Você está na página 1de 9

O Druidismo e as relações com o Sagrado: múltiplos

caminhos, um só objetivo. (Pte. 1)


Enviado em 24 de Fevereiro de 2010
Publicado por Webmaster  | Enviar por e-mail  | Hits para esta publicação: 54

(Este artigo é o primeiro de uma série que explorará as diferentes formas de relação
com o sagrado observáveis numa vivência druídica. Como sempre, não se trata de uma
realidade inquestionável, mas sim de um apanhado de percepções desenvolvidas a
partir de anos de prática e estudos.)
Originalmente publicado no boletim interno da DRUID NETWORK em português (fev.
2010).

O Druidismo e as relações com o Sagrado


Parte 1: Druidismo e Sacerdócio

Toda religião/espiritualidade (aqui os termos possuem o mesmo significado) possui


diferentes formas de relação com o sagrado, que variam entre si de acordo com fatores
diversos, como o conceito de sagrado numa dada religião, a percepção individual do
sagrado e a vocação desse indivíduo para o contato com o Sagrado.

Druidas modernos celebrando em Stonehenge, GB

Há no universo neo-pagão moderno uma certa obsessão com a questão sacerdotal – e


o druidismo não é exceção. Não é raro ver gente que deseja ser (ou já se intitula)
“sacerdote” deste ou daquele caminho, muitas vezes em evidente contradição com o
próprio significado da palavra ’sacerdote’ - e, pior ainda, excluindo quaisquer outras
possibilidades de vivência do Sagrado como se o sacerdócio fosse a única forma válida.

(Não é objetivo deste ensaio analisar as origens facilmente identificáveis dessa


obsessão - herança judaico-cristã, resquícios das ordens herméticas do século XIX, etc.
- atendo-se ele somente à exploração das possibilidades de relação com o sagrado
dentro do druidismo moderno.)
Assim, vamos iniciar pela definição do Sagrado dentro de um ponto de vista
exclusivamente druídico.

Uma visão celta do Sagrado

Ao lado dos textos de autores gregos e romanos, os registros literários medievais da


Irlanda e do País de Gales são a principal fonte de informação para conhecermos a
espiritualidade celta, seus pontos de vista e suas práticas. Por definição, e levando-se em
conta essas fontes, o druidismo é uma espiritualidade politeísta, animista e
xamânica de origem européia – mais especificamente, segundo fontes clássicas como
Julio Cesar, originária das Ilhas da Grã-Bretanha e Irlanda. Esta definição é importante
para que possamos ter maior segurança na busca dessa percepção druídica do sagrado, e
também para eliminarmos as distorções geradas em séculos mais recentes.

Colina de Uisneach, centro sagrado da Irlanda celta

DEUSES E DEUSAS - Manifestações do Divino

Quando dizemos que o druidismo é politeísta, temos de ter em mente a multiplicidade


de deuses e deusas cultuados pelos celtas da Antiguidade. Sempre de acordo com as
fontes mencionadas, esses deuses e deusas não estão num paraíso remoto e distante
(apesar de poderem ser encontrados também em terras mágicas), mas sim na própria
paisagem – rios, o mar, montanhas, bosques, árvores individuais: cada uma dessas
características da natureza é a ‘encarnação’, a manifestação física das deidades celtas.

O Sagrado na Paisagem

O Sagrado celta, portanto, é algo próximo, acessível, tangível. Isso por si só torna mais
simples a vivência desse Sagrado, não necessitando o praticante de ‘atravessadores’ ou
intermediários. Quem se banha num rio na Irlanda, por exemplo, não mergulha somente
num corpo d’água, mas sim no ventre de uma deusa (Sionann no Rio Shannon, Bóann
no Rio Boyne e assim por diante). O mesmo vale para outras características da
paisagem irlandesa, como prova o Dindshenchas, ou “o conhecimento dos lugares
notáveis” – uma série de versos maravilhosos que relatam a origem mágica dos nomes
dos locais sagrados da Irlanda – ou seja, toda ela. Por paralelismo, e tendo por base os
registros da etnografia e da arqueologia (para não mencionar a toponímia), podemos
expandir essa visão dos celtas da Irlanda para outras terras outrora habitadas por povos
celtas.

Rio Shannon, Irlanda - manifestação física da deusa Sionann

Contato Direto

A ausência de templos no universo celta é outra prova dessa proximidade do sagrado – é


sabido que os celtas da Gália só passaram a erguer templos após o contato e
influência com as culturas helênica e romana (nem vou aqui mencionar o equívoco
histórico - e hoje inaceitável - de se creditar locais como Stonehenge como ‘druídicos’ –
sua construção nada tem a ver com os druidas celtas, a despeito das práticas de diversas
ordens modernas).

O contato com as deidades celtas, como se pode ver, era feito diretamente, num nível
pessoal – e a relação dos irlandeses com o Sagrado mantém, mesmo após a
cristianização, essa característica individual e direta: o folclore da Irlanda é rico em
registros de encontros pessoais com os espíritos de santos ou de ancestrais mortos – e
até mesmo com a Virgem Maria e o Cristo. A rica tradição das lendas de viagem ao
Outro Mundo - as imramma - são outro exemplo dessa proximidade, assim como a
imagem da Avalon arthuriana e da cidade de Ys do folclore bretão.
Mael Duin viaja ao Outro Mundo na célebre imram.

