasil, em alguns casos, para passar para disciplinas mais
avançadas requer sua aprovação nas anteriores.

O terciário historicamente esteve ligado com carreiras de área humanística, artística,


técnicas, sociais e profissionais, assim, as universidades englobam um número maior de áreas
científicas como as ligadas com a saúde, exatas, etc. Resumidamente as universidades
apresentam mais horas de cátedra, um distinto nível acadêmico e de validade na titulação o que
visa a lhe conferir um ensino que desde a sua trajetória foi considerado com mais prestígio
conferindo a ela a possibilidade de ascender a postos mais elevados com uma formação em um
ambiente onde há exigência acadêmica da indissociabilidade com a pesquisa na formação 172
profissional para promover um maior desempenho.
2
Baseado no parágrafo acima já podemos compreender que as políticas públicas
adotadas no Curso de História do Brasil e do Uruguai são diferentes no tocante a relação da
pesquisa com o ensino, pois, no Brasil teoricamente é bem traçado a importância do professor
investigativo, como nos é aludido na Constituição de 1988 que expõe a indissociabilidade do
ensino, pesquisa e extensão em seu art.207 já a Constituição do Uruguai de 1967 não conta com
nenhuma menção neste aspecto, mas, é evidente que não aportaria porque conta com mais de
50 anos e precisa ser revista para acompanhar a evolução da sociedade. A LDB/1996 aporta em
seu art.43 que o Ensino Superior tem como finalidade “III- incentivar o trabalho de pesquisa e
investigação científica, visando o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e
difusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que
vive;” (LDB, 1996, art.43). No Uruguai até a criação da LGE/2008 e do Plan 2008 as políticas
educativas para a formação de professores estiverem imbuídas na prática profissional dos
professores, contudo, deixa claro que a investigação deve se desenvolver aliada com a formação
de sua área e a unidade prática e didática do docente, assim sendo, “está previsto el desarrollo
de actividades de investigación y extensión, pilares fundamentales para que la enseñanza
terciaria crezca y se alimente de nuevos conocimientos”(ANEP, 2007, p.28).

Embora com sistemas dicotômicos, em nossa análise, observarmos que as


Licenciaturas do Curso de História por muito tempo se assemelharam muito mais com o sistema
terciário do que propriamente com o universitário, pois, até o final do século passado a pesquisa
não estava aliada com as práticas de ensino e as existentes não se preocupavam com o Ensino
de História, e sim, com abordagens de natureza e epistemologia específicas da História o que
denota que embora aja uma bifurcação na instrumentalização jurídica dessas instituições estas
acabam chegando à mesma via no final do trajeto. Deixamos claro que a mesma via que nos
referimos é na relação do ensino com a pesquisa, pois, os demais aspectos não compõem objeto
dessa pesquisa.

No período da recuperação da institucionalidade os desenhos curriculares, de ambas


as localidades, eram baseados no humanismo tradicional e obsoleto que preconizava os
interesses econômicos. O Curso de História, assim como as outras licenciaturas, apresentava
um caráter compensatório e assistencialista baseado na Teoria do Capital Humano que
172
preconizava a importância de formar profissionais para ministrar classes sem se aliar do 3
processo investigativo. Os profissionais da área, após a década de 90, acabaram sendo
direcionados para atender as necessidades do mundo atual, ou seja, a lógica do mercado
capitalista e neoliberal. As investigações tinham como escopo central atender os requisitos
fomentados pelos organismos multilaterais e internacionais sem se preocupar em realizar
pesquisas no âmbito educativo, posto que, o principal era profissionalização dos docentes para
a demanda global numa visão mais democrática e participativa para desenvolver o Estado-
Nação.

É a partir da década de 80 que o Ensino de História intensifica discursos com relação


à qualidade partindo do principio que o professor deveria congregar a docência com a
investigação para refletir o contexto de sua própria sala de aula, no entanto, outros especialistas
da área da ANPUH justificavam que a pesquisa deveria integrar a prática dos Historiadores. Na
mesma época, no Uruguai, ocorre uma mudança radical do ensino com o Plan 1996, no entanto,
este serviu para modificar a estrutura imposta pelo governo militar porque a necessidade era
modificar o perfil do professor, não só o de História, como das demais áreas.

Como já foi caracterizado o ensino terciário é muito semelhante ao universitário


quando se fala dos conteúdos, mas, o primeiro é mais teórico-prático não sendo de sua
competência o estímulo a pesquisa. A universidade apresenta um caráter de indissociabilidade
da pesquisa, extensão e ensino, contudo, na área das licenciaturas deixou, e ainda deixa, muito
a desejar o que nos leva concluir que as políticas curriculares de História nos dois países se
basearam num ordenamento cronológico e temporal. As disciplinas de caráter historiográfico,
Brasil, sempre estiveram à frente das pedagógicas e no Uruguai, IPA, se percebe que não há
uma desvalorização tão evidenciada das cadeiras de âmbito pedagógico, bom, talvez isso
decorra do fato que o ensino terciário é projetado para que o formando rapidamente possa
adentrar no lócus institucional necessitando de uma ampla didática e prática. Ressaltamos que
embora os conteúdos pedagógicos apresentem laços mais estreitos com os historiográficos à
segregação é maior à medida que os bacharelados de História cursam na Universidade da
República do Uruguai com a expedição de sua titulação pela própria UDELAR. 922

Na década de 90, as pesquisas para o Ensino de História estavam mais avançadas,


172
lógico, que isto é efeito de seu sistema universitário, assim, enfoques instrucionais didáticos, a 4
cultura escolar, o currículo, as atividades dos professores e dos estudantes, entre outros, foram
medrados dentro de programas de mestrado e doutorado em educação, contudo, como o
Uruguai não estivera imbuído nesta tarefa e, o maior número de pesquisas não era direcionado
para o Ensino de História, e sim, para o processo da história uruguaia e a biografia de ilustres
nomes nacionais, que na maior parte delas, se realizavam dentro da UDELAR com algumas
sutis manifestações de estudo no IPA por parte de ensejos dos formadores. O ano de 1996 se
destaca por colocar em debates investigações ao redor da História Recente como a ditadura
militar e os perseguidos político-partidários uruguaios que serão mais bem delineados dentro
dos programas curriculares de História em 2005, bem como, com a implantação do Plan 2008
fomenta pesquisas para o Ensino de História. No Brasil, a partir do início do século XXI, as
pesquisas dentro do campo da Educação Histórica dão um salto importante no tocante a

922
Esta pesquisa tem como eixo central o período de 1980-2013, no entanto, sabe-se que em 2014 a UDELAR
passa a ofertar cursos de licenciatura em História, mas, não compreendeu o período demarcado de nossa análise.
orientação, interpretação, experiência e motivação (a última é muito recente no Brasil) da
epistemologia da História. Observação: No Brasil, nesta década, a política educativa incentiva
para que ocorra aumento nas produções científicas e que estas sejam divulgadas, no caso
uruguaio, como não é inerente a sua estrutura pedagógica a pesquisa na formação de professor
se observa pequenas produções com assuntos de outros aportes. O método da História Oral é
difundido para tentar compreender o processo de silenciamento da sociedade com relação à
ditadura militar, contudo, o Brasil como está à frente do Uruguai em todos os aspectos ligados
a investigação já se amparava do método desde a década de 80, especificamente, em 83.

Um ponto cheque a ser exposto é que embora a aja licenciaturas dentro do sistema
universitário elas acabam sendo vistas, em nível social, com desprestígio e pequenos
financiamentos para a sua concretude. Bom, é aceitável para o ensino terciário porque sua
estrutura não foi delineada para esta especificidade no Uruguai, mas, no Brasil deveria se
suceder do modo diferente. Tal proposição nos leva a concluir que por muito tempo, e até
atualidade, em algumas intuições públicas universitárias, para as diversas licenciaturas tivemos
um sistema terciário dentro da própria universidade, pois, houve redução de sua carga horária,
olhar com menos importância se associarmos aos outros cursos, direcionada para uma 172
habilitação ou oficio e, embora, exposto a relação da pesquisa com a docência para os cursos
5
da educação, essa premissa apresentou políticas educacionais com muito discurso e pouca
prática substantiva ou efetiva.

O processo investigativo por estes profissionais foi apático, sem ação de fato, apenas
com poucos lutadores por melhora na qualidade do ensino de História. Mas, essa apatia se
estabelece, nos países, de modo diferente porque no Brasil embora houvesse princípios da
indissociabilidade da docência com a pesquisa os cursos pagaram por não instrumentalizarem
os docentes o que acabou gerando uma falta teórico-discursivo para lutar por políticas públicas
resultando que estas foram geradas por técnicos que não conheciam o contexto escolar ou de
outras áreas de saber. No caso uruguaio, os professores também acabaram no otimismo
pedagógico, embora, sempre soubessem que a formação de professores era direcionada para o
vínculo com o mundo do trabalho e a investigação não era, embora devesse ser importante, uma
característica pertinente do ensino terciário.
Teoricamente há um incentivo maior para realizações de pesquisas, no Brasil, para
área de História, o que quer dizer que para o Ensino de História ainda se precisa de muitos
recursos para melhorar significativamente, mas, isso é devido ao fato de apresentar mais
recursos próprios por ser um sistema universitário que preconiza a aliança de pesquisa com o
ensino. No terciário, não há um fundo específico para divulgar e promover a pesquisa até porque
não é seu escopo central, contudo, desde a criação do Plan 2008 vem ocorrendo algumas
transformações e a investigação entra no cenário porque a LGE/2008 cria o Instituto Autônomo
de Educação considerando a investigação como uma “lectura cuestionante de la realidad
educativa en la que corresponderá actuar”(PLAN, 2008, p.6). Até agora não saiu do papel,
mas, o plano vigente vem tentando modificar a mentalidade do sistema educativo uruguaio de
formação de professores para que estejam mais adequados quando estiverem em funcionamento
explicitando questões como: a departamentalização, programas de extensão, horas a serem
cumpridos pelos formadores para atividades indiretas com os estudantes, o uso de tecnologias
e o estímulo para a pesquisa. Assim como a LGE/2008 a LDB/1996 também traz inovações
importantes para o processo investigativo nas universidades e no sistema terciário.

O Brasil conta com Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de História 172
CNE/CES n°492/2001, que por sua vez, contempla que para o bacharelado a formação do
6
historiador deve estar integrada com a investigação e para a Licenciatura de História esta
proposta é relegada por se cercearem dessa assertiva o que nos leva a concluir que não
partilharam da ideia que antes dele ser um historiador é um professor. Além desse instrumento
normativo o Brasil ainda estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de
Professores de Educação Básica CNE/CP de 09/2001 que segrega a licenciatura do bacharelado.
A licenciatura novamente não foi congregada a pesquisa com o ensino. O Uruguai não apresenta
uma diretriz específica para o Curso de História, porém, ressaltamos novamente que embora o
Brasil apresente uma política docente de História esta se encontra num patamar muito mais para
o sistema terciário do que propriamente universitário porque não abarca para a formação de
professores a relação intrínseca da pesquisa com o ensino, ou seja, não deixa de ser um sistema
terciário camuflado de universitário para calar a luta de milhares de professores.

O formador de professores de História, no Uruguai, que atua no Instituto de Profesores


“Artigas” /IPA foram vistos como uma elite cultural até a instauração da ditadura em 1973 e
após sofre uma queda porque os militares exilaram, castigaram, torturam muitos professores
por considerá-los uma elite perigosa para seus anseios. Desde então não conseguiram atingir o
prestígio de décadas atrás. No Brasil embora o professor universitário, não somente o de
História, como de qualquer área, é visto como um intelectual, todavia, sua remuneração não é
condizente com todo o seu aperfeiçoamento docente, em especial, para os professores
universitários das federais que são cobradas inúmeras competências e habilidades para acender
ao posto, incluso, política forte de produção bibliográfica, na qual, o formador de História, do
Uruguai, não necessita porque não lhe é imposto titulações de pós-graduação para ministrar
classe no IPA e muito menos publicar ou investigar, entretanto, como já afirmamos há ensejos
da criação de Instituto Universitário Pedagógico que visa reparar as injustiças históricas com
todos os professores instaurando-se políticas de incentivo a pesquisa. Em síntese, os professores
formadores estão incrustados em uma estrutura pedagógica e administrativa que perdura por
mais de oito séculos com pequenas transformações ao longo do tempo, o Brasil, embora precise
fortalecer suas políticas de formação docente de integração a pesquisa tem acompanhado as
mudanças sociais. Ressaltamos novamente que o Brasil não é melhor e nem pior no tocante a
prática docente, pois, para que pudéssemos afirmar tal assertiva teríamos que nos amparar de 172
mais fontes, o ponto a que nos referimos é que estamos avançados em pesquisas educativas, em
especial, para o Ensino de História. 7
Atualmente, os países estão alavancando neste sentido, embora aja muita coisa para
ser efetivado, pois, assuntos como relacionar o conteúdo com a vida prática do educando, a
importância de informar e divulgar pesquisas dentro da área para medrarmos os avanços e
recuos, redefinição do desenho curricular das licenciaturas, fragmentação curricular e
aperfeiçoamento docente.

CONCLUSÃO

Concluímos após inúmeros prismas abordados no capítulo que os cursos de Licenciatura


no Brasil sempre foram vistos com desprestígios porque nossas políticas educacionais mediante
as diretrizes curriculares instrumentalizadas através das legislações apresentaram muito
discurso e pouca ação efetiva ou substantiva, além disso, no Uruguai há poucos instrumentos
que ensejam da pesquisa aliada da docência, embora, na atualidade o assunto se encontra em
voga para que estes consigam o tão sonhado instituto com caráter universitário., ou seja, existem
perspectivas diferentes no tocante ao ensino e pesquisa porque os caminhos percorridos pelas
políticas públicas são diferentes, porém, acabam gerando um produto final parecido tanto no
Brasil como no Uruguai. Em síntese, as políticas educativas devem ser fortalecidas e se
tornarem mais efetivas na formação dos profissionais do Ensino de História, pois, de que
adianta haver tantas normatizações, aspecto brasileiro, se na execução acabam tomando os
mesmo rumos do ensino terciário? A pergunta fica em aberto para que póstumos investigadores
expandam este questionamento tendo em vista da falta de publicações que ensejem esta
perspectiva de modo comparado com o Uruguai.

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Montevideo: Poder Legislativo. Disponible en:
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URUGUAI. Ley n.° 18.437, de 2008. Ley General de Educación. Disponível em:
<http://www.oei.es/quipu/uruguay/> Acesso em: 15 mar. 2015. 172
9
A CONSTRUÇÃO DA PERCEPÇÃO DO "ESPAÇO PÚBLICO":

O USO DA ALFABETIZAÇÃO CARTOGRÁFICA E DA CARTOGRAFIA ESCOLAR

Taciane Borges Umpierre de Moraes923

RESUMO

Este projeto é uma proposta que está sendo desenvolvida dentro do Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal do Rio Grande. A ideia do projeto é buscar compreender
como é constituída a percepção de Espaço Público dos alunos de 4º e 6º anos do ensino
fundamental e como se estabelece junto com professores respectivos a turma. A importância
desta pesquisa, é abordar como a escola ajuda o indivíduo a perceber e re-perceber o espaço
público e, por isso, aprender com ele e se reconstruir em um processo dialético. O trabalho terá
como recurso metodológico a alfabetização cartográfica. O objetivo desta metodologia é
traduzir a compreensão de espaço de convívio que a criança observa, a percepção de seu meio,
o espaço de ação social. E também e definir a ideia do Espaço Público e Privado. Uma das
hipóteses que buscamos respostas é se a construção do sentido de pertencimento pela
comunidade resultará pela apropriação do espaço público do convívio e se a escola vem
contribuindo para que essa relação cidadã aconteça. O projeto se desenvolverá na comunidade
da Vila da Quinta, na EEEFM Lília Neves, situada na cidade do Rio Grande/RS.
173
Palavras chaves: Espaço Público, Apropriação, Escola e Pertencimento 0

INTRODUÇÃO

O trabalho busca desenvolver uma reflexão sobre o projeto de pesquisa “A construção


da percepção do espaço público a partir da escola” através das contribuições do conteúdo
desenvolvido na disciplina Produção do Espaço Urbano. Podemos dizer que este trabalho
caminhará por um campo próximo ao interdisciplinar, porém o púlpito é buscar com os
instrumentos do campo da história a qual dará a base e a estrutura desta pesquisa.

A comunidade escolhida para desenvolver este estudo de caso é da Vila da Quinta, na


EEEFM Lília Neves, situada na cidade do Rio Grande/RS. O porquê da escolha desta localidade
é devido a retribuição pelo minha formação no Ensino Médio e pelo acolhimento ofertado a

923
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande, com a
matrícula de nº 104287. Contato: tacibum@yahoo.com.br
mim por esta escola, e o outro é pela forte identidade que a Vila da Quinta representa para a
cidade do Rio Grande. Uma característica que representa fortemente esta identidade é a fusão
num mesmo espaço de elementos Rurais e Urbanos, e assim numa análise empírica do lugar,
percebe-se um cotidiano diferenciado em relação as outras partes da cidade.

A grande questão deste artigo é pensar esta pesquisa como instrumento para pensar a
história desta vila, desta escola escolhida, no cotidiano dos moradores da Quinta em relação ao
seu espaço de convívio político e social. Como se dá esta construção da percepção deste espaço?
Aonde ele é realmente percebido? Qual é a importância do espaço público para esta
comunidade? Existe uma apropriação? Existe o sentido de pertencimento? E por fim, qual é a
importância que este estudo para a comunidade e principalmente para a escola que será
realizado? É através deste questionamento que a pesquisa se desenvolverá, com alguma certa
noção que novos questionamentos irão aparecer ao longo do processo. Acredita-se que os
parques, praças, ruas dentre outros espaços públicos são de grande importância a uma
sociedade, e perceber a qual é a sua legitima função e valorizar, preservar, se apropriar é uma
prática de cidadania, do ser social.

A Metodologia aplicada nesta pesquisa será a Alfabetização Cartográfica. Alfabetização


173
cartográfica será utilizado como recurso para tentar desvendar a percepção do estudante em 1
relação ao seu espaço de convívio.

A partir de observações o projeto tem como objetivo é perceber como é construído e


trabalhado a ideia do meio e como os alunos se entende neste. Estudar o meio é uma estratégia
de construção do conhecimento interdisciplinar inclusive, e principalmente, o histórico. O
contato direto com o lugar do estudo e seu contexto traz as vantagens "da observação, descrição,
aplicação de entrevistas, analise de elementos que compõem o patrimônio histórico e
memória."924

Vila da quinta

924
ABUD, Kátia Maria. Ensino de História / Kátia Abud, André Chaves de Melo Silva, Ronaldo Cardoso Alves.
São Paulo: Cengage Learning, 2013.
Falar da Vila da Quinta é descrever um lugar fortemente marcado pela sua identidade.
Esta vila se localiza muito perifericamente na cidade do Rio Grande/RS. Um lugar aonde
contempla uma ruralidade e ao mesmo tempo uma urbanidade, muito comum em zonas
periféricas das cidades, porém não tão definidas como o caso da Quinta.

A Quinta tem sua origem semelhante a outras localidades do Rio Grande do Sul, ela
fazia parte de uma sesmaria que logo pertencia alguém, neste caso ao Capitão Mor, destinada
pela monarquia portuguesa. Seu nome derivou em função da quantidade de árvores frutíferas
que havia no local. Logo mais tarde, nesta localidade, estabelecera uma Estação da via
ferroviária, aonde a parada era uma obrigatoriedade aos trens que ali passara. Estação Quinta
foi estabelecido como nome da Estação e assim reafirma ainda mais o posicionamento espacial
que se constrói. Já no século XX já como república, a Quinta ganha ares mais urbanos, a
instalação de uma fábrica de pentes. A presença forte de estancieiros e coronéis marca a
identidade de uma região de dominação dos quais possuíam o poder político e econômico da
região. Com o forte culto nacionalista, em 1909, Trajano Lopes intendente local, cria o 5º
distrito e denomina como Júlio de Castilhos. Logo em seguida, o novo distrito ganha o
movimento de populares, com a abertura de um Cartório distrital, a Igreja da Penha, a Escola 173
Agrícola dos padres Josefinos , hotéis, o comércio expande. O espaço se transforma, ou seja, é
2
construído um novo espaço e assim, em 1938, foi oficializado Vila da Quinta.

Neste pequeno trecho que aborda alguns elementos da história da Vila da Quinta,
percebemos a transformação deste espaço e a partir de quais necessidades. A transformação
deste espaço se dá através do fator econômico a qual o espaço está destinado a enfrentar. Como
este trabalho está em fase do projeto e embasamento teórico, ele traz a proposta de análise,
perante o lugar escolhido para o estudo de caso, desta transformação ao longo da história da
Quinta e como está sendo percebido a partir do espaço público, que de fato é um espaço social.

Alfabetização cartográfica

A alfabetização cartográfica é uma metodologia riquíssima para ser trabalhadas em


educação infantil e seres iniciais, claro, não descartando as possibilidades de ser trabalhada em
qualquer nível escolar. Porém, o foco desta metodologia no projeto “A construção da percepção
do "espaço público" através da alfabetização cartográfica e da cartografia escolar”.
Ao abordar aqui este método perceberemos que a abordagem se apresentará superficial,
pois estudar, aplicar e apresentar uma pesquisa com a Alfabetização Cartográfica e com a
Cartografia Escolar requer um tempo e um espaço de discurso maior, como é o caso da
dissertação do mestrado a qual este está proposto. Portanto, trata-se de não só de uma ideia e
reconhecimento do espaço físico, mas também de todo a construção do indivíduo neste meio,
junto ao coletivo, a diferenciação de dois mundos, um privado e o outro público. trabalha
também a ideia de construção de coordenação espacial, lateralidade, escalas, orientação, e
também um dos objetivos deste trabalho, a construção do sentimento de pertencimento a partir
do lugar estudado e apropriado.

A importância de alfabetizar está referenciada na função de interpretações de contextos,


se alfabetiza para o mundo, para interpretações de símbolos, códigos e tantas outras expressões
que as linguagens podem nos oferecerem.

Conceitos

A importância de trabalhar com os conceitos junto com a metodologia Cartografia


escolar, parte da preocupação em aplicar o tema espaço público com uma base teórica bem 173
consistente. Trabalharemos com maior profundidade os conceitos diretamente ligados com o
assunto a qual pretendemos tratar. Os conceitos considerados os principais para o
3
desenvolvimento deste trabalho são os de Apropriação e Espaço Público. Outros ainda serão
estudados num segundo momento, como o de Ruralidade, Urbanidade, Lugar, pertencimento e
identidade. Mas o que são conceitos? O conceito é a determinação de uma ideia, pensamento
traduzido por palavras, e serve para balizar, referenciar o assunto em questão. Entendendo este
princípio básico sobre conceito, trabalharemos termos escolhidos para este assunto e procurar
estabelecer uma relação com a história, para isso as reflexões que Antoine Prost925, aborda no
Capítulo Conceitos do seu Livro “Doze Lições da História”, ajudará a compreender como é
possível estabelecer no trabalho conceitos de outras áreas do conhecimento científico. Prost
desenvolve o capítulo iniciando a explicação dos dois tipos de conceitos empíricos através da
abordagem de Koselleck. Onde o historiador interpreta o passado a partir de conceitos do
próprio período estudado, ou o outro tipo é quando o historiador necessita apoiar-se em
categorias já definidas para interpretar ações, do período estudado, que não estão determinadas

925
Historiador Francês, (1933) Estudou na Escola Normal Superior de Paris.
nas fontes através de termos específicos. Estes dois tipos de conceito empírico não são forjados
pelo próprio historiador, sendo assim tomado como herança.

Acreditamos que os conceitos aqui trabalhados vão de encontro a uma ordem


interdisciplinar, ou seja, não se determinam em uma área específica. E segundo Prost, muitos
conceitos são facilmente assimilados pela história, devidos o seu processo de consolidação, o
seu determinante histórico. E é por isso que existe a facilidade destes empréstimos de conceitos.
Mas também, o autor segue afirmando que a História possui seus próprios conceitos.

A importância de estudar um conceito necessita também o processo de conhecer sua


construção. No caso de historicizar o conceito busca reunificar a ideia da realidade e do
conceito, para que se apresente como uma real representação, e não como uma coisa. No
segundo sentido trabalha com a ideia de que o conceito são palavras chaves da construção do
tempo histórico. E que, portanto, necessita-se ser traduzida a linguagem contemporânea para
que seja compreendida.

Trabalhar com conceitos como instrumentos enriquece não só o trabalho do historiador


como também do educador. A partir daqui buscar compreender os conceitos centrais da 173
pesquisa, ajudará desenvolve-los no ato da aplicação da pesquisa junto dentro da escola.
4
O Primeiro conceito a ser trabalhado é o Espaço Público, e juntamente será trabalhado
o conceito de apropriação.

O Espaço Público é um lugar de várias interpretações, talvez para comprovar estas várias
interpretações, basta perguntar para um grupo variado de pessoas, ou melhor, ainda, observar o
comportamento das pessoas em relação ao Espaço Público. Mas não podemos afirmar nada aqui
sem a apresentação comprovadas destas suposições através de um método. Aqui trataremos de
uma forma mais teórica, e assim a contribuição da autora Carla A. Filipe Narciso 926 ao
desenvolver em seu texto “Espaço Público: ação política e prática de apropriação conceito e
procedência”, a análise de dois níveis de interpretação como “lugar de ação política e de
expressão de modos subjetivação não identitários”, já a outra é um “lugar por excelência da
comunicação, da democracia e de lugar de encontro multi-sociais”.O uso do termo Espaço

926
Universidade de Évora (UE), Departamento de Planejamento Biofísico e Paisagístico, Arquitetura Paisagista,
Portugal.
Público está sendo foco de vários estudos, deste modo, se torna base em assuntos transversais.
E assim ele não se determinada como conceito de apenas uma área do conhecimento.

Este termo, não é apenas uma nomenclatura de um tipo de espaço, o Espaço público é
uma representação social, concebido num determinado momento histórico. Segundo
Lefebvre927, este espaço não existe só as relações sociais, mas também vai além como
contempla-se com as derivações desta sociedade, a suas produções e reproduções.

Alerta, assim, para o fato de que tais relações podem ser tanto frontais, públicas,
declaradas quanto ocultas, clandestinas, reprimidas e capazes de conduzir a
transgressões. Poderíamos acrescentar, ainda, que tais relações podem ser próximas e
distantes. Desta forma, segundo o autor, as representações do espaço teriam assim um
peso considerável e uma influência específica na produção do espaço 928.

Ao interpretar sobre a ideia da ordem próxima e a ordem distante vem também, de certa
maneira, de encontro a micro-história929, ideia a ser mais profundamente analisada, pois
investigar a particularidade de um determinado individuo pode revelar a estrutura dos grupos
sociais a qual pertence. Mas o que leva a trabalhar com a ideia Lefebvriana é que se apresenta
como uma teoria e método mais completos aonde a contribuição do método da micro-história 173
seria um ganho para pesquisa. Talvez pelo fato de buscar entender o caso de estudo num
processo de análise de teoria e prática ser dinâmicos.
5
Carla Narciso afirma que a cidade é conhecida através de seu espaço público e por isso
é um lugar típico e essencial urbano. E assim como aborda Henri Lefebvre o espaço é dinâmico,
é complexo e não cabe à nós torná-lo cartesiano. Claro, que através dos nossos métodos
científicos, faz parte fragmentá-lo para buscar a compreensão mais detalhada do todo. Este
mesmo autor, geografo, trabalha com tríades, e uma delas, são os três momentos em que sofre
ao produzir um espaço: “percebido”, “Concebido” e “Vivido”. Que é o que busca compreender,
analisa através desta pesquisa numa comunidade escolar na Vila da Quinta.

Trabalhar com Henri Lefebvre é um desafio, pois compreender um espaço através de


seus métodos será necessário interpretar um contexto sem fragmentar o espaço. Entender todos

927
Francês (1901-1991); Filósofo Marxista e sociólogo. Estudou filosofia na Universidade de Paris, 1920.
Sessão Livre - Entre a Ordem Próxima e a Ordem Distante X Encontro Anual da ANPUR. Belo Horizonte –
928

2003 (p. 24)


929
Teoria e prática desenvolvida nas décadas de 1970 e 1980, com o historiador Carlo Guinzburg.
a dinâmica através de uma rede de relações e inter-relações da sociedade. E utilizar estes três
momentos (“percebido”, “Concebido” e “Vivido”) é buscar analisar, dentro deste espaço
construído pela comunidade da Quinta, a percepção, a apropriação e a sua ação.

E o que seria a apropriação deste espaço? O termo apropriação se define como algo que
não é próprio de alguém. Neste caso, a apropriação é a tomada do espaço público a partir de
todos que se sintam pertencente a este. O espaço público, ou como já diriam outros autores, o
espaço do público, aonde todos tem seus direitos e deveres, diferentemente do espaço privado,
aonde apena um individuo ou um determinado grupo tem o domínio. Apropriação e domínio
dois conceitos utilizado por Lefebvre para definir a utilização do espaço, aonde o público ele é
apropriado e o privado é dominado. Isto não é uma regra, como também apropriação não é o
antônimo de dominação. Há momentos que estes dois termos inverte o espaço de ação e é este
ponto que apresenta questões a serem discutidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este assunto está muito brevemente abordado, pois a pesquisa completa resultará numa 173
trabalho de conclusão de mestrado. Mas a ideia de proporcionar momentos de reflexão sobre o 6
nosso lugar de convívio político e social dentro da escola, como também a própria escola, traz
a proposta de pensar como está se dando a construção deste saber, de se perguntar como e até
aonde vai o papel da escola e do educador em relação a este tema. Uma das funções desta
pesquisa é para que fique de legado para a comunidade a qual, a pesquisa, está destinada a ser
construída. Trabalhar em conjunto a comunidade escolar e focar nas necessidades de
abordagem em relação ao tema sugerido e que irão surgir ao longo do processo.

A importância de percebermos o nosso Espaço Público como responsabilidade de cada


cidadão é preciso que haja identificação e sentido de pertença a este espaço. Afinal, estamos
vivendo em um período onde as particularidades tomam conta do nosso sentido de pertencer ao
um lugar individual, muito diferenciado ao lugar coletivo, público. O mundo moderno se
alicerça nas base de uma estrutura da filosofia do sujeito, o individualismo. Enfim, para
concluímos esta breve explanação da pesquisa, refletimos qual é o papel da história para este
trabalho e qual será a fundamentação dos conceitos que serão aplicados.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Cardoso Alves. São Paulo: Cengage Learning, 2013.
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escola 5ª ed. 1ª reimprensão, São Paulo: Contexto, 2013.

BARROS, José D’Assunção. Cidade e História. 2º ed.Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

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DIFERENTES MUNDOS GEOGRÁFICOS: A alfabetização espacial / Antônio Carlos
Castrogiovanni, Roselane Zordan Costella. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007.

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LIMONAD, Ester(org.).Entre a Ordem Próxima e a Ordem Distante: contribuiçõesa partir


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do pensamento de Henri Lefebvre. Niterói: UFF/GECEL, 2003. 7
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(Org.) 1ª edição; Ed. Unesp; Brasília, DF.

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uma apresentação.AMBIENTE & EDUCAÇÃO | vol. 13| 2008.P. 83


MARTINS. Solismar Fraga, A produção do espaço em uma cidade portuária industrial: O
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PELEGRINI, Sandra C.A. O que é patrimônio cultural imaterial / Sandra C. A. Pelegrini,


Pedro Paulo A. Funari. São Paulo: Brasiliense, 2008

PROST, Antoine. Doze lições sobre a História. 2ª Ed.; Belo Horizonte; Autêntica Editora;
2014. (p.75-93) (p.115-131)

Sites visitados:

http://estacaoquinta.blogspot.com.br/2010/09/vila-da-quinta-sintese-historica.html. visitado
em: 05/11/2015.

173
8
CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA (RIO GRANDE DO SUL-1975)*

Juliana Maria Manfio**930

RESUMO

Comemoraram-se no Rio Grande do Sul, no ano de 1975, o Centenário da Imigração italiana,


através do decreto 22.410, que instituía o Biênio da Imigração e Colonização. O intuito era
recordar e homenagear os imigrantes que haviam auxiliado no desenvolvimento do Estado.
Dessa forma, o presente trabalho tem como objetivo analisar o álbum “Centenário da imigração
italiana”, produzido em alusão ao aniversário de 100 anos do processo imigratório italiano no
Rio Grande do Sul – produto resultante das festividades. Para a realização dessa pesquisa, serão
analisadas as imagens e o conteúdo, através de fotografias, discursos e textos presentes no
álbum – principal fonte desse estudo. Com isso, pretende-se contribuir para os estudos de festas
e comemorações que envolvam a lembrança de grupos imigratórios no Rio Grande do Sul. Esta
pesquisa se insere na linha Migrações, territórios e grupos étnicos, no Doutorado em História
na Universidade do Vale dos Sinos, com auxílio de Bolsa Capes/Prosup.
173
Palavras-chave: Festejos; Imigração; Colonização; 9

INTRODUÇÃO

“O Rio Grande do Sul só tem motivos para bendizer essa colonização”. Borges de Medeiros

Em 1973, o Governador do Rio Grande do Sul, Euclides Triches, instituiu o Biênio da


Imigração e Colonização do Estado, através do Decreto 22.410, que visava:

*
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
** Doutoranda em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Bolsista Capes/ Prosup. E-mail:
jumanfio@hotmail.com.
[...] celebrar, nos anos de 1974 e 1975, o feito dos pioneiros, o sesquicentenário da
imigração alemã, o centenário da imigração italiana e a contribuição das demais
correntes imigratórias que se fixaram no Rio Grande do Sul931.

O Centenário da Imigração Italiana foi comemorado em 1975, em alusão a


chegada dos primeiros imigrantes italianos que se instalaram em Nova Milano, comunidade do
Município de Farroupilha, em 1875. Essas festividades estenderam-se por todo o Estado,
havendo inclusive uma Programação Oficial dos festejos dos 100 anos da Imigração que
ocorreu nos dias 19 a 22 de maio de 1975, nas cidades de Porto Alegre, Caxias do Sul, Bento
Gonçalves, Farroupilha, Garibaldi e na comunidade de Nova Milano, considerado o “berço do
processo imigratório italiano” no Rio Grande do Sul (A RAZÂO, fevereiro de 1975).

Após as comemorações, lançou-se o livro Centenário da Imigração Italiana


1875-1975, que “enfoca todas as áreas que em nosso Estado foram marcadas profundamente
pela colonização italiana” (CORREIO DO POVO, 1º de junho de 1975, p.6). Nesse sentido, o
presente trabalho tem como objetivo analisar a obra supracitada, com o intuito de compreender

174
como a memória do imigrante é construída a partir dos festejos do centenário da imigração
italiana. Levando em conta que:
0
[...] a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de
dados emprestados do presente, e além disso, preparada por outras reconstruções
feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem
alterada (HALBWACHS, 1990, p. 47).

Dessa forma, a memória do imigrante para as comemorações do Centenário da


Imigração Italiana é construída com dados do passado e do futuro. Exaltam-se os pontos
positivos, glorificam-se as dificuldades enfrentadas e a superação e ocultam-se “situações e
fatos que não evidenciaram a unanimidade” (COSTA, 1974, p.8).

Para desenvolver essa pesquisa será analisado o conteúdo de textos e discursos presentes
no álbum – sendo essa obra nossa principal fonte desse estudo. Com isso, busca-se contribuir

931
Art.1. Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. DECRETO Nº 22.410, de 22 de abril de 1973.
Porto Alegre, 1973.
para os estudos de festas e comemorações que envolvam a lembrança e a memória de grupos
imigratórios no Rio Grande do Sul.

1. Capítulo I - “Representando a mais expressiva corrente migratória que


acolhemos, a italiana [...]932”: análise do álbum do Centenário da Imigração Italiana 1875-
1975
O livro do Centenário da Imigração Italiana veio como resultado das comemorações dos
100 anos da Imigração italiana no Rio Grande do Sul. A obra é bilíngüe (português e italiano)
e possuiu quase 400 páginas dedicadas à “epopéia vivida pelos primeiros imigrantes italianos
que chegaram no Rio Grande do Sul no final do século passado” (CENTENÁRIO DA
IMIGRAÇÃO ITALIANA 1875-1975, 1975, p.3). Desde suas primeiras páginas é possível
perceber a construção de uma imagem laudatória em torno do imigrante, transformando o
processo imigratório em um feito memorável e de ações glorificadoras, através de heróis
históricos e cheios de grandiosidade.

A nota da editora ressalta “a rapidez com que os peninsulares se integraram no nosso


174
meio”, alegando que o livro “serve para demonstrar o extraordinário processo registrado no
campo da agricultura, da indústria e do comercio, pelo imigrante e por seus descendentes” 1
(CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA 1875-1975, 1975, p.3).

Ao longo do livro é perceptível a valorização do trabalho imigrante através do


desenvolvimento comercial, industrial e agrícola das cidades gaúchas, colonizadas por
imigrantes. O livro segue:

[...] com uma série de mensagens de governantes e autoridades, como do então


governador Sinval Guazelli, do ex-governador Euclides Triches, da Assembleia
Legislativa do Rio Grande Sul na figura do presidente João Carlos Gastal, do ex-
prefeito de Caxias do Sul Mario Bernardino Ramos, do Presidente do Biênio Victor
Faccioni e do Presidente da Comissão Executiva do Centenário da Imigração
Italiana. (LIMA, 2013 p.58-59).

932
CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA 1875-1975. Porto Alegre: Edel, 1975. p.3.
O governador Guazzelli destacou a tenacidade e a fé do imigrante, através da
conquista da terra, “preparando-a para os seus filhos e os filhos dos seus filhos”. Esse sentido,
exalta-se o trabalho e a religiosidade do imigrante como fatores importantes melhorar as
condições de vida das gerações futuras.

A Assembleia Legislativa também homenageou o imigrante, destacando “uma


harmoniosa unidade humana na variedade racial; uma projeção viva do passado histórico
dirigida ao progresso dos dias futuros” (CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA 1875-
1975, 1975, p.6). É perceptível que se elaboraram elementos positivos em torno do imigrante e
de seu processo imigratório, como uma ideia de que todos os imigrantes são unidos e viviam
em harmonia; bem como as dificuldades enfrentadas com a colonização tivessem impulsionado
o imigrante para o progresso.

O presidente do Biênio, Victor Faccioni, também deixou sua mensagem,


referindo-se a “um profundo sentimento de gratidão e respeito, vem essa iniciativa reafirmar a
perfeita unidade racial” (CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA 1875-1975, 1975, 174
p.9). Aqui, fica evidente o reconhecimento ao imigrante, como aquele veio do outro lado do
Atlântico e conseguiu desenvolver-se social e economicamente, auxiliando o povo gaúcho.
2
Lima (2013, p.19) contribuiu com as seguintes reflexões:

A gratidão que se tem em relação aos imigrantes que fecundaram estas terras também
é percebida tanto pelo discurso de Faccioni quanto pelo que é feito através das
comemorações do Biênio. Fica evidente o discurso de que somos gratos, enquanto
povo, por pertencermos a esta terra tão acolhedora destas gentes (imigrantes), que
vivem em integração.

O presidente da comissão executiva do centenário da imigração italiana preparou um


discurso romântico para prestar sua homenagem aos imigrantes, afirmando que “era preciso
que fosse assim, que sendo um destino de amor, houvesse paisagens de solidão – porque solidão
também é semente dos grandes amores nos corações dos homens” (CENTENÁRIO DA
IMIGRAÇÃO ITALIANA 1875-1975, 1975, p.10). É importante salientar que se valorizaram
nesse discurso as dificuldades enfrentadas pelo imigrante, como se elas fossem necessárias para
tornar o caminho mais sofrido e de luta, propondo a superação e o êxito final (WEBER, 2006).

Para falar os pioneiros, apresentaram um breve histórico do processo de imigração


italiana no Rio Grande do Sul, divulgando datas de fundação, nomes das primeiras famílias, o
processo de estabelecimento, a efetuação do pagamento das pequenas propriedades. Além
disso, enfatiza-se que os imigrantes foram jogados nas terras, sem receber atenção das
autoridades, sendo abandonados em terras que ainda não haviam sido exploradas. Esse discurso
afirma a superação de dificuldades e o êxito final e, por isso, a necessidade de recuperar a
história e a cultura italiana.

Após os discursos, a obra apresentou as cidades no Rio Grande do Sul que receberam
imigrantes italianos.

[...] uma sucessão de cidades são citadas como aquelas de origem e dotadas de
características italianas, como: Silveira Martins, Caxias do Sul (com grande

174
histórico da cidade), Bento Gonçalves, Veranópolis, Garibaldi, Guaporé, Encantado,
Flores da Cunha, Nova Prata, Farroupilha (aparece como Berço da Colonização
Italiana), Casca, Marau, Carlos Barbosa, Serafina Corrêa, São Marcos, Anta Gorda,
Ilópolis, Putinga, Nova Bassano, Nova Araçá, Nova Bréscia, Paraí, Soledade e São
Borja (LIMA, 2013, p.59).
3

A nota da editora ainda afirmava que “[...] que todas as áreas que mereciam ser
enfocadas, o foram” (CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA 1875-1975, 1975, p.3).
No entanto, vale salientar a forma como essas cidades são mencionadas no álbum, bem como
o que foi enfatizado da sua maioria.

A colônia de Silveira Martins é brevemente lembrada no início da obra, a qual


apresentou a chegada dos primeiros imigrantes, mencionou a formação de núcleos coloniais e
valorizou o patrimônio material deixado pelos imigrantes em forma de sobrados, igrejas,
cemitérios, moinhos, entre outros. Por isso, “[...] seja a que melhor conserva e caracteriza, em
todo o Rio Grande do Sul, tantos e típicos exemplos das rústicas habitações erguidas pelos
pioneiros da colonização italiana” (CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA 1875-1975,
1975, p.30).
Acredita-se que o pouco espaço destinado a Silveira Martins pode ser explicado
pelo antigo núcleo de colonização ainda não ser um município autônomo. Silveira Martins ainda
era distrito de Santa Maria no período das comemorações do Centenário da Imigração Italiana.
E a obra explica esse fato:

O quarto núcleo de população italiana no Rio Grande do Sul, em ordem cronológica,


mercê da sua situação no centro do Estado, do seu desenvolvimento por três
municípios distintos, da vizinhança do grande centro ferroviário que é Santa Maria,
não logrou o destino da maioria das outras: constituir-se em município autônomo
(CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA 1875-1975, 1975, p.30).

As outras três primeiras colônias receberam, de certa forma, atenção diferenciada na


obra. Caxias do Sul, considerada a pérola das colônias, foi a cidade que mais teve espaço no
livro. Além de apresentar a história do município, abarcou a situação político-econômico atual,
apresentando o ritmo de desenvolvimento local, através de inúmeras empresas e indústrias que
estavam em pleno crescimento econômico no Estado, as quais têm como seus donos,
descendentes de imigrantes italianos.

Nesse sentido, as histórias de fundação dessas empresas se confundem com as histórias


dos imigrantes no período da colonização: 174
[...] cujas raízes se confundem com o espírito desbravador dos primeiros imigrantes
italianos [...], com sua coragem, com seu trabalho e seu heroísmo, desbravaram
4
áreas inóspitas e matas virgens, semearam o processo, transformando toda a região;
construindo a mais bela e homogênea obra civilizadora da América Latina
(CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA 1875-1975, 1975, p.74).

A apresentação de inúmeras empresas933 nas cidades de colonização italiana e


que seus donos são descendentes de imigrantes reforça a ideia de que os organizadores queriam
mostrar a riqueza do espaço, mostrando o que foi produzido com o trabalho do imigrante e do
seu descendente. E esses “caminhos que conduziram a região nordeste do Rio Grande do Sul
até o centenário da colonização italiana foram abertos por homens intrépidos que, confiando no

933
Indústrias que contribuíram para o engrandecimento das terras rio-grandenses também são citadas, entre elas:
Madezatti, Metalúrgica Abramo Eberle, Madeireira de Zorzi, Madal Implementos Agrícolas e Rodoviários, Grupo
Industrial Rodoviária, Incopesca Indústria e Comércio de Pesca, Marcoplan Equipamentos Industriais, Jarba
Indústria Mecânica, Pigozzi Cipolla Indústria de Engrenagens, Auto Galvânica Santos Dumont, Cooperativa
Vinícola Santo Antônio, Oficina de Mármores e Granitos, Cooperativa Vitivinícola Forqueta, Cervejaria Pérola,
Tessari Recreação e Turismo, Marcopolo Carrocerias e Ônibus, Gazola Indústria Metalúrgica, Tecelagem Marisa,
Pena Branca Integração Avícola, Indústria de Peles e Tapetes Polar, Dreher Vinhos e Champanhas, Cooperativa
Vinícola Aurora, Vinhos Salton, Cooperativa Vinícola Garibaldi, Malharia Farroupilha, Granja Radaelli, Aviária
Piazza e Pirelli (LIMA, 2013, 59).
próprio trabalho, construíram riquezas tão sólidas que se confundem com a história”.
(CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA 1875-1975, 1975, p 88).

Essa é a imagem que os festejos querem passar no centenário da imigração italiana.


Valorizou-se o imigrante, através do trabalho, não apenas na agricultura, mas também no
comércio e na indústria. E, para isso, mostraram o desenvolvimento econômico e social das
cidades colonizadas por imigrantes italianos através da enumeração de diversas empresas no
álbum.

Outros temas foram trabalhados aleatoriamente com os históricos das cidades e das
empresas. Destacou-se o cooperativismo, como forma de união de produtos, com o intuito de
melhorar a produção e sua comercialização. Além disso, sinalizaram-se alguns pioneiros
imigrantes. O álbum explica que:

Na epopeia da colonização italiana no Rio Grande do Sul – fato marcante na história


geral do nosso Estado – é difícil que se pudesse, num trabalho como o presente,
mencionar todos os nomes dos pioneiros de tão extraordinária conquista, pelos
sentimentos que a presidiram: coragem, tenacidade, singeleza e inquebrável fé. Mas,
dentre os inúmeros nomes que permanecem inesquecíveis na memória de todos, é de
justiça lembrar alguns [...] (CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA 1875-1975,
1975, p. 136).
174
Não serão enunciados aqui os nomes dos escolhidos. Além disso, não sabemos que 5
critérios de seleção para esses nomes. No entanto, não são apenas de imigrantes italianos e de
seus descendentes, mas também de brasileiros e portugueses. Mas vale ressaltar que, entre os
imigrantes, são os pioneiros na implantação de indústrias, casas comerciais e nos vinhos.

Outro tema que também merece destaque é a presença da Igreja Católica na obra do
Centenário da Imigração Italiana. O livro apresentou as congregações e ordens religiosas que
se instalaram no Rio Grande do Sul, para dar auxílio dos imigrantes.

O imigrante italiano, no Brasil, especialmente no Rio Grande do Sul, experimentou o


abandono e a solidão no meio da floresta virgem e a religião foi para ele a única
consolação e fonte de energia capaz de levá-lo a superar as dificuldades, às vezes
trágicas, de sua vivência no novo país (CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA
1875-1975, 1975, p. 213).

Nesse sentido, valoriza-se a religiosidade do imigrante como um dos pontos de


organização de sua vida, fator que teria auxiliado na superação das dificuldades da colonização.
E, nesse sentido, a fé do imigrante ganha destaque, pois o álbum apresenta como elemento
essencial dos tempos de colonização, servindo de exemplo para os dias atuais. E a Igreja
católica, dessa forma, potencializa seu campo de atuação entre seus fieis.

A parte final da obra dedicou-se ao centenário da imigração italiana. Destacou-se as


festividades ocorridas no dia 20 de maio de 1975, em Nova Milano, distrito de Farroupilha.
Houve “recepção as altas autoridades e delegações visitantes”934, com hasteamento das
bandeiras do Brasil, Itália e Rio Grande do Sul e o cantos dos hinos. Ocorreu ainda o
hasteamento das bandeiras de “25 municípios da região colonial italiana935”. Esse momento
contou com a presença de autoridades brasileiras e italianas, enfatizando a presença do

174
6

Presidente da República Ernesto Geisel, ilustrado em várias fotografias que aparecem sobre os
festejos. Abaixo, uma fotografia de uma cerimônia em Nova Milano:

Figura 1: Cerimônia do Centenário da Imigração Italiana

Fonte: CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA, 1975.

Nesse dia, desenvolveu-se uma programação intensa, com desfile de carros alegóricos,
representando a “reconstrução da chegada dos primeiros imigrantes italianos e dos dias difíceis

934
A RAZÃO, Op cit
935
A RAZÃO, Op cit
da época pioneira936”. Além disso, os festejos de Nova Milano foram agraciados com um culto
ecumênico e com canções e danças folclóricas. Abaixo, uma cena do desfile alegórico em Nova
Milano.

174
7

Figura 2: Desfile em Nova Milano

Fonte: CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA, 1975.

Após o desfile, houve “um grande almoço campestre à moda da colônia italiana, comida
típica, vinhos, jogos e canções937”. O jornal não apresenta quais seriam os alimentos
considerados típicos da cozinha italiana. Posteriormente, aconteceu o “lançamento da pedra
fundamental do Centenário”, criando assim um marco da data e da festividade dos 100 anos da
imigração.

Constata-se, dessa forma, o livro do Centenário da Imigração Italiana como a


concretização de um trabalho sobre a memória coletiva, atuando na construção de um imigrante

936
A RAZÃO, Op cit
937
A RAZÃO, Op cit
italiano religioso e voltado ao trabalho que, construiu inúmeras riquezas, sendo estas,
mencionadas no livro.

CONCLUSÃO

Com a análise do álbum do Centenário da Imigração Italiana no Rio Grande do Sul, é


possível concluir que o mesmo foi confeccionado com o intuito de celebrar os 100 anos da
chegada dos imigrantes italianos no Estado. Salientam-se nos textos e discursos presentes na
obra a tenacidade e a fé do imigrante, como fatores essenciais para a construção de condições
melhores para as seguintes gerações.

E essas melhores condições são destacadas através de inúmeras indústrias e empresas


que obtiveram crescimento e desenvolvimento econômico significativo. Nesse sentido, o álbum
quer mostrar a riqueza produzida pelo imigrante e seu descendente, construindo uma memória
em torno de um imigrante de sucesso, que auxiliou na construção do Estado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
174
COSTA. Rovílio (org.). Imigração Italiana: vida, costumes e tradições. Porto Alegre:
8
Est/Sulina. 1974.

HALBWACHS. Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vertice. 1990.

LIMA, Tatiane de. Agradecer, homenagear e guardar a memória: As comemorações do


Biênio da Colonização e Imigração do Rio Grande do Sul. Universidade do Vale do Rio dos
Sinos: Trabalho Final de Graduação em História. São Leopoldo, 2013.

FONTES

CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO ITALIANA 1875-1975. Porto Alegre: Edel, 1975.


MIGRAÇÃO SAZONAL PARA A COLHEITA DA MAÇÃ EM FRAIBURGO-SC*938

Marcelo da Silva**

Poliane Zago***

RESUMO

A cidade de Fraiburgo-SC é conhecida nacionalmente como a “Terra da maçã”, pelo fato de ter
sido uma das pioneiras na produção deste produto no país, e por ter sido durante muito tempo
a maior produtora do país. Devido a falta de mão de obra disponível na região, contrata-se cerca
de quatro mil trabalhadores sazonais, que migram anualmente para a região, onde de dezembro
a março, se dedicam a colheita do produto. A pesquisa teve como objetivo caracterizar algumas
variáveis socioeconômicas relativas ao trabalhador temporário da agroindústria da maçã em
Fraiburgo, Santa Catarina. O trabalho buscou, mediante uma pesquisa documental exploratória
de natureza quantitativa/qualitativa e descritiva, com inserções a campo, buscando caracterizar
o perfil socioeconômico dos trabalhadores temporários da agroindústria da maçã em Fraiburgo-
174
SC. Os resultados indicam que a maioria dos trabalhadores temporários do setor macieiro são 9
migrantes, homens (91%). Fator que se explica pela disponibilidade dos alojamentos das
empresas, facilitando a logística e organização dos trabalhadores. Esses alojamentos são
cedidos pelas empresas, onde recebem alimentação e roupa lavada. Já saem de seus lugares de
destino com a carteira assinada em direção a Fraiburgo, com ônibus fretado pelas empresas.
Grande parte dos trabalhadores ou são analfabetos ou possuem ensino fundamental incompleto
(82%). A maioria indígenas do Centro-Oeste brasileiro, que ficam por cerca de três a quatro
meses, trabalhando oito horas diárias na colheita da maçã. A faixa etária dos trabalhadores é
bem variada, a média é de 35 anos, tendo trabalhadores de 18 a 63 anos. Uma pequena parte
decide não retornar, fica em torno de 2%, apesar de a empresa se comprometer em buscar e
levar os trabalhadores em suas cidades de origem. Dos que permanecem alguns são efetivados

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


**
Mestrando em Planejamento Urbano-UDESC, Instituto Federal Catarinense – Campus Fraiburgo. E-mail:
marcelo.silva@fraiburgo.ifc.edu.br.
***
Estudante do Curso Ensino Médio Integrado em Informática no Instituto Federal Catarinense –IFC. E-mail:
polizago09@gmail.com.
nas empresas onde cuidam da poda e limpeza dos pomares, outros se aventuram e se dedicam
a outras atividades na região como a construção civil ou a indústria alimentícia nas cidades
vizinhas. Em relatos adquiridos em campo, grande parte desses trabalhadores (principalmente
os indígenas) gastam a maior parte do que recebem na cidade em bares e comércio em geral.
Alguns desses se envolvem em confusões (brigas), gerando problemas tanto as empresas como
a polícia local. Em 2015, dois indígenas foram mortos atropelados ao retornarem embriagados
do centro da cidade aos alojamentos. Todo este movimento migratório gera impactos
socioeconômicos e culturais na cidade, com os imigrantes que permanecem, há uma expansão
da área urbana, aumentando assim a zona periférica. Esta, com a mínima infraestrutura, sem
saneamento, calçamento e condições dignas de habitação.

Palavras-chave: Migração Sazonal; Maçã; Fraiburgo;

INTRODUÇÃO

Fraiburgo, localizada no meio oeste catarinense, no planalto central, a 384 km da capital


Florianópolis, com aproximadamente 35.000 habitantes, tem sua economia baseada na 175
produção de frutas de clima temperado, sendo a maçã o principal cultivo. A cidade, fundada 0
em 1961, à época com 6.960 habitantes, tem sua origem associada ao setor madeireiro, sendo
as matas de araucárias nas localidades exploradas desde os anos de 1930, perdurando como
atividade produtiva precípua até meados da década de 60, quando entra em decadência em razão
do extermínio de árvores nobres, como cedros, imbuias, pinheiros e canelas, acelerado pelo
desconhecimento de práticas adequadas de manejo florestal.

Como alternativa à crise, buscou-se a fruticultura, em destaque a produção comercial da


maçã, adaptada ao clima e solo regionais.

No final dos anos 1950, os irmãos René e Arnoldo Frey, proprietários da René
& irmãos, na época o principal grupo econômico de Fraiburgo e que já atuava
desde 1930 no setor. Eles perceberam o início da decadência da atividade
madeireira e a necessidade de investir em ouras atividades econômicas
consideradas mais promissoras, entre elas, a fruticultura. No entanto, devido a
pouca experiência e poucas tecnologias disponíveis, bem 3 como, a falta de
mão de obra especializada e de capital para investimentos, estes passam a
procurar agricultores ou técnicos especializados que pudesse se tornar sócios
na implantação da fruticultura moderna no município. (BRANT,2004).

A produção em larga escala da maçã em Fraiburgo tem início na década de 1970 (1976),
sendo que as primeiras mudas foram trazidas para a região (importadas da Europa) em 1963.
Alguns fatores ajudaram a mudança da economia principal da cidade. Passando de uma cidade
extrativista para uma cidade fruticultora. A falta de conhecimento do manejo fez com que a
madeira fosse perdendo espaço. Os incentivos fiscais para desenvolver a maçã e o fato da fruta
ser um dos produtos mais importados pelo país, perdendo apenas para o trigo, foram
fundamentais para o desenvolvimento da fruticultura. Até então Fraiburgo tinha sua economia
baseada no extrativismo vegetal (madeira em tora) das florestas de araucária. Com a escassez
da madeira, busca-se uma nova combinação.

As combinações se aperfeiçoam, alcançam pleno desenvolvimento atraem


máximo de povoamento para a sua eficácia. Aperfeiçoa-se a estrutura social,
eleva-se o padrão de vida. Criam-se bens de consumo e de trocas, depois o
sistema apresenta sinais de fraqueza, as crises se multiplicam (...) a

175
combinação se desloca cedendo lugar a uma nova combinação.
(CHOLLEY,1951).

1
As características físicas, com um clima subtropical, mesotérmico úmido, com
uma altitude de 1048 m, uma topografia plana e solos de boa qualidade. Somadas aos incentivos
governamentais, como a isenção de impostos. As famílias dominantes utilizam deste potencial
para introduzir o cultivo de frutas de clima temperado no meio oeste catarinense.

Como parte das políticas de substituição de importações, o governo federal


implementou diversos programas de apoio a fruticultura nacional, tais como:
Programa de Incentivos Fiscais ao Reflorestamento (FISET), de 1969, e
Programa Nacional de Abastecimento de Maçã ( PRONAMA), de 1980. Em
nível estadual, o Projeto de Fruticultura de Clima Temperado (PROFIT), de
1970, direcionou esforços e investimento em expansão de pomares e na
constituição da logística de pós colheita e distribuição, além da geração e
difusão de tecnologia. (NEVES et al, 1992).
Após muita pesquisa foram escolhidas duas espécies de maçã para serem introduzidas,
a Fuji e a Gala. 95% da maçã produzida no País são dessas espécies. Em Fraiburgo predomina
a maçã Gala.

Quanto as variedades utilizadas nos sistemas produtivos, também ocorre uma


divisão espacial. Neste caso, na região de Fraiburgo a variedade mais cultivada
é a Gala, enquanto em São Joaquim, predomina a Fuji; Esta divisão se dá em
função das exigências climáticas das variedades. A Fuji por exigir mais frio,
tem maior produtividade e qualidade na região de São Joaquim. (PEREIRA, L,
2008).

Pelo fato da colheita dessas espécies ficarem entre janeiro a meados de abril, tem-se a
necessidade de uma demanda de trabalhadores sazonais num curto período do ano. Pela falta
de mão de obra disponível na região, as empresas buscam trabalhadores sazonais das mais
variadas regiões do país. Em alguns anos, a necessidade faz com que estas empresas busquem
indígenas do centro-oeste do Brasil, ou trabalhadores de Estados com mais de 3000 km de
distância como Maranhão e Piauí. O objetivo deste artigo é identificar o perfil socioeconômico
175
e demográfico desses trabalhadores sazonais, como local de emigração, nível de escolaridade,
faixa etária e gênero. 2

1. Capítulo I – Mão de obra cada vez mais distante e heterogênea


Em 2014-2015 foram contratados um pouco mais de quatro mil trabalhadores, desses
cerca de 95% não são de Fraiburgo. Os dados levantados com as empresas apontam que a
maioria vem da região Centro-Oeste do país. 50% são índios do Estado do Mato Grosso do Sul,
das etnias Terena e Guarani-Kaiowá. Após entrevistas nas empresas, com os setores do RH,
apesar de serem trabalhadores fortes e com grande produção diária, apresentam problemas “fora
colheita”, como brigas e embriaguez. No ano de 2015 segundo dados da polícia militar dois
indígenas morreram atropelados em seus dias de folga. Os mesmos se deslocam ao centro da
cidade, frequentando bares e prostíbulos. A falta de mão de obra disponível faz com que as
empresas continuem contratando os indígenas apesar dos problemas citados. Outra área que
fornece trabalhadores é a região nordestina, principalmente os Estados do Piauí e Maranhão.
Os dados coletados em campo constatam que muitos desses trabalhadores sazonais participam
das colheitas de outras culturas pelo país. A maior parte deles trabalha nos meses de setembro
a dezembro na colheita da laranja nos Estados de São Paulo, Paraná e Bahia. Segundo relatos
dos trabalhadores a falta de oportunidades em suas cidades. O baixo salário pago, a seca que
castiga a população, afetando a agricultura de subsistência durante grande parte do ano, estão
entre os principais fatores que repulsam os trabalhadores. Segundo Santana (1993), “a crescente
pauperização, a expulsão e a violência no campo atingiram indiscriminadamente, nas últimas
décadas, os trabalhadores rurais de todo o país”. Esses trabalhadores passam a maior parte do
ano longe de suas famílias em busca de um melhor salário. Em dados socioeconômicos
levantados, constatou-se que 56% dos trabalhadores sazonais da maçã, enviam dinheiro as suas
famílias na cidade de origem. Dos que não enviam, ficou constatado que a maioria é indígena.
Enquanto alguns economistas e agências multilaterais consideram que as remessas significam
uma fonte estável de recursos e que, portanto, contribuem para a estabilidade econômica interna
(Ratha, 2003)

Segundo dados socioeconômicos obtidos em campo, a maior parte dos


trabalhadores já participou de outras colheitas em anos anteriores, em média 60%. As empresas
mandam funcionários as cidades para recrutarem a mão de obra temporária. Após a divulgação, 175
é marcada uma reunião com os interessados, onde são passadas informações básicas, como o
3
tipo de serviço, o local onde trabalharão e alojamentos. Ainda é explicado sobre as vantagens
como salários, bonificações e ajudas de custo. Os interessados (na maioria das vezes) já trazem
a carteira de trabalho e passam pelo exame médico em suas cidades de origem, alguns (minoria)
prestam o exame em Fraiburgo, caso não passem no exame, recebem a passagem de volta a sua
cidade. A faixa etária dos trabalhadores é bem variada, em pesquisa a campo foi constatado
uma média de 35 anos de idade, sendo que temos trabalhadores de 18 a 63 anos. Pelo tipo de
trabalho (colheita no campo) e pela disponibilidade de alojamentos, as empresas seguem a
preferência de contratar. O valor médio que cada trabalhador ganha por mês é de R$ 870,00 a
R$1.200,00, para uma carga de trabalho diário de 8 (oito) horas. Os mesmos recebem todas as
refeições diárias, hospedagem e roupa lavada. Havendo ainda uma bonificação por produção.
Ficou constatado, que alguns trabalhadores após a colheita não regressam as suas cidades de
origem, devido a falta de oportunidades e a dificuldade de sustentar suas famílias em suas
cidades, os trabalhadores após a colheita procuram empregos na região. Uma pequena parcela
destes é contratada pelas próprias empresas macieiras, onde exercem funções de manutenção
nos pomares, com as podas e limpezas. Outros tentam empregos em outros ramos, como a
construção civil, indústria alimentícia e comércio. Após se estabelecerem, trazem suas famílias.
O aluguel médio na cidade é relativamente alto para a renda per capita. O valor médio do
aluguel na cidade fica entre R$ 500,00 a R$ 800,00 e a renda per capita está em R$ 533,65
(tabela 1).

175
4

Tabela 1- Evolução da renda per capita em Fraiburgo-SC – Fonte IBGE

Analisando a tabela 1, percebemos uma diferença na média salarial dos trabalhadores


por etnia. O que se explica pelo seguinte fator: a população indígena não faz os horários extras
onde os trabalhadores recebem uma bonificação por maior colheita efetuada no dia. Eles
cumprem os acordos estabelecidos na contratação. É importante destacar que estes acordos são
feitos entre a empresa (seu representante) e o cacique da tribo, e os trabalhadores indígenas
cumprem as regras já pré-estabelecidas.
2. Capitulo II – Deixando de ser sazonal

No início os trabalhadores que permanecem ficam em pensões na cidade, alguns alugam


quartos em colegas do trabalho. Após buscam arrumar um aluguel mais barato e trazem suas
famílias. Outros, por outro lado, para fugir do aluguel, procuram terras devolutas ou compram
parte do terreno em chácaras mais distantes. Este fator vem afetando a organização sócio-
espacial da cidade, com o surgimento de áreas periféricas e com pouca infraestrutura. Segundo
os dados das empresas o número é relativamente pequeno, variando de 2% a 4% dos
trabalhadores que imigram sazonalmente. As empresas no período da contratação deixam claro
que no fim da colheita fornecerão transporte para que retornem as suas cidades. Segundo os
dados coletados em campo, os responsáveis pelos setores de RH, não podem obrigar os
trabalhadores a retornarem. “fizemos o acerto, pagamos todos os diretos dos trabalhadores,
disponibilizamos o transporte, porém alguns simplesmente (poucos) não embarcam nos ônibus.
Os que ficam tentam arrumar outro emprego na região, muitos deslocam até Videira (cidade
vizinha) buscando emprego na indústria alimentícia. Em 2015, na época da florada (primavera),
alguns fatores comprometeram a produção em 2016, desde geadas a excesso de chuvas. Além
175
de afetar na quantidade da maçã, afetaram também a qualidade da mesma. Sendo assim, com a 5
redução na produção, houve uma grande redução no número de trabalhadores e no período que
os mesmos ficaram para a colheita. Segundo dados das empresas, em 2016 foram contratados
aproximadamente 3200 trabalhadores. Devido os problemas com a safra e a baixa produção os
trabalhadores que ficavam até meados de abril, em sua maioria foram dispensados no início de
março. Novamente a maior parte dos contratados foi de indígenas do Mato Grosso do Sul, em
seguida trabalhadores dos Estados Paraná e Maranhão, conforme o gráfico 1. As características
seguiram as mesmas do ano anterior, homens jovens, com ensino fundamental incompleto, 8
casados e com filhos. Pelo momento atual que o país vive, com os índices de desemprego
crescendo houve um aumento dos números de trabalhadores das cidades vizinhas (cerca de
12%).
Gráfico 1- Trabalhadores Sazonais em Fraiburgo-SC na Safra 2015-2016

175
Percebemos a variedades de culturas presentes nos pomares fraiburguenses. Indígenas 6
do Mato Grosso do Sul, pardos e negros em sua maioria do Maranhão e Piauí, brancos
descendentes de alemães e italianos dos estados do sul do país, apesar de também haver a
migração de indígenas, pardos e negros do sul do país. Toda essa miscigenação pode gerar uma
influência na cultura local, considerando que de 2% a 4% destes imigrantes se fixam em
Fraiburgo após a colheita. Em conversa com os comerciantes locais, os mesmos relatam que
nos meses de janeiro a março há um aumento no comércio local. Nas anotações do diário de
campo, os donos dos estabelecimentos afirmaram que há um aumento significativo de clientes,
principalmente aos domingos, coincidindo com o dia de folga dos trabalhadores, que se
descolam dos alojamentos até o centro da cidade. Nas entrevistas ficou visível que os maiores
consumidores são os indígenas, que na semana do pagamento gastam cerca de 60% ou mais de
seus salários em bebidas. Os pardos e negros consomem, porém menos, com relatos dos donos
dos bares em média de 30% de seus rendimentos e os brancos os que menos gastam e
frequentam estes estabelecimentos, segundo os proprietários não chegando a 10% (foi
considerado o valor médio ganho por safrista, R$ 1.000,00).
CONCLUSÃO

Devido a falta de mão de obra na região, as empresas buscam trabalhadores nas mais
variadas regiões do país. A maior parte é das regiões Nordeste e Centro-Oeste. A queda na
produção, devido a uma anomalia climática, onde as geadas na época florada e o excesso de
chuvas prejudicaram a produção, afetou diretamente o número de trabalhadores contratados,
houve uma redução de 20%, comparando a safra 2015 com a de 2016. O período de
permanência se reduziu em aproximadamente um mês. Em 2015 a colheita foi de janeiro a abril
e em 2016, de janeiro a março. A maior parte dos trabalhadores sazonais é de indígenas,
oriundos do Estado do Mato Grosso do Sul. Segundo relatos das empresas, devido a suas
características, geram certos problemas de convivência nos alojamentos, geralmente na época
do pagamento, em seus dias de folga (domingo), se deslocam até ao centro da cidade, gastando
a maior parte de seus salários com bebidas alcoólicas. No dia a dia, na colheita da maçã, são
considerados uma mão de obra eficiente. Alguns desses trabalhadores já estão se fixando na
cidade e são empregados nas empresas macieiras durante o ano, nas atividades de poda e
limpeza dos pomares, outros são empregados em várias empresas da região. Esta fixação dos
175
trabalhadores está afetando na organização sócio-espacial de Fraiburgo. O surgimento de zonas 7
periféricas, com pouca infraestrutura, necessitando um maior planejamento dos órgãos
municipais.

Percebemos ainda, que um número considerável de trabalhadores imigra do Nordeste


brasileiro, principalmente dos Estados do Piauí e Maranhão. Estes se deslocam mais de 3000
km em busca destes empregos temporários. Muitos trabalham em outras safras pelo país, como
a da laranja, nos meses agosto a dezembro nos Estados de São Paulo, Paraná e Bahia. A
realização desta pesquisa deixa inúmeras possibilidades de indagações a serem desvendadas em
trabalhos futuros, como estudar mais a fundo os povos indígenas que imigram em busca deste
trabalho temporário. Estes imigrantes abandonam suas aldeias e se fixam em Fraiburgo, tendo
que se adaptar a uma nova cultura e realidade social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, P.A. & MATTEI, L.A. Migrações no Oeste Catarinense: História e Elementos
Explicativos. Encontro Nacional de Estudos Populacionais, XV, Caxambu. Anais.
Campinas: ABEP, 2006

CAMARANO, Ana Amélia e ABRAMOVAY, Ricardo.Êxodo Rural, Envelhecimento E


Masculinização No Brasil: Panorama Dos Últimos 50 Anos.Texto para discussão nº 621
DURHAM, Eunice. Migrantes rurais. IN: --- A dinâmica da cultura das sociedades
modernas. São Paulo, Cosac Naify, 2004.

FREY, Willy. Fraiburgo: berço da maçã brasileira. Curitiba: Vicentina, 1989.

______. Lá nos Frai. Curitiba: Sépia Editora, 2005.

IBEGE. Indicadores sociais municipais: uma análise dos resultados do universo do censo
demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2011. 151 p. Acompanha 1 CD- ROM. (Estudos e
pesquisas. Informação demográfica e socioeconômica, n. 28). Disponível em: Acesso em: fev.
2015.

LOBO, Carlos e MATOS, Ralfo. Migrações e a dispersão espacial da população nas regiões de
175
Influência das principais metrópoles Brasileiras. Revista Brasileira de Estudos de População.
2011, vol.28, n.1, pp. 81-101. 8
PEREIRA. Laércio e SIMIONI, Flávio. Cadeia Produtiva da Maçã. Economia de Santa
Catarina: Inserção industrial e dinâmica competitiva. Blumenau: Nova Letra, 2008.
NORDESTINOS EM INHUMAS: FLUXOS MIGRATÓRIOS, TRABALHO E
ALTERIDADE*

Túlio Fernando Mendanha de Oliveira**

RESUMO

Esta comunicação dedica-se a averiguar as questões vinculadas ao processo de fluxos


migratórios, empreendido por nordestinos para a cidade de Inhumas-GO. Em um primeiro
momento buscamos entender o porquê migrar? Neste aspecto analisaremos questões que se
vinculam a acessibilidade ao trabalho formal que pressupõe certa estabilidade para estes grupos
recém-chegados a cidade, inferindo também as relações familiares e afetivas como força motriz
da vinda destes migrantes. A partir de um “mergulho” etnográfico propomos evidenciar como
se dá a construção das relações trabalhistas destes migrantes, averiguando o dia-dia dos 175
trabalhadores (as) em questão in loco, pois se observa que estes migrantes vêm para a cidade
9
para se dedicar ao eito da cana de açúcar e diversas outras atividades ligadas ao setor
sucroalcooleiro.

Palavras chave: Migração, nordestinos, trabalho.

INTRODUÇÃO
Este trabalho dedica-se a investigar as questões vinculadas ao processo de fluxos
migratórios, empreendido por nordestinos para a cidade de Inhumas-GO. Trata-se de uma
pesquisa de Mestrado ainda em construção que se propõe a investigar a migração em quatro
diferentes etapas: Em um primeiro momento, dedica-se a entender o porquê migrar? Neste

*
Trabalho apresentado no congresso internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
**
Aluno de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal
de Goiás. E-mail: tuliofmendanha@hotmail.com.
aspecto analisam-se questões vinculadas à acessibilidade de trabalho com carteira assinada o
que pressupõe certa estabilidade para estes grupos recém-chegados a cidade.

Neste primeiro momento analisam-se também as relações familiares e afetivas como


força motriz da vinda destes migrantes. A questão da melhoria de vida também é destacada
nesta fase da pesquisa.

O segundo tópico se dedica a um mergulho etnográfico mais profundo no contexto


trabalhista dos trabalhadores migrantes nordestinos. Averígua-se o dia-dia dos trabalhadores
em questão in loco, pois se observa que estes migrantes vêm para a cidade para se dedicar ao
eito da cana de açúcar e diversas outras atividades ligadas ao setor sucroalcooleiro.

A formulação de hipóteses apresentada nesta parte inicial remonta-se a estrutura geral


da Dissertação que como já referi ainda está em vias de construção. Portanto, optei por destacar
nos tópicos abaixo, o levantamento de questões já debatidas no trabalho ainda em produção.
Neste primeiro momento, elucidarei alguns dos chamativos básicos da migração, bem como um
breve levantamento de dados acerca da cidade de Inhumas, destino dos migrantes. Na segunda
parte, optarei por dar voz aos sujeitos939, com relatos de entrevistas colhidas na construção deste 176
trabalho. Ou seja, na segunda parte apresentarei uma parte da etnografia pertencente ao
trabalho, relacionando-a com a migração vista como um panorama mais geral.
0

1. Capítulo I

As análises das ciências sociais acerca da migração têm ressaltado que este fenômeno
não se esgota unicamente nas questões dos deslocamentos de pessoas de uma região a outra. A
migração está interligada a uma rede conectiva que engloba relações familiares e/ou afetivas,
ascensão social, mobilidade social, busca de emprego, e diversas outras. Enquanto fenômeno
social brasileiro sua importância é ímpar. Segundo Brito (2009):

A reflexão, com pretensões à elaboração teórica, requer algo mais de um fenômeno,


como as migrações que não é neutro. Pelo contrário, é um processo social que encerra
em si toda a complexidade da sociedade na qual esta inserida. Pela importância que
tem para a sociedade brasileira, as migrações não podem ser compreendidas
independentemente delas. E, de acordo com essa mesma sociedade, estão em

939
Keith Jenkins (2005).
constante transformação, deixando marcas no passado, estruturando o presente e
projetando-se para o futuro. (BRITO, 2009, p.5)

O termo fluxos utilizado no título é passível de diversas análises como mostra Hannerz
(1997). Scott Lash e John Urry (1994) destacam que o termo fluxo pode ser associado as nossas
sociedades globais que na transição do século XX para o XXI transitam fluxos de capital,
trabalho, mercadorias, informações e imagens. Deve-se a este intercâmbio constante interesses
diversos, além da utilização do termo fluxo das ciências e do fazer científico.

No caso aqui em questão foge-se da designação macro, e destaco que nos interessa o
termo fluxo dialogando com o que Hannerz chama de redistribuição territorial. O autor diz que:
“No caso dos fluxos de culturas, é certo que o que se ganha num lugar não necessariamente se
perde na origem. Mas há uma reorganização da cultura no espaço (1997, p. 6)”. Mas como fora
destacado, a aparente sugestão de uma multiplicidade de temáticas relacionadas ao termo em
si, é necessário relatar que no caso de minha pesquisa, fluxo também inter-relaciona a transição
de trabalho, mão de obra, cultura, mercadorias e obviamente populações.

É notável o crescimento da população nordestina em Inhumas-GO. Localizada no vale


do Meia-Ponte a cerca de quarenta quilômetros de Goiânia, Inhumas se enquadra na região 176
metropolitana da capital. Segundo o censo de 2010 do IBGE, Inhumas tinha uma população de
1
48.246 (quarenta e oito mil, duzentos e quarenta e seis habitantes). A estimativa do mesmo
órgão é que no ano de 2015 é que esta população tenha 51.543 (cinquenta e um mil, quinhentos
e quarenta e três habitantes). O IBGE conclui no censo demográfico de 2010 que 4,44% desta
população são derivadas de nordestinos. Segue abaixo a tabela:

Tabela 631 - População residente, por sexo e lugar de nascimento

Município = Inhumas – GO

Sexo = Total

Ano = 2010

Variável
Lugar de nascimento População residente População residente
(Pessoas) (Percentual)
Total 48.246 100,00

Região Nordeste 2.143 4,44

Maranhão 234 0,48

Piauí 70 0,14

Ceará 110 0,23

Rio Grande do Norte 79 0,16

Paraíba 326 0,68

Pernambuco 208 0,43

Alagoas 165 0,34

Sergipe 39 0,08

Bahia 913 1,89

Brasil sem especificação 229 0,47

País estrangeiro 34 0,07


176
Exterior - -
2
Exterior naturalizados
- -
brasileiros

Exterior estrangeiros - -

Nota:

1 - Para 1991 e 2010 - Dados da Amostra


2 - Para 2000 - Primeiros resultados da Amostra
Fonte: IBGE - Censo Demográfico

Quais são os principais chamarizes desta demanda crescente de migrantes advindos da


região nordeste?

A oferta de empregos, bem como o oferecimento destes com carteira assinada é o ponto
principal ao qual teorizamos a crescente vinda e estabelecimento de migrantes, não apenas na
cidade de Inhumas, mas no estado de Goiás de uma forma geral. Notamos que na condução das
entrevistas o termo “carteira assinada” pode ser visto como uma espécie de categoria simbólica.
Ter a carteira assinada pressupõe uma ótica estrutural muito maior, pois ela demanda
estabilidade, mais tranquilidade, refletindo mesmo no convívio familiar e social. A migração
para o estado já vem sendo debatida e planificada com destaque há algum tempo, em especial
pelos veículos midiáticos, e pelos jornais de larga circulação. Vejamos:

O Estado de Goiás tem em sua composição populacional mais de 27% de habitantes


nascidos em outros estados brasileiros – sétimo do país em termos proporcionais –
segundo os dados do Censo Demográfico do Instituto de Brasileiro de Geografia e
Estatística – IBGE, de 2010. Além disso, havia nesse ano cerca de oito mil pessoas
nascidas no exterior, correspondendo a 0,1% dos residentes goianos. (Instituto Mauro
Borges de estatísticas e estudos socioeconômicos-Panorama da migração em Goiás).

As tabelas abaixo são ilustrativas desta representatividade do nordeste no que se refere


ao número de residentes de outros estados em Goiás.

Tabela 1. População residente não nascida em Goiás, por Região de Nascimento – Goiás – 2010 176
3

Tabela 2: População residente de Goiás por Estado de nascimento-2010


Os tempos de permanência dos migrantes em Inhumas também apontam que na grande
maioria dos casos, quanto maior for, mas haverá respostas positivas no que se refere a melhor
estabilidade financeira, e melhoria de condições de vida. Quando o migrante diz melhorar de
vida, ou buscar trabalho para se sustentar melhor, ele não se propõe a esmiuçar a sua fala, ele
176
não a define em seu discurso. Portanto, a recorrência da expressão foi algo que levamos em
conta destrinchar, a fim de averiguar o porquê de sua utilização tão recorrente. 4
Em uma primeira noção atribui-se ao migrante uma racionalidade de viés econômico.
As adversidades inerentes ao migrar serão efetivamente superadas, tendo em vista que a decisão
de migrar, está quase sempre coligada a decisão de permanecer onde se chegar. Portanto, o
migrante é dotado da ideia de quanto mais tempo ele permanecer ao local que se propôs a se
dirigir, maiores serão as chances dele “melhorar de vida”.

A possibilidade de “melhorar de vida” relaciona-se com a perspectiva de modificar


positivamente as condições de vida, muitas vezes, classificada como precária pela
cultura a qual o sujeito encontra-se inserido; Durham (1973), por exemplo, considera
que para estes “a percepção da necessidade de melhorar de vida é decorrência de uma
quebra do isolamento relativo e inclusão numa economia competitiva”. (BRITO,
2009, p.114)

Os melhores salários também foram um demonstrativo de motivador destas vindas.


Aqui destaco que o dinheiro cumpre um papel social. Este dinheiro recebido não se caracteriza
unicamente como uma moeda de troca, ou de dádiva entre o oferecimento de mão de obra em
troca do salário redutível numericamente. Já fora apresentado em Neiburg (2010) os diversos
sentidos sociais do dinheiro. Sigaud (1977) também destaca que o dinheiro tem
representatividades diversas; Alimento, roupa, moradia, serviços e até ocasiões rituais. O
dinheiro não é, portanto algo puramente abstrato. Neiburg argumenta que o dinheiro “é
revestido de sentidos singulares” (Neiburg 2010, p. 8), e se remete mesmo a Malinowski (1935)
quando este traz a “teoria etnográfica do dinheiro”.

Este possível sentido social do dinheiro é exposto pelos migrantes quando interpelados
sobre as condições estruturais de suas famílias atualmente. As respostas colhidas demonstram
que a migração se torna fator de mudança em especial para os filhos. A maior acessibilidade
dos filhos a determinados itens os quais os eles não tiveram acesso, demonstram essa construção
do “objetivo de vida”. Estas “coisas” são aparentemente simples. Acesso à escola, casa
mobiliada, acesso à internet, brinquedos para as crianças, televisão etc.

Visualizando os deslocamentos de populações enquanto fenômeno social brasileiro, o


trabalho de Durham (1984) é esclarecedor em vários sentidos, e dialoga com características
extrínseco-intrínsecas à migração. Para a autora, no caso brasileiro a migração é inerente a nossa
constituição cultural, sua definição é de que a migração faz parte integrante do “equipamento
cultural tradicional” e, deste modo, migrar, está inteiramente ligado à questão da melhoria de
176
vida. 5
A migração de grupos nordestinos para Inhumas pode ser vista enquanto um
emaranhado complexo que aciona em um primeiro instante as condições sócio-economicas, a
necessidade de construção e possível consolidação de um projeto de vida940, a lógica da
melhoria de vida, não apenas individual, mas familiar, e uma série de atributos que se
relacionam intrinsicamente na migração como um constructo de um processo.

A autora nos traz análises primordiais que nos podem ser relacionadas com o caso dos
fluxos migratórios dos nordestinos para Inhumas. Um exemplo básico é de que temos aqui uma
espécie de agrupamento dos migrantes em questão, residindo no mesmo bairro. Este é o caso
de três das famílias entrevistadas, todas ligadas por laços de parentesco ou com um grau de
proximidade afetiva. Estas residem no mesmo bairro e na mesma rua.

Para Velho o Projeto de vida pode ser visto como uma “conduta organizada para atingir finalidades específicas”
940

(Velho, 2003, p. 101).


