UFRJ| IPPUR
RIO DE JANEIRO | 2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
SIMONE APARECIDA POLLI
RIO DE JANEIRO
2010
SIMONE APARECIDA POLLI
Orientadores:
Henri Acselrad, Doutor em Planejamento,
Economia Pública e Organização do Território pela
Université Paris 1, Sorbonne.
Fernanda Ester Sánchez Garcia, Doutora em
Geografia Humana pela Universidade de São
Paulo.
RIO DE JANEIRO
2010
P774m Polli, Simone Aparecida.
Moradia e meio ambiente: os conflitos pela apropriação
do território nas áreas de mananciais em São Paulo /
Simone Aparecida Polli. – 2010.
330 f. : il. color. ; 30 cm.
CDD: 363.7
SIMONE APARECIDA POLLI
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA
__________________________________
Prof. Dr. Henri Acselrad – Orientador
Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPPUR/UFRJ
__________________________________
Prof(ª). Dr(ª). Fernanda Ester Sánchez – Orientadora
Universidade Federal Fluminense – EAU/UFF
__________________________________
Prof. Dr. Adauto Lúcio Cardoso
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - UFRJ
__________________________________
Prof. Dr. Orlando Alves dos Santos Júnior
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - UFRJ
__________________________________
Profa. Dra. Regina Bienenstein
Escola de Arquitetura e Urbanismo - EAU/UFF
__________________________________
Profa. Dra. Maria Lucia Refinetti Martins
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – FAU/USP
AGRADECIMENTOS
Mergulhar nessa tarefa de cursar o doutorado não foi uma missão muito fácil. Depois de
cinco anos, chego ao final dessa etapa com uma lista de agradecimentos.
Aos orientadores Henri Acselrad e Fernanda Sánchez que, pelo exemplo de clareza e senso
crítico, me ensinaram a difícil tarefa de tornar-me uma pesquisadora. Também agradeço aos
professores que participaram da qualificação e banca final com sugestões para este
trabalho.
Aos professores do IPPUR, obrigada pelos ensinamentos e por essa experiência que muito
me enriqueceu no período de 2004-2010. Em especial os professores Ana Clara Torres
Ribeiro e Adauto Lúcio Cardoso.
Aos amigos Dora Vargas, Juliana Salomão, Alice Lourenço, Andrea e Paulo de Lauro, Neusa
Lima, Fátima Tardin, Danielle Barros, Maria Cecília Gimenes Soares, Camila Fujita, Márcia
Hirata, Anselmo Massad, Monica Nogara, Tiarajú Pablo D’Andrea, Heloísa Diniz, Breno
Pimentel Camara, Mariana Fix, Roberta Menezes, Paula Santoro, Angela Pilotto, que de uma
forma ou de outra colaboraram no desenvolvimento deste trabalho. E, a outros, aos quais
possa ter esquecido o nome, perdão.
Ao grupo Pesquisa Maranhão e aos cooperados da Ambiens Cooperativa que souberam
compreender minhas ausências.
À Claudia Garcia de Souza, Camila Simioni, Thaiz Vasconcelos, Célia Regina Polli da Luz,
Alessandra da Luz, Bárbara Bruchert, Ana Carola Traverso, Helena Pimentel, ao Leandro da
Luz e Fábio Polli, que colaboraram ativamente na sistematização de diferentes pontos da
parte empírica.
Às três queridas mosqueteiras Juliana Petrarolli, Karina Leitão e Luciana Ferrara pela
colaboração, paciência e revisão da Tese neste momento final.
À toda a família carioca, amigos especiais que compartilharam comigo meu tempinho vida
no Rio de Janeiro, em especial à Dona Lurdes e Maria Angélica, que sempre me
incentivaram a continuar nessa jornada.
À família colombense que, apesar de distante, soube, de diversas formas, fazer-se presente.
Em especial aos meus pais, irmãos, cunhados (as), sobrinhos (as) e à tia Mercedes, que
sempre se mobilizaram em diferentes momentos dessa jornada. Para vocês, meu carinho é
redobrado e muito especial. E também a você, Vitor, o mais novo integrante da família, que
ainda não o conheço, mas desejo o melhor desta vida.
À toda minha nova família paulistana, que a cada dia passo a admirar mais, em especial à
querida Conceição que, por vários motivos, me acolheu como sua filha.
1
Por Eduardo Galeano. Quatro frases que fazem o nariz do Pinóquio crescer. 2009. Publicado originalmente em
http://www.resumenlatinoamericano.org/. Acesso 06/08/2009.
RESUMO
A presente Tese propõe-se a estudar casos do chamado “conflito entre moradia e meio
ambiente” no município de São Paulo a fim de compreender o modo como, na sociedade
brasileira contemporânea, os distintos atores sociais e instituições públicas vêm concebendo
e trabalhando a relação entre o direito à moradia e os preceitos de proteção ambiental nos
conflitos por ocupações de baixa renda em áreas juridicamente protegidas. Para tratar deste
conflito buscou-se analisar como é feito o manejo político e urbanístico de tais áreas, nos
casos estudados, por meio dos programas “Mananciais” e “Defesa das Águas”, a fim de
observar as articulações políticas e sociais subjacentes ao tratamento deste dilema. Apesar
do aparente consenso em torno dos objetivos oficiais desses programas, levanta-se a
hipótese da existência de um universo de situações de conflito nos meandros das esferas
institucionais e sociais relativas ao tratamento do binômio moradia e meio ambiente com
vistas a atender à demanda por preservação de mananciais na “região produtora de água”.
Esta pesquisa avaliou que tais intervenções públicas, além de não garantir as características
necessárias para a produção de água esperada, produziram transformações, marcadas
basicamente por obras de engenharia que geraram conflitos, entre a população residente e o
Estado. Este último estaria mais preocupado com o “gerenciamento de suas urgências” e os
ganhos políticos advindos do discurso da preservação da qualidade da água, oferecendo
uma espécie de “produto habitação” – com oferta de moradia dissociada dos
condicionantes apropriados de habitabilidade - associado a uma certa dose de intolerância à
pobreza. Tomou-se como base empírica os conflitos na região Sul da área de proteção dos
mananciais do município de São Paulo. Os casos estudados são no Cantinho do Céu, Jardim
Gaivotas e Parque Cocaia1/Toca, todos no distrito de Grajaú e que estão passando por
intervenções do Programa Mananciais e/ou Defesa das Águas.
The aim of this thesis is to propose study of the so-called “conflict between housing and
environment” cases in the municipality of São Paulo in order to understand how, in the
contemporary Brazilian society, different social actors and public institutions have been
conceiving and cultivating the relationship between the right to housing and the principles of
environmental protection in conflicts over low income occupation in legally protected areas.
To address this conflict, the thesis analyzed the political and urbanistic handling of these
areas in the cases studied, considering “Mananciais” and “Defesa das Águas” programs, in
order to observe underlying political and social articulations in the treatment of this dilemma.
Despite the apparent consensus around the official objectives of these programs, the thesis
examines the hypothesis of the existence of a universe of conflict situations in the intricacies
of the institutional and social spheres regarding the treatment of the binomium housing and
environment in order to meet the demand for conservation of watershed in the “water
producing area”. This research assessed that such public interventions, besides failing to
ensure the required characteristics for the expected water production, caused
“transformations”, marked primarily by civil engineering works that have generated conflicts
between the resident population and the State. The latter would be more concerned with
“managing its urgencies” and the political gains arising from the discourse on conservation
of water quality, offering some type of “housing product” – where housing supply is
dissociated from appropriate housing requirements – associated with a certain amount of
intolerance towards poverty. The conflicts in the south region of the protected watershed
areas in the municipality of São Paulo are the empirical basis for this thesis. The case studies
are at Cantinho do Céu, Jardim Gaivotas and Parque Cocaia1/Toca, all located in Grajaú
district and are objects of intervention by Mananciais and/or Defesa das Águas programs.
En la presente Tesis de Doctorado, se propone estudiar los casos del llamado “conflicto
entre vivienda y medio ambiente” en el municipio de Sao Paulo. Con ello, se pretende
comprender el modo en el que los distintos actores sociales e instituciones públicas en la
sociedad brasileña contemporánea, vienen concibiendo y trabajando la relación entre el
derecho a la vivienda y los preceptos de protección ambiental en los conflictos por
ocupaciones realizados por personas de ingresos bajo en áreas jurídicamente protegidas.
Para tratar este conflicto, se procuró analizar el manejo político y urbanístico de tales áreas.
En relación a los casos estudiados, por medio de los programas “Mananciais” y “Defesa das
Águas”, la intención fue observar las articulaciones políticas y sociales subyacentes al
tratamiento de este dilema. A pesar del aparente consenso en torno a los objetivos oficiales
de estos programas, esta investigación levanta la hipótesis de la existencia de un universo de
situaciones de conflicto en los meandros de las esferas institucionales y sociales relativas al
tratamiento del binomio vivienda y medio ambiente, con vistas a atender la demanda por la
preservación de manantiales en la “región productora de agua”. Esta investigación evaluó
tales intervenciones públicas, que además de no garantizar las características necesarias
para la producción de agua esperada, produjeron transformaciones, marcadas básicamente
por obras de ingeniería que generan conflictos entre la población residente y el Estado. Este
último estaría más preocupado con el “gerenciamiento de sus urgencias” y con las
ganancias políticas a partir del discurso de preservación de la calidad del agua, ofreciendo
una especie de “producto habitacional”- con oferta de vivienda disociada de los
condicionantes apropiados de habitabilidad- asociado además a una cierta dosis de
intolerancia a la pobreza. Como base empírica se tomaron los conflictos en la región Sur del
área de protección de los manantiales del municipio de Sao Paulo. Los casos estudiados son
el Cantinho do Ceu (Pedacito de Cielo), Jardim Gaivotas (Jardín Gaviotas) e Parque
Cocaial/Toca, todos en el distrito de Grajaú, lugares que están sujetos a intervenciones del
Programa Mananciais y/o Defesa das Águas.
Palabras Clave: vivienda, medio ambiente, conflictos, Estado, manantiales, Sao Paulo.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 9: Projeto Orla do Guarapiranga. Parque São Paulo: implantação geral. 139
Local: Orla da Represa do Guarapiranga.
Figura 10: Folheto explicativo da ação do SOS Mananciais e Folheto que 145
acompanhou ação de remoção de ocupações em área de proteção dos
mananciais.
Figura 11: Organização para a fiscalização. Operação Defesa das Águas. 153
Figura 17: Foto da piscina do CEU Navegantes, Rua Franscisco Inácio Solano, 227
comércio local e moradias do entorno do CEU em Cantinho do Céu.
Figura 21: Diagrama dos agentes no Jardim Gaivotas, ações de criminalização. 254
Figura 22: Diagrama dos agentes no Jardim Gaivotas, remoções sumárias. 255
Figura 23: Notícia no diário oficial do Município sobre a ameaça de remoção no 256
Jardim Gaivotas.
Figura 24: Moradores do Jardim Gaivotas que sofreram com a demolição de suas 256
casas.
Figura 26: Decisão Judicial expedida por Jayme Martins de Oliveira Neto em favor 258
da Prefeitura com relação às demolições.
Figura 28: Termo de Declarações de Gilson da Silva, morador da área do Jardim 260
Gaivotas.
Figura 31: Requisição de Exame pericial. Polícia Ambiental de São Paulo. 263
Figura 33: Fotos de Josenaide, do portão e entorno de sua casa no Jardim 265
Gaivotas, autos de infração ambiental.
Figura 37: Projeto Executivo do Parque Linear no Parque Cocaia 1/Toca. 301
Figura 39: Fotos da área Parque Cocaia1/Jardim Toca e atividade cultural na Rua 303
Nuno Guerner
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 8: Tipos de investigação da PJHURB na região Sul de São Paulo (2000- 170
2007).
Gráfico 9: Atendimentos do Nhaburb/Defensoria por região da cidade 182
LISTA DE MAPAS
Mapa 6: Localização das áreas objeto de estudo no Município de São Paulo e na 195
RMSP.
Mapa 7: Localização das áreas objeto de estudo, Cantinho do Céu, Jardim 195
Gaivotas e Parque Cocaia/Toca.
LISTA DE TABELAS
Tabela 13: Uso do Solo nos mananciais sul de São Paulo, agrupado por 99
distritos em 2007.
Tabela 20: População e rendimento por região da cidade de São Paulo. 166
DP – Delegacia de Polícia
Introdução 21
2.4. Histórico da utilização das águas em São Paulo: os conflitos entre o abastecimento e 85
a produção de energia elétrica
2.5. Os usos do solo urbano e o processo de ocupação das áreas de manancial 92
3.1. O histórico das políticas aplicadas aos mananciais até a década de 1990 109
3.2.2. O Programa Mananciais nas represas Guarapiranga e Billings (2001-em diante) 125
3.5.1. A atuação do Ministério Público nos casos envolvendo moradia em área de 163
manancial no município de São Paulo
3.5.1.1. Pesquisa no banco de dados da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo 165
3.5.1.2. As denúncias na Zona Sul de São Paulo, segundo o cadastro da PJHURB 168
3.5.2. A atuação da Defensoria Pública nos casos envolvendo moradia em área de 180
manancial no município de São Paulo
3.6. Os embates nas políticas públicas nos mananciais de São Paulo 188
4.1.1. O histórico do conflito a partir da ACP proposta pelo Ministério Público 197
4.1.2. O projeto oficial de regularização fundiária de Cantinho do Céu segundo a SEHAB 202
e o Ministério Público
4.1.3. Os conflitos e o Programa Mananciais sob o olhar dos moradores 207
4.3. As ações de remoção no Parque Cocaia1: apontamentos de uma ação em curso 266
4.3.1. O Projeto Oficial para a Favela do Parque Cocaia I/Jardim Toca 266
4.3.2. O Programa Mananciais na visão dos moradores: conflitos e incertezas do 269
cotidiano
4.3.2.1. As trajetórias de vida e de moradia: da formação do “bairro” à ameaça de remoção 271
4.3.2.3. A forma de produção do espaço na fronteira urbana: a remoção no Jardim Toca 279
6. Bibliografia 312
ANEXOS 324
INTRODUÇÃO
O senso comum sugere que a ocupação de determinados espaços por favelas e assentamentos
irregulares está associada a uma série de transtornos, danos ambientais, poluição visual, criminalidade e
por boa parte do que se entende por desordem nas grandes metrópoles. A adoção de argumentos
“ambientais”, por vezes baseados na lei de crimes ambientais e na lei de proteção aos mananciais, tem
servido para justificar a culpabilização ou, eventualmente, a criminalização dos moradores de áreas de
ocupação irregular. Esse é o caso dos assentamentos situados em áreas de mananciais, aos quais é
dirigida uma diversidade de críticas, a saber: pelo parcelamento clandestino, pelo descumprimento da
legislação estadual ambiental incorrendo em danos ambientais como desmatamento, assoreamento,
impermeabilização do solo, poluição da água e lançamento de lixo e esgoto em natura na represa.
A literatura da sociologia urbana crítica, por sua vez, sustenta que a chamada desordem urbana, no
que diz respeito às condições irregulares de ocupação do espaço para fins habitacionais, configura a ordem
espacial própria do capitalismo brasileiro de baixos salários, que nunca incorporou o custo da moradia na
remuneração regularmente paga aos trabalhadores (MARICATO, 1996). No caso da experiência paulistana,
a região dos mananciais, por exemplo, considerada por alguns autores fronteira urbana (TORRES, 2004),
teria sido ocupada num processo semelhante à produção das periferias nas grandes cidades, com o
complicador das condições geofisiográficas que terminaram por oferecer, a esses moradores, um padrão
de proteção ambiental desigual em relação a outras áreas da cidade dotadas de infra-estrutura. Os
trabalhadores residentes precariamente naquelas áreas tenderiam assim a correr riscos ambientais,
enquanto os mais poderosos deles tenderiam a estar livres - ao mesmo tempo em que a acumulação de
riqueza teria ocorrido em condições excepcionais em relação aos padrões das economias onde a
industrialização se deu com salários mais altos. Nesta perspectiva, portanto, a crítica se deslocaria para
processos mais estruturais relativos à natureza do capitalismo brasileiro; e as populações residentes em
assentamentos precários apareceria, antes, como vítimas da ausência ou insuficiência de políticas
habitacionais e da consequente exposição particular a riscos ambientais associados às condições precárias
de moradia.
No debate público corrente, a trama socioespacial, descrita acima segundo duas narrativas polares,
é traduzida nos termos de um “conflito entre moradia e meio ambiente”, expressão que não capta, por
certo, toda a complexidade das forças, interesses e representações envolvidos no processo de construção
de tal questão na esfera pública. A presente Tese propõe-se a estudar alguns casos do chamado “conflito
entre moradia e meio ambiente” a fim de compreender o modo como, na sociedade brasileira
contemporânea, os distintos atores sociais e instituições públicas vêm concebendo e trabalhando a relação
entre o direito à moradia e os preceitos de proteção ambiental nos conflitos por ocupações de baixa renda
em áreas juridicamente protegidas e consideradas ecologicamente sensíveis. Entenderemos aqui por
22
“conflito entre moradia e meio ambiente” o modo pelo qual têm sido formulados, na linguagem dos direitos,
os pleitos por acesso à moradia por parte de sujeitos sociais a quem se acusa de estarem residindo em
áreas cuja ocupação resulta em comprometimento das condições apropriadas de abastecimento de água
das cidades.
Toma-se como base empírica do presente trabalho a análise dos conflitos na Região sul da área
dos mananciais do município de São Paulo. Esses foram escolhidos após pesquisa exploratória no
Ministério Público, na Defensoria e Prefeitura de São Paulo (Sehab - Resolo e Habi-Mananciais). No
Ministério Público, foi realizada pesquisa de 4 meses no banco de dados da Promotoria de Justiça de
Habitação e Urbanismo abrangendo todos os casos que envolviam moradia e meio ambiente no período de
2000-2007 para a Zona Sul de São Paulo, como é descrito no capítulo três desta Tese. Na Defensoria
Pública de São Paulo, foi analisado relatório de atividades desde sua criação, em 2006, até 2010 do Núcleo
especializado em Habitação e Urbanismo (NHABURB). Na Prefeitura de São Paulo contou-se com o
levantamento dos loteamentos irregulares (Resolo, Infohab) bem como a listagem das áreas e intervenções
do Programa Mananciais por intermédio da HABI- Mananciais.
Além disso, a pesquisadora participou de seminários e entrevistas com especialistas da área a fim
fazer uma leitura dos principais conflitos decorrentes da forma de atuação do Estado em mananciais.
Também foram feitas visitas in loco para verificar as intervenções do Estado, bem como visitas a entidades
ligadas à questão da moradia e do meio ambiente, como o Cedeca, o Polis, o Instituto Socioambiental, o
Escritório Modelo da PUC, Cdhep, Fórum em Defesa da Vida, Fórum Social Sul, Fórum dos Recursos
Públicos de Mananciais, ONG Espaço. Nessas visitas, procurou-se identificar as formas de atuação do
Estado em Mananciais, detectando-se que as principais ações relacionadas ao binômio moradia e meio
ambiente tratavam de ações de fiscalização, remoção e regularização fundiária. As entidades também
colaboraram na escolha dos entrevistados de cada área. Foram priorizados três casos que representam as
diferentes formas de intervenção e que, em algum momento, geraram conflitos por estarem em área de
manancial, inclusive com a atuação do Ministério Público, da Defensoria e da Justiça na tentativa de sua
23
resolução. Os casos escolhidos também tiveram repercussão na mídia, devido aos protestos de moradores
e manifestações em nível judicial, mostrando sua visibilidade social.
Previamente à escolha dos moradores entrevistados foram feitas várias visitas ao local para
diagnosticar os principais atores do processo, lideranças locais, como presidente de associação de
moradores, bem como os diretamente afetados pela ação do Estado. Para o caso do Cantinho do Céu foram
escolhidas lideranças como o presidente da associação de moradores e outras lideranças que participaram
do processo de ocupação da área, bem como moradores indicados por instituições com atuação no local,
como o Cedeca, com o objetivo de oferecer um relato das transformações urbanas que estavam ocorrendo.