Tudo isso para enfatizar um ponto: no druidismo, a experiência do sagrado não


depende da figura do sacerdote.

Em momento nenhum, contudo, isso quer dizer que não existisse essa figura na
sociedade celta. Ao contrário, ela existia – e em diversas modalidades.

Druidas: muito mais do que meros sacerdotes

É comum atribuirmos ao druida a função sacerdotal, e esta é uma verdade – mas não
toda a verdade sobre os druidas. Mais do que apenas sacerdotes, as múltiplas funções
associadas aos druidas celtas dão conta de sua importância para a sociedade celta como
um todo: filósofos, conselheiros de reis, juristas, profetas, curandeiros, historiadores –
não é à toa que o Dr. Simon James, uma das maiores autoridades modernas em cultura
celta, afirma que “os druidas eram o eixo ao redor do qual gravitava toda a sociedade
celta.”

Rei Divino

Muitos estudiosos contemporâneos afirmam que, nas tradições celtas, várias das funções
cerimoniais tradicionalmente atribuídas a sacerdotes eram desempenhadas pelo Rei
tribal, cabendo ao druida um papel mais profundo. Então temos dois candidatos -
igualmente válidos - ao papel de sacerdote arquetípico na sociedade celta: o próprio
druida e o rei.

É fato que a figura do rei celta é muito diferente da nossa percepção atual – a começar
pelo fato de que os reis eram eleitos pelo povo dentro de preceitos rigorosíssimos de
conduta e capacitação. Afinal, o rei era o representante de toda a comunidade, aquele
que intermediava a relação do povo com a terra – sagrada e viva – na qual viviam. Por
outro lado, a função sacerdotal do druida é evidenciada em frases como a de Julio
César, que afirma que os gauleses não celebravam nenhum ritual sem a presença de um
druida.

Isso tudo está em perfeita consonância com a definição primordial da palavra


‘sacerdote’ – aquele que é treinado para desempenhar a função de ‘contato’,
intermediando a relação entre os mortais e a divindade, o Sagrado.

Tendo isso mente, sabemos que, por definição, o sacerdote intermedia o contato entre o
Sagrado e a Comunidade – e aqui, a ênfase na palavra ‘comunidade’ é a chave. O
sacerdote celebra ritos públicos - ato facilmente encontrado nas lendas celtas sendo
praticado tanto pelos druidas quanto pelos reis.

Visão romântica de um Druida celebrando ritual para a Rainha Maedbh

No mundo da espiritualidade celta, temos muitos exemplos de druidas presidindo os


festivais sazonais de Samhain, Imbolc, Beltaine e Lughnasadh, assim como sabemos
que, em diversas lendas, quem desempenha essa função sacerdotal é o rei (não está em
questão aqui se essa função era mais desempenhada pelo rei ou pelo druida, mas sim a
ênfase e a importância da comunidade nesses ritos sagrados coletivos).

Eis porque é impossível para quem quer que seja dizer-se sacerdote sem haver uma
comunidade para que ele a represente junto ao Sagrado.

Se por um lado na sociedade celta o rei é a personificação física da comunidade,


devendo zelar por seu bem estar, sua defesa, sua alimentação, por outro o druida é o
representante espiritual – e também mental - dessa comunidade, estando sob sua
responsabilidade a educação, a preservação da história, a distribuição da justiça para
todos. E assim como não há rei sem reino, não há druida sem comunidade.
Ou seja: entre os celtas, a função sacerdotal é exercida pelo druida num contexto
coletivo. Não existe sacerdócio sem coletividade. Essa relação Rei-Druida-Comunidade
é tão profundamente arraigada na filosofia druídica que se preserva por séculos até
nossos dias, com a sobrevivência das Lendas Arthurianas em que Arthur é o Rei, Merlin
o Druida e Camelot a Comunidade - o Reino.

Merlin e Arthur em ilustração de Alan Lathwell

Aprendendo com a História

Para se entender uma religião em sua verdadeira essência é indispensável que se


compreendam a psique e os valores da sociedade que segue (ou seguia) essa religião. A
comunidade druídica moderna deve estar atenta às preciosas informações que os
registros históricos nos fornecem acerca da sociedade celta, pois é através desses
estudos acadêmicos que se pode traçar um retrato um pouco mais preciso de quem eram
de fato os druidas, o que faziam e no que acreditavam - para, assim instruídos,
tentarmos resgatar o quanto for possível do druidismo histórico para nossos dias. Isso
vale para todos os druidas responsáveis e também para os Reconstrucionistas Celtas.

