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ARTIGOS

O autor foi membro da equipe central do CEI-ITAICI até o ano passado. Bom
conhecedor da metodologia inaciana, é um ardoroso defensor da prioridade da
experiência pessoal sobre o conteúdo doutrinal dos Exercícios. Nesta revista
publicou, entre outros trabalhos, “Revivendo a caminhada (à luz das anotações)”,
Itaici 19, 31-36. Agora, torna a tratar do tema, de uma maneira mais sistemática,
mas sempre baseando-se na experiência.

AS ANOTAÇÕES (EE 1-20)


Pe. Paulo Pedreira de Freitas, SJ

Da Pessoa Humana adamita pecadora para a Pessoa Humana nova em Cristo

A primeira anotação e o número 21 do livrinho dos Exercícios Espirituais (EE)


apresentam o que são os EE, descrevendo algo do seu desenrolar e indicando suas
finalidades. São diversos modos de proceder, nos quais a pessoa é iniciada para
acolher e participar ativamente num processo de transformação existencial. A
pessoa se prepara e se dispõe para participar mais plenamente de uma caminhada,
na qual, pelo simples fato de viver neste planeta, já está existencialmente
comprometida, embora não totalmente consciente: da Pessoa Humana adamita
pecadora, para a Pessoa Humana nova em Cristo. "Assim como passear, caminhar
e correr são exercícios corporais, chamam-se exercícios espirituais diversos modos
da pessoa se preparar e dispor para tirar de si todas as afeições desordenadas. E,
depois de tirar estas, buscar e encontrar a vontade divina na disposição de sua vida
para sua salvação" (EE 1).

"EE para vencer a si mesmo e ordenar sua vida, sem se determinar por nenhuma
afeição desordenada" (EE 21). Toda pessoa humana participa da desordem
acontecida no Adão pecador. Participa, igualmente, na amorosa e misericordiosa
vontade divina comunicando novamente a vida através de Cristo. Toda pessoa está
comprometida, mais ou menos conscientemente, neste mistério de vida, de
liberdade, de amor misericordioso, concretizado na pessoa de Jesus Cristo! Os EE
levam a pessoa a participar, livre e conscientemente, de modo mais pleno, no
mistério da vida humana. O amor de Deus, em Cristo, cria e reconduz os homens
para o Pai. A iniciativa de vida de Deus. Os EE nos levam a constatar que não
caminhamos sozinhos. Através deles, somos convidados a perceber e eliminar
nossos desvios. Preparamo-nos, assim, para acolher o Cristo Salvador e aderir,
resolutamente, a Ele. Os EE são uma escola do seguimento de Jesus Cristo.

Em busca do encontro com alguém que me espera e me realiza.

Os EE são dados e recebidos. É imprescindível a ação de quem os dá e de quem os


recebe. Contudo, há uma ação maior e fundamental, garantia de todo o processo. O
que dá os EE "deve narrar fielmente a história de tal contemplação ou meditação,
apresentando, breve ou sumariamente, os pontos. Pois, assim, a pessoa que
contempla, tomando o verdadeiro fundamento da história, discorre e raciocina por si
mesma”, descobre "alguma coisa" que a esclarece ou faz "sentir um pouco mais a
história". Encontra, assim, o que tanto deseja. Por isso, volta, nas repetições, para
aprofundar mais a experiência. Neste processo "tem maior gosto e fruto espiritual".
Vai educando sua afetividade. Preparando a sua liberdade para extirpar as vontades
desordenadas e acolher a amorosa vontade de Deus, dispondo de sua vida para lhe
dar mais vida. “Não é o muito saber que sacia e satisfaz a pessoa”, em toda sua
afetividade, no seu coração, e a leva à mudança e ao crescimento, "mas o sentir e
saborear as coisas internamente" (EE 2).

É pois, o protagonismo do Cristo, no qual tudo foi criado, que se encarnou e


ressuscitou, que continua atuando na História com seu Espírito. Que move a atrai a
criatura e espera a sua resposta livre. A vida acontece na comunhão da criatura com
o Criador e Senhor. Os EE preparam e dispõem para a descoberta desta vida
oferecida pelo Senhor e para, agradecido, aderir a ela. "Apenas continuo correndo
para conquistá-lo, porque eu também fui conquistado por Jesus Cristo" (Fl 3,12)

Depois de uma procura, mais ou menos, longa, ao encontrar tão grande mistério,
surge naturalmente o maior respeito. "Ao falarmos ... com Deus nosso Senhor ...
requer-se, de nossa parte, maior reverência do que ao usarmos o entendimento
para compreender" (EE 3).