Para Jardim Gaivotas, a escolha dos entrevistados baseou-se na visita prévia da pesquisadora, em
22/6/2008, acompanhada de integrantes do ISA, que foram convidados pelo presidente da associação de
moradores do Jardim Gaivotas a fim de prestar auxílio social e judicial às famílias que estavam sofrendo
autuação da polícia ambiental. Como os casos, em sua maioria, eram bastante semelhantes, foi escolhida
uma moradora que havia sido “condenada”, com pagamento com serviços comunitários, para relatar o
processo de criminalização. No terceiro caso, os moradores de Jardim Gaivotas/Toca entrevistados foram
escolhidos a partir do grupo que se mobilizou para a formalização de uma nova associação de moradores
para trabalhar com o direito à moradia e fazer contraponto ao projeto oficial da Prefeitura. Para tanto, a
pesquisadora começou a frequentar as reuniões junto com representantes do Escritório Modelo da PUC,
Cedeca, lideranças de movimento de moradia e a Defensoria. A escolha dos entrevistados foi feita a partir
das principais lideranças desse grupo.
2
Seminários: “Mananciais: uma nova realidade?” promovido pelo Instituto Socioambiental (ISA), em maio de 2008. “Conflitos
Fundiários de Posse e Propriedade no Brasil”, PUC/SP em 16/06/2009.
3
A promotora orienta que o caso envolvia uma ordem interna expedida pelo prefeito que vinha causando vários transtornos sociais.
24
Ao todo foram realizadas 38 entrevistas, conforme relação em anexo nesta Tese. Entrevistas com
representantes do Executivo, com instituições acadêmicas, profissionais, consultores e entidades locais de
defesa de direitos humanos, moradia e ambientalistas, bem como com a Promotoria de Habitação e
Urbanismo do Ministério Público de São Paulo e a Defensoria Pública de São Paulo por meio do Núcleo de
Habitação e Urbanismo. E, por fim, com os moradores das áreas de mananciais, como destacado acima.
O método utilizado para o reconhecimento dos sujeitos sociais e seus conflitos baseia-se na
etnografia experimental4, cenas descritivas, proposto por Vera Telles (2006, 2007). Para a autora, a fim de
dar “visibilidade a perspectivas urbanas em mutação” são necessários a construção de parâmetros críticos
e, ao mesmo tempo, de parâmetros descritivos, ou seja, “os fios que tecem a tapeçaria do mundo social”,
as tramas da cidade, os circuitos da vida urbana, que permitam captar os deslocamentos que vêm se
processando na contemporaneidade. Segundo ela: “(...) não se trata de partir de “objetos” ou entidades
sociais” (...), mas sim de situações e configurações sociais a serem tomadas como “cenas descritivas”,
que permitam seguir o traçado dessa constelação de processos e práticas, suas mediações e conexões”
(Telles, 2007, p. 208).
A pesquisa empírica dessa Tese, sustentada pela enunciação de conflitos, procurou refazer, por
meio da etnografia experimental, de entrevistas e descrição das tramas urbanas, as cenas das trajetórias
urbanas, as histórias de ocupação das famílias bem como as tramas decorrentes dos conflitos
pesquisados. Ao registrar o cotidiano, as narrativas buscaram os feixes, as redes, as “conexões” que
configuram uma espécie de “conjugação entre circunstâncias, fatos, coisas e atores” (Telles, 2006, p.
189).
Nestas áreas, a ocupação considerada irregular foi associada ao alarme pela floração de algas e ao
possível comprometimento do abastecimento público de água para bairros de classes média e alta como
Morumbi, Butantã, Brookling, Vila Mariana5 na Zona Oeste e Centro Sul de São Paulo, todos eles servidos
pelo Sistema Guarapiranga. Uma série de estudos6 tem relatado o cenário de deterioração das águas
superficiais das represas da Região Metropolitana de São Paulo- RMSP, alertando para o perigo iminente do
florescimento de cianobactérias, o encarecimento dos custos de tratamento da água bruta e
conseqüentemente os riscos gerados ao abastecimento público.
O diagnóstico limnológico apresentado por Tundisi (2008, p. 94) afirma que os mananciais de São
Paulo estão sujeitos a inúmeros impactos ainda “não adequadamente avaliados do ponto de vista
econômico, social e de saúde pública”, apontando para o custo e o risco ambiental da falta de água:
4
“Sobre o sentido e a importância de uma etnografia experimental no cenário das transformações do mundo contemporâneo, sob
ângulos empíricos e matrizes teóricas diferentes, ver Arjun Appadurai, Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization
(Minneapolis, Londres, University of Minnesota Press, 1996); Paul Rabinow, French DNA: Trouble in Purgatory (Chicago, University
of Chicago Press, 1999); Donna Haraway, Simians, Cyborgs and Women: the Reinvention of Nature (Nova York, Routledge, 1991)”
(Telles, 2007, p. 208).
5
Fonte: http://atlasambiental.prefeitura.sp.gov.br/conteudo/saneamento/san_02.htm. Mapa de Saneamento, dividido pelos sistemas
produtores de água.
6
“Inúmeros trabalhos científicos publicados nos últimos 30 anos (Zagato, 1995; Beyruth, 2000; Beyruth et al, 1992, 1997; Abe et
al, 2006 , Tundisi et al 2006) além de um grande volume de informações armazenados em relatórios técnicos e científicos da
Sabesp e CETESB (Cetesb, 2002, Sabesp, 2000 a, b, c), IIE /Sabesp 2000 produziram informações fundamentais sobre os
mecanismos de funcionamento limnológico e suas conseqüências na qualidade das águas”. (Tundisi, 2008, p. 86).
25
“Fontes pontuais e não pontuais de substâncias tóxicas, nutrientes (especialmente N e P) e uma carga
interna de cada reservatório, acumulada durantes os últimos 50 anos, têm aumentado o risco e os custos
do tratamento (...)”. Esses especialistas se questionam até quanto se pode continuar gastando no
tratamento da água da RMSP. Para eles, “o saneamento da água significa saneamento das bacias
hidrográficas, sua conservação e recuperação” (op.cit, loc.cit). Assim, propõem uma série de tecnologias
na recuperação dos sistemas de abastecimento7 que incluem o investimento nos serviços ambientais
prestados por esses ecossistemas.
O caso da moradia em área de manancial configura uma situação ímpar: os mais pobres correm
risco, sim, mas as classes médias e abastadas vêem-se, por sua vez, também ameaçadas de risco
ambiental associado à escassez8, a saber: de perder acesso ao abastecimento apropriado de água, dados
os processos de ocupação das áreas responsáveis por este fornecimento.
Assim, os grupos sociais dotados de maior renda e poder experimentam, neste caso, um risco
ambiental reflexo daquele risco ambiental sofrido correntemente pelos grupos sociais desprovidos de
acesso à moradia segura. Trata-se aqui de uma situação em que as ameaças ao ambiente “de todos”
significam ameaças que, além de afetar aos mais despossuídos, afetam também os grupos sociais de
classe média e maior renda. Como se configuram as decisões nesse contexto particular? Segundo os
especialistas (TUNDISI e outros acima citados), um dos problemas a ser enfrentado é o da poluição das
águas da represa, sendo necessário “sanear” toda a bacia hidrográfica, numa clara preocupação com o uso
do solo da região e o manejo das atividades e a “recuperação” das áreas já ocupadas que oferecem riscos
“para toda a cidade”. Evocam-se, assim, decisões a serem tomadas no que diz respeito aos padrões
locacionais da moradia insegura, ou seja, políticas relativas às formas de ocupação realmente existentes
nas áreas de mananciais. No objeto da presente discussão, o manejo político urbanístico de tais áreas
exprime, portanto, essa situação singular em que o risco ambiental sofrido pelos mais despossuídos
repercute sob a forma de risco ambiental que atinge de forma reflexa as demais camadas sociais.
7
“O uso de técnicas e avanços conceituais modernos no controle dos sistemas aquáticos de abastecimento: mosaicos de
vegetação; manutenção das áreas alagadas; reflorestamento com espécies nativas para manutenção das Áreas de proteção
permanente, especialmente em regiões de adensamento populacional e o uso de técnicas simples e de baixo custo para
recuperação de tributários, pode ser outra das tecnologias empregadas para atuação no processo de recuperação” (TUNDISI &
MATSUMURA-TUNDISI, 2008 apud TUNDISI, 2008, p.95).
8
Compreende-se nessa Tese que o problema da escassez não decorre apenas do risco ambiental como um dado objetivo, mas
como um problema socialmente construído. Abordando seu conteúdo sociológico, apontamos para a forma desigual como os
recursos são apropriados e como são configurados os diferentes interesses associados a essa apropriação contraditória dos
recursos do território.
26
O arco de alianças que até os anos 1980 tinha se formado para apoiar o direito à moradia se vê
agora cindido pelas pressões decorrentes da evocação do discurso que pressupõe subordinar o direito à
moradia ao direito “de toda a cidade” e ao abastecimento de água. Agora, o embate se dá entre os que
afirmam a necessidade desta hierarquização/subordinação e os que pretendem uma harmonização entre os
dois direitos ou, ao menos, soluções que atenuem as remoções e que reconheçam que a “irregularidade”
decorre do modelo de urbanização com baixos salários.
A forma de condução desses conflitos, quando analisados na sua historicidade, evidencia uma
mudança. Se, num primeiro momento, os conflitos enunciam os embates entre grupos de moradores que
se constituem enquanto sujeitos de suas ações e o projeto do Estado para essas áreas, num segundo
momento, apesar de serem localizados, observa-se que estes conflitos também apontam para questões de
ordem mais amplas relacionadas às estratégias de reconfiguração, de médio e longo prazo, das condições
de ocupação da região Sul da cidade de São Paulo. Desta forma questiona-se o que está subjacente e o que
significam esses conflitos em termos mais amplos, para além desta região específica.
Esta Tese pretende caracterizar os conflitos presentes nas áreas de mananciais do município de
São Paulo decorrentes do modo como os sujeitos sociais se apropriam do território e seus recursos, em
particular, frente às diversas formas como o Estado vem intervindo nessas áreas. Pretende-se assim
identificar os sujeitos e as situações que configuram os diagramas de forças nos quais se inscrevem as
ações e programas voltados para ordenar a ocupação de áreas de mananciais e o papel que desempenham
estes programas na distribuição/redistribuição de poder no interior deste diagrama.
9
Entende-se nesta Tese o termo “produto habitação” quando a habitação é tratada de forma isolada, meramente como produto,
numa espécie de produção em série, sem maiores preocupações com a qualidade urbano-ambiental, a topografia do local ou os
demais serviços e equipamentos urbanos que envolvem o habitar na cidade.
27
Para tanto, analisar-se-á, a partir do histórico de políticas para mananciais no período 2005-2009,
como vem sendo feito o manejo político e urbanístico de tais áreas com base em estudos de caso na Zona
Sul de São Paulo que são objeto do Programa Mananciais e do Programa Defesa das Águas, e também,
como a população tem reagido a tal situação.
O primeiro capítulo procura discutir as vertentes teóricas que constroem o plano de análise e
dividem-se em três seções complementares:
(i) a primeira seção procura analisar o contexto atual no qual se insere o direito à moradia,
compreendendo como a gramática mobilizadora dos direitos veio sendo, desde a Constituição de 1988,
esvaziada em seu conteúdo e em sua força reivindicatória. Se nos anos 1980, marcados pelas promessas
democráticas, os conflitos por moradia apresentavam-se como força transgressora na luta pela conquista
dos direitos, nos início dos anos 2000, não parece mais possível pensar em cidadania ou moradia digna,
por conta das radicais transformações relacionadas ao neoliberalismo, ao acirramento da desigualdade, da
ilegalidade, da violência urbana e da degradação ambiental. Nesse processo, certos conflitos sociais se
“ambientalizam”, por vezes pondo em xeque o direito social à moradia digna para residentes em áreas de
intervenção do poder público.
(ii) a segunda seção procura enunciar distintas racionalidades no tratamento de conflitos pelo
direito à moradia em áreas ambientalmente protegidas que obedecem a lógicas que vão desde pré-noções
do senso comum, como as referidas à noção de escassez até as noções que procuram harmonizar os
direitos à moradia e ao meio ambiente, a fim de manter a população residente, muitas vezes após muitos
anos, nos territórios juridicamente delimitados como área de mananciais.
(iii) na terceira seção, verifica-se como os grupos sociais são diferentemente expostos a riscos
ambientais, sendo que no caso de mananciais, configura-se uma situação ímpar em que os riscos de
escassez afetam também, indiretamente, os grupos sociais de classe média e alta. Nesse contexto as ações
em mananciais visariam responder às pressões dos grupos de maior renda, intervindo nas condições que
os parecem ameaçá-los.
O capítulo 4 trata dos estudos de caso propriamente ditos, discutindo três formas de atuação do
Estado, regularização, remoção e fiscalização por meio de conflitos sociais no bairro do Grajaú, uma das
regiões com forte crescimento populacional e condições de pobreza bastante altas. As três áreas estão
passando por intervenções do Programa Mananciais, as quais geraram conflitos entre moradores e o
Estado no âmbito local, mas estão associadas à estratégia regional de reordenamento do território. Para
tratar do processo de regularização fundiária foi estudado o complexo Cantinho do Céu, que recebeu
recursos do PAC - Mananciais. As ações de remoção foram estudadas no Parque Cocaia 1/Jardim Toca e o
terceiro caso, que trata da fiscalização, foi trabalhado no Jardim Gaivotas. Esses casos foram escolhidos
pela diversidade de atores envolvidos, enunciando o processo maior, qual seja: dificuldade de controle do
uso/ocupação do solo por parte do Estado em mananciais pelas políticas aplicadas e pela desconexão de
sua atuação, bem como estratégias de transformação do território associadas à reconfiguração do espaço.
Se num primeiro momento o Estado foi tolerante com as ocupações (1980), agora se acirram os processos
de controle (2000), no entanto, com contradições (implantação do rodoanel), o que reflete os diferentes
interesses envolvidos. Para tanto, pretende-se enunciar os elementos-chave e destacar o diagrama de
forças observado em cada caso. Também há o objetivo de articular os casos estudados e perceber como o
Estado tem atuado no controle do uso/ocupação do solo em mananciais ao longo do tempo. Os três casos,
pertencentes ao bairro do Grajaú, nas proximidades da bacia da Represa Billings, passam por ações dos
programas Mananciais e Defesa das Águas, evidenciando diferentes políticas, que geraram conflitos,
basicamente, entre moradores e o Estado.
Nas considerações finais, pretendeu-se, a partir dos casos estudados e dos interesses envolvidos,
discutir as dinâmicas urbanas e políticas que contribuem para o entendimento do modo como o Estado vem
equacionando o “conflito moradia e meio ambiente” através das políticas urbanas contemporâneas.
29
A análise apresentada neste capítulo divide-se em três blocos que procuram: (i) como contexto,
enfatizar as mudanças no caráter dos direitos dos anos 1980 relativamente à segunda década dos anos
2000, afirmando que veio ocorrendo, no período, um estreitamento da legitimidade da linguagem dos
direitos; (ii) discutir as distintas racionalidades atualmente presentes nos conflitos pelo direito à moradia em
áreas ambientalmente protegidas; (iii) apontar a desigualdade ambiental manifesta nas condições de
ocupação das áreas de mananciais e caracterizar o modo como é feito o manejo político e urbanístico
dessas áreas marcadas pelas condições gerais de distribuição dos danos ambientais.
Tendo por base a reflexão de Telles (1999, 2006 e 2007) a respeito de tais transformações,
procuraremos estabelecer conexões entre as novas configurações das tramas socioespaciais verificadas
nas cidades brasileiras e os conflitos urbanos que são objeto da presente Tese.
A partir dos anos 1990, foram sendo urdidas mudanças no terreno das políticas, na constituição
dos direitos e na relação entre Estado e sociedade no Brasil. Os anos 1980 haviam sido marcados pelas
promessas democráticas, pelo fortalecimento dos movimentos sociais urbanos, pela busca da
universalização dos direitos. Os conflitos apresentavam-se então como força transgressora na luta pela
conquista dos direitos:
“(...) constituição de arenas públicas por onde se elaborou e se difundiu uma „consciência do
direito de ter direitos‟, no terreno conflituoso da vida social. (...) a cidadania é buscada como
luta e conquista, e a reivindicação de direitos interpela a sociedade enquanto exigência de
uma negociação possível, aberta ao reconhecimento dos interesses e das razões que dão
plausibilidade às aspirações por um trabalho mais digno, por uma vida mais decente, por
padrões de civilidade nas relações sociais” (TELLES, 1999, p. 20).
obrigatório e o facultativo. Para além das garantias formais, os direitos estruturam uma
linguagem pública que baliza os critérios pelos quais os dramas da existência são
problematizados e julgados nas suas exigências de equidade e justiça” (TELLES, 1999, p.
138- 139).
No bojo mesmo do debate pré-constituinte que se desenrolou nos anos 1980, Falcão (1984)
ressaltava o modo como, na conjuntura da redemocratização, procurava-se questionar até que ponto, nos
embates pelo direito à cidade, a justiça legal aproximava-se da justiça social, esforçando-se por destacar,
então, a existência de um “outro direito”, não oficial, que se estabelecia informalmente a partir da
legitimidade que determinadas questões, como a do direito à moradia, ganhavam na sociedade.
No entanto, conforme observa Telles a respeito das tramas socioespaciais da cidade tal como
configuradas no início do século XXI, a linguagem dos direitos nunca chegou a formar-se plenamente no
Brasil, assim como tampouco o Estado de Bem-Estar Social. A emergência daquele “outro direito” apontado
por Falcão em 1984 foi truncada, interrompida, tornada inconclusa. Uma avaliação da situação alguns anos
após o fim da ditadura, apontava já para a continuidade da confusão a vigorar entre direitos e privilégios,
legitimidade e corporativismo:
“(...) a demanda por direitos se faz muitas vezes numa combinação aberta ou encoberta com
práticas renovadas de clientelismo e favoritismo que repõem diferenças onde deveriam
prevalecer critérios públicos igualitários. (...) o eventual atendimento a reivindicações está
longe de consolidar os direitos como referência normativa nas relações sociais, de tal forma
que conquistas alcançadas podem ser desfeitas ou anuladas sem que isso suscite o protesto
e indignação de uma opinião pública crítica; em que as práticas de organização,
representação e negociação se generalizam com dificuldade para além dos grupos mais
organizados por conta de uma gramática social muito excludente (...)” (TELLES, 1999, p.
141-142).
Com o frágil papel alcançado pela linguagem dos diretos como balizadora de reivindicações
sociais, verifica-se a entrada em cena, a partir dos anos 1990, das noções de “gestão do social e
administração das urgências”, com programas ditos de inserção social que, no entanto, não garantem os
direitos fundamentais. Advém um estreitamento da legitimidade dos direitos ante as mudanças verificadas
no mundo do trabalho e a onda neoliberal. As relações sociais vêem-se então atravessadas por uma
indistinção entre o legal e o ilegal, o lícito e o ilícito.
“(...) Eu diria que é um debate em grande parte pautado pelas “urgências do momento” – ou
melhor: pelas supostas exigências de “administração das urgências” de uma crise social que
explode no cenário das nossas cidades. E isso é também sinal dos tempos e da diferença dos
tempos, e por isso mesmo merece uma reflexão. Se antes o que então era nomeado como
“questão urbana” era definido sob a perspectiva (e promessa) do progresso, da mudança
social e do desenvolvimento (anos 60/70) e, depois, da construção democrática e da
universalização dos direitos (anos 80), agora os horizontes estão encolhidos, o debate é em
grande parte conjugado no presente imediato das urgências do momento, os problemas
urbanos tendem a deslizar e a se confundir com a gestão urbana e a pesquisa social parece
em grande medida pautada pelos imperativos de um pragmatismo gestionário de programas
sociais dirigidos aos pontos e micropontos de “vulnerabilidade social” assinalados por grades
diversas de indicadores sociais. É essa diferença dos tempos que lança a interrogação quanto
ao plano de referência a partir do qual descrever e colocar em perspectiva e sob perspectiva
crítica a nossa complicação atual” (TELLES, 2006, p. 3).
31
O deslocamento básico observado por Telles (2007) implica em que na atualidade não pareça mais
possível pensar-se propriamente em espaço público, cidadania e direitos, por conta das radicais
transformações verificadas no mundo contemporâneo.
A autora destaca assim que, entre a cidade global e os excluídos, isto é, no “meio”, existem “os
fios que tecem a tapeçaria do mundo social, as tramas da cidade, e nas quais estão em jogo os sentidos da
vida e das formas de vida” (TELLES,2007, p. 198). Para Telles (2006), estas tramas urbanas podem ser
entendidas como parte daquilo que o filósofo Giorgio Agamben chamou de “Estado de exceção”, “categoria
analítica que acusa o esfacelamento da política agora transformada na administração das urgências - um
permanente estado de urgência que derroga as regras dos direitos, desativa o espaço da política” (TELLES,
2006, p. 5). O urbano do início do século XXI estaria assim marcado por “uma situação em que a política foi
implodida para todos os lados, deslizando para a gestão cotidiana combinada com uma coerção renovada”
(TELLES, 2007, p. 199).
