Exus e Xapiris

Você também pode gostar

Você está na página 1de 8
Exus e xapiris: perspectiva amefricana e pandemia Tadeu de Paula Souza Para Yalodé © perspectivismo yanomami, narrado pelo xXama Davi Kopenawa, nos ajuda a entender a ira dos xapiris, espiritos da floresta, como destruicgdo causada pelos homens “apaixonados por mercadorias”. Segundo os yanomamis a floresta, omana, @ inteligente e se defende da predacdo com os xapiris, respons4veis por sustentar o céu. A morte do povo yanomami e dos seres da floresta gerara a queda do céu, uma acdo de Omana em resposta ao desequilibrio predatério que os xamas nado conseguirdo mais conter. Como aponta Ailton Krenak’ a relagdo entre cultura amerindia e hatureza ndo é nem de passividade nem de predagao, mas de cultivo, dadiva, admira¢ao e produgao comum — “a floresta somos n6és que cultivamos...a floresta @ algo produzido por passaros, primatas, gente, vento, chuva... esses sdo produtores de floresta! Os indios e seringueiros mostraram que a gente ceria a floresta e mantém a floresta...”. Os ancestrais do povo yanomami (yarori pé) se desdobraram: suas peles se tornaram animais (yaro p8) e seu espirito se tornou xapiri. “No entanto, quando se diz o nome xapiri, nado é apenas um espirito que se nomeia, € uma multidao de imagens semelhantes.” Essas imagens seriam o yarori pé, que designa uma coletividade que os xamas acessam nos seus rituais. Um xapiri tem varias expressées, imagens diferentes porém semelhantes de uma mesmo espirito ancestral. Para Bruce Albert? a triangulagdo ontolégica entre os ancestrais animais (yarori pé), os animais de caga (yaro pé) e as imagens xamanicas animais (também yarori pé) constitui uma das dimensées fundamentais da 1 Vores da floresta - Acessado 16 de junho de 2020 = hetps://www. youtube .con/watch?v-ERIJIhios4wér-17635, 2 ROPENAWA, Davi. e ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavres de um xand yenomami. $60 Faulo, Companhia das Letras, 2015 cosmologia yanomami. A imanéncia entre homem e natureza provém de uma rela¢do de parentesco comum em que todos séo pessoas, como aponta Viveiros de Castro: parentesco entre os yanomamis, os milhares de espiritos da floresta (xapiri) © os diversos animais que habitam a floresta . Assim como na cosmologia amerindia, na yoruba também nado ha transcendéncia entre cultura e natureza, mas uma imanéncia ativa que é preservada, dentre varias estratégias, pela preservacao de uma cosmologia da multiplicidade e parentalidade: muitos seres diversos que compéem uma grande familia. Segundo uma lenda africana entre Orum (mundo espiritual) e Aiyé (mundo terreno) havia um espelho que refletia a verdade espiritual sobre © mundo terreno. Até que um dia Mahuna, uma habitante do Aiyé quebrou o espelho ao macerar o inhame no pildo. Mahuna foi rapidamente explicar o ocorrido a Olurum (criador do céu e da terra) que tranquilamente lhe respondeu que daquele dia em diante cada um veria o mundo a partir do pedago do espelho, ndo haveria uma verdade universal, cada verdade 6 6 reflexo do lugar em que se encontra. 0 perspectivismo yorub4 se funda numa cosmologia que impede a apropria¢ao do miltiplo no Um, mantendo ativa a abertura da coexisténcia de diversos mundos possiveis. A quebra do espelho da verdade conjura a formagdo de uma cosmologia narcisica e, portanto, etnocéntrica, que torna o mundo uma grande projegao de uma Gnica imagem politico- cultural: a sua. Omolu € um Orixa que rege as doengas e as curas no ambito coletivo. Para a cosmologia yoruba as epidemias sdo expressées de desequilibrios na relacdo com a natureza que inclui além da fauna e da flora, outras pessoas e as divindades. Omolu 3 CASTRO, Viveiros, “Os pronomes cosmolégicos = © perspsctivisno amerindio”. Mana: 2(2): 115-144. Ric de Janeiro, 1996 é, portanto, uma forca da natureza que rege esses desequilibrios, onde a cura advém, portanto, de uma mudanca coletiva. Existe uma exigéncia para que Omolu efetue a cura! A forma de transcendéncia entre cultura x naturéza se expressa na cosmologia da branquitude através da forma-Estado que subsume o miltiplo no uno, sobrecodificando e capturando as variagdes do vivo. Assim vem sendo nos tltimos 500 breves anos de dominagdo etnocéntrica ¢ autericidada. Negar o outro, a vida e a multiplicidade tem sido o modo de gerar acumulagdo de capital e expropriagdo de modos de vida fundados na multiplicidade e no comum. A pandemia anuncia o fracasso de uma cosmologia que ac se impor como superior as demais conduziu a vida a dificeis impasses. 