Esta articulação é definida por Durham como um “grupo de relações primárias”. O
migrante chega à cidade e precisa se estabelecer socialmente, e para tanto é necessário à criação
de vínculos sócio afetivos. Estes primeiros vínculos são os familiares. A seguir, é necessária a
criação de outras articulações com outros agrupamentos, seriam estas articulações com os
estabelecidos na cidade em questão.

Durham situa estes aspectos como formas de adaptação a nova cidade a qual o migrante
procurou se estabelecer. Além do mais, este aspecto, o de que os migrantes passam a viver
geograficamente próximos, que por sua vez é recorrente no caso Inhumense, para a autora
representa uma readaptação a um ambiente novo, tal readaptação é necessária, mas é também
necessário que o recém-chegado não dissolva completamente seus laços com a região de
origem. Brito (2009) se referindo a Durhan diz:

A movimentação no espaço geográfico equivale a uma movimentação no espaço


social, organizada a partir do grupo de relações primárias: família, parentes,
vizinhança e amigos. É o grupo de relações primárias que acumula as informações
necessárias para reduzir os riscos inerentes à migração, ajudando a adaptação na
sociedade urbana e, ao mesmo tempo, faz com que o migrante não dissolva os seus

176
laços com a região de origem. (BRITO, 2009, p. 11).

É neste sentido que a etnografia nos mostrará como os fluxos e os deslocamentos


migratórios estão sempre associados aos grupos familiares. 6
Visualizando a migração através do viés econômico, a estes deslocamentos notamos em
comum a questão da acessibilidade maior de emprego. Evidencio que é um apontamento deste
primeiro capítulo que são dois motivadores básicos da vinda dos migrantes. Primeiro; temos
coligada ao processo migratório a busca de emprego e maior estabilidade social. Segundo; a
busca de emprego e estabilidade social é algo que os migrantes associam ao convívio familiar.
Através das entrevistas que se seguem abaixo, podemos visualizar mais claramente as diversas
categorias as quais a migração traz representatividades diversas as individualidades, mas
também as coletividades.

2. Capítulo II

Abandonar o local onde se viveu uma grande parte da vida não é decisão fácil. O
pesquisador se situa em uma área onde lhe cabe quase que exclusivamente a interpretação do
entrevistado, tentando trazer à tona, as infinitas vicissitudes que lhe são aparentes a partir da
entrevista e das experiências de convivência com o campo de estudos. Este à primeira vista
aparenta ser muito mais um jogo dotado de sensibilidades emotivas que padrões científicos,
embora não se possa excluir uma questão da outra. Neste sentido, Pina Cabral é feliz ao dizer;
“A etnografia tem de procurar os espaços de imaginação e reação criativa das pessoas, uma vez
que o processo pelo qual cada pessoa singular é constituída é historicamente único.” (p. 17).

Já foi argumentado por Gupta & Ferguson (2000) que; “os lugares lembrados tem
servido como âncoras simbólicas para gente dispersa” (Gupta & Ferguson, 2000, p.36). Aplica-
se este argumento aos migrantes nordestinos em Inhumas. Em geral seus depoimentos fornecem
além do utilitarismo, noções, por vezes mais claras, por vezes mais vagas, sobre pertencimento,
clima, e outras características que em comum trazem à tona um sentido amplo, em especial após
iniciarem seus relatos de vida.

O “eu nasci em” traz consigo um diverso número de significados. Mas como a melhoria
de vida no sentido mais amplo socialmente falando chama pela migração, notamos que é preciso
se mudar. E a cidade de Inhumas transmite este sentimento de mudança.
176
Mas apesar de toda esta carga emocional, própria aos entrevistados, o que notamos é
que a mudança de vida, fator abertamente ligado à migração faz com que o migrante estabeleça
7
a sua vida no antes e no depois de ter migrado. Destaca-se que não fiz nenhuma vez a pergunta:
Você voltaria para seu estado, ou região de origem? Mas recebi em grande parte das entrevistas
a colocação: Pra lá eu não volto mais não!

Os relatos de entrevistas abaixo foram colhidos em cinco famílias, a de Roseane Alves


de Jesus, em abril de 2016, das senhoras Vanúsia dos Santos, Maria Sandra dos Santos e do
senhor Paulo José Batista três irmãos, vindos para Inhumas por questões de trabalho e pela
relação familiar, foram entrevistados em maio de 2016, o senhor Cícero Honorato da Costa foi
entrevistado em Abril de 2016.

Destaco aqui algumas respostas:

“Aqui é bom, assim que eu cheguei eu disse é aqui que eu vou ficar”. (Roseane Alves)

Cícero Honorato da Costa é mais enfático:


“Vontade de ir pra lá (Alagoas) não tenho de jeito nenhum, eu digo que é aqui em Goiás
mesmo que eu quero viver e a situação é essa aí”.

O permanecer na cidade a qual se chegou, é parte da necessidade de continuidade do


projeto migratório. O migrante está disposto a arriscar suas chances para a consolidação de seu
projeto de melhoria de vida. Brito (2009) se posiciona de uma forma interessante sobre tal
questão:

Mesmo que ocorram obstáculos intervenientes, associados à distância ou aos custos


de transportes, assim como aos problemas psicossociais inerentes ao translado, a
virtuosidade econômica e social das migrações é um pressuposto inegável dessas
teorias. Essa dimensão positiva das migrações, tanto do ponto de vista social, quanto
econômico, serve de pano de fundo para a racionalidade da decisão de emigrar. A
análise custo-benefício, em todas as suas dimensões, tende a ser amplamente
favorável aos benefícios. Emigrar em direção às grandes regiões urbanas é a opção
mais adequada quando o objetivo é a melhoria do padrão de vida, mesmo quando se
considera a enorme adversidade que essas regiões impõem aos imigrantes e suas
famílias. Até porque elas tendem a ser superadas quanto maior for o tempo de
residência desses imigrantes. O migrante é considerado como um indivíduo dotado de
racionalidade econômica na decisão de migrar e, portanto, capaz de desenhar os seus
caminhos pelo território de uma maneira adequada às necessidades do mercado de
trabalho. Como se cada migrante fosse um “empresário de si mesmo” a procurando a
localização ótima para o seu “capital humano” (BRITO, 2009, p. 6). 176
8
Um exemplo a ser utilizado nessa citação relaciona-se com o que nos diz Maria Sandra
quando ela mesma compara seu antes e depois de estar em Inhumas. Ela destaca:

O salário lá (Alagoas) é mais pouco, tudo que você faz lá, trabalha, trabalha, mas não
recebe o salario combinado, e aqui é mais diferente, o estilo de vida aqui, já tem onze
anos que eu moro aqui. E vim assim e gostei, e agora não pretendo voltar pra trás tão
cedo.

Em nosso caso vemos a atribuição valorativa do dinheiro por parte dos migrantes
principalmente no que eles consideram necessidades básicas, e que são em grande parte
atendidas pelo programa Bolsa Família. Maria Sandra se remete ao programa com grande
satisfação:

É muito importante assim, por meus filhos estarem na escola, porque esse dinheiro do
bolsa família é uma grande ajuda. Ajuda muito, porque com o bolsa família, eu
compro calçado pra eles, mochila pra escola, ajuda no material escolar deles. Eu
compro assim a prazo, então quando eu quito, vem uma mochila pra um, um tênis pra
outro, até pra dentro de casa mesmo, pra comprar alguma coisa algum alimento pra
dentro de casa mesmo, então eu não posso reclamar, é uma grande ajuda, ajuda muito.
Mas a noção da melhoria de vida abarca não apenas o indivíduo traz consigo um projeto
de melhoria mútua a si e a seus familiares. Maciel (2006) se remete a Menezes e articula:

No caso dos migrantes estudados, o projeto de “melhorar de vida” articula a família


em toda sua extensividade e o faz explorar as possibilidades abertas. Logo, nas
diferentes trajetórias: “alguns conseguem, em determinado momentos dos ciclos de
vida alcançar as condições de reprodução que os definem como camponeses, enquanto
outros têm suas trajetórias marcadas pelo deslocamento permanente e simultâneo
entre duas formas de reprodução”. (MENEZES, 2002, p.74)

Visualizando o “projeto de vida” o que se pleiteia é uma espécie de organização

biográfica do (s) sujeito (os). Segundo o raciocínio de Velho (2003), os indivíduos constroem

a sua noção de projeto levando em consideração significações e acontecimentos do passado, e

é claro a ação do presente. Deste modo, se pudermos inserir os migrantes nesta perspectiva

vemos que estes são influenciados pelos campos de possibilidades em que eles próprios estão

inseridos.

Velho (2003) agrupa seu pensamento em campos. O das possibilidades é o primeiro, em


seguida temos o potencial de metamorfose, que consiste na alteração a curto ou longo prazo por
176
parte do indivíduo em seu projeto original, neste processo ele negocia e renegocia a sua 9
realidade de acordo com a coletividade. Um exemplo próximo seria a dos migrantes com
projetos pessoais, mas que são estendidos e renegociados de acordo com as necessidades de seu
grupo, ou família. Aplica-se aqui, portanto que o indivíduo seja trazido a negociar com sua
“rede de significados” (Geertz, 2008). Vemos que o potencial de metamorfose pode ter sua
viabilidade intrinsecamente ligada aos interesses do grupo, ele depende, portanto de uma
interação entre indivíduo e sua coletividade:

Os projetos individuais sempre interagem com outros dentro de um campo de


possibilidades. Não operam num vácuo, mas sim a partir de premissas e paradigmas
culturais compartilhados por universos específicos. Por isso mesmo são complexos e
os indivíduos, em princípio, podem ser portadores de projetos diferentes, até
contraditórios. (VELHO, 2003, p. 46)

Fator de importância primordial é a proximidade familiar e afetiva de amigos no mesmo


bairro, e como este é destacado nestas entrevistas. Ademais a recorrência da vinda por questões
familiares é tão importantemente ressaltada pelos migrantes que não se pode ignorá-la. Deste
modo, acredita-se que o trabalho de Durham (1984) é esclarecedor quando situa a questão da
manutenção de vínculos com a região de origem como necessidade de readaptação a um novo
contexto.

Os três irmãos que foram entrevistados corroboram essa assertiva, Maria Sandra dos
santos (37 anos trabalha em uma fábrica de temperos), Vanúsia dos Santos (41 anos,
doméstica), e Paulo José Batista, (33 anos, trabalhador rurícola). Os três vieram de Alagoas. O
caso de Maria Sandra foi dos mais interessantes entre todas as entrevistas. Sua casa é a mais
bem estruturada entre todos os entrevistados. É uma casa alugada, com quatro quartos. Ela se
orgulha de ter todos os filhos na escola, a mais velha está quase prestando o vestibular. Maria
se orgulha de dizer como estava quando chegou em Inhumas, e como está agora.

Porque eu acho assim, trabalhar não mata ninguém não, e só você ter força de vontade,
trabalhar e ter suas coisas honestamente. Tudo que eu tenho dentro da minha casa hoje
custou tudo do meu suor, eu tenho orgulho de falar pra todo mundo, e todo mundo
aqui nessa rua me conhece, sabem do jeito que eu cheguei aqui, a maneira que eu
cheguei, só com a roupa, e umas panelinhas dentro de um saco, nem bolsa tinha era
um saco. E o jeito que eu estou hoje, aí todo mundo fala; nossa senhora, do jeito que
essa menina chegou aqui, e o jeito que ela está hoje. Então tudo que eu tenho dentro
de minha casa hoje foi o suor daqui ó, do meu rosto, trabalhando honestamente graças
a deus. Tudo que eu não tive naquele tempo que eu morava lá (em Alagoas) hoje eu
tenho, e meus filhos também. 177
0
O que temos aqui é a ascensão social, tão almejada pelos migrantes. Maria Sandra se
deslocou para Inhumas apenas com o necessário para viver, como ela mesma diz; roupas e
panelas. A sua casa é mobiliada, ela diz ter sempre a geladeira cheia, ela consegue dar aos filhos
as coisas que nunca teve. Pode se afirmar que ela atingiu o que estes migrantes mais esperam.
Ter uma casa relativamente confortável, e mais segurança e estabilidade para si mesma, (a
carteira assinada corresponde a um valor simbólico aqui) e no caso das mães/pais de família,
mais educação e segurança para seus filhos.

Como em grande parte das pessoas entrevistadas ela veio por questões econômicas, e
familiares;

Meu marido cortava cana e a gente veio pra cá porque primeiro o pai dele veio na
frente. O pai dele veio embora pra cá, depois ele quis vir, aí ele me perguntou se eu
vinha ou se eu ficava, aí eu pensei, é o jeito eu ter que ir, aí eu vim, porque aqui é
muito melhor de trabalho, pra ganhar dinheiro, muito melhor de que lá.

Vanúsia também só trouxe o essencial na bagagem;


Muitos vem, aí se tiver parente por aqui fica, aluga casa, aí depois manda buscar o
resto da família. E muitos que já tem família aqui, vem com a sua família completa,
fica na casa da família por uns tempos, depois aluga casa e vai morar.

E as coisas que tinha, como que foi para trazer? (pesquisador)


Traz não, só a roupa. Não pode trazer moveis, não pode trazer nada, coisinha pequena
assim até que dá, mas eu não trouxe não, trouxe só roupa.

E quando você chegou aqui como que você fez? (pesquisador)


Fiquei na casa de minha irmã. Ela já morava aqui a muito tempo. Aí fui trabalhando,
fui comprando, coloquei meus filhos no colégio. Aí comecei a trabalhar e fui
comprando minhas coisinhas aos poucos, aí estou aí até hoje graças a Deus.

Em sua fala Paulo José Batista destaca o viés econômico e familiar como os motivadores
de sua vinda: “Eu já tinha irmã aqui né? Ela me chamou pra vir pra cá, eu vim, trabalhar.
Trabalho na usina, na laranja também. E de lá pra cá, estou aqui até hoje”.

Quando questionado mais uma vez sobre a vinda ele prossegue:

Por causa das minhas irmãs né. Porque uma já estava aqui né, a maior. Porque a gente
era muito apegado, aí a outra tinha ficado, aí a outra veio também, ai estava as duas
aí. Aí eu vim pra cá e acostumei. Estou ai até hoje.

Claramente em sua fala as relações afetivas de proximidade entre irmãos aparecem. 177
1
Paulo associou então a necessidade de acompanhar as irmãs, com a possibilidade de melhoria
de vida. Paulo mora em um barracão bem mobilhado, possui uma moto do ano, e sua esposa
trabalha como doméstica. Os dois vivem em uma viela na região central da cidade. Têm um
filho pequeno. Em sua fala apareceram mais questões relacionadas ao trabalho, no entanto o
amparo familiar lhe foi fator primordial da vinda como no relato acima. Maciel (2010) assevera
de forma esmiuçada a questão do deslocamento familiar, ao preencher que:

A importância da família no amparo de seus membros no momento da migração é


central para realização do projeto migratório. Neste contexto o grupo familiar assume
novos arranjos, que não respondem, necessariamente, ao tipo de família nuclear
concebido como princípio organizador da família no Brasil pós-anos 703. O
entrelaçamento entre migrações e grupo familiar leva em consideração, neste texto, a
família de trabalhadores rurais migrantes, antigos moradores ou pequenos
proprietários do norte e nordeste do país que passaram pela a dissolução do trabalho
familiar em prol do trabalho individualizado, do agrobusiness (MACIEL, 2010 p,
225).

Acreditamos encontrar aqui neste trecho, uma proximidade do caso dos três irmãos
citados acima, a exceção de que nenhum deles era pequeno produtor rural, mas em todos os
casos eram pessoas criadas sobre a sombra da atividade agrícola. Mas temos abertamente no
caso destes o arranjo e o amparo da família como amparo ao migrar.

Estas relações de parentesco pais e filhos são objeto de análise interessante e aparecem
constantemente nos diálogos empreendidos. Como os entrevistados são todos pais/mães de
família notamos que este deslocamento pressupõe pragmaticamente a melhoria da educação
para os filhos. Em estudos sobre a sociedade complexa contemporânea, Velho (1981) já
destacava que a sociedade atual é uma sociedade na qual; “A divisão social do trabalho e a
distribuição de riquezas delineiam categorias sociais distinguíveis com continuidade histórica”
(VELHO, 1981, p. 16).

Neste sentido a busca de melhores estruturas educacionais para os filhos, a escola em


questão também pesa a favor da migração. Berteaux (1976) já analisara essas relações pais e
filhos e aponta que a educação para os filhos apesar de não apontar uma mobilidade social em
curto prazo, apresenta valor simbólico, em especial aos pais, relacionando essa melhoria a seus
filhos, que associam a educação como “uma possível mudança de destino”.

Mas esta construção de melhoria de vida para os filhos é constantemente relatada nas 177
entrevistas. Este melhor acesso deve ser aproveitado. Maria Sandra é exigente com a frequência
escolar dos filhos, para ela o sentido de educação é muito mais complexo, de certo modo em
2
sua fala, ela formula um ideário de sociedade.:

Não deixo faltar aula de jeito nenhum, só se estiver doente e realmente não puder ir,
ai tem que consultar pegar o atestado e levar na escola e mostrar por que foi que não
foi, mas faltar aula por besteira não faltam.

Todas estas histórias de vida simbolizam práticas, representatividades e contextos


diferentes dos sujeitos, que de algum modo buscam um apontamento, ou direcionamento a seus
destinos, e em especial no caso dos pais e mães, aos destinos de seus filhos.

CONCLUSÃO

Estes apontamentos asseveram que a migração aponta um aspecto social cujos


seguimentos estão muito além de um simples deslocamento de localidades. Por detrás do
mover-se, reúnem se objetivos de vida, relacionados à educação, família, amizade, condições
de vida, filhos, todas estas são noções que apesar de deixar tudo para trás, os migrantes associam
diversos vieses aos quais podem amalgamar sua viagem.

Em suma temos migração emoldurada no campo de possiblidades que engloba o novo


“projeto de vida” como destaca Velho (2003), esta é também uma hipótese que responde o
porquê de tais deslocamentos serem quase sempre definitivos. O contato com outra cultura,
com outra forma de relação trabalhista, melhor estabilidade proporcionada pela carteira
assinada, escola para os filhos, além de novas aspirações sociais, respondem positivamente ao
custoso trajeto que é sair de sua região de pertencimento.

Destaco que a partir das conduções etnográficas é que situo melhor a colocação de
Magnani (2012) quando ele situa aspectos pessoais e vivenciados pelo pesquisador, essa relação
“debate e troca” torna possível (des) construir novas interpretações acerca da migração. Como
sugeri acima, a antropologia é também um esforço cientifico, mas não se esgota neste aspecto.
Este olhar para dentro do fazer antropológico é segundo Ingold (1988) mais aparente quando
da necessidade de reformulação quando os próprios antropólogos passam a olhar para si
mesmos e para as implicações de sua visualização e seu envolvimento com os povos estudados
177
3
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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antroponomia política. Rio de Janeiro. Zahar, 1976.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaina & FERREIRA, Marieta M.
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177
5
A IDENTIDADE ÉTNICA E CONFESSIONAL COMO PRINCÍPIO NORTEADOR
NA IMPLANTAÇÃO DO PROJETO DE COLONIZAÇÃO PORTO NOVO NA
DÉCADA DE 1920*941

Leandro Mayer**942

RESUMO

O objetivo da comunicação é tratar do projeto de colonização Porto Novo, instalado em 1926


no oeste de Santa Catarina pela Volksverein – Sociedade União Popular, que permitiu a
instalação de colonos de origem alemã e católica. Já nos primeiros anos de fundação, a colônia
recebeu milhares de (i) migrantes, oriundos, em sua maioria, das colônias velhas do Rio Grande
do Sul, formando uma organização coletiva teuto-católica, uma comunidade alicerçada na
homogeneidade étnica e religiosa e no rígido controle social exercido pelo clero.

Palavras-chave: Porto Novo, Colonização, Volksverein


177
1. Capítulo I - Porto Novo: uma colonização étnica e religiosamente homogênea
6
O Projeto de Colonização Porto Novo foi fundado em 1926, em terras situadas no oeste
de Santa Catarina, às margens do rio Uruguai. Uma colonização homogênea, que permitiu a
instalação de colonos de origem alemã e católica. A colonização foi planejada, organizada e
promovida pela Volksverein für die Deutschen Katholiken in Rio Grande do Sul - Sociedade
União Popular para Alemães Católicos no Rio Grande do Sul, fundada em 1912 pelos jesuítas
de São Leopoldo/RS. Entre os colonos, era conhecida simplesmente como Volksverein -
Sociedade União Popular;

A Sociedade União Popular foi criada em 1912, durante o Congresso de Alemães


Católicos em Venâncio Aires943. Seu idealizador foi o padre Jesuíta Theodor Amstad S.J. Em

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


**Doutorando em História pela Universidade de Passo Fundo. Bolsista FUPF. E-mail:
mayerleandro@yahoo.com.br.
943
“O tema central escolhido para o Congresso foi a situação cultural, educacional, religiosa e econômica das
comunidades católicas teutas. Chegara-se a um ponto em que se tornara inadiável realizar um diagnóstico realista
1900 foi fundada a Associação Rio-grandense de Agricultores (Riograndenser Bauernverein)
e em 1912 o Bauernverein desdobrou-se, originando entre as ramificações, a Volksverein
(Sociedade União Popular – SUP944), um importante projeto de desenvolvimento econômico e
de promoção humana (RAMBO, 2011). A organização em torno da SUP foi uma alternativa
encontrada pelos colonos teuto-brasileiros de juntos enfrentarem seus problemas, momento em
que não podiam contar com o apoio governamental. Esta tese é confirmada por Rambo:

A Sociedade União Popular foi, sem favor, um modelo bem sucedido de como uma
população é capaz de resolver seus problemas, sem depender em tudo da boa ou má
vontade dos governos em qualquer nível. As comunidades teuto-brasileiras
demonstraram por meio da Sociedade União Popular que, inspiradas na parábola
bíblica do "feixe de varas" e motivadas pelo apelo cristão "um por todos e todos por
um", é possível pôr em marcha um projeto comum, solidário e mutuamente
comprometido, capaz de superar os desafios mais complicados (RAMBO, 2011, p.
254).

Observa-se que a fundação da SUP ocorreu antes do conflito da 1ª Guerra Mundial.


Como trata-se de uma organização de alemães, naturalmente durante os anos do conflito,
especialmente com a entrada do Brasil na guerra e seu posicionamento contrário à Alemanha,
a entidade teve suas atividades paralisadas, condenada à inoperância. “Infelizmente a guerra
aniquilou essas iniciativas e também freou e enfraqueceu em suas atividades a Sociedade União
177
Popular dos Alemães, já existente” (AMSTAD, 2005, p. 337). Suas atividades são reiniciadas 7
em 1922, conforme lemos em Rohde: “No dia 15 de fevereiro de 1922, durante uma Assembléia
Geral em Porto Alegre, o reverendo padre Rick traçou, pela primeira vez após o fim da guerra,
os objetivos e metas a serem alcançados pela Sociedade União Popular” (Rohde, 2011, p. 22).

Nestes anos, especialmente a partir de 1922, quando a Volksverein reiniciou suas


atividades, surgem as primeiras conversações quanto à necessidade de buscar terras para novas

da situação, identificar os principais problemas, partir para um ambicioso projeto de promoção humana de médio
e longo prazos, apostar em soluções e escolher os meios e as estratégias de ação eficientes” (RAMBO, 2011, p.
234-235). Os Congressos eram chamados de Katholikentage. Sobre eles, temos a contribuição de Heinen:
“"Katholikentage", literalmente "Dias dos Católicos". Eram 3 dias de encontros festivos das lideranças rurais teutas
do Estado do Sul, com celebrações religiosas, sessões teatrais e culturais à noite. Durante os 3 dias, palestras e
debates sobre todos os assuntos que interessavam e preocupavam a população local: vida, família, educação dos
filhos, escola, alimentação, saúde, lazer, leitura, melhoria no trabalho agrícola e pecuário, novas técnicas agrícolas,
conservação e recuperação do solo, esterqueiras, adubo verde, sementes de soja, etc. E tudo isso na virada do
século, um trabalho pioneiro” (HEINEN, 1997, p. 71).
944
Outras informações sobre a Sociedade União Popular, entre elas, o esboço de estatuto, organização e
funcionamento, podem ser lidas no livro Somando Forças – o projeto social dos Jesuítas no sul do Brasil, de Arthur
Blásio Rambo (2011).
frentes agrícolas, visto que, nas colônias velhas do Rio Grande do Sul, as terras já estavam
escassas e subdivididas. É importante frisar ainda, que:

[...] a "Volksverein" não via com bons olhos o fato de jovens agricultores gaúchos de
origem alemã serem convencidos, através de propaganda, a integrarem projetos de
colonização que misturavam origem étnico-cultural ou confissão religiosa. A
preocupação não estava baseada em intolerância racial ou religiosa. Única e
exclusivamente o era a preocupação com o bem estar espiritual e físico dos
povoadores que migravam. Comunidade religiosa, escola, agremiações, mesmo
associações com objetivos puramente de lazer, somente são possíveis de ser formadas
e mantidas em um grupo com unidade cultural e religiosa (ROHDE, 2011. p. 25).

Diante da preocupação da Volksverein quanto às colônias mistas, especialmente em


relação ao bem-estar espiritual, surgiu um dos projetos de colonização que resolveria estes
problemas: a colônia Porto Novo.

2. Capítulo II - A fundação da colônia Porto Novo: uma organização coletiva

177
teuto-católica

“O projeto, o qual era submetido ao ideal cívico, social e econômico da 8


ética católica, destinava-se a alemães e teuto-brasileiros que fossem agricultores
católicos” (OUDESTE, 2012, p. 94).

A fundação da colônia Porto Novo está associada ao desejo de fundação de um núcleo


que possibilitasse a reprodução étnico-confessional. A intenção inicial era fundar essa nova
colônia no Rio Grande do Sul, porém, o governo daquele estado não autorizou a instalação de
uma colonização cujo princípio de ocupação fosse a homogeneidade étnica e religiosa, como
pretendiam os dirigentes da Volksverein. Nas memórias de Pe. Rick945, o reverendo escreve:

[...] a Sociedade União Popular, ou o Volksverein, de início se empenhou em


conseguir as suas terras no Rio Grande do Sul. Numa consulta do sr. Alberto Bins,
feita ao Governador do Estado Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, pronunciou-
se este disposto a colocar terras devolutas à venda para os católicos alemães. Por causa
disso fixamos um requerimento por terras, situadas perto de Santa Rosa e Três
Arroios. Entregou-se essa petição ao Dr. Borges de Medeiros, mas ela acabou não

945
Memórias especiais de Pe. João Evangelista Rick, SJ – Coletânea e tradução por Pe. Arthur Rabuske, SJ.
Disponível em Pe. J. E. Rick, SJ – Cientista, colonizador, apóstolo social, professor (2004).
tendo qualquer resposta. Fui eu mesmo, por quatro vezes, ao palácio por motivo dessa
situação. Desculpava-se Sua Senhoria de cada vez com o fato da falta de medições.
Na minha última visita, disse-lhe eu sucintamente que pouco se nos dava da
circunstância de a medição fazer-se um ano mais cedo ou um ano mais tarde, sendo
nosso desejo o de termos uma resposta decisiva no sentido de realmente podermos
esperar a recepção de tais terras... E ela, ou seja, tal resposta, não veio. O homem a
impedir o negócio era o Dr. Carlos Torres Gonçalves, inimigo dos "alemães" e
pessoa hostil aos católicos. (Lembramos aqui que ele era funcionário da Secretaria
de Obras Públicas do Rio Grande do Sul, onde exercia o cargo de diretor da Diretoria
de Terras e Colonização e da Viação Fluvial, diplomado em Engenharia Civil). Em
vista disso, vimo-nos forçados a recorrer a Santa Catarina. Tratava-se, na verdade,
de uma expulsão, mesmo que tudo isso apenas se desse por uma imposição moral
(RABUSKE; RAMBO, 2004, p. 123, grifos nossos).

Roche (1969) considera que a política adotada pelo governo do Rio Grande do Sul de
não permitir novas colonizações nas últimas terras devolutas, impulsionou a emigração de
colonos rio-grandenses: “Em lugar de distribuí-las imediatamente, como lhe aconselhavam,
preferiu proteger as últimas reservas florestais. Para não perdê-los todos nas gerações seguintes,
preferiu deixar partir uma fração de colonos rio-grandenses” (ROCHE, 1969, p. 359-360).
Padre Luiz Heinen (1997) atribui à Maçonaria, ao Positivismo e às consequências da Primeira
Guerra, como fatores determinantes para que o governo do estado do Rio Grande do Sul não
autorizasse o núcleo de colonização pretendido pela Volksverein. A partir daí, buscou-se o 177
estado vizinho, Santa Catarina, para a implantação do projeto de colonização. A decisão de
fundação do Projeto Porto Novo foi tomada na reunião dos delegados das Caixas Rurais em 26
9
e 27 de abril de 1925 (JUNGBLUT, 2000, p. 74).

Diante da decisão de formação de um povoado confessional católico e alemão, meses


depois, ocorreu a aquisição da área de terras que compreenderá o projeto Porto Novo. Assim,
ocorre em 28 de janeiro de 1926, a primeira compra de terras adquiridas por força de contrato,
compondo 100 lotes, no extremo oeste de Santa Catarina. “A compra foi acertada após longas
negociações. As terras ofereciam uma vantagem rara no sul do Brasil” (RABUSKE; RAMBO,
2004, p. 59). Em contrapartida:

[...] era de interesse do governo catarinense em promover a ocupação daquele espaço,


já contestado algumas vezes ao longo da história. Além disso, a empresa Colonizadora
Chapecó-Pepery, detentora das terras no Alto Vale do Rio Uruguai e que já havia
promovida a colonização de Porto Feliz – atualmente o município de Mondaí -
enfrentava grave crise econômica, assim, a Volksverein aproveitou a oportunidade
para adquirir uma faixa de terras as margens do Rio Uruguai na fronteira com a
Argentina (FRANZEN, 2014, p. 82).
Conforme Franzen (2014), o empreendimento foi financiado pela Cooperativa de
Crédito Sparkasse946 e manteve “uma forte ligação com o estado do Rio Grande do Sul”
(ROHDE, 2011, p. 29). De fato, a colônia Porto Novo, como podemos observar no mapa a
seguir, situa-se numa região de fronteira: com o Rio Grande do Sul – onde a divisa é dada pelo
rio Uruguai e com a Argentina – cuja divisa ocorre pelo rio Peperi-Guaçu947. O projeto de
colonização Porto Novo torna-se “o primeiro prolongamento da colonização teuto-brasileira
católica do Rio Grande do Sul em Santa Catarina” (HEINEN, 1997, p. 71).

Figura 1 – Mapa de Santa Catarina

178
0

946
Sua origem está no Padre Theodoro Amstad, S.J. “Ainda em 1904 organizou verdadeiro sistema bancário para
os agricultores, chamado "Sparkasse", "Caixa Econômica", com o nome oficial de "Cooperativa de Crédito Rural".
A Agência Central foi instalada em Porto Alegre, com filiais em 65 núcleos rurais. A fundação efetuou-se na Linha
Imperial, município de Nova Petrópolis, onde está o principal monumento a seu fundador. Itapiranga e São Carlos
tiveram suas Caixas Rurais, em 1932. A de Itapiranga continua hoje com notável movimento. O sistema é muito
semelhante ao das Cooperativas de Crédito, dos últimos anos (HEINEN, 1997, p. 72).
947
Como se pode perceber pelo mapa, a região de abrangência da colônia Porto Novo é delimitada por duas
fronteiras importantes: ao Sul com o estado do Rio Grande do Sul e a Oeste com a Argentina. Como veremos mais
adiante, esta situação de fronteira foi palco de cenas muito conturbadas durante o período do Estado Novo, com a
repressão aos alemães, visto que, nesta colônia de ocupação alemã, numa zona de fronteira, estava localizado um
povoamento homogêneo de alemães católicos. Além do mais, a proximidade com a fronteira Argentina se tornaria
outro agravante. Poderiam ser estes colonos ali estabelecidos uma ameaça à segurança nacional? Mais adiante,
aprofundaremos este assunto.
Em destaque, localização do atual município de Itapiranga – região que a partir de 1926 recebeu o projeto de
colonização Porto Novo. Fonte: http://www.infoescola.com/wp-content/uploads/2009/12/mapa-sc-
municipios.jpg. Acesso em: 10 nov. 2014.

178
1
Após efetivação da primeira compra de 100 lotes pela Volksverein, outros foram
comprados, chegando-se ao total de 583.975.705,40 metros quadrados de área (o equivalente a
58.397 hectares), posteriormente divididos em 2.340 lotes, cada qual com 24,8 hectares em
média, tornando-se esta, a delimitação territorial do projeto de colonização Porto Novo. Sobre
este fracionamento948 da colônia, ainda lemos:

O fracionamento da área colonizada, em comunidades, cujos lotes convergiam para o


centro da comunidade, onde se expressava, de maneira muito prática, a vida
comunitária, contribuiu para reforçar todos os valores religiosos prescritos pela Igreja.
As inúmeras formas associativas garantiram a construção de igrejas, escolas, estradas,
clubes sociais, áreas de lazer e outros (EIDT, 1999, p. 10).

948
Com o fracionamento, foram formadas comunidades (ver Figura 5, p. 50). Cada uma delas teve, ainda nos
primeiros anos, a construção de Schulkapelen – igrejas que serviam tanto de capela quanto de escola, como
veremos mais adiante. No entanto, é importante frisar que nestes “centros comunitários”, “a criação de escolas,
capelas, clubes sociais e grupos de divulgação da religião, entre outras instituições serviram para a consolidação e
manutenção das normas e de um código de ética estabelecidos pela Igreja” (EIDT, 1999, p. 10).
Porto Novo se diferenciava de qualquer outra colonização, especialmente pelo seu
modelo de separação étnico e confessional (RAMBO, 2011). Com a implantação do projeto de
colonização, um dos desafios passou a ser justamente o atendimento religioso permanente dos
colonos. Nesse sentido, “o bispo de Florianópolis, Dom Joaquim Domingues de Oliveira [...]
atendendo com urgência ao pedido, criou a paróquia de Porto Novo em 09/12/26 e nomeou
como primeiro vigário o Pe. Henrique Ofenhitzer, da Sagrada Família” (HEINEN, 1997, p. 96).
Portanto, os padres da Sagrada Família foram os primeiros a assumir a recém-criada paróquia,
que passou aos cuidados dos Jesuítas em 1931.

O desafio relacionado ao atendimento espiritual dos colonos alemães em Porto Novo


está associado à origem dos “compradores das terras”: para ter direito à posse, o comprador
deveria ser de origem alemã e católica. Com essas exigências, pretendia-se formar uma colônia
étnica e religiosamente homogênea, com famílias católicas e alemãs. “Os migrantes recrutados
deveriam enquadrar-se nos requisitos que a Igreja Católica impunha para a vanguarda dos
benefícios espirituais e cuidados culturais, além da socialização das oportunidades de trabalho”
(EIDT, 1999, p. 9). É possível denotar que o foco era formar uma colonização homogênea em
termos linguísticos e religiosos, diferente do modelo de colonização que ocorreu em outras 178
regiões de Santa Catarina, onde os lotes de terra eram comercializados a “qualquer interessado”,
2
visto que o modelo era “comercial”. Neste sentido, o projeto de colonização estabelecido em
Porto Novo se distinguiu de todos os outros modelos.

Gradativamente, a homogeneidade – claramente defendida pelo projeto da Volksverein


– se tornava realidade. Considerável progresso e procura por lotes de terras foram registrados
nos primeiros anos de implantação do projeto de colonização. Apesar das dificuldades iniciais
de implantar um modelo colonizador em meio à mata densa e virgem, sem nenhuma estrutura
de acesso, como estradas, por exemplo, Eidt (1999) considera que o espírito solidário e
comunitário foi essencial para que o modelo prosperasse.

Numa análise mais criteriosa, verificamos que, o que há em Porto Novo, é a instituição
de valores socialmente aceitos pelos seus moradores diante do olhar atento do clero, o que,
conforme a autora, é capaz de gerar comportamentos imobilizadores aos indivíduos que do
grupo participam, conferindo-lhes uma identidade própria:
Quando a gente ia na igreja no domingo de manhã, era como se toda a comunidade
fosse uma só família. [...] Naquela época a comunidade era uma família. Quando a
gente estava na Igreja nós éramos uma só coisa, como uma só família”. O primeiro
compromisso no domingo era com a Igreja, mas à tarde estavam livres para escolher
o que fazer (JORNAL EXPRESSÃO, 2012, ed. 337, p. 24).

O crescimento populacional da colônia era perceptível. Rohde escreve que o progresso


era evidente na nova colônia e esta saltava a olhos vistos. Cita como exemplo, o número de
pessoas que fixaram residência em Porto Novo no primeiro semestre de 1931, cinco anos após
o surgimento do empreendimento: “358 colonizadores migraram para Porto Novo entre 1º de
janeiro e agosto de 1931. Com isto o número de habitantes, contando-se os nascimentos
ocorridos aqui, chegava a quase 2.000 pessoas” (ROHDE, 2011, p. 153). Isso comprova que,
em poucos anos, a procura pelos lotes de terra em Porto Novo era significativa, o que Koelln
conclui: “Porto Novo crescia e prosperava sob uma direção segura e enérgica, incentivada e
apoiada pela Igreja Católica” (KOELLN, 1980, p. 57).

Os primeiros colonos que se instalaram em Porto Novo, eram filhos daqueles que
durante o século XIX haviam emigrado para o Rio Grande do Sul. “Somente por volta de 1932
os Bundesdeutsche, imigrantes vindos diretamente da Alemanha, os Deutscherumänen, da
Bessarábia, Romênia, assim como alemães que saíram de outras colonizações começaram a
178
migrar para a colônia da Volksverein” (WERLE, 2011, p. 178). 3
Anotações da visita pastoral949 realizada de 29 de novembro a 8 de dezembro de 1935,
que consta no Livro Tombo da paróquia São Pedro Canísio de Itapiranga, traz a seguinte
revelação quanto à homogeneidade religiosa de Porto Novo:

É esta parochia ainda nova, formada de colonos catholicos de origem allemã vindos
em sua grande maioria do Rio Grande Do Sul. Poucos os que vieram diretamente da
Europa, estabelecendo-se logo aqui! – há ainda nesta região que se vai colonizando
extensas mattas virgens de terras fertilíssimas. Ainda poucas terras que o braço
calorioso do colono amanhou ou antes começou amanhar. - Apesar da distancia em
que transita a via férrea, prevê-se que em breve futuro esta região prosperará sempre
mais e crescerá não pouco o número de seus habitantes que se irão internando pelas
florestas adentro (LIVRO TOMBO, 1935, p. 09).

A anotação segue da seguinte forma: “notamos com satisfação que o povo, sob a
dedicada e esclarecida direção dos Padres da Companhia de Jesus, é em geral crente, piedoso e

949
As visitas pastorais ocorriam geralmente a cada dois anos. Na oportunidade, o Bispo visitava as Paróquias e
Capelas de sua Diocese. As primeiras visitas à Paróquia São Pedro Canísio foram feitas pelo Bispo Prelado de
Palmas, a cuja Diocese, a Paróquia esteve ligada até 1958, quando foi criada a Diocese de Chapecó.
praticante da religião” (LIVRO TOMBO, 1935, p. 9). As expressões que classificam o povo de
Itapiranga como crente, piedoso e praticante da religião, certamente expressam a alegria e o
entusiasmo dos religiosos em relação à colonização formada, uma comunidade de orantes,
proteladores da fé cristã. Quanto à dedicada e esclarecida direção dos padres da Companhia de
Jesus e a prática dos princípios dos Estatutos Sociais Católicos da Itália, que eram diretrizes do
pensamento social do Papa Leão XIII, cujas bases do pensamento serviram de modelo para a
Sociedade União Popular, onde, entre eles, encontramos o de “concentrar todos os esforços dos
católicos do país para o mesmo objetivo: defesa, manutenção e desenvolvimento da fé e modo
de vida católico [...] Divisão territorial do país em associações diocesanas e sociedades locais.”
(ROHDE, 2011, p. 22). Quando a autora fala em defesa, manutenção, desenvolvimento da fé,
modo de vida católico e divisão territorial do País em sociedades locais, acreditamos que estes
tenham sido os princípios almejados pelos Jesuítas em Porto Novo, onde, numa organização
fechada para alemães católicos, constitui-se a comunidade desejada.

Outras anotações da visita pastoral realizada de 23 a 28 de abril de 1937, sustentam


todas as hipóteses levantadas anteriormente, e, mais uma vez, refere-se ao povo de Porto Novo,
como compenetrado da sua fé católica e cumpridor dos deveres religiosos, enaltecendo a 178
educação cristã ministrada na infância e juventude, conforme lemos:
4
Encontrámos aqui um povo compenetrado da sua fé catholica e cumpridor dos deveres
religiosos. A [...] da população em pezo, - de crianças, jovens, senhoras e homens, -
aos santos sacramentos e à S. missa, em todos os dias, foi a prova evidente do espirito
de catholicidade que aqui domina e da educação christã ministrada à infância e
juventude. É esta a nossa grande, e maxima satisfação; que pedimos a Deus queira
conservar perpetuamente nos corações dos moradores daqui (LIVRO TOMBO, 1937,
p. 11).

A anotação traz outra informação importante, relacionada à ordem e disciplina dos


moradores da paróquia: “Muito nos impressiona a ordem e disciplina do povo em todas as
manifestações e encontros que tivemos” (LIVRO TOMBO, 1937, p. 12).

A presença da igreja era muito forte nas comunidades. Ademais, no isolamento da vida
pioneira, sem a presença efetiva do Estado, a população via na igreja, especialmente na figura
do padre, a autoridade, a lei, a verdade. Mensalmente, o padre deslocava-se a cada uma das
comunidades, visitas que duravam um ou dois dias, dependendo do tamanho da comunidade.
Sobre essas visitas, Heinen esclarece:
Cada visita à capela era super-organizada e cronometrada em seus pormenores, nas
23 horas de permanência do padre na Comunidade. Também quando a visita era de 2
dias, nas comunidades maiores. A chegada do padre acontecia pelas 14 horas. Havia
alguém encarregado de tomar conta da montaria, desde a chegada até à partida. De
tarde havia catequese para os alunos da escola, depois confissões para quem desejasse.
Confissões depois da janta e de madrugada, à luz de "aladim". A missa cedinho, com
uma hora de claridade. Após o café, encontro com a diretoria e algum assunto
particular, até perto do almoço. Partida pelas 13 horas para a capela seguinte. Na visita
de 2 dias, um deles geralmente era domingo, com duas missas, benção do Santíssimo
Sacramento, Visita aos doentes da Comunidade. (HEINEN, 1997, p. 151)

A colônia Porto Novo se tornava referência para a Volksverein e era com frequência
estampada em propagandas, especialmente na revista ‘Skt. Paulusblatt’. Excerto do relatório
anual do Skt. Paulusblatt – 1930 faz referência à promissora colônia: “Os números provam, aos
leitores, que a evolução do empreendimento, está além do esperado [...] que Porto Novo se
tornasse o que é hoje: uma colonização modelar, com um futuro promissor” (apud ROHDE,
2011, p. 153). Para a autora, o progresso segue nos anos subsequentes e a colônia Porto Novo
representa um empreendimento exitoso, nunca antes visto entre os sistemas de colonização.
Para a Volksverein, significava a realização de um ideal. Em 1938, Porto Novo contava com
mais de 6 mil habitantes, distribuídos em 17 comunidades (ROHDE, 2011).

A homogeneidade, especialmente aquela de caráter religioso, vista em Eidt como


178
“sonho cristão”, apresenta resquícios na antiga colônia Porto Novo pelo menos até a década de 5
1970. Reportagem do Jornal Força d’Oeste alusiva à comemoração dos 60 anos de emancipação
política e administrativa de Itapiranga, traz uma entrevista de um sujeito cuja família veio
residir em Itapiranga nos anos 70 (cinco décadas depois do início da colonização). Não eram
católicos, por isso, mantinham segredo quanto à religião proferida, por medo de sofrerem
preconceito:

[...] no início dos anos 70, quando a família veio a Itapiranga, 90% das pessoas
falavam a língua alemã e 100% da população era católica. De berço, a religião da
minha família é evangélica. Quando chegamos, não contamos a ninguém que não
éramos católicos. Mensalmente frequentávamos os cultos na igreja evangélica em
Pinheirinho do Vale. Como ninguém ficou sabendo que éramos evangélicos, nossa
família não sofreu preconceito ou discriminação, mas, acredito que se revelássemos
nossa religião, seríamos vistos com outros olhos, porque naquele tempo a colônia
Porto Novo foi criada para abrigar alemães católicos e nós estávamos cientes que não
nos enquadrávamos no requisito religioso [...] Se na época eu teria chegado a alguém
para pedir emprego e me apresentasse como evangélico, dificilmente conseguiria
trabalho (JORNAL FORÇA D’OESTE, edição 846, p. 03).
A abordagem do contexto religioso em Itapiranga também pode ser analisada nos dias
atuais, através duma contextualização em torno da presença da Igreja Católica através dos
padres Jesuítas. Vejamos o que o Pároco Dionísio Koerbes diz para o jornal citado
anteriormente, em ocasião da mesma reportagem especial:

A igreja acompanhou toda história do município. Houve momentos fortes da presença


eclesial e continua havendo uma presença muito importante no município. Apesar das
manifestações, a maneira de verbalizar a fé tem mudado. [...] temos muito claro de
que precisamos ser uma presença para todos, em qualquer contexto e ambiente.
Tentamos ser uma presença motivadora, alegre, acolhedora, viver a vida em família.
São novos tempos e precisamos acompanhar, estar atentos às mudanças, acompanhá-
las. Não podemos esquecer da importância de sermos humanos e saber perdoar.
Estamos vivendo juntos, se entristecendo, alegrando e participando do convívio. Acho
que a própria história nos exige este novo posicionamento (JORNAL FORÇA
D’OESTE, edição 846, p. 06).

Essa informação do sacerdote reforça a tese de que os valores religiosos prescritos pela
Igreja foram pautados num conjunto de prerrogativas assimiladas pelos moradores de Porto
Novo desde o início de sua colonização e perpetuados ao longo destas décadas, influência
descrita pelo sacerdote como presença e acompanhamento. Essa presença eclesial ainda é
considerada muito importante ao município: “A Igreja se constituía numa unidade poderosa em
torno da qual tudo se ramificava. Nas desavenças entre os migrantes pioneiros, o clero arrogava-
178
se o direito de estabelecer a verdade” (EIDT, 2011, p. 25). E conclui: 6
No isolamento da vida pioneira, a transmissão de saberes passava pela linhagem
familiar ou pela instituição escola/Igreja. Sem parâmetros exógenos, as instâncias da
família, escola e religião transmitiram os valores e os ideais da cultura. Assim, o
mundo, limitado e restrito, limitou possibilidades e serviu como ponto de
estrangulamento, gerações inteiras foram vítimas do silêncio e do debate impermeável
(EIDT, 2011, p. 22-23).

Uma análise mais detalhada dos resumos anuais do Livro Tombo da Paróquia São Pedro
Canísio de Itapiranga, dão uma noção sobre o “crescimento” do trabalho pastoral, chamado
também de movimento religioso do clero na colônia, especialmente a partir do ano 1931,
conforme o quadro a seguir, elaborado com base nas informações e registros:
Quadro 1 - Movimento religioso da Paróquia São Pedro Canísio

Fonte: Livro Tombo. (*) – Sem valor de referência registrado950.


178
Várias análises podem ser feitas em torno dos números anuais significativamente 7
crescentes, associados ao movimento religioso, mas, talvez a mais correta possa estar numa das
anotações do próprio livro de registros feita pelo clero: “O movimento religioso também
aumentou consideravelmente já porque tem entrado mais moradores já por serem mais zelosos
a grande maioria frequentam muitas vezes a sagrada comunhão, muitos cada mez por ocasião
da visita mensal das capellas”. Mais adiante, outra anotação revela que “tem entrado mais
famílias que se devem acomodar às leis aqui estabelecidas” (LIVRO TOMBO, 1932, p. 8).
Dizer que as famílias devem se acomodar às leis aqui estabelecidas, significa afirmar que em
Porto Novo havia, de fato, a consolidação de uma comunidade que estava alicerçada em
princípios próprios, que atribuíam uma conduta seguida e respeitada pelos indivíduos. Isso vem
fortalecer a teoria quanto à existência de uma organização, à qual todos deveriam se sujeitar,

950
Se, como vimos, em 1938 Porto Novo contava com uma população de 6 mil habitantes, considerando adultos
e crianças, e, o número de confissões registradas de 22.558 e comunhões de 35.871, considerando ainda que as
crianças que ainda não haviam recebido o sacramento da Primeira Comunhão não confessavam nem comungavam,
concluímos que era expressiva a participação dos habitantes nas missas, gerando assim, grande movimento
religioso anual. Essas informações confirmam que efetivamente os colonos eram ativos na participação religiosa.
onde “normas sociais e religiosas (comportamento, condutas, valores...) eram repassados pelo
clero e incorporados pela população”. Nesta análise, a preocupação do clero consistia na
“necessidade de um controle mais efetivo e vigilante na entrada de novos moradores no
município, bem como uma maior uniformidade de pensamento” (EIDT, 1999, p. 22-23).
Quanto à manutenção da prática religiosa e a valorização do sentimento religioso pelas
companhias colonizadoras, Nodari argumenta:

[...] muitas companhias sabiam que o atendimento religioso na comunidade era


importante para a manutenção das práticas socioculturais e, no Rio Grande do Sul, já
contavam com a presença regular de padres e pastores. Dessa forma, a valorização do
sentimento religioso passou a fazer parte da propaganda das colonizadoras (NODARI,
2009, p. 45).

Assim, justifica-se a formação homogênea de Porto Novo em torno dos quesitos


religiosos e étnicos, sendo estes uma maneira interessante de atrair pessoas que pretendem
conviver com indivíduos do mesmo credo ou etnia, mantendo suas práticas sócioculturais,
“definindo, assim, num primeiro momento, uma cultura étnica que gerava solidariedades no seu
interior e que os mantinha distantes de tensões internas e externas” (NODARI, 2009, p. 47). A
homogeneidade religiosa era defendida pelo clero, entre eles, Pe. Lassberg, que “era insistente
toda vez que falava de colonizações argumentando que a convivência entre protestantes e
178
católicos deveria ser amistosa, mas que os evangélicos deveriam morar numa picada e os 8
católicos numa outra” (JUNGBLUT, 2015, p. 71).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em linhas gerais, a colonização de Porto Novo teve características de relativa


homogeneidade étnica e religiosa. Executado pela Volksverein e desenvolvendo-se em meio a
uma região de matas cujos limites geográficos são o estado do Rio Grande do Sul e a República
Argentina, a colônia atraiu milhares de colonos a partir de 1926 oriundos principalmente das
colônias velhas do Rio Grande do Sul, graças às propagandas estampadas com frequência em
periódicos. Pelas características abordadas ao longo do estudo, podemos seguramente concluir
que Porto Novo se diferenciava dos demais modelos de colonização da época, justamente por
ter direcionado a venda de seus lotes a indivíduos que se enquadravam a um “perfil desejado”:
ser católico e alemão.
Todo processo teve a articulação dos padres Jesuítas, que estavam à frente da
Volksverein, ou seja, eram os principais articuladores mentores da organização coletiva teuto-
católica, exercendo estes, o controle social da colônia diante da ausência do Estado durante os
primeiros anos de existência do povoado.

Esta homogeneidade constituída, especialmente a étnica, foi determinante para as


consequências que Porto Novo passaria a sentir a partir da instituição do Estado Novo e da
Campanha de Nacionalização a partir de 1937, quando a colônia passa a ser vista como “quisto
étnico”, uma “ameaça à segurança nacional”. Prometida como uma colonização com “terras
cultiváveis de primeira classe”, Porto Novo significou para muitos, uma alternativa de um
futuro melhor, numa nova fronteira de colonização.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMSTAD, Theodor. Cem anos de germanidade no Rio Grande do Sul-1824-1924. São


Leopoldo: Ed. da Unisinos, 2005.
178
EIDT, Paulino. Porto Novo: da escola paroquial ao projeto de nucleação – uma identidade em
crise. Ijuí: Editora da Unijuí, 1999. 9
FRANZEN, Douglas Orestes. Frigorífico Safrita de Itapiranga: um projeto de
desenvolvimento regional no extremo oeste catarinense. Porto Alegre: Letra e Vida, 2014.

HEINEN, Luiz. Colonização e desenvolvimento do Oeste de Santa Catarina – aspectos


sócio-políticos, econômicos e religiosos. Joaçaba: UNOESC, 1997.

JUNGBLUT, Roque. Documentário Histórico de Porto Novo. São Miguel do Oeste: Arco
Íris Gráfica e Editora, 2000.

_____. Max von Lassberg: vida – obras – tributos. Porto Alegre: Letra e Vida, 2015.

KLAUCK, Samuel. Representações da organização familiar e comunitária dos teuto-brasileiros


católicos do Rio Grande do Sul a partir da revista St. Paulus-Blatt (1912 a 1934). História:
debates e tendências, Passo Fundo, v. 14, n. 1, jan./jun. 2014, p. 141-152.
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Mondaí: Coordenadoria Municipal de Ensino, 1980.

MIDDELDORF, Bearbeitet Von Carl. Porto Novo: Urwaldsiedlung deutscher katoliken in


Südbrasilien. Porto Alegre: Tipografia do Centro, 1933.

NEUMANN, Rosane Márcia. Imigração e identidade étnica: a construção do “ser alemão” no


Sul do Brasil. História: debates e tendências, Passo Fundo, v. 14, n. 1, jan./jun. 2014, p. 94-
107.

NODARI, Eunice Sueli. Etnicidades renegociadas: práticas socioculturais no oeste de Santa


Catarina. Florianópolis: UFSC, 2009.

_____. A dor do esquecimento: as marcas da ditadura Vargas no Oeste de Santa Catarina.


Florianópolis: História Oral, v. 12, n. 1-2, p. 157-176, jan.-dez., 2009.

OUDESTE, Claudia Stumpf Toldo. Quatro histórias reais da sexta coluna. Passo Fundo:
Passografic, 2012.

RABUSKE, Arthur e RAMBO, Arthur Blásio. Pe. J. E. Rick, Sj: Cientista, colonizador, 179
apóstolo social, professor. São Leopoldo: Unisinos, 2004.
0
RAMBO, Arthur Blásio. Somando forças: o projeto social dos Jesuítas do sul do Brasil. São
Leopoldo: UNISINOS, 2011.

ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Tradução Emery Ruas. Porto
Alegre: Editora Globo, 1969.

ROHDE, Maria W. Espírito Pioneiro: a herança dos antepassados. Itapiranga: Gráfica e


Editora Porto Novo, 2011.

WERLE, André Carlos. Porto Novo: o reino jesuítico germânico no oeste de Santa Catarina.
Curitiba: CRV, 2011.

FONTES
ARQUIVO HISTÓRICO DA PARÓQUIA SÃO PEDRO CANÍSIO. Livro Tombo da
Paróquia. Itapiranga, SC.

JORNAL Força d’Oeste. Edição 846.

JORNAL Expressão. Edição 337.

179
1
1936: CONTRA OS TRABALHADORES E O COMUNISMO, O TRIBUNAL DE
SEGURANÇA NACIONAL (TSN)*

Diorge Alceno Konrad**

RESUMO

Em 1935, a pretexto de combater os chamados “crimes políticos e sociais”, foi aprovada no


Brasil a Lei de Segurança Nacional (LSN). Esta se mostrou insuficiente para julgar e condenar
os que realizaram a Insurreição Nacional Libertadora de Novembro de 1935, mesmo que ali ela
tenha sido severamente aplicada. Em meados de julho do ano seguinte, surgiram as primeiras
notícias de que o presidente da República, Getúlio Vargas, criaria uma justiça especial para
julgar os nacionais libertadores e quem mais fosse necessário. Articulava-se a criação do

179
Tribunal de Segurança Nacional (TSN), complementar à LSN, agora como um tribunal de
exceção. A conjuntura de proposição e votação do Tribunal Especial, ainda na vigência do
Estado de Guerra, em decorrência dos episódios de novembro de 1935, vinha acompanhada da 2
divulgação de novas prisões de comunistas e trabalhadores pelo País. A comunicação visa
apresentar os desdobramentos da criação do TSN e como ele atingiu trabalhadores e comunistas
que resistiam à fascistização do governo de Getúlio Vargas na década de 1930.

Palavras-Chaves: Trabalhadores; Comunismo; Tribunal de Segurança Nacional.

*
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria. Este
artigo apresenta extratos modificados e atualizados de partes dos capítulos 5 e 6, respectivamente, Antifascismo e
repressão política/O “perigo comunista” justificando a repressão político-policial e a criação de um Tribunal
Especial, da tese de doutorado do autor, O fantasma do medo: o Rio Grande do Sul, a repressão policial e os
movimentos sócio-políticos, orientada por Michael Mcdonald Hall, e defendida na UNICAMP em 2004.
**
Professor Associado do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM). Doutor em História Social do Trabalho pela UNICAMP. E-mail: gdkonrad@uol.com.br.
Em 1935, o Brasil atravessava uma conjuntura política de radicalização das posições
ideológicas. Muitos dos que haviam apoiado Getúlio Vargas em 1930 dirigiram-se para a
esquerda na Aliança Nacional Libertadora (ANL), ou para a direita na Ação Integralista
Brasileira (AIB).

Vargas e seus aliados estavam em luta pela aprovação da Lei de Segurança Nacional
(LSN) e, consequentemente, um maior fechamento do regime. Já a oposição liberal-democrata
temia a diminuição das liberdades públicas, mas horrorizava-se com qualquer perspectiva de
radicalização à esquerda; e a esquerda, tendo a frente o Partido Comunista do Brasil (PCB) e a
sua tática de classe contra classe, organizava-se em frente popular propondo reformas radicais
no desenvolvimento capitalista no Brasil, via ANL. Nessa conjuntura de disputas políticas e de
radicalização das movimentações táticas, os confrontos de projetos ampliavam-se cada vez
mais.

No início de 1935, enquanto os movimentos sócio-políticos procuravam construir


greves econômicas e/ou políticas, além de reforçar a ANL, organizada oficialmente em 30 de
março deste ano. Em menos de quatro meses de legalidade, a Aliança organizou cerca de 1600
comitês em todo o país. Em seu Manifesto-Programa, defendia, entre outros: a nacionalização
179
das empresas imperialistas; o direito do povo manifestar-se livremente; a entrega dos latifúndios 3
ao povo laborioso que os cultivasse e a libertação das camadas camponesas pagos pelo
aforamento ou pelo arrendamento da terra, além da anulação total das dívidas agrícolas. Por
outro lado, o governo de Vargas, encaminhava medidas para conter qualquer avanço popular,
não admitindo as relativas liberdades políticas conquistadas a partir da Constituição
promulgada no ano anterior. Além disso, outra marca da ANL foi seu caráter profundamente
antifascista, no caso brasileiro, em oposição ao também crescente integralismo.

Sua importância foi resumida pela historiadora Anita Leocádia Prestes (s/d.): “No caso
brasileiro, a Aliança expressou as insatisfações generalizadas surgidas na sociedade (em
particular com os resultados do Governo Vargas)”, as quais “se concretizaram no programa
antiimperialista, antilatifundista e antifascista levantado pelo PCB, com o apoio da
Internacional Comunista (IC)”.

As greves representavam um novo salto de organização do proletariado, resultando em


sua organização institucional: na data histórica do Primeiro de Maio, um Congresso com
quatrocentos sindicatos de onze estados fundou a Confederação Sindical Unificada do Brasil
(CSUB).

Com a LSN, aprovada no Congresso Nacional em abril, o temor do PCB de expor os


seus principais líderes aumentou. Ao ser convidado para assumir a Presidência de Honra da
ANL, Prestes respondeu em carta para Hercolino Cascardo, seu presidente oficial, em 21 de
maio, como se estivesse em Barcelona e não no Rio de Janeiro951. Era um subterfúgio para fugir
à ação da polícia de Filinto Müller que desconfiava da presença de líder revolucionário no país.

O PCB, então abrigado essencialmente na ANL, aumentava as suas ações visando maior
visibilidade política na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, por continuar na ilegalidade,
expunha-se a riscos maiores diante da repressão policial.

Quanto mais procurava se organizar o PCB, mais a repressão recaía sobre os seus
militantes. No dia 22 de maio, no Rio de Janeiro, em devassa a casas suspeitas, a polícia prendeu
em torno de vinte pessoas, portando material de propaganda, levando-os à DOPS, que agia
incansavelmente. A repressão também decorria do sucesso do comício da ANL que reuniu no
Rio de Janeiro mais de seis mil pessoas, em 13 de maio. Repressão e maior mobilização era o 179
duplo da conjuntura, tanto que no dia 25, as mulheres aliancistas e antifascistas fundaram a
União Feminina do Brasil (UFB).
4
A ampliação da organização da ANL e da mobilização dos trabalhadores, além de maior
atuação pública do PCB, nos finais de junho de 1935, fez circular constantes boatos e notícias
na imprensa de que o governo tomaria novas providências em relação a medidas repressivas
contra os movimentos sociais e políticos de oposição. No dia 25, no Rio de Janeiro, já se
divulgava que Filinto Müller entregara a Vargas um grosso relatório sobre as atividades
oposicionistas na capital e as “suas ramificações pelos estados”, de maneira a “deixar bem clara
a necessidade de providências acauteladoras do regime”.

Em São Paulo, no dia 21, o governo do estado criou a Polícia Especial, subordinando-a
a Secretaria de Superintendência de Ordem Política e Social. A justificativa foi de que a polícia

951
A carta foi publicada posteriormente em A Classe Operária, órgão do Comitê Central do PCB, nº 185, na edição
de 20 de junho. Cf. edição original do jornal do Fundo DOPS, Setor Comunismo, Pasta 4, Arquivo Público do
Estado do Rio de Janeiro.
do estado necessitava de “um aparelhamento de repressão capaz de atuar com presteza e eficácia
nos casos de grave perturbação da ordem pública, a exemplo das outras organizações
congêneres existentes em outros centros”952.

No Rio Grande do Sul, a Aliança953 recém estava lançando oficialmente a entidade


estadual. O crescimento aliancista verificado até então fez com que os setores conservadores
reagissem a ela, marcados pelo anticomunismo. Ainda em julho, sob o comando de Dom João
Becker, foi fundada a Ação Social Brasileira (ASB), cujo programa defendia a luta direta ou
velada contra o comunismo e aproximava os seus membros do integralismo

Mas o motivo esperado por Vargas viria com o Manifesto de Luiz Carlos Prestes, de 5
de julho de 1935, quando solicitou todo o poder à ANL. O manifesto de Prestes foi justificativa
para Vargas determinar o fechamento da ANL, por sugestão de Góis Monteiro, através de
decreto nº 229 de 11 de julho. Em todo o país, a polícia passou a invadir, fechar e lacrar as sedes
da entidade, justificada para “impedir a expansão das ideias extremistas” e o “perigo
comunista”.

Na Câmara dos Deputados, reuniões da maioria com a minoria, procuravam um 179


entendimento partidário das classes dominantes brasileiras, utilizando a velha tática de tratar as
questões sociais como caso de polícia. Para os integrantes da minoria, a decisão só seria de
5
“combater abertamente o extremismo e apoiar-se na maioria, se preciso, no caso em que os
extremistas, indo da palavra a ação”, procurassem “derrubar o regime por meios violentos”.

Um dia após o fechamento da Aliança, seu presidente Hercolino Cascardo declarou para
o jornal A Manhã que desconhecia a medida oficial, acusando Filinto Müller de “difamar a
reputação de milhões de brasileiros dedicados de corpo e alma à libertação de sua pátria”.
Negava as acusações de que a ANL era comunista e ameaçava o chefe de polícia de levá-los
aos tribunais por aquelas acusações. Pouco depois a polícia acatou o decreto governamental que
também ordenava fechar, através do decreto nº 246, todas das sedes da UFB, organização que
não chegou a completar dois meses de existência.

952
Cf. a íntegra desse decreto, sob nº 7.221, na Coleção de Leis e Decretos do Estado de São Paulo 1935. Tomo
XLV, 1º Vol., 1º Semestre. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1935, p. 655
953
Sobre a organização, crescimento, atuação e fechamento da ANL no Rio Grande do Sul, ver minha dissertação
de mestrado 1935: a Aliança Nacional Libertadora no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: PUC-RS, 1994,
especialmente p. 140-317.
A ANL tentou resistir ao seu fechamento, conclamando os trabalhadores a fazer greve
contra o ato arbitrário de Vargas. Em São Paulo, no dia 15, em uma reunião no Sindicato dos
Empregados no Comércio, quando se tentava organizar a juventude a favor da ANL, através do
Órgão da Juventude Popular, Estudantil e Proletária, a polícia invadiu o local, prendendo vários
jovens. No dia 16, os operários do Lanifício Eilet – Armênio e da Estofaria Matarazzo
declararam-se em greve parcial, por motivo do fechamento da ANL. Houve pequeno conflito
entre os operários que deixaram o trabalho e os que nele permaneceram, porque a polícia não
permitiu que os grevistas incitassem os outros as deixar as fábricas. Em todo o Brasil, os
aliancistas e comunistas passaram a incitar o operariado à greve geral. Em decorrência, ainda
em julho, o governo Vargas mandou fechar a CSUB

Fora do país, a ANL passou a servir de exemplo concreto da política de frente


antifascista e antiimperialista, decidida como forma de organização prioritárias pelo VII
Congresso da IC, ocorrido em Moscou entre a última semana de julho e a primeira de agosto.

O PCB também procurou reagir. Em agosto de 1935, programou um mês de protestos


por todo o país. Estavam dados os primeiros passos para a Insurreição Nacional-Libertadora de
Novembro de 1935.
179
Nesse momento, ampliava-se em todo o Brasil o discurso contra a ANL, acusando o
6
PCB de esconder-se através de sua sigla e de estar a serviço de Moscou. Assim, qualquer
tentativa de organizar resistência legal ao fechamento da Aliança, aparecia para os setores
conservadores como movimentação dos “extremistas”.

Em agosto de 1935, o PCB programou um mês de protestos por todo o país. No Rio de
Janeiro, as atividades começaram no primeiro dia do mês, sendo já esperadas pela polícia,
especialmente pela seção de Segurança Política e Social, que tomou as necessárias providencias
para impedir diversos comícios anunciados. A manifestação, denominada “Jornada Vermelha
Internacional Contra a Guerra Imperialista”, que no momento vinha acompanhada de protestos
contra o fechamento da ANL, consistia na realização de comícios em praça pública. Porém, os
locais escolhidos não eram permitidos pela polícia.

Cada vez mais a polícia apertava o cerco sobre integrantes do PCB e da ANL. Esta
funcionava clandestinamente e quase que exclusivamente com militantes comunistas. Se os
avanços das greves e a criação da ANL serviram de justificativas para o estabelecimento da
LSN, no início de 1935, a decisão da aplicação tática do PCB, após a ilegalidade da Aliança,
traria a justificativa final e esperada para o governo Vargas fechar o regime de vez, acabando
com os poucos resquícios de liberdades civis que haviam sido conquistados na Constituição de
1934. Entretanto, é de se ressaltar que, como identifica Edgard Carone (1991, p. 217), diante
da crise econômica e social vigente, das críticas que Vargas vinha sofrendo da oposição na
Câmara Federal e das greves que aparentavam uma determinação crítica do operariado, havia
um reforço da ideia de possibilidade de tomada do poder, concretizada em novembro.

Em 23 de novembro, iniciou a insurreição em Natal, no 21º Batalhão de Caçadores, de


forma espontânea, pois não havia a autorização do Comitê Central do PCB. No dia seguinte, os
rebeldes tomaram o controle de Natal, inclusive soltando todos os presos políticos (sob a
liderança de Giocondo Dias, que saiu do hospital mesmo ferido, pois havia sido atingido em
combate no primeiro dia), constituindo a Junta Revolucionária ou Governo Popular.

Este não durará mais que dois dias, pois o governo federal, através de forças civis e
militares e contando com pesado armamento, dominou a situação na capital e no interior do
estado. Iniciava, então, um período de ampla repressão no Rio Grande do Norte.
179
No dia 25, explodiu o movimento em Pernambuco em decorrência da decisão do Comitê
7
Militar Revolucionário, após tomar conhecimento da eclosão em Natal. Os rebeldes tomam
inicialmente o 29º BC, em Recife, e após a Vila Militar em Socorro e o destacamento policial
de Jaboatão, além de estabelecer conflitos em Olinda e Paulista. Mas isolados, logo são
derrotados. Como em Natal, a repressão ao movimento foi violenta, haja vista as várias mortes
ocorridas entre as forças rebeldes e as forças leais ao governo federal.

Enquanto era decretado o Estado de Sítio, o movimento nacional-libertador era


articulado para acontecer nos quartéis do Rio de Janeiro. Após reunião na casa de “Harry
Berger”, com a presença de Rodolfo Ghioldi, Luiz Carlos Prestes, Olga Benário e Antônio
Maciel Bomfim, o Miranda, ou Adalberto de Andrade Fernandes, o secretário geral do PCB,
foi tomada a decisão final954. Na passagem de 26 para 27, o movimento atingiu principalmente

954
Ainda no dia 25, Prestes enviou bilhete, cujo envelope foi subscrito pelo major Alcedo Batista Cavalcanti, para
André Trifino Corrêa, afirmando que no Rio de Janeiro não poderiam esperar mais de dois ou três dias, enquanto
contava com ele para dirigir a revolução em Minas Gerais. O bilhete foi apreendido posteriormente pela polícia.
o 3º Regimento de Infantaria, na Praia Vermelha, no qual a resistência legalista coordenada
pelo comandante da 1ª Região Militar general Eurico Gaspar Dutra e comandada pelo general
João Gomes e pelo coronel Newton Cavalcanti foi cerrada, resultando em amplo combate entre
os adeptos do regime e os militares rebeldes, a maioria deles sendo aprisionada ou tentando a
fuga para a Fortaleza de São João. O resultado do combate foi o quartel semidestruído pelo
tiroteio e a ocorrência de várias mortes. O movimento também se espalhou pela Escola de
Aviação, no Campo dos Afonsos.

Após a Insurreição Comunista do Nordeste e da Capital Federal 955, alcunhada desde o


primeiro momento pelas forças conservadoras como “intentona comunista”, as prisões
passaram a acontecer em massa, hoje amplamente comprovada muito pelas delações efetuadas
por Johnny de Graaf (ou Paul Gruber), que todos pensavam ser um espião da Gestapo, ainda no
decorrer dos insucessos de 1935, mas na verdade era um espião do serviço de inteligência
inglesa, chamado formalmente de Secret Inteliggence Service (SIS), com seu apelido popular
MI-5956.

No Rio de Janeiro, a polícia comandada por Filinto Müller foi distribuída em todos os
pontos da cidade, sendo que o próprio capitão organizou o serviço de todas as delegacias, além
179
de predispor funcionários da prefeitura para possíveis novas emergências. A repressão contou 8
com o apoio dos governos estaduais e das correntes oposicionistas liberais, todos dispostos a
fortalecer o governo e a defesa do regime vigente. No início de dezembro, a Minoria
Parlamentar também se apresentava disposta a apoiar todas as medidas tomadas por Vargas,
desde que com a instituição das leis ordinárias, sendo contra emendas constitucionais tomadas
durante o Estado de Sítio.

A narrativa conservadora sobre a “Insurreição Comunista” rapidamente foi construída


como uma “revolução estrangeira” para atrelar o Brasil ao bolchevismo, tornando-o uma
“província da URSS”, haja vista que os estrangeiros haviam se reunido para deliberar a

Ver o prontuário Crimes do PCB, Fundo DESPS, Setor Dossiês, Notação 55, APERJ. A mesma carta tem cópia
no prontuário de Walter Pompeu. Ver idem, Notação 231, APERJ.
955
Um aprofundamento em torno da Insurreição Comunista de 1935 pode ser visto em VIANNA, Marly.
Revolucionários de 35: sonho e realidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Parte da documentação sobre
a Insurreição encontra-se no livro organizado pela mesma autora: Pão, terra e liberdade. Memória do Movimento
Comunista de 1935. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, São Carlos: Ed. da UFSCar, 1995.
956
Sobre isto ver: ROSE, R. S. Johnny: a vida do espião que delatou a rebelião comunista de 1935. Rio de Janeiro:
Record, 2010.
revolução no país. Com os movimentos dos quartéis, acontecidos em Natal e Recife e orientados
pelo PCB, no dia 26 de novembro de 1935 foi decretado o Estado de Sítio, sob nº 457, sendo
suspensas por trinta dias pelo governo federal, com apoio da Câmara dos Deputados, todas as
franquias constitucionais.

Preparava-se, assim, o “espírito público” para medidas ainda mais repressivas,


sobretudo com a indicação da criação de um tribunal de exceção e a prorrogação, por mais
noventa dias, do Estado de Sítio, que expirava no dia de Natal de 1935.

Na passagem de 1935 para 1936 se ampliou a campanha anticomunista na imprensa,


enquanto que a censura à mesma continuava. Boa parte das matérias e reportagens, além dos
editoriais permanecia insistindo na tecla da responsabilidade soviética sobre as insurreições de
novembro, dos “assassinatos frios” cometidos contra os soldados “defensores das instituições”,
além de antecipar uma espécie de discurso comum ao período da chamada “Guerra Fria” e de
boa parte dos argumentos para explicar o episódio até hoje.

Em 13 de janeiro foi preso Antônio Maciel Bomfim e outros nomes clandestinos, em


um apartamento na avenida Paulo de Frontim, com extensa documentação do Secretariado 179
9
957
Nacional do PCB . Com ele estava Elvira Capelo Caloni (ou Elza Fernandes, a Garota),
utilizada mais tarde pela polícia para prender outros militantes do PCB. Treze dias depois,
foram presos por uma barreira policial, no Rio de Janeiro, Rodolfo Gholdi e sua mulher, quando
tentavam se dirigir a São Paulo.

O ano de 1936 marcou seu início com a consolidação da Comissão Nacional de


Repressão ao Comunismo (CNRC), organizada a partir do dia 10 e comandada desde a Câmara
dos Deputados por Adalberto Correia, contando com o apoio de todo o governo federal.
Instalada no sétimo andar do prédio do Ministério da Marinha, no centro do Rio de Janeiro, no

957
Após a prisão Bonfim passou a sofrer intensas torturas, onde até lhe arrancaram as unhas, chegando a perder
um rim em decorrência da violência com que foi tratado, o que provocou denúncias na Câmara dos Deputados
efetuadas por Octávio da Silveira, que responsabilizou Getúlio Vargas pelos maus tratos aos prisioneiros políticos.
Após a morte de Elvira, imputada pela polícia ao PCB, Bonfim passou a fazer declarações que comprometeram
seus camaradas do PCB e da ANL, fato que lhe vincularam a antigas desconfianças, desde que entrara no Partido,
de que era agente policial. Entretanto, não se tem evidência desse tipo nos arquivos pesquisados da polícia política,
levando até o momento à conclusão de que ele apenas passou a colaborar com a polícia após a morte de Elvira.
Ver seu verbete em ABREU, Alzira; BELOCH, Israel; LATTMAN-WELTMAN, Fernando; LAMARÃO, Sérgio
Tadeu de Niemeyer (Coords.). Dicionário histórico-bibliográfico brasileiro pós-1930. 5 vols. 2ª ed. Rio de Janeiro:
CPDOC/Ed. da FGV, 2001, p. 704-5.
dia 23 de janeiro, tinha a presença do almirante Dario Paes Leme, do general Coelho Netto e
do próprio Adalberto Correia. Aparecendo como “um órgão de defesa das instituições
vigentes”, a Comissão informava na data de seu lançamento que não aceitaria “denúncias
anônimas quer contra funcionários, quer contra particulares” (sic).

O comunismo, considerado como inimigo público número um, desde os levantes de


Natal, Recife e Rio de Janeiro e suas relações com o Komintern, passou a ter desde 26 de
janeiro, um efetivo organismo de combate, aliado das práticas policiais que vigoravam até
então.

No início de março, a polícia brasileira praticamente já havia prendido todos os líderes


da Insurreição de novembro, enquanto continuava a deter e processar quaisquer militantes
comunistas em atividade no país. Entretanto faltava o líder maior: Luiz Carlos Prestes.

A procura da polícia carioca por Prestes terminou no dia 5. No bairro do Méier, na rua
Honório, foram localizados Prestes e Olga Benário, presos por mais de cinqüenta agentes da
Polícia Especial comandados por Francisco Julien, depois da revista em quase trinta casas. O
“Cavaleiro da Esperança” não ofereceu resistência à prisão, enquanto Olga se postou na sua 180
frente em função das ameaças de policiais de atirar em Prestes.
0
Dali foram encaminhados para a Chefatura da Polícia, sem saber que em seguida seriam
separados pelo resto das suas vidas958. Prestes, depois de levado à Polícia Especial, comanda
por Euzébio de Queiroz, ficou preso no quartel do Morro Santo Antônio959.

958
Prestes e Olga nunca mais se viram. Apenas trocaram correspondências até 5 de novembro de 1941, pouco
tempo antes da execução de Olga no campo de concentração de Berburg, no início de 1942, fato que Prestes só
ficou sabendo em definitivo em 1945. Essas correspondências podem ser vistas em PRESTES, Anita Leocádia;
PRESTES, Lygia (Orgs.). Anos tormentosos: Luiz Carlos Prestes. Correspondência da Prisão (1936-1945). Vol.
III. Rio de Janeiro: Paz e Terra/APERJ, 2002, p. 283-463. Sobre uma biografia de Olga Benário Prestes, cf.
MORAIS, Fernando. Olga. 11ª ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1986; WERNER, Ruth. Olga Benário. A história de
uma mulher corajosa. São Paulo: Alfa-Ômega, 1989. Ver sobre isto, também em PRESTES, Anita Leocádia. Luiz
Carlos Prestes: um comunista brasileiro. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 192-196.
959
Prestes ficou ali de março de 1936 até 8 de julho de 1937 (depois transferido para a Casa de Correção), onde,
conforme contou posteriormente, não foi tocado fisicamente, mas teve torturas morais continuadas, insultos e
vexames de toda sorte, com a formação de pelotões de fuzilamento na porta de seu quarto. Para ele, o mais doloroso
foi ouvir, pela janela de seu quarto, os gritos de operários, mulheres, etc., acontecidos diariamente entre vinte e
duas horas e três da madrugada. Prestes contou que os espancamentos ficaram intensos entre abril e maio de 1936,
principalmente de “Harry Berger” e de marinheiros (cuja violência era comandada por Lúcio Meira). Cf.
PRESTES, Luiz Carlos. Depoimento perante a Comissão de Inquérito sobre Atos Delituosos da Ditadura. Rio de
Janeiro: Vitória, 1948, especialmente p. 4-20.
No final de março, enquanto que no Rio Grande do Sul os partidários de Flores da Cunha
acusavam o jornalista Assis Chateaubriand de tentar intrigar o governador do estado com o
Partido Republicano Paulista (PRP) e com Getúlio Vargas, em plena vigência da “pacificação
política rio-grandense”, no Palácio Rio Negro, em Petrópolis, Vicente Ráo levava para o
presidente Vargas a apreciação da mensagem que o governo solicitava da Comissão Permanente
do Senado Federal a prorrogação do Estado de Sítio por mais trinta dias. Os motivos alegados
para a solicitação da medida eram: 1º) Não estava ainda totalmente dominada no país a rebelião
irrompida em novembro de 1935; 2º) os processos militares, apesar de terminados na sua
maioria, ainda não haviam sido julgados; 3º) os inquéritos civis ainda estavam sendo
enriquecidos por novas informações colhidos nos arquivos dos últimos prisioneiros. Logo
depois, a mensagem concluía solicitando mais trinta dias de Estado de Sítio para que os
processos em andamento não fossem prejudicados, tornando-se “infrutíferas todas as pesquisas
feitas pelas autoridades mantenedoras da ordem publica”960.

Quando se preparava a prorrogação do Estado de Sítio, em 21 de março foi decretado o


Estado de Guerra, por noventa dias, suspendendo todos os direitos civis, com a justificativa de
“comoção intestina grave em todo o território nacional”, o que valia considerar que o país estava 180
em guerra civil, devido à “onda de bolchevismo que assolava o Brasil”. O governo Vargas
1
alegava, no corpo do decreto nº 702, que “novas diligências e investigações revelaram grave
recrudescimento das atividades subversivas das instituições políticas e sociais, o que tornava
indispensável “as mais enérgicas medidas de prevenção e repressão”, pois era dever
fundamental do Estado “defender, a par das instituições, os princípios da autoridade e da ordem
social”961. Com a medida, se intensificaram as movimentações da polícia e as práticas
repressivas.

960
Cf. “A prorrogação do Estado de Sítio por mais trinta dias”. In. Jornal da Manhã. Porto Alegre, 24/03/1936, p.
1, Museu de Comunicação Social José Hipólito da Costa (MCSJHC/RS).
961
Ver o decreto integralmente em Fundo Relatórios dos Ministérios – Mensagens dos Presidentes da República,
B-3-127 (1935). Relatório do Ministério das Relações Exteriores, Ano 1936. 2º Vol., Anexo C. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1938, p 59, AHRS. O debate na Câmara dos Deputados em torno do Estado de Guerra pode
ser visto em: Anais da Câmara dos Deputados, Sessões de 15 a 23 de julho. Vol. 8. Rio de Janeiro: Batista de
Souza e Cia., 1937, p. 4 e 27; Anais da Câmara dos Deputados, Sessões de 3 a 6 de agosto. Vol. 10. Rio de Janeiro:
Batista de Souza e Cia., 1937, p. 472 e 479. Os anais podem ser encontrados na biblioteca da Fundação Casa de
Rui Barbosa (FCRB).
O Estado de Guerra serviu para, além de aumentar a repressão, decretar a prisão do
senador paraense Abel Chermont e dos deputados federais Otávio Silveira, Abguar Bastos,
Domingos Velasco e João Mangabeira, os últimos nomes de referência da ANL, até então
protegidos pela imunidade parlamentar, o que causou intenso debate na Câmara. Pelo decreto,
todos perdiam quaisquer proteções públicas962, inclusive na Câmara Federal963.

O Estado de Guerra passou a justificar também o aprofundamento da perseguição


política a todos aqueles que haviam apoiado ou, de certa forma, se relacionado com a ANL. O
Estado de Guerra também modificou a disposição de organização e resistência operária,
ampliando a perseguição interna aos considerados suspeitos de serem comunistas.