Nesta tese, não se pretende traçar uma visão romantizada sobre as ocupações irregulares em áreas
de mananciais, até porque este mundo não é virtuoso em si, mas sim discutir a catástrofe que se instaura
nas relações sociais. A intenção é revelar os fios condutores das trajetórias de moradia que transbordam
das formas conhecidas de moradia e se entrelaçam com as urgências do sobreviver em “zonas de
indiferenciação entre o lícito e o ilícito, entre a norma e a exceção, entre o direito e a força” (TELLES, 2007,
p. 218).
Os conflitos por moradia em Recife analisados por Falcão (1984), no contexto do debate pré-
constituinte de 1998, procuravam questionar até que ponto a justiça legal aproximava-se da justiça social,
destacando o desafio de se promover a igualdade e estabelecer novas relações no âmbito de um pluralismo
jurídico. O autor destacava então, a existência de um “outro direito”, não oficial, que se estabelece
32
“(...) Por um lado, da exclusão, que a ordem legal faz não só da concepção de direito de
propriedade prevalecente nas populações invasoras como da participação das massas
populares na formulação e aplicação da justiça. Por outro, é a expressão da incapacidade da
concepção da ordem legal de impor como expressão de justiça social que prevalece em toda
a sociedade brasileira. Neste sentido a permanência desta ordem legal é apenas a evidência
de uma pretensão de dominação. É a evidência do poder que perdeu autoridade e que
aceleradamente perde eficiência” (FALCÃO, 1984, p. 101).
A ordem jurídica informal consegue, assim, ser reconhecida e emerge a pretensão de “numa
segunda etapa, fazer-se com que a posse mantida e reconhecida seja „legalizada‟ pelo direito estatal”
(FALCÃO, 1984, p. 98).
Os casos relatados pelo autor evidenciam, por um lado, um momento de crise de legitimidade do
sistema jurídico dominante e, por outro, o retorno das promessas democráticas, das conquistas dos direitos
sociais e de movimentos organizados emergentes que reivindicavam seus direitos por meio de lutas
coletivas. Assim, a natureza coletiva dos conflitos se impõe, consideradas as ocupações como fenômenos
coletivos que pretendem dotar de legitimidade suas reivindicações.
Naquela conjuntura, portanto, as reivindicações eram pautadas pela lógica dos direitos, culminando
com a edição da Constituição Federal de 1988, que instituía os direitos fundamentais e sociais,
considerando-se que a transgressão do quadro legal precedente operara como meio de abertura para novos
campos de possibilidade (TELLES, 1999).
A partir dos anos 1970, observa-se o crescimento dos loteamentos clandestinos e na ocupação da
região Sul de São Paulo, conforme será descrito no capítulo 2 da presente Tese, que apresenta um histórico
da formação dessas áreas.
Verifica-se então que a lógica de ocupação dos mananciais segue a processo de periferização
amplamente estudado. Nos anos 70 são incipientes as políticas setoriais voltadas para o meio ambiente e
este é amplamente apropriado no processo de ocupação clandestina do solo, incentivado,
contraditoriamente, pelo autoritarismo da lei de proteção dos mananciais, como se verá adiante. Segundo
examina Ancona:
“Nos bairros populares, surgiram os novos „movimentos sociais urbanos‟ mobilizados nas
lutas por creches, postos de saúde, transportes e serviços de saneamento. Conforme Sader
(1995, p. 142), esses movimentos não se organizaram espontaneamente, mas através da
ação de mediadores, destacando-se os ativistas marxistas, o próprio sindicalismo e a Igreja
Católica, através das Comunidades Eclesiais de Base, CEBs. Nas lutas reivindicatórias por
melhores condições de vida, as lideranças populares tomavam consciência de que as
desigualdades na localização dos investimentos públicos no espaço urbano não eram
circunstanciais, mas constitutivas de um modelo de sobre-exploração do trabalho através do
espaço, designado como espoliação urbana por Kowarick (1979)” (ANCONA, 2002, p. 198).
A urbanização de São Paulo, com ocupação das periferias e da “industrialização com baixos
salários” (MARICATO, 1996) revela um processo excludente e precário em que a população de baixa renda
é obrigada a ocupar as áreas ditas de manancial, caracterizadas como ambientalmente frágeis. A leitura
ambientalizada das condições de moradia situada neste tipo de localidade integra o processo mais amplo de
urbanização do ambiental e de ambientalização do urbano10. A ideia segundo a qual verificamos, nos
últimos vinte anos, um processo de ambientalização da questão urbana sugere ter ocorrido uma extensão
da temática do “meio ambiente”, originariamente referente ao modo pelo qual os territórios e seus recursos
foram sendo incorporados às dinâmicas industriais e agrícolas, para o âmbito das cidades, no que concerne
ao conjunto das interações ecossistêmicas mediadas pelas práticas espaciais especificamente urbanas.
Foram sendo ambientalizadas, nesse processo, as questões relativas ao saneamento, à mobilidade urbana,
à arborização, à disposição de resíduos, ao acesso e qualidade da água, aos efeitos de vizinhança de
infraestruturas portadoras de risco, entre outros. O processo de urbanização da questão ambiental é
liderado por agências multilaterais que vislumbram por este meio estender o campo de ação de seus
empréstimos, enquanto o processo de ambientalização do urbano exprime, em grande parte, a resposta
oferecida, àquele primeiro movimento, por parte das instituições tradicionalmente envolvidas com a gestão
das cidades.
A este propósito, Maricato (1996) analisa as relações entre as condições de moradia da população
pobre e a “degradação ambiental das cidades”, chamando a atenção para a forma arbitrária com a qual se
define a tolerância/intolerância do Estado em relação à ocupação ilegal de áreas definidas legalmente como
de “proteção ambiental”:
10
A ambientalização da questão urbana abrange igualmente o processo de produção das fronteiras internas das cidades, dados os
padrões de crescimento urbano espraiados para áreas protegidas e com fragilidades geofisiográficas do ponto de vista dos
impactos das formas de ocupação correntes. Esta dimensão da urbanização implica, por certo, em que moradores sejam
constantemente ameaçados por enchentes, desmoronamentos e condições precárias de habitação, drenagem e saneamento.
34
“Nem sempre, entretanto, a tolerância prevalece, o que evidencia que a lei pode ser aplicada
como pode não ser. Ambigüidade e arbítrio como convém a uma sociedade patrimonialista e
clientelista, ou como convém ao mercado imobiliário formal, para o qual a escassez aumenta
as oportunidades e ganhos. (...) O poder de polícia sobre o uso das terras públicas urbanas é
exercido de forma discriminatória nos diversos bairros da cidade. Áreas de proteção
ambiental, desvalorizadas para o mercado imobiliário, não raramente são priorizadas pela
ocupação da população pobre, (...) sob os olhares da condescendente fiscalização. (...) Se,
de um lado, o crescimento urbano foi intenso e o Estado teve dificuldades de responder às
dimensões da demanda, por outro, a tolerância para com essa ocupação anárquica do solo
está coerente com a lógica do mercado fundiário capitalista, restrito, especulativo,
discriminatório e com o investimento público concentrado” (MARICATO, 1996, p. 63 - 66).
Ou seja, a transgressão, apontada por Falcão (1984) como mecanismo por meio do qual afirmava-
se, na conjuntura da redemocratização dos anos 1980, o direito à moradia e, neste caso, às ocupações, é
agora confrontada a uma nova geração de normas legais, de natureza “ambiental”, pela qual o direito à
moradia deve subordinar-se às restrições atinentes ao abastecimento apropriado de água às cidades, o que
implica a não-ocupação das áreas ditas “de mananciais”.
A partir dos anos 1990, multiplicam-se os debates em torno da questão ambiental, assumindo as
mais diferentes configurações. Segundo Fuks (2001, p. 18), “a definição do meio ambiente como problema
social tornou-se, hoje, objeto de intensa disputa”. Segundo o autor, a preocupação com o tema ambiental
tem avançado em práticas, discursos e pesquisas, manifestando-se das mais variadas formas: na produção
de conhecimentos; retirada das ciências ligadas ao meio ambiente dos laboratórios; surgimento de vários
órgãos nos níveis da administração pública (municipal, estadual e federal); nas lutas de setores da
sociedade (grupos ambientalistas, associação de moradores); surgimento do partido verde; presença da
educação ambiental nas escolas; no surgimento do chamado “mercado verde” e “desenvolvimento
sustentável” por setores empresariais, bem como de instrumentos jurídicos que visam à regulação da vida
social em sua relação com o meio ambiente (FUKS, 2001).
Esse processo de incorporação da dimensão ambiental nas práticas institucionais, que chamamos
de ambientalização, faz com que os conflitos sociais passem por transformações simultâneas na forma de
entendimento do Estado e no comportamento social, adquirindo uma nova fonte de legitimidade e de
argumentação. Lopes explica o que entende por ambientalização:
“O termo „ambientalização‟ é um neologismo denotando um processo histórico de construção
de novos fenômenos, um processo de interiorização pelas pessoas, por diferentes grupos
sociais e por discursos institucionais das diferentes facetas da questão pública do meio
ambiente. Assim, o termo „ambientalização‟ designa novos fenômenos, novas percepções de
fenômenos, ou ainda, processos históricos passados percebidos de forma nova como
importantes. (...) a ambientalização dos conflitos sociais está relacionada à construção de
uma nova questão social, uma nova questão pública” (LOPES, 2004, p.217).
35
Nos anos 1990, frente ao dito colapso do abastecimento, as ocupações em área de risco, a
degradação das chamadas áreas produtoras de água na RMSP, as intervenções em mananciais tem
assumido o caráter emergencial de um estado de crise, abrindo prerrogativas para atuação desenfreada,
que se baseia não no estado de democrático de direitos, mas no estado de exceção. Nesse sentido os
conflitos sociais se ambientalizam a partir de práticas que colocam em xeque o direito social da moradia
digna para os residentes nas áreas de intervenção.
Ao mesmo tempo, o acirramento dos processos de segregação tem várias consequências para a
sociabilidade dos moradores, sendo que “a concentração territorial das camadas empobrecidas participa
ativamente do processo da sua destituição como atores sociais e políticos” (WACQUANT, 2001, p. 14).
Esse fenômeno concorre para o estreitamento da linguagem dos direitos conforme detalhado abaixo.
A mudança no plano de referência proposto por Telles ocorre porque, segundo a autora, atualmente
há um “estreitamento do horizonte da legitimidade dos direitos” (TELLES, 1999).
Este estreitamento é parte de um contexto mais amplo dos efeitos da política neoliberal nas
diversas dimensões do mundo social, principalmente aquelas relacionadas com o trabalho e as políticas
sociais. As mudanças no trabalho formal provocaram sérias mudanças na ordem dos direitos, que em sua
maioria dependiam dessa relação, baseada no emprego/salário. Sem esse vínculo, a cidadania não é mais
garantida. Por outro lado, a promoção do setor informal, como fonte de riquezas e inserção na economia
(mesmo que precarizada), condena as famílias a reduzir suas expectativas ao nível da sobrevivência.
Segundo Sposati (2005, p. 3) não ocorreu um “desmanche das políticas sociais”, mas uma
“descontinuidade das iniciativas sociais”, visto que essas políticas não se completaram como tal no
contexto latino-americano.
Este estreitamento pode ser identificado nas diferentes representações do meio ambiente e mais
especificamente no sentido atribuído à “região dos mananciais” nos tempos atuais. Mesmo no interior das
11
No original: “(…) the concrete processes by wich green concerns and environmental considerations are brought to bear in
political and economic decisions, in education and scientific research institutions, in geopolitics, and so on. Environmentlization is
thus the concrete expression of the broad force of greening in institutional practices”.
36
instituições públicas estes significados não são monolíticos e são relacionados com o tipo de política e os
princípios embutidos nesses projetos.
Este estreitamento está presente no capitalismo contemporâneo, que mesmo não prescindindo da
ação do Estado, apresenta-se como um capitalismo desorganizado. Isto é, aquele que não retira o Estado
dos processos de ordenamento, mas faz com que a ordem vigente passe a depender cada vez mais de
critérios de justiça próprios aos empreendedores capitalistas que justificam seus projetos pela capacidade
que dizem ter de gerar emprego, renda e receita pública. Em mananciais, poderíamos dizer que esses
critérios estariam associados ao entendimento da região em sua base estritamente econômica, seja pelos
recursos hídricos ou pelas necessidades de reordenamento do território associado a fins econômicos.
Estudos permitem entender que os interesses dominantes com relação à região dos mananciais são: (i)
garantir a acessibilidade regional pelo Rodoanel, cortando em seu trecho Sul áreas de mananciais
(LABHAB/ISA, 2005); (ii) garantir a qualidade da água para abastecimento público, visto que as ameaças de
crise de abastecimento atingiram as populações do setor sudoeste da cidade (MARICATO, 1997); (iii)
manter a população de ocupação irregular em mananciais em “seu lugar” para reativar o turismo nos clubes
em volta da represa Guarapiranga12.
A partir dos anos 1990, a concepção amplamente difundida pelas agências multilaterais e órgãos
financiadores das políticas urbanas é a da focalização das políticas sociais sinalizando sérias restrições ou
certo retardo aos direitos sociais no aparelho do Estado que diz não conseguir atender a todos. Essas
agências, ao falar sobre pobreza, por exemplo, fazem alusão à necessidade de seu combate como se esta
fosse condição natural de existência de determinados grupo, não considerando a pobreza como diretamente
relacionada à produção de riqueza, ao processo de desenvolvimento e apropriação capitalista. Desta forma,
os pobres são os sem direitos. Sposati explica como é concebido esse tipo de política:
“Esta concepção restritiva do alcance do Estado de direito acirra as velhas concepções da
pobreza como “mal individual” das classes perigosas que precisam ser vigiadas através de
fortes processos de seletividade nos acessos sociais, já que fraudam o erário público com
seu „desejo de vagabundagem‟. Embora essa descrição tenha sido carregada nas tintas, este
raciocínio é manifestado de múltiplas formas até no indefectível, „não dê o peixe, ensine a
pescar‟, que parte do suposto de que o outro, o pobre, assim o é por ser um ignorante”
(SPOSATI, 2005, p. 3).
Esse discurso destitui os sujeitos de direitos tanto à moradia quanto aos serviços públicos,
equipamentos e, enfim, à própria cidadania. As políticas públicas são consideradas como uma concessão
ou favor de algum político. E são utilizados por esses, como forma de angariar votos. Também exerce uma
violência simbólica13 (BOURDIEU, 1997), colocando, no caso em estudo, a opinião pública contra os
moradores das áreas.
12
Indícios da presente pesquisa que serão mais bem detalhados nos estudos empíricos. Entrevista ao Secretário de Planejamento
da Subprefeitura concedida à autora.
13
Segundo Bourdieu a violência simbólica é parte do jogo de poder: “(...) o espaço social inscrito nas estruturas espaciais e nas
estruturas mentais (...) é um dos lugares onde o poder se afirma e se exerce, e, sem dúvida, sob a forma mais sutil, a da violência
simbólica como a violência despercebida (...)” (BOURDIEU, 1997, p.163).
37
No entanto, se observarmos os direitos a partir da “ótica dos sujeitos que os pronunciam” pela sua
dimensão transgressora, isto é, pelos conflitos, far-se-á com que as “disputas e antagonismos ganhem
visibilidade e inteligibilidade na cena pública” (TELLES, 1999, p. 181).
“O que desestabiliza consensos estabelecidos e instaura o litígio é quando esses personagens
comparecem na cena política como sujeitos portadores de uma palavra que exige o seu
reconhecimento – sujeitos falantes, como define Rancière, que se pronunciam sobre
questões que lhes dizem respeito, que exigem a partilha na deliberação de políticas que
afetam suas vidas e que trazem para a cena política o que antes estava silenciado, ou então
fixando na ordem do não pertinente para a deliberação política” (TELLES, 1999, p. 180).
No terreno dos conflitos, as forças reivindicatórias têm se apresentado de forma muito desigual,
sendo o poder público o agente diferencial, de poder privilegiado, seja pelo acesso às informações,
programas ou aos recursos disponíveis. Não são raras as reivindicações de lideranças de bairro que se
sentem “reféns” da estrutura de acesso às políticas públicas.
A gramática mobilizadora dos direitos e da cidadania é esvaziada em seu conteúdo e em sua força
reivindicatória. Os direitos, quando respeitados, apresentam-se mais como um jogo de retórica que uma
medida a orientar o equacionamento da questão14. Isso porque o reconhecimento da legitimidade da posse,
direito à cidade, o direito de participação nas políticas públicas está longe de ser generalizada nas práticas
estatais. Apesar de existir instituições15 e instrumentos urbanísticos (como o concessão real de direito de
uso e usucapião coletivo ou individual), que reconheçam o direito à moradia dos ocupantes, existe uma
distância muito grande entre o que prega a lei e prática social. As ações violentas de remoção em São Paulo
evidenciam a dificuldade da afirmação da legitimidade do direito à moradia, isto é, da segurança jurídica da
posse frente aos demais entraves.
Atualmente está fora de pauta a inclusão de todos os que foram privados de direitos, porque,
segundo o mercado capitalista, o direito à cidade é para quem pode pagar pelos benefícios do processo de
urbanização16. Quando muito, a informalidade é absorvida, no entanto, em forma de total precarização.
Além disso, acirra-se a pobreza e sua concentração em setores da cidade, chegando a configurar-
se, guardando as devidas características do contexto latino-americano, o que Wacquant denominou de
“marginalidade avançada”, isto é:
14
Dentro de uma concepção que a situação é irreversível, a regularização fundiária estaria consolidando algo já existente, com
melhorias na infra-estrutura, uma espécie de “regularização à brasileira”, como citado pelo Promotor Público José Carlos de Freitas.
(Entrevista concedida a autora em 29/10/2009).
15
Segundo o relator especial das Nações Unidas (ONU) para o direito à moradia, o arquiteto indiano Milloon Kothari que esteve em
missão oficial ao Brasil em junho/2004, afirmou que invadir terras improdutivas e prédios abandonados é um direito legítimo: “Se as
pessoas não têm escolha, se foram privadas de seu meio de subsistência, se não têm outro lugar para onde ir, nesse caso entendo,
sim, que a ocupação é um ato legítimo” (Miloon Kothari, Relator Especial da ONU). Em entrevista à coletiva de imprensa, dia 31 de
maio de 2004, em São Paulo, na ocupação Prestes Maia. (SAULE Jr & CARDOSO, 2005, p. 35).
16
Segundo pesquisas de Maricato, “(...) até o trabalhador da indústria fordista (automobilística), é levado frequentemente a morar
em favelas, já que nem os salários pagos pela indústria e nem as políticas públicas de habitação são suficientes para atender as
necessidades de moradias regulares, legais”(MARICATO, 1977, apud MARICATO, 1996, p. 43).
38
Discutir os direitos sociais a partir das questões que se abrem na contemporaneidade torna-se uma
tarefa bastante complexa, já que os direitos que estavam vinculados ao emprego formal foram esvaziados
de sua potencialidade reivindicativa. Neste contexto as políticas não são mais reguladas por um Estado de
direitos, mas por um estado de exceção permanente em que os direitos são negociados caso a caso, em
que a gestão do social e de programas, ditos de inserção social, são aplicados de forma focalizada.
Entende-se que este esvaziamento da potencialidade dos direitos está incrustado nas distintas
matrizes discursivas18 predominantes no entendimento do direito à moradia e ao meio ambiente. Acredita-se
que as intervenções em mananciais são guiadas pelo embate entre as diversas concepções enunciadas por
seus atores sociais.
Para tanto, são enunciados abaixo as distintas matrizes discursivas, presentes nos conflitos por
moradia em áreas juridicamente protegidas, e que, muitas vezes, tem colaborado na cisão da linguagem
dos direitos.
O esforço dessa seção está em enunciar as diferentes visões que posteriormente, no decorrer dos
demais capítulos, serão aprofundadas com os argumentos dos sujeitos a partir das pesquisas empíricas.
Desta forma, o objetivo está em sistematizá-las a partir da literatura existente a fim de aprofundar seu
entendimento.