0 espelho universal da branquitude quebrou, mas a habilidade dessa dominagd&o ético-estético-politica parece sempre se recompor de pedacos de espelhos que se rearticulam de modo a formar uma imagem distépica. A pandemia prenuncia os eventos catastréficos a qué a branquitude, pautada na cosmologia do uno- mercadoria-propriedade, conduz a vida na Terra. A intrusdo Gaya como aponta Isabelle Stangers‘, diz respeito a uma a¢ao que nao aponta para uma relagdo de pertencimento ou mesmo de vinganca de Gaya, mas simplesmente de uma reagdo que nao tomara conhecimento de uma espécie especifica: os humanos. Entretanto, tal intrusdo pode ser respondida sintomaticamente, quando as crises ecolégicas continuam a ser entendidas como oportunidades para gerar ainda mais concentragdo de riqueza e intensificagao do racismo ambiental e distribuigao de mortes em escala planetaria. Ao mesmo tempo em que negrxs morrem 60% a mais que brancos por COVID-19, G@ patrim6énio dos bilionarios estadunidenses aumentou em 15% durante nos dois primeiros meses da pandemia‘. 4 STENGERS, Isabelle. No tempo das catdstrofes: resistir = barbdrie que se aproxima. Sic Paulo, Cosac Naif, 2015 5 https: //www. infomoney.com.br/megocios/bilionarios-americanos-ficaran- us-434-bilhoes-maia-ricos-desde-o-inicio-da-pandemia-aponta-elatorio/? fbelid=IvAR1S3H¥44MRsUhryoDt TETK1o7SXwFEEOTulr}_fWCNTTéqgTzcézpigE2A A medida que a pandemia avanca sobre o globo, como ondas que descem e sobem, modeladas em curvas e graficos, refletem-se as racionalidades de governos que tentam impor novas normatividades. Alguns paises tém chamado especial aten¢cdo por terem persistido com uma politica de nega¢ao ou minimizagdo da pandemia atualizando o negacionismo como estratégia necropolitica, especialmente nas américas onde o racismo é marcador territorial e de desigualdade social. © negacionismo opera assim como racionalidade que ao negar os genocidios coloniais, segue a nega-los no contemporaéneo, para negd-los no futuro préximo: assim como nao houve escravidao, nao houve tortura, e nado Haverd aquecimento global! Toda negacao @ também um desejo de negacdo. O negacionismo é constitutivo da necropolitica colonial que no Brasil ganhou a forma de um mito originario da relacdéo harmoniosa das diferentes racas na formagéo de uma democracia racial e se atualiza nas respostas fascistas a pandemia, uma vez que além de assassino 6 racista, o bolsonarismo expressou no “E dai?” sua disposicdo suicidaria. Nos cacos dos espelhos da nova repiblica que se espatifou observamos os reflexos de uma améfricanidade, tal qual propde Lélia Gonzales* citando M.D Magno. A hibridizacéo de cosmologias amerindias e afrodiaspéricas criam potentes estratégias para liberacdo da imaginacado politica de um mundo porvir ¢ reverter a nega¢do (da vida). A imaginacao advém da composi¢do de matérias expressivas que ganham corpo num projeto politico. A imaginacdo é, portanto, o efeito da composicao de afetos e matérias expressivas coletivas. No Brasil essa matéria expressiva foi constituida no fazer comum da diaspora, o egbé, como aponta Muniz Sodré’, enquanto experiéncia coletiva dos 6 GONZALEZ, Lélia. “A categoria politico~cultural de anefricanidade*. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, N°. 92/93 (jam./jun.}. 