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revista da número 8

março de 2003
abem

Dos ideais curriculares à


realidade dos cursos de
música no Brasil

Liane Hentschke
Departamento de Música – UFRGS
e-mail: hentschk@portoweb.com.br

Resumo. O presente texto tem como objetivo discutir uma das questões levantadas pela conferencista
do Fórum “Diretrizes: qual currículo?”. Dentro da temática de reformulação curricular, chamo a atenção
para a falta de formação pedagógica do corpo docente que atua nos cursos de graduação em música,
e para a necessidade de dar voz aos alunos no processo de construção e implementação curricular.
Argumento que as novas reformulações curriculares deverão estar em sintonia com o novo paradigma
educacional que vem sendo debatido em âmbito nacional e internacional.

Palavras-chave: diretrizes curriculares nacionais, reforma curricular, formação dos formadores.

Abstract. The aim of this text is to discuss issue raised by the keynote speaker of this Forum “Guidelines:
which curriculum?”. Within this theme I call attention to the lack of pedagogical background of the university
lecturers that teach in the undergraduate courses in music and to the need of listening our students within
the process of curriculum development. I argue that new curriculum changes should be worked out in
accordance to the new educational paradigm, so far discussed nationally and internationally.

Keywords: national curriculum guidelines, curricular reform, education of higher education teachers.

Como foi mencionado pela Dr a Sônia, Curriculares Nacionais para os cursos de gradua-
estamos vivendo mudanças em termos de educa- ção em música.
ção em todos os níveis, exigindo de nós a necessi-
dade de redimensionarmos o nosso olhar a fim de O trabalho de confecção das Diretrizes
abranger não só o contexto imediato onde atua- Curriculares iniciou há cinco anos, sendo concluí-
mos, como também um contexto, social, político e do em 1999. Mas foi somente em 2002 que o CNE
econômico, de discussões sobre a formação do- propôs as Diretrizes para os cursos de música. Não
cente. O texto da Dra Sônia é bastante elucidativo falo em homologação, pois elas não permanece-
e, ao mesmo tempo, sintético, nos permitindo uma ram na íntegra. Foi realizado um “corta e cola” do
visão panorâmica sobre as Diretrizes Curriculares documento confeccionado pela CEE/Música, com
de todos os níveis de ensino. O texto está dividido o apoio dos cursos de música no Brasil. Imagino
em cinco partes, das quais eu gostaria de focalizar que o mesmo deve ter acontecido com as diretri-
as minhas questões na segunda parte: Diretrizes zes de outras áreas.

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HENTSCHKE, Liane. Dos ideais curriculares à realidade dos cursos de música no Brasil. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 8,
53-56, mar. 2003.
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Nos encontros desses últimos cinco anos, ças, os cursos de licenciatura não são ministrados
discutimos as bases teóricas e práticas dos currí- exclusivamente por “educadores musicais” (stricto
culos, a adequação de um documento nacional, a sensu)1 , mas por músicos instrumentistas, regen-
formação para múltiplos espaços de atuação, en- tes, compositores, que, na sua maioria, não pos-
tre outras questões importantes. As discussões te- suem uma formação pedagógica. É inegável que
óricas e políticas foram, sem dúvida, fundamentais existe uma disparidade de formação pedagógica
para o amadurecimento da área, para apontar pos- entre o que denominamos de “educador musical” e
sibilidades de caminhos a serem seguidos de acor- o músico instrumentista ou musicólogo que atua
do com o contexto e localização geográfica de onde como docente nos cursos de graduação. Os edu-
iremos atuar. Penso que chegou o momento de cadores musicais, além de terem uma formação
debatermos sobre a implantação dessas idéias, pedagógica sólida, estão continuamente atualizan-
sobre a forma de viabilizar os nossos ideais de for- do-se, no sentido de buscar formas mais adequa-
mação de professores. Isso porque muitos cursos das e contextualizadas para a sua prática docente.
já concluíram e outros estão em vias de conclusão Por outro lado, tradicionalmente, o músico docen-
das suas reformas curriculares. te universitário (daí falo enquanto estereótipo) tem
praticado uma proposta educacional mais tecnicista
Como ex-membro da antiga CEE/Música e e tradicional de educação. O objetivo desses do-
atual membro do Conselho Assessor do MEC, a centes é a formação do músico profissional (erudi-
minha preocupação se volta para questões de to, na maioria dos cursos), baseado em critérios
implementação de todas as nossas idéias. É a absolutos de perfil de profissional.
implementação do currículo ou, mais especifica-
mente, o currículo em ação que me preocupa nes- Essa disparidade pode ter conseqüências
te momento, pois de nada vale discutir concepções em nível de implementação curricular, pois, em tese,
educacionais se estas não forem traduzidas para poderá haver uma aceitação do que está sendo
a nossa prática docente. Além disso, o próximo proposto em grande grupo, mas que não irá se
passo será a avaliação desses cursos por parte do transformar no currículo em ação. Partindo-se do
MEC, seja em forma de avaliação externa, seja atra- pressuposto de que o novo paradigma de forma-
vés do Provão. ção de professores prioriza a integração de con-
teúdos, temos que estar preparados para o fato de
Acredito que os cursos que iniciaram ou já que esse novo modelo de formação de professo-
concluíram o seu processo de reforma têm se de- res pode parecer ameaçador para grande parte do
parado com inúmeros dilemas, os quais talvez ain- corpo docente. Isso porque demanda uma
da não tenham sido debatidos ou compartilhados, reformulação na nossa maneira de pensar, nos
em âmbito nacional, na ABEM. Digo isso porque nossos princípios educacionais e até mesmo nas
as mudanças propostas atualmente estão muito concepções acerca do que consideramos ser um
longe de serem mudanças cosméticas, de grade, indivíduo musicalmente educado ou um professor
de súmula ou carga horária. Elas demandam uma de música, capaz de enfrentar um mercado de tra-
mudança total de paradigma educacional, das prá- balho mais abrangente.
ticas de ensino, das múltiplas formas de aprendi-
zagem, da seleção de conteúdo, da didática, en- No Encontro Anual da ABEM de 2000, men-
fim, de todo o processo de formação profissional cionei que o documento do MEC para as licencia-
em nível de graduação, diferente do que vem sen- turas manifestava preocupação com relação à
do praticado. vinculação dos cursos de licenciatura aos de ba-
charelado, no sentido de que a maioria deles com-
Neste momento eu gostaria de propor dois
partilham disciplinas, o que foi denominado de con-
temas para debatermos em grande grupo. O pri-
flito entre “organização curricular e organização
meiro refere-se à formação pedagógica do corpo
institucional” (p. 28). O documento aponta para o
docente e o segundo à necessidade de dar voz
fato de que, na maioria dos casos, a organização
aos alunos no processo de construção e
institucional tem determinado a organização
implementação curricular.
curricular, ou seja, nos cursos que possuem as
Mesmo havendo consciência, por parte dos modalidades de bacharelado e licenciatura, o mes-
educadores musicais, da necessidade de mudan- mo corpo docente e as mesmas disciplinas são