17
Para Wacquant (2001, p. 166-168) as características distintivas da marginalidade avançada são: (i) O trabalho assalariado como
parte do problema: a precarização do trabalho se torna elemento de desintegração social e de insegurança. O trabalho vai se
estabelecer como processo dessocializador. (ii) Desconexão funcional proveniente de tendências macroeconômicas: a
marginalidade avançada parece estar cada vez mais desligada das flutuações e curto prazo da economia, de modo que as fases de
expansão de emprego e consumo têm pouco efeito duradouro sobre ela. (iii) Fixação e estigmatização territorial: a marginalidade
avançada tende a concentrar-se em territórios bem-identificados, bem-demarcados e cada vez mais isolados, vistos por pessoas de
dentro e de fora como purgatórios sociais, infernos urbanos onde apenas o refugo da sociedade aceita habitar. (iv) Alienação
territorial ou estigma do lugar: transformação em “espaços” indiferentes de mera sobrevivência e luta. (v) A perda do interior: as
relações de solidariedade coletiva desaparecem, dando lugar a uma dinâmica de desertificação social em que os indivíduos passam
a não contar mais com um mecanismo de ajuda mútua. (vi) Fragmentação simbólica e social: existe um processo intenso de
decomposição de classe. A ausência de uma linguagem comum que os unifiquem simbolicamente acentua a dispersão e a
fragmentação social dos novos pobres urbanos.
18
Entende-se por matrizes discursivas, conforme Sader: “As matrizes discursivas devem ser entendidas como modos de
abordagem da realidade, que implicam diversas atribuições do significado. Implicam também em determinadas categorias de
nomeação e de interpretação como na referência a determinados valores subjetivos” (SADER, 1988 apud RODRIGUES, 1998).
39
Ao contrário das abordagens objetivistas, que enfatizam a degradação do território e das águas em
mananciais e a importância das legislações na regulação desse espaço sem problematizar estas
construções, procurar-se-á ampliar o debate também para o enfoque subjetivo da questão, entendendo que
a “região dos mananciais” é fruto de um processo de construção social, no qual as representações não
apenas são culturalmente diferenciadas, mas que estas produzem o espaço numa constante “luta de
representações” (BOURDIEU, 2006).
Em se tratando dos mananciais de São Paulo, observar-se-á que no âmbito da esfera estatal havia,
até os anos 1990, grande disputa em torno do uso prioritário que deveria ser dado à Represa Billings.
Tendo como premissa que “existe certa correspondência entre a estrutura das relações sociais e as
estruturas mentais” (OLIVEIRA, 2001, p. 186) procurou-se fazer um mapeamento das diversas perspectivas
que compõem o imaginário social dos grupos em termos do debate da moradia em área de manancial, o
qual tem se apoiado na noção de “sustentabilidade” aplicada à base material da sociedade. Muitos desses
olhares correspondem à visão de um grupo, mas não são estanques em si. Abordaremos algumas dessas
visões que estão associadas a diferentes concepções e princípios de onde partem as ações e políticas dos
diferentes sujeitos sociais. Ao mesmo tempo, procurar-se-á destacar o modo como a noção de
sustentabilidade aparece nas diversas concepções.
Antes de avançar na reflexão teórica, é importante frisar que o senso comum tem construído pré-
noções sobre o debate da moradia em áreas ambientalmente protegidas, que se tornaram hegemônicas na
mídia e que, em alguns casos, orientam o discurso e ação dos próprios agentes estatais. Coelho enuncia
dois pressupostos gerais sobre esse tema:
“(...) que os seres humanos ao se concentrarem num determinado espaço físico, aceleram
inexoravelmente os processos de degradação ambiental. Segundo esta lógica, a degradação
ambiental cresce na proporção em que a concentração populacional aumenta. Desta forma,
cidades e problemas ambientais teriam em si uma relação de causa-efeito rígida. Outra ideia
generalizada pelo senso comum é a de que os seres humanos são, por natureza,
depredadores e aceleradores dos processos erosivos. As vítimas dos impactos ambientais
são, assim, responsabilizadas e transformadas em culpados” (COELHO, 2005, p.20).
Assim, fundada na ideia da objetividade de uma escassez quantitativa absoluta dos recursos
hídricos, intervenções em mananciais são justificadas em nome de um suposto consenso em relação à
necessidade de garantir oferta de água, que pretensamente orienta as políticas ambientais e territoriais.
41
Coelho (2005) também elabora um exame crítico das noções do senso comum, apontando para a
distribuição desigual dos impactos ambientais:
“A incorporação da estrutura de classes à análise possibilitará perceber quem se apropria dos
benefícios das atividades econômicas cujos custos são divididos com toda a sociedade. Ou
ainda, os impactos ambientais decorrentes de tais atividades são mais percebidos pelos
setores menos favorecidos da população, que, confinados a áreas mais suscetíveis às
transformações próprias dos processos ecológicos, porém aceleradas pelas ações humanas,
não podem enfrentar os custos da moradia em áreas ambientalmente mais seguras ou
beneficiadas por obras mitigadoras de impactos ambientais” (COELHO, 2005, p. 21).
A contribuição crítica dos três autores acima citados ajuda a pensar que essas pré-noções, usadas
recorrentemente pelo senso comum e pelas políticas públicas, exploradas cotidianamente pela mídia e por
determinados atores políticos que encobrem as relações sociais subjacentes aos conflitos que envolvem a
moradia em área de manancial, favorecem a culpabilização daqueles que são vítimas do descompromisso
das instituições governamentais para com o direito à moradia.
No campo das políticas públicas, a concepção hegemônica entende que a forma de ocupação do
território das cidades é estabelecida por ordenamento urbano definido pelos órgãos públicos. Esses teriam
a função de manter essa ordem urbanística representada pelos “padrões e regras urbanas definidos em leis
e atos regulamentares que visam o uso e ocupação do solo de maneira planejada e ordenada, para garantia
de qualidade de vida sustentável nas cidades”19. Nesta concepção, a ordem urbana é definida em lei e
segue os parâmetros urbanísticos considerados ideais e adequados para a qualidade urbana das cidades. E
o seu oposto, a desordem, estaria fortemente associada ao processo de favelização e degradação do meio
ambiente, o que justificaria a retomada das remoções nas grandes metrópoles. Estas remoções seriam as
mesmas que, em momento anterior, eram extremamente rebatidas, por conta de estudos mostrarem seus
impactos desastrosos (COMPANS, 2007).
19
Definição de ordem urbanística segundo o Ministério Público de São Paulo:
http://www.mp.sp.gov.br/portal/page?_pageid=103,12817&_dad=portal&_schema=PORTAL acessado em 21/09/2007.
42
Tal concepção de ordem é encontrada em geral nos atores sociais que tomam as leis como base
de sua atuação, neste caso, diversos órgãos públicos. O mesmo ocorre no Ministério Público que tem o
papel de fiscalizar o Estado para garantir o cumprimento dessa ordem. Assim, qualquer situação que foge
ao estabelecido no ordenamento urbano é considerada uma anomalia ou uma transgressão que deve
combatido ou readequado.
Fuks (2001) demonstrou que a maior parte dos “argumentos veiculados aos conflitos ambientais
nas cidades estão centrados principalmente na noção de “ordem” e na crítica ao crescimento desordenado
da cidade20”:
“O núcleo da questão ambiental, nas grandes cidades, é o estado da desordem urbana em
que se encontram. O problema ambiental é indissociável das questões de ordem urbanística,
sendo o ambiente construído parte integrante do conceito de meio ambiente, e, portanto,
objeto de proteção ambiental” (FUKS, 2001, p. 143).
A literatura da sociologia urbana crítica mostrou como a chamada desordem urbana configura a
ordem espacial própria do capitalismo brasileiro de baixos salários, que nunca computou o custo da
moradia na remuneração regularmente paga (MARICATO, 1996). Isto evidencia que a ordem espacial é
fruto de um projeto e de prioridades políticas que vão além de um arcabouço legislativo promulgado pelo
Estado.
A cidade é formada a partir de diversos interesses conflitantes, sendo que o debate sobre a
desordem configura o embate entre distintas opções políticas e projetos para a cidade. Como
salienta Raquel Rolnik, ao se referir a São Paulo, a chamada desordem não é fruto aleatório
das vontades individuais ou do mercado, mas de um projeto de cidade carregada de opções
políticas:
“Cidade fragmentada, que aparenta não ser fruto da ordem, mas sim filha do caos, da
competição mais selvagem e desgovernada de projetos individuais de ascensão ou
sobrevivência, do sonho de gerações sucessivas de imigrantes que vieram em busca das
oportunidades distantes e da potência da grande cidade. Em São Paulo hoje, o futuro da
megacidade parece incerto: sobreviverá ao congestionamento e à poluição? Reaparecerão os
empregos industriais perdidos? Voltará a reinar a paz nas ruas? Para tentar responder a essas
questões, é preciso entender como se chegou a esse ponto, reconhecendo que a cidade hoje
é produto de milhões de ações individuais e coletivas das gerações que nela investiram seus
projetos. Longe de ser caótico, esse processo foi diretamente influenciado por opções de
política urbana, tomadas em períodos fundamentais de sua história. (...) o que parece ser
uma nau desgovernada corresponde na verdade aos sucessivos modelos de cidade e de
gestão urbana construídos para administrar um lugar que (...) transformando-se
[transformou] na principal cidade de um país marcado pela extrema concentração de renda”
(ROLNIK, 2001, 10).
20
Nota-se, aqui, uma adaptação do conflito ambiental clássico, opondo a conservação ambiental ao crescimento econômico. Nesta
adaptação ocorrem dois deslocamentos: 1) tipo ideal de réu não é mais a grande organização industrial, mas os vários atores que
contribuem para a expansão da cidade, muitos dos quais sequer estão no exercício da atividade econômica; 2) o assunto em pauta
torna-se mais amplo do que a conservação dos recursos naturais, englobando a conservação da cidade como um todo, associada
à qualidade de vida dos moradores (FUKS, 2001, p. 143).
43
É cabível supor, como Barbosa, que a desordem pode ser considerada uma capa ideológica, ou um
“clichê legitimador” de processos de estigmatização22 que interferem na forma como a sociedade e o
Estado agem perante tal situação. Para tanto, nesses territórios: “revelam-se os duelos entre a
transgressão e a dominação social, de modo mais radical, representados mais vigorosamente no apartheid
territorial das comunidades citadinas” (BARBOSA, 2006, p. 102). Assim, “reclamar uma nova ordem
urbana, capaz de restaurar o convívio civilizado, se tornou um dos mais vigorosos clichês legitimadores das
estratégias urbano-arquitetônicas da atualidade (op.cit., p. 90).
As ideias de marginalidade das classes pobres não se limitam a estereótipos do senso comum;
eles são reforçados e perpetuados pelas ações das próprias instituições públicas. Segundo Perlman (1977)
21
Buscando entender a construção desse discurso, pode-se dizer que a ideia de desordem urbana vem do início do século XX, no
qual a cidade é vista como o lugar de todas as mazelas, pobreza, imundície, escuridão, crime e doenças. As ideias de higienismo
florescem com a necessidade de uma ordem racional aplicada pelo sanitarismo. O padrão “civilizado” na construção do homem
forte, expresso nas práticas desejáveis de asseio pessoal, vestuário, higiene refletiram-se em vários âmbitos da vida social, como
as práticas educacionais, saúde e infra-estrutura urbana. O ordenamento do espaço urbano seguiu historicamente os ideais
pregados por este padrão higienista, sendo algumas destas questões resgatadas a partir dos conflitos atuais em torno da violência
urbana e da degradação ambiental.
22
Para este caso em estudo considera-se desta forma, podendo assumir outros sentidos.
44
os órgãos habitacionais perpetuam tal visão a partir da escola arquitetônica-ecológica que associa as
características físicas do assentamento com a condição de marginalidade.
A suposição de que a ameaça ambiental possa interromper o crescimento econômico ou, no caso
mais específico da Grande São Paulo, que a degradação do solo e a poluição das represas da região Sul de
São Paulo possa interromper o abastecimento público de água, foi um dos mecanismos que levou o
planejamento urbano a incorporar a dimensão ambiental.
Segundo Costa atualmente o enfoque ambiental em sua interface com o planejamento urbano vem
ganhado força transformando-se conceitualmente:
“(...) entende-se a trajetória da temática ambiental em sua articulação com o planejamento
urbano nas últimas três décadas como marcada pela crescente ampliação do escopo e
autonomização da área, transformando-se conceitualmente de política setorial em amplo
campo de lutas e intervenções”.
(...)
23
Seguindo a tríade proposta por Barbosa (2006): LEI- ORDEM – SEGURANÇA.
24
(apud Rodrigues, 1998, p. 88-108).
45
As noções de planejamento urbano sempre foram muito associadas à ideia da criação de uma
ordem, racional e funcional com vistas a preparar o território para o desenvolvimento econômico. Conforme
alerta Costa (2008, p. 86), apesar do acúmulo de experiências na área, “(...) observa-se ainda, fora da área
do planejamento urbano (e também dentro dela), uma crença no papel redentor do planejamento em si, e
não no resultado das políticas construídas a partir do embate de forças sociais a elas relacionadas”. Este
papel redentor está associado à força ideológica da legislação e do Direito a orientar as intervenções
estatais. No embate destacado por Costa (2008), é visível o desnível de forças entre os diferentes agentes
sociais, as ações atingindo de forma diferenciada os grupos sociais que moram na cidade.
O planejamento urbano tem incorporado a categoria meio ambiente como uma variável a mais a
integrar os planos urbano-ambientais que possuem como objetivo alcançar a “sustentabilidade para a
região dos mananciais”. Este tipo de planejamento parece unificar os discursos em torno do meio ambiente
como bem uno para “toda a cidade”, com novas crenças que despolitizam o debate. O meio ambiente como
uma temática unificadora e consensual aponta para uma mudança na direção do planejamento urbano que
evoca a noção unificadora de meio ambiente para tentar integrar simbolicamente cidades fortemente
divididas. Segundo Acselrad (2004a):
“O planejamento urbano ambientalizado procura ressignificar o espaço com gestos
confortadores de segurança e controle, dando visibilidade à natureza nas cidades e
exorcizando os medos da destruição ecológica e da instabilidade da ordem social (BRAND,
1999). (...) A ideia de meio ambiente tende, neste contexto, a absorver os sentidos da noção
de bem estar nas cidades. O ambiente evocado pelo discurso planificador busca reconstruir a
unidade das cidades, sua coesão social e sua governabilidade política frente às tendências à
privatização da vida e à fragmentação do tecido social. Em paralelo, portanto, à desmontagem
do setor público e às privatizações, a temática da sustentabilidade tem sido evocada, com
freqüência, de modo a fazer transitar expectativas de bem-estar dos âmbitos da habitação,
saúde e direitos sociais, fortemente marcados pelo acesso socialmente desigual, para uma
noção de meio ambiente construído como una e comum a todos” (ACSELRAD, 2004a, p.
28).
A construção desse sentido ambiental, mencionados por Brand (1999) e Acselrad (2004a), teria o
papel de unificar as contradições próprias do capitalismo e da apropriação desigual do território. Assim
revestido de uma capa ideológica, o meio ambiente assumiria o papel de contrapeso perante as
desigualdades e injustiças que marcam as cidades. Como sugere Peter Brand:
“(...) Ante as contradições do Estado neoliberal, a construção de sentido ambiental para as
cidades adquire o caráter geral de contrapeso. Enquanto as estratégias de competitividade
propugnam a competição, a eficiência, produtividade, lucro e interesses privados; as
estratégias ambientais propugnam o desinteresse, o desfrute, os valores humanos e o
25
interesse coletivo (BRAND, 2005, p. 527, tradução nossa) .
25
No original: “(...) las limitaciones del Estado neoliberal, la construcción de sentido ambiental adquiere el carácter general
decontrapeso. (...) Sobre todo, los discursos ambientales contruyen valores opuestos a aquellos que operan en la esfera de la
economía y la competitividad como vector principal del desarrollo: a la competencia, la eficiencia, la productividad, la ganancia y el
interés privado se contrapone, ambientalmente, la cooperación desinteresada, el ocio, el disfrute, los valores humanos y el interés
colectivo”.
46
O meio ambiente visto desta forma é funcional ao Estado, que busca a coesão social, instauração
de uma forma de controle urbano e a legitimação de suas práticas. E também funcional aos atores sociais
mais móveis – grandes corporações (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 1999 apud ACSELRAD, 2004a, p.28) que
têm seus interesses de acumulação garantidos pelas obras em infra-estrutura urbana consideradas
necessárias à atração de investimentos e à geração de empregos. E por último ao leque de grandes
construtoras que se beneficiam pelas licitações e obras públicas. Estes casos serão mais bem estudados
na parte empírica do presente trabalho.
26
Entrevista concedida à autora em 03 de novembro de 2009.
27
Sobre Plano discurso ver VILLAÇA, Flávio. Uma contribuição para história do Planejamento Urbano no Brasil. In DEÁK, C;
SCHIFFER, S (orgs). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo, Edusp, Fupam, 1999. No mesmo sentido Maricato
complementa : “Quando a preocupação social surge no texto, o plano não é mais cumprido. Ele se transforma no plano-discurso,
no plano que esconde ao invés de mostrar. Esconde a direção tomada pelas obras e pelos investimentos que obedecem a um plano
não explícito”. (MARICATO, 2002, p. 138).
47
Acselrad destaca o caráter simbólico de parte das ações associadas à noção de sustentabilidade
urbana:
“(...) seja pela representação retórica de um meio ambiente uno e consensual, seja pelo
sentido que se queira imprimir às operações materiais “de conexão” empreendidas em seu
nome – tais como corredores arbóreos, fluxos aquáticos e outros ícones materiais de
integração social, não impor-se-á, porém, como suficiente para dar estabilidade aos
mecanismos de reprodução urbana” (ACSELRAD, 2004a, p. 29).
O embuste consiste em tentar justificar que o planejamento urbano ambientalizado pode trazer
benefícios para todos os moradores da cidade de forma igualitária, desconsiderando a forma como
historicamente os benefícios das políticas públicas são apropriados pelo mercado imobiliário e as
consequências da injustiça ambiental que diariamente afeta os que têm menor poder de reação.
Dentro do planejamento ainda permanece por parte de setores ligados a uma concepção
desenvolvimentista a ideia de que o meio ambiente não pode atrapalhar o desenvolvimento da chamada
“atração dos negócios”. Desta forma decisões são tomadas de forma a garantir o progresso econômico,
considerando o meio ambiente como uma variável a mais, a integrar as matrizes de externalidades
negativas, contabilizada nas despesas do projeto, a ser mitigada por meio de obras e projetos que
contemplem os interesses empresariais a partir da aclamada noção de sustentabilidade.
Em outra visão, o ambiente vem sendo incorporado como forma de criar uma imagem positiva da
cidade fazendo parte das estratégias de gestões locais que associam o meio ambiente ao empresariamento
da cidade, numa estratégia de mercantilização do urbano. Nessa concepção, a ecologização da cidade
estaria associada à criação de imagem positiva como instrumento de legitimação política, competição
interurbana e como atributo de atração de investimentos e capitais. Associado às estratégias de gestores
locais que privilegiam a prática do empresariamento urbano28, o meio ambiente é incorporado como forma
de mercantilização da cidade. Segundo essa noção, a venda dos atributos do território (e do meio ambiente)
e a atratividade da cidade seriam capazes de viabilizar fluxo de investimentos e capitais e a consequente
oferta de empregos e desenvolvimento. Associados à imagem de progresso e local propício para os
negócios, atributos ambientais e “ecologicamente corretos” são inseridos nesse repertório para que as
cidades sejam cada vez mais desejadas pelos investimentos internacionais, tendo em vista suas qualidades.
Esta visão incorpora a ideia de que a região dos mananciais possui, entre outros, atributos ambientais
relacionados à qualidade da paisagem que podem ser explorados economicamente e de maneira
“sustentável” para o desenvolvimento da região, para geração de empregos e aumento da arrecadação
regional/municipal. Para estes, o ambiental é considerado como uma variável a mais a integrar “os velhos
28
Segundo Harvey (1996), o empresariamento urbano estaria associado a uma administração orientada à provisão de um “bom
clima de negócios”, oferecendo atrativos para uma produção altamente móvel e flexível e para os fluxos financeiros e de consumo.
48
modelos formais de equilíbrio” (ACSELRAD, 1997, p. 1910) nas cidades ou de políticas ditas de
desenvolvimento sustentável.
Segundo Costa (2008), nas cidades essa incompatibilidade se estabelece, por exemplo, nas
chamadas Áreas de Preservação Permanente - APPs, nas quais a ocupação é proibida pela legislação.