Cada pessoa leva consigo sua maneira de ser e sua história. Nada deixa de fora ou
para ser resolvido depois. Os ritmos do encontro com o Senhor da História são
diferentes. E devem ser respeitados. "Alguns são mais lentos para encontrar o que
buscam, ... Assim também, alguns são mais diligentes que outros, mais agitados ou
provados por diversos espíritos. Torna-se, portanto, necessário, algumas vezes,
abreviar a semana, outras vezes, alongá-la", ... "buscando as coisas conforme a
disposição das pessoas"1 (EE 4). Máximo respeito para as circunstâncias de lugar,
tempo e pessoas !

Alguém nos espera

Certos de que estamos caminhando ao encontro de Alguém maior do que nós e que
nos ama desmesuradamente, não vamos carregados de projetos, nem reservamos
forças para o futuro. Tudo oferecido "com grande ânimo e liberalidade, para que sua
divina Majestade se sirva, conforme Sua santíssima vontade, tanto de sua pessoa
como de tudo o que tem" (EE 5).

Quem procura, encontra.

A História da Criação, do pecado e da restauração em Cristo está aí, presente, na


realidade dos homens. Um verdadeiro drama. De amor e de ódio. De vida e de
morte. O amor criador e misericordioso de Deus envolve tudo e todos. Os EE são,
justamente, para fazer a pessoa entrar, cada vez mais conscientemente, em contato
com esta realidade. Em todas os seus aspetos. De sombras e luzes. De joio e trigo.
Perceber-se, realmente, como parte deste drama. Sentir, na pele, profundamente,
as situações contraditórias. Identificar a vida e a morte. E tomar uma posição.
Afastar, resolutamente, a autônoma e petulante vontade da pessoa humana adamita
e acolher a vontade amorosa de Deus, manifestada em seu Filho Jesus.

Só não percebe o drama quem não estiver fazendo os EE devidamente. Aquele que
se deixa levar pela superfície dos acontecimentos mundanos. Quem dá os EE deve
interrogar muito quem os faz sobre os exercícios de oração, meditação ou
contemplação, se os faz, nas horas determinadas, e de que maneira, “Igualmente
sobre as adições2, se as faz com diligência, inquirindo minuciosamente sobre cada
um destes pontos." (EE 6).
A pessoa que faz os exercícios pode se encontrar muito desolada. Seja porque não
está se dedicando corretamente a eles, seja porque Deus lhe retirou as graças e
favores abundantes que a deixavam consolada. Nesta situação quem dá os EE "não
se mostre duro nem áspero para com ela, mas brando e suave, dando-lhe ânimo e
forças para ir adiante. Descubra-lhe as astúcias do inimigo da natureza humana,
preparando-a e dispondo-a para a consolação que virá" (EE 7).

Ajudando a discernir as moções dos diversos espíritos

No concreto da caminhada a pessoa humana é solicitada por dois espíritos


contraditórios. Deus e os seus enviados, chamando para a vida verdadeira. Os
instintos egoístas, os maus espíritos, perturbando a caminhada com suas insídias e
enganos. Estas atuações dos diversos espíritos deixam ou imprimem suas pegadas
em quem faz os exercícios. Estados, situações, sentimentos de consolação ou, pelo
contrário, de desolação. "Quem dá os exercícios, conforme a necessidade que sentir
em quem os recebe, acerca das desolações e astúcias do inimigo, ou das
consolações, poderá propor-lhe as regras da primeira e segunda semanas” (EE 8),
para conhecer a ação dos diversos espíritos e como se comportar diante desta
realidade.

Advirta-se que o modo de proceder dos diversos espíritos se adapta à situação


concreta de quem faz os exercícios. O mau espírito pode tentar de maneiras
opostas. Ou "grosseira e abertamente", por exemplo, com "moções para coisas
baixas e terrenas" (EE 317) ou "sob a aparência de bem", com pensamentos bons e
santos (EE 332). É imprescindível, pois, para que a ajuda seja proveitosa, que quem
dá os exercícios conheça bem a situação concreta de quem os faz. Só assim poderá
dar a ajuda adequada, adaptando a indicação à situação concreta. Do contrário em
vez de ajudar, atrapalharia. "Porque quanto lhe aproveitarão as regras da primeira
semana, tanto lhe prejudicarão as da segunda" (EE 9 e 10).