Ao citar acima a frase do Dr. Simon James, enfatizo a importância do druida na


sociedade celta: uma importância que inclui a função do sacerdote, mas que vai muito
além dela, equiparando os druidas celtas, a guiza de comparação, aos modernos juristas,
ministros de estado, diplomatas, médicos, videntes, historiadores, professores,
curandeiros…

Múltiplas funções, diferentes formas de contato com o Divino

O caminho druídico, como se sabe, é vasto e diversificado - para cada uma das três
‘ramificações’ de Bardo, Ovate e Druida correspondem incontáveis subdivisões e
especializações. Assim, podemos afirmar que, com base no quanto já visto, o
sacerdócio jamais pode ser definido como a única função do druida. Da mesma
forma, e pelos mesmos motivos, em tempos modernos o sacerdócio jamais pode ser
visto como a única forma de Relação com o Sagrado dentro do druidismo.

E voltando a um dos primeiros pontos deste ensaio, isso se deve justamente ao fato de
que, do ponto de vista celta, o Sagrado está em toda a parte: nas paisagens externa e
interna, no coletivo e no individual, em tudo que é e que há.

Eis porque, no druidismo, o contato com o Sagrado não precisa de um templo - todo
lugar é sagrado - nem de intermediários, podendo acontecer em qualquer lugar, a
qualquer momento. Evidentemente, os quatro festivais celtas são momentos especiais
que, hoje como ontem, envolvem toda a comunidade. E, nesses eventos, a figura do
sacerdote - fosse ele o rei ou o druida - era importante por seu preparo e treinamento
para mediar esse contato em momentos tão ricos e densos, nos quais a comunidade
- e não o indivíduo - era o foco.

O Sagrado além do Ritual

As celebrações sazonais celtas eram momentos importantes para a comunidade,


celebrando sua diversidade, promovendo o contato com o Sagrado e, através desse
contato, propiciando justiça, fartura, alegria e unidade a toda a coletividade. Por tudo
isso, é impossível dissociar o druidismo dessas celebrações.

Um banquete celta

Nos outros momentos, contudo, o Sagrado poderia ser igualmente acessado por
qualquer indivíduo - na prece, no oráculo, na oferenda votiva, no contato íntimo com
esta ou aquela a divindade.

Treinamento, Experiência e…

Se ainda pairam dúvidas sobre a questão sacerdotal, recordemos que os celtas viveram
na Idade do Ferro e que sua sociedade guerreira era pautada na Honra e no respeito
obtidos através da batalha. Nesse cenário, imaginemos uma comunidade formada
exclusivamente por sacerdotes. Por mais que saibamos pelos registros históricos que
druidas participavam de combates, é difícil imaginar qualquer nível de sucesso numa
luta armada entre um druida arquetípico - de idade avançada, com longas barbas e
túnicas - contra guerreiros que faziam do combate seu ofício, com anos de treinamento e
experiência em técnias de luta.

Pois esses mesmos fatores que fazem de alguém um grande guerreiro - treinamento
e experiência - são capazes de tornar alguém um grande sacerdote. Um grande
ferreiro. Uma grande curandeira. Um grande poeta. Uma grande escritora. Um
grande professor. Uma grande comerciante. E assim por diante.

Treinamento e experiência: o que faz, então, que alguém seja um grande sacerdote mas
não um grande guerreiro, ou vice-versa? Eis que surge o terceiro ingrediente do sucesso:
a Vocação.

Um “ídolo” celta em Boa Island, Irlanda

Vocação

A vocação, como a própria palavra nos diz, é a voz (interior ou divina, pouco importa -
no fundo são o mesmo) que nos diz o que somos, para que servimos.

É o chamado para a nossa aptidão, para a função que desempenhamos sem grande
esforço, quase que naturalmente. Nada tem a ver com os desejos de nossos pais ou
mesmo com aquilo que cremos ser mais interessante para nós: por vezes, nossa
vocação é algo surpreendentemente “diferente” de nós, com o qual temos de fazer as
pazes.
Encontrar a própria vocação é algo fundamental para o desempenho de qualquer função
- em especial aquelas que envolvem as sagradas tarefas de contato e intermediação com
o universo divino. Descobrir a vocação pessoal - artista, atleta, bardo, guerreiro… - é
um processo íntimo e pessoal que exige honestidade.

Parece claro agora que, no druidismo, uma verdade é inquestionável: nem todos
nasceram para ser sacerdotes. Mas todos nasceram para viver o Sagrado em suas
vidas.

A percepção tipicamente druídica que vê o Sagrado em tudo ajuda a devolver a


sacralidade a todos os outros ofícios - médicos, juristas, historiadores, professores…

No próximo artigo, exploraremos outras formas de contato com o Sagrado que podem
ser muito mais produtivas - ao indivíduo e ao próprio espírito do druidismo - do que um
sacerdócio espúrio, praticado por aqueles que o fazem simplesmente por desconhecerem
quais são suas reais vocações.

Até lá, procure conhecer-se melhor - sem personagens nem fantasias ou desejos - para,
assim, ouvir a voz divina que lhe mostra qual sua real vocação dentro do druidismo.

No fim das contas, pode até ser que a sua seja… o sacerdócio.

Claudio Quintino Crow é escritor, músico e instrutor de druidismo e cultura celta.

Você também pode gostar