Assim, o território é amplamente regulado pelas legislações ambientais, pelas instituições reguladoras,
pelos conselhos que estruturam planos e projetos definindo e qualificando cada pedaço do território. Essas
nomeações alteram as relações sociais e reestruturam quem ganha e quem perde nesses processos.
Assim, a ênfase no saber técnico como conhecimento autorizado, ganha proeminência na definição racional
dos problemas ambientais.
Na presente Tese as categorias como áreas de risco, áreas de preservação permanente e área de
manancial fazem parte de uma linguagem técnica que desestabiliza/condiciona a permanência das
ocupações existentes segundo critérios muitas vezes não tão claros para o cidadão comum. Se, num
primeiro momento essas ocupações eram toleradas, agora, com a emergência do paradigma da escassez e
da crise ambiental essas ocupações encontram-se ameaçadas de permanecerem em suas áreas de origem.
29
As unidades de uso sustentável têm como objetivo “a exploração do ambiente de maneira a garantir a perenidade dos recursos
ambientais renováveis e dos processos ecológicos, mantendo a biodiversidade e os demais atributos ecológicos, de forma
socialmente justa e economicamente viável” (Lei n° 9.985, de 18 de julho de 2000, art° 2).
49
Para os órgãos ambientais, Secretaria do Verde e Meio Ambiente - SVMA e a Secretaria Estadual do
Meio Ambiente - SMA a região dos mananciais precisa ser redefinida segundo suas funções ambientais.
Nesta concepção a região é entendida como uma “área prestadora de serviços ambientais”30 e de
importância para toda a coletividade. Enfatizam a necessidade de preservar a área dos efeitos da
urbanização que, segundo eles, pode vir a prejudicar a qualidade das águas e os demais serviços que o
ecossistema fornece.
Devecchi & Caetano (2007), da SVMA, discutem o pagamento por serviços ambientais - PSA,
como instrumento de preservação das áreas de preservação permanente - APPs e como um modelo a ser
replicado nas áreas de mananciais. Segundo os autores, essa noção ganha força devido à ineficácia das
experiências existentes e pela necessidade de se dar continuidade aos serviços ambientais atualmente
prestados. Afirmam:
“(...) vislumbra-se a possibilidade de os proprietários de áreas verdes prestadoras de serviços
ambientais serem estimulados à continuidade da prestação desses serviços ambientais não
através de medidas coercitivas, mas pela remuneração desse serviço prestado à sociedade.
O Município de São Paulo dispõe de legislação (lei 10.365/87) destinada a incentivar os
proprietários de imóveis urbanos a manterem áreas verdes através de incentivos fiscais na
forma de descontos no IPTU. Existe ainda a portaria 6/SVMA/2007, que determina a
compensação das emissões de gases geradores de efeito estufa pelos eventos realizados nos
parques municipais de São Paulo” (DEVECCHI & CAETANO, 2007, p. 7).
Também a SVMA estuda a possibilidade de aplicar em São Paulo as noções de “cidade compacta”,
de ocupar os vazios urbanos e áreas infra-estruturadas na malha consolidada, evitando a expansão “ad
infinitum” da cidade dispersa, modelo hegemônico no processo de ocupação capitalista da cidade. No
entanto, sabe-se historicamente das dificuldades dos órgãos públicos em regular o uso e a ocupação do
solo, ainda mais se, como discute a SVMA, em se tratando de políticas públicas não há integração com
ações de uma política fundiária de caráter mais estrutural.
Ao mesmo tempo, os referidos autores propugnam a criação de parques naturais públicos que
funcionariam como barreiras ao crescimento urbano e um rigoroso processo de fiscalização a fim de
promover o chamado “congelamento das ocupações”. Para eles o problema em mananciais é um problema
de escala, isto é, haveria uma escala da ocupação compatível com mananciais devendo-se, portanto, limitar
o espalhamento da mancha urbana. Segundo Acselrad a matriz discursiva da escala associada ao debate
ambiental “propugna um limite quantitativo ao crescimento econômico e à pressão que ele exerce sobre os
“recursos ambientais” (ACSELRAD, 1997, p. 1924). Assim, a representação do território em mananciais é
30
“O termo serviços ambientais diz respeito aos benefícios indiretos gerados por recursos naturais ou pelas propriedades
ecossistêmicas das inter-relações entre esses recursos e natureza. (...) É possível elencar serviços ambientais diretamente
relacionados às áreas produtoras de água, bem como serviços que sofrem influência e que influenciam a qualidade destas áreas.
No primeiro conjunto estariam: regulação hídrica, purificação da água, suporte aos processos ecológicos e aquáticos e a água
como bem. No segundo estariam: regulação climática, recursos genéticos, controle de doenças, serviços culturais, controle de
enchentes, controle de erosão, manutenção da biodiversidade, sequestro de CO2, produção de alimentos, produção florestal, entre
outros” (WHATELY & HERCOWITZ, 2008c, p. 21).
50
baseada num modelo determinístico a partir do “reducionismo biológico” e de seus limites. O autor
questiona esse debate relacionando ao neomalthusianismo:
“(...) o neomalthusianismo atualizou o conceito de „capacidade de suporte‟, introduzindo no
debate sobre modelos de desenvolvimento um determinismo da „ordem natural‟ ou dos porta-
vozes desta ordem, os saberes biológico ou geográfico. A noção de capacidade de suporte
tende assim a ser correntemente utilizada para descrever os limites materiais/espaciais à
continuidade de uma baste material sobre a qual exercem as praticas sociais” (ACSELRAD,
1997, p. 1914).
Dentro dessa visão, a “região dos mananciais” teria como função ecológica a “(...)renovação e
disponibilidade de água para consumo humano” e “ se a primeira é garantida pelo sistema hidrológico a
segunda está relacionada à capacidade de suporte dos recursos hídricos” (WHATELY & HERCOWITZ, 2008,
p. 22), para produzir, depurar, armazenar, reciclar efluentes lançados e renovar a água de qualidade que
serve para o abastecimento público.
Como ver-se-á com mais detalhes adiante, as ações coordenadas pela SVMA e SMA para o
tratamento dos mananciais possuem um caráter ambiental voltado à preocupação com a preservação da
região produtora de água, utilizando-se de múltiplos instrumentos que prevêem a criação de parques
naturais32, o “congelamento” das ocupações existentes, o controle da expansão urbana para a manutenção
desse propósito. No entanto, não se integram em uma política de controle fundiário mais amplo, de
combate aos processos de periferização, da atuação de imobiliárias clandestinas e das formas de
apropriação desigual do território. Sendo assim, os clássicos problemas do processo de urbanização
tenderão a continuar se reproduzindo e seus moradores serão considerados parte “incômoda do ambiente”
em mananciais.
Nas disputas por apropriação do território, os conflitos que inicialmente eram tratados como
conflitos fundiários pela irregularidade da posse da terra, a partir do momento em que a questão ambiental
tomou relevância pública, passaram a se constituir também em conflitos ambientais. Ao se configurarem
como tais ganham um relativo destaque na mídia e nas preocupações políticas, sendo muito associados à
localização geográfica e aos transtornos que dizem acarretar para “toda a cidade”.
31
Coordenadora do Departamento de Planejamento Ambiental – Deplan. Entrevista concedida à autora em 19/11/2009.
32
Parques no entorno do Rodoanel.
51
A lógica que orienta as lutas dos movimentos sociais tem se baseado na ideia da compatibilização
dos usos, a partir do pressuposto dos usos sustentáveis ou da necessidade da harmonização entre os dois
direitos (ao meio ambiente e à moradia), ou por fim, soluções que atenuem as remoções, que ofereçam
solução habitacional definitiva e que reconheçam que a “irregularidade” decorre do modelo de urbanização
com baixos salários (MARICATO, 1996).
A partir de 1985, com a lei da Ação Civil Pública - ACP novos atores entram em cena nos conflitos
envolvendo as ocupações irregulares em áreas ambientalmente frágeis, entre eles o Ministério Público de
São Paulo, na década de 1990, e a Defensoria Pública do Estado, em 2003.
Os problemas ambientais não atingem igualmente a todos no espaço urbano; refletem-se muito
mais nas classes menos favorecidas. Acselrad (2004b, p. 25) explica que a combinação de certas
atividades pode comprometer a possibilidade de outras práticas se manterem; não havendo acordos
33
O GEPAM - Gerenciamento Participativo das Áreas de Mananciais de Santo André – desenvolvido pela Prefeitura de Santo André
e pelo Centro de Assentamentos Humanos da Universidade de British Columbia, por meio de um convênio de cooperação técnica
entre o Brasil e o Canadá, procurou encontrar alternativas para planejar, projetar e intervir nos assentamentos localizados em áreas
ambientalmente sensíveis (PMSA, 2004, p. 10).
34
Projeto Piloto de moradia popular, com características de sustentabilidade: o projeto Chácara do Conde. A área era um vazio
formado por duas glebas com 120 ha. O projeto manteve a densidade de ocupação prevista na lei vigente mas concentrou as
moradias e equipamentos em 50% do terreno, o restante seria utilizado para parque que compensasse a ausência de aéreas verdes
nos loteamentos ilegais vizinhos. Estava também previsto a estação de tratamento de esgotos (Maricato, 1997, p. 37).
35
Em entrevista concedida à autora em 24/09/2009.
52
possíveis, surgem os conflitos: “Quando um acordo simbiótico entre as práticas espaciais revela-se inviável
na perspectiva de distintos atores sociais situados no território, eclodem conflitos ambientais urbanos”.
Com efeito, os conflitos de ocupação ilegal em áreas ambientalmente frágeis envolvem, por um lado, os
interesses em torno da preservação ambiental, da manutenção da qualidade e das áreas consideradas
como “produtoras de água”. Por outro lado, envolvem populações que geralmente foram levadas a sair de
seus lugares de origem, que não possuem outra alternativa de moradia, que investiram seus parcos
recursos em pequenas casas, que constroem as condições urbanas de sobrevivência, vistas a omissão ou
as poucas políticas habitacionais promovidas pelo Estado. Esse tipo de conflito reforça as características
das periferias da década de 1970, em que seus moradores sofreram todo o tipo de exclusão e
precariedades. Essa periferia em permanente construção/reprodução avança para as áreas consideradas
ambientalmente frágeis, sendo agora seus habitantes amplamente segregados e sofrendo dos malefícios da
“desigualdade ambiental” (TORRES, 1997).
Swyngedouw enfatiza que os processos sócio-ecológicos que beneficiam uns podem prejudicar e
desestabilizar outros:
“(..) os processos sócio-ecológicos estabilizam e instabilizam lugares e grupos sociais,
sendo intrinsecamente conflituais”. “A natureza urbanizada reúne bens materiais e simbólicos
atravessados por conflitos sociais urbanos por seu controle”. “A mudança sócio-ecológica
urbana relaciona-se explicitamente com o padrão espacial de distribuição das amenidades e
males ambientais”. “A questão ambiental é fundamentalmente a questão política de
determinar quem ganha e quem perde nos processos de mudança sócio-ecológica”
(SWYNGEDOUW, 2003, p. 913).
Na próxima seção, veremos com mais detalhe, como a desigualdade ambiental atinge os grupos
sociais menos favorecidos e também como sua “distribuição espacial está associada à desvalorização do
espaço” (COELHO, 2005, p. 35).
Ao pensar o direito à moradia37 em áreas ambientalmente frágeis, como será debatido adiante nos
casos empíricos, ver-se-á uma instabilidade decorrente da onda modernizadora da discursividade ambiental
a relativizar a permanência dos ocupantes em área de manancial, independente se área é de risco ou do tipo
de fragilidade ambiental.
36
Entrevista concedida à autora em 19 de novembro de 2009 na Assembléia Legislativa de São Paulo.
37
Entende-se nessa Tese por direito à moradia como amplamente abordado pela ONU como o Direito à Moradia Adequada
corresponde ao direito de viver com segurança, paz e dignidade, tendo como componentes essenciais: segurança jurídica da posse;
disponibilidade de serviços e infra-estrutura; custo acessível da moradia; habitabilidade; acessibilidade; localização com relação a
cidade; adequação cultural.
53
A proposta desta Tese é tratar a questão ambiental fora de padrões determinísticos, que enfatizam a
escassez, os limites naturais e a capacidade de suporte (ACSELRAD, 1997). Ela pretende: (i)
desmaterializar o meio ambiente, analisando a questão ambiental a partir da relação dos sujeitos/culturas
entre si; (ii) desnaturalizar o meio ambiente, e, mais especificamente, a chamada “região dos mananciais”,
e compreendê-la como resultante da ação político-urbanística, simbólica e histórica dos diversos sujeitos
sociais; (iii) compreender a durabilidade da base material do desenvolvimento em suas determinações
sociais, históricas e culturais, partindo para a reflexão das práticas de poder sobre “recursos
territorializados”; (iv) entender que a questão ambiental não se restringe à problemática das tecnologias
apropriadas; (v) liberar a problemática ecológica dos limites do “paradigma” da escassez38.
“Trata-se, portanto, de pensar um mundo não determinístico, onde não haveria ordens ou
equilíbrios “naturais”. Para tanto concorre o próprio conhecimento dos relativistas biológicos,
que ao reconhecerem que os processos ecológicos constituem uma complexidade dinâmica,
abrem terreno para que se articule a questão ambiental a conflitos por apropriação real e
simbólica do território, num mundo biofísico caracterizado pela complexidade e coexistência
entre ordem e caos” (ACSELRAD, 1997, p. 1914).
Apresentamos abaixo o enfoque central de interpretação que permeia a presente Tese em que o
conflito de em torno à moradia irregular de baixa renda em áreas ambientalmente sensíveis é analisado em
sua dimensão distributiva, o que faz com que a escassez para uns esteja associada à abundância de outros.
38
Proposto por Acselrad (1997, p. 1911-1914): “o meio ambiente em quadros conceituais não determinísticos”.
54
O fato de que grupos sociais são diferentemente expostos a riscos ambientais ainda é pouco
destacado como problema social e tem pouca interferência nas políticas públicas no Brasil. Prevalece o
entendimento de que os danos ambientais são universais e, como tal, atingem a todos de forma igualitária,
reafirmando a ideia de que “estamos todos no mesmo planeta-nave” – assumindo assim o que alguns
crêem ser “uma feição ingênua e mesmo ideológica” (BENTON, 1989 apud TORRES, 1997, p. 21).
Apontando para a distribuição desigual dos danos no espaço urbano, Maria Célia Nunes Coelho
(2005) explora o campo teórico dos impactos ambientais. Utilizando as reflexões da Economia Política do
ambiente e da Ecologia Política urbana39, examina conceitos de espaço (GOTTDIENER, 1993), ambiente
urbano (SANTOS, 1994) e impactos ambientais.
A autora problematiza o paradigma tradicional dos estudos urbanos de impactos ambientais40 a fim
de propor outra abordagem teórico-metodológica na forma de interpretar os impactos ambientais que
incorpore os processos físico-químicos, político-econômicos e socioculturais, com vistas a executar uma
análise relacional e dinâmica “com a interpretação de processos”:
“A intercessão entre os processos físico-químicos, político-econômicos e socioculturais dá
origem à estrutura socioespacial que expressa, consequentemente, a maneira como as
classes sociais e a economia se estruturam e desestruturam no espaço em face de uma
intervenção externa. Toda estrutura socioespacial é temporal no sentido de que a ruptura em
cada um dos processos pode dar origem a uma nova estrutura que se manterá relativamente
estável até que uma outra ruptura a destrua. Rupturas de causas diversas desencadeiam,
portanto, processos de mudanças ecológicas e sociais combinadas, ou seja, impactos
ambientais de natureza estrutural, produtores de novas mudanças que afetam de forma
diferenciada e não planejada as estruturas de classes sociais”. (COELHO, 2005, p. 27).
39
“A ecologia política urbana, um outro segmento da ecologia política, aborda as relações entre uso do solo, impacto ambiental e o
esforço político-financeiro de reordenação e conservação do solo urbano.” (COELHO, 2005, p.22).
40
Segundo a autora, os impactos ambientais são entendidos no senso comum como sendo “(...) um mero resultado de ações
externas dirigidas para um determinado sistema” (COELHO, 2005, p. 28). Geralmente os impactos ambientais são estudados dentro
de uma microescala, por meio de índices de contabilizavam a erosão, a poluição, a partir do conceito de equilíbrio a partir dos
conceitos das ciências naturais.
55
Robert Bullard41 (1990) foi um dos pioneiros na comprovação empírica de que diferentes grupos
sociais são desigualmente expostos a riscos ambientais. Trabalhando com a relação meio ambiente,
economia e equidade, começou a observar como determinadas decisões em termos de alocações de
riscos, por parte de determinadas empresas, corporações ou instituições públicas nos Estados Unidos,
recaíam sobre os grupos étnicos e sociais mais despossuídos. A partir de seus resultados de pesquisa
sustentou a tese de que correntemente os impactos ambientais se distribuem desigualmente, os grupos
sociais mais despossuídos sofrendo os maiores danos, enquanto os mais abastados conseguem deles se
proteger.
Bullard (2004) sustenta que a proteção ambiental baseada em avaliação e gerenciamento não é
capaz de evitar a distribuição desigual dos riscos:
O paradigma dominante, que pode ser chamado de proteção ambiental gerencial,
regula e distribui riscos (...). Também institucionaliza regulamentações iníquas,
(...), subsidia a destruição ecológica e cria uma indústria em torno da avaliação e
do gerenciamento de riscos que serve para postergar ações de descont aminação e
falha em desenvolver a prevenção da poluição como estratégia direcionada e
dominante (BULLARD, 2004, p. 46).
41
Professor do Clark Atlanta University Environmental Justice Resource Center.
42
Entende-se por Justiça Ambiental: “a agência de proteção ambiental dos Estados Unidos (EPA) define a justiça ambiental como o
tratamento justo e o significativo envolvimento de todas as pessoas, independente de raça, cor, nacionalidade ou rendimento, no
desenvolvimento, implementação e cumprimento de leis, regulamentações e políticas públicas ambientais. Tratamento justo
significa que nenhum grupo de pessoas, incluindo os grupos raciais, étnicos e socioeconômicos devem arcar como um peso
desproporcional das consequências ambientais negativas resultantes de operações comerciais, industriais ou municipais ou da
execução de políticas públicas e programas federais, estaduais e locais e tribais” (U. S. Environmental Protection Agency, 1998;
Council on Environmental Quality, 1997) (BULLARD, 2004, p. 46).
56
O autor entende que as avaliações feitas pelo Estado, muitas vezes para servir ao licenciamento do
próprio Estado, ou por empresas tercerizadas a serviço de particulares, não raro acaba legitimando os
objetivos de grupos de interesse que possuem mais poder sobre as decisões. Assim, avaliações que
possuem a aparência de um caráter técnico rígido, servem à manipulação de resultados e ao gerenciamento
dos riscos que recaem sobre os que têm menos ou nenhum poder nas decisões.
Mike Davis (2001, 2006) segue perspectiva semelhante. O autor evidencia a distribuição desigual
comparando os riscos incorridos em cidades ricas e cidades do Terceiro Mundo. Considera que as cidades
em situações econômicas diferentes, mesmo estando em locais perigosos, conseguem se proteger dos
danos:
“As cidades ricas que estão em locais perigosos, como Los Angeles e Tóquio podem reduzir
o risco geológico ou meteorológico por meio de grandes obras públicas e “engenharia
pesada”: estabilização de encostas com redes geotêxteis, concreto injetado e parafusos para
fixar as rochas; terraceamento e redução da declividade de encostas muito íngremes; abertura
de poços profundos de drenagem e bombeamento da água de solos saturados; interceptação
dos fluxos de detritos com pequenas represas e açudes; e canalização das águas pluviais
para vastos sistemas de canais e esgotos de concreto. Programas nacionais de seguros
contra cheias, junto com subsídios cruzados para seguros contra incêndio e terremotos,
garantem os reparos residenciais e a reconstrução em caso de dano extenso. No Terceiro
Mundo, ao contrário, é improvável que as favelas, onde faltam água potável e vasos
sanitários, sejam defendidas por obras públicas caras ou cobertas por seguros contra
desastres” (DAVIS, 2006, p. 130).
Torres (1997), por sua vez, crê que apontar a desigualdade ambiental entre cidades de países
desenvolvidos e de países em desenvolvimento contribui apenas parcialmente para a compreensão de
como os riscos ambientais de fato ocorrem. Mais revelador seria destacar onde a desigualdade ambiental
ocorre, de que forma se materializa, a fim de situar os casos em conformidade com o contexto
socioeconômico, político e cultural da região.