Contentar-se com o dom encontrado, não caminhar sozinho

Quem faz os exercícios não é o protagonista da caminhada, nem cria o processo.


Prepara-se e dispõe-se para alcançar o que tanto deseja e que lhe é oferecido,
gratuita e amorosamente. Não deve se preocupar com o que vem depois. Tudo é
dom e graça surpreendente. A grandeza e a beleza do dom de hoje a garantia, a
seu tempo, do dom de amanhã. Por isso, quem faz os exercícios, "de tal modo
trabalhe na primeira semana, para alcançar o que busca, como se na segunda,
nada de bom esperasse encontrar" (EE 11).

Na certeza do dom, preparar-se e dispor-se com alegria.

Há um tesouro escondido! Esta certeza leva o exercitante a uma procura atenta e


minuciosa, através dos exercícios da meditação ou da contemplação. Estes não se
assemelham a uma cadeia de montagem. Aproximam-se mais da busca das
galerias subterrâneas à procura do metal precioso. Não se pode programar nem
contabilizar antecipadamente o resultado. É dom encontrado! Sem dúvida, a procura
se torna mais fácil sentindo-se a presença da pedra preciosa. A ausência destes
indícios e os obstáculos adversos são estímulo para maior empenho na procura.
"Quem dá os exercícios muito advirta a quem os recebe ... Procure sempre que o
ânimo fique satisfeito em pensar que passou uma hora inteira no exercício...".
"Também se advirta que, no tempo da consolação é fácil e leve estar em
contemplação a hora inteira, e muito difícil completá-la no tempo da desolação" (EE
12 e 13)
A presença de um terreno rico em pedras preciosas ou a descoberta de uma de
grande valor não deve levar a falsas presunções. Não se pode proclamar mais do
que se viu. Nem caminhar fora da estrada. Cabe aceitar e comprometer-se com o
dom no ritmo e na medida em que oferecido pelo doador. "Quem dá os exercícios,
ao ver que quem os recebe, anda consolado e com muito fervor, previna-o para não
fazer promessa nem voto algum inconsiderado e precipitado" (EE 14)

O Criador e a criatura, sem empecilhos, sem intermediários

Também quem dá os exercícios não domina o processo. Nem é senhor de quem faz
os exercícios. Nem doador de dons. Quem dá os exercícios procure garantir o
processo. Denuncie os desvios. Testemunhe, admirado, os acertos. Contemple o
Criador abraçando sua criatura "em seu amor e louvor e dispondo-a para o caminho
em que melhor poderá servi-lo depois. Assim, aquele que dá os exercícios não opte
nem se incline a uma parte ou a outra, mas, ficando no meio, como o fiel de uma
balança, deixe imediatamente o Criador agir com a criatura e a criatura com seu
Criador e Senhor" (EE 15).

Quem faz os exercícios, embora se veja livre das influências externas provindas de
quem lhe dá os exercícios, poderá sentir seus instintos egoístas interpondo-se e
impedindo o diálogo franco e transparente com seu Criador e Senhor. Neste caso,
deve agir com toda sua força no sentido contrário para que seus afetos e desejos
voltem ao equilíbrio, como o fiel da balança. "Se a pessoa estiver
desordenadamente afeiçoada e inclinada a alguma coisa, é muito conveniente
empenhar-se, com todas as suas forças, em chegar ao contrário daquilo a que está
mal afeiçoada" (EE 16).

Ir às fontes das águas puras e dos tropeços.

Quem dá os EE ajuda a garantir o processo. Jesus, no qual tudo foi criado e


restaurado, mensageiro do amor do Pai, é o grande protagonista. O inveterado
inimigo da natureza humana está sempre perturbando a caminhada. A liberdade de
quem faz os exercícios acolhe, adere, quer e deseja o que é de Deus. Afasta,
resolutamente, o que vem do inimigo. Não perde tempo enredando-se nos
pensamentos que simplesmente provém de sua liberdade e querer. Estes podem,
quando muito, indicar uma opção que deverá ser confirmada pelo Senhor. É muito
mais proveitoso ir às fontes. Perceber quando o Senhor está atuando, para onde Ele
está, delicada mas insistentemente, atraindo e movendo a vontade de quem faz os
EE. Descobrir, também, para onde lhe estão levando as insídias do inimigo. Esta é a
matéria da partilha com quem dá os exercícios. Este não precisa saber os pecados
de quem faz os EE, nem os pensamentos do exercitante que "provem simplesmente
de sua liberdade e querer" (EE 32). O importante é saber por onde sopram os
espíritos. Os diversos espíritos em cada situação concreta. Só assim poderá ajudar
o exercitante dando-lhe alguns esclarecimentos e exercícios adequados a alguém
que é assim movido. "Quem dá os exercícios, não querendo indagar nem saber os
pensamentos e pecados de quem os recebe, seja fielmente informado das várias
agitações e pensamentos que os diversos espíritos lhe trazem. Porque, conforme o
maior ou menor proveito, pode dar-lhe alguns exercícios espirituais convenientes de
acordo com a necessidade da pessoa assim agitada" (EE 17).