No início de junho, se anunciava a peça mais importante sobre a “Insurreição


Comunista” de 1935. Fora encerrado inquérito conduzido e presidido pelo delegado Bellens
Porto, composto de quarenta volumes, tendo em torno de quatrocentos indiciados, tanto civis
como militares. O inquérito, ao contrário do que esperava unia e abrangia todos os envolvidos
antes ou após a irrupção do movimento armado, inclusive os parlamentares presos. Após o
recebimento pela Justiça Federal, o Ministério Público tinha, de acordo com a Lei de Segurança,
o prazo de cinco dias para oferecer a denúncia. Para tal foi indicado o Procurador Criminal da
180
República Himalaia Virgolino, que vinha acompanhando o inquérito desde o início e que havia 2
nos últimos dias acompanhado Bellens Porto, na Chefatura de Polícia, até altas horas da
madrugada, estudando as diversas peças do processo, o que lhe facilitaria o cumprimento do
prazo legal964.

Também continuavam as perseguições aos “foragidos” que participaram da Insurreição


de 1935, bem como as prisões, a fim de justificar a ampliação das medidas repressivas que
continuavam em todo o país.

962
O Estado de Guerra, aprovado por noventa dias e estabelecido pelo decreto nº 712 de 21/03/1936, era justificado
devido à “comoção intestina grave em todo o território nacional”.
963
Sobre o tema da prisão dos deputados ver o debate nos Anais da Câmara dos Deputados, Sessões de 1 a 22 de
maio. Vol. 1. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional/Oficina Salles Filho, 1937, p. 518-26, FCRB.
964
Cf. “Todos os agitadores comunistas compreendidos num só inquérito”. In. Jornal da Manhã. Porto Alegre,
12/06/1936, p. 1, MCSJHC/RS.
Em 21 de junho, como era esperado por muitos, através do Decreto Nº 915, foi
prorrogado o Estado de Guerra no país965, enquanto já se falava na criação de uma nova
comissão de estudos sobre a segurança nacional.

As medidas complementares a LSN, referidas por Vicente Ráo no final de maio,


começaram a aparecer em meados de julho, quando se começou a noticiar que o presidente da
República já tinha pronta “uma mensagem sobre a criação de uma justiça especial para julgar
os elementos extremistas”, a qual seria remetida à Câmara com uma exposição de motivos feita
pelo ministro da Justiça, com a expectativa de que o trâmite fosse rápido, pois seria baseado em
anteprojeto do Executivo, para ser convertido em lei, entrando imediatamente em vigor966. Na
verdade, se articulava a criação do Tribunal de Segurança Nacional (TSN), complementando a
LSN, dessa vez como um tribunal de exceção. E se a justificativa era para julgar e condenar os
“extremistas”, na verdade, como explicou Reynaldo Pompeu de Campos, o Tribunal serviria
para ser acionado contra todos os adversários do regime (1979, p. IV).

Como explica o autor, muitos consideraram o TSN como o equivalente brasileiro do


Tribunal do Povo Alemão do III Reich – o Volksgenchts hof -, ou como similar ao Tribunal de
Defesa do Estado Fascista Italiano (lei italiana nº 2.008 de 1926, que instituiu o Tribunale
180
Speciale per la Difesa dello Stato), pois não foi criado “para ministrar justiça, mas sim como 3
instrumento para distribuir condenações”, pois muitos juízes, contra as evidências dos autos,
chegaram às vezes a punir não a ação delituosa, mas simplesmente o que entendiam como a
intenção do crime (TOLEDO, idem, p. 1 e 121).

Estava criada uma aberração falsificada de qualquer aplicação mínima dos direitos,
inclusive com a utilização da prática fascista da retroatividade da lei, o que praticamente
garantia a condenação de muitos acusados de antemão.

965
Ver o decreto no em Fundo Relatórios dos Ministérios – Mensagens dos Presidentes da República, B-3-127
(1935). Relatório do Ministério das Relações Exteriores, Ano 1936.. 2º Vol., Anexo C. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1938, p 103-6, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS).
966
Cf. “Os Tribunais Especiais para os comunistas”. In. Diário de Notícias. Porto Alegre, 14/07/1936, p. 1,
MCSJHC/RS. A organização do TSN já vinha sendo preparada havia muitos dias. Tanto que em 2 de junho,
enquanto se discutia o processo dos parlamentares presos, Antunes Maciel Filho enviou um cifrado para Flores da
Cunha, pedindo o apoio, também em nome de Vargas, ao projeto que visava “apressar julgamento comunistas,
muitos dos quais recolhidos em colônias agrícolas”. Maciel pedia sigilo e reserva até a apresentação do projeto
que vinha recebendo sugestões de Góes Monteiro. Cf. Arquivo Flores da Cunha, FC 32.00.00 – Situação Política
Nacional – 1935 a 1937, docs. II-26 (cifrado) e II-28 (decifrado), CPDOC da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
No dia 15, finalmente Vargas remeteu à Câmara a mensagem para a criação do tribunal
especial, acrescentando a organização de colônias penais agrícolas967, que já existiam na
prática, para o cumprimento de penas de todos os que fossem “condenados por haverem
participado dos movimentos extremistas”:

A “Emenda no 1” da Constituição, quando permite equiparar o Estado de Guerra a


comoção intestina grave, com finalidade subversiva das instituições políticas e
sociais, nada dispõe sobre o processo e julgamento dos crimes praticados com esse
objetivo. Não me parece lícito, entretanto, inferir se, segundo a Constituição, se deva
aplicar, pura e simplesmente, a repressão daqueles delitos na legislação militar,
inovando-se a competência dos respectivos tribunais. À semelhante solução várias
razões se opõem, dentre as quais sobrelevam as seguintes:

Esses crimes não são definidos e punidos pelas leis penais militares e sim pela lei 38,
de 4 de abril, e 136 de 14 de dezembro de 1935.

Na medida em execução, autorizada pela emenda, não foi considerado guerra, no


sentido próprio, mas equiparação, tendente a reforçar os poderes públicos e as
autoridades na defesa da segurança nacional.

Assim, atendendo à natureza do delito e à faculdade contida na emenda, é mais

180
acertado dispor-se sobre a matéria mediante leis especiais.

Não há negar a necessidade presente de serem processados e julgados aqueles cuja


responsabilidade já se apurou nos inquéritos policiais e militares. Não há negar, tão
pouco, a propriedade do processo e julgamento nos moldes das leis vigentes e 4
adstritas como estão aos limites dos preceitos, cuja eficiência não se contesta para
tempos normais, mas que pode resultar em insuficiência como um pacto que se revela
para as situações graves como a que o país ainda atravessa. Sem um julgamento
rápido e enérgico, duplamente eficiente no sentido de repressão, será muito precária
a defesa das instituições e da ordem, em virtude da natureza da ação criminosa, que
caracteriza pela violência e pelo rigoroso cunho técnico com que seus autores e
cúmplices agem para apagar os traços de sua responsabilidade.

Pelos motivos expostos, venho solicitar o concurso indispensável do Legislativo,


perante o qual encareço a conveniência da criação de um tribunal capaz de
solucionar as necessidades acenadas e corresponder desse modo aos reclamos da
opinião pública, e, bem assim, de colônias agrícolas penais para o cumprimento das
penas, além de outras medidas que reputar necessárias.

967
A mais próxima das colônias penais era a Colônia Correcional de Dois Rios, na Ilha Grande, dirigida em 1936
pelo temido tenente Vicente Caneppa, homem de confiança de Filinto Müller e colocado na direção por indicação
direta do chefe de polícia do Distrito Federal. A preparação das instalações do presídio para receber os envolvidos
com o Movimento Nacional-Libertador de 1935 foram todas coordenadas por Caneppa, que trocava informação
pelo rádio com Müller, tanto avisando sobre a situação das obras, como da chegada dos presos. Cf. Arquivo Filinto
Müller, FM 33.03.23, 1933 a 1939 – Presos e Instituições Penitenciárias, docs. I-72, I-73 e I-87, CPDOC/FGV.
Rio de Janeiro, 15 de julho de 1936 – Getúlio Vargas, presidente da República968.

Nesse momento, a deportação das militantes estrangeiras já estava praticamente


decidida pelo governo, de tal forma que Heitor Lima havia sido constituído advogado de Olga
Benário (chamada por ele também de Maria Prestes) e se encontrava regularmente com o
advogado e delegado Bellens Porto, então responsável pelo inquérito dos acontecimentos de
novembro de 1935, e com o capitão e delegado de Segurança Política e Social Miranda Corrêa,
a fim de tratar dos direitos de sua defesa.

Em setembro, quando se apreciava a prorrogação do Estado de Guerra por noventa dias,


o deputado Otávio Mangabeira produziu na Câmara dos Deputados um discurso condenando a
sua protelação com o argumento de que não bastasse o Estado de Sítio, o Estado de Guerra ia
tornando crônico o estado do país pondo à parte a Constituição, que para ele não reconhecia
“outra justiça senão a que ela criou ou autorizou criar”, abalada em seus fundamentos ao
instituir o Tribunal de Exceção969.

Mas de nada adiantou as manifestações contra a medida. O Estado de Guerra foi 180
prorrogado com a justificativa de sempre: o perigo comunista, enquanto que consolidou a
criação do TSN970.
5
Em 25 de novembro, o TSN anunciava que os implicados no movimento comunista de
novembro atingiam a 456, entre civis e militares, entretanto, o mesmo deveria julgar cerca de
500 presos pelas Delegacias de Ordem Política e Social, pois mesmo que não tivessem sido
presos com armas na mão, “conspiravam noutros setores, contra a segurança nacional,

968
Cf. “Para punir os inimigos do regime! - Texto da mensagem do Sr. GetúlioVargas”. In. Diário de Notícias.
Porto Alegre, 16/07/1936, p. 1, MCSJHC/RS.
969
A declaração de voto do deputado pode ser vista na íntegra em “Contra a prorrogação do Estado de Guerra”.
Correio do Povo. Porto Alegre, 19/09/1936, p. 16, MCSJHC/RS. Votaram contra a prorrogação em torno de trinta
e poucos deputados, incluindo os deputados da FUG Borges de Medeiros e Batista Luzardo, os únicos rio-
grandenses de oposição que estavam em plenário. Cf. o debate na Câmara dos Deputados sobre a prorrogação do
Estado de guerra em: Anais da Câmara dos Deputados 1936, Sessões de 15 a 17 de setembro, Vol. 17. Rio de
Janeiro: Batista de Souza e Cia., 1937, p. 333; Anais da Câmara dos Deputados 1936, Sessões de 18 a 23 de agosto.
Vol. 18. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1937, p. 63 e 65.
970
Editorial publicado no Correio da Manhã, em 22 de setembro, justificou as medidas, lembrando 1930, com o
seguinte argumento: “É preciso que o TSN não seja uma segunda edição do Tribunal Revolucionário e da Junta
de Sanções, que acabaram por reabilitar, elevando aos olhos do país, aqueles sobre cujos ombros pesava a suspeita
de grandes crimes”. Cf. “A prorrogação do Estado de Guerra e a atuação do Tribunal de Segurança”. In. Correio
do Povo. Porto Alegre, 23/09/1936, p. 1, MCSJHC/RS. Sobre o TSN, ver tb. CARONE, op. cit., 1991, p. 260-5.
propagando ideias extremistas”. Em declarações para a imprensa, o presidente do Tribunal,
declarou que tudo estava pronto para que o seu funcionamento, com a instalação da secretaria,
que teria as atribuições de dar regularidade aos julgamentos e distribuir os processos aos
juízes971.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Alzira; BELOCH, Israel; LATTMAN-WELTMAN, Fernando; LAMARÃO, Sérgio


Tadeu de Niemeyer (Coords.). Dicionário histórico-bibliográfico brasileiro pós-1930. 5 vols.
2ª ed. Rio de Janeiro: CPDOC/Ed. da FGV, 2001.

BRASIL. Relatório do Ministério das Relações Exteriores, Ano 1936. 2º Vol., Anexo C. Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Anais da Câmara dos Deputados 1936, Sessões de 18 a 23


de agosto. Vol. 18. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1937. 180
__________________________. Anais da Câmara dos Deputados, Sessões de 1 a 22 de 6
maio. Vol. 1. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional/Oficina Salles Filho, 1937.

__________________________. Anais da Câmara dos Deputados 1936, Sessões de 15 a 17


de setembro, Vol. 17. Rio de Janeiro: Batista de Souza e Cia., 1937.

CAMPOS, Reynaldo Pompeu de. O Tribunal de Segurança Nacional: 1936-1945.


Dissertação de Mestrado, Niterói: Instituto de Ciências Humanas e Filosofia/UFF, 1979.

CARONE, Edgar. Brasil: anos de crise 1930-1944. São Paulo: Ática, 1991.

KONRAD, Diorge Alceno. 1935: a Aliança Nacional Libertadora no Rio Grande do Sul.
Dissertação: Mestrado em História. Porto Alegre: PUC-RS, 1994.

. Cf. “456 extremistas presos com armas na mão, perante o TSN”. In. Diário de Notícias. Porto Alegre,
971

26/11/1936, p. 1, MCSJHC/RS.
_________. O fantasma do medo: o Rio Grande do Sul, a repressão policial e os movimentos
sócio-políticos. Tese (Doutorado em História Social do Trabalho). Campinas:
IFCH/UNICAMP. 2004.

MORAIS, Fernando. Olga. 11ª ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1986..

PRESTES, Anita Leocádia. Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro. São Paulo:
Boitempo, 2015.

________.70 anos da Aliança Nacional Libertadora (ANL). Disponível em:


http://www.cecac.org.br/mat%E9rias/Anita_Prestes_70_anos_ANL_parte2.htm. Acesso em 9
out. 2016.

PRESTES, Anita Leocádia; PRESTES, Lygia (Orgs.). Anos tormentosos: Luiz Carlos Prestes.
Correspondência da Prisão (1936-1945). Vol. III. Rio de Janeiro: Paz e Terra/APERJ, 2002.

PRESTES, Luiz Carlos. Depoimento perante a Comissão de Inquérito sobre Atos


Delituosos da Ditadura. Rio de Janeiro: Vitória, 1948.

ROSE, R. S. Johnny: a vida do espião que delatou a rebelião comunista de 1935. Rio de 180
Janeiro: Record, 2010.
7
VIANNA, Marly. Revolucionários de 35: sonho e realidade. São Paulo: Companhia das
Letras, 1992.

________. Pão, terra e liberdade. Memória do Movimento Comunista de 1935. Rio de


Janeiro: Arquivo Nacional, São Carlos: Ed. da UFSCar, 1995.

WERNER, Ruth. Olga Benário. A história de uma mulher corajosa. São Paulo: Alfa-Ômega,
1989.
O TRABALHO INFANTIL EM SANTA CRISTINA DO PINHAL: INGÊNUOS
ENQUANTO PROPRIEDADE EM INVENTÁRIOS*972

Daiane Arend Flores de Oliveira**973

180
RESUMO

O presente trabalho aborda a relação das crianças ingênuas batizadas na paróquia católica de
Santa Cristina do Pinhal no Rio Grande do Sul e suas indicações como mercadoria nos 8
testamentos de senhores. São chamadas de ‘ingênuas’ ou ‘inocentes’ as crianças batizadas no
período compreendido entre a determinação da Lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871)
à abolição da escravidão no Brasil (13 de maio de 1888). Uma das medidas da Lei do Ventre
Livre estabelecia que os ingênuos continuassem com os senhores de suas mães, devendo estes
mantê-los até que atingissem a idade de oito anos e, ao completarem esta idade, os senhores
poderiam optar entre continuar utilizando a mão de obra das crianças até que chegassem aos 21
anos de idade ou então entregá-las ao Estado, recebendo uma indenização. Para conhecer o
número de crianças ingênuas desta localidade, é necessário o levantamento de registros de
batismos nos livros eclesiásticos da referida Paróquia. Quanto à relação de trabalho destas
crianças e valor atribuído, analisando os inventários de Santa Cristina do Pinhal compreendidos

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Mestranda no Programa de Pós-graduação em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale.
Especialista em Administração Escolar, Supervisão e Orientação pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci.
Licenciada em História pela Universidade Feevale. E-mail: daianearend@feevale.br
entre 1871 e 1888, percebe-se que alguns inventariados possuíam as crianças reconhecidas
como ingênuas com valores declarados, como se ainda fossem de fato propriedade, não
aspirantes legais à liberdade. Desta forma, nos inventários é possível perceber que o trabalho
infantil se fez presente e que, apesar de determinação que garantia liberdade aos ingênuos, os
mesmos não eram entendidos como tal, mas eram considerados fonte de mão de obra e
propriedade.

Palavras-chave: Ingênuos; Trabalho; Santa Cristina do Pinhal;

INTRODUÇÃO

O presente artigo relaciona a Lei do Ventre Livre (1871) com crianças - filhas de
mulheres escravizadas - nascidas depois desta determinação, batizadas na paróquia de Santa
Cristina do Pinhal e suas respectivas relações de trabalho, identificadas na atribuição de valores

180
em inventários de senhores. O recorte temporal explorado refere-se a 17 anos, precisamente
entre o período compreendido entre a determinação da Lei do Ventre Livre (1871) e a
determinação da Lei Áurea (1888), que concedeu liberdade aos escravizados. 9
A Lei do Ventre Livre foi sancionada em 28 de setembro de 1871, concedendo liberdade
aos filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir daquela data. Entre outras consignações
(como a possibilidade de formação de pecúlio para compra de liberdade por parte dos
escravizados, por exemplo), determinava que a partir de então, as crianças filhas de
escravizadas nasciam livres, mas que deveriam ficar sob a autoridade dos senhores de suas
mães, para que este os criasse e tratasse até completarem dezoito anos; quando os ingênuos
atingissem esta idade, o senhor deveria escolher entre permanecer utilizando o serviço do menor
até ele completar 21 anos, ou entregá-lo ao Estado e receber uma indenização pelo menor. As
crianças nascidas nesta condição foram chamadas de ingênuas ou inocentes.
A Freguesia de Santa Cristina do Pinhal originou-se a partir de uma Frente de
Expansão974 tendo origens remotas próximas a uma sesmaria, que contava com a mão de obra

974
Magalhães (2003) caracteriza tal frente de expansão como a ocupação de terras pela necessidade de expansão
e ocupação portuguesa, justificada pelo exercício de poder, pela pressão demográfica e conservação do interesse
Português na Colônia.
escravizada. Sendo um espaço fundamental no desenvolvimento histórico da região, foi sede
da matriz paroquial católica onde realizavam-se os assentamentos eclesiásticos católicos no
século XIX e início do século XX, pertinentes ao atual Vale do Paranhana. Estes registros
eclesiásticos são os documentos que permitem levantar o número de crianças ingênuas
batizadas no período de estudo, sendo que os mesmos podem ser considerados documento
inicial daquelas crianças, pois segundo Bacellar (In Pinsky, 2010), até o final do período
imperial no Brasil, os registros paroquiais eram os únicos do tipo e tinham equivalência oficial,
de modo que até 1890 o registro civil era optativo e realizado somente em alguns cartórios,
especificamente estabelecidos onde estrangeiros de outras crenças eram maioria e a profissão
de fé católica era a única considerada oficial.
Sendo um núcleo que se desenvolveu significativamente, Santa Cristina do Pinhal
também foi sede de comarca judicial, onde foram registrados testamentos, inventários e
processos-crime.
A relação entre os registros de batismos e posteriores inventários de Santa Cristina do
Pinhal, permitem perceber como os senhores obedeciam a Lei do Ventre Livre e quais as
concepções dos mesmos em relações àqueles ingênuos. Desta forma, tendo como problema 181
perceber relações de trabalho e escravização na localidade de Santa Cristina do Pinhal de
crianças ditas livres pela Lei do Ventre Livre, são objetivos apontar a escravização na Freguesia 0
de Santa Cristina do Pinhal, indicar a partir dos registros eclesiásticos o número de ingênuos
batizados em Santa Cristina do Pinhal; identificar informações e especificidades nos
assentamento nos registros paroquiais católicos sobre os ingênuos; relacionar os registros
eclesiásticos dos ingênuos com nomes de crianças apontados em inventários no período de 1871
a 1888; elaborar discussão a partir da relação entre cada registro de batismo de ingênuos cujas
crianças constam em inventários; refletir acerca da infância vinculada à escravidão.
Para sanar tais questões, é aplicada a metodologia considerada por Prodanov e Freitas
(2012) quanto à sua natureza, como ‘pesquisa básica’, pois visa gerar conhecimento ao avanço
científico, envolvendo interesses universais, mas sem aplicação prática prevista, quanto aos
procedimentos, a pesquisa é baseada em análises bibliográficas e documentais.

13. Capítulo I - A Freguesia de Santa Cristina do Pinhal


Primordialmente, conforme Fernandes (2011) no período compreendido entre os
séculos XVIII e XIX, o espaço ao sul do Brasil estava em disputa entre espanhóis e portugueses,
de modo que a ocupação variava conforme acordos e condições do Prata. A coroa portuguesa
defendia seu direito de posse por meio de ocupação e assim, para incentivar e garantir a
ocupação das áreas sulinas, a Coroa encaminhou colonos açorianos para ocuparem a região
missioneira, mas devido a Guerra Guaranítica e instabilidade daquela região, estes casais
precisaram aguardar uma melhor oportunidade para se direcionarem a tal espaço e desta forma
“inúmeros casais chegam ao interior, por Santo Antônio da Patrulha e ocupam as áreas dos
atuais municípios de Riozinho e Rolante975”. (FERNANDES in REINHEIMER, 2011, p. 16).
A freguesia de Santa Cristina (ou Christina) do Pinhal originou-se a partir de um núcleo
populacional luso no século XIX, que se estabeleceu próximo ao Rio dos Sinos;
primordialmente, este núcleo foi denominado Pinhal.
No momento em que foi construída uma capela em Pinhal, a parte administrativa foi
ligada à religiosa, de modo que a referida capela foi chamada de Santa Cristina (ou Christina)
o que também levou a alteração na denominação do núcleo populacional, que passou a ser
chamado de ‘Santa Cristina do Pinhal’. 181
O nome Pinhal era uma denominação administrativa. Com a inauguração da capela, 1
que tinha como padroeira Santa Cristina, a povoação passa a se chamar Santa
Christina do Pinhal, na qual Taquara se desenvolve. O nome do lugar passa a
expressar a união do político com o religioso. (REINHEIMER, 2011, p. 23).

A localidade de Santa Cristina (ou Christina) do Pinhal pode ser encontrada em mapa
do Vale dos Sinos, conforme destacado abaixo em azul royal:

Figura 1 - Mapa do Vale do Sinos: Porto Alegre, Santa Cristina do Pinhal, São Leopoldo

975
Riozinho e Rolante, juntamente com Taquara, Parobé, Igrejinha e Três Coroas compõem o Vale do Paranhana.
Com excessão dos dois primeiros, os demais municípios citados emanciparam-se de Taquara, sendo que
atualmente, Santa Cristina do Pinhal faz parte do território de Parobé.
Fonte: MAGALHÃES, 2003, p. 155.

Ao longo do tempo, Santa Cristina do Pinhal passou por mudanças e pertencimentos


administrativos: foi distrito de São Leopoldo, tornou-se freguesia em 18 de novembro de 1857, 181
2
depois passou à Porto Alegre, retornou a São Leopoldo, foi elevado à categoria de município,
e por fim com inversão de pertencimento com Taquara (que era distrito de Santa Cristina do
Pinhal), passou a ser distrito de Taquara. Conforme Magalhães (2003), tais mudanças
administrativas são justificadas pelo território ser frente de expansão e pela importância à defesa
e abastecimento da capital.
As atividades desenvolvidas voltavam-se a agricultura e pecuária.

O núcleo urbano se configurava, principalmente, com a venda de terrenos,


juntamente com as chácaras, sítios, terras, fazendas e a colônia do Mundo Novo. Em
Santa Christina do Pinhal, as atividades artesanais e agropecuárias se desenvolvem.
Predominam lavradores, negociantes vinculados aos setores comercial, imobiliário
e financeiro e jornaleiro, entre outros. A agropecuária atende às necessidades locais.
Há criação de ovinos para suprimento de carne e lã, muares para transporte de
cargas, suínos para produção de carnes e gorduras, aves para fornecer carne e ovos,
os bovinos para corte, produtos de leite e derivados. Os rebanhos identificados são
típicos de área da agropecuária. As atividades de padaria e alfaiataria atendem às
tropas militares. Tecnologias são instaladas para o incremento da produção: os
moinhos, engenhos e atafonas encontram-se em maior número, próximos ao Rio dos
Sinos. (MAGALHÃES, 2003, p. 257)

É necessário mencionar que a mão de obra de escravizados ali se fez presente:


Os descendentes portugueses ali instalados dedicavam-se principalmente ao cultivo
de cana-de-açúcar e mandioca para fazer melado, cachaça, rapadura e farinha. O
uso da mão de obra escrava era corriqueiro em engenhos, atafonas e plantações,
ajudando a movimentar a incipiente economia regional. (BARROS in REINHEIMER,
2005, p. 37)

O processo de urbanização de Santa Cristina do Pinhal ocorreu de acordo com o


desenvolvimento econômico e político da localidade, de modo que a heterogeneidade de
personagens ali presentes, relações sociais características (entre comerciantes, militares,
senhores, escravos e agregados), renda capitalizada e atividades econômicas específicas se
fizeram presentes.

14. Capítulo II - Os registros eclesiásticos de Santa Cristina do Pinhal

Conhecendo as delimitações anteriores e atuais da localidade pesquisada, verificou-se


que os respectivos livros de registros eclesiásticos podem ser encontrados na Cúria
Metropolitana de Porto Alegre, precisamente no Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de 181
Porto Alegre (AHCMPA). 3
Segundo Bacellar (2010), os registros eclesiásticos mais comuns são correspondências,
livros-tombo, assentos de casamento, batismo e óbito, relativos especialmente à Igreja Católica.
Antes de abordar o conteúdo propriamente dito dos livros de batismo, é importante
recordar a Lei do Ventre Livre determinava que os párocos deveriam registrar em livros
específicos os batismos e óbitos de filhos de escravas nascidos a partir da lei, de modo que as
omissões estavam sujeitas à multas “Art. 8º §5º Os parochos serão obrigados a ter livros
especiaes para o registro dos nascimentos e obitos dos filhos de escravas, nascidos desde a data
desta lei. Cada omissão sujeitará os parochos á multa de 100$000” (BRASIL, 1971).

Através da análise dos livros eclesiásticos e seus respectivos registros, observou-se que
o dito ‘livro especial’ contava com registros de batismo de crianças ingênuas e brancas; da
mesma forma, outros três livros de crianças brancas contavam com registros de ingênuos, sendo
que destes, alguns estavam registrados duplamente, ou seja, há registro de batismos de ingênuos
descritos nos livros de brancos e também no seu livro específico.
Sobre os registros de batismo propriamente ditos, normalmente constam nome da
criança, data e local do batismo, nome dos pais, padrinhos e responsável pelo sacramento. No
caso específico de batismos dos ingênuos, há informações pertinentes a tal condição no livro
‘especial’, determinado pela Lei do Ventre Livre: na Paróquia de Santa Cristina do Pinhal, no
livro destinado aos ingênuos (mesmo com a mescla de registro de ingênuos e crianças brancas)
há anotação de que estas crianças estão livres em razão da lei 2040 de 28/09/1871. Outras
características dos registros de ingênuos é constar a cor da criança, algumas vezes a cor da mãe
e mencionar (quando é o caso) a condição de escravizados dos padrinhos, sendo que algumas
vezes, os nomes de senhores dos escravizados-padrinhos são mencionados.
A Igreja Católica difere em seus registros de batismo, o estado civil dos pais, indicando
como ‘filho legítimo’ a criança cujos pais são casados oficialmente e ‘filho natural’ o filho de
pais que não são casados. Em Santa Cristina do Pinhal, do total de 213 ingênuos batizados,
todas são ‘naturais’ e não consta o nome do pai, de modo que apenas uma excessão apresenta
nomes de pais, com a observação de serem forros.
Quanto aos locais exatos dos batismos das crianças ingênuas, verificou-se que nem
todos foram realizados na matriz. Um gráfico apontando onde foram realizados estes 181
sacramentos indica a grandeza territorial que a paróquia de Santa Cristina do Pinhal abrangia:
4

Gráfico 1 - Locais dos batismos de ingênuos em Santa Cristina do Pinhal


O primeiro número refere-se à quantidade de batismos registrados na paróquia de Santa
Cristina do Pinhal, enquanto o segundo número aponta a devida porcentagem, correspondente
do total de 213 batismos.
O levantamento também evidenciou que durante o período estudado, muitas mães 181
escravizadas tiveram mais que um filho, conforme é possível observar na tabela abaixo:
5
Quadro 1 - Relação de ingênuos, mães e respectivos senhores -1871 a 1888.

Total de crianças Total de mães Total de senhores

213 114 86

Percebe-se que o número de mães é inferior ao número de ingênuos, levando à média


de dois filhos por mulher.
Um fator que poderia alterar estes números é a grafia dos nomes, pois alguns vigários
empregavam linguagem mais arcaica, realizando a escrita com base naquilo que
compreenderam, o que ocasionou alterações e equívocos, como por exemplo, a mesma pessoa
ter grifada seu nome e/ou parte do sobrenome de formas distintas em diversas passagens. O
mesmo ponto delicado ocorre em relação ao registro das demais informações, já que alguns
carecem das habituais anotações.
15. Capítulo 3 - Relações de trabalho: os ingênuos com valores em inventários

Mesmo com certa restrição de informações detalhadas nos registros eclesiásticos, os


mesmos podem nortear pesquisas muito interessantes, tanto se abordadas em seu conteúdo ou
se relacionadas com outras fontes primárias, como testamentos e inventários. Bacellar (2010)
indica que explorando testamentos, é plausível realizar várias análises e adentrar nas
concepções de mundo do passado, enquanto os inventários revelam riquíssimos estudos no tema
da escravidão.
Desta maneira, para realizar a pesquisa de ingênuos em inventários, além, do registro
eclesiástico indicando a existência dos ingênuos, era necessário localizar no Arquivo Público
do Rio Grande do Sul os inventários divididos adequadamente em suas comarcas para então,
relacionar as informações. Segundo determinações de comarcas e suas alterações, os
inventários referentes à Santa Cristina do Pinhal/ Taquara, são localizadas da seguinte forma:
Comarca de Porto Alegre até 1874, Comarca de São Leopoldo no período de 1875 a 1879 e na 181
Comarca de Santa Cristina do Pinhal do ano de 1880 em diante.
6
Os inventários que constam escravos, digitalizados no Arquivo Público, estão
organizados em quatro volumes. Através da consulta e análise destes, foi possível relacionar as
informações de inventariados com senhores mencionados nos registros de batismo de ingênuos
em Santa Cristina do Pinhal. Desta forma, seguem os casos em comum encontrados:
a) Inventário de João Paz de Oliveira, de (1873):

Inventariado: João Paz de Oliveira Descrição: 12 escravos, 05 masculino, 07


feminino Raimundo, 40 anos mais ou menos, Nagô, sem ofício, 900$; José, 80 anos
mais ou menos, Benguela, 32$; José, mulato, 11 anos, sem ofício, 800$; Antônio,
mulato, 7 anos, 550$; Manoel, 3 anos, Crioulo, 350$; Castorina, 20 anos, Crioula,
800$; Ana, 40 anos, Crioula, 300$; Eva, 25 anos, Crioula, 700$; Francisca, mulata,
8 anos e meio, 650$; Saturnina, mulata, 5 anos, 400$; Leonarda, mulata, 2 anos e
meio, 250$; Mariana, mulata, 1 ano e meio, 150$. (APERS, volume 2, 2010 p.118).

A criança Mariana era ingênua, pois seu registro de batismo indica a data de nascimento
02/05/1872, o que corresponde ao dado do inventário “mulata, 1 ano e meio”. Observando que
Mariana possuía valor, entende-se que seu dono não obedecera às determinações legais, pois
contemplada pela Lei do Ventre Livre, Mariana não poderia ter valor comercial, pois era livre
por nascimento. A mãe de Mariana, Justina, não consta no inventário, enquanto nos livros
eclesiásticos consta em quatro registros posteriores ao falecimento do senhor João Paz de
Oliveira, sendo ‘madrinha escrava de João Paz de Oliveira’, ‘madrinha liberta de João Paez de
Oliveira’, ‘madrinha escrava’ e ‘madrinha liberta’ – exatamente nesta ordem. O escravizado
José citado no inventário, era padrinho de Mariana;
b) Inventário de João Fay, de 1877:

Inventariado: João Fay Descrição: 09 escravos, 07 não libertos, 02 libertos, 04


masculino, 03 feminino Fernando, solteiro, preto, 46 anos, lavrador, filiação
desconhecida, 400$; Tobias, solteiro, preto, 46 anos, lavrador, filiação desconhecida,
300$; Modesto, solteiro, preto, 36 anos, lavrador, Fausta, 800$; Silvano, solteiro,
pardo, 16 anos, Josefa, 800$; Julia, solteira, preta, 46 anos, capaz de qualquer
serviço doméstico, 300$; Josefa, solteira, preta, 41 anos, 200$; Sara, solteira, parda,
21 anos/2 [sem nome] (L), Sara, menores, 400$. (APERS, volume 4, 2010 p.254-255).

Relacionando este inventário com os registros de batismo de ingênuos cujas mães


pertenciam a João Fay, constatou-se que as duas crianças ‘[sem nome] (L)’ eram Juvina (parda,
nascida em 02/03/1875) e Joaquim (pardo, nascido em 22/04/1876), ambos filhos de Sara. O
181
escravizado Modesto mencionado no inventário como lavrador é padrinho de Joaquim.
Ao longo deste inventário, não constam maiores informações sobre Sara e seus filhos, 7
o que neste, impossibilita maiores investigações;
a) Laurentino José Réos (Silva), 1878:

Inventariado: Laurentino José Réos Descrição: 02 escravos, 01 masculino, 01


feminino Angélica, 51 anos/Amaro (L), 5 anos, Angélica, 200$. (APERS, volume 4,
2010 p. 256)

Laurentino José é nomeado em seu inventário com o sobrenome Réos, enquanto consta
no assento de batismo da criança Amaro com o sobrenome Silva. Consta no inventário de
Laurentino os escravizados Angélica e Amaro. Tais informações conferem com o registro de
batismo do ingênuo Amaro (pardo), nascido em 17/08/1873. Este menino consta como livre,
entretanto, consta no inventário, entendendo que inventário é a descrição de todos os ‘bens’;
b) Joaquim de Souza Carvalho, 1881:
Inventariado: Joaquim de Souza Carvalho Descrição: 04 escravos, 02 masculino, 02
feminino Francisco, 26 anos, 900$; Honorato, 22 anos, 900$; Justina, 19 anos, 450$;
Bonifácia, 26 anos, 450$. (APERS, volume 4, 2010 p.372).

Das escravas mencionadas no inventário, Bonifácia consta como mãe, nos registros de
batismo de duas filhas ingênuas (Maria e Leopoldina) e elas não constam no inventário, nem
ao menos como ‘livres’;
c) Firmiana Maria da Conceição: Inventário de 1884:
“Inventariada: Firmiana Maria da Conceição Descrição: 01 escravo, 01 feminino Maria,
parda, 200$.” (APERS, volume 4, 2010 p.374). A escrava Maria é mencionada nos registros de
batismo como mãe em dois registros de ingênuos, relacionados à senhora Firmiana: batismo de
Osvino (nascido em 25/04/1881) e batismo de Guilhermina (nascida em 03/10/1882); nenhuma
destas crianças é mencionada no inventário.
d) Felicidade Inácia dos Santos:
“Inventariada: Felicidade Inácia dos Santos Descrição: 02 escravos, 02 feminino
Generosa/Genoveva, 100$; Mauricia, 150$.” (APERS, volume 4, 2010 p.374).
A senhora Felicidade Inácia consta em cinco registros de batismo, todos filhos da 181
8
escrava preta Generosa/ Genoveva (Justiniana nascida em 08/01/1873, Theodoria parda nascida
em 11/09/1877, Manoel Martim nascido em 11/12/1878, João Luiz nascido em 25/05/1881 e
Maria Luiza nascida em 27/01/1883). Ainda, consta uma senhora chamada “Felicidade Pinheiro
dos Santos”, cuja escrava chamada Genoveva teve sua filha Thereza em 27/12/1879 e assim,
relacionando dados, é possível que esta Genoveva seja a mesma que consta nos registros de
Felicidade Inácia dos Santos.
Interessante perceber que, nenhum destes ingênuos consta no inventário;
e) Innocente Ferreira Maciel, 1884:

Inventariado: Inocente Ferreira Maciel Descrição: 06 escravos, 02 masculino, 04


feminino Idalina, 300$; Margarida, 250$; Justina, 300$; Carolina, 100$; Gregório,
300$; Estevão, 300$. (APERS, volume 4, 2010 p.374).

Alistando com os registros de batismo, Maciel é apontado como senhor nos batismos de
algumas crianças: Filizarda filha de Claudina, Carolina filha de Leonarda, Henriqueta filha de
Juliana, Thomé filho de Maria (este nascimento data de 04/12/1886, ou seja, dois anos após o
inventário), Thereza, Marcelino e Felizarda, os três filhos de Idalina. Apenas o nome de mãe
da escravizada Idalina consta em comum nos registros de batismo e no inventário.
A relação deste inventário com registros de batismos de ingênuos possibilitam perceber
relações de compadrio entre os escravizados de Innocente Ferreira Maciel e também, relações
de compadrio entre os escravizados deste com escravizados de outros senhores, o que evidencia
relações de proximidade entre os planteis.
Percebe-se que as relações estabelecidas entre senhores, mulheres escravizadas e seus
filhos ingênuos foram as mais diversas, e conforme o espaço do qual o negro poderia apropriar-
se, este constituiu e fortaleceu suas relações sociais.
Conforme listado, alguns senhores utilizaram mão de obra de crianças libertas em seus
afazeres, uma vez que a descrição dos inventários levanta os ‘bens’ do falecido, o que
demonstra que as crianças com valor atribuído eram consideradas patrimônio e exerciam suas
atividades como tal. Devido à carência de maiores dados nos inventários, não é possível
estabelecer com exatidão as tarefas desenvolvidas pelos ingênuos, mas ficou evidenciado que
as crianças, mesmo libertas perante a lei, não eram reconhecidas na plenitude de suas infâncias,
pois como filhas de mulheres escravizadas, tais crianças eram atribuídas como patrimônio 181
material dos senhores de suas progenitoras.
9
CONCLUSÃO

O povoado de Santa Cristina do Pinhal desenvolveu-se e destacou-se com atividades


voltadas ao artesanato, comércio, agricultura e pecuária, de modo que a localidade era imersa
no sistema escravocrata, empregando mão de obra de pessoas livres e também escravizadas nas
atividades ali desenvolvidas.
Segundo ressaltado nos levantamentos, as atividades das pessoas escravizadas eram
relacionadas à produção no ramo da agricultura, subsistência das famílias de seus senhores e
trabalhos relacionados à prestação de serviços diversos.
Percebeu-se que de modo amplo, as 213 crianças ingênuas batizadas em Santa Cristina
do Pinhal, no período entre 1871 e 1888, que permaneceram junto à suas mães, estavam
destinadas às mesmas funções, voltadas a produção e prestação de serviço, embora cada caso
tenha seu próprio desfecho. Algumas destas crianças foram realmente consideradas bens, pois,
na ocasião da morte dos senhores de suas mães, seus nomes foram indicados com valor
comercial atribuído, como se escravizadas tivessem nascido.
Quanto ao problema de pesquisa, constatou-se que nos inventários constam alguns
registros de ingênuos declarados como bens por serem mão de obra, embora estes ingênuos
inventariados sejam descritos de diversas formas, não sendo possíveis generalizações, já que
em alguns casos, mãe e ingênuo estavam inventariados com valores agregados, em outros
inventários era informado a mãe como escravizada e o(s) filho(s) liberto(s), enquanto outros
inventários nem mesmo mencionavam as mães e seus filhos ingênuos. Surge então uma lacuna,
pois é possível estabelecer, apenas com as fontes primárias de registros eclesiásticos e
inventários, as razões pelas quais algumas mães e filhos ingênuos deixaram de estar
relacionados com senhores.
Em suma, mesmo com plena liberdade garantida por lei quando completasse 21 anos,
nenhuma criança ingênua gozou deste direito, pois a Lei Áurea, abolindo a escravidão,
antecipou este fato. A historiografia nos mostra que muitas crianças ingênuas viveram sua
infância servindo como mão de obra, outras foram enjeitadas ou ainda entregues ao Governo, 182
além dos casos nos quais foram ‘poupadas da escravidão’ através do infanticídio.
0

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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cidade de Taquara: história do século XVIII ao XX. In REINHEIMER, Dalva, et. al.
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182
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Fronteira no Vale do Sinos. 2003; 574 f; Tese (Doutorado em Programa de Pós Graduação 1
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científico: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico. Novo Hamburgo, RS:
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HUMANOS. DEPARTAMENTO DE ARQUIVO PÚBLICO. Documentos da escravidão:
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(1864-1872).

AHCMPA. Livro de Registros de Batismos da Paróquia Santa Cristina do Pinhal B2


(1872-1876).

AHCMPA. Livro de Registros de Batismos da Paróquia Santa Cristina do Pinhal B3


(22/04/1876-25/12/1879).

AHCMPA. Livro de Registros de Batismos da Paróquia Santa Cristina do Pinhal B4


(22/05/1882-07/08/1885).
182
2
AHCMPA. Livro de Registros de Batismos da Paróquia Santa Cristina do Pinhal B5
(18/08/1885-04/10/1887).

AHCMPA. Livro de Registros de Batismos da Paróquia Santa Cristina do Pinhal B6


(08/10/1887-12/06/1890).

AHCMPA. Livro de Registros de Batismos da Paróquia Santa Cristina do Pinhal 3B


(1871-1888).

AHCMPA. Livro de Registros de Batismos da Paróquia Taquara B1 (1888).

APERS. Documentos da escravidão: inventários: o escravo deixado como herança.


Coordenação Bruno Stelmach Pessi. – Porto Alegre: Companhia Rio-grandense de Artes
Gráficas (CORAG), 2010.4 v.
182
3
ENTRE SOLDADOS E RESERVISTAS:

A JUSTIÇA DO TRABALHO EM TEMPOS DE GUERRA*976

Tamires Xavier Soares**977

RESUMO

A década de 1940 foi de muitas mudanças no âmbito da legislação do trabalho, haja vista a
criação da Justiça do Trabalho (1941) e da Consolidação das Leis do Trabalho (1943). Porém,
estas mudanças tinham como pano de fundo a deflagração da Segunda Guerra Mundial, que
durou de 1939 a 1945. O Brasil se manteve neutro, em relação ao conflito mundial, até agosto
de 1942 quando rompeu sua política de neutralidade e aproximou-se dos Aliados. Após a
entrada do país no conflito bélico mundial, o governo passou a elaborar medias em nome do
esforço de guerra, entre estas estavam diversos decretos-lei que retiravam ou flexibilizavam as
leis trabalhistas conquistadas pelos trabalhadores. Neste artigo iremos nos deter no decreto-lei
n. 5.689, de 22 de julho de 1943, o qual garantia que enquanto durasse o esforço de guerra, as
182
empresas não poderiam rescindir contratos de trabalho de empregados reservistas em idade de 4
convocação militar. Portanto, com base na análise quantitativa a respeito dos processos
ajuizados na Justiça do Trabalho de Pelotas tentaremos compreender o campo de luta criado
em torno deste decreto-lei.

Palavras-chave: Justiça do Trabalho; Reservistas; Guerra.

INTRODUÇÃO

A questão trabalhista tem ganho espaço nos Programas de Pós-Graduação brasileiros,


porém os períodos mais pesquisados compreendem principalmente os anos anteriores a 1937,
ou então posteriores a 1945. O Estado Novo, foi por muito tempo visto como um limbo na
questão das lutas de classe. No entanto, está perspectiva tem sido modificada, trabalhos como

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Doutoranda, Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: tamiresxavier@outlook.com.
de Gláucia Konrad (2006), Alexandre Fortes (2004), Clarice Speranza (2012), Maria Célia
Paoli (1987), Fernando Teixeira da Silva (1992), Hélio Costa (1995), entre outros, têm
demonstrando o quanto este período foi de luta e resistência.

Porém, ainda são escassas as pesquisas que abordam as implicações da Segunda


Guerra Mundial nesse contexto. Para Alexandre Fortes isso ocorre, pois, “fatores domésticos
continuam a preponderar nas explicações sobre os processos inovadores ocorridos naquela
primeira metade dos anos 1940”. Desta forma, “a análise dos efeitos da Guerra sobre as relações
de trabalho no país tende a ficar diluída num debate mais geral sobre o legado de Getúlio
Vargas”. (FORTES, 2015, p. 1).

A Segunda Guerra Mundial teve início em 1939, no entanto, embora o Brasil tenha
mantido uma política de neutralidade nos primeiros anos, o povo brasileiro acabou sendo
afetado indiretamente com a escassez alguns produtos como a farinha de trigo 978, o açúcar
branco979, a carne de rês verde980, o ferro, a borracha, o combustível, entre outros. Além disso,
os decretos-lei, n. 8.567, de 19 de janeiro de 1942 e o n. 9.080, de 20 de março de 1942
nomearam algumas empresas como de “interesse militar” e criaram o cargo de “Diretor
Técnico” para atuar nestas. Ao total o decreto citou sete empresas: a Fábrica Electro-Aço
182
Altona, em Santa Catarina; a Companhia Brasileira de Cartuchos, Laminação Nacional de 5
Metais e Companhia Nitro-Química Brasileira, todas em São Paulo; Fábrica Lindau & Comp.
e Amadeu Rossi, ambas no Rio Grande do Sul e a indústria civil Aliança Comercial de Anilinas
Limitada, sediada no Rio de Janeiro. Tais decretos demonstravam a preocupação do governo
com a produção de certos setores que interessavam ao país, e também davam indícios do que
mais adiante seria chamado de batalha da produção.

O Brasil só rompeu sua política de neutralidade, aproximando-se dos Aliados, em 22


de agosto de 1942, após ataques de submarinos alemães a cinco navios brasileiros que
navegavam em águas nacionais. Entretanto, desde janeiro de 1942, o governo brasileiro já
sinalizava para tal decisão, uma vez que, em dezembro de 1941, diante do ataque japonês ao
porto de Pearl Harbor, o Brasil declarou solidariedade ao “irmão da América”, e logo após, em

978
Para mais ler, PUREZA, 2009.
979
Para mais ler, CYTRYNOWICZ, 2002.
980
Para mais ler, SILVA, 2014.
janeiro de 1942, rompeu relações diplomáticas com os países que compunham o Eixo, ou seja,
Alemanha, Itália e Japão.

Após a declaração brasileira de guerra à Alemanha e Itália981, em 1942, o governo


brasileiro optou pela formação de um front interno e outro externo. O front externo era formado
por soldados e enfermeiras que, voluntariamente ou por meio de convocações, seriam enviados
para a frente de batalha. Já, o front interno era composto por todos os brasileiros, que,
mobilizados tinham o dever de proteger o Brasil dos espiões nazifascistas, se mantendo
preparados para ataques dos inimigos a alvos civis e também, garantir suprimentos como fardas,
armamento e alimentação aos soldados que haviam sido enviados para o campo de batalha.

1. Capítulo I - O front e a fábrica

Para que a criação desses front’s fosse possível, o governo brasileiro implantou
diversas medidas, entre elas, a criação de vários decretos-lei, entre esses o n. 4.092, de outubro
182
de 1942, pelo qual o trabalhador que fosse convocado deveria receber 50% do salário durante
o período em que estivesse servindo ao Brasil. O de número 4.328, elaborado no dia 23 de maio 6
de 1942 previa que os bancários deveriam trabalhar das 11h:30min. às 17h:30min., com um
intervalo de trinta minutos para descanso, haja vista que, devido as implicações da guerra havia
uma crise do transporte.

Além disso, os decretos-lei também faziam referência a jornada de trabalho, como por
exemplo o n. 4.639, de agosto de 1942, o qual permitia que as “empresas de serviços públicos
ou que a produção interessem à defesa nacional, estendessem suas jornadas de trabalho para
dez horas”, também previa acréscimo de 20% sobre a remuneração normal das últimas horas
trabalhadas, e se houvesse “necessidade imperiosa”, a mesma poderia estender a duração do
trabalho além do limite fixado na lei, “seja para fazer face a motivo de força maior, seja para
atender à realização ou conclusão de serviços inadiáveis cuja inexecução possa acarretar

981
A declaração de guerra foi feita aos países agressores, ou seja, Alemanha e Itália, uma vez que o Japão, até
1942, não havia atacado embarcações brasileiras. (KOIFMAN; ODA, 2013)
prejuízo manifesto”. (Decreto-lei n. 4.639, 1942). O decreto-lei 6.688, de julho de 1944 seguia
a mesma linha do decreto-lei 4.639, pois estabelecia que fábricas de fio natural ou sintético,
tecelagens, malharias ou de acabamento têxtil, seriam consideradas de interesse nacional,
equiparados aos de interesse militar. Este decreto foi dividido em sete capítulos e trinta artigos,
porém, aqui iremos nos deter no terceiro.

Em suma, o capítulo três previa: jornada de trabalho normal de 10 horas diárias para
as fábricas de interesse nacional, pagas as duas últimas horas com acréscimo não inferior a 20%
sobre a remuneração normal; permissão do regime de trabalho contínuo, assegurado aos
trabalhadores por turmas de revezamento, o descanso semanal; trabalho noturno feminino,
porém este não podia exceder 8 horas; o direito a férias poderia ser convertido em indenização
paga em dobro; permissão para que mulheres e trabalhadores com mais de 16 anos realizassem
serviços noturnos (entre 22h e 5h da manhã).

Porém, a ampliação da jornada de trabalho não era novidade para os trabalhadores. Em


sua pesquisa sobre o estado de São Paulo, Roney Cytrynowicz afirmou que: “um levantamento
realizado pela própria CETEX982 em 1944 mostrou que em São Paulo, os operários da indústria
têxtil já cumpriram, na média, as jornadas mais longas do país, como 13h30 nas seções de
182
tecelagem (12h no país), ou seja, em muito excedentes da jornada fixada pala CLT.”. 7
(CYTRYNOWICZ , 2002, p. 203).

Com o intuito de garantir a arrecadação de fundos para guerra, o governo brasileiro


criou o decreto-lei n. 4.789, de outubro de 1942, conforme previsto no artigo 6º deste, a partir
de 1943 os empregadores ficariam obrigados ao “recolhimento compulsório, mês a mês, nos
institutos e caixas de aposentadoria e pensões respectivos, de importância igual a três por cento
do montante dos salários ou ordenados ou comissões que tiverem de pagar aos associados
desses institutos”. (Decreto-lei n. 4.789, 1942).

Os sindicatos também sofreram implicações em decorrência da guerra, prova disso foi


a criação do decreto-lei 4.637, de agosto de 1942, o qual determinava que estes deveriam
colaborar com os poderes públicos enquanto durasse o estado de guerra. Para isso, era solicitado
que as entidades sindicais dos empregadores e dos empregados mantivessem contato para que,

982
Comissão Executiva Têxtil.
ambas conseguissem conciliar os dissídios decorrentes de contratos de trabalho. Além disso, a
partir de então os trabalhadores súditos do Eixo983 estavam proibidos de participar de
assembleias ou reuniões, não poderiam ter acesso a sede dos sindicatos e seus direitos eleitorais
foram suspensos.

Glaucia Konrad, em sua tese de doutorado intitulada Os trabalhadores e o Estado


Novo no Rio Grande do Sul: um retrato da sociedade e do mundo do trabalho (1937-1945),
apresenta cartas escritas por trabalhadores para Getúlio Vargas e ao interventor do Estado na
época, Osvaldo Cordeiro de Farias. Os imigrantes alemães e italianos, Hans Nicolai, Marta
Mehnert e Fidelis Mastrascusa em carta endereçada ao presidente Vargas, explicavam que
estavam “devidamente legalizados na Repartição Central de Polícia do Rio Grande do Sul” e
que eram estudantes do Instituto de Ensino Comercial do Sindicato dos Empregados do
Comércio de Porto Alegre. Entretanto, o decreto-lei n. 4.637 lhes impedia de frequentar a sede
do sindicado, local onde tinham aula. O Departamento Nacional do Trabalho em resposta,
alegou que as medidas previstas pelo decreto-lei que se referiam as limitações “de direitos
políticos da vida sindical”, não falavam nada sobre restrições aos serviços de assistência dos
sindicatos, deste modo, os imigrantes estavam liberados para frequentar as aulas984. 182
(KONRAD,2006, p. 243).
8
Outro decreto-lei criado no contexto de guerra foi o n. 4.638 de, 31 de agosto de 1942,
através o qual, o governo federal criou uma exceção para a Lei 62, de 5 de junho de 1935. De
acordo com esta, o trabalhador que permanecesse na mesma empresa por dez anos ou mais
adquiria estabilidade, ou seja, não podia ser demitido sem abertura prévia de um inquérito
administrativo para apuração de falta grave ou força maior. Entretanto, considerando o estado
beligerante do país, o decreto permitia a rescisão de contratos de trabalho de empregados
alemães, italianos e japoneses.

O decreto-lei n. 5.689, de 22 de julho de 1943 proibia a demissão de trabalhadores


reservistas em idade de convocação militar. Exceto se houvesse justa causa, ou caso estes

983
Súdito do Eixo era a nomenclatura oficial utilizada para referir-se a alemães, italianos e japoneses.
984
Caso apresentado na tese de Glaucia Konrad foi encontrado ANRJ/FGCPR, Série Ministério do Trabalho, Lata
404, 35985-942/SC – 1171. GM 12172- 42. Parecer do ministro do Trabalho Marcondes Filho, em 6 de novembro
de 1942.
manifestassem vontade de deixar o emprego. Contudo, por meio do decreto-lei 4.937, de 9 de
novembro de 1942, o governo classificava como desertores os trabalhadores nacionais que
trabalhassem para as empresas de interesse nacional ou militar e faltassem ao trabalho por oito
dias seguidos, sem apresentar justificativa. Para os trabalhadores alemães, italianos e japoneses,
tais faltas eram consideradas atos de sabotagem.

No Rio Grande do Sul, as fábricas Lindau e Forjas Taurus, Amadeo Rossi, Eletro Aço
Plangg, Abramo Eberle e Gazola Travi foram mobilizadas. Entretanto, as minas de carvão do
Rio Grande do Sul, não foram consideradas oficialmente de interesse militar ou nacional,
porém, por meio de portaria lançada em 11 de março de 1943, no Diário Oficial da União, os
trabalhadores da produção e transporte de carvão foram considerados “mobilizados”. De acordo
com Clarice Speranza, tal medida não declarava as minas do Rio Grande do Sul “interesse
militar”, apenas “visada impedir o abandono de trabalho, coibindo a transferência de
trabalhadores entre as empresas” (SPERANZA, 2012, p. 116).

Segundo Glaucia Konrad, “a palavra de ordem para o momento era “disciplina e muito
trabalho, haja o que houver” (KONRAD, 2006, p. 256). Todavia, Angela de Castro Gomes
acredita que se tratava de um momento político especial, visto que os trabalhadores “de um
182
lado, eram forçados a trabalhar em condições em que não tinham vigência de vários direitos 9
sociais já garantidos por lei, e de outro, eram conclamados a assumir um papel central na
“batalha da produção” desencadeada justamente pelo homem cujo maior título era de ter
outorgado estes direitos sociais” (GOMES, 2013, p. 225).

Em geral, o período da guerra, 1939 a 1942, foi bastante ambíguo no que se refere as
questões trabalhistas. Haja vista que, ao mesmo tempo em que se elaboravam decretos-lei em
nome do esforço de guerra, ora flexibilizando ora retirando os direitos trabalhistas já
conquistados pelos trabalhadores. Também era elaborada e implantada, a Consolidação das Leis
do Trabalho – CLT, na qual estes direitos permaneciam garantidos.

A CLT, foi criada em 1943, como parte de uma perspectiva populista de governo.
Entretanto, Ângela de Castro Gomes prefere utilizar a expressão “trabalhismo” ao invés de
populismo, tendo em vista a carga pejorativa que tal termo carrega. Além disso, para a autora,
a CLT veio para coroar os esforços de implementação deste projeto de governo. (GOMES,
2002)
Daniel Aarão Reis (2007) também defende a não utilização do populismo. Para o autor,
a utilização do conceito de populismo não possibilita a compreensão do processo histórico
brasileiro. Desta forma, Reis defende a utilização do conceito trabalhismo, sendo este a forma
nacional do que o autor chama da tradição nacional-estatista.

Para Jorge Ferreira, o trabalhismo foi um projeto implantado pelo Estado a partir de
1942, que atendia interesses comuns do Estado e dos trabalhadores. Além disso, estavam
presentes:

Ideias, crenças, valores e códigos comportamentais que circulavam entre os próprios


trabalhadores muito antes de 1930. Compreendido como um conjunto de experiências
políticas, econômicas, sociais, ideológicas e culturais, o trabalhismo expressou uma
consciência de classe, legítima porque histórica [...]. (2013, p. 103)

Todavia, não existe um consenso entre historiadores sobre a não utilização do termo
populismo. Por exemplo, Alexandre Fortes (2007), não utiliza o termo trabalhismo, pois
acredita que essa troca não rende muitos frutos. Visto que “estaríamos diante de um fenômeno 183
totalizador”, no qual compreende que os comunistas, socialistas e anarquistas teriam sido
0
vencidos pelo estado ditatorial de Vargas, estando nas mãos deste último a constituição da
classe operária.

Os historiadores Fernando Teixeira da Silva e Hélio Costa, acreditam que o sistema


populista designava o que era politicamente possível, no entanto não impedia a existência de
diversos projetos políticos nem mesmo substituía a ação das classes sociais. Os trabalhadores
não eram massa de manobra, eles impunham limites à exploração política e econômica. “Ao
contrário da adesão cega e ativa, podia funcionar um pragmático realismo com elevado senso
de cálculo em torno dos retornos e benefícios possíveis”. (SILVA; COSTA, 2014, p. 225).

Para o brasilianista Jonh French, havia um “abismo”, entre o que a CLT previa e a
realidade cotidiana dos trabalhadores brasileiros. Desta forma, para o autor, a legislação só
passou a ser aplicada “na medida em que os trabalhadores lutaram para transformar a lei de um
ideal imaginário em uma realidade futura possível. ” (FRENCH, 2002, p.10). Ou seja, o direito
foi encarado pelos trabalhadores brasileiros como uma forma de luta “por dentro” do sistema.
Deste modo, partimos do princípio que tanto a Justiça do Trabalho quanto a legislação
trabalhista representavam meios de resistências legais, pelos quais os trabalhadores poderiam
requerer seus direitos, além de denunciar abusos cometidos pelos patrões, para isso, buscamos
o referencial de E. P. Thompson.

No livro Senhores e Caçadores, Thompson analisa a criação e aplicação da primeira


legislação inglesa, no século XVIII, a qual punia com pena de morte, indivíduos que
ultrapassassem os limites da floresta real de Windsor para pescar, caçar ou roubar animais.
Segundo Thompson, embora as leis sejam formadas por interesse, ideologia e lógica da classe
dominante, estas acabam alcançando uma autonomia limitada, pois existe uma retórica de
justiça, perante a qual todas as pessoas são iguais.

Assim, a lei (concordamos) pode ser vista instrumentalmente como mediação e


reforço das relações de classe existentes e, ideologicamente, como sua legitimadora.
Mas devemos avançar um pouco mais em nossas definições. Pois se dizermos que as
relações de classe existentes eram mediadas pela lei, não é o mesmo que dizer que a
lei não passava da tradução dessas mesmas relações, em termos que mascaravam ou
mistificavam a realidade. (THOMSPSON, 1986 p. 353) 183
1
Portanto, a lei segundo o autor é um meio legal de luta que a classe dominada dispõe,
tornando-se desta forma um campo de conflito social no qual o trabalhador como agente ativo
irá agir de acordo com a conjuntura.

Conforme Maria Célia Paoli, a legislação trabalhista e sindical significou um novo


“cenário para luta entre os grupos e as classes sociais”. E a partir disto, “os atores em luta
colocaram no centro do drama a questão das formas da participação social e política nos
destinos da sociedade, isto é, a questão do acesso aos direitos de trabalho, de vida, de expressão
de seus interesses” (PAOLI, 1987, p. 70).Cria-se desta forma uma “crença simbólica nos
direitos”, e, em vista disto, “a formação da classe operária brasileira não pode ser entendida
sem considerar-se a intervenção legal do Estado nas relações de trabalho cotidianas” (PAOLI,
1988 apud FRENCH, 2002, p.10) , uma vez que o fazer-se da classe trabalhadora ocorre através
da luta, da experiência de exploração vivenciada diariamente. (THOMPSON, 1987). Abaixo
vamos analisar um dos processos trabalhistas ajuizados em Santa Maria, em 1944, que faz
referência a um dos decretos-lei criado em meio ao estado de guerra no Brasil.

2. Capítulo II - Análise quantitativa

Neste artigo iremos nos deter em uma análise quantitativa das demandas do decreto-lei
5.689, de 22 de julho de 1943, nas cidades de Pelotas e Santa Maria. De acordo com o frisado
anteriormente previa que homens em idade de convocação militar não poderiam ser sem justa
causa, exceto quando os trabalhadores expressassem a vontade de sair do emprego.

Embora a Justiça do Trabalho tenha sido instituída em 1941, a Junta de Conciliação de


Julgamento de Pelotas foi criada somente em 1946, porém, isso não significa que os
trabalhadores não podiam ajuizar suas reclamações. Até o momento da criação das juntas os
processos trabalhistas eram ajuizados na Justiça Cível e julgados por um juiz de direito que por
vez fazia o papel de um juiz do trabalho.
183
Em uma busca no acervo da Justiça do Trabalho de Pelotas encontramos 66 processos
2
trabalhistas que pleiteavam os direitos previsto pelo decreto-lei dos reservistas. De modo geral,
todos processos foram ajuizados por homens, variando entre processos individuais movidos por
apenas um trabalhador, individuais plúrimo ajuizado por mais de um trabalhador e pelas
próprias empresas contra seus funcionários.

A tabela abaixo apresenta a relação de empresas que foram demandadas pelos


trabalhadores, na Justiça do Trabalho de Pelotas, requerendo os direitos previstos pelo decreto-
lei 5.689 de 1943.

Nome da empresa Número de processos


Cia. Fiação e Tecido Pelotense 1
Companhia Indústrias Linheiras S/A 1
Companhia Nacional de Óleo de Linhaça 2
Confraria Gaspar - J.C. Arantes 1
Engenho Santa Inácia 1
Ernesto Woebke & Cia Ltda. 1
F. Treptow & Cia. Ltda. 1
Fábrica de Cintas de Borracha 1
Mascarenhas & Filho 1
Sequeira e Pinto 1
Sociedade Anônima Frigorífico Anglo 34
Sociedade Industrial de Bebidas, Café e Fumos Pelotense Ltda. 2
Sociedade Laticínios de Pelotas 1
The Riograndense Light and Power 5
Wigg & Companhia (Posto de Gasolina) 1
Yurgel & Cia 1
Total: 55 processos
183
Fonte: Acervo da Justiçado Trabalho de Pelotas – Núcleo de Documentação Histórica da 3
Universidade Federal de Pelotas.

Conforme a tabela acima, a empresa campeã de demanda era um grande frigorífico da


cidade, Sociedade Anônima Frigorífico Anglo, com 34 reclamações, em segundo lugar estava
a empresa de energia elétrica e transporte público The Riograndense Light and Power, com 5
processo, em terceiro lugar as empresas Companhia Nacional de Óleo de Linhaça e Sociedade
Industrial de Bebidas, Café e Fumos Pelotense estavam empatadas em terceiro lugar com duas
reclamações. A grande quantidade de processos contra o Frigorífico Anglo em relação as outras
empresas não se expressa apenas em relação ao decreto-lei em questão, haja vista que era a
empresa mais demandada até a década de 1950 em Pelotas.

De acordo com a tabela apresentada anteriormente, os trabalhadores de Pelotas


ajuizaram 55 processos trabalhistas, estes poderiam ter quatro desfechos: procedente,
procedente em parte, acordo ou improcedente, além disso, em caso de ausência ou solicitação
do trabalhador, a ação poderia ser arquivada. Abaixo demonstramos com um gráfico os
resultados estas ações.

Nº de processos ajuizados pelos trabalhadores

Procedente
14%

Procedente em parte
35% 183
4
Improcedente
29%

Acordo
9%
Arquivado
13%

Procedente Improcedente Arquivado Acordo Procedente em parte

Fonte: Acervo da Justiçado Trabalho de Pelotas – Núcleo de Documentação Histórica da


Universidade Federal de Pelotas.

O gráfico acima nos aponta que a maior parte das reclamações foram julgas procedentes
em parte, isto se explica pelo fato de que, em média as ações eram julgadas durante 2 anos,
portanto muitos resultados saíam após o término da guerra, quando o decreto-lei não estava
mais em vigor, desta forma os juízes negavam o pedido de reintegração, mas garantiam-lhes os
direitos de indenização por demissão sem justa causa e aviso prévio, por este motivo que 35%
das reclamações eram julgadas procedentes em parte.

Os processos improcedentes totalizam 29%, a maior parte destes tiveram tal julgamento, porque
o trabalhador não conseguiu provar que estava a 1 ano ou mais trabalhando para mesma
empresa, sendo essa uma condição necessária para que a estabilidade fosse reconhecida.

Portanto, se considerarmos que 35% das ações foram procedentes em parte, 14%
procedente e 9% aceitaram um acordo, os trabalhadores de certa forma tiveram suas
reclamações atendidas, pelo menos em parte. Este resultado vai ao encontro da afirmação de
Larissa Corrêa, que em sua pesquisa sobre os processos individuais de São Paulo entre 1953 e
1954, afirma que “dificilmente, o trabalhador poderia ganhar ou perder totalmente uma
reclamação. Afinal, eram os diversos fatores em jogo no momento de conciliação, sendo uma
tarefa delicada para o pesquisador avaliar esses resultados” (CORRÊA, 2011, p. 173).

Algo recorrente nos processos era a mudança de pedido, primeiro o trabalhador ajuizava sua
reclamação pleiteando aviso prévio e indenização por demissão sem justa causa, porém durante
o processo, mudava o pedido, abrindo mão do aviso prévio e requerendo reintegração e 183
indenização por e tempo em que esteve afastado da empresa devido a demissão arbitrária.
5
Conforme frisado anteriormente, o decreto-lei 5.689 previa estabilidade provisória aos
trabalhadores homens em idade de convocação militar, haja vista que estes só poderiam ser
demitidos mediante justa causa ou se houvesse interesse por parte dos trabalhadores. Deste
modo, encontramos 11 processos em que as empresas ajuizaram solicitando a homologação de
demissões de acordo com a vontade de seus funcionários, sendo estes homologados.

CONCLUSÃO

Após a análise quantitativa dos processos trabalhistas que pleiteavam reintegração,


conforme previsto pelo decreto-lei 5.689, de 22 de julho de 1943, percebemos que na cidade de
Pelotas as primeiras ações pleiteando reintegração foram ajuizadas no início do ano de 1944, o
que demonstra que houve uma demora de aproximadamente 6 meses para que o decreto
passasse a ser requerido pelos trabalhadores. Essa lenta tomada de conhecimento do decreto-lei
em questão, também pode ser percebido no caso de alterações das demandas, pois como já
frisado, em vários casos os trabalhadores entravam na Justiça do Trabalho requerendo
indenização por demissão sem justa causa e aviso prévio, sendo esses direitos mais consagrados
no meio trabalhista, e no decorrer do processo trocavam a reclamação citando o decreto 5.689.

Portanto, além das considerações feitas no decorrer da análise de que em geral os


trabalhadores conseguiram algum resultado com suas reclamações, notamos que assim como a
lei que previa aviso prévio e indenização, o decreto-lei 5.689 se transformou em um meio de
luta e resistência legal dos trabalhadores reservistas, inclusive sendo utilizado juntamente com
discursos patriótico para justificar a importância da existência deste decreto.

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http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1940-1949/decreto-8567-19-janeiro-1942-
459336-publicacaooriginal-1-pe.html>>. Acesso em: 03 fev. 2015.

Lei 62, de 5 de junho de 1935. Disponível em << http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1930-


1939/lei-62-5-junho-1935-557023-publicacaooriginal-77282-pl.html>>. Acesso em: 13 mai.
2015.
A CULTURA POLÍTICA DO POPULISMO EVIDENCIADA NO GOVERNO DE
OTTOMAR DE SOUSA PINTO EM RORAIMA

Elen Patrícia da Silva Nogueira

RESUMO

Este trabalho é parte do fruto de minha dissertação de mestrado, sobre a cultura política
populista. O populismo é um objeto de estudo bastante complexo, portanto muitos são os
teóricos que intentam traçar suas características. Durante a primeira metade do século XX os
governos populistas de países como Brasil, México e Argentina, tiveram características
autoritárias e desenvolvimentistas, além da prática comum da política paternalista. Este tipo de
política também ocorreu em Estados brasileiros, onde ao decorrer do tempo a persuasão popular
tornou-se o principal meio de se manter no poder. Um destes estados é Roraima, onde 184
0
pontificou a figura política de Ottomar de Sousa Pinto, devido a suas ações assistencialistas e
sua personalidade carismática e cordial demonstrada nos seus diversos mandatos como
governante desde 1979. Como tem se tornando comum confundir um governo assistencialista
com um populista foi traçado neste trabalho as características comuns e incomuns entre os
referidos tipos de governo para poder concluir realmente se o governante mencionado se
utilizou do populismo para governar ou se apenas foi um assistencialista utilizando a falsa
máscara da cordialidade postulada por Sérgio Buarque de Holanda e João Cézar de Castro
Rocha. Um governante pode se utilizar do assistencialismo para governar e não ser populista,
da mesma forma, um político pode utilizar a falsa máscara da cordialidade pra governar, além
do assistencialismo e também não ser considerado populista; o que vai diferenciar o populista
dos dois primeiros casos é a sua personalidade carismática, teorizada por Max Weber, que o


Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.

Graduada em História (UFRR). Mestranda em História e Estudos Culturais (UNIR). Bolsista CAPES. E-mail:
elenpatsn@gmail.com.
fará se aproximar das “massas” naturalmente ao conduzir, para isso, uma política
assistencialista e cordial.

Palavras-chave: Populismo; Governo de Ottomar; Roraima.

INTRODUÇÃO

A imprensa de Roraima e a tradição local demonstram que Ottomar (1931-2007) foi um


governador que utilizou-se de políticas amplamente assistencialistas. Isto embasado no fato de
que no seu primeiro governo (1979-1983), ainda no tempo do território federal, ele apoiou e
concedeu auxílios aos migrantes, principalmente nordestinos, além de buscar a paz e união dos
antigos grupos políticos então em intrigas (LOBO JR., 2008). No seu segundo governo (1991-
1994), quando o território já havia sido transformado em Estado da União Federal, segundo os
Jornais do Estado dos anos pesquisados como o Jornal de Roraima (JR), Diário de Roraima 184
(DR), Folha de Boa Vista (FBV) e O Estado de Roraima (ER), ele aprimorou sua política
1
assistencialista concedendo cestas básicas para a população mais carente, providenciando festas
e presentes nas datas comemorativas, tais como Semana Santa, Natal, Dia das Mães e dos Pais;
além de conceder terrenos e casas populares, dentre outras ações de mesmo caráter popular.

Mesmo após sua morte, observa-se que ele não foi esquecido, isto é, deixado de ser
mencionado devido suas ações políticas, além do fato de seu túmulo em Boa Vista sempre ser
visitado por parte da população. Como os três primeiros jornais citados eram a seu favor havia
um marketing muito grande que o denotava como popular, no melhor sentido político possível,
isto é, era colocado como o famoso e reverenciado “homem do povo”! Em conversas informais
e em entrevistas à pessoas que vivenciaram seu governo pode-se perceber que grande parte das
informações jornalísticas procedem, contudo a forma que escreviam geralmente o enaltecia. E
mesmo entre algumas controvérsias, não dá para negar uma característica forte ao político
populista em Ottomar: o carisma.
Ottomar foi quatro vezes Governador em Roraima, uma vez Prefeito de Boa Vista e em
1988 Deputado Federal Constituinte. Conforme Lobo Jr. (2008), Freitas (1993) e Santos (2004)
Ottomar ao longo de sua carreira passou por vários partidos, dentre eles, ARENA, PDS, PTB e
PSDB. Entre suas perdas estão: a derrota em 1985 para “Aliança Democrática” constituída pelo
PFL e PMDB, que elegeu o advogado Silvio de Castro Leite para Prefeito de Boa Vista; em
1989 quando perdeu a eleição novamente para Prefeito de Boa Vista, para Barac Bento, e a de
Governador para o Engenheiro Neudo Campos em 1998; e em 2002 nas eleições para
Governador perdeu para Flamarion Portela, Vice-Governador de Neudo Campos. Retornou
para a cena política do poder em 2004 como chefe do executivo, depois da cassação de
Flamarion por “crime eleitoral”, continuando o mandado em 2006 após derrotar o Senador
Romero Jucá no primeiro turno.

A história e principalmente a memória de Ottomar Pinto no Estado de Roraima se dão


pela perpetuação das representações produzidas por ele a partir dos seus discursos
recepcionados na imprensa, do líder popular, do homem do povo que lutava pela causa dos
pobres e pela conciliação dos grupos políticos do Estado, que ia pessoalmente cumprimentar
cada pessoa e entregar presentes e benesses a população. Esse modo de agir de tratar 184
individualmente cada pessoa nos traz a memória uma das características utilizada por Weffort
2
em que ele afirma que “[...] no populismo as relações entre as classes sociais se manifestam de
preferência como relação entre indivíduos” (1980, p. 74).
Para compreendermos essa complexa política voltaremos sumariamente a origem da
construção da esfera pública brasileira. Nesta perspectiva, será possível perceber que algumas
das características concernentes e intrínsecas ao governante populista brasileiro tem a ver com
a confusão entre o público e o privado que fez surgir, conforme João Cézar de Castro Rocha
(1998), o homem cordial. Este homem voltado para as “coisas do coração”, sem afeição as leis
e que age tendo por base mais a emoção do que a razão, sendo por essa causa violento quando
seus objetivos são ameaçados; e por isso mesmo confunde o público com o privado, trazendo
com suas ações corrupções para a esfera pública. Conforme Gilberto Freyre (1966), essas
características foram trazidas pelos ibéricos, principalmente os portugueses, que implantaram
aqui o sistema patriarcal quando o Brasil ainda era uma Colônia. Como os primeiros políticos
do país eram homens nobres, por tal aculturados no sistema mencionado, levaram para a esfera
pública os seus costumes autoritários e nepotistas que permanecem até hoje.
As fontes utilizadas para esta pesquisa demonstram que o personagem em foco foi um
governador que utilizou-se de políticas amplamente assistencialistas em todos os seus quatro
mandatos na região – porém, me aterei mais aos anos do seu primeiro governo do Estado de
1991 a 1994. Mas, como abordei anteriormente, não basta se utilizar do assistencialismo para
ser considerado populista, neste mirante a análise sobre seus discursos e ações serão
aprofundadas e comparadas com o referencial teórico que tratam dos conceitos de populismo,
assistencialismo, cordialidade e carisma.

1. Capítulo I - Ottomar entre o populismo, o assistencialismo e a cordialidade

De acordo com Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (2004) a palavra “populismo”


pode significar: primeiro, para o gênero literário, a procura de temas baseados no povo.
Segundo, para a Ciência Política, ação política que toma como referência e fonte de
legitimidade o cidadão comum, cujos interesses pretende representar. Por fim, no sentido da
cultura política brasileira, uma política fundada no aliciamento das classes sociais de menor
poder aquisitivo; e no sentido mais geral é a simpatia pelo povo.

O termo assistencialismo provêm da palavra assistência, que conforme o mesmo autor


184
(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira), significa entre várias coisas: ato ou efeito de assistir; 3
conjunto de assistentes; proteção, amparo, ajuda e auxílio. Com o tempo essa palavra
(assistência) sofreu modificações e se tornou um termo da política: o assistencialismo. O
mesmo se tornou sinônimo de prática política que defende a assistência aos mais carentes da
sociedade; se baseando no conceito de assistência governamental, isto é, na obrigação que
contraem os governos com seus cidadãos de assisti-los no que se refere à subsistência básica
mínima, como no caso dos seguintes direitos: Moradia a pessoas sem lugar (direito à um lar),
albergues, refeitórios públicos e cuidados sanitários. Na teoria essa ideia é louvável, entretanto,
na prática se tornou um termo um tanto pejorativo assim como o populismo, devido as ações
desonestas dos líderes políticos que “presenteiam” a população carente em troca de votos (o
que lembra os antigos termos utilizados para caracterizar alguns tipos de política do país, como
o voto de cabresto e o coronelismo).
Conforme Solange Silva dos Santos Fidelis (2004), no que se alude às práticas
assistenciais, tem sido comum a confusão na utilização dos termos assistência e
assistencialismo. Ainda segundo Fideles (2004), quando se trabalha com a política de
assistência social nos ambientes em que a intervenção se distingue pelo caráter emergente é
comum classificar esta ação como uma prática assistencialista. Entretanto, não se deve igualar
ou confundir atuação de emergência com assistencialismo. As ações emergenciais são tão
dignas e imprescindíveis quanto os demais atos, o que distingue esses dois termos são os
objetivos pelos quais são desenvolvidos.

A Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) reconhece, em seu Artigo 15, a


legitimidade das ações emergenciais, porquanto é imprescindível suprir as necessidades básicas
e emergenciais da população. Mas, apesar da existência destas legislações coerentes ao direito
social, muitas ações são desenvolvidas de acordo com o interesse particular dos líderes do
Estado. Estas sim podem ser taxadas como assistencialistas, pois em vez de “emancipar” o
cidadão reforça sua condição de subalternização perante os serviços prestados. Esclarecendo
melhor, estas ações são manipulações partidárias por requerer em troca dos “benefícios” favores
e votos da população carente, nos períodos eleitorais.

Muitas críticas a respeito do assistencialismo são postadas nas redes sociais devido a
quantidade exuberante de dinheiro gasto, sem ter qualidade nos serviços prestados e muito
184
menos retorno a sociedade. A ideia transmitida para solucionar tal questão, sugerida na maioria 4
das críticas, tem a ver com gerar mais empregos que beneficiem essa população em vez de dar,
por exemplo, uma cesta básica ou uns poucos trocados (dinheiro) por mês, o que além de suprir
de forma deficiente torna a maioria acomodada. Porém, como essa situação tende a permanecer
graças a cultura política atrasada do país, onde seus líderes políticos preferem manter um
eleitorado controlado e a sua mercê para conseguir se manter no poder de forma desonesta, em
vez de buscarem melhorar a estrutura econômica do país ao favorecer a população em geral no
lugar de alguns poucos que estão no poder. A população que depende dos serviços e benefícios
prestados por essas políticas, para garantir sua sobrevivência, a aceitam sem questionar, isto é,
sem se importar no que vão ter que fazer depois.

Segundo Marco Antonio Villa (2012) o assistencialismo é um fenômeno historicamente


recente. Esses laços entre um político e a comunidade, a qual ele representa, são estabelecidos
a partir dos anos 1960. Isso tem a ver com o rápido processo de urbanização do Brasil, que
levou ao estabelecimento de laços coronelísticos entre o político e o seu eleitorado. Esses
vínculos existiam antigamente no campo e acabaram chegando as cidades devido a rápida
urbanização do país, sobretudo entre os anos 1950 e 1960, data que também retrata o surgimento
do populismo no Brasil.
Em uma entrevista concedida ao Instituto Millenium no dia 31 de agosto de 2012 o
historiador Marco A. Villa criticou o assistencialismo praticado nos centros “sociais” ao
comparar o mesmo com a compra de votos feita na época do coronelismo. Ressaltou ele: “O
curioso é que a bota era dada com recurso privado, o coronel da região que dava a bota. Agora,
veja a evolução do Brasil, o remédio é dado com recursos públicos para favorecer interesses
privados”. Essa confusão entre o público e o privado caracteriza o nosso próximo termo: a
“cordialidade”, o que nos leva pensar que os três conceitos aqui tratados em algum momento
se encontram, já que possuem pontos comuns. Agora cabe analisar suas diferenças e
peculiaridades para podermos constatar como cada um desses termos se encaixa ou não no
governo de Ottomar.
De acordo com o Dicionário Online de Português “cordialidade” significa: qualidade de
cordial; ação de expressar carinho, afeto e amizade; comportamento informal e educado em
ambientes de trabalho. Todavia, a “cordialidade” que aqui será tratada diverge da ideia positiva 184
do dicionário, como veremos adiante.
O primeiro a tratar do termo “cordialidade” foi o jornalista, poeta, acadêmico Ruy 5
Ribeiro Couto (1898-1963). Sergio Buarque de Holanda, o tão referenciado e prestigiado autor
que também trata do assunto, apenas deu uma fundamentação sociológica ao termo. O “cordial”
conceituado por Holanda nada condiz com o formulado pelo dicionário anteriormente, isto é,
de ser sinônimo de afetuoso, afável, cortês, simpático, educado; pelo contrário, tem a ver com
seu radical latino “core, cordis”, que significa “do coração”. O homem cordial tratado por
Ribeiro Couto e Sergio Buarque diz respeito ao caráter emocional e passional do brasileiro.
Este tratado por ambos, especialmente pelo último, não é gentil. Ele é emocional, age deixando
a razão de lado, é pouco afeito às leis, confunde o público com o privado, abomina formalidades
e despreza a ética, a civilidade e a cidadania.
Podemos observar um exemplo sobre essa confusão do público e do privado e da pouca
afeição as leis, quando Ottomar distribuiu pintos e rações na Associação dos Moradores do
Calungá em pleno período eleitoral (eleição para prefeito em 1992, o governador apoiava um
dos candidatos a prefeito), o que mostrou a sua falta de afeição as leis naquele momento
descrito, porquanto ele como governador sabia da proibição da Justiça Eleitoral. Sendo que a
confusão do público e do privado tem a ver com os seus seguranças terem agredido os
jornalistas do jornal da oposição o Estado de Roraima; e para concluir ter dito que iria distribuir
os pintos porque era ‘macho’, o que também denota o seu lado emocional ao deixar a razão de
lado, esquecendo-se que o seu cargo e sua ação naquele momento o define como um sujeito
público e não “privado”. Entretanto, podemos perceber que todas essas ações visam seus
interesses privados de se manter no poder.
Outro caso que evidencia o seu caráter cordial, por em dado momento fazer descaso das
leis e desprezar a ética que um homem considerado público deve possuir, foi descrito no jornal
Estado de Roraima no dia 01 de outubro, do mesmo ano eleitoral de 1992, quando a justiça já
havia proibido o governo de distribuir bucho e outros alimentos, por tempo indeterminado, visto
que as distribuições foram consideradas abusivas pela justiça eleitoral. Foi denunciado pelo
jornal citado que até a garagem Rodopinto985 estava sendo usada para prática de crime eleitoral
pelo governador, que mais uma vez desobedecia a justiça. Segundo a fonte um caminhão foi
fotografado pela equipe do jornal descarregando mercadoria no pátio da Rodopinto que ficava
a 50 metros do jornal Diário de Roraima pertecente ao governo, que por tal fazia “vista grossa” 184
ao ocorrido.
A importante pergunta do momento a se fazer é: quem foi Ottomar durante o seu 6
primeiro governo do Estado? E a partir deste questionamento se faz outros, como: foi ele um
governador populista? Ou apenas se utilizou do assistencialismo como forma de governar e ao
mesmo tempo para se manter no poder? E por fim, sua personalidade cordial seria em parte
responsável por sua escolha de forma de governar? O restante deste tópico terá como objetivo
analisar e cogitar as possíveis respostas acerca dessas perguntas.
O que podemos perceber com base na história é que todo governo populista tem como
base o assistencialismo, e que o seu governante além de ser carismático é também cordial. A
controvérsia está na inversão dos termos, isto é, nem todo homem cordial é populista ou
assistencialista, e nem todo assistencialista é populista. Sendo assim, vamos esclarecer tais
questões por partes, primeiro: quais ações ou projetos do governo administrado por Ottomar
evidenciam que em seu governo (1991-1994) foi utilizado o assistencialismo?