Davis (2006) destaca a distância entre os problemas reais e o planejamento, afirmando que as
cidades estão de “cabeça para baixo”. Nesse sentido, aponta para a apropriação inadequada das reservas
ambientais nas cidades de terceiro mundo:
“Todos os princípios clássicos do planejamento urbano, como preservação do espaço aberto
e separação entre residências e usos nocivos da terra, estão de cabeça para baixo nas
cidades pobres” (DAVIS, 2006, p. 134).
(...)
nos riachos que lhe fornecem água. Os sistemas de controle de qualidade da rede de água
municipal têm sofrido problemas numerosos nos últimos anos. Além de aumentar a cloração
da água para impedir doenças entéricas, mal conseguem controlar a proliferação de algas, já
43
que elas crescem demasiado com o acúmulo de material orgânico” (DAVIS, 2006, p. 141).
Atualmente, a chamada “crise sanitária44” desafia a metrópole de São Paulo. Mesmo depois de dez
anos do Programa Guarapiranga, a qualidade da água e a manutenção das represas superficiais para o
abastecimento público ainda é um desafio para os órgãos públicos, que procuram minimamente manter o
controle do nível de poluição águas45.
No Brasil, são recentes as pesquisas que procuram associar indicadores sociais da população de
baixa renda e exposição a riscos ambientais. No caso de São Paulo, os trabalhos de Torres (1997) e Alves
(2007) comprovam por meio de indicadores a existência da desigualdade ambiental, condição em que os
despossuídos convivem com riscos ambientais ampliados em habitações precárias e desprovidas de
saneamento.
O autor sustenta que na interface entre as agendas sociais, urbanas e ambientais, encontra-se o
problema da desigualdade ambiental em suas várias dimensões47. Em sua tese de doutorado, procura
comprovar a existência da desigualdade ambiental em São Paulo, criando uma metodologia para
dimensioná-la, mostrando seu crescimento significativo no período de 1980 e 1991 na Zona Leste de São
Paulo. Alves (2007, p.302), utilizando técnicas de geoprocessamento, deu seguimento ao trabalho de
43
Taschner, “Squatter Settlements and Slums in Brazil” p. 193; Luiz Galvão, A Water Pollution Crisis in the Americas”, Habitat
Debate, setembro 2003, p. 10 apud Davis, 2006, p. 141.
44
Relacionada à poluição das águas dos mananciais de São Paulo e à falta de infraestrutura.
45
Essas informações serão analisadas, em detalhe, em capítulo específico que trata de atuação do Estado em mananciais.
46
Veremos adiante como essas decisões se comportam para o caso de São Paulo.
47
“(...) sociologicamente, a ideia de desigualdade implica o sentido de sobreposição ou exposição simultânea a mais de uma forma
de desigualdade (econômica, social, residencial, etc.), num processo cumulativo e circular” (Torres, 1997, p. 27).
58
Torres, procurando medir e verificar que “(...) os riscos ambientais são distribuídos de maneira desigual
entre os diferentes grupos sociais, assim como a renda e o acesso a serviços públicos”.
2. Quando se propõe uma estratégia de preservação em que recursos comuns venham a ser
incorporados ao sistema de preços – como advogam algumas correntes da economia
ecológica, afirmando ser esta a forma mais eficiente de preservá-los – é evidente que (na
ausência de outras formas de regulação) grupos de baixa renda terão que usar uma parte
desproporcional de seus recursos para adquiri-los. Em outras palavras, a escassez ecológica,
por um lado, tende a apresentar impactos regressivos; por outro, um importante grupo de
políticas proposto para mitigá-la também tende a apresentar impactos regressivos;
Marques & Torres (2005) chamaram de “hiperperiferias” os pontos críticos que sofrem os efeitos
cumulativos dos riscos sociais e ambientais, numa combinação de desigualdade e segregação. As análises
urbanas de produção do espaço são fundamentais para compreensão da distribuição socioespacial dos
custos e benefícios no processo de urbanização e da apropriação dos “bens” ambientais. Segundo Torres
et al (2003), o processo de urbanização periférica, combinando padrões de segregação, deve-se à ação
simultânea de três processos descritos pela literatura especializada:
“(i) o mercado de trabalho e a estrutura social – a segregação urbana é uma consequência do
mercado de trabalho, como nos trabalhos resenhados por Valladares e Coelho (1987)
(...)
(ii) a dinâmica do mercado imobiliário e da produção de moradias – alguns autores enfatizam
os incorporadores e suas estratégias (Ribeiro, 1997). No modo como o mercado imobiliário
aloca grupos sociais e atividades econômicas (Smolka, 1987 e Abramo, 1994);
(...)
(iii) políticas estatais – um outro grupo de autores focaliza o poder regulador do Estado sobre
o território. Excluir uma parte significativa da cidade dos benefícios da urbanização por meio
da legislação sobre a construção civil e o uso do solo (Rolnik, 1997 e Néri, 2002). Outros
estudos apontam padrões de segregação promovidos ou incrementados pela ação direta do
Estado (Fix, 2001; Marques e Bichir, 2001; Vetter, 1975 e Vetter et al., 1981)” (TORRES et al,
2003, p.100-101).
Maricato (2000) afirma que a ilegalidade do uso do solo se deve à forma como se deu o processo
de urbanização, apresentando as seguintes características: (i) industrialização com baixos salários e
mercado residencial restrito; (ii) as gestões urbanas (prefeituras e governos estaduais) têm uma tradição de
59
Esses processos colaboraram para a formação da extensa periferia dotada de moradias precárias
que concentram, no caso da Zona Sul de São Paulo, uma série de danos ambientais, sociais e para a saúde
de seus habitantes. Uma análise detalhada desses dados será apresentada no próximo capítulo da presente
Tese.
Outra autora que trabalha com as desigualdades ambientais em São Paulo é Morato (2008), que
analisa a espacialidade da desigualdade ambiental em algumas subprefeituras no Município de São Paulo. A
autora relaciona a desigualdade, o processo de urbanização e as políticas públicas, definindo como:
“A desigualdade ambiental é o princípio pelo qual grupos de pessoas, sejam étnicos, raciais
ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das consequências ambientais negativas
das operações econômicas, de políticas e programas federais, estaduais e locais, bem como
resultantes da ausência ou omissão de tais políticas” (MORATO, 2008, p. 3).
O histórico de degradação ambiental da cidade de São Paulo vem mostrar que os problemas da
chamada “região dos mananciais” é uma construção histórica, que veio se alterando conforme os diferentes
contextos e interesses socioeconômicos49. A ocupação do entorno das represas retrata as baixíssimas
condições sanitárias, os terrenos pequenos, a ocupação irregular, as construções precárias (sem
48
Entendida como as condições adequadas de infraestrutura e saúde da população.
49
Consultar VENTURI, Luis Antonio Bittar. Tristes Mananciais. In: CARLOS, Ana Fani; OLIVEIRA, Ariovaldo (orgs). São Paulo. Editora
Contexto. 2004.
60
preocupação com a adequada ventilação e iluminação dos ambientes) associadas ao alto grau de umidade
proveniente dos reservatórios que se infiltram nas construções, o que torna a moradia insalubre. Tudo isso
tem provocado prejuízos à saúde dos moradores, principalmente doenças ligadas ao sistema respiratório.
Os últimos trinta anos são marcados por um padrão de urbanização que expulsou a população de
menor renda das áreas melhor localizadas para a periferia e as “regiões de fronteira” (TORRES, 2005). Em
paralelo, o boom da industrialização nos anos 1970 incentivou a ocupação das periferias no sentido da
Zona Sul, sendo que a ocupação ocorreu ao sabor dos loteadores clandestinos. Consolidou-se então um
padrão de ocupação precário, de baixa renda, baseado na autoconstrução sem as redes de infraestrutura e,
consequentemente, com baixíssimas condições sanitárias na região considerada dos mananciais de São
Paulo.
Torres (1997, p. 32) analisa que para o caso do Brasil, “(...) a proximidade a favelas já poderia
eventualmente caracterizar a ocorrência de “sítios indesejáveis” (LULUs50). As áreas de ocupações ilegais
do solo (seja em manancial ou não), que apresentam déficits de carências e altos índices de pobreza e
segregação, também podem se caracterizar como “sítios indesejáveis”, principalmente do ponto de vista do
mercado imobiliário formal e para grupos sociais que concentram maior poder e riqueza na cidade.
O caso da moradia em área de manancial configura uma situação ímpar em que os mais pobres
correm risco, sim, mas as classes mais abastadas vêem-se, por sua vez, também ameaçadas de risco
ambiental, a saber, de perder acesso a abastecimento apropriado de água51.
50
Os “usos do solo localmente indesejáveis (Locally unwanted land uses (LULUs)” designam espaços ocupados por atividades que
são fonte de riscos e danos como indústrias e infraestruturas perigosas, depósitos de lixo, etc.
51
Tundisi alerta que entre 1998 a 2005 o custo de tratamento de água na RMSP aumentou em mais de 100%, com ampliação da
eutrofização justamente no ponto de captação na Represa Guarapiranga: “Cada vez que duplica a eutrofização, duplicam os custos
do tratamento. Quando se olha agora o sistema Cantareira, vê-se que se gasta R$ 12,00 por 1000m3 para o tratamento de água.
Próximo. Quando se trata a água do Baixo Cotia/Guarapiranga, se gasta cerca de R$ 120,00 por 1000m3. A diferença do custo do
tratamento é a degradação do manancial. Então, esse é o preço que se está pagando pela degradação dos mananciais na região
metropolitana de São Paulo. Quanto maior a degradação do manancial, maior é custo do tratamento e você tem que gastar em
floculantes, em produtos químicos e etc. O que vai acontecer até 2025, o uso de carbono ativado, se continuar a atual tendência? O
uso de carvão ativado por mês, em toneladas, atualmente se gasta cerca de 90 ou 100 toneladas por mês, mas os custos em reais
em carvão ativado, continuando essa tendência aqui, sem haver tratamento de esgoto ou com baixo tratamento de esgoto”. O
pronunciamento de José Galizia Tundisi (2008) no seminário “Mananciais uma nova realidade?” vem expor que uma das
preocupações atuais com a degradação está associada ao preço do tratamento da água para que essa ofereça condições de
potabilidade. Existem estudos da SABESP para importar água de outros mananciais distantes, como do Vale da Ribeira, caso as
represas superficiais de São Paulo sejam consideradas impróprias para uso ou se inviabilize sua recuperação. Informação verbal de
Tundisi, no Seminário “Mananciais uma nova realidade?” realizado pelo Instituto Socioambiental em 13 e 14/05/2008, São Paulo.
61
Os grupos sociais dotados de maior renda e poder sofrem, assim, nesse caso, um risco ambiental
reflexo daquele risco ambiental sofrido correntemente pelos grupos sociais desprovidos de acesso a
moradia segura. Trata-se aqui de uma situação em que as “ameaças ao ambiente de todos” significam
ameaças que, além de afetar aos mais despossuídos, afetam também os grupos sociais de maior renda.
Mesmo havendo um rebatimento para os grupos sociais de maior renda, esses têm maiores
chances de se proteger dos danos que são, para o caso de São Paulo, radicalmente desiguais entre os
setores sociais. Acselrad (2004c) aponta duas proposições explicativas para a relação entre a desigualdade
e degradação ambiental, sinalizando as consequências ambientais em situações em que os riscos sofridos
por diferentes grupos sociais são muito desproporcionais, sendo que favorece um em detrimento do outro.
O autor enuncia que:
“A lógica segregadora é apresentada como o resultado da operação regular de dois
mecanismos, evidenciados por duas proposições. Segundo a primeira, a desigualdade social
e de poder sobre os recursos ambientais estaria presente na raiz dos processos de
degradação ambiental: quando os benefícios de uso do meio ambiente estão concentrados
em poucas mãos, do mesmo modo que a capacidade de transferir “custos ambientais” para
os mais fracos, o nível geral de “pressão” sobre o meio ambiente tende a não se reduzir. De
onde, decorreria logicamente que a proteção do meio ambiente depende do combate à
desigualdade ambiental. Não se poderia enfrentar a crise ambiental sem promover a justiça
social. A segunda proposição sustenta que em condições de desigualdade social e de poder
sobre os recursos ambientais, bem como de liberdade irrestrita de movimento para os
capitais, os instrumentos correntes de controle ambiental tendem a aumentar a desigualdade
ambiental, sancionando a transferência de atividades predatórias para áreas onde é menor a
resistência social.” (ACSERALD, 2004c, p 32-33).
Salientando a ideia da apropriação dos recursos ambientais pelos grupos de maior poder
econômico, Venturi (2004) relaciona a degradação ambiental da RMSP aos ciclos econômicos
predominantes na metrópole: “ao longo da história de São Paulo, questões relacionadas à qualidade
ambiental alteraram-se de acordo com os diferentes contextos socioeconômicos que o Município
conheceu”. Segundo o autor (VENTURI, 2004, p. 243) “enquanto a cidade se concentrava entre o riacho
Anhangabaú e o rio Tamanduateí (no chamado triângulo para dentro das pontes), as condições do ambiente
urbano mantinham-se boas”. A partir do aterramento das várzeas e das intervenções de retificação do rio
Tamanduateí, agravaram-se os problemas de inundação, o que gerou nas redondezas, associado à falta de
saneamento, problemas de salubridade: “Esta precária qualidade ambiental foi um fator que impulsionou a
ocupação, especialmente pelas elites, dos terraços livres das inundações, como os Campos Elíseos e,
62
posteriormente, os patamares, a exemplo de Higienópolis, até os topos e divisores de água como a Avenida
Paulista”. As intervenções posteriores nos rios Tietê e Pinheiros, a ocupação e impermeabilização das
várzeas e os usos impostos iriam agravar os problemas de inundação, como analisa Seabra (1987). São
Paulo primou por um modelo rodoviarista que privilegiava o carro em detrimento de outras alternativas.
Venturi cita o plano de avenidas idealizado em 1920 por Prestes Maia, em que se pregava a concepção de
uma cidade eficiente, a partir de um urbanismo funcionalista com vistas a atender às exigências da
industrialização. Em 1930, Venturi destaca a crescente demanda de combustíveis, por ocasião da Segunda
Guerra Mundial, o que estimulou a produção de carvão vegetal, com vastos eucaliptais e serrarias em São
Paulo e alguns municípios da RMSP, como Itapecerica da Serra, São Lourenço da Serra e Juquitiba. Outro
recurso natural, ainda demandado atualmente pela construção civil, é a areia e a brita, o que impulsionou
atividades mineradoras no entorno de São Paulo. Muitas empresas mantêm até hoje suas atividades em
funcionamento, mesmo em áreas de mananciais, a despeito da legislação (VENTURI, 2004). O autor alerta
que as áreas de mananciais, especialmente, parecem vivenciar os problemas ambientais historicamente
acumulados por atividades e interesses econômicos em detrimento da preocupação social e com o bem
comum.
“Atualmente o contexto socioeconômico de São Paulo, parece acumular, historicamente,
todos os problemas ambientais conhecidos até então, especialmente nas áreas dos
mananciais de da RMSP em que insalubridade pela ausência de saneamento, os
desmatamentos e deslizamentos de encosta, a crise de abastecimento de água e o
agravamento da violência compõem um quadro socioambiental complexo” (VENTURI, 2004,
p. 244).
Whately52 afirma que o afloramento de algas (1991) e a grande mortandade de peixes nas represas
foram o ponto crucial para que o movimento ambientalista e grupos de influência pressionassem o Estado
para a elaboração de políticas que abarcassem a questão dos mananciais em São Paulo, sendo
posteriormente aprovado o Programa Guarapiranga.
Quanto ao aparato institucional, é grande o número de trabalhos que enfatiza os instrumentos legais
de controle ambiental e sua desconexão com a ocupação da região dos mananciais, tais como, Moreira
(1990); Wathely et. al (2008b); Marcondes (1999); Sócrates et al (1985). A lei de proteção dos mananciais
(1975/1976) teria gerado efeito contrário aos objetivos da preservação. Ao imputar ao proprietário privado o
“ônus da preservação”, restringindo parâmetros construtivos, muitos deles passaram a atuar em conjunto
com mercado informal de terras, parcelando clandestinamente as glebas. Segundo Marcondes (1999, p.
101), nestes casos em que as restrições inviabilizaram o uso, foi proposta a desapropriação pelo Estado
das áreas ou imóveis. O mercado imobiliário informal aproveitou-se da situação para lucrar com todas as
formas de irregularidade atualmente conhecidas.
Maricato (2000, p. 123) sustenta que a ocupação ilegal do solo urbano nas cidades pode ser
funcional “(...) para as relações políticas arcaicas, para um mercado imobiliário restrito e especulativo, para
a aplicação arbitrária da lei, de acordo com relação de favor”. Mas - continua ela - também disfuncional:
52
Entrevista concedida a autora em março de 2010.
63
“(...) para a sustentabilidade ambiental, para as relações democráticas e mais igualitárias, para a qualidade
de vida urbana, para a ampliação da cidadania”.
Apesar do rigor da lei representado especialmente pelas restrições urbanísticas, o Estado foi
omisso no controle e fiscalização da área de proteção dos mananciais, pois essas áreas não faziam (e não
fazem) parte da região prioritária em investimentos, historicamente concentrada na cidade oficial (legal) no
setor sudoeste da cidade de São Paulo. E também por não conseguir quebrar com o ciclo, muitas vezes
“mafioso”, da produção dos loteamentos clandestinos nas cidades.
Maricato (2000, p.166) ainda afirma que “a gestão urbana e os investimentos públicos aprofundam
a concentração de renda e a desigualdade. (...) a representação da cidade é uma ardilosa construção
ideológica, (...) parte da cidade toma o lugar do todo”. Villaça também alerta para esse fato, que apenas um
setor é considerado “a cidade” de São Paulo, justo o setor de alta renda, numa construção que mascara a
totalidade e produz “o restante” que não interessa ao mercado e nem ao Estado (Villaça, 1999):
“Fazendo uma pesquisa na imprensa de São Paulo, Flávio Villaça constatou que 70% das
notícias se referiam ao quadrante sudoeste da cidade de São Paulo, onde se concentram as
camadas de mais alta renda e o mercado imobiliário sofisticado. Quando a notícia se referia a
algo que estava fora dessa mancha, era acompanhada de um qualificativo: a avenida da Zona
Leste, acidente na Zona Norte. Ou seja, a região que concentra a população de alta renda é
tomada como a representação da “cidade”. A parte é tomada pelo todo. Aí moram os
chamados formadores de opinião” (VILLAÇA, 1999 apud MARICATO, 2000, p.166).
Maricato cita a gestão Paulo Maluf (1993/96) sugerindo que: “Ao invés de priorizar o caráter
público e social dos investimentos municipais em uma cidade com gigantescas carências, o governo
municipal o fez de acordo com interesses privados, em especial de empreiteiras de construção pesada e
agentes do mercado imobiliário” (MARICATO, 2000, p. 159).
É nesse período que ocorre a desapropriação das áreas para ampliação do sistema viário na
Avenida Faria Lima e na Águas Espraiadas, com a expulsão e desmantelamento de uma série de favelas que
se encontravam nesse eixo de valorização, que contraditoriamente foram parar nas áreas de mananciais53
(FIX, 2001).
A ocorrência de fatos recentes do modo de ocupação e uso do espaço urbano em São Paulo54
sugere que o controle sobre o território dos mananciais não é prioridade.
53
A investigação foi feita por meio do Inquérito Civil promovido pela Terceira Promotoria Jurídica de Meio Ambiente da Capital –
PJMAC processo n° PT- 153/96. Assunto. Ocupação irregular em área de mananciais por famílias removidas pela Prefeitura
Municipal, da Av. Luiz Carlos Berrini para as margens da represa Billings e Guarapiranga.
54
Rodoanel, expulsão das favelas da região da Berrini, expulsão do centro, etc.
64
É sabido que estes possuem mais capacidade de articulação e mobilização, pautando ações da
imprensa e do Estado, viabilizando campanhas televisivas e seminários internacionais como “Rios de São
Paulo”, que discutiu a questão da poluição dos recursos hídricos de São Paulo, incluindo a questão dos
mananciais55.
Tais intervenções são contestadas por diferentes atores sociais, principalmente: (i) pela forma
como as obras estão sendo feitas; (ii) pela qualidade das intervenções; (iii) pela identificação de quem vem
sendo afetado pelas mesmas; (iv) pelas diferentes classificações feitas da chamada “região dos
mananciais”, apresentando um leque amplo que vai desde a “natureza natural” até argumentos em torno da
economia ecológica, com a venda dos serviços ambientais.
