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(Este artigo é o primeiro de uma série que explorará as diferentes formas de relação
com o sagrado observáveis numa vivência druídica. Como sempre, não se trata de uma
realidade inquestionável, mas sim de um apanhado de percepções desenvolvidas a
partir de anos de prática e estudos.)
Originalmente publicado no boletim interno da DRUID NETWORK em português (fev.
2010).
O Sagrado na Paisagem
O Sagrado celta, portanto, é algo próximo, acessível, tangível. Isso por si só torna mais
simples a vivência desse Sagrado, não necessitando o praticante de ‘atravessadores’ ou
intermediários. Quem se banha num rio na Irlanda, por exemplo, não mergulha somente
num corpo d’água, mas sim no ventre de uma deusa (Sionann no Rio Shannon, Bóann
no Rio Boyne e assim por diante). O mesmo vale para outras características da
paisagem irlandesa, como prova o Dindshenchas, ou “o conhecimento dos lugares
notáveis” – uma série de versos maravilhosos que relatam a origem mágica dos nomes
dos locais sagrados da Irlanda – ou seja, toda ela. Por paralelismo, e tendo por base os
registros da etnografia e da arqueologia (para não mencionar a toponímia), podemos
expandir essa visão dos celtas da Irlanda para outras terras outrora habitadas por povos
celtas.
Contato Direto
O contato com as deidades celtas, como se pode ver, era feito diretamente, num nível
pessoal – e a relação dos irlandeses com o Sagrado mantém, mesmo após a
cristianização, essa característica individual e direta: o folclore da Irlanda é rico em
registros de encontros pessoais com os espíritos de santos ou de ancestrais mortos – e
até mesmo com a Virgem Maria e o Cristo. A rica tradição das lendas de viagem ao
Outro Mundo - as imramma - são outro exemplo dessa proximidade, assim como a
imagem da Avalon arthuriana e da cidade de Ys do folclore bretão.
Mael Duin viaja ao Outro Mundo na célebre imram.
Em momento nenhum, contudo, isso quer dizer que não existisse essa figura na
sociedade celta. Ao contrário, ela existia – e em diversas modalidades.
É comum atribuirmos ao druida a função sacerdotal, e esta é uma verdade – mas não
toda a verdade sobre os druidas. Mais do que apenas sacerdotes, as múltiplas funções
associadas aos druidas celtas dão conta de sua importância para a sociedade celta como
um todo: filósofos, conselheiros de reis, juristas, profetas, curandeiros, historiadores –
não é à toa que o Dr. Simon James, uma das maiores autoridades modernas em cultura
celta, afirma que “os druidas eram o eixo ao redor do qual gravitava toda a sociedade
celta.”
Rei Divino
Muitos estudiosos contemporâneos afirmam que, nas tradições celtas, várias das funções
cerimoniais tradicionalmente atribuídas a sacerdotes eram desempenhadas pelo Rei
tribal, cabendo ao druida um papel mais profundo. Então temos dois candidatos -
igualmente válidos - ao papel de sacerdote arquetípico na sociedade celta: o próprio
druida e o rei.
É fato que a figura do rei celta é muito diferente da nossa percepção atual – a começar
pelo fato de que os reis eram eleitos pelo povo dentro de preceitos rigorosíssimos de
conduta e capacitação. Afinal, o rei era o representante de toda a comunidade, aquele
que intermediava a relação do povo com a terra – sagrada e viva – na qual viviam. Por
outro lado, a função sacerdotal do druida é evidenciada em frases como a de Julio
César, que afirma que os gauleses não celebravam nenhum ritual sem a presença de um
druida.
Tendo isso mente, sabemos que, por definição, o sacerdote intermedia o contato entre o
Sagrado e a Comunidade – e aqui, a ênfase na palavra ‘comunidade’ é a chave. O
sacerdote celebra ritos públicos - ato facilmente encontrado nas lendas celtas sendo
praticado tanto pelos druidas quanto pelos reis.
Eis porque é impossível para quem quer que seja dizer-se sacerdote sem haver uma
comunidade para que ele a represente junto ao Sagrado.