985
Garagem de transportes públicos pertencentes ao Estado que detinha a maior fátia do mercado de transporte
urbano, por não cobrar passagens a população.
Vários projetos de assistência foram colocados em prática no governo do brigadeiro,
como por exemplo: o programa social “cestão da gente” para as famílias carentes, lançado em
junho de 1991, publica o Jornal de Roraima no dia 05 do mesmo mês mencionado. Essa ação
foi realizada durante os quatro anos do primeiro governo do Estado (1991-1994), e também nos
seus mandatos posteriores, nos bairros periféricos da cidade e nos municípios e interiores do
Estado.

Outro programa foi o do “mutirão da casa própria” que funcionava em ação conjunta do
estado com a população carente, onde o governo concedia material de construção e as pessoas
beneficiadas se juntavam para construir suas casas nos lotes cedidos pelo governo. Grande parte
dessa população era de migrantes do nordeste que foram trazidos para a região ou vieram por
conta própria por meio de propagadas políticas desde o período do território. Ottomar recebeu
verbas públicas para esse fim.

Pude analisar algumas questões em conversas informais com pessoas que presenciaram
os governos de Ottomar desde a época do território: 1. As pessoas mais leigas que migraram do
nordeste para Roraima e receberam benefícios do governo são gratas a Ottomar e o defendem
com “unhas e dentes”. 2. Já as que vieram, devido também as propagandas do governo que
184
eram realizadas em sua região de origem, e não conseguiram o que esperavam o chamam de 7
populista mentiroso, dentre outros termos. 3. Por sua vez, as pessoas que participaram mais de
perto do seu governo e possuem um conhecimento do sistema político mais do que os primeiros
referenciados, embora divirjam em alguns pontos em suas considerações ao referente governo
ambos concordam que Ottomar era carismático, popular e assistencialista; e que mesmo que ele
tenha utilizado o assistencialismo como base para alcançar ou manter seus eleitores, ele foi o
melhor e mais famoso governador do Estado, pois conforme os mesmos ele não apenas
manipulava, como alguns políticos, também se preocupava com a modernização do Estado,
prova disso são os principais prédios públicos de Boa Vista (no centro da capital) construídos
durante os anos de seu governo que até hoje podem ser considerados modernos e estão em uso;
além do principal e único Parque da cidade, onde o brigadeiro costumava fazer as festas
públicas com entrega de presentes.
Com base no que foi escrito acima podemos evidenciar melhor o que as pessoas
achavam do governo de Ottomar colocando em pauta a resposta de uma das pessoas que
entrevistei para este trabalho que é continuidade da minha pesquisa de monografia (esta
entrevista se encontra na minha monografia, 2014). Embora, a pergunta específica para esta
resposta tenha sido se os maiores eleitores do governo analisado eram os migrantes que vinham
do nordeste, sua fala, de Meiry Saraiva (2013), acabou trazendo as questões que destacamos no
parágrafo anterior. Segundo a mesma:

Eu acho que esses eram a grande maioria, mas ele tinha simpatizantes em todas as
camadas. Eu acho que também o pessoal que foram beneficiados por ele com cargos,
que eram da camada da elite também gostavam dele. E eu não tiro esse mérito dele
não, não vou dizer pra ti que ele era um governo ruim não, pelo contrário ele era um
governo que além de ajudar a população carente, ele era um cara futurista, ele era
um cara que pensava no amanhã. O que ele construiu em Boa Vista está aí pra todo
mundo ver. Quer dizer, ele não foi uma pessoa que se preocupou em só em manter o
curral eleitoral dele não, ele também fez coisas para o Estado. Por exemplo: a criação
dos tribunais, da Assembleia, esses prédios aí tudo foram Ottomar que alavancou,
por exemplo o Palácio da Cultura, era ali onde hoje está a Assembleia [que] ele
desativou, fez o prédio da Assembleia, e em compensação construiu o Palácio da
Cultura aqui por que ele achava que era necessário. Então assim, ele tinha essa visão,
construiu um prédio belíssimo aqui onde é o Palácio da Cultura que foi inaugurado
em 1993 e está aí um prédio moderno, depois de vinte anos ele ainda é um prédio
moderno.
184
8
Meyre Saraiva foi professora em Boa Vista quando ainda o Estado era considerado
Território Federal, ou seja, ela presenciou o governo biônico de Ottomar em 1979 a 1983; e
durante os anos do seu primeiro governo, de 1991 a 1994 enquanto já constituído Estado da
Federação brasileira, ela participou da secretaria de educação do local, e atualmente trabalha na
parte do patrimônio cultural da biblioteca central da capital, onde se localiza o acervo dos
jornais conservados do Estado. Com base nestes dados podemos enquadrá-la na terceira classe
de pessoas que presenciaram o governo em pauta, isto é, aquelas pessoas que participaram mais
de perto do seu governo e possuem certo conhecimento do sistema político, e que acha que
embora ele tenha utilizado o assistencialismo como base para alcançar ou manter seus eleitores,
foi o melhor e mais famoso governador do Estado, pois não apenas manipulava, como alguns
políticos, mas também se preocupava com a modernização do Estado.
Outras formas de assistencialismo eram realizadas nas datas comemorativas, por
exemplo: na Semana Santa o governo distribuía peixe para a população de baixa renda, na
Páscoa presenteava as crianças com chocolate, no Natal e no Dia das Crianças dava presentes
as mais carentes, tanto na capital como nos interiores; no Dia das Mães o governo doava redes
e sombrinhas, assim como no Dia dos Pais. Outras ações a que cabe mencionar eram a
distribuição de pintos e ração nos bairros da capital, e sementes agrícolas que eram distribuídas
em toneladas nas malocas indígenas e nos interiores mais afastados do Estado, dente outras
ações.
Podemos dizer que na teoria esses projetos eram até nobres, já que ajudaram muita gente
(e estas que muito necessitavam na época lhes são gratas até hoje), no entanto quando
analisamos na prática vemos que essas ações acabavam se tornando parte de um jogo político
que visava conseguir mais eleitores a seu favor a fim de obter votos para se manter no poder (a
famosa “politicagem”). É claro que não podemos deixar de mencionar, que junto a esse objetivo
de alcançar votos (que todo político tem), essas ações também eram concretizadas durante todos
os seus três mandatos para governador do Estado, desde os primeiros anos, devido sua
personalidade carismática. Neste prisma, para responder a pergunta feita lá atrás, consideramos
suas ações como assistencialistas pelo fato das pessoas beneficiadas por seus programas
acabarem no final fazendo parte de seu “curral eleitoral”.

Partido para a próxima questão, sabemos que o assistencialismo é uma característica


chave do populismo, entretanto não podemos afirmar que um governo foi populista por apenas 184
utilizar-se deste meio. Então, quais os outros fatores que em conjunto com essa característica
9
“social” o diferencia e o caracteriza como populista?

Um dos fatores, que podemos destacar para dizer que Ottomar não foi apenas
assistencialista, era justamente o seu carisma pelas massas. Os jornais de época e a população
local colocam em evidência que o governante destacado sempre estava presente nas ocasiões
de entregas de donativos a população, ele fazia questão de entregar e cumprimentar as pessoas
pessoalmente, não importava se era um peixe na Semana Santa, brinquedos no Natal, ou casas,
etc. ele sempre buscava estar presente. Essa característica não é necessária a um governante
assistencialista, porém é importante a um populista, pois a representação que o líder precisa
forjar é mais complexa e densa. Esclarecendo melhor, o governante precisa “colocara mão na
massa” e não apenas estar por trás dos projetos com somente uma ideia ou assinatura.

Essa fascinação pela intimidade ao fazer questão de cumprimentar as pessoas, ao dar a


mão ou abraçar, tem a ver com o homem cordial analisado por Sergio Buarque de Holanda que
concluí que este apresenta “horror às distâncias”, a formalidades e a impessoalidade. Castro
Rocha (1998) também trata desse assunto com profundidade, para ele o homem cordial busca
introduzir o seu corpo “no circuito comunicativo”, estabelecendo proximidade física com
outros, ao abraçar por exemplo. Isso se faz possível em sociedades que supervalorizam as
relações privadas, a ponto de causar atrofia ao espaço público por não conseguir diferenciar
uma coisa da outra.
No Brasil essa confusão do público com o privado vem desde a sociedade patriarcal, do
período da colônia, fato analisado por Gilberto Freyre em sua obra “Casa grande e Senzala”
(1933); é justamente essa confusão, segundo Castro Rocha, que fez surgir a cordialidade no
país. Não podemos deixar de explicitar que concomitantemente este fato de manter a intimidade
no âmbito público ou ter horror a impessoalidade conforme Holanda também tem a ver com o
populismo, já que conforme Weffort (1980, p. 74) “[...] no populismo as relações entre as
classes sociais se manifestam de preferência como relação entre indivíduos”.
Outra característica que o denota como populista tem a ver com ele sempre tentar
conciliar os grupos políticos ou civis em conflito; e também a forma como ele manipulava a
mídia (jornal) para sempre o enaltecer mesmo em pequenos feitos, e às vezes em obras que nem
havia realmente realizado, como mostra o jornal O Estado de Roraima no dia 23 de maio de 185
1992 ao publicar que os moradores do bairro Caimbé ficaram revoltados com a propaganda
pessoal de Ottomar que anunciava em uma placa que o povo daquela rua (cruzamento da rua 0
Z-6 com Y-9) agradecia ao governador pela instalação da rede de energia elétrica. Sendo que a
rua permanecia, na verdade, sem nenhum benefício.

Thomas Hobbes (2007) afirma que o poder ‘consiste nos meios para se obter alguma
vantagem’, e, de modo análogo, Bertrand Russell (1938) coloca-o como “o conjunto dos meios
que permitem conseguir os efeitos desejados” (apud BOBBIO, 2000). Desta forma, o meio para
alcançar determinado fim, estipulado pelo sujeito da ação, será de acordo com os seus critérios,
que é claro estará embasado em alguma lei, manipulada de forma hostil como no caso do uso
da violência, ou colocado persuasivamente através de argumentos e gestos cativantes que
articulam a necessidade da população despolitizada com os seus objetivos, que visam sua
própria vantagem conseguida estrategicamente, como ocorre no meio da política tratada.

O Jornal Estado de Roraima, no dia 20 de outubro de 1992, publica um exemplo deste


tipo de uso de poder descrito acima por Hobbes (2007) e Russell (1938) quando houve,
conforme o título do artigo deste jornal, uma promoção de um verdadeiro “trem da alegria” no
interior. Relatava o mesmo que em Alto Alegre e Mucajaí carros oficiais transportavam
pessoas, no caso funcionários públicos, até as sedes dos munícipios para se cadastrarem e
providenciarem a regularização de seus serviços ao quadro funcional da União. O governo teria
contratado somente no primeiro município em torno de 300 pessoas com datas retroativas a
1988, afirma o referenciado jornal. Desta forma, os servidores das prefeituras do interior de
Roraima passaram todos para o quadro da União federal. De acordo com um morador da cidade
citada, Mucajaí, o governo do Estado estaria agindo a ‘toques de caixa’ pra driblar a legislação
e admitir cabos eleitorais seus nos quadros da União. Conforme a mesma fonte jornalística, em
Boa Vista, onde o prefeito lhes fazia oposição, os servidores públicos eram tratados de forma
diferente dos seus aliados, ou seja, sem esse tipo de benesses, o que denota o seu lado emotivo
e passional de um homem cordial.

Por fim, temos a sua entrada na política do Estado que foi em um momento parecido
com o descrito por teóricos do populismo na revista nacionalista “Cadernos do Nosso Tempo”,
analisado por Ângela de Castro Gomes (2001) (onde primeiro, houve a união de vários grupos
em apenas um, o que pareceu com o termo utilizado na revista tratada: “a massificação” – 185
porém, diferente da analisada no sudeste do país que foi provocada pela proletarização, esta foi
1
devido as migrações desde o período do território (é claro que nem todos os grupos foram
unidos e manipulados, uma vez que em meio aos muitos migrantes havia alguns poucos letrados
ou mais elitizados que ficaram fora desse processo, assim como alguns grupos do caso do
populismo estudado no sudeste do país também ficaram). Segundo, devido a intervenção dos
militares na Amazônia e a decorrente eleições indiretas de governadores biônicos de fora que
causou a perda da ‘representatividade’ da ‘classe dirigente’ local, propiciando desta forma a
entrada de um líder dotado de carisma pelas “massas” na primeira eleição direta para
governador no recém constituído Estado de Roraima.
A terceira questão busca saber se sua personalidade cordial, já evidenciada nesta
pesquisa, foi em parte responsável por sua escolha metódica de governar. Acredito que ao
decorrer desta sumária análise podemos observar que tal característica foi sim responsável em
parte por essa escolha, visto que tal “atributo” é imprescindível a um governante populista,
porquanto conforme Weffort (1980), o sucesso do populismo é derivado de seu tripé “repressão,
manipulação e satisfação”. Sendo que, tanto a repressão como a manipulação em esfera pública
tenham muito a ver com a confusão entre o público e o privado, com o caráter emocional
transbordante do líder que sempre busca satisfazer seus desejos mesmo que para isso tenha que
manipular as pessoas a sua volta, e com a falta de afeição a lei, todas as características apontadas
ao homem cordial. O que leva a crer que tanto o carisma quanto a cordialidade é algo intrínseco
e interno ao portador populista. Enfim, concluímos que Ottomar utilizou-se do populismo, pois
podemos enquadrá-lo nos três termos analisados neste tópico, e isto só é possível ao populista
como vimos anteriormente.

Considero importante frisar que o carisma tratado aqui é conforme a visão de Weber
(2008, p. 172):

O carisma só conhece a determinação interna e a contenção interna. O seu portador


toma a tarefa que lhe é adequada e exige obediência e um séquito em virtude de sua
missão. Seu êxito é determinado pela capacidade de consegui-los. Sua pretensão
carismática entra em colapso quando sua missão não é reconhecida por aqueles que,
na sua opinião, deveriam segui-lo. [...] O carisma pode ser, e decerto regularmente
é, qualitativamente e particularizado. Trata-se mais de uma questão interna do que
externa, e resulta na barreira qualitativa da missão e poder do portador do carisma.

De acordo com o Dicionário Político de Sousa, Garcia e Carvalho (1988) um líder 185
político que possui carisma exerce grande influência sobre o povo. Este fator se relaciona com
a capacidade e desejo do líder carismático de unir toda a sociedade, com suas diferentes classes,
2
para poder governar de forma eficiente e congratulante tanto para ele quanto para a população
em geral, que com isso não entrarão em divergências com os seus projetos políticos.
Essa influência também se respalda na ligação que o líder procura ter com o seu
eleitorado, seja através da mídia ou pessoalmente em algumas ocasiões oportunas, como em
um desenrolar de uma política que beneficia as necessidades de parte da sociedade, e que lhes
proporciona em troca, por estar à frente, prestígio e gratidão, por parte dos beneficiados. Por
fim, lhe caracteriza como carismático o grande número de seguidores alcançados por sua
diligência em tratar dos problemas, dos argumentos que satisfazem a maioria e pelos projetos
que agrupam tanto a classe mais nobre quanto a população em geral, mesmo que de forma
desigual se analisar criticamente. Essas características podem ser vistas no governo de Ottomar.
CONCLUSÃO

A ideia da cultura política do populismo evidenciada no governo de Ottomar de Sousa


Pinto em Roraima é construída tendo por prisma as particularidades regionais, pois diferente
das regiões sul e sudeste do Brasil, onde existem grandes indústrias, proletariado e, portanto,
maiores lutas de classes, além de grupos políticos já amadurecidos, este Estado possuía nos
anos em destaque uma economia de pequeno porte. Ela se baseava principalmente no serviço
público, na agricultura, na pecuária e no garimpo, sendo que o último estava com ordem de
extinção pelo Governo Federal após 1988. Quanto a política durante os seus dois primeiros
mandatos (1979-1983 e 1991-1994), os grupos políticos partidários estavam sendo formados a
fim de lutar por uma emersão no poder local. Uma nova elite se estabelecia, vindo de fora como
a família Pinto e a Jucá que participaram de cargos no território e permaneceram, como ainda
hoje se observa.

Do período do território ao primeiro governo do Estado um outro grupo foi sendo


formado, o dos migrantes, principalmente nordestinos, que vinham sendo apoiados por Ottomar 185
desde a sua primeira administração já mencionada. Essa população possuía baixa renda e era
auxiliada pelo Governo do Estado que utilizava-se do assistencialismo como método político
3
administrativo; e juntamente com outros grupos carentes já residentes em Roraima, tais como
indígenas, pequenos agricultores, pescadores, autônomos e etc. tanto da cidade, em principal
destaque a periferia que estava crescendo com a migração; quanto dos interiores, formavam o
seu pleito eleitoral. E não só isso, tornaram-se, em sua maioria, seguidores, admiradores e até
mesmo defensores de seu governo. Vale salientar, que tudo isso foi aperfeiçoando no governo
de 1991 a 1994, é justamente por isso que me referenciei neste trabalho principalmente a este
mandato.

As atitudes do mencionado governador, consideradas paternalistas, lhe proporcionava


em troca, por estar à frente, prestígio e gratidão, por parte dos beneficiados. Nos períodos
festivos como Natal, Dia dos Pais, Dia das Mães, ou das Crianças, dentre outros, ele unia grande
parte da população de diferentes ofícios em um único grupo. O que confirma o pensamento de
Weffort quanto ao populismo quando diz que nele as relações entre as classes sociais se
manifestam de preferência como relação entre indivíduos.
O brigadeiro Ottomar Pinto continuou com as ações de seu primeiro governo no período
do território (1978-1983), consideradas como populistas por algumas literaturas. Um homem
cuja personalidade se comenta até hoje, mesmo após sua morte em 2007, por ter participado de
grandes e importantes construções do Estado e principalmente pela sua forma direta de agir
com a população carente e com as demais camadas da sociedade, de forma a transcender as
fronteiras sociais e subordinar as instituições por meio de seu carisma já denotado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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185
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apresentado no 2º Seminário Nacional Estado e Políticas Sociais no Brasil, nos dias 13 a 15 de 4
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WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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FONTES 185
5
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Disponível em: <http://www.institutomillenium.org.br/divulgacao/entrevistas/o-historiador-
marco-antonio-critica-assistencialismo-nas-eleies-sob-controle-dos-vereadores-centro-social-
se-transforma-numa-espcie-de-escritrio-eleitoral/>.
Dicionário online de português. http://www.dicio.com.br/cordialidade/
OTTOMAR lança programa social “cestão da gente”. Governador lança “cestão” para as
famílias carentes. Jornal de Roraima, Boa Vista, 05 de jun. 1991, p.03.

MUTIRÃO da casa própria já apresenta resultados. Jornal de Roraima, Boa Vista, 16 abr. 1991,
p. 08.

DIAS DOS PAIS foi comemorado ontem no parque Anauá. Diário de Roraima, Boa Vista, 12
ago. 1991, p. 1. Ed. N° 37

MORADORES do bairro Caimbé ficaram revoltados com a propaganda pessoal de Ottomar. O


Estado de Roraima, Boa Vista, 23 mai. 1992, p. 5.
GOVERNO garante peixe a população de baixa renda na Semana Santa. Diário de Roraima,
Boa Vista, 14 abr. 1992, p. 6.

GOVERNO promove no domingo a festa da páscoa para crianças. Diário de Roraima, Boa
Vista, 23 abr. 1992, p. 7.

PRESENTES e shows dedicados as mães de Roraima no Parque Anauá. Diário de Roraima,


Boa Vista, 11 mai. 1992, p. 9.

A GARAGEM Rodopinto está sendo usada para prática de crime eleitoral pelo governador. O
Estado de Roraima, Boa Vista, 01 out. 1992, p. 05.

SEGURANÇAS de Ottomar agridem jornalistas. O Estado de Roraima, Boa Vista, 15 out.


1992, p. 04.

“TREM da alegria no interior”. O Estado de Roraima, Boa Vista, 20 out. 1992, p. 03.

185
6
O RIO GRANDE DIVIDIDO: CONFLITOS ELEITORAIS ENTRE PESSEDISTAS E
PETEBISTAS (1946-1954) NA PERSPECTIVA BOURDIANA DO CAMPO
POLÍTICO *986

Marcos Jovino Asturian**987

RESUMO

Neste trabalho, tem-se como objetivo, com base em elementos introdutórios para uma pesquisa
histórica, compreender o conflito eleitoral entre o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o
Partido Social Democrático (PSD) nas eleições de 1947, 1950 e 1954 para governador do Rio
Grande do Sul. Para tanto, se utilizará – na perspectiva da Nova História Política – a teoria do
campo político, desenvolvida pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, como via de interpretação

185
das disputas políticas como forma de acesso e/ou manutenção do poder. Além das fontes
bibliográficas, será desenvolvida pesquisa nos jornais Correio do Povo e Diário de Notícias,
bem como nos Anais da Assembleia Legislativa sul-rio-grandense. Portanto, interessam-nos 7
como as formas simbólicas foram criadas, em circunstâncias particulares, servindo para
estabelecer, bem como sustentar relações de dominação.

Palavras-chave: Eleições; PSD; PTB.

INTRODUÇÃO

Neste trabalho, tem-se como objetivo, com base em elementos introdutórios para uma
pesquisa histórica, compreender o conflito eleitoral entre o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB)

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Doutorando em Estudos Históricos Latino-Americanos pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS). Bolsista PROSUP/CAPES. E-mail: mjasturian05@hotmail.com.
e o Partido Social Democrático (PSD) nas eleições de 1947, 1950 e 1954 para governador do
Rio Grande do Sul. Para tanto, se utilizará – na perspectiva da Nova História Política – a teoria
do campo político, desenvolvida pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, como via de
interpretação das disputas políticas como forma de acesso e/ou manutenção do poder.

Além das fontes bibliográficas, será desenvolvida pesquisa nos jornais Correio do Povo
e Diário de Notícias, bem como nos Anais da Assembleia Legislativa sul-rio-grandense.
Portanto, interessam-nos como as formas simbólicas foram criadas, em circunstâncias
particulares, servindo para estabelecer, bem como sustentar relações de dominação.

O recorte temporal se justifica em função do contexto nacional e estadual ter sido um


período democrático e de grande efervescência política. A opção de analisar, neste trabalho, as
eleições de 1947, 1950 e 1954 está pautada na lógica interna petebista, isto é, a fase do
trabalhismo nacional e estadual, cujas figuras exponenciais eram Getúlio Vargas e Alberto
Pasqualini, respectivamente. Adianta-se que, após 1954, ocorreu um processo de cisão interna
no PTB estadual, devido à disputa entre as alas de Pasqualini e de Leonel Brizola, sendo a
primeira superada pela segunda. Logo, esse processo alterou, consequentemente, as diretrizes
teóricas do treabalhismo.
185
Leonel Brizola representou a tentativa de incorporar as massas em uma perspectiva de
8
redistribuição do capital e da terra. Além disso, posicionou-se contra a presença do capital
estrangeiro, em detrimento da ala pasqualinista que aceitava o capital estrangeiro, desde que
controlado pelo Estado (HARRES, 2014, p. 36-141). Já, o recorte espacial é feito em virtude
de o Rio Grande do Sul adquirir, no respectivo período, significativas especificidades regionais
dentro do contexto nacional, bem como contribuir para a historiografia sul-rio-grandense
devido às lacunas referentes à história dos partidos políticos estaduais.

1. Capítulo I – A Nova História Política: elementos introdutórios

A Nova História Política é fruto do “giro cultural” dos anos setenta – do século XX –
junto com o desenvolvimento das mentalidades. Todavia, se inscreve no contexto
historiográfico da década subsequente. Ela não é uma restauração epistemológica, mas uma
efetiva ruptura, isto é, de um renovado interesse pelos temas políticos no seu âmbito mais
pluridisciplinar e, portanto, cultural. “A diversidade de objetos que a nova história levanta é
múltipla” (AURELL, 2010, p. 165).

Os trabalhos desse viés historiográfico partem do pressuposto da renovação dos objetos


e temas que privilegia. Portanto, ocorre um processo de renovação com outras ciências sociais:
a sociologia, o direito público, a psicologia social e, principalmente, a ciência política,
especialmente para o estudo do fato eleitoral, bem como para o estudo dos partidos.

A relação da história com as eleições, a função dos historiadores no estudo sobre o fato
eleitoral, como se estabeleceu este campo de pesquisa na França a partir da instituição da
República, as principais obras e os principais temas, são algumas questões sobre as quais o
historiador francês René Remónd se dispôs a refletir, avaliando a contribuição da dimensão
histórica ao estudo das eleições e à compreensão dos comportamentos eleitorais.

O primeiro tema que chamou a atenção dos historiadores, concernente às eleições na


França, foi a análise de resultados dos sufrágios universais para avaliar a composição de forças
no poder. Posteriormente, Rémond analisa a antiguidade e a continuidade do fenômeno eleitoral 185
a fim de avaliar, de fato, o que causou o interesse dos historiadores sobre o respectivo fenômeno.
9
O principal aspecto abordado pelo autor foi o papel determinante que as eleições
desempenhavam no regime a partir do reconhecimento da opinião pública como a responsável
pela legitimação do poder. Além disso, o fenômeno seria também responsável por uma
periodização da vida política, na medida em que analisado de acordo com a existência ou não
de pleitos.

Os historiadores voltavam a atenção às eleições e, principalmente, às consequências


das mesmas. Para isso, eram estudados aspectos, como: a relação entre maioria e oposição, a
composição dos governos, o funcionamento das instituições e a duração dos regimes. Segundo
o mesmo autor, tudo isso foi alterado no momento em que as eleições passaram a ser vistas
como objeto revelador do “espírito” da opinião pública (RÉMOND, 1996).

O estudo das eleições é pouco explorado pelos historiadores e devem ser consideradas,
por si só, como um objeto de observação, assim como outros fatos sociais. O estudo delas é
uma contribuição específica das pesquisas históricas concernentes à compreensão dos
comportamentos individuais e coletivos dos eleitores (RÉMOND, 1996).

A campanha eleitoral, por exemplo, é parte integrante de uma eleição. Nela ocorre a
manifestação das preocupações dos eleitores e é o espaço de apresentação de programas dos
candidatos e de temas dos partidos. Além disso, é a entrada de estratégias em operação e há a
interação entre cálculos políticos e movimentos de opinião. Enfim, a campanha modifica, a
cada dia, as intenções e talvez a relação de forças (RÉMOND, 1996, p. 49-50).

Serge Berstein – um dos historiadores franceses responsáveis pela renovação da história


política – pautado nos cientistas políticos norte-americanos, estabelece critérios que permitem
definir os partidos políticos:

[...] a duração no tempo, que garante ao partido uma existência mais longa que a
vida de seus fundadores, e implica que ele responda a uma tendência profunda da
opinião pública. Restaria tentar definir exatamente essa duração mínima [...] tal
definição exclui de fato as clientelas, as facções, os partidos ligados unicamente a um
homem; - a extensão no espaço, que supõe uma organização hierarquizada e uma
rede permanente de relações entre uma direção nacional e estruturas locais, 186
0
abrangendo uma parte da população. Este segundo critério exclui do campo dos
partidos os grupos parlamentares sem seguidores no país e as associações locais sem
visão de conjunto da nação; - a aspiração ao exercício do poder, que necessita de um
projeto global que possa convir à nação em seu conjunto, e que, por isso, implica a
consideração de arbitragens necessárias aos interesses contraditórios que aí se
manifestam. Esta característica, função direta da mediação política de que falamos
acima, exclui os grupos de pressão representativos de uma categoria definida, como
os grupúsculos restritos à defesa intransigente de uma ideologia, mesmo quando
traduzem o nome de “partidos”; - enfim, a vontade de buscar a apoio da população,
seja recrutando militantes, seja atraindo o voto dos eleitores, condição indispensável
para a realização do objetivo anterior. (BERSTEIN, 1996, p. 62-63)

Em relação aos partidos políticos, é necessário analisar as composições sociais que eles
representam. Existe uma ponderação que eleva a representação de certas categorias
socioprofissionais em função da imagem que o partido passa de si mesmo, de dados culturais e
de interesses sociais. Não obstante, é notório que os partidos também são interclassistas em sua
composição. E, mesmo que uma categoria seja representada majoritariamente entre o
eleitorado, ainda é essencial, para um partido que almeja o poder, conciliar interesses diversos,
ou seja, de outras composições sociais (BERSTEIN, 1996, p. 76-77).
A Nova História Política caracteriza-se pela amplitude da pesquisa histórica, em
detrimento da “Velha História Política” caracterizada pela abordagem narrativa e meramente
factual dos eventos históricos. Dentre outras distinções, está a proposição de variáveis de
análise que ultrapassam a questão do poder do Estado ou do governante. Assim, o poder passa
a ser uma categoria para a qual concorrem fenômenos como a mídia, por exemplo.

Uma das maiores preocupações dessa “nova história política” é operar uma
relegitimação do objeto político, ao definir o político como o “lugar de gestão da
sociedade global” que recapitula os outros níveis da realidade. Essa concepção do
político como o nível mais englobante das sociedades funda a reinvindicação da
história política como história total. (DELACROIX; DOSSE; GARCIA, 2013, p.348)

As variadas maneiras de renovação do político são analisadas à luz de uma posição


pluridisciplinar da autoridade e do poder. Todavia, não se trata de descrever comportamentos,
mas analisar: sensibilidades, percepções, normas, valores e as formas de representação do
poder. “[...] Todo esse leque de temas contribui, paradoxalmente, a despolitizar a história
política, submetendo assim a esfera política ao universo cultural” (AURELL, 2010, p. 167). 186
1
Com essa despolitização da história política, chega-se ao paradoxo, tão sintomático
das atuais circunstâncias historiográficas, de que também não se pode falar com
muita propriedade de uma verdadeira nova história política. No seu afã integrador,
a nova história política converteu-se num conglomerado de história social,
econômica e, sobretudo, cultural [...]. (AURELL, 2010, p. 167)

Destarte, observamos um paradoxo, isto é, a “despolitização da história política”. Como


podemos equacionar esse problema? É possível separar o que é político do cultural, do social e
do econômico, já que são dimensões interligadas? O presente trabalho não pretende responder
a essas questões complexas, mas sugerir algumas análises.

Para René Rémond (1996, p. 443): “[...] o campo do político não tem fronteiras fixas, e
as tentativas de fechá-lo dentro de limites traçados para todo o sempre são inúteis”. A pesquisa
dentro da história política está permeada pelo enfoque no poder. As variadas formas de
expressão do poder, bem como seus diferentes agentes fazem parte da própria história do
político (BARROS, 2004, p. 106-107). Todavia, no “retorno do político” o poder é interpretado
diferentemente da história política tradicional (história episódica, demasiado poder dos líderes
ou do Estado).988

Assim, Rémond descreve a política e as relações de poder,

[...] Só é política a relação com o poder na sociedade global: aquela que constitui a
totalidade dos indivíduos que habitam um espaço delimitado por fronteiras que
chamamos precisamente de políticas. Na experiência histórica ocidental, ela se
confunde com a nação e tem como instrumento e símbolo o Estado. É também o único
grupo humano ao qual se reconhece o poder de decidir por todos, a capacidade de
impor a obediência às leis e o direito de punir as infrações. Entretanto, se o político
é aquilo que tem uma relação direta com o Estado e a sociedade global, ele não se
reduz a isso: ele se estende também às coletividades territoriais e a outros setores por
esse movimento que ora dilata e ora encolhe o campo do político. Praticamente não
há setor ou atividade que, em algum momento da história, não tenha tido uma relação
com o político [...] A história política exige ser inscrita numa perspectiva global em
que o político é um ponto de condensação. (RÉMOND, 1996, p. 444-445.

Esse historiador da política não pretende afirmar que tudo gira em torno da política ou 186
2
até mesmo seja política, porém, constata que ela é o ponto para onde conflui a maior parte das
atividades dos componentes do conjunto social. Logo, a atividade política é uma das principais
expressões da identidade coletiva.

As relações de poder são inerentes à política, ou seja, o poder deve ser entendido como
a capacidade de agir para alcançar os próprios objetivos ou interesses, a capacidade de intervir
nos acontecimentos e as decorrentes consequências. No exercício do poder, os indivíduos
empregam todos os recursos disponíveis e os meios que lhes possibilitem realizar as
proposições.

Para uma nova perspectiva da histórica política contribuíram significativamente


intelectuais de fora do círculo de historiadores. Sociólogos, sobretudo, Foucault e Bourdieu,
realizaram diferentes formas de analisar o poder (MENDONÇA; FONTES, 2012). Na

988
Sobre o “retorno do político”, conferir Julliard (1974).
sequência do trabalho, vamos destacar a contribuição bourdiana para os estudos históricos de
política.

2. Capitulo II – A perspectiva bourdiana do campo político

Parte-se do pressuposto que além da Assembleia Legislativa os jornais Diário de


Notícias e Correio do Povo foram uma espécie de tribuna política utilizada tanto pelo Partido
Social Democrático (PSD) e quanto pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), por meio dos “A
Pedidos” e das páginas político-partidárias, para transmitir aos leitores-eleitores as suas
respectivas representações políticas. Para compreender essa disputa a proposta é utilizar um
referencial teórico desenvolvido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu: a teoria do campo
político.

A perspectiva bourdiana do campo político é apropriada para explicar as disputas nas


instâncias formais de poder em contextos democráticos. O Brasil no período entre 1945 a 1964
186
está consolidando os partidos políticos, aperfeiçoando os mecanismos eleitorais, bem como
tendo o povo como ator político. Contudo, o processo democrático na história republicana 3
brasileira – iniciado após o Estado Novo – foi interrompido pelo Golpe civil-militar de 1964.

[...] o campo político é o lugar em que se geram, na concorrência entre os agentes


que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas, programas, análises,
comentários, conceitos, acontecimentos, entre os quais os cidadãos comuns,
reduzidos ao estatuto de “consumidores”, devem escolher [...]. (BOURDIEU, 1998,
p. 164)

A participação de uma determinada população na política depende do estado dos


instrumentos de percepção e de expressão disponíveis e do acesso aos que os diferentes grupos
têm a esses instrumentos. O campo político exerce uma censura ao limitar o universo do
discurso político, pois quanto menores as possibilidade de acesso a tais instrumentos – materiais
e culturais, principalmente o tempo livre e o capital cultural – maior será a concentração do
capital político nas mãos de um grupo restrito, isto é, aparecendo como um monopólio de
profissionais (BOURDIEU, 1998, p. 165).

O capital político é simbólico, uma vez que a luta política é a luta simbólica, porque seu
principal objetivo é converter, é o fazer crer que sua proposta é a melhor para todos, ou seja,
transformar os interesses de grupos em interesses gerais (PINTO, 1996, p. 225). O jogo político
tem suas próprias regras, bem como pressupõe um “conluio originário” entre aqueles que
participam, uma solidariedade que fica implícita e estabelece a adesão e o respeito ao próprio
jogo (BOURDIEU, 1998, p. 173).

O jogo político é monopólio dos profissionais, pois dispõem de instrumentos próprios


de produção de discursos ou atos políticos. Os “profissionais” adquirem o corpus de saberes
específicos produzidos e acumulados pelo trabalho político dos “profissionais”, tais como o
domínio de certa linguagem e de uma retórica política – a do “tribuno” – elementar nas relações
com os “profanos” – meros “consumidores” do mercado político – ou a do “debater”, necessária
nas relações entre “profissionais” (BOURDIEU, 1998, p. 169). Portanto, “[...] o mercado da
política é, sem dúvida, um dos menos livres que existem” (BOURDIEU, 1998, p. 166).
186
4
A luta que opõe os profissionais é, sem dúvida, a forma por excelência da luta
simbólica pela conservação ou pela transformação do mundo social por meio da
conservação ou da transformação da visão do mundo social e dos princípios de di-
visão deste mundo: ou, mais precisamente, pela conservação ou pela transformação
das divisões estabelecidas entre as classes por meio da transformação ou da
conservação dos sistemas de classificação que são a sua forma incorporada e das
instituições que contribuem para perpetuar a classificação em vigor, legitimando-a
[...] Ela assume pois a forma de uma luta pelo poder propriamente simbólico de fazer
ver e fazer crer, de predizer e de prescrever, de dar a conhecer a de fazer reconhecer,
que é ao mesmo tempo uma luta pelo poder sobre os “poderes públicos” (as
administrações do Estado). Nas democracias [...] a luta para conquistar a adesão
dos cidadãos (o seu voto) [...] é também uma luta para manter ou para subverter a
distribuição do poder sobre os poderes públicos [...] Os agente por excelência dessa
luta são os partidos [...] os partidos devem, por uma lado, obter a adesão do maior
número possível de cidadãos e, por outro lado, conquistar postos (de poder ou não)
capazes de assegurar um poder sobre os seus atributários. Assim, a produção das
ideias acerca do mundo social acha-se sempre subordinada de facto à lógica da
conquista do poder, que é a da mobilização do maior número [...] (BOURDIEU,
1998, p. 173-174-175).
Grosso modo, o campo político é o lugar de uma disputa pelo poder por intermédio de
uma concorrência pelos profanos: pelo monopólio do direito de falar e de agir em nome de uma
parte ou da totalidade dos profanos (BOURDIEU, 1998, p. 185).

3. Capitulo III – A utilização de fontes jornalísticas na pesquisa histórica

A utilização de fontes jornalísticas na pesquisa histórica vem sendo, de forma


progressiva, útil aos pesquisadores que se propõem a estudar períodos recentes da história. A
mídia representa, para o acontecimento histórico, a condição de sua existência e, para torná-lo
conhecido, quem faz a publicização são os jornalistas.

186
[...] o historiador não pode mais ignorar que a mídia é parte integrante do jogo
político e da própria construção do acontecimento histórico. O historiador deve
admitir [...] que os jornalistas são ao mesmo tempo testemunhas e atores e, na maior
parte das vezes, porta-vozes de partidos políticos, de organizações e de interesses.
(ABREU, 1996, p.9)
5

Se quem elevava o acontecimento ao patamar de fato histórico era o historiador, com o


passar do tempo, atualmente, ele se oferece por meio das mídias que impõem: “[...] o vivido
como história, e que o presente nos impõe em maior grau o vivido” (NORA, 1998, p. 183-184).
Os textos produzidos pelos jornalistas, na sua prática social, são discursos determinados pelo
contexto socio-histórico no qual estão inseridos. Por isso, os pesquisadores devem estar atentos
ao contexto onde o jornal está inserido, sua atuação, tendências e práticas ao longo do período.
Esses são indícios fundamentais a serem considerados.

Deve-se levar em consideração que a imprensa está permeada, entre outros aspectos,
pela questão econômica. Ela, sobretudo a grande imprensa, trabalha em consonância com a
lógica comercial, pois são empresas que barganham com outras um lugar no respectivo
mercado. Os aspectos econômicos que envolvem a empresa influenciam sua posição política.
Além disso, a individualidade do jornalista precisa ser também considerada, pois é um sujeito
social que possui interesses, relações, ambições e preferências políticas.

O jornal não pode ser entendido como fonte objetiva, mas como um órgão de imprensa
que tem uma subjetividade implícita. Além do caráter informativo, é também formador de
opinião pública989 e, então, é também objeto de pesquisa. Assim, o jornal é parte de um projeto
coletivo e a ele agrega-se um conjunto de indivíduos com os respectivos interesses.

[...] Daí a importância de se identificar cuidadosamente o grupo responsável pela


linha editorial, estabelecer os colaboradores mais assíduos, atentar para a escolha
do título e para os textos programáticos, que dão conta de intenções e expectativas,
além de fornecer pistas a respeito da leitura do passado e de futuro compartilhada
por seus propugnadores [...] portanto, para um tipo de utilização da imprensa
periódica que não se limita a extrair um ou outro texto de autores isolados, por mais
representativos que sejam, mas antes prescreve, a análise circunstanciada do seu
lugar de inserção e delineia uma abordagem que faz dos impressos, a um só tempo,
fonte e objeto de pesquisa historiográfica, rigorosamente inseridos na crítica
competente (LUCA, 2005, p. 140-141).

186
A mídia é um dos elementos que determinam, de forma mais imediata, a opinião pública,
pois os estímulos transmitidos através do emissor – jornais – tendem a alterar o comportamento 6
do receptor-leitor. Portanto, ela é uma força significativa na formação da opinião pública.

[...] a opinião pública, manipulada por interesses diversos, procura reprimir ou


prevenir formas de comportamento que não se chocam diretamente com os
comportamentos e instituições estabelecidos por grupos dominantes, mas que
encontram a rejeição mais ou menos sentida por parte dos componentes que formam
outros grupos. É na manipulação que vai formando a opinião pública, que os meios
de comunicação são utilizados para manter o status adquirido pelo grupo dominante,
transformando-se eles mesmos numa espécie de liderança que influencia
enormemente nas atitudes e comportamentos adquiridos pelos demais indivíduos que
vivem na sociedade (ROMÁN, 1983, p. 33).

989
“O pensamento coletivo de um grupo de pessoas com interesses comuns, em relação a alguma coisa controversa,
constitui a Opinião Pública. A Opinião Pública é essencialmente um produto da interação social, e desta forma
não surge como uma força espontânea. Para a sua formação concorrem os valores culturais de determinada
sociedade, seus estatutos jurídicos, as conquistas e decisões do direito, a atuação de seus líderes, a pressão dos
grupos de interesse e os meios de comunicação social.” (ROMÁN, 1983, p. 29).
A maioria das informações que a mídia oferece ao público tem algum tipo de relação
com a realidade, porém essa se estabelece de forma indireta, ou seja, distorcendo-a. A realidade
criada pela mídia é contrafação à realidade existente. Logo, “[...] a sociedade – é cotidianamente
e sistematicamente colocada diante de uma realidade artificialmente criada pela imprensa [...]
A manipulação das informações se transforma, assim, em manipulação da realidade”
(ABRAMO, 1996, p. 24).

Não obstante, o receptor-leitor não está condicionado a uma situação de passividade


perante o emissor-jornal, isto é, que simplesmente absorve as informações. O jornal precisa
fazer sentido às pessoas que o leem, pois, de certa forma, está atrelado ao que é possível dizer
e não pode estar distante da visão de mundo presente naquela sociedade.

Um dos principais problemas relacionados ao tratamento das fontes jornalísticas pelo


historiador é a significativa ausência de uma crítica interna ao conteúdo jornalístico, pois é dada
ao jornal a utilização como se fosse uma fonte precisa e objetiva, no qual a informação é válida
por si mesma (ESPIG, 1998). Além disso, “[...] com raríssimas exceções, para os historiadores
o jornal é antes de tudo uma fonte onde se “recupera” o fato histórico – uma ponte ou trampolim
em direção à realidade – não havendo entretanto interesse por sua crítica interna” (ZICMAN,
186
1985, p. 90). 7
Apropriar-se da imprensa como fonte para a pesquisa histórica é ao mesmo tempo
compreender que esse material está deslocado do tempo e espaço em que circulou. Portanto, a
qualidade desta leitura é distinta, deve ser meticulosa, exaustiva e enfadonha.

Segundo Cláudio Pereira Elmir,

[...] devemos fazer uma leitura intensiva destes jornais e não uma leitura extensiva.
Ler os jornais extensivamente é o que fazemos diariamente hoje. Ler intensivamente
é o que acontece com leitores cujo tempo da experiência da leitura não corresponde
ao tempo da formulação do jornal (ELMIR, 1995, p. 21-22).

A imprensa não pode ser utilizada pelos pesquisadores de uma forma simplista, como
mera representação objetiva do real. Deve, isto sim, ser entendida como representação possível
acerca do real, sobre o qual incidem determinados filtros deformadores e cabe ao historiador
determinar e equacionar em suas análises (ESPIG, 1998, 276).

Dois periódicos sul-rio-grandenses, o Correio do Povo e o Diário de Notícias990, foram


pesquisados. A escolha justifica-se pelo fato de serem jornais de grande circulação no Rio
Grande do Sul. Para a análise das informações, o conteúdo foi dividido em: notas políticas, os
“a pedidos”, bem como as páginas político-partidárias, publicações pagas pelos partidos ou
particulares aos veículos de imprensa. Além disso, serão analisados os Anais da Assembleia
Legislativa para fins de compreensão dos símbolos políticos produzidos no debate entre os
parlamentares pessedistas e petebistas no legislativo sul-rio-grandense.

4. Capitulo IV – O Rio Grande dividido: breves considerações sobre as disputas


eleitorais entre pessedistas e petebistas (1946-1954)

Fatores internos e externos fizeram com que fosse acelerada a abertura política no país.
Enquanto isso, o regime estadonovista (1937-1945) procurava uma estratégia para criar
mecanismos de transição segura, isto é, para manter o poder nas mãos de Vargas. Todavia, foi 186
publicada em 28 de fevereiro de 1945, a Lei Constitucional nº 9, a qual estabeleceu que dentro 8
de noventa dias fossem marcadas eleições para presidente, governadores, Congresso Nacional
e Assembleias Legislativas. Dentro desse prazo, o governo deveria elaborar a Lei Eleitoral e
estruturar seu consequente aparelhamento. Elaborou-se o Decreto Lei nº 7.856, de 28 de maio
de 1945, o qual exigia que os partidos apresentassem, para obtenção do registro, a adesão de
dez mil eleitores distribuídos em, pelo menos, cinco estados: cada um com, no mínimo,
quinhentos adeptos, bem como personalidade jurídica de acordo com o Código Civil (FILHO,
2012, p. 135-136).

Os partidos políticos se estruturaram tendo como principal vetor o apoio ou a oposição


a Getúlio Vargas. Os de maior expressão nacional foram: a União Democrática Nacional
(UDN), que se caracterizou como a principal oposição a Vargas; o Partido Social Democrático
(PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) como duas correntes políticas diferentes de

990
O Correio do Povo e o Diário de Notícias não serão objeto de pesquisa. Todavia, o tratamento da fonte não
impede que sejam informadas, sempre que observadas, diferenças entre as maneiras de ambos periódicos relatarem
os eventos políticos.
sustentação a Vargas. Dessas, a primeira foi herdeira da estrutura das interventorias e a segunda
surgiu de lideranças do meio sindical, estudantil e de políticos ligados às massas trabalhadoras
urbanas. Quanto aos menores partidos em nível nacional, mas com influência em determinadas
regiões do país, destacaram-se o Partido Social Progressista (PSP), o Partido de Representação
Popular (PRP), o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Republicano (PR), o Partido
Libertador (PL), o Partido Democrata Cristão (PDC), o Partido Socialista Brasileiro (PSB),
entre outros.

Angela de Castro Gomes e Jorge Ferreira (2014), autores da obra 1964, reconheceram
no período entre 1945 e 1964 a construção de uma experiência democrática brasileira por meio
da consolidação dos partidos políticos, do aperfeiçoamento dos mecanismos eleitorais e do
povo como ator político. Por exemplo, o Partido Comunista, mesmo na ilegalidade, se fazia
representar em diversas agremiações partidárias e tinha presença significativa nas atividades
sindicais.991

A formação dos partidos políticos no Rio Grande do Sul pode ser entendida por meio
da identificação das bases de sua economia e sua origem sócio-política. Além disso, é
imprescindível compreender a sua relação intrínseca à dinâmica nacional, ou seja, na sua
186
condição de Estado membro de uma Federação. Portanto, identifica-se o processo histórico 9
estadual através da inserção no sistema econômico brasileiro.

Embora permeado por crises cíclicas – inerentes às economias estruturadas no setor


primário e com baixo nível tecnológico –, observa-se que a economia estadual se manteve sem
apresentar graves problemas até a década de 1940. Contudo, ao final da II Guerra Mundial,
quando aumentou a concorrência dos produtos de outras regiões, sobretudo das do centro do
país, surgiram implicações na economia local. As consequências dessas transformações são: o
êxodo rural, o desemprego, a urbanização desenfreada, problemas de infraestrutura de serviços

991
“[...] o movimento sindical teve peso significativo na vida política nacional entre 1945 e 1964, chegando a
influenciar o sistema de tomada de decisões. Seguindo seu feitio corporativista, este sindicalismo esteve
basicamente voltado para o Estado, vinculado aos partidos políticos e debilmente implantado nas fábricas. Mas a
relação Estado-classe trabalhadora vigente nesse período, quer por via sindical, quer por via partidária, teve sempre
“mão dupla”, constituindo-se num mecanismo de incorporação real – embora controlada – dos trabalhadores à
vida política nacional” (GOMES, 2005, p. 302).
urbanos, etc. Portanto, a crise econômico-social fez com que surgissem grupos sociais
emergentes, tornando-os importantes no cenário político.

[...] a identificação dos principais problemas enfrentados pelo estado pode ser
sintetizada em três questões fundamentais: a) a industrialização; b) êxodo rural; c)
transportes e energia. Tais questões envolviam diretrizes político-partidárias, que
por sua vez se revelavam associadas aos programas de desenvolvimento econômico
que se apresentavam para o Brasil. (PESAVENTO, 1990, p. 126)

Assim, o panorama econômico-social do Rio Grande do Sul fez com que os grupos
políticos buscassem medidas concernentes à dinamização da economia local. A situação de
dependência passou a exigir profundas mudanças, o que vai coincidir com a formação dos
partidos políticos em âmbito nacional e repercutir diretamente no caráter político-partidário do
Estado (CÁNEPA, 2005, p. 77).

A reorganização partidária, no contexto da democratização, girou em torno das elites


políticas tradicionais sul-rio-grandenses e, sendo assim, num primeiro momento, somente o
187
Partido Comunista Brasileiro – de curta vida legal – pareceu constituir algo novo no respectivo
processo. Não obstante as singularidades regionais gradativamente permearam o processo 0
político estadual: ocorreu uma “desgetulização” do PSD, com a saída de lideranças políticas
ligadas a Getúlio Vargas para o PTB992; a pouca densidade eleitoral da UDN no Rio Grande do
Sul; a influência do anticomunismo católico nas eleições993; as disputas internas dentro da seção
estadual do PTB994, entre outras.

Hélgio Trindade e Maria Izabel Noll destacam dois traços persistentes da política
regional do pós-45:

Primeiro, a dicotomização das preferências partidárias, distribuídas em dois pólos,


aglutinando mais do que três quartos dos votantes, em termos de PTB/anti-PTB, no
período de 1947 a 1962 [...] Segundo, essa polarização bipartidária ocorre num
espaço marcado pela distribuição de preferências eleitorais relativamente estáveis.

992
Conferir (OLIVEIRA, 2008).
993
Conferir (RODEGHERO, 1998).
994
Sobre a produção historiográfica referente ao Rio Grande do Sul, no período entre 1945 e 1964, conferir Gertz
(2004).
Este traço pode ser localizado tanto nos conglomerados de partidos populistas (PTB,
MTR, PSB, PSP), quanto nos conservadores-liberais (PSD, PL e UDN) e na terceira
força (PRP e PDC). (TRINDADE; NOLL, 1991, p. 71-72-73)

CONCLUSÃO

Para concluir, o processo eleitoral configura um contexto privilegiado para a criação de


símbolos políticos quanto uma possibilidade/necessidade de formular discursos e propostas que
atendam às demandas reais de segmentos da sociedade. Logo, pretendemos examinar as
plataformas petebistas e pessedistas, bem como suas respectivas propagandas no transcurso das
campanhas para os pleitos de 1947, 1950 e 1954.

Fundamentados por elementos da teoria bourdiana do campo político, procuraremos


identificar o tipo de capital que os partidos acumularam e compreender a atuação dos agentes
considerando a dinâmica de concorrência que caracteriza o campo. Destarte, além de atender
as demandas da sociedade, as propagandas e os programas devem ser entendidos na perspectiva
da permanente oposição e distinção entre os partidos.
187
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O ENCONTRO DE LISBOA E O CONTATO DE LEONEL BRIZOLA COM A
SOCIALDEMOCRACIA EUROPEIA: DISCURSOS DE O GLOBO*

Marcelo Marcon**

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo realizar uma análise do discurso do jornal O Globo sobre o
Encontro de Lisboa e o contato de Leonel Brizola com a socialdemocracia europeia. Em janeiro
de 1978, Brizola parte para Lisboa, onde permanece até seu retorno do exílio, em setembro de
1979. Nesse período, ele aproxima-se de Mário Soares, da Internacional Socialista, e da
socialdemocracia, a qual passa a fazer parte de seu novo projeto trabalhista. Em junho de 1979,
ocorre o Encontro dos trabalhistas no exílio, conhecido como Encontro de Lisboa, que monta
as bases para a criação de um novo partido trabalhista. Essa movimentação de Brizola,
principalmente no Encontro de Lisboa, foi retratada pelo jornal O Globo, e seu discurso será
alvo de análise para compreendermos a sua posição frente a um importante momento da carreira
política do ex-governador do Rio Grande do Sul, após 15 anos de exílio.
187
Palavras-chave: Encontro de Lisboa; Leonel Brizola; O Globo.
4

INTRODUÇÃO

O golpe civil-militar de 1964 obrigou diversos líderes políticos contrários ao regime a


buscar exílio em outros países. Leonel Brizola, ainda em 1964, parte para o Uruguai onde
permanece até 1977, quando é expulso e então vai para os Estados Unidos. Já em 1978, Brizola
viaja a Lisboa onde permanece até o ano seguinte, 1979, quando é decretada a lei da Anistia, e
ele pode retornar ao Brasil.

*
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
**
Mestrando em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Agência Financiadora: Fundação
Universidade de Passo Fundo. E-mail: marcelomarcon90@hotmail.com
Em Lisboa, Brizola entra em contato com a socialdemocracia, ideologia a qual utiliza
para projetar o seu novo partido trabalhista. Nos dias 15, 16 e 17 de junho de 1979 ocorreu o
Encontro dos Trabalhadores do Brasil com os trabalhadores no exílio, o Encontro de Lisboa.
Nessa ocasião, Brizola e os demais trabalhistas organizam as bases para a refundação do novo
partido trabalhista, através do documento oficial do encontro, a Carta de Lisboa.

O encontro de Lisboa foi o evento que marcou a volta de Brizola na política brasileira,
e dessa forma, foi o início da cobertura do jornal O Globo sobre a ação de Brizola na criação
de seu novo partido. O jornal, que comemora o Golpe Militar no ano de 1964 e permanece
favorável ao regime, faz consideráveis menções ao nome de Brizola a partir de sua volta. A
forma como o jornal elabora seu discurso é plausível de análise, justamente pela renovação da
história política, que elege a imprensa como fonte histórica relevante. Dessa forma, acontecerá
uma discussão desses pontos que se tornam importantes para entender esse período da história
política brasileira.

1. Capítulo I - Brizola nos Estados Unidos: discursos de O Globo


187
Em 16 de setembro de 1977, Brizola recebe a notícia de que fora expulso do Uruguai,
5
sob a alegação de ter infringido as leis de asilo político. Mais tarde, soube-se que a medida foi
solicitada pelo general linha-dura Sylvio Frota, que articulava para suceder Ernesto Geisel na
presidência (KUHN, 2008, p.109.).

Segundo Dione Kuhn, a estratégia de bani-lo foi considerada, mais tarde, equivocada
no meio militar brasileiro, pois até então Brizola estava esquecido pela mídia, e com o seu
pedido de licença para morar nos Estados Unidos, Brizola volta a dominar os noticiários. Para
Kunh, “Brizola, que tanto tinha atacado em seus discursos o imperialismo norte-americano,
queria agora comprovar de perto a política em defesa dos direitos humanos imprimida pelo
governo do democrata Jimmy Carter” (KUHN, 2003, p.109.).

Dessa maneira, Brizola e sua mulher, Neusa, chegam a Nova York no dia 22 de setembro
de 1977, após fazer uma escala de 24 horas em Buenos Aires. No dia 22, o jornal O Globo
publica a seguinte matéria sobre a ida de Brizola aos EUA, com o título: Brizola chega esta
Manhã a Nova York:

O departamento de Estado norte-americano informou ontem que o ex-Governador


Leonel Brizola entrará nos Estados Unidos como turista e não como asilado político
a seu próprio pedido. Segundo o porta-voz do departamento de Estado, Leonel
Brizola havia pedido asilo político à Embaixada norte-americana em Montevidéu,
mas horas depois mudava de ideia e pedia para entrar nos Estados Unidos com visto
de turista. [...] Brizola disse que não conhece os motivos que levaram o governo
uruguaio a expulsá-lo e afirmou que tem esperanças numa reconsideração da
medida. Lamento mais pelo Uruguai do que por mim- afirmou Brizola. (O GLOBO,
22 de setembro de 1977)

Após esta primeira matéria, em que apresenta a notícia da chegada de Brizola aos
Estados Unidos, o jornal, sob o título de “Viagem aos EUA não preocupa Arena”, busca afirmar
que o ex-governador não oferecia nenhum motivo para preocupação ao regime:

O líder do governo no Senado, Senador Eurico Rezende(ES), disse ontem que “o


187
governo e a Arena confiam em que os Estados Unidos não permitirão que Leonel
Brizola exerça naquele País, qualquer atividade contrária aos interesses do Brasil”. 6
Segundo o líder do governo, “as relações entre o Brasil e os Estados Unidos são
muito boas” e o visto de entrada concedido a Brizola “não significa crítica, resposta
ou sequer insinuação em relação ao Brasil”. Trata-se na verdade de um ato de
soberania dos Estados Unidos. -Se há alguma análise a ser feita em relação ao
episódio ela deverá ser feita pelo Itamaraty- acrescentou Eurico Rezende. Para o
líder da Arena na Câmara, deputado José Bonifácio(MG), também não há
implicações políticas no fato de Brizola ter pedido entrar nos Estados Unidos
praticamente como asilado. “Os americanos não visam nada com isto”, disse
Bonifácio. –No caso, eles adotaram uma tradição universal, a do asilo, que no
obstante, sistematicamente, não adotam. Creio que toda vez que se dá acolhida a
alguém com dificuldade, mesmo que se chame Leonel Brizola, está se fazendo algo
aceitável. Na realidade, o governo americano não deu asilo ao ex-líder populista. (O
GLOBO, 22 de setembro de 1977).

O jornal destaca ainda que os Estados Unidos não concederam o visto à Brizola como
asilado político, mas sim como turista, afirmando, com as palavras do deputado José Bonifácio,
que ele conseguiu isto “porque arranjou melhores intermediários, que conseguiram convencer
os americanos” (O GLOBO, 22 de setembro de 1977).
O discurso do jornal O Globo, como podemos perceber, atua na diminuição da
importância da estada de Brizola nos Estados Unidos, visto que o mesmo adota uma política de
enfraquecimento dos principais líderes oposicionistas ao regime. O jornal traz opiniões que
legitimam sua tese, principalmente de partidários da Arena.

Entretanto, a aceitação de Brizola em solo estadunidense demonstra uma mudança nas


relações, visto que em 1964 os Estados Unidos participaram intensamente do golpe, contrários
a medidas adotadas pelo então presidente brasileiro João Goulart, defendidas por Brizola. De
apoiador do golpe em 1964, os Estados Unidos enfraquecem gradualmente a relação com o
governo militar após o AI5.

Ao chegar à Nova York, Brizola teve uma ideia da mudança do país em relação ao
suporte ao golpe de 1964, pela quantidade de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas que o
cercaram. Nessa ocasião, Brizola passa a definir-se como um socialdemocrata (KUHN, 2001).
De acordo com João Trajano Sento-Sé,

A partir de sua ida para os Estados Unidos, Brizola começa a manter contatos com 187
7
brasileiros exilados em várias partes do mundo. Faz viagens frequentes a Europa,
estabelecendo em Portugal uma espécie de front para encontros com figuras
proeminentes da política brasileira e também com líderes europeus. Viaja para Paris,
Estocolmo e a Alemanha. Promove encontros em Lisboa entre políticos brasileiros
exilados no México, na Argélia e aqueles que optaram pelo continente europeu. Passa
também a manter contatos frequentes com os principais líderes da socialdemocracia
europeia. Como resultado desses contatos, Brizola acaba por ser convidado a tomar
acento, como representante do Brasil, na Internacional Socialista, inicialmente como
observador e depois como membro efetivo daquela instituição. A ocupação deste
lugar tem um grande significado. A partir daí, além de conquistar o reconhecimento
de uma respeitável instituição internacional que reunia estadistas como Oloff Palme,
François Mitterrand, Mário Soares, Felipe González e Willy Brandt, Brizola
reforçava sua posição de democrata vocacionado para questões sociais, sem
comprometimentos, por outro lado, com o marxismo ou com teses revolucionárias.
(SENTO-SÉ, 1999, p.72)

Assim, Brizola, que antes se denominava apenas como trabalhista, passa a intitular-se
como um socialdemocrata. Embora continue afirmando ser um trabalhista, Brizola passa a
interagir e identificar-se com a social democracia europeia, também em uma adequação aos
novos tempos.
2. Capítulo II - Brizola e o encontro de Lisboa: discursos de O Globo

Em janeiro de 1978, Brizola parte para Lisboa, onde passa a tratar da principal tentativa
de renovação do trabalhismo, aproximando-se de Mário Soares e Willy Brandt, expoentes da
Internacional Socialista, da qual passou a fazer parte, e a abraçar a ideia do “socialismo
democrático” (VAINFAS, 2007, p.492).

O principal contato de Brizola com outros exilados acontece já no final do exílio, entre
os dias 15, 16 e 17 de junho de 1979, em Lisboa, o chamado encontro dos Trabalhistas do Brasil
com os Trabalhistas no exílio, ou simplesmente, Encontro de Lisboa. O evento que reuniu cerca
de 150 pessoas tinha por objetivo criar um novo partido trabalhista no Brasil, tendo Brizola
como líder (SENTO-SÉ, 1999, p.79).

O jornal O Globo, do dia 16 de junho de 1979 destacou a fala de Brizola no encontro de


Lisboa, sob o título “Brizola abre encontro trabalhista pregando socialização da economia”:
187
No primeiro dia do encontro trabalhista, o ex-governador Brizola fez uma exposição 8
de cerca de duas horas sobre as linhas gerais do Partido Trabalhista Brasileiro, e
definiu dois pontos básicos: a socialização das estruturas da economia e o primado
do trabalho sobre o capital. Na definição de Brizola, o trabalho não deve ser visto
apenas como um fator econômico, mas especialmente pelo seu lado social, “onde
outros primados se afirmam, com valores éticos, políticos e morais”. [...] O primeiro
ponto destacado por Brizola foi a necessidade de organizar as bases populares do
partido: “nosso povo não conseguirá atingir seus objetivos se não se organizar num
grande partido que canalize suas aspirações. Quando chegar a hora, teremos que ter
quadros preparados e alternativas previamente estudadas”, disse Brizola para
lembrar em seguida: -O próprio presidente Vargas teve que dar um tiro no coração
porque não tinha um povo organizado atrás de si.(O GLOBO, 16 de junho de 1979).

Em seu discurso, principalmente ao lembrar a morte de Getúlio Vargas, Brizola


demonstra sua capacidade de “falar forte”, como faz inúmeras vezes ao longo de sua carreira,
em comícios, debates e eventos. Seu discurso forte e ríspido atua no sentido de emocionar e
comover o leitor. De acordo com Patrick Charaudeau:
O “falar forte” evoca um imaginário de “potência”. O orador deve, evidentemente,
apresentar um físico considerável: um porte e certa corpulência capazes de
demonstrar; uma gestualidade ampla e enérgica, assim como certa encenação de
desempenho oratório (palanque, decoração, multidão, etc.), tais como as que se pode
ver nas imagens de certos comícios. Mas é também uma voz forte (de trovão) vinda
do fundo do peito, bem timbrada, capaz de ocupar um grande auditório com
ressonância (às vezes, a regulagem sonora ajuda). É preciso também que a dicção
não seja nem muito lenta nem muito rápida. Pode ser relativamente acelerada, mas
deve ser compensado por uma pronúncia bem articulada fim de evitar que as palavras
do orador se tornem inaudíveis. (CHARAUDEAU, 2015, p.171)

Pelo seu modo de “falar forte”, e também pela sua história no trabalhismo e na esquerda
brasileira, Brizola era visto pelos outros exilados como líder nato do partido a ser recriado.
Embora nesse momento a imagem de Brizola seja exaltada, pelos companheiros de exílio, ao
voltar ao Brasil o ex-governador sofre um processo de enfraquecimento político.

O Globo continua a relatar o encontro de Lisboa, com o título de “Futuro do MDB


preocupa os participantes da reunião”:

A reunião do PTB, ontem, foi um sucesso em termos operacionais, mas permanece 187
9
sem soluções alguns problemas que estão sendo discutidos aqui em Lisboa desde
quinta-feira, quando começaram a chegar ao Brasil os convidados e parlamentares.
Discute-se com muita intensidade qual a estratégia a seguir em relação ao MDB, que
para muitos deve ser preservado nesse momento de transição da vida política
brasileira. Alguns influentes membros do futuro PTB, como Doutel de Andrade,
acham que não é uma boa política dividir agora as oposições e ontem à noite, em
uma reunião, chegou a ser levantada a hipótese de ser apresentada uma moção de
solidariedade ao deputado Ulisses Guimarães, presidente do MDB. [...]A posição
final está dependendo de uma definição do próprio Brizola, que ainda não decidiu se
ao retornar atuará no Rio Grande do Sul, seu estado, ou no Rio de Janeiro. Existe
ainda uma outra corrente, que tenta convence-lo a ir para São Paulo, onde estaria a
grande massa de manobra do trabalhismo. Brizola poderia, segundo cálculos de
alguns, aderir ao PTB, se tivesse legenda para concorrer em 1982 ao governo
estadual, contra a corrente de Chagas Freitas. (O GLOBO, 16 de junho de 1977)

Percebemos que, para o jornal, é dado como certo de que Brizola seria o líder do novo
PTB, e passa a discutir possíveis nomes para compor o partido, até mesmo do futuro presidente
Fernando Henrique Cardoso, que não chega a aderir ao partido. Entretanto, na mesma edição,
começa a trazer as primeiras declarações do embate entre Leonel Brizola e Ivete Vargas pelo
domínio da sigla PTB, com o título “Ivete acha que é turismo político” (sobre o Encontro de
Lisboa):

-Acho que é um turismo político absolutamente inédito na história do Brasil. Mas não
consigo ainda me definir a respeito. Isso porque não sei bem o que é esse encontro,
pois não são só petebistas que participam, mas membros de vários organismos de
vários países. Isso me faz sentir certa preocupação, pois a legenda PTB está sob a
responsabilidade de uma comissão executiva nacional, da qual participo, e a lei é
muito clara na proibição e vinculação com governos ou partidos estrangeiros. Essa
a posição da ex-deputada Ivete Vargas, a respeito do encontro do PTB do ex-
governador Leonel Brizola, iniciado ontem. [...] Um encontro dessa natureza valeria
pelo número de parlamentares, o que não é o caso, ou pela representatividade dos
nomes reunidos, o que muito menos ocorre. Serve mais –concluiu –para por fim de
vez ao mito Brizola. Como diversos outros, politicamente, o nome de Brizola é forte,
mas não tem contra-partida em estrutura partidária.( O GLOBO, 16 de setembro de
1979)

Assim, o jornal inicia um espaço que destaca a batalha travada entre Brizola e Ivete
Vargas, que irá ter definição apenas em maio de 1980. A declaração de Ivete sobre Brizola atua
no sentido de enfraquecer politicamente o ex-governador. A intenção do jornal ao publicar 188
essas declarações logo após a sua volta do exílio, demonstra que O Globo busca difundir a ideia
da baixa credibilidade de Brizola, de investir em um processo de desconstrução do mito Brizola.
0
De acordo com Patrick Charaudeau:

É na estigmatização da origem do mal que é preciso inscrever também as estratégias


de desqualificação do adversário, sendo este um dos polos constitutivos do discurso
político. As estratégias de desqualificação são utilizadas com a ajuda de diferentes
procedimentos discursivos. [...] O sujeito político que combate um adversário deve
rejeitar os valores opostos aos preconizados por este, mostrando uma boa
argumentação e fraqueza ao perigo dessas ideias. Mas uma argumentação muito
pesada, complexa ou sutil corre o risco de não ser compreendida pela massa dos
cidadãos. É por isso que, frequentemente, em política, a argumentação se reduz a
esse procedimento de ataques ad hominem, que questiona a probidade do adversário,
suas contradições, sua incapacidade de manter promessas, suas alianças nefastas e
sua dependência diante da ideologia de seu partido. (CHARAUDEAU, 2015, p.92)

É dessa forma que atua o discurso do jornal O Globo em relação ao retorno de Brizola,
na tentativa de difundir a ideia de sua incapacidade em construir projetos políticos, ignorando
o fato de ter sido exilado por 15 anos, interrompendo o auge de sua carreira.
Assim, O Globo busca minimizar a influência de Brizola na futura recomposição
partidária. Este pensamento perdura na perda da sigla para Ivete Vargas, na criação do PDT, e
na campanha para eleição ao governo do Rio de Janeiro, alterando apenas quando da virada nas
pesquisas eleitorais favoráveis à Brizola.
De acordo com João Trajano Sento-Sé, no processo de renovação do trabalhismo na
reorganização partidária de 1979, não houve discussão sobre a pessoa que deveria conduzi-lo,
sendo Brizola a principal figura desse movimento, uma vez que foi reconhecido pelos antigos
trabalhistas como seu líder, desde 1976, com a morte de Jango. Assim, o objetivo dos brasileiros
que se reúnem no Encontro de Lisboa, sob os auspícios do Partido Socialista Português, é o de
fundar um novo partido trabalhista, tomando do antigo PTB o que havia de positivo, sob o
comando de Brizola, herdeiro do legado de Vargas e Goulart (SENTO-SÉ, 2007. p.433).

O autor afirma que a aproximação de Brizola com a Internacional Socialista, por


intermédio de Mário Soares, era desejo do próprio Brizola e de alguns jovens brasileiros
exilados para aproximar esse novo trabalhismo com as correntes mais avançadas da esquerda
europeia. No encontro de Lisboa, também estavam presentes representantes da Ação
Democrática da Venezuela, da Frente Sandinista da Nicarágua, do Partido Revolucionário 188
Institucional (PRI) mexicano, do Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), da
1
Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), de lideranças políticas da Guiné, de São Tomé
e de outros países africanos (SENTO-SÉ, 2007, p.438).

A presença de lideranças desses países insere-se em uma atmosfera que se assemelha


aos dos movimentos dos países não-alinhados que movimentaram os anos de 1950 e 1960, ou
seja, a intenção era mostrar ser uma terceira via, da qual os brasileiros presentes no Encontro
tomaram parte (SENTO-SÉ, 2007, p.438).

O encontro de Lisboa proporciona a Brizola organizar as bases do novo partido


trabalhista. Ao manter contato com os principais líderes da socialdemocracia europeia, e fazer
parte da Internacional Socialista, Brizola passa a compartilhar desta ideologia.

No período em que esteve em Lisboa, Brizola reencontrou-se com um dos seus


principais companheiros políticos no pós-1979: Darcy Ribeiro, que viria a ser em 1982 o vice
de Brizola no Rio de Janeiro. Darcy Ribeiro, um dos principais antropólogos da história
brasileira, e ex-chefe de gabinete do governo João Goulart, teve, segundo relatos de trabalhistas,
uma relação conturbada com Brizola na década de 1960, chegando a serem hostis um com o
outro (SENTO-SÉ, 1999, p.251).

Alfredo Sirkis presencia o reencontro entre Brizola e Darcy Ribeiro e o relata a Sento-
Sé:

Eu fui testemunha do célebre reencontro do Brizola com o Darcy Ribeiro. Foi uma
das coisas mais divertidas que eu já presenciei. Na época do Jango eles não se davam
e tinham passado anos de exílio afastados um do outro. Por isso, havia uma certa
expectativa no ar. Fomos eu, Neuzinha e, sentado no banco de trás, Brizola. Aí o
Darcy chegou, sentou no banco de trás e eu, dirigindo o carro, fiquei escutando o
diálogo que foi mais ou menos assim. Darcy: tenho que lhe dizer uma coisa. Eu estive
nos Estados Unidos, nas universidades, junto com as pessoas mais importantes do
meio acadêmico, da política norte-americana e o seu nome goza do mais alto
conceito. Brizola, eu tenho que lhe dizer uma coisa: Jango morreu, Allende morreu,
Perón morreu. A América Latina só tem você. O Brizola devolveu: Darcy, você é o
maior intelectual brasileiro, nós temos que nos unir. Bom, prossegue Sirkis, foi a
maior rasgação de seda. Naquele momento nasceu o amor, que dura até hoje entre
dois dos mais antigos adversários dentro do PTB. ( SENTO-SÈ, 1999, p.252)995.

Brizola e Darcy Ribeiro aproximam-se em um momento crucial para a reinvenção do


188
trabalhismo brasileiro. No período pré-1964, os dois tiveram uma relação conturbada pelas 2
diferentes correntes existentes entre os trabalhistas da época, sendo Darcy Ribeiro mais próxima
ao estilo conciliador de João Goulart, enquanto Brizola defendia reformas profundas e sempre
se posicionou como um revolucionário.

A partir do reencontro em Lisboa, Brizola e Darcy, de rivais que atuavam no mesmo


campo, tornam-se amigos quase inseparáveis: “Brizola, o homem prático, empírico, como ele
próprio se definia, avesso aos maneirismos dos “intelectuais de punhos de renda”, e o intelectual
empreendedor, ou fazedor, como preferia Darcy” (SENTO-SÉ, 1999, p.252).

O documento oficial do encontro, a Carta de Lisboa, demonstra uma reformulação nos


temas até então inseridos pelos partidos políticos brasileiros. Apresenta forte teor nacionalista
e trabalhista, convocando os trabalhadores do país a unirem-se em torno do partido, destacando

995
Depoimento de Alfredo Sirkis a Sento-Sé, em 07/11/1996. Alfredo Sirkis foi participante da Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR) e da luta armada contra a ditadura. Após participar de diversos sequestros à embaixadores,
opta pelo exílio em 1971. É autor do premiado livro: Os Carbonários, em que relata sua ascensão de líder estudantil
a guerrilheiro.
as conquistas dos movimentos estudantis, prometendo a defesa dos oprimidos e marginalizados,
e citando Getúlio Vargas como inspiração maior (CHACON, 1985, p.667).

A Carta ataca “aqueles que defendem uma posição de paciência, assim como a
inoportunidade da luta contra a opressão”, afirmando que estes não foram os que se
encontravam em situação de sofrimento e perseguição pelo regime, mas sim os que “navegam
nas águas da abastança e dos privilégios”. Dessa maneira, o documento destaca sua posição na
luta pelo fim do governo militar, e apresenta às razões pelas quais se fazia necessário a recriação
do partido trabalhista (CHACON, 1985, p.668). Tais razões seriam a conivência da atual
posição com o governo militar, a falta de amparo aos trabalhadores, a falta de aliança entre
partido e povo.

A carta ressalta quatro categorias de pessoas “cujos problemas estão a exigir a atenção
prioritária dos trabalhistas”:

Primeiro, o de salvar os milhões de crianças abandonadas e famintas, que estão


sendo condenadas à delinquência; bem como o meio milhão de jovens que,
anualmente, alcançam os dezoito anos de idade analfabetos de descrentes de sua
188
Pátria. Segundo, o de buscar as formas mais eficazes de fazer justiça aos negros e
aos índios que, além da exploração geral de classe, sofrem uma discriminação racial 3
e étnica, tanto mais injusta e dolorosa, porque sabemos que foi com suas energias e
com seus corpos que se construiu a nacionalidade brasileira. Terceiro, o de dar a
mais séria atenção às reivindicações da mulher brasileira, que jamais viu
reconhecidos e equiparados seus direitos de pessoa humana, de cidadã e de
trabalhadora; e que, além de ser vítima da exploração representada pela dupla
jornada de trabalho, se vê submetida a toda a sorte de vexames sempre que procura
fazer valer os seus direitos. Quarto, o de fazer com que todos os brasileiros
assumamos a causa do povo trabalhador do Norte e do Nordeste, espoliado por uma
economia local obsoleta, como por um colonialismo interno exercido de forma
escorchante pelas unidades mais ricas da federação e pelo próprio Governo Federal.
(CHACON, 1985, p.671)

Dos quatro pontos apresentados, o segundo, terceiro e quarto são o que mais chamam
atenção, por se tratar de temas até então praticamente não contemplados por outros partidos
políticos. Comprometerem-se com a luta contra a discriminação contra índios, negros,
mulheres, e trabalhadores do Norte e Nordeste, bem como reconhecer seu valioso papel na
construção social brasileira e o preconceito sofrido diariamente por essas categorias, demonstra
uma renovação do discurso trabalhista.

Como afirma Sento-Sé, a incorporação de temas associados à minoria, como as questões


étnicas e feministas, é influência do contato de Brizola e de atores ligados a ele, com a
socialdemocracia europeia.

Segundo Ronaldo Vainfas, o discurso político de Brizola, que foi sintetizado na Carta
de Lisboa, corresponde à vaga ideia de um socialismo moreno, isto é, “um socialismo à
brasileira, que fosse expressão de “nosso povo”, no qual o único princípio programático mais
geral era a proposta de unir justiça social com democracia e liberdade” (VAINFAS, 2007,
p.497).

De fato, o novo projeto trabalhista de Brizola, que passa a incorporar elementos sociais-
democráticos, não consistia em uma proposta de um socialismo marxista. Este “socialismo à
brasileira”, ou socialismo moreno, moldado no Encontro de Lisboa, identificava-se com o
trabalhismo e representava um programa radical de mudanças políticas, sociais e econômicas
(SENTO-SÉ, 2007, p.441). 188
Alguns membros do encontro resistiam à incorporação de elementos da 4
socialdemocracia no novo partido, principalmente o chamado Grupo do México:

O encontro de Lisboa demarca uma visão. Incorpora-se a ideia do socialismo


democrático que o Brizola conseguiu ainda transformar em trabalhismo. O
trabalhismo como versão e caminho brasileiro para o socialismo. Há uma briga
enorme, a partir daí. Há aqueles que querem que o Brizola seja uma espécie de Fidel
Castro brasileiro. O pessoal do Brasil fica muito inseguro com isso. Nós, que
estávamos na Europa, queríamos um outro tipo de experiência, que o Brasil não
tinha. Nós queríamos incorporar o velho PTB às novas dinâmicas que tínhamos
testemunhado na Europa. (SENTO-SÉ, 1999, p.95)996

Em suma, embora a resistência de alguns membros, o trabalhismo brasileiro proposto


por Brizola, tendo futuramente o PDT como representante partidário, incorpora elementos da

996
Depoimento de Clóvis Brigagão a Sento-Sé, em 25/9/96.
socialdemocracia europeia. É este Brizola socialdemocrata que volta do exílio e dá novos rumos
ao trabalhismo brasileiro, diferente do trabalhismo quando do seu auge, com Vargas.

CONCLUSÃO

O Encontro de Lisboa foi um marco importante para a reinvenção do trabalhismo


brasileiro, que teve seu auge nos anos 1945-1964, e que retorna em 1979 de forma diferente da
anterior. O trabalhismo brasileiro pós-45 não era homogêneo, contendo diversas correntes no
interior do partido. Apesar disso, havia na sigla um eixo, uma estrutura dorsal nacionalista,
distributivista e desenvolvimentista, que fez com que o trabalhismo se transformasse em um
projeto para o país.
Sob o comando de Brizola, o discurso trabalhista remete um vínculo com o passado, em
que ele intitula-se como continuador da obra de Getúlio Vargas, o que o PTB de Ivete não
consegue fazer, segundo Sento-Sé, pela falta de um líder presente e carismático como acontece
com o PDT de Brizola.
A carta de Lisboa, documento que se torna em 1980 uma referência para o manifesto de
188
criação do PDT, introduz novos tópicos, como a defesa dos direitos das mulheres e dos 5
indígenas, que demonstra uma nova visão do próprio Brizola. Sob a influência da
socialdemocracia, Brizola buscava mostrar que havia se preparado nos 15 anos de exílio para
liderar o processo de renovação do trabalhismo no Brasil.
O jornal O Globo, que permanece favorável ao regime militar durante praticamente toda
a sua duração, investe em um processo de desconstrução do mito Brizola. O início desse
processo ocorre justamente com o Encontro de Lisboa, e permanece em seu retorno ao Brasil,
na disputa pela sigla PTB entre Brizola e Ivete Vargas, na criação do PDT e na campanha e
eleição de Brizola como governador do Rio de Janeiro em 1982.
A posição do jornal foi formulada levando em consideração o forte discurso imposto
por Brizola contra o regime e sua capacidade de ser um “líder de massas”, que exerceria
influência no pensamento político da população brasileira. O discurso político do jornal busca
difundir uma ideia de que Brizola perdeu seu prestígio político, que estaria enfrentando
inúmeras dificuldades para montar o novo partido trabalhista, e que não era capaz de estabelecer
planos políticos duradouros.
Contudo, o discurso do jornal O Globo sobre o encontro de Lisboa e a ação de Leonel
Brizola atua no sentido de enfraquecer politicamente o ex-governador. Após encontro, e em seu
retorno para o Brasil, Brizola encontra diversas dificuldades para se estabelecer politicamente,
principalmente com a perda da sigla PTB para Ivete Vargas. Ainda assim, Brizola consegue
eleger-se governador do Rio de Janeiro em 1982, após uma grande virada nas pesquisas
eleitorais, mas não consegue, porém, alcançar o seu grande objetivo após o retorno do exílio, o
de chegar ao poder federal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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(Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2012.

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2003. 6
CHACON, Vamireh. História dos partidos brasileiros: discurso e práxis dos seus programas.
2.ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2015.

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FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro:
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FILHO, FC Leite. El caudillo: Leonel Brizola: um perfil biográfico. São Paulo: Aquariana,
2008.