55
Segundo informações do Globo Notícias: (http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL1084446-5605,00-
ESPECIALISTAS+APONTAM+SOLUCOES+PARA+OS+RIOS+DE+SP+EM+SEMINARIO.html, acessado em 20/11/2009), o
seminário “Rios de São Paulo”, procurou buscar experiências e estudos para despoluir rios e debater projetos ambientais. Foi
realizado na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), e reuniu autoridades da administração públicas e
especialistas em projetos ambientais. “O seminário foi organizado pelo Globo Universidade. O governador José Serra disse, em
discurso durante o evento, que uma das principais preocupações de qualquer governo atualmente é a despoluição de rios. “No
passado, se dizia que governar era abrir estradas. Hoje, eu digo que, em certa medida, governar é despoluir rios”, disse Serra”. Não
por coincidência a sede da Rede Globo em São Paulo encontra-se localizada às margens de um dos rios debatido no seminário, o
Rio Pinheiros.
56
Ao estudar a Zona leste de São Paulo, Torres conclui que: “aparentemente, as percepções individuais a respeito dos riscos
ambientais não teriam, neste caso, se traduzido em mudanças de atitude, seja no plano da ação política, seja do ponto de vista das
iniciativas de proteção individual” (TORRES, 1997, p. 237).
65
Acselrad (2004b) e Coelho (2005) sustentam que o pensamento dominante e setores do Estado
tendem a não considerar a presença de uma racionalidade política a orientar a distribuição desigual dos
danos ambientais. Nesse mesmo sentido, alerta Coelho (2005):
“As questões ambientais não são somente técnicas. Similarmente não é técnica a
decisão de priorizar a alocação de recursos escassos. Forças sociais e políticas em jogo
contribuem para o atendimento a interesses dominantes numa estrutura de classe.
Abordagens, propostas de soluções e programas de ação para os problemas ambientais
não raramente expressam „um modelo de sociedade, de distribuição de poder na
57
sociedade e dos valores prioritários da sociedade‟ (HOGAN, 1981) ” (COELHO, 2005, p. 40).
Entidades ambientalistas questionam a intervenção usualmente proposta pelo Estado para as áreas
de mananciais de São Paulo porque acreditam que não vêm surtindo efeitos positivos. Carlos Bocuhy,
Conselheiro do CONSEMA/SP, alerta para o pacto de silêncio, anunciando a falta de fiscalização e tolerância
por parte do Estado com as situações que vêm ocorrendo no território dos mananciais. Afirma que a
ocupação predatória dessas áreas é parte de um pacto do silêncio entre poluidores e o Estado. “A
necessidade e justificativa social da moradia vêm prenunciando um enorme desastre ambiental para a
região metropolitana de São Paulo. O governo silencia para não admitir a omissão por décadas, que vem
fragilizando o sistema produtor de água com a diminuição da quantidade de água média anual” (BOCUHY,
2004, p. 289).
No plano discursivo, as decisões em torno do manejo urbanístico e político das áreas são pautadas
a partir das diferentes sentidos e representações58 do que é o “meio ambiente”, do significado conferido à
“região dos mananciais” e das noções concebidas de justiça. Assim, mesmo no interior das instituições
públicas, a representação sobre a “região dos mananciais” não é monolítica, traduzindo-se em
discordâncias nas esferas institucionais e sociais. Ver-se-á ao longo dessa Tese os diferentes
entendimentos a respeito. Para tanto cabe ressaltar o alerta de Acselrad:
“Caberá perguntar, portanto, a cada passo, a que sujeito remete o meio ambiente de que
se fala? É a este propósito, esclarecedora a referência a questão ambiental construída
nos contextos de implantação de grandes barragens, quando desqualificando as
populações deslocadas enquanto sujeitos, os agentes dos “grandes projetos” reduzem
estas populações à condição de “ambiente” da barragem. Nesses casos, é de se supor
que os sujeitos políticos que exercem a hegemonia do território tenderão a impor sobre
os demais sujeitos sua própria concepção sobre o ambiente. É a evidenciação da
interação dos diferentes sujeitos que colocará assim a possibilidade do conflito entre
distintos modos de apropriação do meio ambiente e afastará os riscos de que se tome
por exclusiva a perspectiva dos atores sociais hegemônicos” (ACSELRAD, 1997, p.
1912).
57
HOGAN, D. J. (1981). Ecologia Humana e as Ciências Sociais. Campinas. II Jornada Brasileira de Ecologia Humana, UNICAMP.
58
“(...) as representações que os agentes fazem do mundo social, pontos de vista que contribuem para a construção deste mesmo
mundo, inclusive da diferenciação social dos indivíduos que o caracteriza. Estaremos aí observando a configuração dos esquemas
classificatórios, princípios de classificação, de visão e divisão do mundo social” (ACSELRAD, 2004c, p. 29).
66
mananciais, ocupam áreas juridicamente protegidas como APPs e são responsabilizados pela poluição da
água na região. Seguindo o que sugere Wacquant (2003) em Punir os Pobres, a penalização dos moradores
de baixa renda em áreas ambientalmente frágeis pode ser entendido como “(...) resultado de lutas
envolvendo uma miríade de agentes e instituições que buscam reformatar esta ou aquela ala e prerrogativa
do Estado, de acordo com seus interesses materiais e simbólicos”. Neste contexto, esta serviria para: (i)
“ora restaurar o controle do Estado sobre as "zonas do não-direito”; (ii) (...) ora “fazer algumas advertências
viris “aos malfeitores” para que, de agora em diante, eles "se comportem bem"; (iii) ora como forma do
Estado “tratar as condições e as condutas que julgam indesejáveis, ofensivas ou ameaçadoras”; (iv) “(...)
uma técnica para a invisibilização dos "problemas" sociais”.
Segundo Wacquant (2003) a sociedade contemporânea dispõe de pelo menos três estratégias
principais para tratar as condições e as condutas que julgam ameaçadoras: (i) socializá-las, isto é, agir no
nível das estruturas e dos mecanismos coletivos que as produzem e as reproduzem; (ii) medicalizá-las,
definindo-as como uma patologia individual; (iii) penalizá-las como uma técnica para a invisibilização dos
"problemas" sociais que o Estado, enquanto alavanca burocrática da vontade coletiva, não pode ou não se
preocupa mais em tratar de forma profunda (..)” (WACQUANT, 2003, s/p.).
Este capítulo tem como objetivo contextualizar, espacial e historicamente, o território em discussão
a fim de definir a questão dos mananciais de São Paulo, segundo a perspectiva construída desta Tese.
A maior área de mananciais no Município de São Paulo compreende a região sul da cidade59, com
547,66 km², formada pelas subprefeituras Capela do Socorro, M‟ Boi Mirim, Parelheiros e Cidade Ademar
(apenas uma parcela). O censo de 2000 aponta que 517.788 habitantes moram na Bacia do Guarapiranga e
453.983 habitantes moram na Bacia Billings, totalizando 971.711 habitantes, a maioria em condições
precárias de moradia, sem coleta de esgoto adequada.
59
Definida pela Lei Estadual nº 1.172 de 17 de novembro de 1976 - delimita as áreas de proteção dos mananciais, cursos e
reservatórios de água de interesse da RMSP.
68
A região sul de São Paulo, considerada área de proteção dos mananciais pela Lei Estadual nº
1.172/76, representa em termos populacionais 8,88% da população total do Município de São Paulo,
segundo o Censo IBGE 2000. É uma das regiões que apresentou a maior taxa de crescimento anual no
Município de São Paulo no período 1991-2000. Dos distritos inseridos em área de manancial, Grajaú
(cresceu a 6,22% a.a) e Parelheiros (cresceu a 7,07% a.a) apresentaram um crescimento muito alto, acima
da média do município de 0,88% ao ano. Esse crescimento mostra a tendência de aumento populacional
nas áreas situadas entre as bacias Guarapiranga e Billings espraiando-se entre as represas ou adensando
áreas já ocupadas em distritos distantes e dotados de pouca infraestrutura. Observe-se a tabela:
60
O autor procura operacionalizar o conceito de desigualdade ambiental (TORRES, 1997) através da utilização de metodologias
de geoprocessamento. Desigualdade ambiental supõe a idéia de “sobreposição ou exposição simultânea a mais de uma forma
de desigualdade, além da ambiental, tais como a desigualdade social, econômica, residencial, raça, etc” (TORRES, 1997 apud
ALVES, 2007, p. 302).
61
Segundo Alves (2007), são aquelas próximas aos cursos d‟ água (menos de 50metros) e/ou com altas taxas declividades
(mais de 30%), ou seja, área com riscos de enchentes e de deslizamentos.
69
ambiental no município em período recente” (ALVES, 2007, p. 307). Para comprovar a afirmação acima,
o autor sistematizou as taxas de crescimento a partir da classificação em áreas de risco ambiental e
áreas de não-risco ambiental, conforme tabela abaixo:
TABELA 2: Taxas geométricas de crescimento anual da população, por regiões, segundo áreas de risco e
de não-risco ambiental no Município de São Paulo – 1991/2000.
Em porcentagem
Total do Regiões de Regiões de
Áreas Regiões pobres
município classe média classe alta
Áreas de risco ambiental 2,51 4,81 0,56 -1,20
Áreas de não-risco ambiental 0,53 3,26 -0,41 -1,10
Total 0,88 3,67 -0,27 -1,11
Fonte: IBGE. Censos Demográficos de 1991 e 2000; CEM-Cebrap, cartografias das áreas de risco ambiental; Marques & Torres (2005).
Esses dados mostram que a população cresceu mais rapidamente em áreas de risco ambiental,
pobres e periféricas (4,8% a.a) enquanto fora dessas áreas o crescimento tem sido bem menor (3,3%
a.a). Alves (2007) associa que este fenômeno está relacionado aos seguintes fatores: (i) que o
crescimento do município de São Paulo está pautado na expansão horizontal e pelo processo de
periferização (TORRES, 2005); (ii) que o município concentra regiões periféricas consolidadas obrigando
o crescimento a se estender para regiões mais distantes; (iii) o expressivo crescimento da população
moradora de favelas associada às áreas de risco ambiental (TASCHNER, 2000 & ALVES, 2007).
70
Além disso, Alves (2007) desenvolve uma comparação dos indicadores socioeconômicos e
demográficos para áreas de risco e não risco ambiental no Município de São Paulo, chegando à
conclusão que os residentes em área de risco ambiental apresentam condições socioeconômicas
bastante piores, além de maior concentração de crianças e jovens, do que a população moradora fora
destas áreas. Este autor chama a atenção para a desigualdade na cobertura de rede de esgoto nas áreas
de não risco chega a 90,6%; nas áreas de risco apenas 71,9% dos domicílios possuem cobertura da rede
de esgoto. Outro indicador que deve ser levado em consideração é a renda (5,9 salários mínimos para
áreas de risco e 9,4 salários mínimos para não risco). Vejamos maiores detalhes na tabela 62 abaixo que
permite essas comparações:
TABELA 3: Comparação dos indicadores socioeconômicos e demográficos, por áreas de risco e de não-
risco ambiental no Município de São Paulo – 2000.
Áreas de não-
Áreas de risco Total do
Indicadores risco
ambiental município
ambiental
Cobertura da rede de água (%) 96,90 99,00 98,62
Cobertura da rede de esgoto (%) 71,94 90,58 87,23
Coleta de lixo (%) 97,76 99,51 99,20
Chefes de domicílio analfabetos (%) 8,95 5,19 5,86
Chefes de domicílio com baixa escolaridade (até 3 anos de estudo,
24,09 16,41 17,78
inclusive sem instrução) (%)
Chefes de domicílio com ensino superior completo (%) 10,03 19,25 17,60
Número médio de anos de estudo do chefe de domicílio (em anos) 6,44 7,94 7,67
Chefes de domicílio com renda de 0 a 3 salários mínimos (%) 51,84 37,48 40,06
Chefes de domicílio com renda superior a 5 salários mínimos (%) 17,08 21,80 20,95
Renda média do chefe de domicílio (em reais) 888,24 1421,05 1325,43
Renda média do chefe de domicílio (em salários mínimos) 5,88 9,41 8,78
População de 0 a 4 anos (%) 10,31 7,98 8,43
População de 0 a 14 anos (%) 29,23 23,81 24,84
População de 65 anos e mais (%) 4,10 6,97 6,42
População residente em setores subnormais (%) 21,60 5,68 8,72
Fonte: IBGE. Censo Demográfico de 2000; CEM-Cebrap, cartografias das áreas de risco ambiental Apud ALVES, 2007, p.311.
Atualmente a região Sul de São Paulo, como efeito da Lei de Proteção dos Mananciais, constitui
uma das últimas áreas do município disponível para expansão urbana. Ao mesmo tempo, está localizada
próxima do pólo industrial de Santo Amaro e do eixo de alta valorização imobiliária da Berrini/Faria Lima/
Marginal Pinheiros. Desta forma, exerce forte poder de atração em sua área de influência, pela oferta de
empregos e custo baixo da terra (em consequência da legislação de proteção dos mananciais), abrigando,
assim, uma população trabalhadora.
62
Retirada do trabalho de ALVES (2007, p. 311). Cf. ALVES, Humberto Prates da Fonseca. Desigualdade ambiental no município de
São Paulo: análise da exposição diferenciada de grupos sociais a Situações de risco ambiental através do uso de metodologias de
geoprocessamento. Revista Brasileira de Estudos de População, São Paulo, v. 24 n.2, p. 301-316, jul/dez. 2007.
71
Outra análise que trabalhou com a dinâmica demográfica da área foi elaborada por Torres (2004). O
autor utilizou as variáveis crescimento demográfico e renda domiciliar média a fim de identificar as
dinâmicas de transformação do chamado “espaço de fronteira”. As análises do autor incidem sobre a
mesma área em estudo na presente Tese, o distrito de Grajaú.
Por meio da análise da mancha urbana de São Paulo nos anos 1990, o autor verificou o contraste
de áreas centrais infra-estruturadas que perdem população dos municípios de São Paulo, Osasco,
Guarulhos e ABC e outras áreas localizadas nas franjas urbanas dos municípios que crescem a taxas
superiores a 5% ao ano. Em termos demográficos, a RMSP não pode ser pensada mais como um pólo de
atração populacional, porque passou a crescer próximo da média brasileira de 1,6% ao ano nos anos 1990.
No entanto, o crescimento da mancha urbana de São Paulo vem ocupando os chamados espaços de
transição ou como o autor denomina – fronteiras urbanas, que além da precariedade e fragilidade ambiental
guardam características de áreas rurais.
“(...) (i) as fronteiras são regiões com altas taxas de crescimento demográfico e com
substancial migração; (ii) as fronteiras apresentam infra-estrutura precária e em construção.
De modo geral, o Estado está pouco presente, seja regulando o uso da terra, seja através da
oferta de serviços públicos; (iii) a fronteira parece funcionar como uma “válvula de escape”, o
lugar de concentração daqueles que não tem lugar nem em áreas urbanas consolidadas, nem
em áreas rurais tradicionais (Velho, 1976); (iv) a fronteira é objeto de importantes conflitos
sobre a posse da terra urbana (loteamentos clandestinos, favelas) ou rural; (v) A fronteira
apresenta intensos conflitos ambientais relativos a ocupação de áreas florestais e de
mananciais” (TORRES, 2004 p.5).
Para comprovar os dados acima mencionados, o autor usa as taxas de crescimento demográfico
no período de 1991-2000, distinguindo periferia consolidada (taxas de crescimento entre 0 e 3% ao ano),
cidade consolidada (crescimento negativo ao ano) e fronteira urbana (superiores a 3% ao ano). Sustentando
que sem a contribuição da fronteira urbana para o crescimento demográfico, a Mancha Urbana de São
Paulo teria mantido estável sua população na década de 1990” (TORRES, 2004, p. 8). Torres explica os
conceitos de que faz uso por meio do quadro abaixo:
“De fato, podemos observar neste quadro que a curva que exprime a relação entre
crescimento demográfico e renda não pode ser definida como uma reta, como seria
esperado r numa visão centro-periferia clássica (TASCHNER e BÓGUS, 2000). Existe um
grande contingente de áreas pobres com elevado crescimento demográfico (fronteira
urbana), assim como existe um número muito significativo de áreas urbanas pobres com
baixo crescimento (periferia consolidada). Analogamente, praticamente não existem áreas
de renda mais elevada com altíssimo crescimento demográfico, sendo as exceções mais
importantes as áreas de ponderação em Santa do Parnaíba (onde está Alphaville) e do
distrito de Vila Andrade (onde encontra-se parte do Morumbi)” (TORRES, 2004, p. 7).
72
Torres (2004) analisa um conjunto de variáveis, (i) migração (ii) renda, raça e emprego e (iii)
infra-estrutura urbana e meio ambiente, para caracterizar o fenômeno da fronteira urbana. Pelas
informações apresentadas pelo autor, é possível perceber que a fronteira urbana agrega um conjunto
muito significativo de pessoas de baixa renda, níveis de desemprego mais altos, baixa escolaridade e
maior proporção de pretos e pardos. Os dados de renda também são bastante significativos: “A renda
média na cidade consolidada é mais que o dobro da observada na fronteira urbana e a renda per capita
familiar é quase três vezes maior. (...) Na fronteira, não apenas os domicílios são muito mais pobres,
mas os recursos aí existentes são divididos por um número maior de moradores” (TORRES, 2004, p. 13).
O que ainda a sociedade e o Estado não contabilizaram, segundo o autor, são os custos
socialmente pagos para manter uma área central infraestrutura subutilizada com perdas populacionais
significativas enquanto todo o crescimento metropolitano continua a se dar nas fronteiras urbanas,
ambientalmente frágeis e cada vez mais distantes. E, para completar, os processos de revitalização da
Luz e enobrecimento do centro têm andado a passos largos, ganhando forte adesão do mercado
imobiliário, seu principal beneficiário.
“O problema é que tais custos sequer são percebidos, pois estão distribuídos por dezenas
de instâncias estaduais, várias prefeituras, bem como por milhões de cidadãos residentes
da fronteira urbana. Não se trata apenas de um problema intra-municipal, mas de um tema
que requer instâncias de gestão metropolitana inexistentes no momento” (TORRES, 2004,
p. 18).
Para os objetivos desse trabalho é importante a sinalização que Torres (2004) desenvolve em
relação às consequências ambientais da ocupação do espaço de fronteira:
73
Associada a isso, observa-se a crescente massa de jovens que, vivendo “presos” nessa fronteira
urbana, dificilmente constroem outros laços sociais capazes de ascender a outras realidades ou
possibilidades de futuro. Quando conseguem inserir-se no mercado de trabalho, observam-se fortes
componentes de terceirização, ou uma inserção precária, na maioria das vezes, sem garantia dos direitos
trabalhistas. A marginalidade faz parte do cotidiano numa feição dolorosa dessa realidade.
A região sul de São Paulo também se destaca pelos altos índices de violência. Na tabela abaixo
observamos que quando se analisa a mortalidade por causas externas nas regiões selecionadas (parcial
ou integralmente inseridas no perímetro da Lei de Proteção aos Mananciais - LPM) que os homicídios são
responsáveis por 31,07% das mortes por causas externas na região em 2008. Em se tratando das taxas
de homicídios, verifica-se que todas as subprefeituras possuem taxas maiores que a média municipal. A
exceção encontra-se em Pedreira, que está inserida parcialmente no perímetro de proteção dos
mananciais, no entanto, se contabilizarmos a subprefeitura as taxas continuam elevadas, chegando a
15%.
74
Os dados acima mostram que a região, apesar de estar localizada no perímetro de proteção aos
mananciais pela Lei Estadual nº 1.172 /1976, com severas restrições legais quanto à ocupação urbana e
industrial, tem altos índices de crescimento anual, bastante acima da média do município. E, ainda, que
esse crescimento concentrou-se em áreas consideradas de risco63, que possuem infra-estrutura deficiente e
indicadores sociais abaixo da média, consagrando uma ocupação precária, numa região que guarda
características semelhantes àquelas que Torres (2004) chamou de fronteira paulistana. No caso em estudo,
trata-se de uma espécie de expansão da fronteira urbana, área de transição entre a cidade e áreas de
preservação ambiental.
63
Definidas por Alves (2007) como aquelas próximas aos cursos d‟ água (menos de 50metros) e/ou com altas taxas declividades
(mais de 30%).