1 Licenciados em Música, Mestres e/ou Doutores em Educação Musical.

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aproveitados, não permitindo, segundo eles, “a Música da UFRGS, está investigando, sob o ponto
construção de um curso com identidade própria” de vista dos licenciandos em música, a adequação
(p. 28). Neste momento, o que o MEC exige são de sua formação em relação às demandas peda-
projetos pedagógicos distintos para o bacharelado gógico-musicais. A sua revisão de literatura mos-
e licenciatura. No entanto, na prática nada muda, tra que estudos desse tipo são praticamente
pois vamos continuar compartilhando o currículo inexistentes na área de música, o que mostra, mais
com profissionais que possuem uma disparidade uma vez, a necessidade urgente de ouvirmos to-
na formação pedagógica e, conseqüentemente, das as partes envolvidas no processo de
diferentes níveis de compreensão dessa nova pro- reformulação curricular.
posta.
Sabemos que, tradicionalmente, sempre
A minha preocupação, neste momento, é que existiu uma resistência por parte de muitos docen-
a desarticulação entre os módulos curriculares con- tes da área de música quanto à adequação da for-
tinue gerando um currículo fragmentado. Nas reu- mação com relação ao mercado de trabalho. Ou
niões departamentais é visível a lacuna entre pro- seja, defende-se um modelo de formação de músi-
fessores. Não falo aqui da homogeneização de co independentemente da absorção do mesmo no
concepções, mas, sim, da apreensão do significa- mercado de trabalho. Dentre as muitas conseqü-
do dessas novas mudanças e a implementação das ências desse modelo, está a conhecida atuação
mesmas nas práticas docentes. Por exemplo, hoje docente do bacharel em música, o qual não rece-
falamos mais em aprendizagens do que em ensino beu formação pedagógica durante o seu curso su-
no sentido tradicional do termo. Objetivamos a perior. Com as mudanças cada vez mais acelera-
capacitação de um profissional que deve ser flexí- das da nossa sociedade, não podemos ignorar o
vel, reflexivo e capaz de perceber e agir sobre rea- que está acontecendo do lado de fora da universi-
lidades muito distintas. Precisamos capacitar o fu- dade, as novas exigências dos múltiplos espaços
turo professor de música para que ele/ela saiba de atuação profissional. Nesse caso, é importante
administrar e gerenciar o conhecimento dos alu- dar voz aos nossos alunos, pois muitos exercem
nos, capacitando-os a fazer sentido do mundo atividades profissionais concomitantes ao curso de
musical a sua volta. Segundo Perrenoud (2001, p. graduação.
11), “formar profissionais capazes de organizar si-
tuações de aprendizagem […] deveria ser a abor- Em síntese, eu diria que é muito difícil aten-
dagem central da maior parte dos programas e dos der satisfatoriamente ao enunciado desse Fórum:
dispositivos da formação inicial e continuada dos “Diretrizes: qual currículo?” pois são inúmeros os
professores do maternal à universidade”. Mas como fatores que vão influenciar a implementação das
implementar esse conceito numa cultura universi- propostas curriculares. Mas devo dizer que me sinto
tária onde impera o ensino sob a ótica do profes- tentada a responder que devemos lutar por um
sor? Onde pouco ou nada se sabe sobre o que currículo ideal dentro das nossas concepções teó-
pensam os alunos, ou o quão adequado é o nosso ricas e práticas, mas trabalhar em cima do currícu-
currículo para suas vidas profissionais? lo possível, principalmente levando em conta o
corpo docente de que dispomos. Essa afirmação
Essa questão me remete ao segundo tema pode parecer óbvia, mas, certamente, retira de nós
que eu gostaria de discutir, qual seja, a necessida- um pouco do ônus, da responsabilidade de, sozi-
de de dar voz aos nossos alunos. Cristina Cereser, nhos, construir um ideal nem sempre compartilha-
mestranda do Programa de Pós-Graduação em do pelos colegas de departamento.

Referências
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Diretrizes Curriculares para os Cursos de Música no Brasil. Parecer CES/CNE no 0146/2002.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Proposta de Diretrizes para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica, em Cursos de Nível
Superior, Coordenador: Ruy Leite Berger Filho. maio 2000.
PERRENOUD, Philippe et al. Formando professores profissionais: três conjuntos de questões. In: ______. (Orgs.). Formando professores
profissionais. 2. ed. Porto Alegre: ARTMED, 2001. p 11-22.

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