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MARCON, Marcelo. O retorno de Leonel Brizola do exílio em 1979: Discursos de O Globo.


Revista Labirinto, ano XVI, v.24, n.1. (Jan-Jun), 2016. p. 339-362.
REMOND, René. Por uma história política. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

SENTO-SÉ, João Trajano. Brizolismo: estetização da política e carisma. Rio de Janeiro,


Editora FGV, 1999.

__________. Um encontro em Lisboa. O novo trabalhismo do PDT. In: FERREIRA, Jorge;


REIS, Daniel Aarão (Coord). Revolução e democracia (1964--). Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, 2007. (As esquerdas no Brasil ; 3).
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: De Castelo a Tancredo (1964-1985). 8. ed. Rio de Janeiro:
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VAINFAS, Ronaldo. A luz própria de Leonel Brizola: do trabalhismo getulista ao socialismo


moreno. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (Coord). Revolução e democracia
(1964--). Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007.

FONTES

188
ACERVO DO JORNAL O GLOBO. Disponível em: <http://acervo.oglobo.globo.com>.
7
A RESISTÊNCIA PERONISTA E O GOVERNO FRONDIZI (1958-1962)*997

Leonardo da Rocha Botega**998

RESUMO

A deposição do presidente Perón pelo golpe de Estado que instalou a Revolução Libertadora
em 1955, inaugurou um período onde a principal força política argentina, o peronismo, foi
colocado na ilegalidade. Em fevereiro de 1958, graças ao apoio dos proscritos peronistas,
Arturo Frondizi foi eleito presidente. Tal apoio teve como base o compromisso do então
candidato com um conjunto de reivindicações pactuadas diretamente com Perón. A ação do
novo governo foi orientada a partir da proposta do desarrollismo, um sólido programa
econômico que objetivava a industrialização como forma de superação do subdesenvolvimento.
Porém, a fragilidade política do governo frondicista em meio a uma realidade marcada pela
polarização peronismo-antiperonismo e pela tutela da direita militar sobre suas ações, fatores
que levaram a derrubada do presidente em março de 1962, levaram ao não cumprimento de 188
pontos considerados estratégicos do pacto com o peronismo. A partir destas considerações o 8
presente artigo tem como objetivo promover uma síntese dialética sobre as posições do
movimento peronista diante do desarrollismo frondizista tendo como fontes de pesquisa os
documentos da resistência peronista ao longo do período 1958-1962.

Palavras-chave: Governo Frondizi; Peronismo; Desarrollismo.

Em 19 de setembro de 1955 um Golpe Civil-Militar interrompeu uma década de governo


peronista. A autointitulada Revolução Libertadora inaugurou um processo de intensa repressão,

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico da UFSM. Mestre em Integração Latino-americana pela
UFSM e doutorando em História pela UFRGS.
marcado pelo fuzilamento de militares ligados a Perón, pela perseguição e intervenção nos
sindicatos e pela proscrição de qualquer símbolo que lembrasse Perón, Evita e o peronismo,
construindo um sistema político onde a principal força não podia atuar livremente (LUNA,
1974, p. 95-104). Em meio a proscrição e a repressão, o peronismo foi se ressignificando, a
partir da Resistência Peronista. Composta de uma gama de grupos operários, estudantis,
militares, de diferentes matrizes ideológicas que iam desde simpatizantes do fascismo até os
trotskistas do Partido Obrero Revolucionário, que praticavam o “entrismo”, este partido-
movimento se caracterizava pela diferenciação entre os grupos neoperonistas, que procuravam
a conciliação com a Revolução Libertadora como tática de retorno a legalidade, e o Peronismo
Revolucionário, liderado pelo delegado pessoal de Perón, John William Cooke, que não admitia
qualquer forma de conciliação. Em comum a estes grupos estava à causa da Revolução Social
Peronista e a liderança indiscutível do general Perón.

Diferentes posições também ocorriam no interior das forças políticas que apoiaram o
golpe de 1955. Em meio ao processo de articulação visando não somente as eleições
constituintes de 1957, como também as eleições presidenciais prometidas para 1958,
paulatinamente, estas foram se definindo entre liberais e desenvolvimentistas, antiperonistas e 188
defensores da participação política de um “peronismo sem Perón”. Esta contraposição levou a
9
divisão no interior da União Cívica Radical - UCR, principal partido de atuação legal no
período. De um lado, liderada pelo desenvolvimentista Arturo Frondizi surgiu a União Cívica
Radical Intransigente – UCRI; de outro lado, liderada pelo liberal e antiperonista Ricardo
Balbin surgiu a União Cívica Radical do Povo - UCRP (UZAL, 1989).

A partir da proposta do “peronismo sem Perón” é que, sobretudo, após a definição da


candidatura de Arturo Frondizi a presidência pela UCR, figuras próximas a UCRI, como o
economista Rogelio Frigerio, procuraram uma aproximação com o peronismo em busca de
apoio eleitoral. Este apoio foi negado quando da eleição para a Assembleia Constituinte de
1957. Na ocasião o Comando Sindical Peronista, em junho de 1957, emitiu o seguinte
comunicado:

COMPAÑERO: La orden de Perón es votar en blanco. Se vota en blanco pegando


sobre en el cuarto oscuro, sin nada adentro o con un papel absolutamente limpio, sin
una palabra ni una raya. Si Ud. se saca el gusto escribiéndoles a los tiranos:
“Asesinos”, “Canallas”, “Hijos de P…” o cualquier otra de las cosas que se
merecen, usted anula su voto. Y necesitamos votos en blanco que sumen, no votos
anulados, que desaparecen. Vote a Perón votando en blanco. Vote a Evita votando
en blanco. Vote a Valle y compañeros héroes asesinados votando en blanco. Castigue
a los tiranos entreguistas, Aramburu y Rojas, votando en blanco. Es ésta la única
consigna, no se deje engañar. Tenga disciplina partidaria, colabore al inmenso
triunfo del pueblo. Está en sus manos aniquilar con su voto en blanco a la tiranía
oligárquica entreguista. (BASCHETTI, 2012, p.103)

O resultado do processo foi uma considerável vitória do peronismo com 2.115.000 votos
em branco (24,31%), seguido da UCRP com 2.106.000 votos (24,20%) e da UCRI com
1.847.000 votos (21,23%) (KOENIG, 2013, p.147). Este resultado demonstrava a força do
peronismo e a liderança de Perón acima daqueles neoperonistas que propunham participar da
fórmula “peronismo sem Perón”. Porém, no interior do peronismo e no pensamento do próprio
Perón crescia a ideia de que uma nova intransigência não seria facilmente aceita pelas bases do
movimento, uma vez que, uma coisa era ser intransigente no voto para uma Assembleia
Constituinte que, como se confirmou posteriormente, já nasceria fracassada, outra coisa era

189
manter a intransigência no voto para presidente e correr o risco de ter mais seis anos de um
governo entreguista e repressivo. Por isso uma aliança com Frondizi não deveria ser descartada.

A partir destas reflexões é que Perón e Cooke subscreveriam, juntamente com Frondizi 0
e Frigerio, o Pacto Perón-Frondizi. No pacto peronismo se comprometeria em apoiar a eleição
de Frondizi para presidente. Por sua vez, Frondizi se comprometia com as seguintes medidas:

1°. Revisión de todas las medidas de carácter económico adoptadas desde el 16 de


setiembre de 1955, lesivas a la soberanía nacional, y de aquellas que determinaron
un empeoramiento de las condiciones de vida del Pueblo. Se consideran como de
fundamental urgencia el restablecimiento de la reforma bancaria de 1946, la
estructuración de una política económica de ocupación plena y amplio estímulo a la
producción nacional, la elevación del nivel de vida de las clases populares y el
afianzamiento de los regímenes de previsión social;

2°. Anulación de las medidas de toda índole adoptadas por el gobierno provisional
desde el 16 de setiembre de 1955 con propósitos de persecución política;

3°. Anulación de todo proceso, cualquiera sea su carácter, iniciados con propósitos
de persecución política;

4°. Levantamiento de las interdicciones y restitución de los bienes a sus legítimos


dueños;
5°. Devolución de los bienes de la Fundación Eva Perón;

6°. Levantamiento de las inhabilitaciones gremiales y devolución de los sindicatos y


de la Confederación General del Trabajo. Todo se cumplirá en un plazo máximo de
ciento veinte (120) días. Las elecciones en los sindicatos serán presididas por
interventores nombrados de común acuerdo;

7°. Reconocimiento de la personería del Partido Peronista, devolución de sus bienes


y levantamiento de las inhabilitaciones políticas. Tanto la personería como los bienes
serán acordados a las autoridades que designe el General Juan Domingo Perón;

8°. Reemplazo de los miembros de la Suprema Corte de Justicia y eliminación de los


magistrados que han participado en actos de persecución política;

9°. En un plazo máximo de dos años se convocará a una Convención Constituyente


para la reforma total de la Constitución, que declarará la caducidad de todas las
autoridades y llamará a elecciones generales. (COOKE, 2007, p.656-657)

Ao mesmo tempo o documento determinava que os pontos 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º seriam
adotados em um prazo de 90 dias após a posse de Frondizi. Determinava também que ficava a
cargo de Frondizi “arbitrar los medios para el cumplimiento de las cláusulas precedentes”,
enquanto o general Perón se comprometia em “interponer sus buenos oficios y su influencia
política, para crear el clima pacífico y de colaboración popular indispensables para poder llevar 189
a cabo los objetivos establecidos en el presente Plan”. Por fim, os “firmantes empeñan su 1
palabra de honor en el sentido de que hasta el primero de agosto de mil novecientos cincuenta
y ocho, este Plan permanecerá en reserva y sólo podrá ser divulgado posteriormente de común
acuerdo, salvo el caso de incumplimiento por las partes” (Idem, p. 657). Aqui estavam expressas
as ressalvas em relação ao possível impedimento da posse de Frondizi como presidente pelos
setores da extrema-direita militar, os gorilas como os peronistas o chamavam, em caso de
vazamento do documento.

As eleições presidenciais de 23 de fevereiro de 1958 garantiram 4 milhões de votos para


Arturo Frondizi (45%) contra 2,5 milhões de votos (29%) para Balbin, o candidato da UCRP
apoiado pelo governo Aramburu. Somarem a estes 800 mil votos em branco, provavelmente,
de peronistas que não acataram a ordem de Perón. Mesmo assim, os peronistas haviam
garantido 2 milhões de votos a mais do que a UCRI havia conseguido nas eleições para a
Assembleia Constituinte de 1957.

Porém, conforme Potash (1984),


[...] al buscar deliberadamente el apoyo peronista, en forma manifiesta a través de la
retórica de la campaña, y en secreto mediante negociaciones con Perón en el exílio,
y también recibir el apoyo del partido Comunista, Frondizi asumiria la presidencia
con un doble riesgo: por un lado, el agudizado recelo de los militares antiperonistas,
casi tan disgustados por su propia incapacidad política como por el método de
Frondizi para lograr el triunfo; por el outro, la determinación de Juan Domingo
Perón de exigir el pago político total por los votos prestados. (p.364-365)

Temendo a reação militar é que Frondizi, antes mesmo de tomar posse, aceitou a
imposição dos segmentos conservadores das forças armadas dos seus respectivos comandantes-
chefes concedendo-lhes uma forte autonomia. Tal fato acabou transformando seu governo em
um governo tutelado que somente era possível a medida que não avançasse as barreiras
impostas pelos militares e entre estas estava a manutenção da proscrição do peronismo. Nessas
condições, Arturo Frondizi assumiu a presidência em 1º de maio de 1958.

Em 26 de abril, Perón escrevia a Cooke alertando para o fato de que os acordos com não
colocavam o peronismo no oficialismo, mas em uma oposição construtiva, uma oposição em
colaboração, e que a aliança era contra os gorilas na tarefa comum de destruir e submeter à
189
oligarquia e os entregadores “pero, es necesario que Frondizi demuestre que tiene la misma 2
intención que nosotros en los hechos que, hasta ahora, por razones comprensibles, no ha
demostrado en ningún caso” (COOKE, 2007, p.358-360).

Um mês depois, Perón alertava Cooke para o fato de que o governo Frondizi se iniciava
como um governo condicionado concluindo que era necessário publicamente se manter em uma
posição de tolerância, porém chamando a responsabilidade do governo para o cumprimento do
acordo. Esta direção foi apontada por Cooke em Carta aos peronistas:

No es fácil la tarea de gobernar, y máxime después de casi tres años de política


antinacional. De ahí la extremada prudencia con que el pueblo plantea sus
reivindicaciones, deseosos de no prestarse a maniobras de provocación. Pero va
acentuando el tono de su protesta ante la sensación de que, por encima del gobierno
visible, hay el supergobierno de los que ‘presionan’. Es el gobierno visible el que
tiene la responsabilidad de lo que se haga para bien o para mal, el que recibió el
‘aluvión de votos’, y el obligado a llamar a las cosas por su nombre, en lugar de jugar
a equilibrios que la dramáticas circunstancias actuales no permiten.
El Peronismo, tal como acaba de declararlo nuestro Líder, apoyará todo lo que sea
de beneficio popular, pero se opondrá con todas las fuerzas a lo que represente el
interés de la explotación y la injusticia. Para eso, lo mismo está en condiciones de
enfrentar a gobiernos vacilantes que a supergobiernos histéricos. (BASCHETTI,
2012, p.131-132)

Aparentemente Frondizi dava sinais de cumprimento de alguns pontos do Pacto tais


como: aumento geral dos salários em 60%; sanção da nova Lei de Associação Profissional; e a
lei de Anistia (BABINI, 2006). Medidas adotadas no prazo de um mês e meio de governo. Em
que pese a não legalização do Partido Peronista e os limites da própria lei de Anistia, a Lei de
Associação Profissional garantia a autonomia sindical requerida pelos peronistas e estabelecia
um prazo de 90 dias para a realização de eleições sindicais livres. A nova lei foi considerada
um fator fundamental pelos peronistas em sua luta pela reconquista da sua liderança nos
principais sindicatos através das 62 Organizaciones Gremiales (LAMAS, 1984, p.126). Porém,
paralelamente a estes avanços, as medidas econômicas adotadas pelo desarrollismo frondicista,
que tinha por objetivo a aceleração do processo de industrialização como forma de enfrentar o
estrangulamento da balança de pagamentos, entrava em atrito com as posições defendidas pelos
peronistas, sobretudo, a política de atração de capitais estrangeiros a partir da garantia de altas
189
taxas de lucro através de um mercado livre de restrições para a sua remessa, o que gerava um 3
alto grau de desnacionalização da economia, tanto através da radicação de empresas
estrangeiras, quando da venda de ativos de empresas nacionais (KESSELMAN, 1973, p.28).
Esta foi à centralidade da chamada Batalho do Petróleo lançada pelo governo, em julho de 1958,
e que resultou em um conjunto de acordos assinados com empresas estrangeiras dos mais
diversos portes que passaram a ter o controle sobre a extração do petróleo argentino. Esta
medida resultou na perda de apoio de significativos setores nacionalistas que se somaram a
ideia do movimento nacional e popular lançado por Frigerio no período precedente ao processo
eleitoral, gerando inúmeras rupturas e oposições na base política do governo. Não fora diferente
a reação por parte do peronismo.

Em documento apresentado no plenário das 62 Organizações Peronistas, em 3 de


outubro de 1958, ou seja, em uma data posterior ao prazo de 90 dias de trégua acordado, os
sindicalistas afirmavam que o projeto desarrollista “tiende a impedir para siempre toda
posibilidad de Independencia Económica y de Soberanía Política”, pois, “los convenios de
entrega no tendrán como resultado un incremento de nuestro progreso sino de nuestra
dependencia”. Por fim ressaltavam que as 62 Organizações “no pueden permanecer silenciosas
ante semejante cuadro de entrega” (BASCHETTI, 2012, p.143).

Seguindo esta estratégia de financiamento da expansão industrial mediante a atração de


capitais estrangeiros, o governo Frondizi assinou, em dezembro de 1958, um acordo stand-by
com o Fundo Monetário Internacional, assumindo compromisso de adoção de medidas
profundamente impopulares que compuseram o Plano de Estabilização Econômica, adotado a
partir de janeiro de 1959 (FERRER, 2007, p.184).

Em novembro de 1958, paralelamente, as negociações do governo com o FMI, diante


da queda do nível de vida da classe trabalhadora emerge um conjunto de greves bancárias,
metalúrgicas e ferroviárias. O governo respondeu as greves com forte repressão e com a
decretação do Estado de Sítio, através do Plan Conintes (Conmoción Interna del Estado), o que
demonstraria que desde a posse de Carlos S. Toranzo Monteiro, um dos mais duros líderes
antiperonistas, como Comandante em Chefe do Exército, dois meses após a posse do presidente,
os gorilas da extrema-direita passaram a aumentar a tutela sobre Frondizi.
189
Esta postura de Frondizi produziu uma nova orientação por parte de Perón. Em Carta
Confidencial direcionada para John W. Cooke, em 20 de dezembro de 1958, o general afirmava
4
que:

Creo que ha llegado la hora de cantar, pero ha de ser con toda la voz que se tenga,
enfrentando al Gobierno con una enérgica oposición tenaz que será apoyada por todo
el Pueblo y aun por los propios enemigos, si sabemos tomar la delantera y no nos
dejamos, como ha sucedido ya, copar nuestras banderas por los enemigos del
peronismo. No es esta, hora de indecisiones y mudanzas, un mal plan pero ejecutado,
ha de darnos mejores resultados que el más genial de los planes que no se ejecuta.
(COOKE, 2007, p.430)

Em janeiro de 1959, em resistência direta as medidas do Plano de Estabilização explodiu


a grande greve do Frigorifico Lizandro de La Torre. Em um ato de resistência ao plano de
privatização do então maior frigorifico da América Latina, em 15 de janeiro cerca de 9000
trabalhadores decidiram ocupar o estabelecimento diante da negativa de negociação por parte
do governo. Tendo a frente da resistência o sindicalista Sebatián Borro o conflito se estendeu
por todo o Bairro de Mataderos até Villa Luro fazendo que por 48 horas a região se tornasse
uma zona liberada controlada pela população insurgente. (KOENIG, 2013, p.173). Em meio ao
levante operário, em comunicado aos trabalhadores da Agrupación Unidad de Trabajadores de
Entidades Deportivas y Civiles, Perón afirmava que:

Estamos viviendo días de decisión, en los que o está en juego no solamente la suerte
de las fracciones gremiales del Peronismo sino la suerte misma de la clase
trabajadora argentina. Si se permite entregar, como se lo hace, el país a la
explotación del capitalismo internacional, mediante la colonización del país o
instaurar desde ya la explotación más inicua, todos los dirigentes habremos
fracasado y cinco generaciones de trabajadores pagarán con hambre, miseria y
dolor, nuestro fracaso. (BASCHETTI, 2012, p.149)

Por sua vez, o presidente Frondizi, que estava em viagem aos Estados Unidos acusou a
greve de ser meramente “política”, ao que recebeu uma severa resposta por parte de Cooke:

[...] Esta huega es política, en el sentido de que obedece a móviles más amplios y 189
5
transcendentes que aun aumento de salarios o una fijación de jornada laboral. Aquí
se lucha por el futuro de la clase trabajadora y por el futuro de la nación. Los obreros
argentinos no desean ver a su patria sumida en la indignidad colonial, juguete de los
designios de los imperialismos en lucha. […]. Si los medios de lucha que ha usado no
son del agrado de los personajes que detengan posiciones oficiales, les recordamos
que los ciudadanos no tienen la posibilidad de expresarse democráticamente y deben
alternar entre persecuciones policiales y elecciones fraudulentas. […]. No sé si este
movimiento nacional de protesta es “subversivo”, eso es una cuestión de
terminología, y en los países coloniales son las oligarquías la que manejan el
diccionario. […]. (Idem, p.160-161)

A repressão, tendo por base o Plan Conintes, foi intensificada com o uso do exército.
Ao todo foram utilizados mais de 1500 efetivos policiais e militares e 4 tanques de guerra para
impor o fim da tomada do frigorifico e ao levante de Mataderos (KOENIG, 2013, p.174). Em
resposta as 62 Organizações decretaram uma greve geral por tempo indeterminado que durou
de 17 a 21 de janeiro de 1959. A greve geral foi um fracasso. Liderada pelo vandorismo,
corrente neoperonista dirigida por Augusto Vandor, a CGT não conseguiu captar o momento
certo da solidariedade e de se somar a luta dos trabalhadores do frigorifico e a resposta do
governo foi à intervenção nos principais sindicatos que formavam as 62 Organizações, o que
levou as tendências sindicais e politicas que propunham a conciliação com o governo a se
tornarem hegemônicas até mesmo no movimento peronista em geral. A nova hegemonia se
demonstrou na repreensão do Comando Superior Peronista a Cooke por este ter apoiado
fortemente a tomada do Frigorifico Lizandro de La Torre e que teve como consequência a sua
destituição do posto de delegado pessoal de Perón em março de 1959 (KOENIG, 2013, p.175).

Em oposição à repressão ao peronismo revolucionário e cooptação dos dirigentes


neoperonistas por parte de Frondizi, em julho de 1959, Perón em Carta aos peronistas
denunciava a política de suborno do governo com a intenção de “‘cazar incaultos peronistas’,
utilizando a algunos dirigentes que se prestan a esta desleal ignominiosa maniobra”. No mesmo
documento o general afirmava seu desejo de desmascarar “a los farsantes, a fin de que ningún
peronista de buena fé se deje sorprender por estos ‘jugadores fulleros’ de la política”
(BASCHETTI, 2012, p.165).

Em uma demonstração de força, Perón divulga, em 11 de junho de 1959, o texto do


pacto Perón-Frondizi, tendo como objetivo desestabilizar profundamente o governo. Tal fato
gerou uma grave crise político-militar, levando Frondizi a promover uma forte mudança em seu
189
gabinete na tentativa de calmar os ânimos dos gorilas. A principal mudança foi à nomeação do 6
engenheiro Álvaro Alsogaray, um reconhecido porta-voz das correntes liberais e antiperonistas,
como ministro da Economia e do Trabalho. Alsogaray ampliou o Plano de Estabilização através
de um profundo programa ortodoxo.

No final de 1959, acontece em Tucumán, a primeira aparição pública de uma guerrilha


rural peronista, o Movimiento Peronista de Libertación Nacional – Ejército de Liberación
Nacional (MPL-ELN) também conhecido como Uturuncos, termo que em quechua significa
homens-tigres. Em um momento em que a repressão e a intervenção nos sindicatos procuravam
destruir as bases do peronismo revolucionário, tendo como reivindicações a libertação nacional,
o retorno incondicional do general Perón e a reforma agrária, onze guerrilheiros Uturuncos
fizeram sua primeira e única ação: a tomada do comissariado do povo de Frías, em 24 de
dezembro de 1959. A nova resposta do governo Frondizi foi o aprofundamento do Plano
Conintes com aumento da repressão, não somente, por conta da guerrilha dos Uturuncos, mas
também por conta de um conjunto de atos violentos promovidos desde a resistência, entre eles
um atentado contra a Shell, um dos símbolos do propagado sucesso da política petrolífera
desarrollista. A repressão, mais uma vez, fortaleceu os neoperonistas dentro do movimento.

Perón em mais um ato de afirmação de sua liderança em relação aos neoperonistas dirige
mais uma de suas cartas aos peronistas com um teor mais forte em relação à traição de Frondizi
ao pacto eleitoral de 1958 e, fundamentalmente, conclamando novamente ao voto em branco
nas eleições legislativas que se realizariam em 27 de março de 1960:

[...] La traición de Frondizi al Justicianismo há sido también su traición al Pueblo.


Sin embargo, como un sacrificio más en favor de la paz, organizamos el Partido
Justicialista para someter nuestra lucha a las futuras contiendas electorales, pero las
oscuras fuerzas que desgobiernan al país, considero de que será arrasadas por el
justicialismo en cualquier confrontación con sus fuerzas en un acto electoral; nos
cierran el camino pacifico proscribiendo a la mayoría popular y declarando fuera de
la ley al justicianismo y al comunismo. Que camino le queda al Pueblo para imponer
la razón y la justicia que le asisten? Frente a semejante ignominia no queda otro
remedio que se repudiar todo acto electoral mediante la emisión del “voto en blanco”
y prepararla lucha integral oponiendo a la arbitrariedad la fuerza popular.
(BASCHETTI, 2012, p.170)

189
O resultado eleitoral demonstrava novamente a força da liderança de Perón acima dos
7
neoperonistas e de qualquer outra força política argentina. O voto em branco conseguiu um
total de 2.115.532 votos (25,2%), a segunda posição coube a UCRP com 2.091.703 votos
(24%), com a UCRI ficando na terceira posição com 1.792.497 votos (20,4%) (KOENIG, 2013,
p.184).

Entre outubro de 1960 e março de 1961, o governo passaria a vivenciar uma nova crise
devido a profundas divergências que o comandante em chefe das forças armadas Toranzo
Montero tinha em relação à postura de mediação adota pela política externa frondicista no que
tange a Revolução Cubana e a proposta norte-americana de desestabilização do regime castrista.
Toranzo Montero iniciou uma intensa movimentação nos setores militares na tentativa de dar
um fim ao governo Frondizi que, uma vez frustradas, levaram a sua queda e ao seu retiro para
a condição de reservistas, gerando uma sensação de alívio para o presidente Frondizi em relação
a tutela militar. A partir desta sensação, ocorreram significativas mudanças no gabinete
presidencial, a mais importante foi à saída de Álvaro Alsogaray, em abril de 1961. Estas
mudanças permitiram que Frondizi passasse a atuar mais significativamente na política externa,
o era uma dos pontos de grande controvérsia com a extrema-direita militar. As mudanças no
gabinete frondicista levaram também a mudança de postura do movimento sindical, que após
um período de recuo tático diante da forte repressão passava novamente a ofensiva.

Entre maio de dezembro de 1961 explodiram os conflitos ferroviários em oposição ao


Plan de Racionalización proposto pelo governo. Diante do déficit do setor ferroviário, o
governo desarrollista anunciou uma série de medidas que ia da flexibilização do regime de
trabalho, a terceirização de funções de oficina e copa, a venda de terras e instalações e a
diminuição de postos de trabalho. Este plano gerou a resistência da Unión Ferroviaria y
Fraternidad, uma das maiores organizações sindicais argentinas, levando a paralização das
atividades em 15 de maio. Em junho, os ferroviários receberam o apoio das 62 Organizações
Peronistas e do MUCS. Ao longo do período entre junho e novembro houveram inúmeras
paralizações improvisadas e greves gerais na tentativa de levar o governo a um recuo. Em 2 de
novembro, estes dois agrupamentos sindicais iniciaram uma greve geral por tempo
indeterminado. Em resposta o governo decretou, nos marcos do Plan Conintes, a ilegalidade do
movimento ferroviário. Em 1º de dezembro, diante do não avanço nas negociações e do não
recuo dos grevistas, a pedido de Frondizi, iniciou-se a mediação do conflito por parte do Cardeal 189
Caggiano, resultando, em 10 de dezembro, em um acordo entre o governo, os patrões, o
8
sindicato ferroviário e a CGT, com conjunto de concessões em relação à “racionalização”
propostas pelo governo (LAMAS, 1984, p.155-156).

O ano de 1961 também foi marcado pelo dilema frondicista em relação à proscrição do
peronismo e a participação dos peronistas nas eleições provinciais. Após uma série manobras
de Perón buscando a reaproximação de alguns aliados que haviam saído do movimento, como
a ampla anistia concedida a todos que haviam participado de negociações com Aramburu ou
Frondizi na tentativa de constituição do neoperonismo através da fórmula “Peronismo, sem
Perón”, o que resultou na reconstituição da Frente Justicialista com o objetivo de participação
nas eleições de fins de 1961 e de março de 1962. (KOENIG, 2013, p.200) Tal objetivo foi
expresso pelo secretário de imprensa do Conselho Coordenador e Supervisor do Peronismo,
Jorge Di Pascuale, em setembro de 1961, quando afirmou que “El Movimiento Justicialista ha
expresado repetidamente sus deseos de concurrir a elecciones con candidatos propios”. Tal
afirmação colocava o governo em cheque, uma vez que o peronismo:
Si se le permite expresarse en forma libre, a través de las urnas, y con sus candidatos,
lo hará así. Si se le obliga a optar nuevamente, no quepa ninguna duda que castigará
con todas sus fuerzas a los responsables del desastre y la entrega que hoy soportamos
votando en contra el oficialismo. Si se cierran todos los caminos romperá eses
estructuras por propia gravitación de lo que representa, y entonces, ya no se lo podrá
controlar y caerá con todo su peso, buscando su proprio cause, el cauce que hoy se
le niega. (BASCHETTI, 2012, p.197)

Diante deste cenário de sinalização por parte do peronismo de seu desejo de retorno a
legalidade do jogo democrático-eleitoral que lhe foi proibida com a proscrição a partir de 1955
e convencido de que com as mudanças ocorridas em abril de 1961 havia adquirido maior
margem de manobra em relação à tutela militar, Frondizi passou a atuar na problemática central
colocada ao longo de todo o seu governo: qual a real dimensão política da UCRI diante da
polarização peronismo – antiperonismo? As eleições provinciais foram entendidas como um
grande e arriscado momento para a busca de uma resposta. Uma vitória do governo deixaria
Frondizi com mais fôlego para seguir em frente. Uma vitória do peronismo colocaria o governo
em uma dupla situação: ou anulava os resultados ou deixaria os peronistas gradativamente se 189
inserir na real politique do ato de governar em uma estrutura onde a centralidade dos recursos
abrigava os governos provinciais a negociarem com o governo nacional. Tudo dependeria da
9
reação dos setores gorilas das forças armadas. Por sua vez, uma improvável vitória da UCRP
geraria a sensação de que os conservadores poderiam chegar ao poder através do voto nas
futuras eleições presidenciais.

A partir deste raciocínio, as eleições de 17 dezembro de 1961 e de janeiro de fevereiro


de 1962 serviram de laboratório para o governo. As vitórias frondicistas nas províncias de Santa
Fé, San Luis, Catamarca, Formosa e La Rioja deram a impressão de que o primeiro cenário
proposto se desenhava como realidade futura. Este fato reforçou a ideia de permitir que os
peronistas participassem em 18 de março de 1962, porém a possibilidade de vitória peronista
na província de Buenos Aires representava uma grande ameaça para o gorilismo e um fator de
intensa preocupação para o governo (LAMAS, 1984).

Em um ensaio para testar as reais intensões do governo e ver até aonde ia à autonomia
presidencial de Frondizi diante dos militares, Perón colocou seu nome como a candidato a
deputado nacional e a vice-governador da Província de Buenos Aires, levando a uma forte
reação por parte da extrema-direita militar e ao veto do governo a sua participação no processo
eleitoral. Na ata secreta da reunião realizada em 29 de janeiro de 1962, entre o ministro do
Interior, Alfredo Vitolo, e os representantes das forças armadas ficou definido que o governo
esteva disposto a impedir de qualquer forma o retorno “al sistema derrocado el 15 de setiembre
de 1955”, deixando claro que aqueles que “fueron partidarios del ex-dictador, puedan
organizarse en la legalidad, sumándose a la convivencia nacional, con objetivos pacíficos y
democráticos”. Assim, o que estava proibido era “Perón y su régimen” (BASCHETTI, 2012,
p.207-208). Era uma última tentativa do governo Frondizi em convencer a extrema-direita
militar que de que era possível “um peronismo, sem Perón”.

Os resultados eleitorais demonstraram uma vitória não tão acachapante como se


imaginava do peronismo. Os peronistas e os neoperonistas somaram 2.530.238 votos contra
2.422.516 votos da UCRI e 1.802.483 votos da UCRP. Os peronistas saíram vitorioso em
Buenos Aires, Neuquén, Santiago Del Estero, Misiones, Chaco, Rio Negro, Salta, Tucumán,
Jujuy e Chubut. A UCRI venceu em Entre Rios, Corrientes, Capital Federal, La Pampa, Santa
Cruz e Tierra del Fuego. A UCRP venceu em Córdoba com Arturo Illia. A União Cívica Radical 190
Bloquista venceu em San Juan e o Partido Democráta venceu em Mendonza.
0
Apesar da paridade e do equilíbrio de forças, a vitória peronista na Província de Buenos
Aires, como era de se esperar, foi o fator definidor da posição dos militares em relação à
deposição do governo. Nem mesmo a anulação dos resultados e a intervenção do governo
nacional nas províncias onde o peronismo foi vitorioso e a ruptura de relação com Cuba como
forma de agrado aos sentimentos anticomunistas predominantes nas forças armadas foi capaz
de segurar o golpe que depôs Frondizi em 29 de março de 1962.

Para o peronismo o processo que culminou com a anulação dos resultados eleitorais e a
deposição de Frondizi, significou um grande passo rumo à perda de esperanças no fim das
proscrições e no retorno a uma legalidade plena para o movimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BABINI, Nicolás. Arturo Frondizi y la Argentina Moderna: La forja de una ilusión. Buenos
Aires: Gedisa, 2006.

BASCHETTI, Roberto B. Documentos de la Resistência Peronista 1955-1970. Volume 1. La


Plata: De la Campana, 2012.

COOKE, John William. Correspondencia Perón-Cooke. Buenos Aires: COLIHUE, 2007.

FERRER, Aldo. A economía argentina: de suas origens ao início do século XXI. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2006.

KESSELMAN, Ricardo. Las estrategias de desarrollo como ideologias. Buenos Aires: Siglo
XXI, 1973.

KOENIG, Marcelo. Vencedores Vencidos: Peronismo – Antiperonismo. Buenos Aires-Arg.:


Punto de Encuentro, 2013.

LAMAS, Daniel Rodríguez. La presidencia de Frondizi. Buenos Aires: Centro Editor de


América Latina, 1984.
190
LUNA, Félix. Argentina: de Perón a Lanusse (1943-1973). Rio de Janeiro: Civilização
1
Brasileira, 1974.

NOSIGLIA, Julio E. Desarrollismo. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1983.

POTASH, Robert A. El ejército y la política en la Argentina 1945-1962: De Perón a Frondizi.


9ª edición. Buenos Aires: Sudamerica, 1984.

ROMERO, Luis Alberto. História Contemporânea da Argentina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2006.

UZAL, Francisco H. Frondizi y Balbin: Historia de un enfrentamiento. Buenos Aires: Theoria,


1989.
UMA POLÍCIA, VÁRIAS IDEOLOGIAS: AS RELAÇÕES POLÍTICAS DA
BRIGADA MILITAR DO RIO GRANDE DO SUL (1960-1970)*999

Lucas Cabral Ribeiro **1000

RESUMO

O artigo tem como objetivo analisar as relações políticas internas da Brigada Militar do Rio
Grande do Sul. Para isso, parte-se do entendimento de que as ações das Polícias estão ligadas a
ações políticas, pois constituem-se em instituições de sustentação do poder do Estado, fato esse
que se torna mais aparente quando percebe-se momentos de crise política no Estado. O corte
temporal do artigo se justifica por que no período apresentado percebe-se intensa articulação
de diferentes pensamentos políticos na Brigada Militar, dada as conturbadas relações políticas

190
nacionais e mundiais. Dessa forma, o artigo centra a sua análise em grupos que agiram na
polícia militar do Rio Grande do Sul, aprofundando a compreensão sobre os Onze da Brigada
Militar, movimento ligado politicamente a Leonel Brizola e a sigla do PTB, considerado um 2
pensamento de esquerda na sua época. Busca-se também compreender como se davam as
relações dos grupos de direita, analisando, ainda que de forma superficial, os oficiais que nesse
período buscaram formação com o exército norte-americano e como se deu essa influência na
instituição.

Palavras-chave: Brigada Militar; política; golpe civil-militar.

INTRODUÇÃO

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Mestre em História. Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: ribeirocabrallucas@gmail.com.
Neste artigo, objetiva-se analisar as relações existentes entre as forças policiais, a
política e os governos, procurando compreender a forma como cada um se relaciona, ou seja,
entender em que momento a política influencia nas ações policiais e como as polícias se
relacionam com o seu órgão superior – os governos estatais. Nesse sentido, inicia-se apontando
alguns conceitos norteadores, e com uma discussão acerca da política.

O conceito de política tem uma longa trajetória histórica, sendo que para essa pesquisa
em específico interessa a sua observação mais detida a partir do período moderno. Segundo
Bobbio política é comumente usada para indicar atividades ou atividades que de alguma forma
tem como ponto de referência o Estado (BOOBIO, 2002, p. 954).

Esse conjunto de atividades ajuda a compor um conceito de política que pode ser
entendido como em atos como ordenar ou proibir algo em determinados grupos sociais, o
exercício exclusivo sobre um território e comandar o mesmo através de normas válidas e
também é função da política ações de conquista, manutenção, defesa, ampliação,
robustecimento, derrubada e destruição do poder estatal. (BOOBIO, 2002, p. 954)

O poder político pode ser definido como uma categoria de poder de um homem sobre o 190
outro homem, de um cargo/posição/status sobre os indivíduos, de alguma entidade/instituição
sobre a população subordinada às suas diretrizes, situação esta que pode ser representada de
3
várias formas: “relação entre governantes e governados, entre soberanos e súditos, entre Estado
e cidadãos, entre autoridade e obediências, etc.”. (BOBBIO, 2002, p.955). Sendo assim, é
necessário também contextualizar a relação direta da polícia com a política, buscando entender
como a força policial, com o passar dos anos, legitima-se como uma força de sustentação dos
regimes políticos. Dito de outro modo almeja-se com esta breve contextualização, compreender
como se dá a organização dessas polícias.

A polícia e a política estão mais ligadas do que muitas vezes se imagina. Se for analisada
a etimologia das palavras política e polícia, será observado que ambas têm raízes próximas.
Segundo Legarre, polícia e política provêm, no latim, da palavra politia, que descende da
palavra grega politeia e, em última estância, de polis. A palavra politia significa administração
civil ou governo. Para os romanos, a palavra está ligada à condição de estado, ou seja, à relação
de governo. No grego, temos uma derivação de politia que contribui para ganhar o significado
de polícia (LEGARRE, 2007, p.81).
1. Capítulo I - O poder político e as Polícias Militares

A polícia, tal como se conhece, tem sua origem assentada no Estado moderno. Nas
palavras de Spode, a polícia “tem como lastro a constituição do Estado-Nação, em fim do século
XVII, marcando a inserção deste no exercício da governabilidade política”. (SPODE, 2004,
p.21). Desde sua origem, essa polícia tem funções bem específicas dentro da constituição dos
governos. Percebe-se que dentro de sua formação histórica, a polícia vai mudando sua relação
com as políticas de governos, demonstrando claramente que a mudança de governança interfere
diretamente na lógica de ação e composição da polícia. Por isso, é importante nesse momento
analisar algumas das funções que são normalmente colocadas como o papel da polícia em
relação ao governo o qual ela representa.

A função de polícia pode ser definida seguindo as seguintes orientações: a de


contribuição e sustentação da governabilidade e proteção da população, e atividades que ligam
essas polícias diretamente à União e aos grupos que mantêm o controle do poder. Também 190
pode-se pensar a partir das considerações de Sergio Bova, que defende que a função de polícia
é vista como: “uma função do Estado que se concretiza numa instituição de administração
4
positiva e visa por em ação as limitações que a lei impõe à liberdade dos indivíduos e dos grupos
para salvaguarda e manutenção da ordem pública em suas várias manifestações”. (BOVA,
2002, p.944). A polícia também tem a função “de manter o controle social na sociedade
(policiamento)”. (BOTTOMORE, 1996, p.582). Sobre o policiamento, vale ressaltar que ele
pode ser formal ou informal, público ou privado, aberto ou secreto, pacífico ou violento, mas
tradicionalmente esse policiamento ocorre no controle da criminalidade ou na busca de prender
o transgressor da lei.

Nessas considerações referentes às polícias militares, é importante ressaltar a influência


de alguns modelos no desenvolvimento dessa força. Têm-se como exemplo de polícia moderna
pelo menos duas propostas: a francesa e a inglesa – ambas com uma contribuição na
formação/organização das polícias brasileiras e de muitos países pelo mundo.
O modelo francês se constitui no século XVI com o objetivo primeiro de proteger as
cidades de crimes e epidemias, ou seja, cuidar do cotidiano da cidade. Após um tempo e com a
modernização do Estado francês, há uma divisão dessa polícia em dois grupos, conhecidos
como polícia administrativa e polícia judiciária. A primeira tem como função prevenir crimes
e a segunda tem o objetivo de investigá-los. Esse modelo de polícia se torna muito popular,
sendo percebida forte influência deste sobre as polícias do Brasil republicano, que teve como
um de seus marcos as relações das Forças Públicas de São Paulo com a contratação de uma
missão francesa no ano de 1906. Na formatação do denominado modelo inglês, percebe-se
algumas diferenças, sobretudo pela perspectiva de redução do uso da força física e consequente
cooperação voluntária da população, e, assim, a diminuição da desordem social. Tais elementos
são agregados às características do modelo francês, conforme o processo de modernização das
polícias, que vai se dando com maior vigor a partir do século XVI e que foi sendo adotado
paulatinamente, como destaca Rosemberg:

190
[...] o novo sistema londrino-parisiense de policiamento urbano, talvez impulsionado
pela prevalência cultural francesa sobre a porção do planeta que se pretendia
civilizada, passaram a causar furor entre os departamentos de polícia de vários
países. Nos Archives de la Préfecture de Police de Paris descansa toda uma série de
correspondências trocadas entre as autoridades parisienses e as de países como
5
Áustria, Turquia, Japão, Inglaterra, Rússia, Alemanha, Estados Unidos, Bélgica,
Dinamarca, Grécia, Portugal. Por evidente, não poderiam faltar ofícios permutados
pelas polícias da Argentina, do Uruguai e do Brasil. Todas elas solicitavam
informações sobre a organização, regulamentos, normas, além de dados estatísticos
sobre o policiamento parisiense. (ROSEMBERG, 2010, p.43)

Assim, pode-se afirmar que as influências dos modelos europeus na formação e na


organização das polícias no Brasil estiveram muito presentes no final do século XIX e começo
do século XX, período em que a troca de informação entre o governo brasileiro e governo
francês sobre a organização das forças era constante. Nesse sentido, afirma Rosemberg:

[...] as forças de policiamento urbano no Brasil, criadas a partir da segunda metade


do século XIX, foram tributarias das congêneres européias. A criação da Guarda
Urbana no Rio de Janeiro, em 1866, no bojo do conflito no Paraguai foi diretamente
inspirada na polícia londrina, conforme justificava o ministro da Justiça para quem a
nova força era “uma imitação da polícia da cidade de Londres, também adotada em
Paris[...]”. A Companhia de Urbanos de São Paulo, por sua vez, surgida em 1875, [...],
nasceu com o propósito de ser uma força polida e elitizada. (ROSEMBERG, 2010, p.44)

Conscientes de que a polícia é quem detém o direito sobre o uso da força física para a
coerção, muitas vezes essa força é usada para manter o sistema vigente. Cabe entender um
pouco como funciona essa relação da política e dos governos com a polícia, após ter sido
contextualizado e mostrado alguns conceitos formativos das polícias.

Fazendo uma análise do Brasil no final da década de 1950 e no início de 1960, percebe-
se que é um período de crise política. Nessa perspectiva, objetiva-se focar a atenção, neste
momento, para os períodos históricos que têm por consequência ressaltar o envolvimento
político das polícias com as ações do governo a qual ele representa.

No período em que o Brasil passa principalmente pelas grandes crises políticas do


retorno de João Goulart ao poder, seguido da consolidação do Golpe Militar, percebe-se uma
intensa atuação das policias militares, que deixavam claras suas motivações político-
ideológicas dessas forças policias. A própria mobilização da Brigada Militar no estado do Rio 190
Grande do Sul na campanha da Legalidade (1961) mostra todo o cunho ideológico e político
6
em suas ações, não perdendo de vista o fato de que esta polícia estava a serviço da manutenção
da ordem do governo do Rio Grande do Sul. A BM, nesse momento, mantém seu perfil legalista,
ou seja, de estar a serviço da ordem legal do governo o qual ela representa.

Nesse sentido, não se pode deixar de citar Huggins, que ressalta que se “pressupõe que
toda ação policial é política”, mesmo que por muitas vezes essa relação não seja tão aparente.
Segundo a autora, “variando em um continuum desde a polícia visivelmente a serviço do poder
organizado... até a dissimulação de seu relacionamento com o poder por ideologias de
democracia e controle social” (HUGGINS, 1998, p. 10.).

É importante analisar, sobre essa relação entre polícia e política, algumas informações
apresentadas no importante trabalho de Thaís Battibugli, sobre as relações da polícia com a
política, do qual se pode inferir que a polícia é “uma instituição especializada no controle social
interno para, se preciso, dentro dos limites legais, utilizar-se de violência ao visar à preservação
emergencial da ordem. Sua função é resolver, de modo rápido, situações desagradáveis e,
muitas vezes, inesperadas” (BATTIBUGLI, 2006, p.7). Essas condições tornam a polícia parte
importante da estrutura burocrática estatal e que principalmente em condições de intensa crise
política, como golpes de estado, tende a exercer um importante papel: o de garantir muitas vezes
a contenção de massas contrárias ao que se estabelece.

Sendo assim, pode-se perceber que, apesar de ser praticamente uma unanimidade que
as ações policiais são movidas por atos políticos, a própria força policial faz uso de instrumentos
para desviar esse conceito, muitas vezes tentando ressaltar certa neutralidade perante as
políticas da União e dos governos estaduais a que esta força representa, “que afirmam
transformar a polícia em mera extensão de um Estado neutro quanto a classes, e ‘do povo’”.
(HUGGINS, 1998, p. 10.). Apesar da tentativa de afirmação da neutralidade policial, esse
conceito pouco se afirma, pois é impossível desvincular a polícia das políticas de estado ou até
mesmo das participações partidárias de seus membros. Sobre a neutralidade, ressalta Robert
Reiner que “O que os chefes de polícia estão mais preocupados em alegar é que a polícia não
está envolvida com a política partidária, mas que aplica a lei de forma imparcial. Esta alegação
mais restrita somente se sustenta com um sentido limitado, se é que se sustenta” (REINER,
2004, p. 24.). 190
Portanto, pode-se dizer que todas as forças de policiamento acabam sendo motivadas ou 7
movidas pela política, mas é em momentos de crise e conflitos, quando as discussões e
conturbações sociais são mais intensas, que tais relações acabam aparecendo mais. Não se pode
negar o envolvimento político nas ações das policias militares pelo fato de que esses órgãos são
instrumentos de legitimação dos governos, sejam estaduais ou federais, e também por que são
mantidos pelo Estado. Segundo Huggins, “policiamento é político, uma vez que implica a
existência de um órgão oficial sustentando pelo poder do Estado, que utiliza a força, ou a
ameaça de força, para controlar os indivíduos, grupos e classes considerados hostis à ordem
social, econômica e política do Estado” (HUGGINS, 1998, p. 10.).

Retornando ao exemplo da campanha pela Legalidade promovida pelo governador


Leonel Brizola, em que a atuação da Brigada Militar é intensa, pode-se perceber que essa
instituição atua segundo as diretrizes e ordenamentos do governador do Rio Grande do Sul, em
uma ordem política para dar a sustentação aos que queriam João Goulart (1961-1964) no poder.
Em um contexto um pouco diferente, mas que também demonstra a atuação policial vinculada
a ações políticas tem-se as polícias militares no Brasil como órgãos de sustentação ao golpe
civil-militar de 1964, dando o apoio às tropas de militares que organizaram a derrubada do
então presidente. Nesse sentido, há dois momentos políticos diferentes que demonstram a
intensa participação das polícias militares, mesmo que o objetivo final dos movimentos fosse
diferente. Dessa forma, pode-se afirmar que as ações da polícia são movidas por política, e vale
dizer que “a política, no sentido mais exato, tem feito parte da polícia, como a polícia tem feito
parte da política”. (HUGGINS, 1998, p. 10.).

Buscando a compreensão da ação policial, pode-se fazer uso de um conceito que a autora
Martha Huggins apresenta, o da “bipolarização”, que ajuda a entender a ligação das polícias
com a política, dividida em dois polos de ação: o primeiro composto pelas “formas de ação
policial mais visivelmente políticas como ‘alto’ policiamento, onde a polícia é empregada
explicitamente para controlar qualquer oposição ao governo” (HUGGINS, 1998, p. 12.) . No
segundo polo, o “baixo”, “a posição da polícia moderna no interior de uma burocracia
aparentemente legal-racional contribui para gerar a impressão geral de existência de um ‘poder
de ninguém’” (HUGGINS, 1998, p. 12.). Esse conceito de poder de ninguém leva a polícia a
impor seu direito de manutenção da ordem, levando a compreender que a ação policial 190
simplesmente “faz cumprir as regras impessoais da sociedade organizada”. (HUGGINS, 1998,
8
p. 12.)

Nessa relação política-polícia, é valido compreender algumas questões relacionadas à


governabilidade, ou seja, o que constitui um governo, instituição em que as polícias, por muitas
vezes, são responsáveis por parte de sua sustentação. Segundo Tavares, a governabilidade é
“uma série de tecnologias de poder que determinam a conduta dos indivíduos, ou de um
conjunto de indivíduos... ou seja, a combinação das ‘técnicas’ de dominação exercidas sobre os
outros e as técnicas de si” (TAVARES-DOS-SANTOS, 1997, p.156). É com esse conceito que
surge o papel da polícia como elemento de sustentação da governabilidade, isto é, a polícia se
torna uma das tecnologias de manutenção da ordem e do poder dos governos.
Assim, entende-se que a governabilidade é o resultado de uma articulação entre a razão
de Estado e a Polícia.1001 Entende-se também essa razão como a existência plena do mesmo, ou
seja, a estruturação da União, a definição de métodos e princípios do governo, contribuindo na
formação dos Estados modernos, onde a articulação entre essa razão de Estado e a atuação da
polícia se tornam relevantes para a organização da sociedade, tecnologias que vêm a contribuir
para a constituição da governabilidade, unindo elementos antes desconectados. Sobre essas
relações, Tavares leciona que “o Estado constituiu-se pelo realizar pleno de um processo de
concentração de uma série de diferentes tipos de capitais, até então dispersos pelo espaço social:
o capital da força física ou dos instrumentos de coerção (o exército e a polícia); o capital
econômico; o capital cultural; e o capital simbólico” (TAVARES-DOS-SANTOS, 1997,
p.157).

Ao conceber o poder do Estado, surge a polícia como um órgão para dar a sustentação
à ordem local, seja nos governos estaduais ou federais, para aplicar regras do estado,
interferindo assim na vida do cidadão. Como ressalta Tavares, “a polícia tem sua positividade
no favorecer tanto o vigor do Estado, quanto a vida dos cidadãos” (TAVARES-DOS-SANTOS,
1997, p.158). Assim, pode-se afirmar que a polícia surge como um elemento legitimador dos 190
governos a qual ela representa, mostrando a ligação política das polícias desde seu surgimento.
9
Os exemplos vão além dos que ocorrem tanto em 1961, com a campanha pela Legalidade, como
no golpe civil-militar de 1964, aparecem por quase toda a história brasileira, onde todas as
polícias, principalmente a partir do período imperial, tiveram uma relação política com o
governo, servindo a este como instrumento de sustentação. Com isso, pode-se dizer que a
polícia engloba tanto uma prática de saber, como uma prática de poder, exercendo seu papel de
controle e manutenção da ordem, dando a sustentação necessária para a expansão do Estado e
seu modelo político.

A análise sobre essa relação polícia-política e a própria inserção da instituição na


governabilidade atinge ainda outro tipo de interpretação, pela qual se pode destacar que ao
entender a polícia como um agente do Estado, como certa limitação de suas ações e diretrizes,
tem certa autonomia no seu trabalho de policiamento, e que, segundo Battibugli, “A polícia é,

1001
Referente a essa articulação entre a razão do Estado e a Polícia, para compreender algumas questões de
governabilidade, ver texto de José Vicente dos Santos Tavares, A Arma e a Flor: a formação da organização
policial, consenso e violência, 1997, p.156-157.
portanto, uma instituição chave para se avaliar a efetividade dos valores democráticos de um
país, de seu governo e sociedade”. (BATTIBUGLI, 2006, p.10)

Como decorrência do Golpe Militar de 1964, percebe-se que este marca uma nova etapa
nas ações policiais. Nesse período e no governo ditatorial instaurado após a consolidação do
golpe, observa-se o início da instauração de um Estado de segurança nacional, em que até
mesmo a forma de relação polícia-Estado muda, ou seja, a própria polícia torna-se mais
agressiva e voltada a um maior uso da força física para a legitimação do regime político. Nesse
período, os policiais militares eram quase como “guardas do regime”, pois tinham uma grande
ligação com o poder estabelecido pós-1964. Como lembra Spode, “tal tarefa (fiscalização,
prisões, policiamento) foi realizada em grande medida pelos policiais, dentre eles, os militares,
uma vez que é também nesse período que a polícia militar passa a estar subordinada
hierarquicamente e operacionalmente ao Exército”. (SPODE, 2004, p.24). Sendo assim, vê-se
claramente o papel de polícia política, exercido pelas polícias militares nesse período de
décadas de regime de exceção. Sobre essa função, Spode lembra que “atuavam como polícia
política, muitas vezes cometendo crimes em nome da manutenção da ordem, dentro da
perspectiva disciplinar vinculada ao governo autoritário”. (SPODE, 2004, p.21). Um exemplo 191
disso se evidencia logo após o Golpe Militar de 1964, quando a polícia é um elemento
0
importante da legitimação dos projetos do governo militar, com a sua atuação na “operação
limpeza”, movimento que demonstra mais uma vez a intensa atuação da polícia nas questões
políticas.

Essa política de limpeza busca eliminar os subversivos, ou seja, qualquer pessoa que
fosse tida como uma ameaça ao regime que estava sendo implantado seria sumariamente
coagida. Segundo Huggins, “A operação limpeza, como uma torrente irresistível, varria todo o
Brasil: quase dez mil funcionários públicos foram demitidos de seus cargos, 122 oficiais das
Forças Armadas foram obrigados a reformar-se, e 378 líderes políticos e intelectuais foram
despojados de seus direitos civis” (HUGGINS, 1998, p.141). A operação é um dos casos de
ações que a polícia desenvolve juntamente com as Forças Armadas para consolidar e legitimar
o regime que ali estava mostrando mais uma vez a vinculação das ações policiais com o regime
político do Estado. Em síntese, a polícia tem que ser entendida como uma instituição política e
que serve às necessidades políticas de um determinado grupo que se encontra no poder. Não se
deve compreender as ações policiais sem entendê-las como ações políticas – não essencialmente
partidárias –, apesar de que esta instituição tenta informar para a comunidade que representa
um “espírito de neutralidade” e o profissionalismo, que ajudam a ofuscar suas ações
essencialmente politizadas.

Ao olhar para o endurecimento que ocorre no período que corresponde a Ditadura


militar no Brasil, podemos perceber que toda essa articulação e estruturação da polícia militar
e o seu envolvimento em ações de apoio, está diretamente ligado a sua formação anos antes, ou
seja, a formação teórica e ideológica de seus oficiais se faz presente nas polícias no momento
de uma das maiores crises política do Brasil. Seguindo essa lógica basta analisar para as forças
policiais do Estado do Rio Grande do Sul, a Brigada Militar, que notoriamente apresentava
grupos que tinham uma relação mais estreita com o golpe que se formava e outros mais ligados
aos ideais do PTB e de outras correntes de esquerda que se apresentavam mais contrários ao
golpe em curso.

191
CONCLUSÃO 1

Em todo o artigo argumentou-se a importância do entendimento das relações entre ações


polícias e a política, concebendo o entendimento de que os mesmos não se encontram separados
e sim em constante presença.

Quando se aprofunda a discussão em relação as influências ideológicas, presentes nos


termos acima citados pelo artigo, se percebe que são diversas as influências que permearam a
formação policial brasileira e que variavam em relação ao padrão ideológico.

O artigo apresentou-se como um estudo inicial sobre essas relações, buscando


conceituar alguns entendimentos sobre a relação política das polícias militares, entendendo que
é necessário um estudo de aprofundamento nos grupos que se fizeram presentes na formação
dessas instituições e que legitimaram ações políticas nos mais variados momentos da história
brasileira e com um agravamento no golpe civil-militar de 1964.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATTIBUGLI, Thais. Democracia e segurança pública em São Paulo. Tese de doutorado


Ciência Política. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ciência Política. 2006, São Paulo.

BOBBIO, Noberto. MATTEUCCI, Nicola. Diccionario de Política. Editora Siglo Veintiuno.


México 1981.

BOTTOMORE, Tom. OUTHWAITE, William. Polícia. Dicionário do pensamento social do


século XX. Editora: Jorge Zahar. Rio de Janeiro. 1996.

HUGGINS, Martha. K. Polícia e Política: relações Estado Unidos/ América Latina. São Paulo:
Cortez, 1998.
191
2
LEGARRE, Santiago. Polícia, Poder de Polícia y Reparto de Competencias en los Estados
Unidos. Cuaderno electrónico n. 3. 2007. disponível em: http://
www.portalfio.org/inicio/repositorio//CUADERNOS/CUADERNO-
3/Policia_Poder_de_Policia.pdf. Acesso em: 24 fev. 2013.

REINER, Robert. A política da polícia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2004.

ROSEMBERG, André. De chumbo e Festim: Uma História da Polícia Paulista no Final do


Império. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2010.

SPODE, Charlotte Beatriz. Ofício de oficial: Trabalho, subjetividade e saúde mental na polícia
militar. Dissertação do mestrado em psicologia social e institucional. Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em psicologia social e institucional. Maio de
2004. Porto Alegre.

TAVARES-DOS-SANTOS, José-Vicente. A arma e a flor: formação da organização policial,


consenso e violência. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, v. 9, n. 1. São Paulo, 1997.
CONTEXTO HISTÓRICO DA DITADURA CHILENA: DIÁLOGO COM A
HISTORIOGRAFIA*1002

Rafaella de Aguiar Coradini**

Diorge Alceno Konrad***

RESUMO

A Historiografia do passado recente chileno, desde as eleições presidenciais de Salvador


Allende, em 1970, até o fim da Ditadura Civil-Militar, em 1990, tem cada vez mais apresentado
uma produção substantiva, especialmente no que se refere à produção biográfica e testemunhal.
Parte dela tem sido cada vez mais conhecida e analisada pelos pesquisadores brasileiros. A
pretensão desta comunicação é apresentar as transformações sociais na primeira fase da
Ditadura, para que se entenda o porquê da produção biográfica e testemunhal surgir apenas na

191
virada século XX para o XXI. Desta forma, o diálogo entre os autores proporciona com que
ocorra um panorama de diferentes enfoques para o período analisado, sem fazer julgamento a
nenhuma teoria historiográfica do período, apenas estando presente uma amostragem de como 3
diferentes obras e seus pesquisadores contam parte desta História.

Palavras-chave: Chile; Ditadura Civil-Militar; História.

As décadas de 1960 e 1970, analisadas no contexto sul-americano, podem ser vistas


como conturbadas e polarizadas, ou seja, de um lado uma esquerda que caminhava para o
socialismo, com planos e reformas políticas voltadas para as camadas mais populares da
sociedade, e de outro lado, uma direita historicamente conservadora e acostumada a usufruir
dos privilégios que seus governantes lhe proporcionavam, como uma espécie de troca de

*
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.

**
Mestranda em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM). E-mail: rafa.coradini@hotmail.com.
***
Doutor em História. Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM). E-mail: gdkonrad@uol.com.br.
favores, pois esta direita, detentora do capital e dona de grandes impérios industriais, pagava
seus impostos em dia e, sendo assim, para ela nada era mais justo do que receber benefícios. E,
um pouco antes deste período, os norte-americanos, na corrida espacial, garantiam e se
mantinham no topo da escala mundial capitalista, e estando envolvidos na Guerra Fria, eles se
esqueceram de seus hermanitos e da Doutrina Monroe, onde um texto pretencioso produziu a
frase: “América para os americanos”, em que expulsamos os europeus dando espaço para os
Estados Unidos da América ajudarem os novos países a serem independentes. De fato, nosso
“irmão maior” impediu que Simón Bolivar, no século XIX concluísse seu plano de formar no
sul do continente um único Estado para combater possíveis intervenções estrangeiras, tendo
como consequência a formação de vários países: Peru, Bolívia, Chile, entre outras novas
repúblicas livres, pero no mucho. Já na década de 1960, quando se lembra de olhar um pouco
para a América do Sul, os Estados Unidos se deparam com um socialismo crescente e aquele
ideal enterrado no século XIX parece que ressurge nas mãos de um representante da Revolução
Cubana. Para agir rápido é preciso de apoio militar, ou seja, foram nas Forças Armadas que a
revolução socialista encontrou seu maior bloqueio, sendo crucial para a retomada do poder da
classe conservadora e a garantia de que o capitalismo estaria seguro nas mãos de generais. 191
Além do contexto da Guerra Fria, o continente africano, a partir do final da década de
4
1940, começa seu processo de descolonização, muito mais doloroso e com reflexos vistos até
os dias atuais. Também foi na década de 1960 que surge uma juventude frustrada, cansada de
assistir a medidas radicais de seus representantes, e por isso resolveu se arriscar, mudando de
postura, de vestimenta, de gostos musicais e reinventando a cara da sociedade, produzindo um
efeito conhecido como movimentos de contracultura, ou seja, manifestações culturais
totalmente diferentes do que já se havia visto até então, com a intenção de chamar a atenção
para problemas puramente políticos que, em nome da paz, poderiam ser resolvidos. Assim,
assistimos ao movimento por direitos civis nos Estados Unidos, manifestações contra a Guerra
do Vietnã, os estudantes de maio de 1968 na França foram às ruas, em 1956 na Polônia milhares
de pessoas pediram por mais liberdade em relação à União Soviética, houve o Levante Húngaro
no mesmo ano e, em 1968 foi a vez da Tchecoslováquia pedir liberdade, conhecida como a
Primavera de Praga, onde uma foto percorreu o mundo em que um rapaz se posiciona em frente
a um tanque de guerra soviético. Toda esta audácia fez com que a sociedade percebesse e
escutasse a juventude se posicionando, em diferentes lados da sociedade, esta geração beat não
se conformou como mera espectadora dos fatos, e seguindo o exemplo da Guerra Fria, ela
também se polarizou. Este abismo entre uma posição política/econômica ou outra foi crucial
para o desenrolar dos fatos nas ditaduras do Cone Sul.

No caso chileno, o fator centralizador foi a tão sonhada reforma agrária. Ela acontece
de fato, porém não acessível a todos, ou melhor dizendo, seria preciso conhecer muito bem as
leis para ter acesso a elas. Em função de muitos descontentamentos por parte dos camponeses,
surgem representantes em sua defesa. Estas figuras representativas estavam nas universidades,
eram professores, alunos, acadêmicos recém-formados que, com base intelectual, vão se
reconhecendo em causas políticas e discutindo cada vez mais as mudanças sociais que estavam
acontecendo e se posicionando diante delas. Perez explica que

Por entonces, en Chile governaba el presidente conservador Jorge Alessandri


Rodriguez, cuya administración accedió a algunas de las sugerencias de la Alianza
para el Progreso, como la promulgación de una ley de reforma agraria (1962). En su
gobierno el cuerpo legal no fue plenamente aplicado [...] Las expectativas superaron
ampliamente a los resultados de la reforma y el descontento entre los campesinos así
como en otros sectores importantes de la sociedade chilena se acrecentó. (PEREZ ,
2003, p. 7)
191
5
Para as eleições seguintes, diante desta realidade, a esperança de um partido de esquerda
assumir o governo no país foi vista com entusiasmo. Assim, em 1964, Salvador Allende surge
como candidato de um partido de coalisão entre comunistas e socialistas, a Frente de Acción
Popular - FRAP. A derrota de Allende para Eduardo Frei Montalva, da Democracia Cristiana –
DC, fez com que o Partido Socialista - PS e o Partido Comunista - PC repensassem suas
estratégias e, com o exemplo cubano, seguissem para a luta armada. Diversos representantes
dos dois partidos, assim como a Juventud Comunista – JC, se inseriram ao Movimiento de
Izquierda Revolucionaria - MIR e, em 1965 esta organização surgiu de forma clandestina, com
críticas profundas aos partidos de esquerda, pois a única justificativa da derrota nas ultimas
eleições era, para o MIR, pelo fato de serem eleitoreiras e pacifistas (Ibid., p. 9)1003, incapazes
de colocar em prática a revolução socialista por se deter a burocracias e protocolos. Desta forma

1003
Tradução minha e, mesmo que o autor do artigo não conclua seu raciocínio, fica clara a dependência da
esquerda em querer cumprir a lei, mesmo que isso lhe custasse as eleições presidenciais.
surge este organismo clandestino que, para arrecadar fundos e não prejudicar as camadas
populares, sustentava-se através de constantes assaltos a bancos. O seu representante era um
médico, Miguel Enríquez. Este exigia uma rigorosa clandestinidade de todos seus membros e
era ele quem decidia onde os militantes deveriam morar, trabalhar ou estudar (Ibid, p. 11).

A reforma agrária foi o grande pilar de mobilizações para definir os novos rumos que o
país iria seguir. Em 1967, Frei Montalva realiza a segunda reforma, embasada na ideia de que
a propriedade rural tem uma função social e por isso não deve estar nas mãos de poucos. Apenas
os camponeses teriam acesso a elas, os chamados afuerinos ficaram de fora. Este grupo tem
como característica principal a migração para a cidade, mas apenas os inquilinos, ou seja,
aqueles que permanecessem no campo seriam beneficiados. Foram reestruturados alguns
organismos para regulamentar a distribuição, como a Corporación de la Reforma Agraria -
CORA e o Instituto de Desarrollo Agropecuario - INDAP. Assim, ampliar o direito à
propriedade no campo passou a ser uma questão de constantes entraves políticos. A
sindicalização masculina foi praticamente unânime, já que as mulheres não tinham o direito de
usufruir desta nova lei, e por tal razão o camponês que não ingressasse ao sindicalismo teria
sua imagem associada ao feminino. A aristocracia rural se esforçava em retardar a reforma 191
agrária e a sindicalização rural, enquanto a DC falhava em resolver o problema do déficit
6
populacional no país e deter a migração do campo para as cidades, e seguindo o pensamento de
Winn, “pagaram o preço de elevar as expectativas que eles não cumpriram com o declínio do
apoio politico” (WINN, 2010, p. 55 e 56). Com a vitória de Salvador Allende representando a
Unidad Popular - UP, surgiu com ela a revolução chilena, que Winn descreve:

Nacionalizou as riquezas básicas do Chile; as minas, que eram responsáveis por três
quartos dos lucros das exportações do país e que Allende chamava de “os salários
do Chile”, e quase todos os bancos privados chilenos, os tesouros do pequeno número
de “clãs” financeiros que controlavam a economia capitalista do país. Com a ajuda
de uma revolução que partiu dos trabalhadores, dos camponeses e dos moradores
das favelas, cujas ações diretas haviam transformado a toma – ou ocupação – na
marca registrada da revolução chilena. [...] Realizou a mais rápida e extensa reforma
agrária da história sem uma revolução violenta. ( Ibid., p.18)

Com as tomas se criou um clima de incerteza em relação ao futuro do país. Em 1972,


com a aceleração da inflação e as classes sociais cada vez mais polarizadas, as greves se
tornaram frequentes e o desabastecimento de produtos básicos para as famílias, em
determinados períodos, se tornaram constantes. Em sua obra, Winn mostra com muito otimismo
a via pacífica ao socialismo, mesmo reconhecendo o caos social que se instaurava,
principalmente na capital do país, Santiago. 1004 Já sociólogo Moulian deixa claro que a falta de
um planejamento realista para o futuro foi o grande problema e a causadora da motivação da
derrota do governo de Allende, pois nada semelhante havia sido realizado por outro governo,
nem do país ou de outro. Este novo modelo era questionado inclusive por Cuba, que não via
outro caminho senão o da revolução com armas e os grupos de extrema esquerda também
duvidavam desta possibilidade pacífica. Moulian afirma:

Otro elemento interveniente en la configuración del saturante clima pasional, en la


genealogía de ese deseo-de-término/de-poner-término (de que Allende se fuera sin
importar los medios), lo constituye el rechazo visceral de la incertidumbre. Esta
incertidumbre reflejaba el miedo a la inestabilidad insegurizante que producen todos
los procesos de cambios acelerados. [...] La Unidad Popular se encargó de atizar
este temor, primero, denunciando la posibilidad cierta, inevitable, de esa guerra civil
y, luego, anunciando la absoluta seguridad del triunfo patriótico. (MOULIAN, 1997,
p. 169)
191
7
Os dois autores, Winn e Moulian, trabalham com a perspectiva de contrarrevolução
acerca do Golpe, em 11 de setembro de 1973. Moulian (Ibid., p. 170) foi enfático ao analisar a
oportunidade que a UP cria para que as Forças Armadas tomem o poder, pois tanto a revolução
socialista, como a contrarrevolução de caráter anticomunista e neoliberal foram opções criadas
por sujeitos que lutaram para manter a frente suas escolhas, ou seja, existia a consciência de
suas ações e as condições que elas iriam exigir; o que ocorre agora, décadas depois do ocorrido,
é a maneira pela qual se quer interpretar tal fato. Já Winn (WINN, 2010, p. 21) encara esta
posição pela maneira que a sociedade se posiciona. Para ele, todos tiveram que se posicionar e,
diante disso, a classe conservadora e detentora de capitais buscou ajuda nas Forças Armadas,
os militares foram atraídos para este clima de futuro incerto e também se posicionou. Através
desta análise, torna-se fácil compreender o porquê dos grupos de extrema esquerda se

1004
Winn, na p. 21, faz um breve relato, neste momento, das suas impressões sobre as manifestações populares a
favor e contra o governo da UP, quando morava em Santiago.
confrontarem com a UP, já que havia a percepção da radicalização de opiniões contra a via
pacífica para o socialismo.

Ao analisar o Golpe no Chile, torna-se imprescindível também perceber a participação


dos Estados Unidos da América neste processo. O jornalista Dinges, descreveu a presença
norte-americana no pós-Golpe, onde viu a Operação Condor como um sistema de inteligência
integrado entre países vizinhos pra combater o avanço do comunismo. Os atos terroristas que a
Operação Condor empreendeu causaram grande êxito graças ao consentimento dos EUA.
Segundo Dinges “[...] as agências de Inteligência dos Estados Unidos dispunham de excelentes
fontes no interior da Operação Condor e monitoravam de perto o desenvolvimento.” (DINGES,
2005, p. 24). Para o autor, os EUA temeram que algo semelhante ao Vietnã ocorresse na
América do Sul. Por isso, também, cedeu à passividade. Também o autor revelou a intervenção
opositora dos Estados Unidos a partir do assassinato de Orlando Letelier, ex-embaixador
chileno, na cidade de Washington, em setembro de 1976, onde começa uma tentativa de frear
a atuação de Augusto Pinochet contra aqueles que eram considerados “subversivos”1005
Também nesta obra são relatados outros casos de assassinatos fora das fronteiras chilenas que
foram ganhando destaque nos noticiários estrangeiros e chamando a atenção para a violação 191
dos direitos humanos e exigindo posicionamento da Organização das Nações Unidas – ONU e
8
de potências imperialistas para auxiliar no combate a violência. Um caso é o dos 119 corpos de
chilenos encontrados mortos na Argentina, em 1975 (Ibid., p. 345). A resposta do Chile para a
ONU foi a dissolução da Dirección Nacional de Informaciones - DINA e a criação de outro
organismo, a Central Nacional de Informaciones - CNI, como explica o Informe:

En la nueva Central Nacional de Informaciones se conservaron muchos hombres


clave de la disuelta Dirección Nacional de Informaciones, en puestos de importancia,
así como una fuerte influencia del grupo de ese nombre, supuestamente expulsado.
La DINA había sido muy disciplinada. Esta disciplina, parece, se resintió en la
Central Nacional de Informaciones, - influyendo asimismo, quizás, lo dicho
anteriormente, y la indisciplina habría permitido operaciones “autónomas”,
aparición de grupos satélites, etc., con su secuela de acciones incontrolables. 1006

1005
DINGES, nesta obra, mostra como a Operação Condor funcionou, além de acrescentar a participação e omissão
inicial dos Estados Unidos da América, no que se refere aos Golpes de Estado.
1006
Consulta ao Informe de la Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación. Tomo I, p. 45. Disponível em
http://www.ddhh.gov.cl/ddhh_rettig.html. Acesso em 28 de agosto de 2016.
Claro está que o fim da DINA, em 1977, não implicou grandes mudanças, ou seja, os
mesmos mecanismos de intervenção foram mantidos sob outro nome. Inclusive Huneeus
descreve a DINA como uma das grandes bases de poder de Pinochet, pois foi ela quem garantiu
a coerção de dissidentes e opositores. Foi este organismo, tendo como representante o coronel
Manuel Contreras, que “contribuyó a generar el clima de guerra que hizo necesario establecer
una dictadura y no una dictablanda” (HUNEEUS, 2000, p. 161). A semelhança da CNI com
seu antigo organismo é indiscutível, como cita o Informe

Tratábase de un organismo militar especializado, de carácter técnico y profesional,


cuyas misiones eran reunir y procesar todas las informaciones a nivel nacional que
el Supremo Gobierno requiriera para la formulación de políticas, planes y
programas, la adopción de medidas necesarias de resguardo de la seguridad
nacional, el normal desenvolvimiento de las actividades nacionales y la mantención
de la institucionalidad establecida. No obstante ser una entidad integrante de la
Defensa Nacional, la CNI se vinculó al Gobierno a través del Ministerio del Interior.
1007

191
Voltando ao debate da participação dos Estados Unidos da América no Golpe, outro 9
autor que defende esta posição é Winn. Em todos os avanços de Salvador Allende como
Presidente, também os norte-americanos estavam agindo, mas como uma espécie de vingança
pela não indenização do governo chileno para as companhias de cobre norte-americanas pelas
minas chilenas expropriadas. Esta decisão de Allende fez com que o país nortista assumisse
uma postura de total oposição ao governo da UP, mas em contrapartida o Chile ganhou vizinhos
admiradores, como foi o caso do petróleo na Venezuela. 1008

1007
Consulta ao Informe de la Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación. Tomo I, p. 60, para a criação da
CNI, Decreto Ley nº1. 878. Disponível em http://www.ddhh.gov.cl/ddhh_rettig.html. Acesso em 28 de agosto de
2016.
1008
Ver WINN, Peter. A revolução chilena. São Paulo: UNESP, 2010. No capitulo 6: A batalha pelo Chile, o autor
manifesta, a partir de 1971, a oposição clara dos Estados Unidos da América contra o governo de Allende.
Começando na p. 133, com o embargo invisível, negando ao país empréstimos e créditos bancários, já na p. 154
deste mesmo capítulo está descrita a greve nacional de outubro de 1972, organizada pelos proprietários de
caminhões, ganhando adesão de médicos, engenheiros, produtores, varejistas, entre outros setores da sociedade,
no que foi chamado de pliego de Chile, tramado pela Central Intelligence Agency - CIA e pela oposição para
derrubar o governo. Sobre o caso da Venezuela na década de 1970, o país nacionaliza sua indústria petrolífera e
fria organismos de controle sobre sua exploração.
Ao estudar o caso chileno sobre as primeiras ações de Augusto Pinochet, fica claro o
quanto a Ditadura Civil-Militar foi metódica, sendo identificadas fases e bases de poder por
historiadores que analisaram o período. O início da Ditadura foi de caráter repressor,
implantando o Terrorismo de Estado. O terror nesta primeira fase visou uma nova “educação”:
educar a população para que, através do medo, houvesse o respeito aos militares e,
principalmente, que seus decretos fossem cumpridos. Moulian explica este procedimento

La etapa terrorista es aquella fase de una dictadura revolucionaria en la que el


derecho, que define lo prohibido y lo permitido, y el saber que define el proyecto se
imponen privilegiando los castigos. El orden se afirma sobre el terror. Este tiene la
principal valencia en la combinación de recursos del poder. Para que ello ocurra, la
capacidad del Estado de actuar sobre los cuerpos no puede estar limitada ni por el
derecho ni por la moral, ella debe poseer flexibilidad, elasticidad absoluta. Pero,
para que esa total plasticidad sea alcanzable, no basta disponer de toda la capacidad
legal. (MOULIAN, 1997, p. 171)

Pode ser possível pensar na crueldade como consequência para o bom funcionamento
da Ditadura, sendo o terror uma necessidade para a concepção do poder total, um necessitando 192
do outro, enquanto que os castigos eram executados por um organismo burocrático estatal.
0
Segundo seus agentes e apoiadores, a Ditadura Chilena “derrotou o mal”, começando, visto
pela elite conservadora, com uma limpeza moral em toda sua coletividade, já que não há mais
divisão dos poderes, ou seja, ele se concentra nas mãos de apenas um sujeito ou um aparato:
Augusto Pinochet, as Forças Armadas e a elite conservadora1009. Tudo isso tornava claro o
poder absoluto, sem nenhum freio legal, porque possuía meios e tinha assegurada a impunidade.
Desta forma estava acima da lei. Para a ditadura havia três maneiras de educar a população,
segundo Moulian. Uma delas era a execução com exposição do corpo para a população. O poder
mostrava que não importava a fama e a classe social do indivíduo – como aconteceu com Víctor
Jara, cantor e compositor famoso, que foi torturado, morto e seus familiares puderam ver as
mutilações e atrocidades cometidas. Outra forma foi o do desaparecimento dos corpos – que
gerava incerteza na família em relação ao que realmente estava acontecendo, assim como temor
em relação ao Estado, silêncio e respeito em relação ao seu poder. E, por último, a tortura e a

1009
Por isso a utilização do termo Ditadura Civil-Militar, pois parcela da sociedade apoia o Golpe, de cunho
conservador e militarizado.
reinserção do torturado na vida social. O subversivo, depois de torturado psicologicamente e
fisicamente, era reinserido na sociedade, e sua dor era um exemplo para que outras pessoas não
repetissem práticas de oposição ao governo. A prisão foi outra ferramenta para a “recuperação
do indivíduo”, já que na cadeia ele iria repensar suas atitudes. Estas formas de terror não se
intimidavam diante de nada e seus executores não se ocultavam, mas deixavam público os seus
atos.1010

Algumas táticas para a intimidação da oposição foram atribuídas à prisão temporária no


Estádio Nacional, até novembro do mesmo ano do Golpe. As Forças Armadas não tinham ideia
de quantos presos políticos teriam em sua fase inicial, nem como classificar as ações destes
considerados subversivos, logo, utilizar um estádio de futebol na capital Santiago para poder
organizar suas estratégias de punição foi a forma encontrada pela Ditadura para começar os atos
de reorganização da sociedade a partir da instauração do medo. A justificativa das ações era a
de livrar o país do possível socialismo presente na política chilena até então. No dia seguinte
ao Golpe, a Constituição foi suspensa, o Congresso Nacional foi dissolvido, baniram todos os
partidos de esquerda e suspenderam os de centro e direita, foram proibidos quaisquer tipos de
eleições e reuniões com mais de três pessoas sem autorização da polícia, começaram as 192
constantes intervenções nas universidades, foi declarado estado de sítio e um rígido toque de
1
recolher, tudo isso para combater qualquer um que quisesse subverter a ordem no país. 1011

Outro mecanismo foi a Caravana de la Muerte, uma missão rápida no interior do país
para resolver os casos de possíveis subversivos presos pela Ditadura ou que estavam se
manifestando contrariamente ao regime de Pinochet. A Caravana aconteceu nos três primeiros
meses posteriores aos 11 de setembro e o Informe de la Comisión Nacional de Verdad y
Reconciliación não soube informar ao certo quantas pessoas foram executadas nesta missão.

1010
Ibid., p. 180 a 192. Para Moulian, esta primeira fase, chamada pelo teórico de fase do terror, foi fundamental
para inibir a sociedade chilena e evitar manifestações contrárias à Ditadura.
1011
Dados retirados do Consulta ao Informe de la Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación. Tomo I, a partir
da p. 35, onde foram informados os decretos iniciais do pós Golpe. Disponível em
http://www.ddhh.gov.cl/ddhh_rettig.html. Acesso em 04 de setembro de 2016. Também estas informações ajudam
a compreender melhor o termo “subversivo”, utilizado com frequência no texto e sempre entre aspas, para
evidenciar a perspectiva de um grupo específico da sociedade que não reconhecia outro tipo de comportamento
senão a aceitação e o entendimento de que todas as medidas tomadas por parte de Pinochet foram necessárias.
Para finalizar este início de sucessos por parte das Forças Armadas para garantir a
manutenção de Pinochet, se faz necessário descrever as bases de poder em que o regime se
fundamentou, presentes na obra de Carlos Huneeus. A principal base de poder se centrou na
autoridade, obviamente a do Exército. Isso porque no Chile, a figura do comandante-chefe do
Exército sempre demonstrou, historicamente, muito prestígio e grande autoridade no país. A
segunda base de poder surgiu de forma gradual, pois não tinha apoio total da Junta de Gobierno.

Pinochet siguió una estrategia gradualista para llegar a ser Presidente. Primero,
inmediatamente, después del golpe, fue designado presidente de la Junta de
Gobierno, en la calidad de primus inter pares, existiendo en ese tiempo una dirección
de carácter colegiado. Con el Estatudo de la Junta de Gobierno de julio de 1974, se
ampliaron sus atribuciones, señalándose que era “Jefe Supremo de la Nación”. [...]
Recién en diciembre de 1974 recibió formalmente el título de Presidente de la
República con autonomia de la Junta de Gobierno, adquiriendo una autoridad
superior a ésta. (HUNEEUS, 2000, p. 144)

Desta forma, ele governou com a ajuda de uma assessoria política composta por
militares de alta graduação, fortalecendo sua autoridade. Outra base de poder foi o apoio dos 192
grupos de direita no país. Segundo Huneeus, estes grupos continuaram apoiando Pinochet até
2
mesmo quando ocorreu a sua prisão em Londres, em 1998. Para o historiador, a última base de
poder foi a mais irracional. Esta base de poder estava estreitamente ligada às atividades da
DINA, pois competia a ela acabar com qualquer tipo de manifestação contrária ao regime
ditatorial. Este organismo não tinha somente a função de eliminar a oposição, mas também
exercer atividades de controle para prevenir a criação de outros movimentos ou grupos que
questionassem as ações das Forças Armadas. Desta forma, a Ditadura Civil-Militar se fortaleceu
desde o seu início, durando 17 anos e tendo como característica principal o método,
representando a organização em qualquer ação que fosse realizada e a forte repressão a qualquer
manifestação oposta ao regime de Augusto Pinochet e as Forças Armadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

HUNEEUS, Carlos. El régimen de Pinochet. Santiago: Sudamericana, 2000.