1988, p. 69-82 7 SODRE, Muniz. Pensar Nagd. Petropolis/RJ, Vozes, 2017. diversos terreiros que compéem meméria e matéria, ndo de um saudosismo mas de invengdo de novos modos de vida. Como aponta Mbembe*, as plantaions criaram uma situagdo paradoxal, uma vez que imprimem um poder absoluto frente ao qual o negro ou indigena escravizados criaram uma representacao com qualquer coisa de que dispunham, fosse um gesto, tracos da linguagem, batidas no corpo, estetizando-as. Essa matéria expressiva do egbé vem da resisténcia e afirmagdo da vida diante da morte. © assimilacionismo politico-cultural do embranquecimente, como aponta Kabenguele Munanga’, ‘ da produgdo de uma subjetividade negacionista restringiu o fazer egbé ao espago das artes e religiosidades, em que as matérias expressivas amerindias e afrodidsporicas so incorporadas numa inteligibilidade que as reduz a “contribuigdo” e “acess6ério” a cultura central branca e eurocéntrica. Esse “inclusivismo cultural” como provoca Paul Gilroy, tem a intengdo de delimitar © campo de atuacdo de outras cosmologias que pensam o mundo e a vida a partir de outros paradigmas ético-estético-politicos que néo o do ‘egoismo-unidade-concorréncia’. Bloquear a imaginagdo e o devir revolucionario, essa é a funcdo da colonialidade, uma vez que impede que o egbé ganhe espaco politico- institucional. Em contrapartida inserir um modo egbé de fazer politica ¢ fazer instituigao é uma estratégia de dar corpo e consisténcia a imagina¢ao politica e ao desejo de outros mundos possiveis. A colonialidade produz, na melhor das hipéteses, a idealizacdo e projecao, tao comum na esquerda brasileira, que a partir da categoria de coincidéncia de classe, exclui o corpo, o afeto, 8 MBEMBE, Achille. Necropolitica: biopoder, soberania, estado de ecrede © politica da morte. n-i edigSes, Séo Paulo, 2018 9 MOMANGA, Habengele. Rediscutindo 2 mestipagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte, Auténtica, 2019 40 GILROY, Paul. Atl@ntico Negro. Sdc Paulo, Editora 34, 2017 a espiritualidade e a mitologia constitutivas na matéria expressiva améfricana. Se por um lado essa matéria tem ganhado corpo a partir das lutas identitarias, cabe ressaltar que 6 somente por uma questao estratégica e nao por finalidade. Ao contrario da formagdo das identidades nacionais, as identidades améfricanas Se sustentam numa cosmologia da multiplicidade e sao movimentadas pela forca Exu. Exu 6 a energia do movimento, da comunica¢&o e articulacSo entre mundos. £ Exu que faz a passagem e conexdo entre diferengas. Toda identidade Orixa precisa de Exu, para exercer a cosmologia da multiplicidade e comunicar as diferengas entre eles, uma vez que um filho de Oxossi, pode, toda vez que for necessario, evocar a forcas de Xangd ou Ogum: um OrixA nunca age sozinho! As identidades sio processos de individua¢ao que se processam em coletivos que compé6em as diferentes qualidades Orixas! 0 medo de Exu n&o se deve a poderes maléficos, mas ao fato de conjurar a identidade nacional e o projeto de soberania, uma vez que ataca aquile a que o Estado resiste: a composigdo de diferengas. As cosmologias améfricanas incluem os elementos excluidos pela branquitude, tal qual nas giras de Umbanda em que o ‘povo da rua’, os ‘pretos velhos’, os ‘caboclos’, ‘ciganas’ e as pombas giras’ baixam para ensinar, proteger, acolher, cuidar e guiar. Ao contrario da cosmologia moderna ndéo existe separagdo entre qualidades supostamente femininas e masculinas. No egbé lutar, brincar € curar 540 atividades do pensamento, como no pensar-fazer da copeira angola e dos terreiros em que as matérias expressivas que movimentam sensibilidade, cuidado e amorosidade sao constitutivas do fazer-instituicdo. Enquanto exus trabalham intensamente para abrir Os caminhos, seguiremos aprendendo com eles a produzir novos mundos possiveis, recompondo um campo de aliancas alicercades em matérias expressivas que nos ensinem a arte de conjugar num mesmo movimento luta, brincadeira e cura, para que durante a longa travessia que a pandemia exige, possamos acumular poténcia e liberar novas imaginag6es, somar esforcos aos xapiris e juntos, sustentar o céu. Tadeu de Paula Souza é professor do Departamento de Satide Coletiva da UFRGS. Ccoordena, junto com © prof. José Damico, o grupo de pesquisa “Egbé: negritude e produgado do comum”.

Você também pode gostar