O caminho druídico, como se sabe, é vasto e diversificado - para cada uma das três
‘ramificações’ de Bardo, Ovate e Druida correspondem incontáveis subdivisões e
especializações. Assim, podemos afirmar que, com base no quanto já visto, o
sacerdócio jamais pode ser definido como a única função do druida. Da mesma
forma, e pelos mesmos motivos, em tempos modernos o sacerdócio jamais pode ser
visto como a única forma de Relação com o Sagrado dentro do druidismo.
E voltando a um dos primeiros pontos deste ensaio, isso se deve justamente ao fato de
que, do ponto de vista celta, o Sagrado está em toda a parte: nas paisagens externa e
interna, no coletivo e no individual, em tudo que é e que há.
Eis porque, no druidismo, o contato com o Sagrado não precisa de um templo - todo
lugar é sagrado - nem de intermediários, podendo acontecer em qualquer lugar, a
qualquer momento. Evidentemente, os quatro festivais celtas são momentos especiais
que, hoje como ontem, envolvem toda a comunidade. E, nesses eventos, a figura do
sacerdote - fosse ele o rei ou o druida - era importante por seu preparo e treinamento
para mediar esse contato em momentos tão ricos e densos, nos quais a comunidade
- e não o indivíduo - era o foco.
Um banquete celta
Nos outros momentos, contudo, o Sagrado poderia ser igualmente acessado por
qualquer indivíduo - na prece, no oráculo, na oferenda votiva, no contato íntimo com
esta ou aquela a divindade.
Treinamento, Experiência e…
Se ainda pairam dúvidas sobre a questão sacerdotal, recordemos que os celtas viveram
na Idade do Ferro e que sua sociedade guerreira era pautada na Honra e no respeito
obtidos através da batalha. Nesse cenário, imaginemos uma comunidade formada
exclusivamente por sacerdotes. Por mais que saibamos pelos registros históricos que
druidas participavam de combates, é difícil imaginar qualquer nível de sucesso numa
luta armada entre um druida arquetípico - de idade avançada, com longas barbas e
túnicas - contra guerreiros que faziam do combate seu ofício, com anos de treinamento e
experiência em técnias de luta.
Pois esses mesmos fatores que fazem de alguém um grande guerreiro - treinamento
e experiência - são capazes de tornar alguém um grande sacerdote. Um grande
ferreiro. Uma grande curandeira. Um grande poeta. Uma grande escritora. Um
grande professor. Uma grande comerciante. E assim por diante.
Treinamento e experiência: o que faz, então, que alguém seja um grande sacerdote mas
não um grande guerreiro, ou vice-versa? Eis que surge o terceiro ingrediente do sucesso:
a Vocação.
Vocação
A vocação, como a própria palavra nos diz, é a voz (interior ou divina, pouco importa -
no fundo são o mesmo) que nos diz o que somos, para que servimos.
É o chamado para a nossa aptidão, para a função que desempenhamos sem grande
esforço, quase que naturalmente. Nada tem a ver com os desejos de nossos pais ou
mesmo com aquilo que cremos ser mais interessante para nós: por vezes, nossa
vocação é algo surpreendentemente “diferente” de nós, com o qual temos de fazer as
pazes.
Encontrar a própria vocação é algo fundamental para o desempenho de qualquer função
- em especial aquelas que envolvem as sagradas tarefas de contato e intermediação com
o universo divino. Descobrir a vocação pessoal - artista, atleta, bardo, guerreiro… - é
um processo íntimo e pessoal que exige honestidade.
Parece claro agora que, no druidismo, uma verdade é inquestionável: nem todos
nasceram para ser sacerdotes. Mas todos nasceram para viver o Sagrado em suas
vidas.
No próximo artigo, exploraremos outras formas de contato com o Sagrado que podem
ser muito mais produtivas - ao indivíduo e ao próprio espírito do druidismo - do que um
sacerdócio espúrio, praticado por aqueles que o fazem simplesmente por desconhecerem
quais são suas reais vocações.
Até lá, procure conhecer-se melhor - sem personagens nem fantasias ou desejos - para,
assim, ouvir a voz divina que lhe mostra qual sua real vocação dentro do druidismo.
No fim das contas, pode até ser que a sua seja… o sacerdócio.