INFORME DE LA COMISIÓN NACIONAL DE VERDAD Y RECONCILIACIÓN. Tomo I.


Disponível em http://www.ddhh.gov.cl/ddhh_rettig.html.

MOULIAN, Tomás. Chile actual. Anatomía de un mito. Santiago: LOM, 1997.

_________. La liturgia de la reconciliación. Políticas y estéticas de la memoria. Santiago:


Cuarto Própio, 2000.

PADRÓS, Enrique Serra (Org.). Cone Sul em tempos de ditadura: reflexões e debates sobre
a história recente. 1 ed. Porto Alegre: Evangraf-UFRGS, 2013.

PEREZ, Cristián. Historia del MIR. "Si quieren guerra, guerra tendrán...". 2003. Elaborado
por CEME (Centro de Estudios Miguel Enríquez). Disponível em: <www.achivochile.com>.

SKIDMORE, Thomas; SMITH, Peter. Historia Contemporánea de América Latina.


Barcelona: Crítica, 1996.
192
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3
Ediciones UDP, 2009.

______. Luchando por mentes y corazones. Las batallas de la memória en el Chile de


Pinochet. Santiago: Ediciones UDP, 2013.

VALDÍVIA, Verónica; ÁLVAREZ, Rolando; PINTO, Julio. Su revolución contra nuestra


revolución. Izquierdas y derechas en el Chile de Pinochet (1973-1981). Santiago: LOM, 2006.

WINN, Peter. A revolução chilena. São Paulo: UNESP, 2010.


ALÉM FRONTEIRAS: O EXÉRCITO BRASILEIRO E AS VERTENTES DOS
PROCESSOS DE MODERNIZAÇÃO MILITAR (1548-1970)*

Márcio Rodrigues**

Lia Rosa***

Taís Ropke****

RESUMO

O presente trabalho busca analisar e discutir o desenvolvimento e institucionalização do aparato


militar brasileiro a partir do papel e da influência das doutrinas estrangeiras sobre o processo
de organização da Força Terrestre. Logo, através de uma pesquisa bibliográfica, pretende-se
discutir a organização do aparato militar brasileiro a partir dos momentos de articulação dessa
instituição nacional com os mais variados fluxos e influências estrangeiras, e finalmente
192
relacionar tais alterações com mudanças no perfil institucional da força terrestre no período de 4
análise. Ao longo de sua história, o Exército Brasileiro sempre se manteve atrelado com
dinâmicas que se estabeleceram fora de suas fronteiras envolvendo o enfrentamento de ameaças
externas e a busca por modelos de organização institucional, o que teria lhe aproximado de
concepções doutrinárias e modelos organizacionais trazidos desde o exterior desde sua
formação. Nesse processo, segundo a literatura que trata sobre temas de história militar
contribuíram para o desenvolvimento e organização do aparato militar nacional a vinda de
oficiais militares portugueses e a utilização da organização espanhola de milícias que teriam
contribuído para organizar o perfil do aparato militar brasileiro até o início do século XIX. No
século XX, coube à influência de alemães, franceses e norte-americanos a tarefa de mobilizar

*
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
**
Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail:
drxmarcio@hotmail.com.
***
Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail:
Lia.fernanda.rosa@gmail.com.
****
Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: Tais-rr@hotmail.com.
recursos e capacidades na Força Terrestre brasileira visando atender as demandas de defesa do
território e manutenção da ordem interna compatível com os interesses das elites dirigentes
(POSEN, 1952). Nesse longo processo, esse artigo buscou explorar como a instituição militar
brasileira se adaptou ao surgimento desses novos elementos de modernização ao longo do
período de análise e verificar como esses contatos tiveram influência sobre a organização do
perfil doutrinário da força? Para atender tal demanda, foi mobilizada a pesquisa bibliográfica e
a análise de conteúdo com o intuito de discutir a problemática abordada.

Palavras-chave: Exército Brasileiro; Gênese; Atualização militar.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca discutir o processo de ajuste da capacidade brasileira na área


de defesa. Ou seja, a partir do processo de formação e evolução histórica do Exército Brasileiro,
a discussão se sustenta em explorar as diferentes fases de modernização do aparato militar
192
nacional a partir da aproximação de modelos organizacionais externos. Portanto, visando tratar
a temática abordada buscou-se partir desde o período colonial e das primeiras experiências de 5
um aparato militar dito nacional para discutir o estado das políticas de modernização militar no
Brasil.

Assim, considerando um contexto que parte desde o século XVI, tem-se que as
principais alterações de capacidades do aparato militar brasileiro se caracterizavam por sua
rusticidade persistindo até início do século XIX, quando uma forte institucionalização se
incrementou no setor militar nacional, a partir da chegada da Família Real portuguesa no país
e da criação da Academia Militar na Corte em 1810.

Logo, o objetivo nessa análise se orientou em descrever os processos de aproximação


do setor militar brasileiro com doutrinas estrangeiras que se salienta desde sua formação, onde
argumenta-se que a busca das autoridades por amparar uma modernização das capacidades e
recursos da força terrestre estaria fortemente relacionada a influências externas.
Portanto, surgem como objetivos secundários neste trabalho identificar e caracterizar as
diferentes fases de atualização do aparato militar brasileiro, de forma mais específica da força
terrestre, e explorar quais as mudanças tidas como determinantes para sustentar a formação de
um perfil institucional no setor militar nacional.

1. Capítulo I - Referencial teórico e metodológico de análise

No concernente ao marco-teórico, tem-se que a referida pesquisa parte da teoria


construtivista, a partir do trabalho de Elizabeth Kier, Culture and Military Doctrine: France
Between the Wars, para explorar os processos em curso no aparato militar brasileiro. Segundo
a perspectiva teórica do construtivismo, os estudos de segurança internacional passaram a
incluir questões relativas a recursos, demografia, ameaças não-militares e internas que passaram
a ter influência sobre as questões de defesa e segurança dos países, segundo autores como
Mathews (1985), Ullman (1983) e Haftendorn (1991).

Especificamente, no trabalho de Kier, argumenta-se que a organização e as mudanças


na doutrina militar dos países estão relacionadas a uma correlação de forças envolvendo atores 192
políticos nacionais, cujas variáveis determinantes são o modo como os atores domésticos 6
interpretam o ambiente internacional, a relação entre a cultura organizacional das Forças
Armadas com o meio externo até chegar ao estado das relações envolvendo civis e militares.

Segundo essa abordagem, as políticas formuladas envolvendo a organização do setor


militar dos países partem de um cálculo dos formuladores de políticas civis sobre o papel dos
militares nas sociedades que resultam em momentos de reformulação nas capacidades e
recursos das instituições militares dos países. Metodologicamente, o tipo de pesquisa nesse
estudo é de natureza qualitativa, pois o esforço de análise consistiu em relacionar as mudanças
ocorridas no setor militar brasileiro a partir da análise de conteúdo e pesquisa bibliográfica,
com os fluxos de influência estrangeira que tiveram repercussão sobre a organização do
Exército (GERHARDT; SILVEIRA, 2009).

2. Capítulo II - processos de atualização militar no Brasil: primeiros fluxos


Em termos históricos, a literatura que trata sobre a gênese e evolução do Exército
Brasileiro não é muito precisa quanto a datas e fatos, podendo partir a formação do setor militar
nacional desde meados do século XVII, quando a batalha dos Guararapes teria forjado a
primeira experiência de uma força dita nacional contra a atuação de inimigos externos, ou ainda
de períodos anteriores, mais precisamente ligada à realidade do século XVI, quando as milícias
formadas de nacionais brasileiros tinham a incumbência de manter a segurança dos dispersos
centros urbanos da jovem nação.

Outras correntes da historiografia militar tratam períodos mais recentes de nossa


história, ligada ao século XIX, a partir da criação da Real Academia Militar na Corte, como a
gênese da Instituição Militar no Brasil. Essa imprecisão se faz presente também quando são
discutidos os processos de modernização no ambiente militar brasileiro, onde projetos que
teriam raízes desde o Brasil Colônia teriam perpassado grandes períodos e resultado em
transformações na estrutura e organização da força terrestre.

Ou seja, desde meados do século XVI, diversos atores, fenômenos internos e externos, 192
doutrinas, concepções estratégicas diversas, e relações envolvendo uma multiplicidade de
atores estatais e não-estatais repercutiram sobre os momentos de reformulação do Exército
7
Brasileiro.

Segundo Nascimento (2015), tem-se que o Exército Brasileiro foi um produto do


processo de Independência, onde a autora argumenta que até 1822 não existia um Exército
genuinamente brasileiro. Segundo essa versão, o nascimento da classe militar brasileira ocorreu
às margens do Ipiranga, quando o grito de Dom Pedro I teria impelido o ímpeto militar nacional
para reagir contra as opressões impostas pela elite metropolitana. Baseando-se em autores como
Morris Janowitz, esse autor salienta que o aparecimento de um exército profissional no Brasil
teria sido um processo lento e gradativo.

Portanto, desde meados do século XVI, existiriam formas rudimentares de


profissionalismo militar que perduraram até o início do século XVIII no Brasil, baseadas na
articulação entre nativos, negros e mestiços associados com uma esparsa elite militar vinda da
Europa, que se dedicavam as atividades de manutenção da segurança dos escassos centros
urbanos e das atividades econômicas de exportação. Nesse contexto, formou-se uma
organização militar privada no território mantida por e para proteção das elites, e sem uma
organização característica dos exércitos nacionais, nesse caso considerando os padrões
europeus.

Logo, argumenta-se que no Brasil colonial se manteve uma estrutura administrativa e


burocrática do Estado que se fundiu com uma já existente estrutura militar, onde a ameaça dos
índios e dos exploradores estrangeiros levou a uma organização rudimentar do setor militar até
então existente.

Segundo essa versão, em 1548 teriam sido criadas milícias para a defesa dos principais
núcleos urbanos, formadas por elementos ligados a membros das Ordenanças Militares,
delegando um caráter privado às forças de defesa. Nesse mesmo ano, chegou ao Brasil a
primeira tropa regular do Exército português, que passou a coexistir com os sistemas de Milícias
e Ordenanças Militares. Quando das incursões holandesas, eram essas formações que se
orientavam a defesa do território, sendo formadas por índios e nativos brasileiros, juntamente
com oficiais portugueses integrantes das Ordenanças Militares (NASCIMENTO, 2015).
192
Segundo esse autor, mais tarde, por volta de meados do século XVII, o exército
estacionado no Brasil passou a ser organizado segundo a lógica espanhola, tendo as unidades
8
paramilitares como auxiliares. Essa formação buscava se adaptar ao modelo de organização da
sociedade brasileira, uma vez que as milícias simbolizavam o fracionamento do poder nas
localidades e se convertiam como um instrumento de preservação do território nacional
utilizado pelas elites portuguesas ocupantes do aparelho de Estado.

No século XVIII, há um novo fluxo de reformulação no Exército Nacional onde o


sistema de Ordenanças Militares foi substituído pela organização em milícias. O sentido dessa
modificação era fazer com que a elite nascida no território se entrosasse mais rapidamente com
a forma de organização do exército regular, atraindo consequentemente filhos de privilegiados
e nobres ao serviço.

Entre 1750 e 1777, algumas dessas mudanças tinham como objetivo a organização da
Força Terrestre no Brasil em termos qualitativos, e para tanto foram contratados oficiais
europeus para a organização das tropas de nativos, em serviços como infantaria, artilharia e
cavalaria. Na visão de Nascimento (2015), a divisão que se mantinha na Colônia entre Milícias,
Ordenanças e Exército Regular não era suficiente para manter o território e a segurança das
elites dirigentes sendo necessária a articulação de mudanças ligada a preparação dos efetivos.

Até finais do século XVIII, percebe-se que as mudanças mais determinantes que se tinha
no setor militar brasileiro eram baseadas na fusão de formas de organização rudimentares,
orientadas segundo a presença das Ordenanças Militares, Milícias e tropas vindas da Metrópole
com a adequação de alguns modelos fora desse padrão, como o que ocorreu com a adoção da
doutrina espanhola e o uso de unidades paramilitares, desde o século XVII. Essa organização
rudimentar mesclando nacionais e elite metropolitana se manteve até o primeiro decênio do
século XIX, quando a vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil revelaria a precariedade
de nossas defesas.

3. Capítulo III - Os fluxos de modernização durante o período imperial

Durante a Independência, autores como Monteiro (2011) argumentam que já haveria


uma força terrestre formada no território nacional que dividia espaço com as milícias e a Guarda
Nacional, representando a divisão dos poderes que existia à época no país envolvendo poder 192
central e elites locais. Este último grupo representava o poder econômico a época no território
e frequentemente utilizava forças privadas contra o próprio poder central para salvaguardar seus
9
interesses.

Outra fase de modernização do exército brasileiro pode ser verificada a partir do


trabalho de Seidl (2010), onde o autor argumenta que desde meados do século XIX tem início
um progressivo processo de profissionalização na carreira militar brasileira e de modernização
de suas práticas. Nesse sentido, a partir de 1850, o Exército Imperial passava a se orientar
segundo as bases de modernização de procedimentos, intensa burocratização, adoção de
critérios rígidos de ascensão interna, maior escolarização e formação técnica. Nesse período, a
aquisição de inovações tornava-se o objetivo central no Exército Imperial, que deveria se
atualizar tendo como parâmetro as medidas adotadas desde 1810 a partir da criação da Real
Academia Militar na Corte. O modelo escolhido seria o francês condutor de grandes sucessos
na Europa (SEIDL, 2010).
Para Nascimento (2015), a transferência da Corte levou a criação da Real Academia
Militar em dezembro de 1810. Segundo essa literatura, o exército existente até então era
caracterizado como completamente desorganizado e sem capacidade de manter a segurança da
família real diante de ameaças externas e, sobretudo internas.

Logo, um fluxo específico de reformulação militar teria suas raízes em 1810, tendo
como características a transferência de grandes contingentes do exército português para a
Colônia, a adesão a um processo de mudanças via ocidentalização contando com a criação de
Escolas Militares, e a busca pela formação de parcela da elite militar no território brasileiro
(NASCIMENTO, 2015).

No mesmo período, dava-se fim ao sistema misto que integrava um exército de nativos,
auxiliado pelas milícias e ordenanças militares herdados de um passado colonial, e orientavam-
se reformas pautadas pela padronização das atividades, pelo surgimento dos primeiros traços
de um planejamento estratégico e pela nacionalização da formação do aparato militar brasileiro.

A visão de Marques (2001), ajuda a caracterizar as atividades desempenhadas pelas


Forças Armadas brasileiras no período imperial, apontando para uma preocupação com o 193
controle da população civil, tal como uma força policial moderna. Nesse momento, percebe-se
que as diretrizes de política externa orientadas ao Prata promovem uma relativa racionalização
0
no planejamento militar no país orientando-se a amparar o controle da região de fronteira no
sul do território.

Para a autora, o envolvimento do Exército Brasileiro em conflitos como a guerra do


Paraguai levou ao fortalecimento do espírito de corpo da instituição militar brasileira onde
autores como Sérgio Buarque de Holanda destacam o crescente orgulho de classe que tomou
conta do oficialato do Exército após a vitória na guerra. Para Marques:

O exército que emerge da Guerra do Paraguai é dotado de espírito de corpo, orgulho


de sua vitória militar, ressentimento com as lideranças políticas e convencido de que
as questões de defesa só são valorizadas pelos próprios militares. (MARQUES, 2001,
p. 19)
Nesse período, a autora ainda destaca que para a consolidação do espírito de corporação
no exército brasileiro foi determinante a inserção do positivismo como filosofia orientadora das
elites e grupos dirigentes do país. A concepção de Augusto Comte permitiu a incorporação de
conceitos que concediam aos militares o direito de interferir e orientar a vida política do país,
permitindo a mobilização de momentos de atualização militar.

Autores como Zimmermann (2015), apontam o decênio de 1840 como o início de um


processo efetivo de organização do Exército Brasileiro, tendo como condicionante os conflitos
que o Brasil mantinha junto aos seus vizinhos no Prata que iria até ao envolvimento do país na
Guerra do Paraguai (1865-1870). Nesse contexto, diante de uma situação concreta de conflito
e de um adversário capaz de se tornar uma ameaça potencial, o Exército buscou organizar um
efetivo de cerca de 135 000 soldados, arregimentados de improviso, o que resultaria em 50 000
mortos do lado brasileiro no conflito. Essa situação levaria a uma nova fase de reformas no EB
nos primeiros anos da República.

4. Capítulo IV - Século XX e protagonismo militar: a busca por uma identidade


nacional
193
Com a transição para a República, os militares ascendem ao primeiro plano da política
nacional, por ter herdado prestígio desde a participação brasileira na Guerra do Paraguai e de
1
um militar ter proclamado a República. Nas primeiras décadas do século XX, com o poder
político nacional nas mãos dos militares, as demandas passaram a se orientar a uma ampliação
do número dos efetivos e uma modernização estrutural e logística no Exército Brasileiro. No
período entre 1908 e 1914, as modificações passaram a compreender a instituição do serviço
militar obrigatório, a criação dos Tiros de Guerra, a organização de grandes unidades de
brigadas estratégicas e o envio de oficiais para estagiar na Europa (SEIDL, 2010).

Nos primeiros anos da República, o Exército predominava como ator protagonista na


vida política do país, invertendo uma situação desfavorável em relação à marinha que preservou
grande relevância durante o Império. Nesse momento, as mudanças também passaram a
envolver uma duplicação de efetivos e a redistribuição das unidades militares pelo território
nacional. Baseada na obra de José Murilo de Carvalho aponta-se que a localização geográfica
das tropas passava a considerar uma concentração de forças nos principais centros do poder
político do país (MARQUES, 2001).
Outra mudança importante no Exército Brasileiro nessa época partiu da introdução de
missões estrangeiras como elemento para a promoção de um modelo de instituição militar no
país, onde os objetivos se orientavam a viabilizar uma maior capacitação técnica de oficiais,
além de um melhor aparelhamento e fixação de princípios doutrinários. Segundo a autora, esse
processo teve início em 1906 quando Hermes da Fonseca ocupava o cargo de Ministro da
Guerra. Nesse período, Adriana Aparecida Marques destaca a grande aproximação do Brasil do
modelo alemão sendo que entre 1906 e 1910 foram enviadas três turmas para estagiar na
Alemanha. Para a autora, as reformas que se seguiram a influência alemã foram limitadas e
restringiram-se à criação da revista Defesa Nacional e algumas reformas específicas, em virtude
da pressão contrária exercida por Inglaterra, França e da elite paulista a vinda dessa Missão.

Para Rodrigues (2011), os processos de mudanças que se articularam no Exército no


começo do século XX promoveram reformas de regulamentos e normas internas que passaram
a organizar a Força Terrestre visando a consolidação da Instituição e do regime republicano.
As mudanças se concentraram em eliminar o excesso de ensino técnico nas Escolas Militares e
dar o máximo de atenção ao ensino prático profissional. No início do século XX, segundo
testemunho da maioria do oficialato, o Exército Brasileiro era uma Instituição atrasada, o 193
armamento utilizado era diversificado dificultando a instrução e a manutenção. Além disso,
2
instalações e quartéis eram precários, e os orçamentos destinados à manutenção da instituição
eram baixos.

Em 1908, há a reforma do EME, a criação de grandes unidades permanentes, e das


Brigadas Estratégicas, a criação da lei do serviço militar obrigatório, a aquisição de armamento
e reaparelhamento das fábricas ligadas à indústria de artigos de defesa (RODRIGUES, 2011).
Todas essas providências foram tomadas durante o governo do Presidente Afonso Augusto
Moreira Pena (1906-1909), após um período de prosperidade econômica que se manteve desde
o governo anterior. Nesse contexto, o Ministro da Guerra era o Marechal Hermes Rodrigues da
Fonseca, responsável pela introdução de reformas de caráter renovador na Instituição.

Ainda em 1905, durante instrução nos campos de Curato de Santa Cruz, Estado do Rio
de Janeiro, ficava evidenciada a precariedade de condições das tropas que dispunham de
calçados de baixa qualidade, a utilização de barracas muito pequenas, a insuficiência de estoque
de alimentos, o armamento velho e insuficiente, além de problemas nos combates simulados,
cujas características eram: indecisão dos soldados nos combates, incompetência de comando,
grande consumo de munição sem resultado apreciável e a entrada de carros de munição na linha
de fogo. Posteriormente, em 1906, ficou decidido que um corpo de oficiais iria à Europa com
o objetivo de aperfeiçoar conhecimento em escolas de corpo de Tropa (RODRIGUES, 2011).

Para autores como Carvalho (2005), a ida de jovens oficiais à Alemanha se constituía
na medida de maior impacto para a modernização do Exército Brasileiro à época, sendo
sugerido pelo Ministro Rio Branco para servirem arregimentados no Exército alemão,
considerado o mais bem organizado da época. Destaca-se, segundo esse autor, que mesmo o
insucesso de tratativa com a Alemanha para a vida de Missão Militar alemã, três turmas de
oficiais se formaram (1906, 1908 e 1910), que repercutiriam na criação da Revista “Defesa
Nacional”. O periódico tinha o objetivo de difundir o sistema de treinamento, práticas, costumes
e regulamentos do Exército Alemão.

Acerca da importância dos Jovens Turcos nas mudanças que se articularam na


República Velha na organização do Exército Brasileiro, Luna (2007) destaca que entre a
segunda metade do século XIX e início do século XX, França e Alemanha, disputavam
mercados para sua pujante indústria no exterior e a influência sobre espaços como a América
193
Latina. A venda de material bélico e o envio de missões militares eram as formas mais utilizadas 3
pelos dois países para ampliar suas respectivas áreas de influência. No Chile, na década de
1880, a reforma do exército foi planejada a partir da ida para o país de um oficial alemão. Na
Argentina, por volta de 1890, uma série de oficiais alemães foram incorporados ao exército
visando adaptar e modernizar procedimentos de preparo e emprego da Instituição, e em 1889
chegou ao país uma Missão Militar Alemã.

Para a autora, no Brasil, a inserção da missão alemã insere-se nessa dinâmica de disputa
por mercados pelos países europeus que visavam uma posição privilegiada de seu comércio em
mercados externos e a manutenção de eventuais alianças militares estratégicas. No Brasil, a
preocupação com a Argentina, com a Bolívia e com as revoltas internas como a de Canudos
(1896-1897) evidenciavam a necessidade de reformas modernizadoras no exército brasileiro. A
visita de autoridades políticas brasileiras à Alemanha rendeu entre 1908 e 1910 uma
aproximação maior entre os exércitos dos dois países e o aumento do número de oficiais que
iam fazer estágio na Europa. Na ocasião, a intensa disputa entre Alemanha e França pela adesão
brasileira levou a suspensão entre 1910 e 1914 das tratativas oficiais para a instalação de
qualquer missão militar estrangeira no país.

Com o fim da Presidência de Hermes da Fonseca e a eclosão da Primeira Guerra


Mundial (1914-1918), associada à pressão de França e Inglaterra sobre o Brasil, e o
torpedeamento de embarcações brasileiras pela esquadra alemã, levaram o Brasil para o lado
dos aliados e a contratação da Missão Militar Francesa para modernizar o Exército em 1920.

Mesmo assim, José Murilo de Carvalho (2005), destaca que no governo de Wenceslau
Braz (1914-1918), o Ministro da Guerra José Caetano de Faria, nomeou um dos Jovens Turcos
como oficial-de-gabinete. Em 1915 com o apoio de Olavo Bilac os entusiastas da introdução
de uma missão alemã no Brasil conseguiram angariar o apoio de Olavo Bilac a causa visando
a modernização do Exército Brasileiro.

Dentre as reformas que se articularam em 1916 sob influência dos Jovens Turcos foi
criada a Liga de Defesa Nacional, com o apoio de representantes das elites civis. Em 1918,
exigia-se a carteira de reservista aos candidatos a cargos públicos, e reorganizava-se a
Confederação do Tiro de Guerra. A Guarda Nacional extinguia-se naquele ano permitindo com 193
que o Exército pudesse dispor de abundante e qualificado material humano, além de modernizar
e sistematizar o treinamento, preparar reservas, promover a educação cívica e reduzir a distância
4
entre exército e elites civis (CARVALHO, 2005).

Autores como Pelegrino Filho (2005) e Mialhe (2010) apontam algumas características
da Missão Militar Francesa que se instala no Brasil em 1919. Segundo os autores, a partir de
1920 a missão se instala sob a direção e supervisão de oficiais franceses e opera uma mudança
na administração e no sistema de ensino do Exército, tendo clara repercussão sobre instrução,
exercícios de campanha e emprego de material bélico. Mialhe (2010) aponta que a contratação
da Missão Francesa representava a adesão do governo brasileiro ao modelo francês de defesa
onde se articula uma mudança de concepção do que se tinha até então, uma cultura estratégica
limitada à proteção das fronteiras sul-sudeste do território. Com a introdução da MMF,
passaram a ser considerados processos como a mobilização de recursos humanos, técnicos e
econômicos como elementos determinantes para as políticas desempenhadas com fins de
defesa.
A nova visão implementada pela Defesa Nacional a partir da chegada da Missão
Francesa teve duas consequências importantes para as forças: a organização militar e a
reformulação do Estado-Maior a partir de uma maior centralização e coesão. Em 1920 é lançado
o Regulamento Disciplinar do Exército e o RISG, Regulamento para Instrução de Serviços
Gerais. Para Murilo de Carvalho, o RDE e a RISG uniformizaram em todo o exército as
atividades de treinamento, numa tentativa de forçar os oficiais a se voltarem para atividades
puramente militares (CARVALHO, 2005).

Chegando à década de 1930, havia uma visão negativa acerca da política exercida pela
elite por parte das forças armadas, o que levou a uma aliança entre Exército e Vargas resultando
na derrubada da Primeira República. Esse exército que apoiava Vargas desejava a
modernização do país e o fortalecimento de suas instituições, dentre elas o próprio Exército
Brasileiro, condição indispensável para o desenvolvimento nacional (MARQUES, 2001).

Dirigida no plano militar pela figura de Góes Monteiro, a Revolução de 30, na visão dos
militares, buscava consolidar a autonomia institucional da força e sua autonomia política. Há
de se destacar que as políticas que orientavam a Defesa Nacional na época compreendiam a
visão acerca da rivalidade platina e as noções que defendiam a necessidade de integração do
193
território nacional. Nesse processo a concepção geopolítica de autores como Backheuser 5
criticava a exacerbada autonomia regional da Primeira República e defendia a mudança da
capital para o centro geopolítico do território como parte da estratégia de defesa do país. Outro
autor que se destaca no discurso é Leopoldo Nery da Fonseca, defendendo a necessidade do
Brasil de mobilizar seus recursos em prol da transformação da Nação em uma grande potência.

Svartman (2014) destaca que a década de 1940 representou um novo ciclo de influência
estrangeira, agora com preponderância dos EUA sobre a organização das forças armadas
brasileiras, envolvendo material, doutrina e ideologia. No Brasil cabia às Comissões Militares
Mistas a tarefa de articular os procedimentos de emprego entre as forças armadas dos dois
países a partir de programas de visitas e treinamento de militares e programas de assistência
norte-americana às instituições de ensino militar do Brasil. Tais programas envolviam a
transferências de material bélico, aquisição de equipamentos modernos, desenvolvimento de
uma indústria bélica autônoma no Brasil, atendendo a finalidade das elites governamentais e
militares de adquirir autonomia estratégica.
Portanto, desde 1942, quando da ruptura das relações do governo brasileiro com o Eixo,
foram estabelecidos diversos acordos de cooperação militar desde Washington com muitos
países da América do Sul. No caso do Brasil, o objetivo dos EUA era de consolidar sua posição
na região e fazer frente à influência política e econômica europeia sobre o continente. Para as
elites brasileiras, o novo cenário de competição entre as potências, segundo o autor, era
orientado a melhor atender as demandas domésticas de industrialização, projetar-se
regionalmente e equipar as forças armadas de material moderno. Nesse contexto, a adesão
brasileira aos interesses dos aliados repercutia sobre a criação de uma linha de crédito EUA-
Brasil e a construção de uma siderurgia que garantisse no longo prazo uma maior autonomia
estratégica ao país.

Em 1939, George Marshall, então chefe do Estado-Maior do Exército dos EUA, em


visita ao Brasil, e uma posterior visita de Góes Monteiro aos EUA, permitiu que os dois países
firmassem acordos para concretizar a discussão de temas de cooperação militar (SVARTMAN,
2014). Em 1941, era criada a lei Cash and Carry e a Lend-Lease que previam a ampliação dos
canais de conversação entre os dois países, permitindo dentre outros processos a modernização
da artilharia e a criação da aviação militar no Brasil. 193
Nos anos seguintes, durante o governo Dutra, a ênfase dada pelos EUA à cooperação 6
militar com o Brasil decaiu, sendo restrita ao acesso de material leve e de treinamento. A
aproximação entre oficiais dos dois exércitos no Brasil passaram a se destacar nas atividades
de planejamento, treinamento e fornecimento de um sistema militar de ensino, repercutindo na
criação da Academia Militar das Agulhas Negras.

Na década de 1940, a criação da Escola Superior de Guerra dá início a uma nova fase
de mudanças importantes nas concepções estratégicas do Exército brasileiro. A Doutrina de
Segurança Nacional surge como parâmetro para a organização da defesa com o objetivo de
transformar o Brasil em uma “grande potência”.

Saraiva e Valença (2012), sustentam que com o fim da Segunda Guerra Mundial, e o
questionamento do paradigma americanista pela política externa brasileira, associado à
ascensão do Terceiro Mundo como ator destacado na política internacional durante o segundo
governo Vargas, o Globalismo surge como paradigma que visa orientar o papel brasileiro no
mundo, destacando-se a partir da década de 1950. Segundo os autores, as relações com os EUA
deixavam de ser vistas como prioritárias pelo Brasil, que deveria promover a diversificação de
suas relações internacionais visando ampliar o poder de barganha política e econômica do país
perante os demais Estados.

No campo militar, as mudanças do período acompanharam as diretrizes de política


externa, tendo a ESG, criada em 1949, como principal articuladora. Nesse momento, lançavam-
se as bases da Doutrina de Segurança Nacional, pautada em um discurso modernizador,
desenvolvimentista e que defendia o papel das Forças Armadas como elementos de mudança.
A partir de então, surgem como objetivos do Estado promover a inserção externa do Brasil em
âmbito regional, desenvolver uma percepção geopolítica pautada pela participação do país na
defesa ocidental e orientar o desenvolvimento nacional segundo os objetivos de industrialização
(SARAIVA; VALENÇA, 2012).

Essa inserção da doutrina francesa nas Forças Armadas marcava então a ruptura do setor
militar brasileiro com o conceito de Guerra Total norte-americano e apregoava uma adaptação
da doutrina militar brasileira aos princípios da guerra insurrecional ou revolucionária. Na
década de 1950, as mudanças de percepção na área militar tiveram como reflexo imediato a
busca por fomentar a produção nacional na área militar, tendo como base uma série de novos
193
contratos firmados com países europeus que incluíam cláusulas de transferência de tecnologia 7
na área militar que coexistiam no período com o MAP, Programa de Assistência Militar,
mantido pelos EUA.

No final da década de 1960, o Brasil já era capaz de sustentar o desenvolvimento de


empresas significativas no setor militar como a EMBRAER, AVIBRÀS, responsável pelo
desenvolvimento do sistema Astros II, além da Engesa, que contribuíram para apoiar um dos
ciclos de modernização militar no Brasil que perdurou até meados da década de 1990
(MATHEUS, 2010). Faz-se necessário salientar que nesse período, que compreende as décadas
de 1960 e 1970, as relações entre Brasil e EUA foram gradualmente se deteriorando, sendo que
em 1977, os dois países rescindem o acordo bilateral que vigorava desde 1952. Em 1980,
segundo autores como Anthony (2013), a cooperação em defesa entre os dois países atinge o
nível mais baixo, quando os EUA se posicionam contrários aos programas de desenvolvimento
de tecnologias sensíveis em uma série de países, que incidiria no Brasil sobre o
desenvolvimento de tecnologias de armas convencionais, satélites e lançadores de mísseis.
CONCLUSÃO

Este estudo, buscando discutir o processo de modernização do aparato militar brasileiro,


desde sua formação até a década de 1970, constatou que os principais fluxos de modernização
dessa instituição tiveram como condicionantes a influência de fatores domésticos que
conduziram a força terrestre nacional a momentos de mudança. Ou seja, manter a posse do
território e a ordem interna se mantiveram como os principais elementos que conduziram as
elites dirigentes e as burocracias militares a promover mudanças no aparato militar do Estado.
Logo, desde o período colonial o país buscou amparar-se nesses modelos externos, o que
resultou em doutrinas baseadas na reformulação de experiências de outros atores estatais acerca
dos ambientes de conflito, o que conduziu o setor militar brasileiro a restringir a eficácia e
impacto dos recursos mobilizados em seu setor militar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
193
8
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Brasil. Construindo confiança em torno dos interesses nacionais. Monografia (Curso de Altos
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ZIMMERMANN, Odirlei. O Exército Brasileiro. Monografia (Curso de História).
Universidade da fronteira do oeste do Estado do Rio Grande do Sul. Ijuí, 2015.

194
0
DESENVOLVIMENTO E ESTADO NOVO NO BRASIL (1937-1945)*

Bruna Lima**

Maria Medianeira Padoin***

RESUMO

Este trabalho envolve algumas das questões que estão sendo pesquisadas no curso de Doutorado
em História, da Universidade Federal de Santa Maria e possui financiamento CAPES. Entre
tais questões, objetiva-se compreender as principais ideias desenvolvimentistas que permearam
o governo de Getúlio Vargas, durante o Estado Novo no Brasil (1937-1945). Este tema merece
atenção, pois ajuda a entender como algumas ideias nacionalistas eram concebidas no período,
a partir do que estava sendo pensado como desenvolvimento e como tais concepções eram
utilizadas em prol das ações do governo na época, no âmbito político e econômico, 194
principalmente. Esta análise inclui um referencial teórico restrito não apenas a aspectos 1
econômicos, mas também com uma análise do caráter das políticas externas empreendidas neste
período, que envolveram o Brasil com os Estados Unidos, com a Alemanha e com alguns dos
países Latino-Americanos, tendo em vista que desenvolvimento e nacionalismo possuíam uma
estreita relação com as políticas estabelecidas com estes países.

Palavras-chave: Desenvolvimentismo; Nacionalismo; Estado Novo.

1. Capítulo I - Desenvolvimento como elemento da política econômica brasileira


durante o Estado Novo

*
Trabalho apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
**
Mestra em História (UFSM). Doutoranda em História no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Santa Maria. Bolsista CAPES. E-mail: bruna.lima90@hotmail.com.
***
Doutora em História (UFRGS). Orientadora. Professora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: mmpadoin@gmail.com.
Este trabalho apresenta um estudo sobre aspectos da política econômica adotada pelo
governo brasileiro, durante o Estado Novo (1937-1945), além de alguns elementos que tratam
da política externa brasileira neste mesmo período, vinculadas, sobretudo as ideias de
desenvolvimento. A ideia central do trabalho seria justamente demonstrar como algumas das
principais ideias de caráter desenvolvimentista estavam presentes no mencionado período e
como elas conduziam e também refletiam nas relações que o governo estabelecia com outros
países, no caso mais específico deste trabalho Alemanha e Estados Unidos.

Historicamente Brasil e Alemanha estabeleceram relações, expressas principalmente


por tratados, acordos comerciais, concessões de créditos, desenvolvimento de indústrias no
Brasil, etc. De acordo com Bandeira (2011), em 1935, por exemplo, em função de marcos de
compensação, a Alemanha superou os Estados Unidos e atingiu o primeiro lugar como
fornecedora do Brasil. Isso, segundo o autor, ocorreu devido a diversos fatores, sendo que “um
deles foi o fato de contar com importantes conexões no Brasil, onde 100 mil alemães de primeira
geração [Reichsdeutsche] e 800 mil alemães-brasileiros [Volksdeutsche], a representarem cerca
de 3% da população (pouco mais de 30 milhões de habitantes na primeira metade dos anos
194
1930), formavam próspero mercado de consumo”, além do fato de que muitos deles “possuíam 2
tradicionais e sólidas empresas que participavam ativamente da economia e do comércio
exterior brasileiros” (BANDEIRA, 2011, p. 64).

Os marcos compensatórios, por exemplo, podem ser caracterizados como uma estratégia
alemã para garantir um mercado protegido e ao mesmo tempo assegurar o desenvolvimento,
logo após a crise de 1929. Para o Brasil, esta estratégia era viável, ao passo que o país possuía
carência de divisas de moedas estrangeiras, além de ao mesmo tempo, ampliar mercados para
a exportação de produtos primários (RAHMEIER, 2009). Ou seja, a “Alemanha imprimiu uma
agressiva política comercial e de propaganda ideológica na região, que chegou a ameaçar a
posição dos EUA e sobrepujou, em vários países, a posição comercial da Grã-Bretanha”, sendo
que, “os acordos de comércio bilateral, baseados em marcos de compensação, foram a fórmula
encontrada pelos alemães para intensificar o comércio exterior em uma situação de carência de
moedas fortes” (CORSI, 2000, p. 51-52).
Até 1942, Brasil e Alemanha vivenciaram momentos de proximidade e conflito,
enquanto que até o mesmo período, era intensa a tentativa dos Estados Unidos de manter a
América Latina como sendo sua grande área de influência, ao passo que a região era sua
principal fornecedora de produtos primários, além de grande consumidora de seus produtos
industrializados. Com isso, o governo Roosevelt procurou incrementar ainda mais a política de
“Boa Vizinhança”, visando garantir e “intensificar o relacionamento político, militar e
econômico tendo em vista assegurar a influência e liderança junto aos países latino-americanos”
(CORSI, 2000, p. 53).

Diante deste contexto, a postura de neutralidade do governo brasileiro, gerava uma


posição supostamente favorável ao país, no sentido de que o governo poderia extrair dela
benefícios de ambos os lados. Tal ideia foi explicitada no trabalho de diversos autores, entre
eles, Amado Luiz Cervo, que destacou que “Vargas julgava a neutralidade conveniente aos
interesses que perseguia no exterior, o comércio, o aparelhamento das forças armadas e a
colaboração para a implantação da indústria pesada. Manobrou politicamente enquanto foi
necessário para atingir resultados e depois cedeu às ideias de Aranha, quando os Estados Unidos
garantiram a satisfação daquelas necessidades do país” (CERVO, 2011, p. 244). 194
Apesar deste posicionamento já ser um tanto quanto aceito na historiografia, de uma 3
forma geral, é importante não esquecermos que os sujeitos estavam agindo dentro de um
contexto incerto, no qual existiam diferentes possibilidades de escolhas, de ação, assim, nada
estava tão definido como muitas vezes se aparenta. Ou seja, devemos ter certo cuidado para não
fazermos uma análise pensando que os agentes possuíam clareza dos resultados de suas ações,
ao contrário, devemos procurar compreender o universo de possibilidades disponíveis durante
o período estudado e como os agentes lidavam com estas possibilidades e faziam suas escolhas.
Assim, a própria posição de neutralidade, que muitas vezes parece tão planejada pode ser
repensada, a partir, justamente da existência deste universo de possibilidades, que não
garantiam que as escolhas seriam as mais acertadas.

Em 1939, ocorreu uma tentativa de reaproximação entre Brasil e Alemanha, tentativa


defendida por Getúlio Vargas, pois o mesmo acreditava que o governo dos Estados Unidos teria
uma posição oposta em relação à industrialização do Brasil, enquanto que a Alemanha já havia
sinalizado incentivo a ações do governo que tivessem este fim. Dessa forma, Getúlio Vargas
“tratou de negociar com a Krupp, da Alemanha, a implantação da siderúrgica no Brasil”
(BANDEIRA, 2011, p. 72).

Os Estados Unidos, temendo a aproximação entre os dois países, passou a conceder


crédito para a construção da siderúrgica de Volta Redonda, mas em contrapartida, o Brasil teria
que permitir a instalação de bases militares norte-americanas ao longo do litoral. Todavia,
apesar desta concessão, o Brasil não queria deixar de continuar comercializando e
estabelecendo acordos com a Alemanha, pois almejava extrair benefícios de ambos os lados,
ou seja, “Vargas prosseguia, com seu jogo. Seu fim eram os suprimentos externos para os
objetivos de governo que havia traçado” (CERVO, 2011, p. 229).

A suposta posição de neutralidade, adotada pelo Brasil, foi deixada de lado em 1942
pelo apoio aos Estados Unidos. A partir deste momento, mesmo tentando não se envolver
diretamente no conflito, o governo brasileiro “não teve alternativa senão também passar as
ações de guerra econômica, contrária aos interesses de muitos setores nacionais, aplicando a
Black List, imposta, como em 1917-1918, pela Grã-Bretanha e pelos Estados Unidos, com o
objetivo de eliminar os investimentos da Alemanha no Brasil” (BANDEIRA, 2011, p. 74-75).
194
A questão que envolve nacionalismo e desenvolvimento econômico, foram uma das
características mais evidentes e marcantes deste período e que, apesar das controvérsias, teriam
4
norteado as principais ações do governo, ao mesmo tempo em que serviam como um
instrumento para dar legitimidade ao mesmo. Além disso, identificava-se no discurso de
Vargas, durante o Estado Novo, a vinculação do desenvolvimento econômico à superação da
miséria e à consolidação da unidade nacional, pois ambas só estariam asseguradas com a
expansão da economia (CORSI, 2000). Expansão, que através desta perspectiva só seria
possível com um governo centralizado, tanto na política, como na economia.

A consolidação de uma nação forte compunha parte deste discurso, como um dos
elementos principais no que se refere a uma centralização política e econômica. Além disso, a
consolidação da nação também “justificaria a existência do regime ditatorial e a necessidade de
uma política econômica capaz de desenvolver o país de forma harmônica”. (CORSI 2000: 76).
Nesse sentido, foi durante o Estado Novo que se pensou de forma mais objetiva em deixar
efetivamente para trás uma tradição colonialista, de um Brasil apenas exportador de matérias-
primas, para um Brasil mais independente.
Esta ideia já havia sido pensada na década de 1930, principalmente a partir da Crise de
1929, que fez com que o Brasil buscasse alternativas para se recuperar diante da falta de
mercados para o café, no entanto, começou a ser concretizada de forma mais efetiva, apenas
durante o Estado Novo. Houve então, um aprofundamento da tendência centralizadora da
economia, iniciada no limiar da década de 1930, juntamente com uma apologia ao Estado, que
teria por finalidade “alcançar o desenvolvimento econômico” (FONSECA, 1999, p. 256).

Ricardo Seitenfus (2003) destacou que com os efeitos da crise de 1929, apesar de o
governo não desenvolver na prática uma política econômica muito diferente da que desenvolvia
antes de 1930, a Aliança Liberal havia sinalizado que seria necessário a instalação de uma
indústria de Base no Brasil. O autor destaca que não chega a se ter neste período uma política
industrial especificamente, mas que, no entanto, a ideia de desenvolvimento industrial já
começa a aparecer, até mesmo relacionado a segurança nacional, pois seria “impossível
alcançá-la de maneira autárquica, este elemento fundamental do programa da AL incidirá sobre
a política externa brasileira após 1930. Destaca-se aqui a preocupação de modernizar os
equipamentos militares dos quais dispunha o país” (SEITENFUS, 2003, p. 4).

Além de segurança nacional a intervenção do Estado na economia se acentuou ainda


194
mais, em função da crise gerada com o início Segunda Guerra Mundial, neste caso, “aumentou 5
consideravelmente o peso do Estado na economia: continuou a intervenção na política cafeeira
– embora transferida do controle paulista para o controle do governo federal – e multiplicaram-
se as iniciativas estatais no domínio da economia, inicialmente no terreno normativo” (ABREU,
2013, p. 179).

Na tentativa de melhor refletir a respeito de conceitos e aspectos inerentes ao


desenvolvimento, buscou-se em Luiz Carlos Bresser (2006) uma referência. Ele fez um
apanhado referente à história deste conceito, destacando que o mesmo se apresenta como um
processo de “sistemática acumulação de capital e de incorporação do progresso técnico ao
trabalho e ao capital que leva ao aumento sustentado da produtividade ou da renda por habitante
e, em consequência, dos salários e dos padrões de consumo de uma determinada sociedade”
(BRESSER PEREIRA, 2006, p. 2).

Porém, isso não significa, necessariamente, que as taxas de desenvolvimento são iguais
para todos, pois isso depende da capacidade das nações utilizar seus Estados para formular
estratégias nacionais de desenvolvimento, a fim de lhes permitir serem bem sucedidas na
chamada competição global (BRESSER PEREIRA, 2006). Com a globalização e a abertura de
todos os mercados que essa concorrência se tornou clara, “mas desde a revolução capitalista o
desenvolvimento econômico se tornou um objetivo político central das nações” (BRESSER
PEREIRA, 2006, p. 3).

Dentro desta perspectiva, durante o período correspondente ao Estado Novo, a tentativa


de integração do centro do País com as áreas periféricas, proposta por Vargas e que carregava
consigo, as ideias de nacionalismo novamente precisam ser destacadas. Ou seja, a partir das
ideias de criação de uma identidade nacional, estas regiões passariam a “conversar” entre si. A
esta ideia de criar uma identidade nacional estava vinculada também a tentativa de difusão de
um projeto de modernização econômica, que poderia inserir o País no que poderia ser definido
como uma nova ordem mundial, na qual os países industrializados estariam mais bem
colocados, até este momento.

Também através deste ideário de modernização e de progresso econômico, o Governo


almejava uma forma de centralizar o poder, de forma a neutralizar o domínio que as
“oligarquias” regionais ainda mantinham. Neste caso, a centralização política se acentuou ainda
194
mais, juntamente com a ideia de industrialização englobada em uma perspectiva modernizante, 6
consolidando a intervenção do Estado na economia (PESAVENTO, 1997), tal como já havia
sido destacado anteriormente. Observa-se a partir do que foi expresso, que o conceito de
desenvolvimento abrange diferentes setores da sociedade, apresentando implicações não só
relacionadas a economia, mas abrangendo também as esferas política, social e cultural.

Cabe destacar que a existência de um projeto desenvolvimentista, com raiz no Estado


Novo ou até antes dele não é consenso na historiografia, isso porque, para alguns autores uma
política de fato desenvolvimentista teria sido estabelecida de fato apenas a partir da criação da
Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), em 1948. Porém, acredita-se que dentro
do contexto, das possiblidades e limitações existentes no período, Vargas conduziu durante o
Estado Novo uma política de caráter desenvolvimentista, mesmo que ainda não muito
sistematizada.
Foi com o Estado Novo que a política externa passou a pautar-se por um projeto de
desenvolvimento. Esse enfoque remete a discussão da controversa existência e
natureza de um projeto nacional. O projeto de desenvolvimento de Vargas não pode
ser concebido como um plano acabado, com metas, mecanismos de financiamento e
órgãos de controle e coordenação de programas formalmente definidos, pois não
existia à época algo nesses moldes. O projeto de Vargas, que compreendia uma série
de programas formulados à medida que os problemas se iam colocando, consiste em
um processo redefinido constantemente pela injunção de fatores políticos, sociais e
econômicos internos e externos; projeto que, no entanto, não chegou a adquirir
feições definitivas mesmo ao final do Estado Novo. Ainda assim, pode-se denomina-
lo “projeto” tendo em vista que os programas que o compunham apontavam na
direção de um desenvolvimento baseado no mercado interno e na indústria,
expressando assim uma estratégia política norteadora da ação governamental.
(CORSI, 2000, p. 16)

Para além do Estado Novo, as ideias desenvolvimentistas continuaram permeando a


política brasileira de formas distintas ao longo da história, mas durante o período de Ditadura
Civil-Militar, iniciada com o Golpe de 1964, esta ideia voltou a ser ainda mais acentuada,
tomando uma forma semelhante, com a analisada até o presente momento. Ou seja, uma forma
caracterizada essencialmente pela centralização política e pelo intervencionismo do Estado na
economia. 194
7
CONCLUSÃO

Procurou-se, no decorrer deste trabalho, situar de maneira geral de que forma algumas
das ideias desenvolvimentistas estavam presentes nas ações do governo durante o período do
Estado Novo, sejam relacionadas à política econômica ou mesmo a política externa. Importante
destacar que este trabalho compreende uma pequena parte de uma pesquisa que está sendo
desenvolvida no curso de Doutorado em História, do Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal de Santa Maria, e pretende levantar alguns dados historiográficos para
a construção do estudo.

Esta questão que envolve políticas desenvolvimentistas é interessante de ser abordada,


tendo em vista a diversidade de perspectivas que a mesmo gera entre os pesquisadores que se
dedicam a este tema. Somado a isso, também é importante destacar que ao observar a
bibliografia que contempla esta temática, principalmente ao que se refere ao contexto que
envolve a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, é possível observar que ainda existem
muitas questões que precisam ser estudadas e reanalisadas, tal como destacou Ricardo Seitenfus
(2003, p. 15) ao mencionar que ainda existem muitas “zonas nebulosas quanto às circunstâncias
que conduziram a entrada do Brasil” na Segunda Guerra Mundial.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Marcelo de Paiva. O Processo Econômico. In: GOMES, Angela Maria de Castro
(eds.). Olhando para Dentro: 1930-1964. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013, pp.179-228.

BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O ‘Milagre Alemão’ e o desenvolvimento do Brasil


(1949-2011). São Paulo: UNESP, 2011.

BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. O conceito histórico de desenvolvimento econômico. In:


Textos para discussão. Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas FGV-
EESP. Disponível em:<
http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/1960/TD170.pdf?sequence=1>. 194
Acesso em: 11 jan. 2015.
8
CORSI, Francisco Luiz. Estado Novo: política externa e projeto nacional. São Paulo: Editora
UNESP: FAPESP, 2000.

FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Vargas: o capitalismo em construção 1906-1954. São Paulo:
Brasiliense, 1999.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1997.

RAHMEIER, Andrea Helena Petry. Relações diplomáticas e militares entre a Alemanha e o


Brasil: da proximidade ao rompimento (1937-1942). Tese (Doutorado em História). Rio
Grande do Sul: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2009.

SEITENFUS, Ricardo. O Brasil vai à guerra: o processo do envolvimento brasileiro na


Segunda Guerra Mundial. Barueri: Manole, 2003.
PODER E POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA NO CONE SUL*

Juliano dos Santos Bravo**

RESUMO

O trabalho estuda as nuances do poder brasileiro no cone sul fronteiriço, através da teoria
neoliberal ou neoinstitucionalista. O eixo central se organiza por meio do pensamento de Joseph
Nye, com afinco especial, neste caso, ao Soft Power. O Soft Power pode se caracterizar como
um instrumento epistemológico pelo qual os atores internacionais buscam alcançar resultados
favoráveis mediante o ajuste da agenda, persuasão e produção de atração positiva. Nesse
sentido, a pesquisa objetiva analisar, em um primeiro plano, as especificidades, extensões e

194
limitações do Soft Power, para então, em um segundo momento, auferir a possibilidade deste
ser um meio pelo qual a área de fronteira do Cone Sul pode ser uma zona de inserção estratégica
para o Brasil. Para tal fim, a análise se desenvolve aplicando, a título de exemplo, casos que 9
envolvam o Brasil, o Uruguai e a Argentina, principalmente no que concerne à política externa
durante o governo Luís Inácio “Lula” da Silva. Através da construção desse arcabouço
científico, concisamente destacado, a pesquisa visa contribuir com a elucidação do poder no
século XXI em zonas de fronteira, sobretudo o Soft Power, aliado as capacidades de este ser ou
não um dos vieses apropriados para o Brasil se inserir no meio internacional. Podendo coincidir,
então, inserção e poder com desenvolvimento global na busca da diminuição de assimetrias
mundiais e de bens públicos globais na política internacional do século XXI. Sem, no entanto,
perder de vista aspectos sistêmicos definidores da política entre as nações, como a anarquia
internacional.

Palavras-chave: Política Externa; Cone Sul; Soft Power.

*
Trabalho apresentado no I Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
**
Mestrando em Ciências Sociais (PUCRS). Bolsista Cnpq. Bacharel em Relações Internacionais (UFSM). E-
mail: julianobravo22@gmail.com.
INTRODUÇÃO

Dentro da área de estudo das Relações Internacionais, o Poder ocupa um papel relevante
na política entre as nações. O conceito de poder, nas relações sociais ou internacionais, denota
centralidade desde Tucídides à Maquiavel ou Foucault. Soma-se a essa importância, a função
desempenhada pela Política Externa nacional de um determinado país. Em vista dessa
dimensão, a presente análise objetivou articular ambos os conceitos, o Poder e a Política
Externa, para produzir uma pesquisa sobre as estratégias de projeção de poder dentro da política
externa brasileira no Cone Sul, especialmente durante a gestão do presidente Luís Inácio ‘Lula’
da Silva.

O poder, enquanto conceito fundamental para a compreensão da política internacional,


revela-se por meio de variadas interpretações e diferentes escolas do pensamento. O tradicional
paradigma realista observa o poder como lógica essencial para a sobrevivência dos estados em
um sistema anárquico, pois “a política internacional consiste necessariamente em política do 195
poder” (MORGENTHAU, 2003, p. 60). No entanto, nesta análise o poder se pautará por meio 0
de uma noção interligada, não necessariamente oposta ao realismo e, entretanto, vinculada
diretamente ao pensamento de Joseph Nye (2002; 2004; 2007; 2012), teórico ligado ao
neoliberalismo/neoinstitucionalismo. Ademais, o Soft Power, por exemplo, “não é associado à
teoria liberal nem à teoria realista” (NYE, 2007, p. 62)1012, uma vez que, o poder das ideias não
é negligenciado por pensadores clássicos nem modernos, como Maquiavel e Morgenthau.

Do ponto de vista da formulação de política externa de uma nação, Karl Deutsch (1982)
estabelece três pontos elementares e, na maioria dos casos, hierárquicos. Quais sejam: (I)
preservação da independência e segurança; (II) estímulo e defesa dos interesses econômicos;
(III) ajuda econômica, projeção de atração nacional, intercâmbio cultural e científico, estes sob
a perspectiva dos interesses nacionais. Mediante essas bases, ora mais alargadas ora mais
específicas, os Estados se projetam no tabuleiro global na busca de suas ambições, podendo

1012
Tradução nossa: “Nor is soft power associated with liberal rather than realist theory” (NYE, 2007, p. 62).
coincidir ou não com cooperação e integração regional e promoção de bens públicos globais:
pontos, esses, caros a esta pesquisa.

A partir dessa concisa percepção dos fundamentais elementos que irão formar o texto,
o objetivo central desse artigo é promover uma análise amparada na conjunção do conceito de
poder nas relações internacionais contemporâneas, ou da Era Global (NYE, 2007), com a
política externa brasileira em vistas ao Cone Sul. Dessa maneira, desenvolver-se-á uma
averiguação da visão do poder contida em Nye (2002; 2007; 2012), somada a uma noção dos
principais elementos da política externa brasileira durante a gestão Luís Inácio e, por fim, a
interação destes dois aspectos concernente ao Cone Sul, amparada em dados qualitativos e
quantitativos de relevância para o assunto.

1. Capítulo I - O Soft Power na Era Global

O poder envolve uma gama articulada ou não de concepções abrangentes, como do


195
inanimado à natureza, do estrutural ao familiar, dos tanques às ideias. “Por meu interesse nas
ações e nas políticas” (NYE, 2012, p. 26), e aqui no Soft Power, é prudente relacioná-lo 1
diretamente à política internacional.

Em vista disso, “Poder é a capacidade de atingir os próprios objetivos ou metas. Mais


especificadamente, é a capacidade de influenciar os outros para obter os resultados desejados”
(NYE, 2007, p. 60)1013. A partir dessa concisa ideia de poder, deve-se adentar nas ramificações
para entender, da melhor forma possível, os fundamentos e as influências contidas no
pensamento de Nye sobre o que é poder, para então melhor compreender o soft power dentro
de suas extensões e limitações.

A discussão em torno da ideia de poder nos assuntos internacionais está a muito tempo
presente tanto nos textos clássicos como no debate acadêmico corrente. Joseph Nye (2007;
2012) nos traz o poder a partir de duas perspectivas híbridas: posse de recursos e

1013
Tradução nossa: “Power is the ability to achieve one’s purposes or goals. More specifically, is the ability to
affect others to get the outcomes one wants” (NYE, 2007, p. 60).
comportamental. O poder pode ser tangível a partir da posse de recursos (mais identificado com
o pensamento hard) e pode ser intangível por meio de relações comportamentais (mais alinhado
com o pensamento soft).

Observa-se, ainda, duas característica de suma importância, o contexto e a estratégia.


Variáveis expressivas no caminho para a busca da realização dos objetivos pretendidos, ou seja,
na efetivação do poder potencial em poder real. Além do mais, a conversão se torna a habilidade
central de um país ou ator para converter, vislumbrando corretamente o quadro, a potência em
poder. Este trânsito demanda uma habilidade de tradução da conjuntura para empreender a
melhor estratégia de conversão de poder.

Segundo Nye (2002), a título de exemplo, a melhor forma para preservar o poder
estadunidense no século XXI advém, sobretudo, de dois métodos centrais, uma evidentemente
em foco na sobrevivência e, logo a seguir, no provimento de bens públicos globais. Por
consequência, “ganhamos duplamente com semelhante estratégia: pelos próprios bens públicos
e pelo fato de eles legitimarem o nosso poder aos olhos dos outros” (NYE, 2002, p. 234). Uma
vez que, “em um número crescente de questões no século XXI, a guerra não é o arbitro final”
(NYE, 2012, p. 30). E, além do mais, ressalta:
195
2
Se, por um lado, os novos unilateralistas tentarem elevar a tática ocasional e
provisória do unilateralismo a uma estratégia total, é bem provável que fracassem
por três motivos: (1) a natureza intrinsicamente multilateral de diversas questões
transnacionais importantes na era global, (2) o custo das consequências para o nosso
poder brando e (3) a natureza cambiante da soberania. (NYE, 2002, p. 262)

A partir da apreensão do poder enquanto comportamento ou comportamental


estabelece-se parâmetros relacionais, ou também descritos como as três faces do poder. Estes
são concebidos como: “[1] comando da mudança, [2] controle das agendas e [3]
estabelecimento das preferências” (NYE, 2012, p. 32). Nota-se o contraste entre comando da
mudança e estabelecimento das preferências e, entretanto, ambos correlacionam-se e tanto a
capacidade e habilidade de comando quanto de cooptação e atração podem produzir resultados
desejados, a depender dos contextos em que estão inseridos e a figurar ações tanto soft quanto
hard.
Nessa compreensão, deve-se evitar o erro de supor que o soft power se encontra somente
nas faces 2 e 3 do poder. Pois, como bem evidenciado em Nye (2012), o poder brando vai
depender da capacidade de persuasão, atração e confiança, e estes do contexto em que está
inserida a ação. A segunda e a terceira face, ademais, também são identificadas com os
“aspectos do poder estrutural” (NYE, 2012, p. 36). Em resumo, Nye (2012) estabelece que:

O poder de comando (a primeira face) é muito visível e prontamente captado. Ele é a


base do poder duro – a capacidade para conseguir os resultados desejados mediante
a coerção e o pagamento. O poder cooptativos das faces dois e três é mais sutil e, por
isso, menos visível. Ele contribui para o poder brando, a capacidade para conseguir
resultados preferidos pela utilização dos meios cooptativos de estabelecimento da
agenda, persuasão e atração. (NYE, 2012, p. 38)

Por fim, cabe sublinhar alguns aspectos importantes do bem conhecido conceito de Soft
Power ou poder brando. O soft power pode deter inúmeros meios de recursos, mesmo o militar,
porém o que vai defini-lo como poder brando são certos comportamentos específicos. Estes
são, segundo Nye (2012), “o ajuste da agenda que é encarado como legítimo pelo alvo, a atração
195
positiva e a persuasão” (NYE, 2012, p. 44). Portanto, o poder brando “é a capacidade de afetar
outros utilizando meios cooptativos de ajuste da agenda, persuasão e produção de atração 3
positiva para a obtenção de resultados preferidos” (NYE, 2012, p. 44).

Existe a necessidade de estabelecer dois modos como os alvos são afetados pelo Soft
Power, que são os modos direto e indireto. “Na forma direta, os líderes podem ser atraídos e
persuadidos pela benignidade, competência ou carisma de outros líderes” (NYE, 2012, p. 130).
A forma indireta, e mais comum, “é um modelo de dois passos em que o público e terceiros são
influenciados, e por sua vez afetam os líderes de outros países” (NYE, 2012, p. 130-131). Desse
modo, se pode vislumbrar inúmeros exemplos de produção efetiva ou não de soft power na
política internacional, como, também, compreender como ações diretas do governos podem ser
bem sucedidas ou não.

2. Capítulo II - Política Externa Brasileira (2003-2010): fundamentos e diretrizes


Do pensamento de poder contido em Joseph Nye (2002; 2007; 2012), observado acima,
e os pontos fundamentais para formulação de política externa, baseado no entendimento de Karl
Deutsch (1982), somam-se as seguintes diretrizes em exame durante a gestão do Presidente
Luís Inácio: cooperação e integração regional e a promoção de bens públicos globais. Assim
estabelecido o arcabouço cognoscível, examinar-se-á as diretrizes gerais e específicas
compreendidas pela literatura especializada da área.

A Política Externa Brasileira do período descrito é caracterizada por possuir 11 traços


gerais, segundo Shiguenoli Miyamoto (2011), que podem ser sintetizados da seguinte forma:
(I) a defesa dos interesses nacionais por meio da atuante diplomacia presidencial; (II)
objetivando relevância no contexto internacional; (III) busca por cargos estratégicos em
organizações internacionais; (IV) importância central na liderança regional, portanto, destaque
para as relações vizinhas e sob o eixo da integração regional; (V) relações Sul-Sul, mormente
as nações em desenvolvimento; (VI) alianças e aproximações internacionais pragmáticas, ou
seja, sem distinção ideológica ou cultural; (VII) forte união com os emergentes, através do G3,
G4, BRICS; (VIII) presença e atuação nos grandes temas globais, sobretudo nos temas caros ao
desenvolvimento nacional, como o meio ambiente, pobreza, recursos energéticos; (IX) atuação 195
capaz como mediador de conflitos e ajuda internacional, como o caso do Haiti; (X) retórica
4
proativa em relação aos problemas mundiais; (XI) modernização da Defesa Nacional
(MIYAMOTO, 2011).

Pode-se vislumbrar, a partir do entendimento de Miyamoto (2011), que os onze aspectos


gerais da política externa da gestão ‘Lula’ envolvem projeção de poder ou acréscimo de poder
nacional no âmbito da política e assuntos globais. Além do mais, articula papel relevante para
as relações Sul-Sul e, ao principal interesse nesse momento, a dimensão da relação regional
com os vizinhos, na busca de legitimidade e liderança.

As particularidades centrais da política externa brasileira, durante o primeiro mandado


do presidente, também podem ser articuladas por 4 ideias centrais que gerariam 7 pontos de
intensidade maiores e lógicos, conforme Vigevani; Cepalunni (2007):

(1ª) contribuir para a busca de maior equilíbrio internacional, procurando atenuar


unilateralismo; (2ª) fortalecer relações bilaterais e multilaterais de forma a aumentar
o peso do país nas negociações políticas e econômicas internacionais; (3ª) adensas
relações diplomáticas no sentido de aproveitar as possibilidades de maior
intercâmbio econômico, financeiro, tecnológico, cultural etc.; e (4ª) evitar acordos
que possam comprometer a longo prazo o desenvolvimento. (VIGEVANI;
CEPALUNNI, 2007, p. 291)

Examina-se ligeira interlocução com o entendimento anterior, porém de modo mais


conciso. As ênfases que estes quatro pontos gerariam são as seguintes:

(1ª) aprofundamento da Comunidade Sul-americana de Nações (Casa); (2ª)


intensificação das relações entre países emergentes como Índia, China, Rússia e
África do Sul; (3ª) ação de destaque na Rodada Doha e na Organização Mundial do
Comércio, assim como em algumas outras negociações econômicas; (4ª) manutenção
de relações de amizade e desenvolvimento das relações econômicas com os países
ricos, inclusive com os Estados Unidos; (5ª) retomada e estreitamento das relações
com os países africanos; (6ª) campanha pela reforma do Conselho de Segurança das
Nações Unidas, visando um lugar de membro permanente para o Brasil; e (7ª) defesa
de objetivos sociais que permitiriam maior equilíbrio entre Estados e populações.
(VIGEVANI; CEPALUNNI, 2007, p. 292)

195
Novamente se examina o caráter de suma expressão dada ao eixo sul-americano, e
evidentemente ao Cone Sul. O estreitamento das relações regionais são objetivos plenos na
5
política externa da era ‘Lula’. Assim, o pensamento de projeção e acréscimo de poder se
desnudam através dessas políticas de cooperação, liderança e aproximação sustentadas ao longo
do mandato. Ademais, o fomento multilateral e institucional revelam uma face da política
neoinstitucional e do desempenho do soft power nesses temas. Dessa forma, e em conformidade
com os objetivos em análise, se pode averiguar também que:

A convergência entre as visões autonomistas1014 e do PT proporcionou uma


percepção da região diferente do governo anterior, e levou a um comportamento
diferente frente à construção da liderança baseada em novas formas de
cooperação/integração com os países vizinhos, e também frente ao Mercosul. Com
este objetivo, a diplomacia brasileira buscou aprofundar o comportamento que já
vinha sendo seguido na gestão de Cardoso, mas dando um novo sentido à construção
da liderança com padrões de soft power através do reforço do multilateralismo na
região. (SARAIVA, 2013, p. 71)

1014
Convém estabelecer que a corrente de pensamento autonomista da política externa brasileira diverge dos
institucionalistas pragmáticos, estes são fortemente vinculados ao governo anterior (SARAIVA, 2010). Além de
que, segundo Miriam Gomes Saraiva (2010), no período ‘Lula’ convergiram o universalismo e a autonomia.
Cabe destacar, ainda, a percepção de Paulo Fagundes Vizentini (2013) a respeito da
Política Externa Brasileira do período, pois realça três dimensões. Quais sejam:

[...] uma diplomacia econômica, outra política e um programa social. A primeira


dimensão é realista, a segunda de resistência e afirmação e a terceira propositiva.
Trata-se de um projeto amadurecido por mais de uma década, e não uma política
voluntarista, e tem demonstrado estar adequada à correlação de forças existentes no
país e no mundo. (VIZENTINI, 2013, p. 112)

Uma das ênfases dada pelo autor se refere à correlação de forças, aspecto relevante para
vislumbrar a melhor estratégia de projeção internacional do país, dentro da leitura correta do
contexto. Conforme esse prisma pode-se estabelecer os aspectos sistêmicos que se entende de
modo realista e a isso se alia outros meios capazes de tênue revisionismo ou ação cooperativa
em vias de projeção e acréscimo de poder nacional nos assuntos globais.

Contemplando o plano regional, Vizentini (2013) constata que: 195


6
A integração sul-americana se realiza em três níveis: o Mercosul, a IIRSA e a
CASA/Unasul. O Mercosul representa o nível comercial e de investimentos, já
relativamente encaminhado. [...] A IIRSA representa uma forma de integração
funcional, voltada à construção de infraestrutura de transportes, comunicações e
energia. Ela interessa a todos os países e a atores externos como a China, a União
Europeia, o Japão e, mesmo, os Estados Unidos. [...] Por fim, a Comunidade Sul-
Americana de Nações (CASA), criada em dezembro de 2004 e aprofundada em abril
de 2007 com sua transformação em União de Nações Sul-Americanas (Unasul),
representa um fórum para desenvolver a consciência política da integração (inclui
também a Guiana e o Suriname). (VIZENTINI, 2013, p. 113)

A partir da breve retomada dessa literatura sobre as características amplas da Política


Externa Brasileira empreendida durante o mandato do Presidente ‘Lula’, especialmente sob o
comando ativo e altivo do Ministro Celso Amorim, se pode examinar por meio da ótica
empreendida nesta análise uma política externa de ampliação do prestígio e da influência
brasileira na política internacional contemporânea de poder.
3. Capítulo III - Inserção e poder do Brasil no Cone Sul

“Os fatores de inserção internacional são muitos, com destaque para: fluxos de capitais,
de tecnologia, de valores, de cultura e relação de poder” (VIGEVANI; RAMANZINI, 2009, p.
61). Por meio dessa perspectiva de inserção internacional, somada a política externa, observa-
se as particularidades de linhas associadas aos aspectos tradicionais de poder das nações, assim
como os elementos mais identificados com o soft power.

Em 2008, o produto interno bruto brasileiro atingiu as cifras de US$ 1, 612 trilhões de
dólares, “enquanto a soma da produção dos demais onze países sul-americanos alcançou, no
mesmo ano, cerca de US$ 1,302 trilhão” (COUTO, 2010, p. 30). Observa-se, ainda, que o
“Brasil detinha há quatro décadas 27,62% do produto interno da América do Sul, enquanto a
Argentina representava 24,94% da economia formal sul-americana. Em 2008, o Brasil alcançou
54,63% enquanto a Argentina somava 11,34% (COUTO, 2010, p. 30). Esse quadro representa
um dos elementos tradicionais de poder, especialmente pela sua capacidade de mensuração e
cooptação, que integram ao Brasil a sua relevância e também a sua responsabilidade na busca 195
pela liderança efetivamente ativa e altiva na América do Sul.
7
Nesse ínterim, tendo por base dados do Banco Central (2008), a porcentagem total das
exportações brasileiras feitas em 2003 para a Argentina, o Paraguai e o Uruguai somavam
7,78%, enquanto que para a China a porcentagem era de 6,20%. Já em 2007, as exportações
para Argentina, Paraguai e Uruguai somavam 10,80%, ao passo que para a China a porcentagem
era de 6,69%. Atentando ao mesmo raciocínio, a porcentagem de importação realizada pelo
Brasil da Argentina, do Paraguai e do Uruguai em 2003 somavam 11,77%, à medida que da
China, no mesmo ano, era 4,45%. Já em 2007, as importações da Argentina, do Paraguai e do
Uruguai somavam 9,64% e da China aumentava para 10,46% (VIGEVANI; RAMANZINI,
2009, p. 59-60).

Desse modo, se pode auferir que a capacidade de exportação brasileira para a Argentina,
o Paraguai e o Uruguai ascendeu entre 2003 e 2007 e, no entanto, o potencial de importação
privilegiou a China em ascensão.
Outras observações de caráter mais abrangente podem ser obtidas através do gráfico
abaixo disponibilizado pelo IPEA (2010), em que a preponderância significativa está por conta
da assistência humanitária desenvolvida no período, aspecto de projeção de poder soft.

195
8

Fonte: IPEA, 2010, s/p.

A assistência humanitária internacional em questão é destacada abaixo em relação à área


geográfica de seu destino. O que se pode visualizar é a proeminência da América Latina e
Caribe como grande receptora dessa assistência brasileira. É bem sabido que a maior parte é
destina ao Haiti, fugindo do espaço do Cone Sul, o que, no entanto, se mantém no escopo da
projeção e acréscimo de soft power.
Fonte: IPEA, 2010, p. 24.

De forma mais destacada, abaixo se encontra os dez destinos previlegiados para a


cooperação brasileira na América Latina por áreas de atuação. O destaque fico por conta das
195
seguintes temáticas: políticas públicas, logística, defesa, agropecuária. A cultura, ciência e 9
tecnologia e indústria e energia vem logo em seguida.

Os principais destinos concernete ao montante de investimento descrito em dólares são:


o Haiti, muito em função da opeção de paz comandada pelo Brasil e assistência humanitária, o
Chile, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai, ou seja, o Cone Sul, em grau subsequente de
revelancia.
196
0

Fonte: MILANI, 2014, p. 119.

Somam-se a estas particularidades, a intensa diplomacia propulsora de atração positiva,


tanto do presidente quanto da nação como um todo. Pois, como se pode visualizar na imagem
abaixo, a recepção de chefes de Estado entre 2003 e 2010 foi significativa. Uma variável soft e,
entretanto, de suma importância para projeção de poder e influência nos assuntos globais.
Mesmo que o destaque fique por conta do traço multilateral universalista, é grande o relevo
dado aos líderes latino americanos.
Fonte: MILANI, 2014, p. 63.

Dando continuidade na linha argumentativa desenvolvida no texto, a diplomacia cultural


também faz parte do rol de políticas de atração positiva, de expansão dos valores símbolos
nacionais como, também, de efetiva influência no modo de vida. No sentido empreendido pelo

196
soft power, a diplomacia cultural, visando interesses nacionais e, em muitos casos e contextos,
globais (como por meio dos bens públicos globais), realiza importante função. Observa-se
abaixo a atuação cultural brasileira somente no ano de 2013. 1

Fonte: Milani, 2014, p. 51.


Ainda por meio da lógica da diplomacia cultural, muito embora nesses casos abaixo a
maioria dos atores não sejam estatais, a evidência é de pontos positivos no sentido da promoção
de valores e culturas nacionais capazes de propiciar atração positiva na esfera estatal ou societal.
O mesmo ocorre na questão do principal esporte brasileiro, o futebol, como também na questão
turística, ambos revelam o papel de realce do Cone Sul.

Fonte: Milani, 2014, p. 51.

196
2

Fonte: Milani, 2014, p. 53.


Fonte: Milani, 2014, p. 55.

Progredindo na esfera argumentativa, amparada na lente de observação estruturada no


texto, o que se pode auferir das imagens a seguir (em mais uma forma lúdica e ampla) é a
importância do Cone Sul político e societal para a política externa brasileira e sua projeção de
poder e liderança na região. Aqui, no prisma fronteiriço revelado entre o Brasil e o Uruguai,
Argentina e Paraguai.
196
3

Fonte: Milani, 2014, p. 64 e 65.


Em derradeiro, a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), órgão responsável pela
administração das atividades do campo, demonstra abaixo (segundo MILANI, 2014) a
quantidade de ações desenvolvidas e em desenvolvimento na América Latina.

196
Fonte: MILANI, 2014, p. 118.
4

CONCLUSÃO

A política internacional da Era Global está condicionada por um arranjo de poder cada
vez mais capilarizado. O Estado nacional, mesmo que ainda detenha a centralidade das ações
nos assuntos globais, não está mais sozinho no tabuleiro mundial. Os atores transnacionais não
estatais ganharam espaço e poder, ainda que características sistêmicas seja a realidade da
estrutura internacional, como a anarquia internacional. Dentro desse conjunto de
particularidades da Era Global o poder dilui-se para além das políticas governamentais, e o
papel da sociedade influi direta e indiretamente nos rumos, especialmente, nos aspectos de
poder soft. O soft power está em evidência na contemporaneidade e detém, em larga medida,
poder essencial para a preservação e projeção das nações no meio internacional.

O presente artigo procurou apresentar uma perspectiva distinta para a análise de


assuntos de cunho político internacional, neste caso, na articulação de poder e política externa
sob bases específicas. Nessa perspectiva, a pesquisa optou pela análise da ideia de poder contida
em Joseph Nye e, mais especificadamente, do soft power como ferramenta conceitual e
epistemológica para observar alguns fatos de política externa. Ademais, buscou compreender a
relevância do conceito e algumas de suas especificidades.

Através da construção da ideia de poder como lente de observação, o segundo passo


foi vislumbrar o objeto a ser lido. Assim, pautou-se pelo pensamento de traçar características
gerais da política externa brasileira entre os anos de 2003 e 2010, durante a gestão ‘Lula’,
através de uma breve revisão da literatura. Ação de cunho a amparar, passo a passo, o vislumbre
de iniciativas, ações e práticas da diplomacia, da sociedade civil e, sobretudo, da política externa
brasileira no período no intuito de entendê-las por meio do soft power.

Cabe, ainda, ressaltar a circunscrição do tema e da metodologia para que o objetivo 196
não seja, em absoluto, sustentar em definitivo ou em caráter cabal a função e importância do
soft power e, tampouco, a ideia de características irrefutáveis da política externa do período.
5
Finalmente, o artigo pretendeu inserir timidamente a importância de debater a dimensão do
Cone Sul através de distintas lentes de estudo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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6
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196
7
A POLÍTICA DOS PAPAS:

A DIPLOMACIA DA SANTA SÉ E O REICH DE 1930 A 1945*

Paula Antonia Henn**

Prof.ª Dr.ª Marta Rosa Borin***

RESUMO

A Igreja Católica é a única instituição confessional que possui um Estado soberano, condição
essa estabelecida pelo Tratado de Latrão, firmado entre a Itália e o Vaticano em 1929. Com a
criação da Santa Sé, a Igreja Católica possui os requisitos necessários para se constituir como
nação, o Estado da Cidade do Vaticano, e assume um papel diante de assuntos políticos, 196
militares e comerciais no cenário internacional. Como a Diplomacia da Santa Sé tem seu
representante principal o Pontífice de Roma, que orienta as posições internacionais dos
8
representantes do Vaticano, nossa proposta da pesquisa visa analisar a diplomacia vaticana,
através da história das relações internacionais entre o Estado do Vaticano, no pontificado dos
papas Pio XI (Cardeal Ratti) e Pio XII (Cardeal Pacelli), no período de 1930 a 1945. Neste
período, as nações europeias viviam a instabilidade das frágeis democracias e, também,
passaram pelo conflito da Segunda Guerra Mundial que modificou o cenário internacional e
exigiu uma posição de todas as nações frente ao conflito. Assim, busca-se analisar a linha
política dos referidos pontífices em relação ao Reich e às ideologias que influenciaram estas

*
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria. Trata-se
do resultado parcial de nossa Dissertação de Mestrado vinculada ao Projeto de pesquisa “Religião, Política e
Imigração”, coordenado pela professora Marta Rosa Borin, PPG História-UFSM.
**
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-
mail: paulahenn@hotmail.com.
***
Doutora em História. Professora do Programa de Pós-Graduação em História da UFSM. Orientadora. E-mail:
mrborin@gmail.com.
administrações, a fim de compreender as posições político-diplomáticas nas relações
internacionais da Santa Sé, bem como, as possíveis razões que motivaram seus posicionamentos
diante dos acontecimentos políticos daquele período.

Palavras-chave: Política; Igreja; Nazismo.

INTRODUÇÃO

A Diplomacia do Vaticano é considerada a mais antiga diplomacia do mundo


apresentando muitas peculiaridades, pois a Igreja católica desde os primeiros séculos de história
enviava representantes do papa para tratar de assuntos relevantes. Naquele período, os
representantes papais tinham, principalmente, como missão manter a unidade da Igreja
combatendo heresias e dissonâncias entre os bispos. O que, evidentemente, não deixava de fazer
com que ela estivesse presente em negociações políticas, já que era detentora de um território.

No ano de 1929, com a assinatura do Tratado de Latrão entre a Igreja Católica e o Estado 196
Italiano, a Santa Sé tornava-se soberania de um Estado Nacional com um território de 0,44 Km²
9
sendo, dessa forma, portadora de personalidade internacional e de todos os direitos condizentes
ao Estado da Cidade do Vaticano. É a partir dos acordos de Latrão que a diplomacia vaticana
assume uma postura diferenciada no cenário internacional no período entre guerras, 1919-1939.

Como o principal representante da diplomacia da Santa Sé é o Pontífice de Roma e


também chefe de Estado, nessa pesquisa buscamos analisar o pontificado de Pio XI (Cardeal
Ratti) e Pio XII (Cardeal Pacelli), para entender as linhas político-diplomáticas no período de
1930 a 1945.

No ato de governar, de intervir ou não, um governante precisa fazer opções que são
decisivas para a posição que o Estado tomará diante de alguma situação. Com Pio XI e Pio XII
não foi diferente, configurou-se uma posição da Santa Sé, durante o período da II Guerra
Mundial e posteriormente a ele, que resultou em muitas criticas de lideranças políticas e da
comunidade internacional. Desta forma, o trabalho irá analisar a figura desses dois líderes
religiosos durante seus pontificados com o objetivo de encontrar atitudes que expressam a
postura da Santa Sé neste conflito. Assim, como afirma Kosseleck (2006, p.134):

Mesmo a intersubjetividade de uma conjuntura de eventos deve, enquanto os atores


a realizam, manter-se aderida ao esquema das sequências temporais. Basta
pensarmos nas histórias das eclosões das guerras em 1914 e 1939. O que realmente
aconteceu, justamente por conta da interdependência das ações e omissões só pode
ser visto decorridas as primeiras horas, do dia seguinte.

Sendo o período estudado de grandes movimentações ideológicas e buscando analisar


os acontecimentos de forma a delinear as posturas adotadas pelos pontífices romanos, nosso
estudo se detém na história das relações internacionais da Santa Sé com o Reich e as motivações
ou estratégias adotadas nessa política exterior.

1. Capítulo I - O Pontificado de Pio XI e Cardeal Pacelli


197
O Papa Pio XI nasceu na comuna de Desio, região da Lombardia, Provincia de Monza 0
e Bianza, Itália, com o nome de Ambrogio Damiano AchilleRatti. De família de posses, Achille
foi impulsionado a seguir o caminhodo sacerdócio, talvez por influencia de um tio sacerdote.
Foi ordenado com vinte e dois anos na Basílica de São João de Latrão, em Roma.

Segundo Carletti (2012), o padre Achille Ratti se destacou por sua competência nos
assuntos católicos e foi chamado pelo Papa Leão XIII, em 1891, para missões diplomáticas. A
partir desse momento o sacerdote permaneceu em Roma onde foi chamado por Bento XV, em
1919, para ser Núncio Apostólico1015 na Polônia. Sua missão levou-o a enfrentar a difícil
situação da invasão soviética, em agosto de 1920, e os problemas criados pelo teor das novas
fronteiras após a Primeira Guerra Mundial. Ratti solicitou ao Vaticano para ficar em Varsóvia,

1015
O núncio apostólico é o representante diplomático permanente da Santa Sé, não do Estado da Cidade do
Vaticano, exerce o posto de embaixador. Representa a Santa Sé perante os Estados, perante algumas organizações
internacionais e perante a igreja local.
próximo ao cerco, mas Bento XV não permitiu, ordenando-lhe a pedir exílio ao governo
polonês.

Em 1921,Achille Ratti foi nomeado arcebispo de Milão e também Cardeal1016. O


conclave que o elegeu pontífice de Roma ocorreu em 6 de fevereiro de 1922, sendo também o
ano da “marcha sobre Roma” realizada por grupos que representaram a conquista fascista na
Itália (CARLETTI, 2012,p. 102). Ao suceder o Papa Bento XV, que havia enfrentado todos os
acontecimentos da Primeira Guerra Mundial, o cardeal Ratti adotou o nome de Pio XI e assumiu
a Igreja no cenário de crescimento do fascismo na Itália e de insignificância da Santa Sé no
cenário político. Porém, muito rapidamente os fascistas italianos iniciaram agressões a
sacerdotes e fiéis católicos, o que exigiu de Pio XI a condenação das ações e motivações
fascistas quando produziu a encíclica Non abbiamo bisogno em 1931.