Nem todas as pessoas são chamadas ao discernimento contínuo

Os EE devem ser dados "conforme à disposição das pessoas que desejem fazê-
los". Nem todas são chamadas ao discernimento contínuo, descobrindo sempre
novos caminhos. Muitos desejam somente "chegar a certo grau de satisfação
espiritual". Preferem ter logo as coisas claras e os caminhos definidos. Estas
pessoas, "de pouca resistência", não suportariam, sem demasiada fadiga, o trabalho
de perceber os consensos na ação dos diversos espíritos, movendo e atraindo para
determinada direção. Às pessoas assim dispostas "dê-se o exame particular, depois
o exame geral juntamente, de manhã, por meia hora, o modo de orar sobre os
mandamentos, sobre os pecados capitais, etc..." (EE 18).

Exercícios de oração no meio das atividades quotidianas e atividades


quotidianas lugar da descoberta de Deus.

Os compromissos quotidianos, familiares e profissionais de tantas pessoas, não lhes


permitem reservar tempo suficientemente longo para se dedicarem aos EE, num
lugar afastado. A solução é encontrarem, no seu quotidiano, um espaço e um tempo
para o exercício de oração. "Sendo pessoa culta e inteligente, reserve hora e meia
cada dia para fazer os exercícios". Além disso, com a prática, as próprias atividades
quotidianas vão proporcionar espaço para a descoberta da ação dos diversos
espíritos. Serão também, de imediato, campo para a aferição da verdade e
consistência real das deliberações, resolutamente, formuladas no âmbito da oração.
Os EE se revestem de concretude e realismo. As fugas e idealismo são logo
desmascarados. Está, sempre, presente uma chamada para o real. A oração vai
junto com a História, lugar exclusivo do encontro do Deus encarnado. "Para a
contemplação dos mistérios de Cristo Nosso Senhor, siga-se o mesmo método que
adiante se explicar longamente" (EE 19).

Isolado e exclusivamente dedicado aos EE estar mais disposto para perceber


maiores graças.

Quem puder se isole e se dedique totalmente aos EE. "Neles, ordinariamente, tanto
mais se aproveitará, quanto mais se afastar de todos os amigos e conhecidos e de
toda preocupação terrena. Mudando-se, por exemplo, da casa onde mora,
passando a outra casa ou quarto para ali habitar o mais retirado que puder" (EE 20).

Este gesto atrairá o favor e as atenções do Senhor Jesus, sempre respeitoso da


liberdade da pessoa humana. A quem não quer, Ele não fora. Quem procura, acha.
"A pessoa se afastando de muitos amigos e conhecidos, e também de muitos
negócios não bem ordenados, para servir e louvar a Deus Nosso Senhor, não pouco
merece diante de Sua divina Majestade" (EE 20).

A pessoa humana assim afastada "usa mais livremente de suas potências naturais,
para procurar com diligência o que tanto deseja" (EE 20).

"Quanto mais se acha a pessoa a sós e afastada, mais apta se torna para se
aproximar e chegar a seu Criador e Senhor. Quanto mais assim se achega, tanto
mais se dispõe para receber graças e dons de sua divina e suma bondade" (EE 20)

NOTAS:
1
“Conforme a disposição das pessoas” é tradução própria do autor. O original
espanhol diz: “según matéria subyecta”, isto é, “según la materia de que se trate”
(Dalmases). A “versio prima” (tradução latina dos EE) inclue também as pessoas:
“iuxta personarum et subiectae materiae exigentiam” = “segundo a exigência das
pessoas e da materia proposta” (Nota da redação).
2
Sobre as “adições”, cf. neste número da nossa revista e no seguinte o trabalho do
Pe. Álvaro Barreiro (N. da r)

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