Durante o pontificado de Pio XI o Secretário de Estado, chefe da diplomacia vaticana


similar a um primeiro-ministro, cardeal Gasparri assumiu muitas negociações trabalhando nos
acordos de Latrão. No entanto, pouco tempo após a assinatura do tratado, o cardeal Gasparri foi
demitido do cargo, segundo Lebec (1999) essa demissão foi uma sanção por um erro cometido
nas negociações com o México, o qual vivia uma revolta religiosa de camponeses católicos que
197
se autodenominavam cristeros e formavam um exército para lutar contra o poder central da 1
federação mexicana devido à proibição do culto católico no país. O Cardeal Eugênio Pacelli,
futuro Pio XII, foi o prelado que assumiu o cargo de Secretário de Estado da Santa Sé, no final
do ano de 1929.

Eugênio Pacelli nasceu em Roma, de família católica e com tradição nos trabalhos
pontifícios, sendo distinguida pelos serviços prestados a Santa Sé. Pacelli foi ordenado
sacerdote em 1899, com 23 anos de idade. Depois de dois anos em trabalhos paroquiais foi
chamado a ingressar na Congregação dos Assuntos Eclesiásticos Extraordinários da Santa Sé,
sendo responsável pelas relações internacionais (TORNIELLLI, 2002).

Passados vinte e um anos, em 1920, Pacelli foi nomeado Núncio Apostólico na nova
República Federal da Alemanha, assumindo o cargo no período entre guerras, até a conclusão
dos acordos com a Baviera (1924) e com a Prússia (1929). Foi instituído Cardeal, em 1929,

1016
Na hierarquia da igreja, os cardeais são os conselheiros e os colaboradores mais íntimos do Papa.
pelo Papa Pio XI, retornando à Roma no ano seguinte para assumir a nomeação de Secretário
de Estado. A partir desse cargo, Eugênio Pacelli passou a representar o Papa em viagens,
encontros e negociações políticas. Durante este período assumiu uma posição de muita
importância, pois, segundo Carletti (2012), seu serviço era de vice Papa, e desta maneira tornou-
se conhecido, e conhecedor do ambiente diplomático.

No período pós-assinatura do tratado de Latrão, as relações entre a Igreja Católica e o


Estado Italiano tiveram um pequeno desenvolvimento, de acordo com Paternoster (2007) Pio XI
entendia que na configuração política do período Mussolini era o único líder político capaz de
proteger a Itália do socialismo crescente. Com o crescimento da política fascista inicia, mas
tensões entre Mussolini e Pio XI principalmente ao que se referia às intenções de Mussolini em
subordinar a Igreja Católica ao regime fascista e também com a aproximação da Itália à
Alemanha nazista (CARLETTI, 2012).

As relações da Santa Sé com a Alemanha após a criação do partido tiveram


desencontros, pois houve uma breve proibição por parte do clero aos católicos que ingressassem
no partido nazista. As determinações da Igreja não se mantiveram a partir da nomeação de um
líder católico reconhecido Franz Von Papen para o cargo de vice chanceler de Hitler. A
197
estratégia da Santa Sé passou por mudanças, afrouxando as proibições e abrindo espaço para o 2
diálogo com os nazistas. Neste período de tratativas foi firmada a concordata entre o Estado
alemão e a Santa Sé, em 1933, tendo como autor o Cardeal Pacelli.

Para Lebec (1999), o profundo conhecimento da língua alemã fez de Pacelli um


importante sujeito nas negociações políticas como a assinatura da Concordata, a qual
estabelecia pontos bem claros sobre as relações entre a Alemanha nazista e a Santa Sé. Segundo
Godman (2007), a primeira condição era que a Alemanha não declarasse guerra a Santa Sé ou
à hierarquia da Igreja na Alemanha, em contrapartida a Santa Sé cumpriria com alguns acordos
como: não condenar o Partido Nazista (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães)
liderado por Adolf Hitler, desde1921; permitir que os católicos fossem membros do Partido
Fascista e do partido Nazista. Tal concordata foi essencial para a vitória dos nazistas e seus
aliados no Reich nas eleições de1933, já que depois deste acordo os bispos alemães
suspenderam as condenações que fizeram ao Partido (PORTILHO, 2011).
As relações entre Hitler, Pio XI e, consequentemente, com o Núncio de Berlim foi
justificado por alguns historiados, segundo Caletti (2012), pois o Vaticano acreditava que o
fortalecimento de um governo nazista que se autodeclarava defensor da doutrina cristã, poderia
impedir o avanço do comunismo, esse mesmo argumento é usado por Deschner (1995) quando
aborda as relações entre a Santa Sé o comunismo.

Logo o nazismo e a Igreja Católica entrariam em conflito. Em 1934, o Santo Ofício1017


condenou os livros nazistas enquanto a Santa Sé multiplicava os protestos contra as teorias
nazistas (LEBEC, 1999, p.62). Em 1937, com a encíclica Mit brennender Sorge, idealizada pelo
cardeal Pacelli, o papa Pio XI condenou as teorias raciais nazistas, definindo-as incompatíveis
com a religião católica.

Em 1939, Pio XI preparou um discurso sobre as condições da Igreja na Itália, no qual


seriam apresentadas novas denúncias em relação ao regime fascista. Tal discurso nunca chegou
a ser proferido, pois, na véspera do dia esperado, Pio XI faleceu. A causa da morte declarada
pelo Vaticano foi ataque cardíaco. A mídia internacional especulou sobre a hipótese de um
assassinato, por ser a mensagem de cunho ameaçador.
197
Com o falecimento de Pio XI o colégio cardinalício escolheu o Cardeal Pacelli para
assumir o cargo máximo da Igreja Católica, ele optou pela sequência do nome, Pio XII e de
3
identificava-se com a política de seu antecessor.

2. Capítulo II - A Encíclica de Pio XI - Mit brennender Sorge

Com o crescimento do nazismo na Alemanha, as leis raciais rigorosas foram motivos


para a manifestação da Igreja através da Encíclica1018 Mit brennender Sorge, em 1937, pelo
Papa Pio XI, onde o papa discorria sobre diversos assuntos referentes a fé católica contrapondo
aos princípios defendidos pelo Reich. A carta foi produzida em conjunto com alguns sacerdotes
da cúria mas, principalmente, por Pacelli que viveu em Berlim e, segundo Lebec(2012),
conhecia muito bem os argumentos do partido nazista. Muitas partes do texto são compostas de

1017
Tribunal do Santo Oficio foi um departamento na Igreja Católica que hoje é chamado de Congregação para a
Doutrina da Fé responsável por salvaguardar e promover a fé. Desta maneira é o órgão fiscalizador e que combate
heresias ou ameaças a fé católica.
1018
As Encíclicas são Documentos publicados pelo Pontífice onde ele instrui e informa os fieis católicos sobre
determinado assunto referente a fé católica.
forma indireta quando se refere ao líder dizendo que suas ações demonstram a ação de
equiparar-se a Cristo:

A revelação, que culminou no Evangelho de Jesus Cristo, é definitiva e obrigatória


para sempre, não admite complementos de origem humana, e muito menos sucessões
ou substituições por revelações arbitrárias, que alguns corifeus modernos
pretenderiam fazer derivar do chamado mito do sangue e da raça. Desde que Cristo,
o Ungido do Senhor, consumou a obra da redenção, quebrando o domínio do pecado
e tornando-nos merecedores da graça de chegar a ser filhos de Deus, desde aquele
momento não se deu aos homens nenhum outro nome sob o céu, para conseguir a
bem-aventurança, senão o nome de Jesus . Por mais que um homem encarnasse em
si toda a sabedoria, todo o poder e toda a pujança material da terra, não poderia
assentar fundamento diverso daquele que Cristo colocou. Aquele que, com sacrílego
desconhecimento das diferenças essenciais entre Deus e a criatura, entre o Homem-
Deus e o simples homem, ousar colocar-se ao nível de Cristo, ou pior ainda, acima
d'Ele ou contra Ele, um simples mortal, ainda que fosse o maior de todos os tempos,
saiba que é um profeta de fantasias a quem se aplica espantosamente a palavra da
Escritura: 'Aquele que mora nos céus zomba deles' (Sal 2,4). 1019

A encíclica também motivava aos católicos à manterem fidelidade à religião católica


sem medir sacrifícios, se necessário sofrendo até as últimas consequência, pois leigos e 197
principalmente sacerdotes, religiosos e religiosas também estavam sendo levados aos campos 4
de concentração. Dirigindo-se aos religiosos católicos da Alemanha o texto incentivava a serem
virtuosos e corajosos:

A todos aqueles, que conservaram para com seus Bispos a fidelidade prometida no
dia do Crisma e da ordenação, àqueles que, no cumprimento de seus deveres
pastorais e familiares, tiveram e têm de suportar dores e perseguições - alguns até
serem encarcerados ou mandados a campos de trabalho -, a todos estes chegue a
expressão de gratidão e a benção do Pai da Cristandade. Nossa gratidão paterna se
estende igualmente aos consagrados de ambos os sexos, uma gratidão unida a uma
participação íntima pelo fato de que, como consequência de medidas contra as
Ordens e Congregações religiosas, muitos foram arrancados do campo de uma
atividade bendita e para eles gratíssima. Se alguns sucumbiram e se mostraram
indignos da sua vocação, seus erros, condenados também pela Igreja, não diminuem
o mérito da grandíssima maioria que com desinteresse e pobreza voluntária se
esforça por servir com plena entrega ao seu Deus e ao seu povo. O zelo, a fidelidade,
o esforço em aperfeiçoar-se, a solícita caridade para com o próximo e a prontidão

1019
PIO XI, Carta Encíclica Mit brennender Sorge,1937, nº 20. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/pius-
xi/es/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_14031937_mit-brennender-sorge.html >
benfeitora daqueles religiosos cuja atividade se desenvolve nos cuidados pastorais,
nos hospitais e na escola, são e seguem sendo gloriosa aportação ao bem-estar
público e privado. Que não se deixem abater. Um tempo futuro mais tranquilo lhes
fará justiça mais que a turbulência que atravessamos. 1020

O encerramento da carta encíclica demonstrou que Pio XI sabia das possíveis


consequências que geraria a divulgação da mesma, mas que não poderia abster-se frente aos
acontecimentos da época:

Temos pesado cada palavra desta encíclica na balança da verdade e, ao mesmo tempo, do amor.
Não queríamos, com um silêncio inoportuno, ser culpados de não ter esclarecido a situação,
nem de ter endurecido com um rigor excessivo o coração daqueles que, estando confiados na
nossa responsabilidade pastoral, não nos são menos amados porque caminhem agora por vias
do erro e porque se tem distanciado da Igreja. Ainda que muitos desses, acostumados aos modos
do novo ambiente, não têm senão palavras de ingratidão e até de injúria para a casa paterna e
para o Pai mesmo; ainda que esqueçam quão precioso é o que eles tem desvalorizado, virá o
dia em que o espanto que sentirão com seu afastamento de Deus e por sua indigência espiritual
pesará sobre esses filhos hoje perdidos, e o arrependimento saudosista os conduzirá novamente
ao “Deus que alegrou sua juventude” ( Salmo 42,4) e a Igreja, cuja mão materna lhes ensinou
o caminho até o Pai celestial. Acelerar esta hora é objetivo de nossas incessantes pregações.
1021 197
5
O texto de Pio XI foi enviado para a Alemanha com a ordem de ser lido na homilia das
missas de Domingo de Ramos, em todas as Igrejas alemãs. Tal ação provocou um severo
esfriamento das relações diplomáticas e perseguições aos católicos. Carletti (2012) afirma que,
em maio de 1937, 1.100 padres e religiosos foram levados às prisões do Reich e, em 1938, 304
sacerdotes católicos foram deportados para Dachau, na Alemanha.

As leis anticlericais afetariam também o clero alemão sendo que muitos foram atingidos
pelas ações nazistas e até mesmo deportados para os campos de concentração, exceto aqueles
que apoiavam o regime e o Füher.

1020
PIO XI, op. cit.
1021
PIO XI, op. cit.
3. Capítulo III - Pontificado de Pio XII

Pio XII foi escolhido como pontífice romano próximo ao inicio da Segunda Guerra
Mundial, por já conhecer a realidade que a Igreja vivia em relação ao cenário mundial seu
governo assumiu uma postura imparcial, porém contrária ao conflito. Em agosto de 1939 emitiu
uma mensagem divulgada pela rádio vaticana em uma tentativa diplomática se manifestou em
relação à esfera que antecedeu o conflito: “O perigo é iminente, mas ainda tem tempo. Nada se
perde com a paz. Tudo pode ser perdido com a guerra. Que os homens voltem a compreender-
se. Recomecem as negociações.” 1022.

Lebec (1999) afirma que diante da expansão do nacional-socialismo na Europa, as


primeiras tentativas de Pio XII foram de combatê-lo mas, por pedido de diversos cardeais,
principalmente dos poloneses, o papa optou por agir de forma indireta e buscou proteger a Igreja
Católica como instituição, assim como os católicos, principalmente, os das zonas de guerra e,
também, manter o Vaticano como um reduto de judeus refugiados.

Segundo Rendina (1993, p. 652) pelo fato de não poder influenciar de forma efetiva o
desenrolar do conflito a ação de Pio XII na maioria das vezes passava despercebida como o
197
apoio aos “canais” criados em favor dos refugiados da guerra. Um grande número de pessoas, 6
dentre eles muitos judeus encontraram refúgio no Vaticano onde encenavam serem membros
da Cúria, Pio XII também usou de seus contatos e alianças desde suas viagens com os Estados
Unidos para que muitos fugitivos da Guerra pudessem cruzar o Atlântico em busca de paz
(THOMAS, 2013). Em regiões da Palestina e na Hungria, bispos e cardeais foram figuras
importantes na proteção dos judeus axiliando na fuga de muitos deles. Assim como sacerdotes
se envolveram nos assuntos referentes a Segunda Guerra Mundial na Europa na tentativa de dar
refúgio aos perseguidos peloS nazistas, também houve eclesiásticos que apoiaram o partido
alemão, na própria Alemanha , Croácia e em outros países (DESCHNER,1995) .
Em pouco tempo de pontificado, Pio XII entendeu que para manter-se no cenário
mundial era necessário o máximo de cautela, por isso a posição do papa condenava os atos sem
condenar os autores. Como afirma Carletti (2012) “A antiga e experiente diplomacia de cunho

1022
PIO XII. Mensagem Radiofônica “Un’ora grave” aos governantes e aos povos no iminente perigo da guerra.
24 de agosto de 1939. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/pius-xii/pt/speeches/1939/documents/hf_p-
xii_spe_19390824_ora-grave.html>. Acesso em: 02 de junho, 2016.
realista da Santa Sé também ensinara a Pio XII que era importante manter-se por quanto
possível acima das disputas para poder conservar margem de manobra política suficiente em
caso de mudança do jogo político internacional”.

No natal de 1942, Pio XII proferiu um discurso retransmitido pela radio Vaticana que,
para muitos, era condenatório à realidade vivida na Europa. Com palavras incisivas afirmou:

Esta guerra mundial e tudo quanto se relaciona com ela, sejam os precedentes
remotos ou próximos, ou seus procedimentos e efeitos materiais, jurídicos e morais,
que outra coisa representa senão o esfacelo, inesperado talvez para os incautos, mas
previsto e deplorado pelos que penetravam com o seu olhar até ao fundo de uma
ordem social que debaixo do enganoso rosto ou máscara de fórmulas convencionais
escondia a sua fatal debilidade e o seu desenfreado instinto de lucro e poderio? O
que em tempos de paz jazia comprimido explodiu, ao romper da guerra, numa triste
série de atos em oposição com o espírito humano e cristão. (...) Este voto deve-o a
humanidade aos inumeráveis mortos que jazem nos campos de batalha: o sacrifício
da sua vida no cumprimento do seu dever e o holocausto a favor duma nova e melhor
ordem social.Este voto deve-o a humanidade à infinda e dolorosa fila de mães, viúvas
e órfãos que viram arrancar-lhes a luz, a consolação e o sustento da sua vida. Este
voto deve-o a humanidade aos inumeráveis desterrados que o furacão desta guerra
desarraigou da pátria e dispersou por terras estranhas.Este voto deve-o a
humanidade às centenas de milhares de pessoas que sem culpa nenhuma da sua parte,
às vezes só por motivos de nacionalidade ou raça, se vêem destinadas à morte ou a 197
um extermínio progressivo.1023
7
Para Grigulevich (1982), a opção de Pio XII de manter silêncio diante dos
acontecimentos mundiais se devia a preocupação com os fiéis e prelados que se encontravam
nas zonas de conflito. Segundo Gordon Thomas (2003) a força tarefa montada pela Santa Sé
para esconder os judeus foi de grande magnitude. De outro lado, mesmo com o silêncio, ou por
não enfrentar seus inimigos de forma direta, não impediu que muitos sacerdotes e religiosas
católicas fossem levados para os campos de concentração. Diante da realidade que se
apresentava a ação de Pio XII tinha um significado e estava nos planos estratégicos da
geopolítica vaticana, o que expressava uma diplomacia realista, agir de forma calculada e
aproveitando as oportunidades para alcançar o êxito mais próximo aos objetivos desejados.

1023
PIO XII. Mensagem Radiofônica .Natal de Guerra, aos povos do mundo inteiro. 24 de dezembro de 1942.
Disponível em:<http://w2.vatican.va/content/pius-xii/it/speeches/1942/documents/hf_p-
xii_spe_19431224_radiom-natalizio-popoli.html>. Acesso em: 02 out 2016.
CONCLUSÃO

O inicio da década de 30, século XX, foi um período difícil para a política vaticana, de
muitas transformações internas e novos cenários que se configuravam mundialmente. A
pesquisa destaca que, apesar do modo silencioso e imparcial, a Santa Sé tomou posições
políticas que influenciaram diretamente nos assuntos religiosos internos.

A proximidade de Pio XI com o partido fascista e o nazista duraram até que as


concordatas assinadas não fossem respeitadas pelos dirigentes italiano e alemão, apesar das
primeiras atitudes terem amenizado os fatos, as relações diplomáticas entre a Santa Sé e o Reich
ficaram conturbadas com o desenrolar dos acontecimentos.

Pio XI e o Cardeal Pacelli possuíam opiniões muito próximas no que se referia a


Alemanha e ao que estava ocorrendo na Europa. O temor ao comunismo e o devido combate a
tal ideologia sempre foi algo marcante na diplomacia vaticana no decorrer da história, o que
muitos autores argumentam ser o motivo pelo qual a Santa Sé não repreendeu as políticas 197
nazistas em seu principio.
8
A encíclica produzida por Pio XI e seu Secretário de Estado marcou a relação com a
Alemanha e também foi a maior manifestação católica sobre assunto, pois a partir da sua
publicação as políticas de Pio XII foram de maior imparcialidade. Com o aumento das
perseguições aos católicos nas regiões de conflito era dever da Santa Sé aplicar políticas que
atingissem também esse grupo. Mesmo após a intervenção com a carta encíclica, criticando as
ações nazistas, a Santa Sé buscou, posteriormente, amenizar as relações com o Reich, pois
mesmo diante do impasse entre criticas e omissões, reconhecia que poderia sofrer graves
represálias.

A diplomacia da Santa Sé, principalmente nos pontificados de Pio XI e Pio XII, é


marcada pela busca de espaço e manobras políticas. Sendo os dois pontífices detentores de uma
vasta experiência diplomática, buscaram condenar as ações políticas, mas não o Estado alemão.
Essa maneira de governar faz com que o embate nas relações políticas seja minimizado, pois as
críticas são em grande parte, feitas de forma indireta e impessoal.
O pontificado de Pio XI, no período entre guerras, buscou estabelecer uma base e uma
forma de governar que Pio XII procurou seguir de forma mais flexível e com posições mais
amenas o que gerou na história interrogações em relação ao apoio que a Santa Sé teria dado ao
nazismo.

No período em que as relações internacionais da Santa Sé buscavam fortificar-se e as


nações europeias viviam a instabilidade das frágeis democracias, e o conflito da Segunda
Guerra Mundial era iminente, o cenário internacional exigiu uma posição da Sé católica. Se, a
linha política de Pio XI foi mais severa que a de Pio XII, pode-se atribuir ao cenário
internacional, devido a crescente perseguição, não somente aos judeus, mas também devido a
perseguição aos católicos. A alternativa encontrada por Pacelli foi evitar criticar os
acontecimento de forma direta e encontrar alternativas para mediar e proteger suas políticas,
seus fiéis e sua soberania.

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dezembro de 1942. Disponível em:<http://w2.vatican.va/content/pius-
xii/it/speeches/1942/documents/hf_p-xii_spe_19431224_radiom-natalizio-popoli.html>.
Acesso em: 02 out 2016.
A ESPIONAGEM NAZISTA NO RIO GRANDE DO SUL NO ESTADO NOVO*

Luiz Francisco Matias Soares**

RESUMO

Neste artigo, analisamos algumas questões referentes à espionagem internacional e ao


Nazismo, durante o Estado Novo brasileiro. Nossa motivação se prende à relevância do tema
que ainda deve ser estudado para que seja lançada luz a muitas questões em aberto para o
nazismo no Brasil durante esse período.

Palavras-chave: Espionagem; Nazismo; Estado Novo.

198
1. Capítulo I – A espionagem
1
A espionagem foi executada para monitorar o movimento dos portos, navios com
armamentos dos aliados, mas também buscou novas formas de penetração no sentido de
prospectar sustentação do esforço de guerra, gerou diversas linhas de procedimentos técnicos e
burocráticos ligando a sustentação da máquina de guerra.

O Reich soube engendrar o ideal político e militar do nazismo. Este, gerando um


conjunto de ideias justificadoras para escala mundial. Neste aspecto, como estratégia, a
espionagem serviu muito bem para conhecer o que os outros estavam fazendo e como deveriam
se movimentar no implemento de seus objetivos militares.

*
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
**
Doutorando em História pelo PPGH – UPF. E-mail: mat_luiz@hotmail.com.
Segundo Antony C. Sutton, em sua obra Wall Street And The Rise of Hitler(Wall Street
e a Ascenção de Hitler), ao analisar esta faceta, até bem pouco tempo atrás, quase inexplorada
do Nazismo, relacionada a questão de sua sustentação econômica. Relacionou, assim, a
assunção do desenvolvimento alemão com o interesse da economia mundial, ligando-o à uma
“rede” financeira internacional e aos grupos econômicos com interesses bem definidos que a
suportaram desde o plano de reconstrução do pós-primeira guerra, com grandes investimentos
na Alemanha até chegarem nas décadas de 1920-30, para lucrar com a economia
desenvolvimentista Alemã.

Sempre foram baseados no retorno dos investimentos via Bolsa de Valores de Wall
Street. Para tal implemento, era necessário arrecadar, manter a roda moderna da economia
girando e superar na produção industrial, num primeiro momento, não importando a bandeira
nacional e sim a parceria econômica. Somente com o transcorrer da entrada dos EUA na Guerra
é que se identificariam as nações definitivamente entre aliados ou os inimigos diretos, na
economia e no front, como a Inglaterra e Estados Unidos.

198
2
Behind the batle fronts in World War II, trough intermediaries in Switzerland and
North Africa, the New York financial elite collaborated with the Nazi regime.
Captured files after the war yielded a mass of evidence demonstrating that for some
elements of Big Business, the period 1941-5 was “business as usual.” For instance,
correspondence between U.S. firms and their French subsidiaries reveals the aid
given to the Axis military machine – While the United States was at war with Germany
and Italy. Letters between Ford of France and Ford of the U.S. between 1940 and
July 1942 were analyzed by the Foreign Funds Control section of the Treasury
Departament. Their initial report concluded that until mid-1942:(1) the busines of the
ford subsidiaries in France substantially increased; (2) their production was solely
for the benefit of the Germans and the countries under its occupation; (3) the Germans
have “show clearly their wish to protect the Ford interests” because of the attitude of
strict neutrality maintained by Henry Ford and the late Edsel Ford; and (4) the
increased activity of the French Ford subsidiaries on behalf of the Germasn received
the commendation of the Ford Family in America. 1024

A tradução mostra o envolvimento da economia na guerra, diz que: “Atrás das frentes
de batalha na II Guerra mundial, através das intermediárias na Suíça e na África do Norte, a

1024
SUTTON, Antony C. Wall Street And The Rise of Hitler. GSC & Associates, San Pedro, California, USA,
2002, p. 149.
elite financeira de Nova Iorque colaborou com o regime Nazista. Arquivos capturados após a
Guerra renderam uma grande evidência demonstrando que para os Grandes Negócios o período
de 1941 até 1945 teve 'negócios dentro da normalidade'. Para instância, a correspondência entre
as firmas dos USA e os seus subsidiários franceses revela que o socorro dado a máquina militar
Axis – enquanto os Estados Unidos estavam na guerra com a Alemanha e a Itália. Cartas entre
a Ford da França e a Ford dos Estados Unidos entre 1940 e julho de 1942 foram analisadas pelo
setor do Departamento de Tesouraria da Fundação de Controle Estrangeiro. Seu relatório inicial
concluiu que até a metade de 1942: (1) os negócios dos subsidiários da Ford na França foram
substancialmente aumentados; (2) a produção deles foi unicamente para o benefício dos
Alemães e dos países sob seu comando; (3) os Alemães tem 'mostrado claramente seu desejo
de proteger os interesses da Ford' porque da atitude de estreitar a neutralidade mantida por
Henry Ford e mais tarde Edsel Ford; e (4) a atividade aumentada dos subsidiários da Ford da
França em favor dos Alemães recebeu elogios da Família Ford Americana”.
Para atender a este novo ritmo, o Nazismo adquiriu um formato de prospecção
internacional, que superava negociações comerciais feitas à luz do dia, os nazistas, no caso
desta pesquisa, mas, sabemos, não só eles, atuavam também com redes de espionagem militar 198
e industrial, separadas em células autônomas, e ao mesmo tempo ligadas ao Alto Comando
Alemão do Terceiro Reich. Buscavam, assim, no nazismo internacional: 1) sustentar a 3
arrecadação financeira e retornar em forma de investimentos na indústria de guerra alemã; 2)
identificar as posições inimigas e seus navios para afunda-los em alto mar, detendo o
fornecimento de matéria-prima, incrementos alimentares, tecidos e material bélico.

Para Bauman (1989), ao analisar o quadro daquele período na Alemanha e Europa do


Holocausto, viu os efeitos do que denominou de auge da modernidade. Para ele, ao fazer uma
imersão do quadro pela pesquisa histórica, foi possível perceber a modernidade, com suas
tecnologias e critérios racionais quando o Estado representado pelo “serviço público infundiu
nas outras hierarquias seu planejamento seguro e de sua minúcia burocrática. Do exército a
máquina de destruição adquiriu sua precisão militar, sua disciplina e insensibilidade”
(BAUMAN, 1989, p.33).

Neste aspecto, complementamos a ideia de que a economia e a ação militar, ao


procurarem eficiência e precisão, assim como aumento de produção e maior arrecadação
utilizaram, inclusive, a espionagem e não se preocuparam com as soberanias nacionais de países
como o Brasil. Tratava-se assim, a disputa pelos mercados e a racionalização pelos resultados,
como o objetivo a alcançar, custe o que custar. Vemos ai, similaridade com o pensamento de
Bauman: efeitos de uma modernidade que superava o interesse de preservar a vida humana,
fronteiras e soberanias.1025

Este conjunto que agia em sincronismo tinha identificação com o regime fordista de
produção e funcionava como máquina em linha de produção em série, quando um espião era
identificado, haviam muitos outros para reposição. A nosso ver, há características ainda mais
similares na análise de Zigmund Bauman que são possíveis de verificar também em nosso
objeto de estudo, vemos proximidade em Bauman quando ele percebeu que a “influência da
indústria se fez sentir na grande ênfase dada à contabilidade, à economia de tostões e à
preservação de recursos, assim como à eficiência industrial dos centros de extermínios.”
(BAUMAN,Idem). Seguimos pelo empuxe dado a economia que imprime certa dose de ‘na
guerra pelo mercado, vale tudo’. Nesta linha, o nazismo fez valer pela arrecadação monetária e
a vantagem da localização do inimigo pela informação prévia, a utilização das redes de
espionagem. 198
Assim, além de servir como possibilidade de conhecer os passos dos aliados com a 4
movimentação de matérias primas e armamentos, a partir de uma rede internacional até os
portos marítimos brasileiros, em especial, para o Rio Grande do Sul, é o que nos propomos a
analisar neste capítulo1026.

2. Capítulo II - O esquema internacional

1025
Sobre o desprezo pela vida e a eficiência da modernidade nazista, ver mais em: BAUMAN, Zygmunt.
Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
1026
Não é nosso objetivo, neste trabalho falar diretamente sobre o Holocausto, mas sabemos que a arrecadação
econômica se valeu dos trabalhos forçados nos campos de concentração como na Polônia. Auwschivtz, por
exemplo, antes do implemento da ‘Solução Final’ em suas linhas de montagens escravas, serviam como forma de
arrecadação na medida em que a mão de obra escrava laborava sem pagamento. Ver mais em: BAUMAN,
Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
Como já vimos, o Nazismo implementou-se com uma base via relações internacionais
de prospecção para a sua sustentação. Para isto, a espionagem internacional, militar assumiu
papel notável de apoio no seu funcionamento.

A estratégia contava com a espionagem. Esta seguiu planos e métodos bem elaborados
pela inteligência do Alto Comando Alemão. O conjunto de ações buscava implementar, com
auxilio da espionagem, ações que seriam combatidas pelo aparato policial repressivo da Deops
no Estado Novo.

A espionagem era um suporte para a mola mestra movimentadora da máquina de guerra


alemã, os espiões acabavam utilizando disfarces e desempenhavam papel de contato. Serviam,
depois de 1939, para identificar ações “inimigas” como abastecimento de matéria-prima e
bélica por navios e rotas para informarem via transmissão de rádio ou códigos, a fim de que as
embarcações fossem afundadas em alto mar.

A Alemanha do final do século XIX e início do século XX corria para se equiparar neste
sentido. Depois da derrota na Primeira Guerra, aos poucos a Alemanha foi se direcionando para
a elaboração de um sistema de controle da América do Sul. Neste aspecto, Seitenfus (2003, 198
p.16) observa que “A obtenção de matérias-primas [consistiu] num dos objetivos essenciais da
política comercial alemã. Conforme circular n. 13, de junho de 1934, dirigido por Ulrich,
5
conselheiro do diretor do Departamento de Economia da Wilhelmstrasse (Ministério das
Relações Exteriores da Alemanha), a todas as missões diplomáticas alemãs no exterior. In
Documents on German Foreign Policy (DGP), v. III, p. 26-36.”

As fábricas da Europa possuíam áreas comerciais que desempenhavam, junto com o


sistema bancário, um importante papel de prospecção de novas contas e assim garantiam
remessas de matéria-prima para transformação na Europa. As encomendas retornavam em
forma de produtos industrializados já que a os países da América do Sul não possuíam parques
industriais capazes de atender a demanda de uma população que crescia e se desenvolvia cada
vez mais com a urbanização.

No Velho Mundo, os países que possuíam indústria disputavam mercados, no século


XX, perseguiriam espaços para garantir o fornecimento de matérias-primas e para escoar a
produção e atender o consumo e assim se capitalizar. O imperialismo do século XIX, elaborado
para garantir as colônias na África, Ásia e atender suas demandas. Para a América do Sul a
estratégia nazista também estaria voltada para a prospecção.

Cabe ressaltar que, os demais países imperialistas também adotavam métodos que
envolviam a utilização de redes de espionagem industrial e militar. A economia era tratada
como assunto de Estado e como tal, a espionagem e a utilização de todo um arcabouço voltado
para a competição na economia era tratada como assunto de primeira grandeza. A Inglaterra
possuía uma rede de informações ligadas à Marinha Real em todo o mundo. Neste trabalho,
focaremos na atuação nazista, seus agentes e células de espionagem que em rede internacional
atuaram na América do Sul e focamos nas ações regionais no Rio Grande do Sul, para
entendermos as ações repressoras da Deops no período do Estado Novo.

3. Capítulo III - O Rio Grande do Sul como parte do esquema internacional

A produtividade e a eficiência dos negócios da Alemanha no atendimento dos mercados


198
na América do Sul, já no pós Primeira Guerra Mundial, fez com que seus rivais ingleses se
preocupassem cada vez mais com o avanço em direção dos negócios estratégicos do 6
imperialismo inglês.

De outro lado, os Estados Unidos da América do Norte, procuram desenvolver ligações


com a América do Sul. O raio de influência dos norte-americanos era muito baseado na questão
econômica. Mas, a Alemanha conseguia manter-se com bom relacionamento com os países Sul-
americanos, contrabalançando com a importação os negócios voltados para a mineração,
produção de alimentos, algodão. Faz-se daí um mercado interessante para a América
Meridional.

Além da esfera comercial, no tocante à dominação expansionista, voltada para a garantia


de um espaço vital para a Alemanha, Seitenfus (2003, p.16) descreveu uma preocupação que
preconizava uma dominação na América do Sul, com países fornecendo matéria-prima e sendo
protetorados com certa parcela de autonomia. Diz que “Na Alemanha, autores como Otto, R.
Tannenberg esforçam-se para justificar a necessidade de encontrar um espaço vital para a
Alemanha.
Há diversas bibliografias da época que apontam uma linha estratégica para a construção
de um aproveitamento, por vezes territorial, o chefe de polícia do Rio Grande do Sul, no período
da intervenção do Estado Novo, Aurélio da Silva Py (1942), observou na obra de Tannenberg,
passagens que incluíam a América Meridional Alemã como fornecedora, na zona temperada,
de um terreno de colonização, prevendo ainda para antes da década de 1950, a subjugação da
América do Sul pela Alemanha Nazista, a seguinte afirmação de Tannemberg também foi
anotada por Py(1942) que O Chile e a Argentina poderiam conservar a sua língua e uma certa
autonomia. Mas, seria exigido que, nas suas escolas, o alemão fosse segunda língua. No Sul do
Brasil, no Paraguai e no Uruguai, alemão seria a língua nacional”.1027

Ainda sobre Tannenberg, agora visto por Seinteifus (2003,p.16), “No que diz respeito
ao Brasil. A região meridional do Brasil, Mato Grosso do Sul e Goiás, bem como os estados de
Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo, na condição de regiões de “cultura alemã”,
deverão adotar o alemão como língua nacional. Tannenberg preconiza a divisão da América do
Sul (Centro e Norte para a Grã-Bretanha; o Noroeste e a América Central seriam dos Estados
Unidos)”.

No livro “Gross Deutschland die Arbeit des XX Jahrhunderts”, publicada em francês


198
(Lausanne, Payot, 1916, 338 p.) sob o título Las Plus Grande Allemagne: I´oeuvre du XXème 7
siède, o autor trata também do caso da América Latina como colônia alemã. Ele, também aspira
a criação de um “território alemão” na parte meridional da América do Sul, englobando o Chile,
a Argentina, o Uruguai, o Paraguai e o sul da Bolívia. Esses países poderão conservar uma certa
autonomia, mas permanecerão sob a proteção e a influência preponderante da Alemanha”.

O interesse alemão pela América Meridional, onde localiza-se o Rio Grande do Sul, era
para viabilizar o espaço necessário ao desenvolvimento da economia e fornecimento de matéria-
prima, mola mestra das indústrias, que faria com que houvesse a superação da falta de espaço
vital naquele momento, fator que impedia a liderança da Alemanha, primeiro na Europa, depois
no mundo. Este espaço, o Lebensraum, quer dizer, em alemão, “espaço para viver”.

Isto também fazia com que a Alemanha buscasse ainda em outras regiões, como na
África, o abastecimento de energia como o petróleo ou fornecimento de outros minérios,

1027
Ver mais em: Py, Aurélio da Silva. A 5ª Coluna no Brasil, 3ª ed. Porto Alegre: Globo, 1942.
borracha e alimentos que poderiam ser explorados perfeitamente na América do Sul. A questão
era: Como conquistar estes mercados e territórios sem dispender de grandes e rápidas
movimentações de tropas ultramarinas?

Sem dúvida, uma manobra muito distante significava calcular longa e dispendiosa
campanha militar. Antes, havia espaços a serem conquistados, militarmente, na Europa e
regiões mais próximas. Há, na questão da necessidade de espaço para o desenvolvimento, uma
grande motivação em que o Estado nazista incluiria a América do Sul e o Brasil como
possibilidade de formar o seu Lebensraum. Planejamento, estratégia, investimentos econômicos
e espionagem militar. Seriam os poços adotados.

4. Capítulo IV - A espionagem e o Estado Novo

Para a estratégia militar, uma manobra muito distante significava calcular a longa e
dispendiosa campanha militar. Antes, haviam espaços a serem conquistados militarmente na
198
Europa e regiões mais próximas. Havia a necessidade de espaço para o desenvolvimento. Era
uma grande motivação em que o Estado nazista incluiria a América do Sul e o Brasil como 8
possibilidade de formar o seu Lebensraum. O planejamento, a estratégia, os investimentos
econômicos e a espionagem militar seriam os passos adotados.

Foi montada uma estratégia contando com a infiltração de elementos treinados pelo Alto
Comando Alemão e monitorados pela Gestapo. Além de terem o suporte da Embaixada Alemã
no Rio de Janeiro e os Consulados espalhados pelos estados brasileiros, incluiriam o braço
político e ideológico alemão do NSDAP, Deutsche Arbeiter Partei, ou traduzindo para o
português, Partido dos Trabalhadores Alemães. Toda a atividade seguiu aproveitando-se das
deficiências organizacionais brasileiras. 1028 No começo, em 1935, o chefe de polícia do Distrito
Federal, Filinto Müller, em função do combate ao comunismo, aproximou-se das autoridades
alemãs no Brasil.

1028
Amorim, Aluízio Batista de. Nazismo em Santa Catarina. Florianópolis: Insular, p. 55, 2000. Segundo relata
Amorin: “A história do Partido Nazista começou na Bavieira, onde foi fundado em 1919 pelo ferroviário Anton
Drexler, com o nome de Deutsche Arbeiter Partei (Partido Operário Alemão)”.
Em novembro daquele ano, havia rumores de levante comunista. O Estado brasileiro
solicitou a cooperação entre as autoridades policias brasileiras e alemãs. O anticomunismo fez
com que Filinto Müller buscasse um suporte, um aparato policial internacional que conhecesse
as ações comunistas na origem. Em setembro de 1936, Müller procurou o embaixador alemão,
no Rio de Janeiro, Arthur Schmidt-Elskop para fomentar a aproximação e o treinamento da
temida Gestapo, a Geheime Staatzpolizei. 1029

O nível de cooperação ao que estamos nos referindo, foi possível, naquele momento,
devido ao Brasil assumir uma condição de neutralidade, que ora tendia para o lado alemão e
mantinha um bom nível de relacionamento. Entre os países que disputavam mercados e
fornecedores de matérias-primas, a Alemanha buscava implementar sua presença no Brasil. A
aproximação era profundamente desejada pelas duas partes, tanto que ainda em 1936, foi
proposto um acordo secreto pelo Almirante Wilhelm Canaris que exercia o comando do Abwer,
Serviço Secreto que contava com espiões, contra espiões e sabotadores em todo o mundo e
também era subordinado ao Alto Comando Alemão.1030

Este quadro viabilizou o desenvolvimento do braço político Alemão no Brasil até o Rio
Grande do Sul. Com maior espaço, o partido alemão, NSDAP, pode se movimentar
198
confortavelmente. Este ganhou maior volume com a subida de Hitler ao poder, em 1933. Até 9
chegar à 1938, ano da proibição dos partidos políticos pelo Estado Novo no Governo Vargas e
o consequente impedimento de atividades estrangeiras no Brasil.1031

Mas, já em 1937, antes da proibição, os nazistas estavam sendo monitorados pelo Estado
brasileiro. No aspecto geral, como já se sabia, havia um grande interesse e investimento alemão
em uma estratégia nazista mundial. Porém, à medida que o tempo foi passando, os contornos
econômicos e militares foram se caracterizando num regime totalitário na Alemanha e o mundo,
inclusive no Brasil, passou a observar os movimentos nazistas com maior atenção. O Alto
Comando Alemão criou a Auslandorganization e destinou uma verba de 262 milhões de marcos

1029
Hilton, Stanley E. Suástica sobre o Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
1030
Ibidem.
1031
Py, Aurélio da Silva. A 5ª Coluna no Brasil, 3ª ed. Porto Alegre: Globo, 1942.
para a penetração do nazismo no estrangeiro, repassando deste valor, 20 milhões de marcos
para a Gestapo1032.

A Gestapo era tão temida, até pelos próprios nazistas. Quando no front, usava uniformes
negros e era uma fração de elite dentro das tropas militares nazistas. Quando em outras
operações, mesmo assim, seus agentes eram temidos, usavam ternos escuros, casacos de couro
negro. Apavoravam os outros agentes nazistas, aos quais treinavam e forneciam equipamento
para espionagem no exterior, além de monitorá-los.

Em resumo, a Gestapo era a eficiência de um organismo da modernidade. Havia 2.450


agentes diretos e mais inúmeros indiretos, contando com o suporte das embaixadas e
consulados.1033 Com um investimento tão grande, só na parte da espionagem, é de se supor que
o Estado Alemão não o fizesse sem suporte, parcerias econômicas e sem contabilizar o retorno
de cada níquel calculando-o com uma probabilidade de risco reduzido, como vimos a eficiência
e a insensibilidade eram efeitos da modernidade. Esta composição, até antes do começo da
Segunda Guerra, em 1939, contava com investimentos e planejamento econômico e o
monitoramento da Gestapo, indiretamente, também no esquema financeiro.
199
Ou seja, como falavam os antigos “o dinheiro chama dinheiro”. Assim, a Alemanha
buscou em países como o Brasil, estabelecer relações econômicas, inserindo o seu braço
0
político ideológico, o NSDAP, o suporte e o aparato militar, além do monitoramento das frações
de elite como a Gestapo. As relações comerciais eram acompanhadas pelos militares e o
interesse do Estado Alemão em prospectar via Serviço Secreto o maior número possível de
subsídios, também no Brasil, para servirem ao desenvolvimento do nazismo do Terceiro Reich.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1032
Pode-se ver mais sobre as movimentações de regimes totalitários no grupo das disputas imperialistas e que no
fundo desrespeitavam a instituição das sociedades livres ao adotarem, como no nazismo, um forte aparato de
sociedades secretas e serviços secretos distribuídos no mundo. AREND, Hannah. Origens do Totalitarismo: anti-
semitismo, imperialismo,totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
1033
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199
3
A ESCRITA DA VIDA DE UM “BRASILEIRO ILUSTRE”: A REMEMORAÇÃO DO
BARÃO DO CERRO LARGO PELO BARÃO DO RIO BRANCO.*

Mariana M. Corrêa **1034

RESUMO

Este artigo tem como objetivo entender a construção da memória de José de Abreu como herói
da Guerra da Cisplatina e nacional, através do relato biográfico produzido por Paranhos Júnior,
o Barão de Rio Branco, publicado na revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB), no ano de 1865. O trabalho é pautado na analise da fonte, através da compreensão da
concepção histórica do autor. O contexto de análise é o do segundo reinado e da produção
historiográfica do Instituto, instituição responsável pela consolidação das memórias oficiais do

199
Brasil do período como história. A pesquisa aborda como a memória de José de Abreu era um
meio para construção da identidade nacional brasileira, formada a partir do elogio e glorificação
do herói nacional. Elaboramos, portanto, aspectos de como a memória se relaciona com a 4
identidade e o poder a partir da abordagem conceitual de “memória forte” de Joël Candau.

Palavras-chave: Memórias; Instituto Histórico Geográfico Brasileiro; Guerra da Cisplatina.

INTRODUÇÃO

*Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria. Se insere
no Projeto de Mestrado: Fronteira aberta: Construção social do poder e a apropriação de recursos entre os
potentados locais nos confins meridionais do Império luso-brasileiro (1800-1830), financiado pela CAPES-DS.
** Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-
mail: marianamilbradt@gmail.com.
O Barão do Cerro Largo, José de Abreu, foi um célebre político e militar que lutou nas
guerras de conquista do sul do Brasil nas primeiras décadas do século XIX. Entre os
enfrentamentos mais famosos daquela época estavam: a marcha dos luso-brasileiros para oeste
do Continente de São Pedro, com a conquista e ocupação da região dos Sete Povos das Missões
Guaraníticas; a guerra contra Artigas, que levou à invasão da Banda Oriental pelas tropas luso-
brasileiras e a consequente incorporação da Província Cisplatina, e por fim, episódio mais
relevante para compreensão desse trabalho, a independência do Uruguai através da Guerra
Cisplatina (1825-1828).

De maneira geral, esse foi um período fundamental na constituição das hierarquias e


poder nos Confins Meridionais do Império luso-brasileiro, bem como na própria conformação
do território nacional. Os olhares dos historiadores do século XIX que se voltaram sobre esse
momento e sobre José de Abreu, deram diferentes sentidos às disputas que colocaram em
oposição portugueses e espanhóis, orientais, castelhanos e brasileiros. Para além da alteridade
da construção e instituição de uma fronteira entre o nós e outro, a memória acerca desse período
foi permeada pela busca de heróis e culpados pela perda do território oriental na juventude do
Império Brasileiro. 199
Uma importante narrativa que ajuda a construção da memória de José de Abreu como 5
um herói nacional é o ensaio biográfico publicado no ano de 1865 na revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e produzido por Paranhos Júnior, o Barão de Rio
Branco, historiador, advogado e diplomata brasileiro, que viveu na segunda metade do XIX e
primeira década do Século XX.

A biografia, publicada um ano após o início da Guerra do Paraguai, apontava para um


antigo conflito da Região do Prata, que havia tido, até então, pouca repercussão entre os
historiadores brasileiros. A partir da memória do conflito, o Barão do Rio Branco definiu uma
visão de José de Abreu como grande herói da Cisplatina e da nação. Dessa forma, focamos
essa pesquisa no contexto do segundo reinado e da produção historiográfica do IHGB nos seus
primeiros anos.

A partir da leitura da fonte surgiram os questionamentos que orientaram esse trabalho.


Afinal, qual a representação de José de Abreu foi consolidada pelo autor e a serviço de que
concepções acerca do passado ela foi construída? Da mesma forma que colocamos em
questionamento as memórias construídas, também nos indagamos acerca dos poucos trabalhos
produzidos no nosso período de análise sobre a disputa da Cisplatina e até mesmo de seus heróis
instituídos, como José de Abreu, nesse sentido, perguntamos quais seriam as razões para o
esquecimento e silenciamento desse período, por que ele não se inseria como uma narrativa
histórica importante para o projeto político e histórico do Brasil Império? Dessa forma, nossa
metodologia foi pautada na analise crítica da fonte, através da compreensão da concepção
histórica do autor e sua relação com o IHGB, esse visto como instituição responsável pela
consolidação das memórias oficiais do Brasil do período.

Em busca de uma reflexão teórica mais ampla sobre as relações entre memória, poder e
identidade que nos permitisse pensar esse período encontraram aporte nas reflexões de Joël
Candau, no livro “Memória e identidade” (2011). O autor traz diversas explicações sobre as
relações que se estabelecem entre as várias dimensões da memória na construção das
identidades. Inserimos os relatos analisados no contexto de construção de uma “memória forte”,
essas entendidas por Candau como memórias estruturantes da identidade, como parte de uma
categoria organizadora de representações: “uma dimensão importante na estruturação de um
grupo e, por exemplo, da representação que ele vai ter de sua própria identidade” (p.44) . No 199
nosso caso o uso dessa memória tem como fundo a construção da identidade nacional brasileira,
6
formada a partir do elogio e glorificação do herói nacional.

Dessa forma, a pesquisa foi elaborada em cima de memórias históricas1035 acerca do


Barão do Cerro Largo, em um momento em que a historiografia servia a um propósito
identitário e nacionalista. Candau (2011) defende que a história como “filha da memória”, acaba
de ser passível de ser utilizada como meio para construção desta.

Como todo mundo, os historiadores são pegos pelo trabalho de construção social da
memória, “suas produções são apenas um dos avatares possíveis da memória social”
(M.I., Finley). A história, portanto, pode ser parcial e responder aos objetivos
identitários. Na prática, em suas motivações, seus objetivos e por vezes seus métodos,

1035
Hallbwashs (1968) conceitua a memória histórica como uma memória social diferente da pessoal, que seria a
representação do passado de maneira esquemática. Através da memória histórica os acontecimentos se relacionam
com a memória individual, ao deixar sua impressão em determinado dia ou hora e é a partir dessa impressão a
pessoa se lembrará desse momento. Essa identificação pode se estender a momentos anteriores a nossa existência
desde que possamos nos identificar como pertencentes ao mesmo grupo, a uma coletividade.
ela toma por empréstimo alguns traços da memória mesmo que trabalhe
constantemente para dela se proteger. (CANDAU, 2011, p.129)

Assim, pretendemos com esse trabalho analisar aspectos de como essa memória se
relaciona a disputas de poder e identidade. Na primeira parte desse artigo veremos algumas
considerações acerca José de Abreu e a Cisplatina que devem ser levados em conta a fim de
compreendermos melhor as preocupações de Rio Branco ao recontar esse momento.

Na segunda parte, passamos à análise da biografia escrita pelo Barão do Rio Branco,
tratando o contexto de produção e publicação do ensaio, o IHGB e sua relação com a Cisplatina,
a partir da crítica elaborada pelo Barão pelo esquecimento de um período tão importante para a
construção territorial do País, bem como as intenções do autor na construção de uma
representação de José de Abreu.

1. Capítulo I - Os conflitos da Região do Prata e José de Abreu

A questão da guerra no Brasil durante o XIX esteve ligada à pretensão da Coroa, tanto 199
lusa, como brasileira, em atingir os limites naturais que fechariam o país entre as bacias do rio 7
Amazonas, Paraguai e Uruguai. Por um breve período de tempo, entre 1811 e 1825, os desejos
imperiais pareciam mais próximos de serem realizados do que nunca. A instabilidade na região
do Prata, com a formação de novos Estados, a partir dos movimentos de independência da
Espanha, deram uma chance diplomática para Portugal intervir sem se colocar em disputa com
os países europeus. A elite militar rio-grandense, que também via nesse momento uma
oportunidade para estender seus domínios para os campos da campanha Oriental, se colocavam
dispostos a assistir os desejos imperiais (COMISSOLI, 2011; FARINATTI, 2010).

José de Abreu era um homem que já participara de outras conquistas, ganhando destaque
na corrida para oeste, em direção às Missões e aos campos das estâncias missioneiras nos
primeiros anos daquele século. Além de proteger a nova fronteira, sua missão era povoá-la, e
para tal tarefa o militar promoveu a construção da Capela de Alegrete 1036, em 1817, dando

1036
Em Alegrete a memória de José de Abreu é bastante viva até hoje, ele é visto como protetor e patrono da
cidade, dando nome a ruas, Centros de Tradições Gaúchas, e regimentos de cavalaria. Mas estudar a busca na
memória de José de Abreu um mito de origem da cidade é trabalho para outra oportunidade.
origem àquela que era, naquela época, a povoação mais a oeste nos domínios da Coroa nos
confins meridionais do Império. Quando Artigas sublevou aquela região não só o povoamento
como a manutenção das fronteiras recém-conquistadas foram postas em risco. No entanto, a
vitória das forças portuguesas garantiram o controle dessa região, e também, sobre a bandeira
da pacificação, o avanço para as terras da banda oriental, longamente desejadas, com a
incorporação da província Cisplatina (FARINATTI,2010).

Não só o desejo da Coroa se via realizado, ao finalmente chegar ao Prata, objetivo que
desde que a Colônia do Sacramento havia passado aos espanhóis parecia mais distante, quanto
os rio-grandenses envolvidos na disputa, como José de Abreu, puderam se aproveitar dos
saques, da redistribuição do butim de guerra e das novas terras incorporadas ao império. O
crescimento da província pode ser exemplificado na expansão das charqueadas na região de
Pelotas, tornada possível pela grande quantidade de cabeças de gado trazidas para a Capitania
e pelo desmantelamento dos saladeiros uruguaios. (VARGAS, 2013) Chamamos a atenção para
esse período, pois nos parece fundamental para compreender o impacto do que se passaria nos
primeiros anos do país independente, quando o Brasil sairia perdendo de uma guerra com a
província incorporada nesses anos. 199
A província Cisplatina nunca foi completamente pacificada nos anos em que pertenceu 8
ao Brasil, mas a sublevação se fortaleceu em 1825. A guerra traria grande envolvimento do
império, dos militares e população da província de São Pedro. José de Abreu foi comandante
chefe das tropas da província ao longo de boa parte do conflito. Durante toda a guerra, o Brasil
sofreu grandes revezes nas disputas contra os líderes uruguaios, motivo que levou a substituição
de Abreu do cargo. Em 1826, na Batalha do Passo do Rosário ou Batalha de Ituzaingó,
conhecida por ser um dos grandes desastres militares brasileiros, José de Abreu morreu,
segundo relatos contemporâneos teria sido alvejado por tiros de tropas amigas. Do episódio,
Abreu saiu como um herói e mártir morto em batalha, destino diferente de outros líderes da
batalha como o Marquês de Barbacena e Bento Manuel Ribeiro, sobre quem pesou a
desconfiança de muitos ou mesmo a culpa pelo desastre militar.

Por fim, em 1828, o Brasil reconheceu a independência da Banda Oriental, sendo


formado o Estado Oriental do Uruguai. O fim da guerra foi visto como um empate e não uma
derrota, a “concessão” da independência uruguaia trouxe consequências relevantes para o
equilíbrio do poder na bacia do Prata (LUFT, 2013). Para o Império brasileiro a criação do
Estado Uruguaio, negociado pela Inglaterra, colocava fora de alcance o controle político-
administrativo do território que dava no Estuário do Prata e contestava as fronteiras afirmadas
como “limites naturais” do Brasil. Entre os potentados meridionais brasileiros, muitos deles
proprietários de grandes fazendas de criação na porção norte do trerritório uruguaio, a derrota
significaria maiores dificuldades para atravessar as suas riquezas dos campos orientais, bem
como para muitos daria ensejo a uma relação de desconfiança com o poder central, o que seria
apontado como uma das causas da Revolução Farroupilha, sete anos mais tarde (GUAZELLI,
2012, MIRANDA, 2006).

Destacamos tudo isso, pois parecem serem aspectos consideráveis a serem colocados
na balança quando pensamos quais as preocupações estavam presentes para aqueles que
contariam essa história. Como tratar de uma derrota tão impactante ocorrida já nos primeiros
anos do Império recém-independente? Com tantos recalques e magoas ainda presentes, com
contas ainda a pagar, talvez o melhor fosse não ter mais nada a falar, e relegar a disputa a um
episódio da Província de São Pedro, que pela constante presença dos reflexos da guerra, não
poderia tão facilmente apagá-la. 199
9
2. Capítulo II - O Ensaio bibliográfico do Barão do Rio Branco

Um dos talentos mais brilhantes que adornaram as letras e o jornalismo de nossa


terra, o doutor Justiniano José da Rocha, escrevendo a vida do ilustre marquês de
Baependi, enunciou um conceito que não pode ser contestado em sua generalidade,
quando acusou de ingrato e de esquecedor o povo brasileiro.

Com efeito, é uma triste realidade! Nem o passado, nem o futuro do país atraem entre
nós a atenção pública, que descuidosa se deixa absorver na contemplação dos
sucessos e dos homens do presente. Para os acontecimentos do passado – desse
passado ainda tão recente, mas tão fértil em grandes exemplos e lições proveitosas –
, só há esquecimento e indiferença da parte de quase todos, e até escárnio e ridículo
da parte de muitos (PARANHOS, 2012, p.55).

Paranhos Junior inicia o ensaio bibliográfico de José de Abreu acusando o povo


brasileiro de “esquecedor”. Ele se coloca como uma exceção, um “desses espíritos fortes”, que
não se faria indiferente a um “brasileiro ilustre que consagrou sua vida inteira ao serviço da
terra que o viu nascer, dando no decurso dela as mais raras provas de amor e de dedicação à
pátria.” (p.56). Para Rio Branco, José de Abreu era um herói da pátria e seu esquecimento era
visto como uma ingratidão. Ao relembrar a sua história, Rio Branco entende estar selando uma
divida para com a memória do homem que tantas vezes havia defendido o território brasileiro.

A guerra da Cisplatina foi um dos principais enfrentamentos militares do Brasil


independente, mas o que havia sido produzido sobre a Cisplatina e seus líderes militares até a
época que o Barão do Rio Branco escreve esse ensaio? Pensando em relação do Instituto
Histórico Geográfico Brasileiro, criado em 1838, por onde girava a historiografia brasileira do
XIX, sete textos sobre o tema foram publicados até 1900: quatro deles foram biografias sobre
personagens da disputa (LUFT, 2013), entre elas, essa obra que analisamos, e mais duas escritas
pelo Barão do Rio Branco (sobre Luís Barroso Pereira1037 e o almirante James Norton1038).

Marcos Luft ,em sua dissertação "Essa guerra desgraçada": recrutamento militar para
a Guerra da Cisplatina (1825-1828), de 2011, analisa como a historiografia brasileira tratou a
Cisplatina. Uma das afirmações do historiador é que, se comparada a outras guerras, como a
Guerra do Paraguai e a Segunda Guerra, o número de produções sobre a Cisplatina é
200
relativamente pequeno. Para ele, existiu um quase total silenciamento da disputa nos primeiros 0
anos do IHGB, uma das razões apontadas por Luft é que boa parte dos principais personagens
continuavam vivos em um cenário de destaque na política brasileira. Outra questão percebida
foi à preferência daquela primeira geração do Instituto por temas distantes do tempo presente,
uma vez que só se vê temas relacionados à independência após a década de 1850 “quando a
geração inicial de intelectuais começou a ser substituída, após fixarem as lembranças que
deveriam ser guardadas para os que viriam depois” (p.33).

É importante chamar a atenção aos objetivos do estudo da história pelo Instituto,


as razões eram consideradas de ordem política e epistemológica, deveriam assim antes de tudo
servir a nação. Dessa forma, os historiadores do IHGB iriam se preocupar em formar uma
cronologia da história do Brasil, e mais, em estabelecer a origem do país, construindo uma

1037
James Norton ( 1789-1835) foi um militar britânico que combateu com a marinha brasileira durante a Guerra
da Cisplatina. (CARDIM, 2012)
1038
Luís Barroso Pereira ( 1786-1826) foi um historiador e militar brasileiro, morreu durante combates no Conflito
da Cisplatina. (CARDIM, 2012)
história geral brasileira. Narravam e explicavam a fundação do Brasil, através de um ponto de
vista nacional, através da elaboração de uma periodização e do encadeamento dos
acontecimentos de forma linear (CEZAR, 2011). O Brasil se colocava como herdeiro do
Império luso, o que se confirmava na permanência da dinastia de Bragança no trono. “Tratar da
questão da Cisplatina poderia forçar uma ruptura nessa concepção linear e progressiva, da
mesma forma que os atos de contestação do colonial, que não eram tratados pela revista.”
(LUFT, 2011, p.38). Assim, tratar a Cisplatina trazia diversas dificuldades ao projeto de
construção da história nacional proposta pelo IHGB naqueles anos. Essa dialética entre
lembrar/esquecer faz parte da afirmação da nação, construída na medida em que os indivíduos
tenham muito em comum, mas que também tenham esquecido diversas outras coisas
(CANDAU, 2011).

Mas se deve destacar que, se a Cisplatina foi pouco tratada, não foi
completamente apagada da história pelo Instituto, afinal a própria obra que analisamos trata da
disputa. Nesse sentido, os historiadores do IHGB conseguiram encontrar nos culpados pela
derrota na Cisplatina uma possibilidade de tratar o tema sem enfrentar suas concepções acerca
da história nacional. “A solução talvez fosse pensar que esses erros cometidos eram causados 200
pela sua juventude, como os intelectuais comentaram o período de regências no pós 1870”
1
(LUFT, 2011 p.38).

A obra de Rio Branco por nós analisada, não foge da busca pelos culpados e da
isenção do herói José de Abreu. Mas Rio Branco traz ainda uma preocupação com a Cisplatina
e as “questões do sul”. O que se traduz não só nas três biografias tratando personagens da guerra,
como também pelo ensaio “Episódios da guerra do Prata (Apontamentos Históricos) (1825-
1828)”, publicado um ano antes dessa biografia na “Revista Mensal do Instituto Científico” da
Faculdade de Direito de São Paulo, onde o autor demonstra que acreditava que havia sucessos
importantes a serem relatados e lições a serem aprendidas com a Guerra no Prata.

Um dos sucessos mais notáveis do primeiro reinado foi, indubitavelmente, a guerra


que com a República das Províncias Unidas do Rio da Prata tivemos de sustentar.
(...) Cheia de sucessos importantes essa luta não tem merecido dos homens que se
aplicam ao estudo da história pátria, a mínima atenção – e as peripécias desse drama
de três anos jazem ainda ocultas e ignoradas. Até hoje nenhum brasileiro se deu ao
trabalho de relatar com minuciosidade todos os fatos que se deram nessa época nos
campos do sul e nas águas do Prata; ao passo que nossos vizinhos tem lido com avidez
e interesse um sem número de escritos, em que se desfigura inteiramente a verdade
histórica, e faz-se acreditar que nossas forças se cobriram de ignomínia, e que os
soldados da República só colheram louros. (PARANHOS, 1864 apud CARDIM, 2012)

O espaço da revista onde é publicado o ensaio já diz muito sobre as intenções do autor
ao trazer José de Abreu de volta a memória. O ensaio foi inserido na seção “Biografia dos
Brasileiros distintos por armas, letras, virtudes, etc” um espaço dedicado personalidades de
importância para a nação, a partir desses textos não apenas se rememoravam os feitos heroicos,
como também se produziam modelos de patriotas e cidadãos. (LUFT,2011) Cabia, portanto, ao
IHGB também a criação dos heróis nacionais. Através da escolha, o historiador se tornava um
juiz que controlava o destino dos grandes homens (CEZAR, 2011). Luft busca no trabalho de
Manoel Salgado Guimarães as origens gregas e romanas que caracterizam a biografia como
escrita da história comprometida com a nação.

Manoel Salgado Guimarães escreve que a biografia, como escrita da história, impõe
necessariamente a presença de um outro para quem se narra, o qual não vivenciou
as experiências expostas, mas para quem imagina-se que essas podem significar algo 200
2
de relevante. Rememorando as origens dessa forma de escrita na Grécia em Roma,
mostra que este já surgira pautado pelo exemplo que deveria fornecer aos
contemporâneos (no caso ateniense) e os vindouros (no caso romano), podendo ser
ressignificados de acordo com as exigências e os propósitos de novos leitores em
novos tempos. (LUFT,2011, p.34-35)

Dessa forma, podemos visualizar a proposta do Instituto em constituir uma memória


forte, enraizada numa tradição cultural através da glorificação e elogio dos heróis, que serviria
de base para os brasileiros se reconhecessem como parte de uma grande nação. “É a glória
imortal, não perceptível, que se canta aos vivos, aqueles que não concebem sua própria
identidade a não ser por referência ao exemplo heroico” (CANDAU, 2011, p.46).

O ensaio escrito por Paranhos Junior foi dividido em oito partes, contendo muito pouco
sobre a infância e primeiros anos de José de Abreu, mas estendendo a análise a partir de 1810
quando esse já estava engajado no exército brasileiro, o Barão parte dos acontecimentos
militares daquela época para delinear a ascensão de José de Abreu a partir de seus sucessos
militares. A seguir, na parte cinco, Rio Branco dá início aos acontecimentos posteriores a
independência quando José de Abreu era Comandante de Armas da província e começava a
guerra no Prata. De maneira geral, o autor discorre sobre os acontecimentos em um primeiro
momento para depois inserir a atuação de José de Abreu neles.

Alguns pontos narrativos são importantes no decorrer da obra. Em primeiro lugar o autor
a escreve como se estivesse presente nos eventos, marcando características do dia e dos
personagens. Outro ponto é a utilização do prenome “nós”, que da a José de Abreu e todos os
acontecimentos narrados um sentido de pertencimento e de unificação em torno da nação, em
um curto trecho da obra já podemos perceber essa escolha narrativa:

Abreu não podia chegar mais a propósito. Tão veloz foi a sua marcha, e com tanta
habilidade e prudência se houve durante ela, que o inimigo não suspeitou a sua
aproximação. Favorecido por um denso nevoeiro apresentou-se nas
circunvizinhanças do povoado, tendo feito antes os seus soldados trocarem as vestes
de viagem pelas fardas de grande parada, animando os com palavras cheias de ardor
e entusiasmo. Grande foi o alvoroço dos inimigos quando seus postos avançados
deram notícia da chegada dos nossos. ( PARANHOS, 2012, p.65)

200
3
A guerra contra Artigas, que levara à incorporação da Cisplatina, era vista pelo Barão
como justa, na medida em que se viam atendidas “as queixas constantes e repetidas dos
habitantes do Rio Grande, que pediam garantias para suas vidas e para suas propriedades”
(p.61), isso, pois o território uruguaio vivia uma verdadeira “anarquia”. Para o Barão, essa era
uma realidade de todos os “Países do Prata” como “ consequência da transição violenta por que
passaram, trocando repentinamente as instituições monárquicas e o regime colonial por um
governo puramente democrático” (p.60). Assim, seguindo a concepção linear histórica
promovida pelos historiadores do período, os outros países se diferenciavam do Brasil que não
tivera uma brusca ruptura, mas sim uma passagem de regimes sobre a mesma dinastia,
alcançando nação legítima sem cair no caos revolucionário.

Nessa mesma linha de pensamento, a independência é aclamada com naturalidade por


José de Abreu, sem se contrapor ao seu amor pelo Império Português. “Dotado de sentimentos
patrióticos e cheios de amor pelo seu país natal, Abreu saudou com entusiasmo a aurora da
liberdade que despontava e aplaudiu a nova ordem de coisas estabelecida pelo primeiro
imperador” (PARANHOS, 2012, p.81).
Diferentemente do julgamento positivo sobre a Guerra contra Artigas, ao narrar
a disputa pela Cisplatina, o tom de Rio Branco se transforma. Deixa claro que em princípio não
fora intenção do novo governo a manutenção do território, uma vez que, esse nem entrara como
tal na Constituição outorgada pelo Imperador. Mas, que o governo iludido pelo Visconde de
Laguna, acreditara que esse era o desejo dos orientais.

Longe do teatro dos acontecimentos e iludido pelas falsas asseverações do visconde


da Laguna, acreditava que a ideia da união era com fervor esposada pelos orientais
e dava um valor imenso a atos que, sendo feitos na presença das baionetas
estrangeiras não podiam de forma alguma ter o caráter de manifestações espontâneas
e livres do voto popular. Entretanto, era crença de muitos homens importantes do
Brasil que, estando este nos primeiros períodos de sua regeneração política, não
devia herdar de Portugal a louca ambição de domínio sobre um território estranho,
e muito menos sacrificar os seus recursos na difícil empresa de procurar, no sul,
limites naturais. Essa fatal resolução arrastou-nos a uma guerra impopular, que,
após duros e imensos sacrifícios, terminou pelo famoso Tratado Preliminar de Paz
de 28 de agosto de 1828, preparado e urdido pelos manejos, seduções e ameaças de
lorde Ponsomby. (PARANHOS, 2012, p.86)

Rio Branco ainda esclarece que a guerra só não era justa, pois o Estado Oriental se via
dominado por caudilhos e gaúchos que cultivavam verdadeiro ódio pelos brasileiros e não 200
deixavam ouvir os “enérgicos apologistas e sinceros defensores na Banda Oriental.” Entre os
4
“espíritos mais cultos e a parte mais sensata da população , escarmentados pelos tristes
resultados das discórdias civis, defendiam-na com fervor” (PARANHOS, 2012, p.86).

Uma das razões vistas pelo Barão para resgatar a história da guerra do Prata vinha da
concepção da “história mestra da vida”, era necessário demonstrar que essa era uma guerra
impopular e injusta, e que o desejo pela incorporação da Cispatina havia sido um erro, assim
como o era que alguns vissem nessa história uma legítima pretensão brasileira aos “Ducados
do rio da Prata” . “Os erros do passado devem servir-nos de lição para o presente, mas nunca
devem dar lugar a incoerências dessa ordem” (PARANHOS, 2012, p.86).

Rio Branco explica como, no despontar da guerra, José de Abreu, como brasileiro
devoto seguira prontamente o desejo do governo imperial, mas chegou na Cisplatina quando a
revolução já ganhara terreno por culpa do Visconde de Laguna, que adotara “por sistema a
inércia, que foi sempre a sua estratégia” (p.88). Rio Branco enaltece José de Abreu, pois,
enquanto fora Comandante de Armas, a revolução se manteve sobre controle, apenas duas
derrotas ocorreram sobre o seu comando, mas essas não eram de sua responsabilidade, mas sim
da rivalidade, desobediência e ambição de outros chefes de armas rio-grandenses, como Bento
Manoel Ribeiro e Mena Barreto. “sabendo o governo das derrotas do Rincón e de Sarandí,
deixou-se levar pelos manejos da intriga e responsabilizou o seu brioso general por desastres
nos quais, como já mostrarmos, não teve ele a mínima parte” (PARANHOS, 2012, p.100).

Rio Branco considera a destituição do cargo de José de Abreu não só uma tremenda
injustiça, mas também “um dos muitos erros que o governo imperial cometeu durante o decurso
dessa guerra, tão mal encaminhada e dirigida” (PARANHOS, 2012, p.102). E José de Abreu
como cidadão exemplar não erguera a voz para se queixar uma única vez, mas entregara sua
espada como “humilde soldado” à causa do Império. Desde então, se seguiriam as piores
derrotas, que levaram ao imperador vir à Província para animar as almas dos combatentes.
Nesse momento, José de Abreu propôs formar um corpo de voluntários.

Foi sem dúvida um exemplo raro de abnegação e de amor pátrio esse que então deu

200
o marechal de campo barão do Cerro Largo, sujeitando-se a comandar um simples
corpo de cavalaria, ele que em outros tempos ocupara cargos e comissões
importantes, e a quem fora já cometido o mando de todas as tropas em operações no
Rio Grande. A força com que se apresentou, e que não chegava a 600 homens,
recebeu no exército a denominação de Corpo de Paisanos, denominação bem cabida,
5
porque as praças de que se compunha já tinham perdido todos os hábitos de disciplina
que caracterizam as tropas regulares; os havia nelas aquele valor antigo, dedicação
pela pátria e confiança e amor para com o intrépido cabo de guerra que os
comandava. (PARANHOS, 2012, p.111)

Rio Branco traz por fim o episódio final da vida de José de Abreu, quando se reuniu o
exército para a batalha do Passo do Rosário, e uma antiga inimizade de José de Abreu com
Sebastião Barreto, provocada pelo ciúmes desse último para com o “grande general” selou o
seu destino, uma vez que Barreto não cedeu os cavalos descansados requisitados por José de
Abreu, que seriam essenciais ao tipo de batalha que se fazia no sul. E assim ao cair em uma
armadilha dos orientais com os cavalos cansados, os seiscentos homens do Barão do Cerro
Largo, que estavam na vanguarda do exército, viram como única saída bater em retirada, no
que foram confundidos com orientais pela infantaria que rompeu fogo sobre José de Abreu e
seus homens, “sendo nessa ocasião mortalmente ferido o velho barão do Cerro Largo.” (p.117).
Assim é narrada a morte de José de Abreu, como herói lutando pela nação, como mártir
injustiçado, e esquecido, que só veria justiça sobre sua imagem através do relato da história, da
memória resgatada pelo Barão do Rio Branco tantos anos depois. Afinal, para além do exemplo
de cidadania, do julgamento sobre os erros cometidos, da busca pelos culpados, fazia parte da
história resgatar e salvar a memória, imortalizar o herói para a posterioridade, para que esse não
fosse mais esquecido. O que se traduz nas palavras finais do ensaio.

Assim terminou a carreira gloriosa desse distinto veterano. A vida, que inteira
consagrava à pátria, devia ser também sacrificada a ela, e, de feito, sua espada só
deixou de combater quando a mão que a brandia caiu desfalecida. Com tantos
serviços, com tantas glórias, com tantas virtudes, tanta abnegação e civismo, o ilustre
barão do Cerro Largo teve nos últimos dias de sua vida, como prêmio e recompensa,
a ingratidão e o esquecimento do governo do seu país! Bem o disse madame de
Sevigné: “Há serviços tão grandes e tão importantes, que só a ingratidão os pode
pagar.” Mas acima das fragilidades e misérias dos contemporâneos, acima de seus
ódios e de seus erros, eleva-se um dia o juízo da posteridade, pode-se já o dizer, há
de destinar a tão exímio cidadão e a tão ilustre vítima um lugar distinto entre os mais
gloriosos e prestantes filhos da terra de Santa Cruz. (PARANHOS, 2012, p.117-118)

CONCLUSÃO
200
O estudo que realizamos nesse artigo tratou de refletir sobre uma das narrativas
6
construídas sobre José de Abreu, cuja trajetória, é foco de nossa pesquisa maior, que tenta
compreender sua atuação como um potentado e a construção de seu poder. Para tanto nos
utilizamos de fontes como essa biografia, assim, realizar essa análise crítica do relato, que
pertence a dado momento histórico, e compreender a intenção do autor com a narrativa, parece
fundamental no exercício do historiador que deve estar atento não só a seu objeto de estudo
como a produção historiográfica elaborada sobre tal.

Ao longo da leitura do relato biográfico escrito pelo Barão do Rio Branco foi possível
visualizar quantas disputas políticas e indenitárias são colocadas em jogo em torno da memória
de um acontecimento e de um personagem. A forma como a guerra da Cisplatina foi narrada
(ou não) no Brasil imperial demonstra como a perspectiva histórica do acontecimento se refletia
no tempo presente. O acontecimento, como um tempo forte, acaba por estruturar memórias
fortes (CANDAU,2011). Da mesma forma, podemos perceber o funcionamento da dinâmica
lembrar/esquecer atuando na construção de uma narrativa linear da fundação da nação. Por fim,
conseguimos analisar a edificação da imagem de um herói, que servia como exemplo, modelo
de cidadão, mas também símbolo da grandeza da nação, que possuía indivíduos capazes de
grandes atos e intrépido amor à pátria.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Contexto, 2011, 219p.

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200
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VARGAS, Jonas. Pelas margens do Atlântico: Um estudo sobre elites locais e regionais no
Brasil a partir das famílias proprietárias de charqueadas em Pelotas, Rio Grande do Sul (século
XIX). Tese (Doutorado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2013.

200
8
A TRAJETÓRIA DE MANOEL MARQUES DE SOUZA III NO CONTEXTO
PLATINO DO SÉC. XIX*

Cesar Augusto Barichello**1039

RESUMO

O tema proposto é refletir sobre memória e esquecimento (CATROGA, 2015) na trajetória de


vida de Manoel Marques de Souza III – Conde de Porto Alegre. Sua atuação militar nos
conflitos do contexto platino, Revolução Farroupilha e Guerra do Paraguai, já fazem parte da
literatura específica da área, embora com a presença de esquecimentos (ALMEIDA,1961;
MOREIRA BENTO,1994; BOEIRA, 2008; MAUL, ANTUNES e GRAÇA, 2005). Além disso,
ainda restam questões a serem discutidas no âmbito de sua atuação privada e da sua atuação
como político, literato e abolicionista; atividades, estas, que se intensificaram a partir de seu
pedido de reforma, em 20 de fevereiro de 1856 (CIBILS, 2000; GOMES, 2014; LAZZARI,
2004). A problemática que norteia esta investigação pode ser sintetizada nas seguintes questões: 200
Como se deu, e em quais circunstâncias históricas, a atuação de Manuel Marques de Souza III
ao promover a literatura, as ciências e a abolição da escravatura e como se expressam estas
9
atividades em sua trajetória privada? Presume-se que respostas para estas questões poderão ser
visualizadas por meio da elaboração de uma trajetória de vida (BOURDIEU, 1996), partindo-
se do personagem para o contexto. As fontes principais desta investigação serão cartas pessoais,
documentos e outras fontes historiográficas primárias e secundárias. A originalidade em relação
à temática está embasada na dualidade entre memória e esquecimento, procurando-se trazer um
novo olhar para um personagem que faz parte da historiografia do Rio Grande do Sul, do Brasil
e do espaço fronteiriço platino. A proposta é que a construção de uma trajetória de vida, que
objetive desvelar aspectos que foram ocultados, deliberadamente ou não, pode dar um novo
sentido à história do presente.

** Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


** Mestre em Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-
mail:cesarebarichello@gmail.com.
Palavras-chave: Fronteiras; História Platina; Trajetória de vida.

INTRODUÇÃO

Manoel Marques de Souza III, nascido na cidade de Rio Grande, em 1804, faz parte da
historiografia rio-grandense e brasileira, pela sua participação na consolidação das fronteiras
do Império brasileiro, por meio de sua destacada atuação nos conflitos do espaço fronteiriço
platino1040, na Revolução Farroupilha e na Guerra do Paraguai.

Entretanto, apesar de existir bibliografia a respeito deste personagem, que relata


principalmente sua trajetória militar, seu alistamento precoce no Exército Imperial, aos 13 anos,
sua bravura e lealdade às causas que defendia, existem poucas referências sobre a sua atuação
privada, política e cultural, como um dos fundadores do Instituo Histórico e Geográfico
Brasileiro da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul e sua atuação a favor da abolição
da escravatura.

Em 1860, com inspiração no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB),


201
Manoel Marques de Souza III fez parte do núcleo criador do Instituto Histórico e Geográfico
da Província de São Pedro (IHGPSP) e foi o seu primeiro presidente. A maioria dos membros 0
efetivos do IHGPSP fazia parte também da aliança política local chamada Contra-Liga, que
originaria, mais tarde, o Partido Liberal Progressista.

Em 18 de junho de 1868, participou da criação da Sociedade Parthenon Literário,


considerada a primeira agremiação cultural do Rio Grande do Sul, no século XIX, sendo esse
órgão fundamental para a formação de um sistema literário no Estado do Rio Grande do Sul
(extinta por volta de 1925).

Em 29 de agosto de 1869, em Porto Alegre, foi um dos fundadores da Sociedade


Libertadora, da qual ele foi eleito o primeiro presidente. Essa sociedade tinha como finalidade
libertar e dar suporte à libertação de escravos, especialmente crianças.

1040
Maria Medianeira Padoin (1999), em sua tese de doutorado caracteriza a Revolução Farroupilha não apenas
como uma rebelião liberal ocorrida no Brasil, mas também como uma das variáveis do processo de construção dos
estados nacionais no espaço fronteiriço platino.
Dez anos após a sua morte, em dois de fevereiro de 1885, uma estátua de mármore,
representando Manoel Marques de Souza III, foi inaugurada na Praça da Matriz na cidade de
Porto Alegre. Presidiu à cerimônia a Princesa Izabel, filha e herdeira de Dom Pedro II. Todavia,
após a Proclamação da República, o monumento foi transferido para um pequeno triângulo de
terra situado em uma das antigas entradas cidade, hoje denominada Praça do Portão.

Diante desses pressupostos, o problema que norteia esta investigação pode ser
sintetizado nas seguintes questões: Como se deu, e em quais circunstâncias históricas, a atuação
de Manuel Marques de Souza III ao promover a literatura e as ciências e a abolição da
escravatura e como se expressam estas atividades em sua trajetória privada?

A hipótese que se apresenta é que partes da trajetória de vida de Manuel Marques de Souza III
foram esquecidas, principalmente no Rio Grande do Sul, um estado republicano e separatista,
frente a um personagem que, mesmo sendo gaúcho, era monarquista e defendeu sempre a
unidade do Império. A queda da monarquia, em 1889, trouxe um novo olhar para os eventos
passados. Os farrapos foram considerados heróis no Rio Grande do Sul, e Manuel Marques de
Souza III foi esquecido por lembrar e representar o antigo regime monárquico.
201
Presume-se que respostas para esta hipótese poderão ser visualizadas por meio da elaboração
de uma trajetória de vida, partindo-se do personagem para o contexto. As fontes principais desta
1
investigação serão cartas pessoais, documentos e outras fontes historiográficas primárias e
secundárias, muitas delas ainda inéditas.

A originalidade em relação à temática está embasada na dualidade entre memória e


esquecimento, procurando-se trazer um novo olhar para um personagem que faz parte da
historiografia do Rio Grande do Sul, do Brasil e do espaço fronteiriço platino, com base em
pesquisa em fontes bibliográficas e documentais, especialmente estas últimas. A proposta é que
a construção de uma trajetória de vida que objetive desvelar aspectos que foram ocultados,
deliberadamente ou não, pode dar um novo sentido à história do presente.

A importância para o campo temático está em contribuir de maneira mais geral com a
História da América Platina, com a história de vida de um personagem, ancorados em
pesquisadores como Souza (2001), que defende que a biografia deve partir do personagem para
identificar o contexto, a partir das relações travadas pelo indivíduo. Em suma, a originalidade
em relação à abordagem do tema centra-se em trazer à tona esquecimentos a respeito da
trajetória de vida de um indivíduo e, a partir desses desvelamentos, relatar um contexto.

Por ora, amparamo-nos em Souza (2003, p. 5) para propor a “possibilidade de


articulação de uma escrita da história a partir da singularidade de uma biografia”. A
pesquisadora alinha-se aos pesquisadores vinculados ao que se convencionou chamar micro-
história, que tem feito suas investigações “com base na idéia de que cada ator histórico se
inscreve em contextos de dimensões e de níveis variados, do mais local ao mais global. Com
isso, tentam mostrar que não existe um hiato, menos ainda uma oposição, entre essas
dimensões” (SOUZA, 2003, p. 106).

Segundo Souza:

A proposta é de inversão: ao invés de partir de um contexto geral para situar a


atuação de alguns personagens, o contexto passa a ser desenhado em função da
circulação desses personagens e dos episódios em que se envolveram. O contexto
passa a ser plural. Daí a opção de alguns historiadores pelo conceito de
configuração. Todo indivíduo ocupa uma posição em uma teia humana composta por
relações que não lhe é permitido modificar senão dentro de certos limites. (SOUZA, 201
2
2003, p.106)

Na mesma linha de Souza (2003; 2009), encontramos Schmidt (2003), que sustenta que
a biografia pode servir para introduzir elementos conflituais na explicação histórica já
delineada, e também para ilustrar, matizar, complexificar, relativizar ou mesmo negar as
análises de cunho generalizante, que podem excluir diferenças em nome de regularidades e
continuidades.

Para investigar os contornos da trajetória de vida do personagem Manoel Marques de


Souza III, sob um olhar historiográfico, serão utilizadas fontes como correspondências,
documentos pessoais, documentações bibliográficas, entre outras fontes.

O objetivo geral é investigar o processo de memória e esquecimento na construção da


trajetória de vida de Manoel Marques de Souza III, Conde de Porto Alegre. Os objetivos
específicos são: - Identificar a documentação bibliográfica existente referente ao personagem;
- Investigar fontes como correspondências e documentos pessoais de Manoel Marques de Souza
pertencentes ao acervo da Biblioteca de José Mariano da Rocha Filho, atualmente sendo
transcritos e catalogados pela Professora Fernanda Kieling Pedrazzi no Laboratório de
Paleografia da UFSM; - Investigar outras fontes pertinentes ao tema do projeto; - Elaborar uma
trajetória de vida do personagem.

16. Capítulo I - Conceitos norteadores

Os principais conceitos que permeiam a construção desta investigação são memória,


esquecimento, historiografia, fronteiras e trajetória. Destacam-se, entre os conceitos que serão
utilizados, o conceito de esquecimento, que sustenta a problemática e a justificativa deste
projeto e o de história de vida, que proverá suporte para os procedimentos metodológicos.

O conceito de memória é o que primeiro acionamos por sua importância na própria


construção do fazer historiográfico. A história de uma sociedade, de um grupo ou de um
indivíduo é constituída por lembranças e esquecimentos. 201
Segundo Catroga com base em Joël Candau (1996): 3

[...] existem três níveis na memória: a proto-memória, fruto em boa parte, do habitus
e da socialização [...], a memória propriamente dita que enfatiza a recordação e o
reconhecimento; e a meta-memória, conceito que define as representações, de pendor
comemorativos, que o indivíduo faz de um modo compartilhado e onde predomina a
chamada ‘recordação-imagem’. (CATROGA, 2015, p. 9)

Catroga (2015) relaciona a proto-memória ao o que os gregos chamavam mnême;


enquanto que a memória propriamente dita e a meta-memória estão ligadas à noção de
anámnésis, pois significam a procura ativa de recordações e remetem à maneira como cada
sujeito se filia ao seu próprio passado, constrói sua identidade e se distingue dos outros. Assim,
a memória individual é formada pela coexistência e pela tensão entre várias memórias, como
as pessoais, familiares, grupais, regionais e nacionais e, este processo, se encontra em
permanente construção.
A construção seletiva da memória justificaria assim o esquecimento de certas facetas de
um personagem. Assim, a relação entre a memória e o esquecimento, nos auxilia a entender a
construção seletiva do passado e, no caso desta proposta de pesquisa, alicerça a hipótese de que
a historiografia atual traz consigo o esquecimento de certas facetas da trajetória de vida de
Manuel Marques de Souza III.

Segundo Todorov (1998), citado por Catroga (2015, p. 16) “a memória é sempre
seletiva”. Catroga lembra Augé (1998), para destacar que o ausente pode ser tão importante
como o lembrado, e que a parte submersa pode ser desvelada, recordada, mas haverá sempre a
ameaça da amnésia (2015, p. 22).

A escrita da história é um trabalho de recordação como a memória, que “também nasceu


como um meio de combate contra o esquecimento, ou melhor, uma nova ars memoriae exigida
pela decadência da transmissão oral e imposta pela crescente afirmação da racionalidade
escrita” (CATROGA, 2001p. 40). Nesse sentido, a historiografia exerce um importante papel
social de formação das recordações e dos esquecimentos coletivos e individuais.

Outro conceito importante para este trabalho é o de monumento, ou seja, o entendimento 201
de que “não há representação memorial (nem historiografia) sem traços”. A palavra traços
deriva do vocábulo latino tractus e referia-se originalmente às impressões deixadas pela
4
passagem de um animal, “que lhe permitiria funcionar como testemunho e indício, como
ensinaram Levinas, Ginzburg e Paul Ricoeur referindo-se hoje a qualquer vestígio humano,
voluntário ou involuntário” (CATROGA, 2015, p. 25).

Segundo Cartroga:

[...] a mediação espacial do traço surge como condição necessária para que a
recordação não degenere em exclusiva imaginação e, para que, ao ser pratica
representificadora seja também enunciação que ordena o caos e a descontinuidade
événementiel doando sentido à vida dos indivíduos e dos grupos em que cada um se
integra, mas também é verdade que, se o monumento é o símbolo que espera
recordação, o seu significado mais radical só será apreendido se as suas conotações
forem confrontadas tanto quanto for possível com o que elas também omitem e
ocultam (2015, p.26).
Porém, no ato de representificar o ausente, na tentativa de vencer a morte, ocorre o
esquecimento, pois memória e esquecimento caminham lado a lado. Discorrendo sobre a
atualização da memória Catroga afirma:

[...] a memória reactualiza-se, por tanto, num “campo de experiência” aberto à


recordação e às expectativas, horizonte que a recebe como herança e como um
imperativo de transmissão, num aceno em que ser promete ser possível vencer a
morte, jogo ilusório que faz esquecer que tarde ou cedo (duas, três gerações?),
também os mortos ficaram órfãos de seus próprios filhos. Seja como for é por ela que
a vida, ao dar futuros ao passado sublima e adia a assunção da consciência humana
da finitude e não se pode qualificar como inautêntico o trabalho que acrescenta o ao
mundo que existe outros mundos possíveis (CATROGA, 2015, p. 30).

A memória resulta a transmissão de um capital de lembranças e esquecimentos,


conforme explica Halbwachs, citado por Candau (2014).

Candau (2014, p. 106) afirma que “a transmissão está, por conseqüência, no


centro de qualquer abordagem antropológica da memória. Sem ela, a que poderia então servir
a memória?”.
201
Segundo Candau “a tradição escrita vai facilitar o trabalho dos portadores,
5
guardiões e difusores da memória”. Auxiliar como guardiã da memória a escrita também
promove o esquecimento. “Pode-se então questionar a maneira de selecionar o que deve ser
conservado e transmitido. Paradoxalmente, é sem dúvida mais difícil determinar o que ser
conservado em sociedades de tradição escrita do que naquelas de tradição oral” (CANDAU,
2014, p. 109).

Sobre a dualidade existente entre a memória e o esquecimento Todorov (2000) afirma


que os regimes totalitários do século XX perseguiram com afinco a supressão da memória.
Entretanto, políticas diversas de censura ocorreram anteriormente. Segundo Catroga “o
esquecido pode vir, com rosto retocado, bater à porta do andar de cima onde mora o ato de
recordar”. O pesquisador afirma que esta ascensão é ativa, “pois produzirá as inevitáveis
metamorfoses ditadas pela mediação das estratégias de vida” (2015, p. 20).
Yerushalmi (1984, p.19) citado por Padrós (2001) afirma que se há usos da memória,
há também, usos do esquecimento. Fato que indica a possibilidade de até instrumentalizar os
esquecimentos: há esquecimentos que são usados ou que são usáveis para certos fins. Esquecer
(algo) pode ser uma opção, uma conveniência. Resulta de uma ação consciente de alguém (a
alguém interessa que não se lembre que [...] ). É diferente de desconhecer ou de sofrer um
esquecimento induzido por um outro sujeito; na história, tais situações são recorrentes.

A escrita da história trabalha entre estes pólos, memória e esquecimento, e segundo


Ricoeur (1998) citado por Catroga (2015, p. 62) será, desta forma “[...] um túmulo para o morto
na dupla acepção de honrar e de o eliminar, ou, talvez, melhor, de o esconder. Por conseguinte,
a historiografia, tal como a memória, ajuda a fazer o trabalho do luto e a pagar as dívidas do
presente em relação ao que já não é”.

O conceito de trajetória será utilizado conforme as postulações do sociólogo francês


Pierre Bourdieu, que o identifica “[...] como uma série de posições sucessivamente ocupadas
por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando
sujeito a incessantes transformações” (BOURDIEU, 1996, p.189).
201
6
2. Capitulo II – Apontamentos iniciais sobre a trajetória de Manoel Marques de
Souza III

Manuel Marques de Souza III nasceu em 13 de junho de 1804, na cidade de Rio Grande,
e morreu em 18 de julho de 1875, no Rio de Janeiro. Foi militar, político, abolicionista e
monarquista. Nasceu em uma família de tradição militar, sendo o terceiro do mesmo nome.
Ingressou no Exército Imperial em 1817, com 13 anos e reformou-se em 1856, com 52 anos. A
partir daí, incrementou sua atuação política, literária e abolicionista.

Ingressou no Exército em 1817, aos 13 anos, como cadete do 1º Regimento de Cavalaria


Ligeira da Divisão de Voluntários Reais, em Montevidéu, no Uruguai, sob o comando do
General Carlos Frederico de Lécor. Em Montevidéu, ao lado de seu pai, General Manoel
Marques de Souza II, participou de diversas ações de guerra até 1822 (MAUL et al., 1952).
Combateu na Guerra da Cisplatina (1825-28), na Revolução Farroupilha (1835-45), na Guerra
contra Oribe e Rosas (1851-52), quando comandou a 1ª Divisão Brasileira, que integrou o
Exército Aliado, que derrotou as forças do ditador argentino Rosas, em Monte Caseros, a dois
de fevereiro de 1852. Combateu, também, na Guerra do Paraguai (1865-68), sendo ele o
comandante brasileiro das forças que obrigaram os paraguaios, que invadiram o Rio Grande do
Sul, por São Borja, a se renderem em Uruguaiana, em 18 de setembro de 1865, em presença do
Imperador D. Pedro II e dos presidentes Bartolomeu Mitre e Venâncio Flores, respectivamente
da Argentina e do Uruguai (MOREIRA BENTO, 1992).

Recebeu o título de Conde de Porto Alegre em razão de haver liderado a reconquista


definitiva de Porto Alegre aos Farrapos em 15 de junho 1836. Em dois de fevereiro de 1885,
em agradecimento pela sua trajetória, foi inaugurado, na antiga Praça Pedro II (atual Praça da
Matriz), em Porto Alegre, uma estátua de mármore do Conde de Porto Alegre. O ato foi
presidido pela Princesa Izabel (MAUL et al., 1952).

Em 1860, com inspiração no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), um


grupo de cidadãos da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul teve a idéia de fundar uma
filial deste instituto em solo rio-grandense, e criaram o Instituto Histórico e Geográfico da
Província de São Pedro (IHGPSP). O objetivo principal consistia em ligar a história do Rio
201
Grande à história da nação brasileira. O IHGB, associação fundada na Corte, em 1838, foi 7
criada com o objetivo de formular uma idéia de nação para o Estado Imperial e inspirada no
modelo institucional das academias européias de ilustrados. O IHGB tinha como meta firmar
uma identidade brasileira, nacional, e representar um Brasil uno e singular, ao menos
territorialmente (BOEIRA, 2008).

Manoel Marques de Souza III fazia parte do núcleo criador do IHGPSP e foi o seu
primeiro presidente, eram também membros o médico sanitarista e político Manoel Pereira da
Silva Ubatuba e, o igualmente médico e poeta rio-grandense, José Antonio do Valle Caldre e
Fião. A maioria dos membros efetivos do IHGPSP fazia parte também da aliança política local
chamada Contra-Liga, que originaria, mais tarde, o Partido Liberal Progressista. Enquanto a
Liga era resultado de uma fusão entre políticos oriundos tanto do Partido Liberal quanto do
Partido Conservador, a Contra-Liga era uma reunião dos dissidentes daquela organização e
tinha preponderância política liberal. Manoel Marques de Souza III era, na época, um dos mais
destacados rio-grandenses com influência na Corte do Rio de Janeiro, particularmente por sua
atuação militar a favor do Império brasileiro nas guerras de fronteira (PICCOLO, 1979).

Os membros do Instituto Histórico da Província de São Pedro tinham as mais diversas


procedências e profissões. A instituição possuía cerca de 70 sócios, entre efetivos,
correspondentes e honorários. Os membros do IHGPSP possuíam opiniões divergentes em
questões como, por exemplo, o apoio ao regime monárquico. Havia quem apresentasse
tendências abolicionistas, como era o caso dos médicos Ubatuba e Caldre e Fião. Os militares
ligados à instituição apoiavam a monarquia, de forma que nunca houve um posicionamento,
dentro da Revista do IHGPSP, abertamente contrário à postura adotada pelo governo brasileiro
em questão de qualquer gênero, salvo, a discordância que nutriam quanto à política imperial
em relação ao Rio Grande, devido à pouca representação política delegada à Província dentro
do governo brasileiro (GUIMARÃES, 1988; LAZZARI, 2004; SÜSSEKIND, 1990).

Três anos depois da criação do IHGPSP, em 1863, o Império brasileiro, por meio do
Decreto n° 3.167, de 28 de outubro1041, atendeu à solicitação do Instituto e autorizou suas
atividades, com a seguinte mensagem, assinada pelo Marques de Olinda:
201
8
Concede autorização ao Instituto Histórico e Geográfico Rio-Grandense na
Província de S. Pedro, para continuar a exercer suas funções e aprova os respectivos
Estatutos. Atendendo ao que representou a Diretoria do Instituto Histórico e
Geográfico Rio-grandense – estabelecido na Província de São Pedro e de
conformidade com o parecer da Secção dos Negócios do Império do Conselho de
Estado, exarado em Consulta de 7 de julho do corrente ano: Hei por conceber ao
mesmo Instituto autorização para continuar a exercer suas funções, e Aprovar os
respectivos Estatutos, ficando as alterações que neles se fizerem sujeitas a aprovação
do Governo Imperial, e substituindo-se o art. 3° pelo seguinte: - O Instituto poderá
estabelecer prêmios para as composições que tratem dos assuntos no art. 1°, assim
como poderá dar, dentro do recinto de suas sessões, as demonstrações de apreço, que
julgar apropriadas aos sócios e quaisquer outras pessoas que lhe tenham prestado
serviços relevantes em relação àqueles mesmos assuntos. O Marquês de Olinda,
Senador do Império, Conselheiro de Estado, Presidente do Conselho de Ministros,
Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império, assim o tenha entendido e
faça executar. Palácio do Rio de Janeiro em vinte e oito de Outubro de mil oitocentos

1041
Texto original em: BRASIL. Decreto nº 3.167, de 28 de outubro de 1863. Concede autorisação ao Instituto
Historico e Geographico-Rio Grandense-, estabelecido na Provincia de S. Pedro, para continuar a exercer suas
funcções, e approva os respectivos Estatutos. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/legin/ fed/ decret/1824-
1899/decreto-3167-28-outubro-1863-555223-norma-pe.html >. Acesso em: 26 out. 2015.
sessenta e três, quadragésimo segundo da Independência e do Império. (CIBILS,
2000, p. 10)

A autorização veio um tanto tarde, visto que esse foi o ano derradeiro das atividades
regulares do Instituto Histórico e Geográfico da Província de São Pedro.

Após a sua reforma, Manuel Marques de Souza III dedicou-se a outros dois projetos: o
primeiro derivado de seu interesse em promover a literatura e as ciências, e o segundo orientado
a lutar pela gradual abolição da escravidão.

O Parthenon Litterário foi criado em 18 de junho de 1869 e Manuel Marques de Souza


III foi feito membro honorário. Muitos dos membros do Parthenon eram remanescentes do
IHGPSP, como Antônio Valle Caldre Fião, que escreveu uma biografia de Manoel Marques de
Souza III, publicada na revista Parthenon, na qual narra uma vida atravessada por todos os
principais conflitos vividos pela Província durante o século XIX, indicando que o jovem
Manoel, filho e neto de militares, foi, muito possivelmente, embalado na cadência de hinos de
guerra, ou sob o estrépito das armas e, desde muito cedo, familiarizado com a vida rude dos
soldados a qual foi apresentado formalmente aos 13 anos, em 1817, como cadete de artilharia
201
em Montevidéu, no período das ofensivas de anexação da Banda Oriental (entre 1809 e 1820). 9
Durante a narrativa Caldre e Fião apresenta o seu relato pessoal sobre os acontecimentos em
relação à tomada de Porto Alegre aos farrapos, por ocasião da reação ao cerco da capital na
revolução Farroupilha (GOMES, 2014).

A Sociedade Libertadora foi fundada em 29 de agosto de 1869 e Manuel Marques de


Souza III foi escolhido seu presidente (SILVA, 2005). Pedro II havia pedido abertamente pela
gradual erradicação da escravatura em sua fala do trono de 1867, quando Manuel Marques de
Souza III, a quem, alguns autores, denominam como Porto Alegre, em razão do título de Conde
de Porto Alegre, foi um dos poucos que o apoiou, enviando-lhe uma carta na qual manifestava
apoio à iniciativa. Manuel Marques de Souza, que já havia começado um plano de, aos poucos,
ir libertando seus próprios escravos, sugeriu durante uma das sessões do Parthenon Litterário a
criação de uma associação civil dedicada à abolição da escravidão. Sua ideia não apenas foi
bem recebida, mas foi concretizada com a criação da Sociedade Libertadora.
CONCLUSÃO

A investigação sobre a história de vida de Manuel Marques de Souza III,


personagem que nasceu e morreu (1804-1875) no século XIX, e atuou na demarcação das
fronteiras do Império brasileiro, é proposta aqui de forma singular, ao se tentar entender o
contexto por intermédio da investigação de diversas facetas esquecidas do personagem, como
a sua vida privada e aspectos ligados a movimentos políticos, culturais e abolicionistas.

A relevância para a área está em desvelar aspectos omitidos da trajetória de vida do


personagem e que darão pistas para um entendimento diferenciado do contexto da América
Platina, no século XIX, por meio da pesquisa em fontes documentais e bibliográficas.

Os procedimentos metodológicos terão como fio condutor a proposta de construção de


uma trajetória de vida. Embora esta abordagem tenha algumas objeções na historiografia
deixaremos para aprofundar esta discussão no decorrer da efetivação desta pesquisa.

202
0
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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2
TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Barcelona: Paidós, 2000.
GASPAR SILVEIRA MARTINS: SEUS DISCURSOS E OS IMIGRANTES*

Naiani Machado da Silva**

RESUMO

Gaspar Silveira Martins foi um político da segunda metade do século XIX, pertencia ao Partido
Liberal da Província do Rio Grande de São Pedro no período Imperial. Nasceu na região de
fronteira entre o Brasil e o Uruguai, portanto o político possuía dupla nacionalidade, ou seja,
brasileiro e uruguaio. Sua família desenvolveu relações típicas fronteiriças, redes de relações,
as quais foram utilizadas para alcançar o desenvolvimento e crescimento intelectual,
profissional e político de Silveira Martins. Ocupou cargos como Deputado provincial, Senador,
Conselheiro do Imperador e Presidente de Província em fins do Império. A partir de uma
perspectiva liberal, defendia questões como a vinda de imigrantes para o Brasil e a liberdade
religiosa, que o aproximou aos setores imigrantes italianos e alemães. Em seus discursos
202
afirmava a importância da tolerância religiosa e a separação do Estado das “questões 3
espirituais”, o Estado laico. Desta forma, percebeu-se a necessidade de verificar as relações do
político inserido nesse meio de sociabilidade e política rio-grandense, com ênfase para a
implantação de núcleos coloniais italianos e alemães, tão frequentemente citados em seus
discursos parlamentares. Fez defesas fortes aos acatólicos, nos quais se incluíam de maneira
preponderante os imigrantes alemães que se instalaram na Província desde o início do século
XIX.

Palavras-Chave: Imigrantes; Liberdade religiosa; Discursos.

*
Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.
**
Mestre em Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutoranda em História no
PPGH - UFSM. E-mail: naianims@gmail.com.
INTRODUÇÃO

O presente estudo dedicou-se a análise da trajetória de vida política de Gaspar Silveira


Martins e a relação com a imigração a partir dos seus discursos na defesa de leis e mudanças
que facilitassem a vinda e a permanência desses imigrantes, especificamente para o Rio Grande
do Sul. Gaspar Silveira Martins era conhecido como Tribuno do Império, por sua eloquência e
intelectualidade, expressadas principalmente através de seus discursos muito bem elaborados
na Câmara de Deputados Provincial do Rio Grande de São Pedro, na Câmara Geral e no Senado
Vitalício do Império, século XIX no Brasil.

1. Capítulo I - Trajetória de Gaspar Silveira Martins

Observando a trajetória deste político, ressalta-se que Gaspar Silveira Martins atuou
como Deputado da Assembleia provincial na Província de São Pedro e também na Assembleia 202
Geral e foi ainda Senador do Império, Ministro da Fazenda no Gabinete Liberal chefiado pelo
4
Visconde de Sinimbu em 1878, Conselheiro do Império e Presidente da Província de São Pedro
em 1889. Durante o Império pertencia ao Partido Liberal, sendo Chefe deste, e com a
Proclamação da República foi exilado, retornando ao Brasil em 1892. Tornou-se chefe do
Partido Federalista (PF), que defendia o Parlamentarismo, em contraposição ao governador do
Estado, Julio de Castilhos, pertencente ao Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) e que
defendia a manutenção da forma Presidencialista “autoritária” de governo.

O estudo sobre a sua vida já intriga desde o nascimento, pois, foi registrado em Mello
no Uruguai, em função de sua família residir na Serra de Aceguá, região território dos dois
países: Brasil e Uruguai.

Considera-se importante discutir a questão do local de nascimento de Silveira Martins,


exatamente porque muitas biografias silenciam a relação de Silveira Martins com o Uruguai e
negam que ele tenha nascido nesse país1042. No entanto, pode-se comprovar documentalmente
que o registro oficial de Silveira Martins foi realizado na cidade de Mello no Uruguai,
mostrando, no mínimo, a opção da própria família de que ele fosse de nacionalidade uruguaia.
Daqueles que consideraram ser Silveira Martins brasileiro por nascimento pode-se mencionar
João Neves, que afirmou que o Tribuno havia nascido na Cerra de Aceguá, “a dois passos do
Uruguai” (NEVES, 1938, p. 14). No período de nascimento de Silveira Martins, 5 de agosto de
1835, a fronteira entre Brasil e Uruguai ainda oscilava, além da Serra de Aceguá estar presente
dos dois lados da fronteira, tornando a informação do autor bastante tendenciosa,
principalmente se for levada em conta a proximidade que ele mesmo coloca entre o Brasil e o
Uruguai , assegurando que por isso existiria a confusão entre o local de nascimento.

Por outro lado, Rodrigues (1945) confirma o nascimento de Silveira Martins em Mello,
no Uruguai, mas mesmo assim refere que: “Acrescem os seus sentimentos, os seus costumes,
e, sobretudo, a sua vontade de ser brasileiro. Isto é a Pátria. Não há lugar, nem documento, que
prevaleça sobre estas razões. E Gaspar Silveira Martins por elas é bageense e brasileiro” (1945,
p. 7). Rodrigues, apesar de pautado em documentação que comprovava o nascimento de Silveira
Martins em Mello, afirma que não era simplesmente o território que fazia o indivíduo ser de 202
uma pátria ou de outra, mas sim seu sentimento de pertença, com isso ele é brasileiro nato.
5
Rotermund (1979) afirma que ele nasceu no Uruguai, na Serra de Aceguá, mas que em
1851 a região foi anexada ao Brasil, após a vitória brasileira na guerra contra Juan Manuel
Rosas de Buenos Aires, e passou a fazer parte do município de Bagé. Após essa afirmação, o
autor não cita mais nada sobre a relação da região ou do próprio Silveira Martins com o Uruguai,
voltando a análise para os sentimentos de brasilidade de Silveira Martins.

Muitos dos autores que se dedicaram a biografia de Silveira Martins serviam a


movimentos nacionalistas e esse ímpeto guiava a construção do conhecimento. Para isso,
silenciavam os vínculos que seu “personagem” biográfico pudesse estabelecer com a região
platina, em especial com o Uruguai, pois tais vínculos remetiam a “fama” separatista que o Rio
Grande do Sul encarnara desde a Revolução Farroupilha (1835 – 1845).

1042
A análise das biografias de Gaspar Silveira Martins foi realizada por mim no Trabalho de Conclusão de Curso,
no ano de 2009, para obtenção do Grau de Licenciada e Bacharel em História.
No entanto, ao abordar a história de vida de Silveira Martins, estes vínculos aparecem
constantemente, primeiro por ele ter nascido no Uruguai, segundo por viver parte de sua
infância em Bagé e nos municípios circundantes, bem como por estabelecer relações típicas de
uma região fronteiriça, como já era costume no Rio Grande do Sul:

Os fluxos eram típicos de uma produção baseada na pecuária extensiva, onde as


tropas de gado se deslocavam ora para abastecer os saladeros uruguaios, ora as
charqueadas rio-grandenses. Este fluxo de homens e mercadorias nos obrigam a
apreender este espaço levando em conta a permeabilidade fronteiriça. (SOUZA,
1993, p. 26)

Souza afirma que grande parte dos pecuaristas do Partido Liberal, dominante a partir da
década de 1872 no Rio Grande do Sul, possuíam terras no Uruguai, inclusive o líder do Partido,
Gaspar Silveira Martins (1993, p. 26).

Analisando os trabalhos que se dedicam ao tema fronteira é possível afirmar que a


fronteira tem sua ação própria, peculiar na formação do indivíduo. A própria forma de se referir
202
àquele que nasce na fronteira e lá se forma enquanto homem e mulher já mostra o caráter
característico do espaço em questão, ou seja, o “fronteiriço”, o “caudilho”, “homem e mulher 6
de fronteira”. É como se fosse sinônimo de força, preparo e poder.

Também, o próprio vocábulo, fronteira, já causa uma sensação de um possível litígio,


de uma divisão, de uma discórdia, ou seja, a fronteira, por um longo tempo foi o que separava
dois Estados, logo duas soberanias. Ao mesmo tempo a fronteira une, integra pela proximidade,
e, portanto, vive intensamente essa dicotomia: “[...] a fronteira se apresenta como um território
no qual coexistem diferentes significados. De fato, a fronteira constitui-se como espaço de
litígio e de integração” (LUCENA, 2011, p.3).

A fronteira demarca os espaços que integrarão a Nação, e os Estados ou províncias que


constituem essas fronteiras tem uma posição peculiar se comparado aos demais Estados que
compõem a nação, mas não enfrentam diretamente os conflitos e as contendas do espaço
fronteiriço. Pois, a fronteira não pode ser vista simplesmente como uma faixa, ou seja, a linha
divisória entre duas nações, ela abarca o que denominamos “espaço fronteiriço” que apresenta
as inter-relações entre os Estados, inclusive semelhanças culturais.
A província do Rio Grande de São Pedro, durante o Império, inseria-se nesse processo
nacional de formação do Estado Nacional, consequência também da definição fronteiriça. Neste
contexto, o Rio Grande do Sul ganha um status diferenciado no Estado Nacional brasileiro,
justamente por ser fronteira, e a sua formação identitária respirar os ares fronteiriços. O Rio
Grande do Sul foi e é conhecido pelo seu caráter fronteiriço, sua proximidade e talvez
verossimilhança mais com os platinos, do que com a totalidade de Estados que formam o Brasil.

Gaspar Silveira Martins era um fronteiriço e muitas de suas biografias tentaram silenciar
sua dupla nacionalidade, ou seja, sua formação marcada pelo espaço fronteiriço. Na época de
seu nascimento, ano de 1835, a fronteira entre o Brasil e o Uruguai não estava consolidada e
era oscilante, conforme os interesses locais.

No entanto, a formação fronteiriça de Silveira Martins marca sua trajetória de maneira


ímpar. Monica Rossato ressalta, na obra Relações de poder na região fronteiriça platina:
família, trajetória e atuação política de Gaspar Silveira Martins, seu pertencimento a uma
família de elite fronteiriça:

202
[...] percebemos através da documentação pesquisada, a presença e inserção da
família de Silveira Martins na região fronteiriça platina através dos bens e
7
propriedades e dos relacionamentos sociais construídos. Ao mesmo tempo,
evidenciamos a participação de seu pai, Carlos Silveira, atuando como Juiz de Paz
do distrito de “Asseguá”, Departamento de “Serro Largo”, Uruguai. Nesse sentido,
para compreender as relações sociais de Silveira Martins a família se apresentou
como uma possibilidade onde esses contatos foram construídos, ligando sua
trajetória à região fronteiriça platina. (ROSSATO, 2014, p. 20)

Com o objetivo de compreender a atuação política de Gaspar Silveira Martins, com o


recorte temporal que vai de 1862 a 1889, a referida dissertação buscou a trajetória familiar do
político, também trabalhando, até certo ponto, com as redes relacionais, as relações de poder
que influenciaram a formação e atuação de Silveira Martins. A família de Silveira Martins vivia
na Serra d’ Acegua, fronteira com o Uruguai.

Neste sentido, passamos a pensar a fronteira e as relações de poder que nela se


apresentam. Hespanha, na obra Visperas del Leviatán, análisa a capacidade que uma pessoa ou
instituição tem de expandir sua influência (poder) por um espaço, ou seja, recorta e define o
espaço segundo seus interesses. Ele afirma que o espaço é a prática organizadora dos indivíduos
e passa a ser uma realidade significante: “La miniaturización del espacio corresponde además
a otro elemento estrutural del sistema tradicional del poder [...] la patrimonializácion de las
funciones y cargos político-administrativos.” (HESPANHA, 1989, p. 20). A força é necessária
para exercer o poder, mas não suficiente. O poder político, ideológico e econômico estão
imbrincados.

Diante disso, é mister salientar que quanto maior as relações estabelecidas em um


determinado espaço por um indivíduo ou grupo, maior é sua ação de poder. Um exemplo disso
está no trabalho de dissertação de Mestrado de Pablo Dobke, intitulada Caudilhismo, território
e relações sociais de poder: o caso de Aparício Saraiva na região fronteiriça entre Brasil e
Uruguai (1896 – 1904), onde ele abordou a trajetória de Aparício Saraiva e a formação de um
território de poder na fronteira do Brasil com o Uruguai, vejamos:

[...] a defesa e reivindicação de um território, neste caso, a região fronteiriça entre o

202
Uruguai e o Brasil. Consolidar uma área de atuação a partir de fatores culturais,
econômicos e sobretudo, autonômicos, ratificam o nível de estratégia adotada por
Saraiva no mantenimento de sua influência nesta região de fronteira, evidenciando o
quão importante foram suas articulações para a concretização de um território de
poder. (DOBKE, 2015, p. 42).
8

Quanto maior o alcance de sua influência, maior o poder que exercia e que chegava a
ultrapassar a oficialidade das demarcações de fronteira dos Estados Nacionais. Trata-se do que
Dobke chamou de fronteira-indivíduo:

Assim, Aparício constituía a teia que fez com que ele se movimentasse com autonomia
pelos espaços antes proibidos, principalmente ao se tratar do Estado brasileiro do
Rio Grande do Sul. As questões abordadas neste trabalho nos fazem perceber o
quanto as relações sociais se bem fundamentadas são importantes na construção de
um sustentáculo de poder, que no caso aqui resolvemos chamar de “fronteira-
indivíduo”. (DOBKE, 2015, p.114)

No mesmo sentido está o estudo Luís Augusto Farinatti e Jonas Vargas, intitulado Elites
regionais, guerra e compadrio: a família Ribeiro de Almeida e suas redes de relações (Rio
Grande do Sul, c. 1816 – c. 1844) que propõe o estudo das relações de compadrio da família de
Bento Manuel e Maria Amâncio, sendo Bento Manuel um dos mais ricos estancieiros da
fronteira sul do Brasil, fixou residência na fronteira regional onde se ergueu a Capela do
Alegrete. No que se refere à metodologia os autores pautaram-se na network analysis (análises
de rede) e rastrearam a partir das certidões de batismo como essas relações ocorriam em uma
região de fronteira, ampliando as relações, ou seja, não centradas apenas na família.

A análise permitiu observar que as relações de compadrio permitiam formar uma rede
de relações pautada na troca de favores, muito conveniente em uma região de fronteira,
constantemente em litígio e que essas relações formavam-se em torno das famílias mais
poderosas da região como é o caso do casal Bento Manoel Ribeiro e Maria Mâncio. Estabelecer
uma relação com qualquer um dos dois, ou seja, mesmo quando apenas um apadrinhava, era
conectar-se ao casal e ter a possibilidade de beneficiar-se nessa rede de relações.

Tanto a família de Gaspar Silveira Martins, abordada pela dissertação de Rossato,


quanto a de Bento Manuel, apresentada no estudo de Farinatti e Vargas, eram famílias de poder
nas respectivas regiões de fronteira. O desenvolvimento intelectual e profissional de Silveira
Martins foi fruto do bom relacionamento da sua família com outras, ou seja, as oportunidades
202
surgiram em meio à troca de favores que possibilitaram seu avanço nos estudos e, depois, 9
desempenho profissional, bem como o casamento que também era uma via de negociação.

Na atuação política de Gaspar Silveira Martins, a percepção dessas redes de relações e


de que forma elas se consolidavam é essencial para, a partir da análise de sua formação familiar,
política e ideológica, tentar traçar como essas redes relacionais foram usadas para formar novas
redes, ainda mais abrangentes, levando a atuação marcante desse politico no Partido Liberal da
Província de São Pedro e sua articulação com os setores imigrantes, tanto das colônias italianas
como das alemãs. O político usou de sua rede de relações para consolidar parcerias nesses novos
setores sociais, econômicos e políticos que se desenvolveram na região norte/nordeste da
Província de São Pedro, como era denominado o Rio Grande do Sul no período Imperial.

2. Capítulo II - O político e seus discursos pró-imigração


Na sua ação política a defesa da imigração e dos imigrantes é evidente. A defesa da
imigração relacionava-se às questões defendidas pelo político, a partir de uma perspectiva
liberal, como o Estado Laico e a Tolerância religiosa, vejamos suas palavras no discurso
proferido no Teatro da Fênix:

Quem diz senhores, substituição do trabalho escravo pelo livre diz emigração, quem
diz emigração, diz liberdade de culto, emancipação de consciência; na nossa
constituição, ainda que esteja escrita liberdade de consciência, ela não existe de fato,
porque não há liberdade de consciência na lei onde por motivos religiosos se cerceão
direitos; aquele que não for católico não pode sentar-se nos conselhos da coroa!
(MARTINS, 1869, p. 26)

A escravidão era um atraso para o pensamento liberal e capitalista da época, por isso
deveria ser extinta ainda que de forma paulatina, também incentivar a vinda de imigrantes para

203
o Brasil em substituição a mão-de-obra escrava era uma tática política, pois se falava na época
em uma superioridade branca, e o país era formado por negros em grande parte.

Desse modo, condicionar as políticas de incentivo a imigração européia para o Brasil à 0


necessidade de mão-de-obra e estabelecer uma necessidade de branqueamento do país,
demonstraram o caráter racista da elite no período, elite da qual Gaspar fazia parte, pois como
afirma Cleci Eulália Favaro (2006, p. 310) o “problema” da falta de mão de obra era apenas
fruto do preconceito que se manifestava para com os ex-escravos, ou seja, haveria uma mão-
de-obra abundante, a mesma que teria sustentado a economia colonial e brasileira durante
praticamente quatro séculos. Mas, para trabalhar como mão-de-obra livre e assalariada estes
indivíduos não poderiam ser úteis, como afirma novamente Favaro: “[...] apesar de o sistema
escravista estar em fase de extinção, não extinguia simultaneamente e automaticamente os
escravos e ex-escravos – suporte fundamental no desenvolvimento de todos os ciclos
econômicos durante a colônia e o Império” (2006, p. 311). Ou seja, eles continuariam no Brasil,
mas seriam marginalizados ao não serem absorvidos de nenhuma forma na sociedade de então.

A partir da Lei de Terras, possibilitou-se a manutenção e intensificação do fluxo


migratório, além de possibilitar a maior marginalização dos ex-escravos, já que esses não
possuíam, em sua maioria, recursos para adquirir lotes de terra mediante a compra. As
facilidades oferecidas aos imigrantes não foram ofertadas aos ex-escravos.

No entanto, em que pese a questão dos escravos e, posteriormente, ex-ecravos, a


imigração era vista, sob o ponto de vista de Silveira Martins, como o caminho do progresso,
pois para que ela pudesse ocorrer de forma magnânima, as leis do Brasil também deveriam
passar por um processo de transformação, alcançando de fato um Estado Moderno, liberal, com
liberdades civis que beneficiariam esse imigrantes:

Este conflicto que se levanta atualmente entre espiritual e o temporal tem origem
naquelle principio fatal, que espero cer um dia supprimido da constituição do Império
– o casamento da Igreja e do Estado. Nos paizes onde a Igreja é livre e livre o Estado,
não se tem estes conflictos, que de momento pertubão a sociedade e abalão seus
alicerces; e se alguma religião tem interesse em condenar a protecçao do Estado aos
cultos e aceitar ampla discussão e livre concurrencia, é a catholica, cuja doutrina
pretende conseguir triumphos promettidos pelo próprio Deus, contra quem não
podem prevalecer as portas do inferno. Todo o bom catholico deve, pois, pedir a
neutralidade, e não a intervenção do Estado nos cultos. (PADOIN, ROSSATO, 2013,
p. 206)
203
Gaspar Silveira Martins em seus discursos afirma-se frequentemente como católico, e a 1
partir disso, usa como apelo para que as questões religiosas não freiem o progresso do país.
Essa defesa da “neutralidade” no que diz respeito às matérias de culto beneficiava, acima de
tudo, os acatólicos que emigravam para o Brasil:

Sr. Presidente, nesta provincia, os seus habitantes não tem direito de fazer
increpações ás crenças christãs; nesta provincia, onde com tanto sacrificio temos
trazido da Allemanha milhares de protestantes para enriquecel-a, felicital-a e
regeneral-a, nenhum de nós póde sem dar provas d‟espirito acanhado e pequenhez
de coração neste seculo de luzes e nesta terra de liberade, lançar em rosto a outrem
os seus principios religiosos. (PADOIN, ROSSATO, 2013, p. 214)

Além disso:
Não se pode censurar um mão bispo, sem que se clame logo – ataca a religião do
Estado; não se pode julgar com justiça os adversarios do Papa, que se não diga logo
– é protestante. Sou catholico, Sr. presidente, mas quero para os protestantes os
mesmos direitos e as mesmas regalias que quero para mim: não quero differenças
odiosas, ridiculas e sobre tudo injustas entre os meus concidadãos. Aristoteles era
pagão e no entanto os padres catholicos de tal modo o estudavão e apreciavão, que
acreditavão mais nelle do que nos Evangelhos. (PADOIN, ROSSATO, 2013, p. 217)

Na Província do Rio Grande de São Pedro, no período imperial, haviam se formado


colônias alemãs, as quais viviam aquém do desenvolvimento da província em função da língua
e do preconceito religioso, entre outros, pois eram de maioria protestante. O político, defensor
da imigração, vai ser claro na busca por facilitações para vinda e para a vida desses imigrantes:

Sr. presidente, eu não tomo sobre meus hombros defender Lutero, e muito menos
accusar a igreja de Roma, eu sou catholico; o que ataco, Sr. presidente, é a
intolerancia religiosa que fez a vergonha do passado da nossa mãi patria e a sua
ruina; o que defendo é a liberdade de consciencia garantida pela constituição, é a
liberdade de direitos dos nossos concidadãos protestantes; não quero que nesta terra
onde vivem tantos protestantes, passem sem protesto semelhantes idéas (apoiados);
não quero que ao longe se pense que os liberaes do Rio Grande atacão a primeira
203
das liberdades, a liberdade de consciencia! (Apoiados.). (PADOIN, ROSSATO, 2013,
p. 217) 2

Também:

Se para a colonização existe o inconveniente da língua, não se acrescente este


inconveniente ao embaraço das instituições, e se quebre para sempre esse embaraço
de crenças, que entre nós não vale nada, porque o povo brasileiro é indiferente as
questões religiosas. Enganam-se os que dizem que os colonos não fazem questão
disto. Os colonos protestantes sabem que nesta pátria não existem direitos para eles
iguais aos dos outros cidadãos, e que seus filhos serão também deserdados. A
população precisa de sangue novo, viril, como o que pode dar a raça germânica. No
Rio Grande do Sul, onde se quer fazer argumento de número, como se a liberdade da
consciência não fosse um direito eterno da humanidade, existem exemplo do que
enuncia. Assim, está no parlamento brasileiro, honrado, mas triste por ter de defender
a liberdade do gênero humano. (MARTINS, 1879, p. 320-321)
Gaspar Silveira Martins defendia a remoção de todos os empecilhos que dificultassem
a vinda e a vida de imigrantes europeus, como a criação do casamento civil e a separação do
Estado e da Igreja Católica (ORICO, 1935, p. 176). Em momentos diversos de sua carreira
política, como deputado provincial, geral, senador, ele defendia a imigração, não só por
defender o Estado Laico e a elegibilidade dos acatólicos, ele citava diretamente o quanto tais
mudanças beneficiariam tais setores e isso seria positivo para a nação.

Rotermund (1979) afirma que a Reforma Eleitoral, e como um dos principais pontos
dela, a elegibilidade dos acatólicos, era uma das principais defesas de Silveira Martins e do
Partido Liberal, como uma ramificação do objetivo maior que era o Estado laico. O autor
argumenta sobre o convite que o Tribuno recebera para ser Ministro da Fazenda no gabinete
chefiado pelo Visconde de Sinimbú (1878), que marcava a volta dos liberais ao poder a nível
nacional. No entanto, quando o partido decide realizar a Reforma Eleitoral, mas descarta a
elegibilidade dos acatólicos, Silveira Martins abdica do cargo.

Sobre este ato, manifestou-se no período um Jornal “Deutsche Zeitung” da colônia


germânica, através do artigo intitulado Silveira Martins, fazendo elogios ao Tribuno por sua
atitude de se retirar da pasta da Fazenda em defesa dos direitos dos acatólicos. O Jornal A
203
Reforma, órgão do Partido Liberal no período, republicou o artigo, em português, para que a 3
fama de Silveira Martins pudesse ser expandida, fazendo a abertura do texto do artigo da
seguinte forma: “O artigo que alludimos (sic) falla (sic) ao dever dos filhos da raça germânica,
desta província, por cujos direitos até agora sofhismados (sic) na constituição do Império,
sacrificou-se o ilustre ex-ministro da Fazenda” (A REFORMA, 9 de agosto de 1879, p. 1).

O artigo trazia o seguinte comentário: “... estentou-se no meio da corrupção reinante tão
limpo e tão puro, como talvez nenhum outro ministro antes d’elle (sic) o fizera” (A REFORMA,
9 de agosto de 1879, p. 1). Tais palavras serviam para legitimar Silveira Martins também como
um defensor do imigrante, interesse vindo do Partido Liberal rio-grandense que esperava
angariar eleitores com a possibilidade de se tornarem votantes os acatólicos. Corroborando com
as afirmações têm-se:

Sua queda, foi, porém, o seu maior successo (sic) político, pois que sustentou os
princípios que sempre tinha defendido...todos os órgãos da população rio-grandense
louvaram sua maneira de proceder, e nunca foi elle (sic) mais popular do que no
momento de sua retirada do poder. (A REFORMA, 9 de agosto de 1879, p. 1)

A Reforma era o periódico que divulgava a bandeira e as ações do Partido Liberal no


Rio Grande do Sul, e foi a partir deste jornal que a abdicação de Silveira Martins tornou-se
naquele momento, e também para os biógrafos citados na primeira parte deste artigo, um
acontecimento memorável. A volta do Tribuno para o Rio Grande do Sul foi marcada por
grandes festejos:

Esta cidade e principalmente o Partido liberal não podiam ser indifferentes (sic) á
chegada desse grande cidadão, sempre aqui festejado pelos seus merecimentos, hoje
que elle (sic) volta á sua província carregado dos louros a que deu-lhe direito uma
direção honesta, activa (sic) e independente dos negócios da Fazenda, pugnando
sempre pelas necessidades de sua província [...]. (A REFORMA, 17 de agosto de
1879, p. 01)

A abdicação do Ministério foi muito bem utilizada pelo Partido Liberal para promover 203
4
Silveira Martins, pois cabe ressaltar que a nível regional a força deste partido era bastante
grande, e o Partido Conservador assistia a consecutivas derrotas.

Gaspar Silveira Martins não defendia apenas a vinda dos imigrantes, mas também
facilidades constitucionais para estes no país. Após sua saída da pasta da Fazenda em 1879, o
político fazia a defesa da elegibilidade dos acatólicos em discursos:

Pedi a palavra para apresentar a esta augusta câmara uma representação da


Assembléia Provincial do Rio Grande do Sul, reclamando contra a injustiça que o
projeto de reforma constitucional consagra contra os cidadãos brasileiros que não
seguem a religião católica apostólica romana, e protestando contra o sistema
adotado no projeto do governo, de dar à assembléia ordinária o direito de marcar
limites aos poderes e atribuições da constituinte. (MARTINS, 1879, p. 300)

Ainda sobre tal defesa, além de seus discursos amplamente divulgados, cabe dizer que
sua saída da pasta da Fazenda pelo motivo alegado de a Reforma Constitucional não ter em sua
proposta a elegibilidade dos acatólicos, não foi bem aceito por todos. Exemplo disso foi o artigo
publicado no período, intitulado “Os acatólicos e o Sr. Gaspar Martins”, publicado pelo jornal
O Comércio, e assinado da seguinte forma: por um rio-grandense. No artigo faz-se uma dura
crítica a Gaspar Martins, principalmente por ele ter deixado a pasta da fazenda, setor importante
do ministério, por causa considerada de menor importância: “[...] aos 50.000 colonos da sua
província, que na grande maioria não falam português, que vivem presos à cultura das suas
pequenas terras, preocupados das variações meteorológicas [...] de nenhum modo interessados
nas evoluções políticas do país” (O COMÉRCIO, 1879, p. 7 – 8).

Nadir Domingues de Mendonça em “O pensamento político de Silveira Martins”, fez


uma análise dos discursos de Silveira Martins no Senado Federal. A autora coloca que Silveira
Martins seguia religiosamente os princípios do Partido Liberal, produzidos em 1863 na
Província rio-grandense, até porque como um dos fundadores ele mesmo havia contribuído para
a formulação, quais sejam: princípio da liberdade individual, da defesa da propriedade, da
responsabilidade dos ministros, da temporariedade do Senado, do sistema representativo, da
independência da magistratura, do serviço militar obrigatório, da descentralização
administrativa, da eleição direta, entre outros (2007, p.79).

A partir dos elementos do partido por ele criado, iria fundamentar suas defesas e ações
203
políticas, inclusive, as que incluíam a defesa da imigração para o Brasil e as facilitações para a 5
vida e trabalho dos imigrantes que no país já se encontravam.

CONCLUSÃO

Com o propósito de pensar a atuação política de Gaspar Silveira Martins que beneficiou
a imigração para o Brasil, destacaram-se seus liames com os setores imigrantes, ou seja, defesas
que efetuava pela vinda dos imigrantes e mudanças na legislação em benefício a eles. É possível
perceber a ênfase no Estado Laico e na elegibilidade dos acatólicos em seus discursos na
Assembleia Geral e provincial, ou seja, em momentos diversos de sua atuação política. Seus
discursos parlamentares mostram suas relações com a imigração, no sentido de ser um exímio
defensor do processo imigratório e de leis que contribuíssem para a vinda de imigrantes, bem
como, sua permanência no Brasil e apontam para possíveis vínculos que o político estabelecia
com os setores imigratórios.
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Saraiva na região fronteiriça entre Brasil e Uruguai (1896 – 1904). 132 f. Dissertação (Mestrado
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de Janeiro por um Rio-grandense. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1879. SILVEIRA
Martins. A Reforma, 9 de ago. de 1879, p. 01.
ENTRE A REGIÃO FRONTEIRIÇA PLATINA E A EUROPA: A TRAJETÓRIA DE
GASPAR SILVEIRA MARTINS *1043

Monica Rossato*

Maria Medianeira Padoin**1044

RESUMO

Este trabalho é referente à pesquisa de doutorado que tem por tema “As relações nacionais e
internacionais na trajetória, pensamento e atuação política de Gaspar Silveira Martins”
desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH-UFSM). O presente trabalho
tem por objetivo realizar uma reflexão histórica sobre a trajetória e atuação política de Gaspar
Silveira Martins na região fronteiriça platina, no fim do século XIX, demonstrando que sua
trajetória e pensamento/posicionamento político estão relacionados a uma base de origem 203
8
fronteiriça e as redes sociais nacionais e internacionais construídas em diferentes espaços, em
que a própria Revolução Federalista é uma possibilidade de analise destas relações construídas.
Na perspectiva da história política, isso auxilia no entendimento da região fronteiriça platina a
partir das especificidades das experiências construídas por ele no âmbito local/fronteiriço e
como estas redes de poder foram mobilizadas e fundamentaram a defesa de seus projetos
políticos para o Brasil.

Palavras-chave: Fronteira; Política; Trajetória.

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria.


* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria
(PPGH/UFSM). E-mail: monymarchesan@yahoo.com.br.
** Professora Doutora e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/UFSM). E-mail:
mmpadoin@gmail.com.
INTRODUÇÃO

O presente artigo está relacionado ao projeto de tese intitulado “As Relações Nacionais
e Internacionais na Trajetória, Pensamento e Atuação Política de Gaspar Silveira Martins”,
desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Santa Maria (PPGH/UFSM), no qual tem por objetivo investigar as redes de poder construídas
por Gaspar Silveira Martins, especialmente em âmbito europeu, e a fundamentação de seu
projeto de Estado Nacional brasileiro com base nas vivencias fronteiriças e transnacionais, em
que modelos, idéias, leituras e contatos europeus se fizeram influentes.

Gaspar Silveira Martins nasceu em 1835, na Fazenda “Asseguá”, Departamento de


“Serro Largo”, Uruguai1045. Oriundo de uma região de fronteira, historicamente construída e
marcada por disputas em torno de projetos políticos entre os diferentes grupos, Gaspar Silveira
Martins percorreu diferentes espaços sociais que foram mobilizados e auxiliaram na construção
de uma trajetória política em reconhecidos cargos políticos junto a Corte. Nesse processo, uma 203
rede de relações nacionais e internacionais1046 foi construída, aproximando pessoas, idéias, 9
leituras, fundamentos políticos, filosóficos e projetos políticos de Estado e fundamentando seus
projetos de Estado para o Brasil. O próprio exílio vivenciado por Gaspar Silveira Martins na
Europa, no período de transição da Monarquia para a República (1889-1892), foi um momento
de ritualização e reafirmação desses vínculos sociais, em contexto de redefinição da
organização do Estado brasileiro (republicano) mobilizando-o na Revolução Federalista (1893-
1895).

Dessa forma, realizamos alguns apontamentos iniciais a respeito das relações de poder
internacionais construídas por Silveira Martins ao longo da sua trajetória, a fim de compreendê-
lo como um representante de uma elite fronteiriça platina, articulado a idéias, projetos, pessoas
e recursos do âmbito político europeu. O sentido de político aqui é visto não somente vinculado

1045
Utilizamos a ortografia “Serro Largo”, conforme documentação de época, ao invés de Cerro Largo. Optamos
também por manter a formatação “Asseguá”, ao invés de Aceguá, conforme aparecem nos documento de época.
1046
Silveira Martins manteve contato com políticos brasileiros e estrangeiros além de idéias que circulavam por
Portugal, Inglaterra, França, Itália, entre outros.
a esfera do Estado e as instituições que o representam, mas estando em todas as instancias
sociais e relações interpessoais1047. Esferas que são permeadas de relações de poder que
ultrapassam o campo político institucional (GOMES, 2005) na reflexão em torno da ação desse
individuo no mundo europeu e na construção de seu projeto político ao Brasil.

Sendo assim, apresentamos alguns elementos de sua trajetória que nos possibilitam fazer
reflexões a respeito da presença e edificação de uma rede internacional de idéias, pessoas e
projeto políticos possibilitados pelos lugares que ocupou, formação, relacionamentos, entre
outros, durante sua vida.

1. Capítulo I – A construção da trajetória política de Gaspar Silveira Martins

A origem fronteiriça platina de Silveira Martins complexifica e potencializa as analises


em torno da elite que ali se desenvolveu e traz especificidades no que tange ao perfil desta elite
fronteiriça, como a questão envolvendo as redes de poder em âmbito europeu.
204
A presença e inserção das famílias Silveira e Martins remontam ao inicio do século XIX
com o estabelecimento de eu avô materno, o português João Antônio Martins, em terras 0
fronteiriças espanholas, a serviço da coroa portuguesa. A partir desse estabelecimento, seus
pais, Carlos Silveira e Maria Joaquina Martins passaram a morar nas terras de João Antonio
Martins e a se inserirem na política local da República do Uruguai, em que Carlos Silveira atuou
como juiz de paz em “Asseguá”. Da mesma forma, o registro dos sobrenomes de Gaspar,
demonstram uma tradição espanhola, em que o sobrenome materno “Martins” foi registrado
como ultimo sobrenome1048.

1047
A perspectiva de renovação da História Política é desenvolvida em autores como: Jacques Julliard (1976),
Pierre Rosanvallon (1995), René Remond (1996), Ângela de Castro Gomes (2005), entre outros.
1048
Para demonstrar o processo de participação das elites provinciais junto ao centro do Império e como os
membros da elite sul-rio-grandense construíram suas trajetórias de inserção ver o trabalho de Vargas (2007). Sobre
a trajetória de Silveira Martins, ver também: ROSSATO, Monica. Relações de poder na região fronteiriça platina:
família, trajetória e atuação política de Gaspar Silveira Martins. 163f. Dissertação (Mestrado em História).
Programa de Pós-Graduação em História, UFSM, Santa Maria, 2014; ROSSATO, Monica; PADOIN, Maria
Medianeira. Gaspar Silveira Martins: perfil biográfico, discursos e atuação política na Assembleia Provincial.
Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 2013.
Por este contexto familiar e pela trajetória de Silveira Martins, demonstramos a dupla
cidadania que o mesmo pode ter, ao estar inserido em um espaço fronteiriço entre Estados
Nacionais em construção, a partir das legislações vigentes1049, o que permitiu sua circulação
por este espaço, como político e mediador (durante o Império) e como articulador na Revolução
Federalista (1893-1895).

Ao ter nascido na região fronteiriça platina, Gaspar Silveira Martins realizou seus
estudos secundários em Pelotas, Rio Grande do Sul e cursos preparatórios para as Academias
do Império, no Colégio Victório, Rio de Janeiro. Em 1851 matriculou-se no Curso Jurídico de
Olinda (Pernambuco), transferindo o curso para a Academia Jurídica de São Paulo, onde
formou-se Bacharel em Direito em 1856. Nesse mesmo ano, casou-se com Adelaide Augusta
de Freitas Coutinho. Em seguida, exerceu a advocacia no Rio de Janeiro, no escritório de seu
sogro, o Dr. José Julio de Freitas Coutinho. De 1860 a 1864 atuou como Juiz Municipal no Rio
de Janeiro. Nas eleições para a Assembleia do Rio Grande do Sul foi eleito Deputado Provincial
pelo Partido Liberal Histórico assumindo o cargo em 1862. Em 1872 ele assumiu como
Deputado Geral na Câmara dos Deputados, e permaneceu até 1879. Foi Ministro da Fazenda
do Império em 1878, e entre 1880 a 1889 atuou como Senador. Em 1889 foi empossado à 204
Presidência da Província do Rio Grande do Sul.
1
Com a proclamação da Republica e o fim do Império em 1889, por um decreto do
governo republicano, Silveira Martins foi desterrado do território nacional em direção a Europa,
onde permaneceu até 1892. Nesse ano, com o seu retorno ao Rio Grande do Sul, ex-liberais e
dissidentes republicanos organizaram o Partido Federalista (PF), em Congresso reunido em
Bagé, Rio Grande do Sul. As divergências de idéias, projetos e interesses entre o Partido
Federalista e o Partido Republicano Rio Grandense (PRR), que estava no poder do estado do
Rio Grande do Sul, levaram à Revolução Federalista, entre 1892 a 1895. Silveira Martins atuou
como articulador político do conflito, contra o grupo dos republicanos que tinham por líder

Segundo a Carta Constitucional do Império de 1824, consideravam-se cidadãos brasileiros “Os filhos de pai
1049

brazileiro, e os illegitimos de mãi Brazileira, nascidos em paiz estrangeiro, que vierem a estabelecer domicilio no
Império”. In: BRASIL. Constituição do Império de 1824, art. 6, parag. II. Constituição disponível em
HTTP://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm.>. Acesso em: 09 ago. 2013. A
Constituição do Estado Oriental do Uruguai de 1830 considerou cidadãos naturais todos os homens livres, nascidos
em qualquer parte do território do Estado. In: URUGUAY. Constitución de la Republica Oriental del Uruguay,
1830, Sessión II, Capítulo I, Artículo 8º. Disponível em:
http://www.parlamento.gub.uy/palacio3/index1280.asp?e=0&w=1366.> . Acesso em: 09 ago. 2013.
Julio de Castilhos. Após o conflito, em 1896 foi organizado um novo Congresso Federalista
onde foi defendido a continuidade do Partido Federalista e a oposição a Constituição Federal
da Republica. E, em 1901, Silveira Martins faleceu em Montevidéu, e dezenove anos depois,
seus restos mortais foram trazidos ao Rio Grande do Sul e depositados na Igreja Matriz de
Bagé1050.

Gaspar Silveira Martins atuou junto ao Partido Liberal no Império brasileiro, entre 1862
a 1889, ocupando os cargos mais altos do período como os de Deputado Provincial, Deputado
Geral, Senador, Ministro da Fazenda, Presidente de Província e nomeado Conselheiro do
Império. Nessa trajetória, compartilhou ideias de pensadores, economistas, filósofos, políticos
como Senior, Stuart Mill, Thiers, Emillio Laveleye, Voltaire, Lord Palmersten, Ventura de
Raulica, Julien de la Graviére, Ives Guyot, Thiers, Gambetta e Gladstone, pessoas que foram
mencionadas em seus discursos políticos e conferencias no período imperial, muitos deles
contemporâneos de Silveira Martins no Império. Os exemplos de sistemas representativos e
parlamentares da Inglaterra e França eram mencionados como modelos ao sistema imperial
brasileiro e depois republicano, em defesa de um projeto de organização de Estado
Representativo e Parlamentarista. 204
Em seus discursos políticos na Câmara dos Deputados, Senado Federal e nas 2
publicações constantes em periódicos, Silveira Martins apresentava posicionamentos políticos
fundamentados em princípios e idéias liberais, ao mencionar autores e políticos, nos quais
esteve em contato durante sua formação acadêmica, profissional, política e como membro da
maçonaria. Sua retórica liberal incluía a defesa do legislativo (sistema parlamentar),
descentralização provincial e autonomia dos municípios, Estado laico, liberdade de cultos,
casamento civil, entre outros.

Formação liberal construída também por sua experiência de integrar-se a Europa, onde
percorreu países como a Inglaterra, França, Alemanha, Rússia, Polônia, Itália, Portugal, lugares
em que pode construir contatos com filósofos, literatos e políticos (JACQUES, s/d).

1050
Após sua morte, o corpo permaneceu em Montevidéu retornando ao Rio Grande do Sul por meio de um decreto
presidencial que abria credito para repatriação dos seus restos mortais (GASPAR Silveira Martins. Jornal Gaspar
Martins, Santa Maria, 28 de junho de 1920, Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria).
Com o fim do Império em 1889, o governo republicano decretou o desterro de Silveira
Martins do território nacional em direção ao continente europeu, junto com outros
companheiros seus do Partido Liberal. Entre as justificativas para esse decreto de desterro
constou o fato de que “alguns cidadãos procuram fomentar, dentro e fora do Brazil, o descredito
da patria por agitações que podem trazer a perturbação da paz publica, lançando o paiz ás
contingencias perigosas de uma guerra civil”1051.

O próprio decreto de exílio feito pelo Governo Republicano demonstra a preocupação


do governo provisório, frente a capacidade de articulação de Gaspar Silveira Martins e seus
companheiros na região fronteiriça platina, o que causaria uma possível instabilidade na
instituição republicana recém implantada, justificando estar o interesse nacional acima da
liberdade individual dos exilados políticos. Nesse sentido, a Europa foi o local imposto pelo
governo para exílio de Silveira Martins, uma vez que notícias de conspirações contra a
república, promovidas por seus aliados na região fronteiriça platina, circulavam na imprensa
brasileira e platina logo após a proclamação da República.

Após a sua vivencia européia, ao retornar do exílio em 1892, Silveira Martins participou
da organização do Partido Federalista, defendendo a instituição de uma Republica
204
Parlamentarista Unitária, pois o mesmo temia o excesso de poder nos Estados e do militarismo 3
aliado aos republicanos. Para Freitas (1999), o receio do militarismo expresso por Silveira
Martins deve-se ao exemplo de Portugal, onde os militares fabricaram ministérios e cometiam
excesso de autoridade. Mais tarde, em seu Testamento Político de 1901 consta a defesa pela
implantação do sistema francês de escolha do Presidente, em que a eleição do Presidente da
República seria feita pelo Congresso Nacional. Neste Testamento Político, estão documentados
os principais projetos de Estado e organização dos poderes construídos na sua trajetória, em
que a experiência exterior de contato com intelectuais, políticos e vivências de realidades
políticas européias, teve influencia e contribuição na formação de seu pensamento político
moderno e liberal.

1051
BRASIL. Decreto nº 78, de 21 de dezembro de 1889. Coleção de Leis do Império do Brasil - 1889, Página 273
(Publicação Original). Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-78-21-
dezembro-1889-542219-publicacaooriginal-50068-pe.html.> . Acesso em: 28 set. 2015.
2. Capitulo II – As relações de poder na Europa: exílio, viagens e contatos de
Silveira Martins

Em seus discursos políticos na Câmara dos Deputados, Senado Federal e nas


publicações constantes em periódicos, Silveira Martins apresentou posicionamentos políticos
fundamentados em princípios e idéias liberais, ao mencionar autores e políticos, nos quais
esteve em contato durante sua formação acadêmica, profissional, política e como membro da
maçonaria1052. Além de estar em contato com a Europa, por onde percorreu países como a
Inglaterra, França, Alemanha, Rússia, Polônia, Itália, Portugal, lugares em que pode construir
contatos com filósofos, literatos e políticos:

Desterrado, honrou o Brasil, convivendo com sábios, filósofos, literatos e políticos


eminentes, dos países europeus. Esteve na Inglaterra, na França, na Alemanha, na
Rússia, na Polônia, na Itália e em outros grandes centros da civilização mundial, a
observar e estudando. Aprendeu a falar a língua de cada um desses povos, apesar
204
dos poucos meses de estada entre eles. Repeliu e fez frustrar uma conspiração contra
a Republica, que se organizara em França. Voltando a Pátria organizou um 4
Congresso Político, que estabeleceu as bases de uma Republica Parlamentar,
introduzindo inovações no mecanismo politico-administrativo do Estado, que o tempo
acabou consagrando. (...) Silveira Martins organizou um segundo Congresso
Político, que desenvolveu as idéias mestras do primeiro e elaborou um programa,
instituindo a Republica Parlamentar, no molde francês. (JACQUES, s/d, p. 256)

Em conferência com Silveira Martins, o jornalista Bierce também descreveu que, para
mostrar sua cultura, Silveira Martins exibia-se falando de suas viagens a Europa e encontros
com personalidades européias como Bismarck, Spencer, Renan e Carnot (FREITAS, 1999). O
exílio significou um período em que seus projetos de estado foram revistos, especialmente pela
experiência intelectual e política no mundo europeu, pois o mesmo:

1052
Membro da maçonaria, Gaspar Silveira Martins recebeu o titulo de Grão-Mestre da Ordem Maçônica do
Grande Oriente Brasileiro, no Rio de Janeiro, grau máximo no interior desta organização secreta. Fonte: Certidão
de Gaspar Silveira Martins como Grão-Mestre da Ordem. Grande Oriente Brasileiro, 1883. Fonte: Acervo do
Grande Oriente do Rio Grande do Sul (GORGS), Porto Alegre, RS.
Andou por Paris, Londres, Berlim, Madrid, Bruxelas, Roma e Lisboa, freqüentando
museus, remexendo arquivos, catando raridades. Suas principais diversões, em
qualquer parte onde chegasse, eram o parlamento e as livrarias. Perdia horas e horas
ouvindo os mais famosos e discutidos oradores da época. Levava dias e dias em
peregrinação pelos antiquários e ‘sebos’ a procura de obras célebres e edições
raríssimas (ORICO, 1935, p. 321-322).

O exílio como um percurso intelectual de Silveira Martins também foi mencionado na


biografia escrita por seu filho, José Julio Silveira Martins (1929), uma vez que o mesmo
vivenciou estes momentos ao lado de seu pai. Entre seus depoimentos sobre a passagem de
Silveira Martins pela França, consta que em Paris “Um de seus amigos prediletos era François
Jourde que era ministro das Finanças nos dias da Communa vindo a falecer em 1893. Silveira
Martins tinha grande admiração por esse político francês, com quem tinha tantos pontos de
contato (MARTINS, 1929, p. 365).

Nesse sentido, as biografias trazem elementos que auxiliam na investigação das relações
de poder construídas em âmbito internacional de Gaspar Silveira Martins, integrando-se e 204
5
compartilhando idéias com reconhecidas lideranças no mundo europeu. Esses contatos
possivelmente foram construídos em viagens, encontros, leituras e correspondências ao longo
de sua trajetória política no Império brasileiro. Por ter ocupado os cargos mais importantes do
Império possibilitou algum tipo de contato com lideranças européias, e em seus discursos esses
políticos e/ou idéias defendidas por eles eram explicitadas. Ao mesmo tempo, a vivência do
exílio possibilitou a Silveira Martins rever conceitos, projetos políticos e a realidade brasileira,
uma vez que o mesmo retorna da Europa propondo uma forma de governo alternativa ao modelo
republicano, ao defender a República Representativa Parlamentarista.

De maneira geral, cabe destacar que a historiografia omite esse período histórico de
aproximações e construção de relações sociais internacionalmente de Gaspar Silveira Martins
na Europa e de como isso esteve presente nas disputas entre os diferentes projetos de Estado e
de organização do poder no Brasil. Esses trabalhos se restringem ao período seu retorno do
exílio, quando ex-liberais e republicanos dissidentes se reorganizaram na construção do Partido
Federalista e que Silveira Martins voltou defendendo um sistema unitário Parlamentar1053.

Em sua atuação política no Império, preconizou uma descentralização administrativa


das províncias e maior autonomia das municipalidades, para gerirem sobre seus negócios,
defesas inseridas em um contexto de centralização imperial. Com a Proclamação da República
em 1889 e seu retorno do exílio em 1892, Silveira Martins passou a defender a instituição de
uma Republica Parlamentarista Unitária, pois o mesmo temia o excesso de poder
descentralizado nos Estados e do militarismo aliado aos republicanos. No seu retorno ao Rio
Grande do Sul, em 1892, fundou-se em Bagé o Partido Federalista, tendo por chefe Silveira
Martins, na qual o termo “federalista” “aqui não significa “federativista”, mas partidário do
predomínio do poder federal sobre os Estados” (SOARES, 2007, p. 367). Dessa forma, “com a
chegada da republica, surgiu a ideologia política de inspiração positivista, que em seus pontos
fundamentais se opunha à concepção política de inspiração liberal, predominante durante o
império”, articulada por ex-liberais no Partido Federalista (RODRIGUES, 2007, p.60).

204
CONCLUSÃO
6
A trajetória de Gaspar Silveira Martins é analisada como uma possibilidade de pesquisa
para complexificarmos o espaço social fronteiriço, uma vez que explicações generalizantes e
categorias fixas muitas vezes, homogeneízam processos e simplificam a realidade social a partir
de padrões construídos. Neste sentido, a sociedade fronteiriça trata-se de uma realidade social
complexa, em que a trajetória de Gaspar Silveira Martins é utilizada aqui para demonstrar o
compartilhamento ou não de idéias, projetos, formas de organização de Estado, a fim de
demonstrar as coerências e incoerências dos padrões explicativos da sociedade fronteiriça, já
que possuem diferentes alcances entre os diferentes grupos sociais.

Nesse intuito, acreditamos que a pesquisa sobre Silveira Martins auxilia na observação
do processo histórico da sociedade fronteiriça e que, por sua trajetória de experiências,

1053
Gutfreend (1979) afirmou que desde sua chegada, Silveira Martins reafirmou sua defesa a favor de um regime
republicano representativo, em moldes parlamentaristas, combatendo o presidencialismo. Nessa mesma
perspectiva, Costa (2001) evidencia que Silveira Martins defendera uma constituição republicana, representativa
segundo os moldes do parlamentarismo, sistema que se baseava no modelo inglês, local onde Silveira Martins
esteve.
caminhos e inter relação com outros sujeitos, bem como as escolhas tomadas trazem outros
significados para as compreensões de fronteira, de política e de sociedade do século XIX e
contribuem para o aprofundamento da temática no âmbito da história política.

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204
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8
PELAS VEREDAS DO IMPÉRIO: MOBILIDADE SOCIOECONOMICA E
ESPACIAL ATRAVÉS DA TRAJETÓRIA DO VISCONDE DE SERRO ALEGRE
(RIO GRANDE DO SUL, c.1810 – c. 1870)*1054

Leandro Rosa de Oliveira**1055

RESUMO

O presente trabalho pretende analisar algumas nuances da trajetória de João da Silva Tavares,
Barão e depois Visconde de Serro Alegre, ao longo do século XIX. Através da visualização dos
aspectos socioeconômicos da trajetória de Serro Alegre, serão averiguadas não só as
características da construção patrimonial por ele efetuada ao longo da vida, como também
alguns dos mecanismos possíveis de serem acessados para a mobilidade socioeconômica dos

204
indivíduos inseridos no contexto em questão, dentre os quais está a própria mobilidade espacial.
Em um primeiro momento, será feita uma análise da trajetória patrimonial de Silva Tavares, na
qual os diferentes momentos patrimoniais do futuro Visconde serão colocados em comparação 9
entre si e com o do último patamar patrimonial de José da Silva Tavares, pai do Visconde de
Serro Alegre. Em seguida será feita uma análise do último momento patrimonial de João da
Silva Tavares através do seu inventário, o qual será colocado em comparação tanto com a
estrutura econômica encontrada para a localidade de Bagé, na qual viveu o último período de
sua vida, como também com as características socioeconômicas de outras localidades da então
província de São Pedro do Rio Grande do Sul.

Palavras-chave: Visconde de Serro Alegre; Mobilidade Socioeconômica; Brasil Imperial.

* Trabalho Apresentado no Congresso Internacional de História da Universidade Federal de Santa Maria. Este
artigo é composto por excertos do primeiro e terceiro capítulos de minha Dissertação de Mestrado, intitulada “Nas
Veredas do Império: Guerra, política e mobilidades através da trajetória do Visconde de Serro Alegre (Rio Grande
do Sul, c. 1780 – c. 1870)”, defendida em março deste ano.
** Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-
mail: leandrodeoliveira@msn.com .
INTRODUÇÃO

Neste trabalho serão analisadas algumas das características socioeconômicas da


trajetória de João da Silva Tavares, Barão e depois Visconde de Serro Alegre. Tendo nascido
em Rio Grande no ano de 1792, Silva Tavares migrou com seus familiares nos primeiros anos
do século XIX para a localidade de Herval, na qual viveu grande parte de sua vida, exercendo
cargos de mando local ligados à justiça e ao mundo da guerra, assim como atividades ligadas à
produção pecuária. Após a Revolução Farroupilha, conflito no qual Silva Tavares perdeu
grande parte de seus bens, o futuro Visconde migrou novamente, dessa vez para Bagé, onde
restabeleceu suas atividades produtivas.

Atuando através das veredas da guerra e das instituições que eram criadas pelo Império
do Brasil e estabelecidas nesse espaço de fronteira durante o Oitocentos, Silva Tavares
205
construiu seu prestígio, tendo obtido os títulos de Barão e depois Visconde de Serro Alegre
como reconhecimento pelos serviços que prestara à Coroa ao longo de sua vida, além de ter 0
ocupado importantes cargos de mando local e regional e atuado na esfera política. Aliando o
prestígio oriundo dos serviços prestados à Coroa ao longo de sua vida à mobilidade espacial, a
qual também foi algo marcante em sua trajetória, Silva Tavares pode construir um significativo
patrimônio material, construção essa a qual será analisada neste trabalho através da comparação
de seus diferentes momentos.

1. Capítulo I - Construir: mobilidade socioeconômica através de uma trajetória


patrimonial

Para efetuar as comparações relativas à trajetória patrimonial do Visconde de Serro


Alegre, utilizaremos como base o inventário dos seus bens realizado após seu falecimento em
1872, ano de seu falecimento. Fonte de grande relevância para a análise das características
socioeconômicas de diferentes contextos, os inventários post mortem fornecem não só
informações relativas à família dos inventariados, mas também sobre sua situação patrimonial
no momento de seu falecimento (FARINATTI, 2010; OSÓRIO, 2007; ZARTH, 2002). Em
virtude disso, tais fontes permitem a comparação de um patrimônio individual não só com o
contexto regional no qual o inventariado estava inserido, mas também com relação aos
diferentes momentos patrimoniais relativos a si próprio ou a seus familiares ao longo de sua
vida. Serão esses os aspectos que abordaremos neste trabalho, a começar por este último.

Em termos gerais, o patrimônio do Visconde de Serro Alegre apresentou, quando da


abertura de seu inventário, as seguintes características: as propriedades imóveis, as quais
correspondiam a 83% do seu patrimônio, totalizaram 34.673,54 libras esterlinas1056, sendo que
£29.895,83 (71,5% do total) dizia respeito à sua estância; o rebanho, correspondente a 13,2%
do patrimônio e avaliado em £5.512,50, era constituído por 10.120 animais, dos quais 8.000
eram reses; a escravaria, por sua vez, era composta por 19 cativos, avaliados em £1.500,68,
valor relativo a 3,6% do montante patrimonial1057. O monte-mor, valor total dos bens avaliados
no inventário do Visconde, correspondeu a £41.790,88. 205
No intuito de avaliarmos a evolução patrimonial de João da Silva Tavares ao longo do 1
tempo, efetuaremos algumas comparações com seus diferentes momentos patrimoniais. Para a
realização de tais comparações, além das limitações relativas às fontes disponíveis, precisam
ser levadas em consideração as oscilações relativas não só aos valores monetários, mas

1056
Utilizaremos, neste trabalho, a mesma metodologia de conversão de valores para libras esterlinas utilizada por
Gabriel Berute em sua tese de doutorado, com o intuito de efetuar comparações de valores ao longo do tempo. Em
seu trabalho, o autor supracitado justifica a conversão da seguinte maneira: “Tendo em vista a desvalorização do
Mil-réis relacionada à inflação e as flutuações das taxas de câmbio, assim como para uma melhor avaliação da
evolução dos valores monetários ao longo do período, optei por utilizar os valores expressos em libras esterlinas.
Para a conversão dos valores foi utilizada a tabela ‘Taxa de câmbio média anual da libra esterlina (réis por pence)
na praça do Rio de Janeiro (RJ) [1809-1939]’.” “Até a adoção do sistema decimal pelo Reino Unido (1971), cada
libra valia 20 shillings, que por sua vez valia 12 pence, logo uma libra equivalia a 240 pence. O Mil-réis, por sua
vez, era um sistema de base milesimal. De tal modo, para o cálculo da conversão foi aplicada a seguinte fórmula:
Valor em Libras (£) = |(Valor em Mil-réis ($) x Taxa de câmbio “pence”) : 240| : 1000.” BERUTE, 2011, p. 101,
nota 217. É importante ressaltar também que a taxa de câmbio de libras esterlinas para mil-réis sofreu uma grande
queda ao longo do século XIX. A tabela citada pelo autor está disponível em:
<http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx> . Acesso em 04 de janeiro de 2016.
1057
Os 0,2% restantes correspondiam a duas carretas. ARQUIVO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO SUL.
Inventário post mortem do Visconde de Serro Alegre, Autos 62, Maço 2, Estante 142, Cartório Cível e Crime,
Bagé, 1872. Todas as informações que apresentarmos doravante sobre este inventário foram obtidas a partir dessa
mesma fonte.
principalmente às variações conjunturais de preços ao longo do tempo1058. Apesar dessas
peculiaridades, consideramos que essas comparações sejam bastante pertinentes para a
visualização da evolução patrimonial de Silva Tavares.

Podemos considerar, como um primeiro momento dessa comparação, a herança


recebida por João da Silva Tavares quando do falecimento de seu pai, em 1813. A cada um dos
4 filhos de José da Silva Tavares foi destinado, à época, a quantia de £220,131059. Para que se
possa ter uma ideia inicial, cada um dos 9 filhos do Visconde de Serro Alegre recebeu, quando
da partilha relativa a seu inventário em 1872, a quantia de 2.802,98 libras, ou seja, nada menos
do que 10 vezes o valor que João da Silva Tavares recebera de herança de seu pai em 1813.
Esse valor era, inclusive, superior ao monte-mor relativo ao inventário de José da Silva Tavares,
o qual correspondeu a £1.982, 37. Por seu turno, o valor relativo ao inventário do Visconde,
mais de 20 vezes maior do que o valor patrimonial acumulado por seu pai, já demonstra, apesar
das já mencionadas oscilações relativas a valores monetários e preços1060, a interessante
ascensão econômica de João da Silva Tavares ao longo de sua vida.

Podemos estabelecer, para melhor ilustrar as diferenças entre os inventários de pai e


filho, um breve paralelo patrimonial entre João da Silva Tavares e seu pai: a propriedade rural
205
de José da Silva Tavares fora avaliada em £1.306,66, valor 28 vezes menor que a estância do 2
Serro Alegre, avaliada em £29.895,83 no ano de 1872. Com relação aos rebanhos, o Visconde
de Serro Alegre possuía, nesse mesmo ano, 8.000 cabeças de gado, 1500 ovelhas e 620 equinos,
os quais foram avaliados em £5.512,50, valor 14 vezes maior que as £378,12 relativas ao
rebanho de seu pai, o qual possuía, em 1813, 1000 reses, 200 ovelhas e 110 equinos. Por fim,
constam 7 escravos no inventário de José da Silva Tavares, avaliados em £390,88; seu filho, no
ano de 1872, possuía 19 escravos, aos quais foram atribuídos o valor total de £1.500,68.

1058
Em sua tese, ao analisar as fortunas dos charqueadores de Pelotas ao longo do século XIX, Jonas Vargas cita
fatores como o fechamento das fronteiras agrárias e a redução da acessibilidade à mão de obra escrava, decorrente
do fim do tráfico atlântico, como alguns dos responsáveis pelas variações dos valores monetários dos bens de
produção relativos à produção pecuária durante o período em questão. VARGAS, 2013. Ver também: OSÓRIO,
2007; ALADRÉN, 2012; GARCIA, 2005; AITA, 2014.
1059
ARQUIVO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO SUL. Inventário post mortem de José da Silva Tavares, Autos
22, Maço 1, Estante 97, Cartório de Órfãos e Ausentes, Jaguarão, 1813. Todas as informações que apresentarmos
doravante sobre este inventário foram obtidas a partir dessa mesma fonte.
1060
É importante ressaltar novamente que a taxa de câmbio de libras esterlinas para mil-réis sofreu uma grande
queda ao longo do século XIX. Dados disponíveis em: <http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx> . Acesso em
04 de janeiro de 2016.
Voltemos, todavia, à trajetória patrimonial de João da Silva Tavares. No ano de 1822, o
então Alferes Silva Tavares adquiriu a Chácara do Bomfim, na localidade de Herval, onde à
época residia. O total da compra, realizada a prestações, correspondeu à £738,73, dos quais
£205,20 eram relativos à propriedade, £205,20 diziam respeito a 5 cativos e £328,33
correspondiam a uma quantidade não especificada de reses 1061. Para fins de efetuar uma
comparação com um contexto temporalmente mais próximo, estabeleceremos um paralelo entre
as posses adquiridas nesse momento por Silva Tavares e aquelas listadas no inventário de seu
pai, datado de 1813, as quais repetimos aqui: a propriedade rural, 1.036,66 libras; os 7 escravos,
390,88 libras e o total de animais, 378,12 libras. Como fica evidenciado, em que pesem as
variações relativas aos valores “unitários” dos animais, das terras e dos escravos, os quais
possuem inúmeras variáveis, tais como quantidade, qualidade e oferta no mercado, cremos que
é possível afirmar que Silva Tavares iniciava sua vida de proprietário, em termos meramente
econômicos, em um patamar abaixo do que o seu pai apresentava quando do seu falecimento.
Essa afirmação pode ser corroborada a partir da evolução dos preços no Rio Grande do Sul
colonial demonstrada por Helen Osório: entre os períodos de 1790-1810 e 1815-1825, os preços
das cabeças de gado e das unidades produtivas tiveram altas de 114% e 85,8%, respectivamente, 205
em decorrência dos conflitos que afetavam a região (OSÓRIO, 2007), o que nos leva a crer que
João da Silva Tavares estivesse adquirindo um rebanho bem menor do que as 1000 cabeças de 3
gado presentes no inventário de seu pai. Da mesma forma, o valor médio de um escravo do sexo
masculino com idade entre 20 e 30 anos aumentou 56% no mesmo período (OSÓRIO, 2007).
Conforme Gabriel Aladrén, o preço médio de um escravo na faixa etária entre 15 e 40 anos
sofreu, apenas durante o período entre 1816 e 1820, um aumento de 24% (ALADRÉN, 2012).
No que diz respeito ao valor das propriedades rurais de pai e filho, a diferença gritante torna-se
ainda maior caso consideremos o aumento percentual demonstrado, nesse quesito, por Helen
Osório, conforme citamos acima.

Para fins de comparação, é interessante observar também que o pai de João da Silva
Tavares estaria entre os 8,5% de inventários do Rio Grande do Sul cujas fortunas foram
contabilizadas com valores entre £1001 a £2000 na metade da década de 1810. Estaria abaixo
dos 12,2% dos inventariados com mais de £2001, mas também estaria acima dos 79,3%

1061
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Transmissões e Notas. Rio Grande: 2º
Tabelionato, Livro 2 a 21 (18.02.1811 – 01.02.1852).
restantes, os quais correspondem aos inventários com £1000 ou menos (OSÓRIO, 2007). José
da Silva Tavares estaria, portanto, em uma posição intermediária em termos de patrimônio
naquele período. Como afirmamos anteriormente, João da Silva Tavares começara sua trajetória
patrimonial em um patamar abaixo daquele no qual seu pai se encontrava em 1813, ou seja, em
uma posição também intermediária em termos econômicos, algo que salienta sua ascensão
econômica ao longo de sua vida, por mais que sua posição inicial talvez não fosse das mais
precárias em termos econômicos, como os dados acima colocados sugerem. É possível de se
visualizar essa ascensão ao se estabelecer um paralelo entre a compra acima descrita e o
patrimônio inventariado de Silva Tavares. No que diz respeito à quantidade de cativos, houve
um grande aumento do seu plantel entre aquele momento e o ano de 1872, no qual o Visconde
de Serro Alegre possuía 19 escravos, ainda mais considerando o fato de que, no ano de 1824,
Silva Tavares reduzira seu plantel para 3 escravos1062, possuindo, à época, um dos menores
planteis d

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