75
Segundo ampla literatura disponível sobre os mananciais de São Paulo, as rigorosas restrições da
Lei de Proteção dos Mananciais acabaram provocando efeito inverso ao alegadamente desejado
(MARCONDES, 1999). Com a desvalorização dos terrenos a região foi alvo do “favelamento” ou da ação de
loteadores clandestinos que passaram a controlar seu uso e ocupação a despeito do Estado. A seguir tratar-
se-á de como atualmente encontra-se esse quadro.
Os estudos mais recentes sobre a questão habitacional em mananciais de São Paulo foram
realizados em 2003 pela PMSP/SEHAB/CEM/CEBRAP64, o que permitiu visualizar o perfil socioeconômico e
da infraestrutura disponível para os loteamentos precários65 e favelas66 na região dos mananciais. O estudo
aponta alguns limites na definição dos polígonos de loteamentos, chamando a atenção para a necessidade
de aperfeiçoamento da cartografia existente sobre loteamentos irregulares.
A partir dos dados do Censo IBGE 2000, esse estudo mostra que as áreas de mananciais possuem
56.862 domicílios em loteamentos irregulares (excluindo as favelas presentes no interior dos loteamentos)
representando um total de 12,94% do total de domicílios em loteamentos irregulares do Município de São
Paulo. Se considerarmos a população moradora de mananciais (971.711, Censo IBGE 2000) veremos que
27,14% estão concentrados em loteamentos irregulares. “Somados aos 21,11% que moram em favelas, tem-
se que 48,25% da população moradora nos mananciais encontra-se em situação de inadequação
habitacional” (PMSP, 2003, p.24).
Apresenta-se a seguir algumas tabelas desse estudo:
64
Fonte: CEM/CEBRAP, elaborado a partir de dados do Censo IBGE de 2000 e de cartografia digitalizada pela PMSP, SEHAB. In:
PREFEITURA DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. Plano Municipal de Habitação: versão para debate. Secretaria da Habitação e
Desenvolvimento Urbano. São Paulo, agosto de 2003.
65
Loteamentos clandestinos ou irregulares são loteamentos que não foram aprovados na Prefeitura Municipal ou não estão de
acordo com a legislação vigente.
66
A definição utilizada nesse estudo segue o Plano Municipal de Habitação, 2003, que classifica como núcleos habitacionais
precários, aqueles formados a partir da ocupação irregular de terrenos públicos ou particulares, que se apresentam associados o
problema da posse da terra com elevado grau de carências: de infra-estrutura urbana, serviços públicos e renda pessoal dos
moradores.
76
Para o caso de loteamentos precários, os dados relativos ao saneamento ambiental são os que
denotam maior desigualdade, se tomarmos como parâmetro os demais loteamentos irregulares no restante
do Município. Os domicílios com coleta de esgoto chegam a atingir apenas 30% e 60% dos domicílios em
Billings e Guarapiranga respectivamente, enquanto a média dos loteamentos irregulares no Município de São
Paulo chega em 80,98%.
TABELA 6: Infraestrutura de saneamento em loteamentos irregulares nas áreas de mananciais, por bacia
Município de São Paulo, 2000.
Loteamentos em
Total de Loteamentos
Bacia Guarapiranga Bacia Billings Mananciais
Irregulares
(Billings/Guarapiranga)
INDICADORES*
Números Números números Números
Números números Números Números
relativos relativos relativos relativos
absolutos absolutos absolutos absolutos
(em %) (em %) (em %) (em %)
Domicílios 39.135 29.411 68.546 496.072
Domicílios com
37.036 94,64 24.305 82,64 61.341 89,49 477.602 96,28
água
Domicílios com
24.863 63,53 8.947 30,42 33.810 49,32 401.717 80,98
esgoto
Domicílios com
36.486 93,23 27.120 92,21 63.607 92,79 476.781 96,11
lixo
* A produção dos indicadores relativos aos domicílios foi realizada utilizando como denominador o total de domicílios em
loteamentos e, no caso de indicadores de população, o total de pessoas residentes em loteamentos. Em ambos os casos não foram
excluídas as informações relativas às favelas no interior de loteamentos, pois em números relativos, essa diferença não é
significativa. Fonte: CEM/CEBRAP, elaborado a partir de dados do Censo IBGE de 2000 e de cartografia digitalizada pela PMSP,
SEHAB (apud PMSP, Plano Municipal de Habitação, 2003).
Conforme podemos perceber na tabela abaixo, nos loteamentos irregulares ocorre uma
porcentagem alta de domicílios que recebem até 3 salários mínimos em Guarapiranga e Billings
respectivamente 61,93% e 60,61%. Estes valores são superiores à média dos demais loteamentos
irregulares de São Paulo (49,54%) e do total dos domicílios do Município de São Paulo (21,92). Isso mostra
que os loteamentos que estamos tratando na presente Tese são loteamentos irregulares de baixa renda.
77
TABELA 7: Domicílios por Faixa de Rendimento, em salários mínimos. Município de São Paulo, Total
loteamentos irregulares do Município. Loteamentos irregulares em área de Manancial, 2000.
>10 a
Unidades Territoriais Domicílios até 3 (%) >3 a 5 (%) >5 a 10 (%) (%) >20 (%)
20
MSP (*) 2.995.258 656.517 21,92 472.989 15,79 778.395 25,99 555.038 18,53 532.319 17,77
Loteamentos
496.072 245758 49,54 101150 20,39 94169 18,98 35365 7,13 19630 3,96
irregulares no MSP
Loteamentos
irregulares em 39135 24236 61,93 8308 21,23 5500 14,05 907 2,32 184 0,47
Guarapiranga
Loteamento
29411 17826 60,61 6518 22,16 4279 14,55 673 2,29 115 0,39
irregulares em Billings
Fonte: IBGE - Censo 2000. Elaboração: Sempla/Dipro. (apud PMSP, Plano Municipal de Habitação, 2003).
(*) Total de domicílios MSP: Base Amostra do Censo 2000, excluídos 41422 domicílios sem resposta para este dado.
* A produção dos indicadores relativos aos domicílios foi realizada utilizando como denominador o total de domicílios em
loteamentos e, no caso de indicadores de população, o total de pessoas residentes em loteamentos. Em ambos os casos não foram
excluídas as informações relativas às favelas no interior de loteamentos, pois em números relativos, essa diferença não é
significativa. Fonte:CEM/CEBRAP, elaborado a partir de dados do Censo IBGE de 2000 e de cartografia digitalizada pela
PMSP/SEHAB.
Taschner (2003), ao estudar as favelas paulistanas, afirma que a maioria encontra-se no quadrante
sul da cidade, justamente nas áreas de mananciais: “esta proporção, que era de mais de 40% em 1980,
desce ligeiramente para 37% em 1993/94, pelo incremento de invasões no quadrante norte, na região da
Cantareira” (também área de mananciais). Além disso, a autora alerta que as favelas estão situadas em: “as
margens das vias hídricas (59% em 1993), perto de vias férreas (1,6% em 1993) e vias expressas, em
terrenos de alta declividade (30%), sujeitos a enchentes e à erosão acentuada. Trata-se assim de uma
situação de risco para os próprios favelados, como para a população como um todo, pela contaminação
dos mananciais e destruição da área de proteção” (TASCHNER, 2003, p.36).
As formulações de Taschner (2000) são semelhantes às de Alves (2007) quando procura associar
a localização das favelas às áreas de risco ambiental.
O estudo do PMSP/SEHAB (2003) a partir dos dados do Censo IBGE 2000, com dados mais
recentes, afirmam que as áreas de mananciais na porção sul possuem 51.825 domicílios favelados
representando um total de 17,75% do total de domicílios em favelas do Município de São Paulo. Apesar da
redução relativa do número de domicílios em favelas em comparação com o Município, as áreas de
manancial apresentam 48,35% de sua população em situação de inadequação habitacional quando
somados os números da população moradora em loteamentos irregulares e favelas com relação à
população total da região dos mananciais. Considerando que 971.711 são moradores nas bacias
Guarapiranga e Billings segundo o Censo IBGE/2000, e contabilizando 204.435 moradores em favela,
chega-se a 21% da população de mananciais morando em favelas. Se considerarmos a população do
Município de São Paulo (10.896.639 habitantes, Censo 2000) em relação à população favelada no
Município teremos que 10,65% dos moradores de São Paulo encontram-se em favelas, isto é, a metade do
que ocorre em mananciais.
78
TABELA 8: População e domicílios das favelas localizadas nas bacias Guarapiranga e Billings
(áreas de mananciais) e no Município de São Paulo, 2000.
Fonte: CEM/CEBRAP, elaborado a partir dos dados do Censo IBGE 2000 e de cartografia digitalizada
pela PMSP (mananciais) e CEM/PMSP (favelas). (1) com relação ao total de favelas no Município de São Paulo.
Segundo Taschner (2003), essa localização tem sérias consequências para a cidade:
“(i) erosão, desmatamento dos morros ao norte; (ii) poluição da área da Cantareira; (iii)
degradação dos mananciais ao sul, dado que 70% das unidades domiciliares faveladas não
estão ligadas à rede de esgoto; (iv) diminuição da possibilidade de captação de água
subterrânea nas bordas da represa; (v) aumento do custo de tratamento de água;
(vi)dificuldade de uso da represa Billings para abastecimento e energia” (TASCHNER, 2003,
p.36).
Com relação à faixa etária dos moradores das favelas situadas em áreas de mananciais esta não se
diferencia da média das favelas de São Paulo, mas se compararmos com a média do município veremos
uma concentração de 36,08% na faixa etária infanto-juvenil contra 24,85% na média do município na
mesma faixa etária. Ao mesmo tempo teremos uma diminuição da porcentagem de idosos em relação ao
total do Município. Esses dados revelam a forte demanda por equipamentos educacionais, culturais e
sociais para crianças e adolescentes nas áreas de favelas do Município como um todo.
Município de São Paulo 10 434 252 2592829 24,85 7170643 68,72 670780 6,43
População favelada no MSP 1 160 597 415397 35,79 725603 62,53 19597 1,69
População favelada em Billings
204 435 73749 36,08 127748 62,49 2938 1,44
e Guarapiranga
População favelada em Billings 107 800 38846 36,03 67465 62,58 1489 1,38
População favelada em
96 635 34903 36,11 60283 62,38 1449 1,50
Guarapiranga
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000
Elaboração: Secretaria Municipal de Planejamento Urbano/Sempla - Departamento de Estatística e
Produção de informação/Dipro / Plano Municipal de Habitação, SEHAB/CEM, 2003.
Formatação: Simone Polli.
Com relação à infra-estrutura, podemos perceber que a média das favelas do Município apresenta
índices melhores do que as favelas em área de manancial. Esse quadro é paradoxal, porque as áreas de
mananciais são as que deveriam concentrar investimentos em infra-estrutura, se o desejo é a manutenção
da qualidade das águas. Cabe lembrar que o “Programa Mananciais” vem executando infraestrutura de
79
saneamento nas favelas da região, no entanto, como o programa está em andamento, permanece esse
quadro:
TABELA 10: Infraestrutura de saneamento das favelas localizadas nas bacias Guarapiranga e Billings (áreas
de mananciais) e no Município de São Paulo, 2000.
Favelas Guarapiranga Favelas no Município
Favelas Guarapiranga Favelas Billings
e Billings de São Paulo
INDICADORES Números Números Números Números
Números Números números Números
relativos relativos relativos relativos
absolutos absolutos absolutos absolutos
(%) (%) (%) (%)
Com água 22.298 91,84 26.567 96,44 48.865 94,29 280.270 95,99
Com esgoto 14.140 58,24 7.428 26,96 21.568 41,62 143.585 49,18
Com lixo 19.906 81,99 21.938 79,64 41.843 80,74 239.335 81,97
Fonte: CEM/CEBRAP, elaborado a partir dos dados do Censo IBGE 2000 e de cartografia digitalizada pela PMSP (mananciais) e
CEM/PMSP (favelas).
MSP (*) 2.995.258 656.517 21,92 472.989 15,79 778.395 25,99 555.038 18,53 532.319 17,77
Favelas no
291983 213826 73,23 52667 18,04 22299 7,64 2753 0,94 438 0,15
MSP
Favelas
24278 18212 75,01 4224 17,4 1632 6,72 182 0,75 28 0,12
Guarapiranga
Favelas
27547 18866 68,49 5815 21,11 2520 9,15 279 1,01 67 0,24
Billings
Fonte: IBGE - Censo 2000. Elaboração: Sempla/Dipro. Tabulação: Simone Polli.
(*)Total de domicílios MSP : Base Amostra do Censo 2000, excluídos 41422 domicílios sem resposta para este dado.
Cabe lembrar que além dos loteamentos irregulares e as favelas, a região dos mananciais ainda
contabiliza, dentro das precariedades habitacionais, as áreas consideradas de risco por solapamento ou
deslizamento. Essas foram alvo de um plano emergencial proposto como termo de ajuste de conduta entre
a Prefeitura e o Ministério Público em 1997. Para sua elaboração, a Prefeitura de São Paulo contratou os
serviços do Instituto de Pesquisa Tecnológica - IPT e da Universidade Estadual Paulista - UNESP para
elaborar um mapeamento e análise das áreas de risco do Município. Esse plano tem subsidiado Ações Civis
Públicas, bem como orientado a ação da SEHAB a fim de priorizar as áreas que apresentam situações
consideradas de risco iminente.
Atualmente observa-se a intensa atuação do Estado em áreas de mananciais (que será detalhada
no próximo capítulo), o que tem provocado uma dinamização das lutas e conflitos anteriormente não
evidenciados.
Será descrito a seguir como é o sistema de abastecimento público de água da Grande São Paulo
atualmente e qual a contribuição das represas Guarapiranga e Billings para o conjunto dos sistemas de
recursos hídricos. A SABESP é a empresa de economia mista com a participação acionária do Governo do
Estado de São Paulo e de acionistas privados e municípais, que gerencia o sistema de abastecimento,
coleta e tratamento de água e esgoto em São Paulo.
A região sul possui importância fundamental para o abastecimento público de água da RMSP: “O
Sistema Guarapiranga-Billings, formado pela Represa Guarapiranga pela reversão das águas do Rio Capivari
e do Braço Taquacetuba da Billings, abastece quase 4 milhões de pessoas, a grande maioria residente na
porção sudoeste da capital paulista.” (WHATELY, 2008a, p. 141). Isso significa que a porção de São Paulo
67
Para maiores detalhes ver a próxima seção 2.5: Histórico da utilização das águas em São Paulo: os conflitos entre o
abastecimento e a produção de energia elétrica.
81
que concentra as classes de renda mais altas depende do sistema Guarapiranga/Billings para o seu
abastecimento de água. Esse fato sugere porque a questão do saneamento e proteção dos mananciais tem
aparecido com freqüência na mídia e no debate público.
Guarulhos, Mogi das Cruzes, Diadema e Mauá)68. O abastecimento público de São Paulo é fornecido pelo
sistema Cantareira, Guarapiranga e colaborações de determinados braços da Billings.
O sistema Cantareira é o maior da RMSP; a água produzida abastece 8,8 milhões de pessoas das
zonas norte, central, parte da leste e oeste da capital e dos municípios de Franco da Rocha, Francisco
Morato, Caieiras, Osasco, Carapicuíba e São Caetano do Sul e parte dos municípios de Guarulhos, Barueri,
Taboão da Serra e Santo André”69.
O sistema Guarapiranga é o segundo maior da RMSP “abastece 3,8 milhões de pessoas residentes
na zona sudoeste da capital paulista, incluindo as regiões de Santo Amaro, Morumbi, Pinheiros e Butantã. É
também o mais ameaçado entre todos os que abastecem a RMSP. A população que vive ao redor da
represa aumentou em quase 40% nos últimos anos (1991 e 2000) e é estimada em 800 mil pessoas70”.
Sua água é proveniente da represa Guarapiranga (formada pelos rios Embu-Mirim, Embu-Guaçu, Santa Rita,
Vermelho, Ribeirão Itaim, Capivari e Parelheiros) e da Represa Billings (Rio Taquacetuba).
As contribuições da Billings são pontuais, sendo utilizados alguns braços em que suas águas não
estão tão poluídas para alimentar o Guarapiranga ou, no caso do Rio Grande, braço independente que
abastece 1,6 milhão de pessoas em Diadema, São Bernardo do Campo e parte de Santo André.
No entanto, todo esse sistema vem operando em sua capacidade máxima. Segundo ambientalistas
que militam na questão da água (Marussia Whately, Carlos Bocuhy71), as bacias de contribuição para o
abastecimento público de São Paulo estão todas sendo utilizadas: “O sistema está trabalhando sem folga,
no limite. Gradualmente, estaremos entrando em colapso”, afirma Bocuhy, apesar de a Sabesp não
reconhecer publicamente esse fato.
Segundo ele, a água vem se tornando escassa em várias bacias, devido à “perda de água no
sistema” ou “falta de racionalização de seu uso”. A Região Metropolitana de São Paulo seria um típico caso:
68
Site da Sabesp: http://74.125.47.132/search?q=cache:0NgVAUjp9vAJ:www.sabesp.com.br/CalandraWeb/
CalandraRedirect/%3Ftemp%3D4%26proj%3Dsabesp%26pub%3DT%26db%3D%26docid%3DCC8BB4856DE5633B832571AE005B
0E26+billings+abastece&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acessado em agosto de 2009.
69
Dados extraídos de pesquisas do Instituto Socioambiental: http://www.mananciais.org.br/site/mananciais_rmsp/cantareira
Acessado em agosto de 2009.
70
Dados extraídos de pesquisas do Instituto Socioambiental: http://www.mananciais.org.br/site/mananciais_rmsp/guarapiranga
Acessado em agosto de 2009.
71
http://www.ida.org.br/artigos/38-recursoshidricos/138-ambientalistas-dizem-que-sao-paulo-vai-ter-escassez-de-agua-em-10-
anos. Acessado em 15/01/2010.
83
O Instituto Socioambiental (ISA)73 avalia que atualmente a má gestão dos recursos hídricos resulta
na destruição das fontes de água, sem contar as taxas de desperdício e a ocupação urbana de suas
margens:
“(...) a baixa disponibilidade hídrica da região – localizada próxima às cabeceiras do Rio Tietê
– foi acentuada ao longo de sua história em função da poluição e da destruição de seus
mananciais, entre eles os rios Tietê, Pinheiros, Ipiranga, Anhangabaú e Tamanduateí. Hoje a
região é obrigada a importar água e a investir em sistemas de tratamento avançado para
transformar água de péssima qualidade em água potável74”.
O trecho acima deixa claro que os problemas relacionados ao abastecimento público de água ou a
chamada “escassez de água” não são de hoje. Verifica-se que, desde 1928, a represa Guarapiranga e,
desde 1958, a represa Billings foram inseridas no sistema de abastecimento público devido às constantes
“crises” do sistema. Veremos abaixo um histórico dos usos da água e, ao mesmo tempo, os momentos de
crise no abastecimento que a capital paulistana passou ao longo do tempo.
72
Disponível em: http://www.mananciais.org.br/site/mananciais_rmsp/historico Acessado em 19/08/2009.
73
ONG que elaborou em São Paulo estudos sobre a região dos mananciais por mais de 10 anos.
74
Disponível em: http://www.mananciais.org.br/site/mananciais_rmsp. Acessado em agosto de 2009.
84
85
Procurar-se-á compreender nesta seção o histórico de constituição dos mananciais da região sul
de São Paulo, a fim de perceber que os conflitos já vêm de longa data e não decorrem de uma causa única,
escassez dos recursos, mas se estabelecem pelo uso contraditório das represas. Observar-se-á que as
mudanças na forma de apropriação das represas vão desde a sua construção, destinada à produção de
energia, até o discurso da crise do abastecimento e, consequentemente, sua apropriação como manancial
de abastecimento público. Registrar-se-á-se ainda as forças para a retomada do bombeamento do Rio
Pinheiros na Billings. As águas na cidade, ao longo do tempo, foram usadas por setores da sociedade para
as mais diversas finalidades: irrigação do cinturão agrícola; dessedentação dos animais; diluir efluentes;
abastecimento público; movimentação das turbinas para geração de energia elétrica; base de recreação e
lazer para a população, bem como empreendimentos turísticos. No entanto, um uso pode comprometer a
permanência ou inviabilizar os demais usos. Desta forma entram em disputa interesses diferentes que
procuram garantir o seu uso de forma preferencial. Efetivamente, os diferentes sujeitos sociais procuram
legitimar a sua forma de uso do território. Nessa luta classificatória (pela legitimação da forma de utilização
dos recursos hídricos) entram em disputa distintas lógicas de apropriação do território. Destacam-se, nesse
caso, as formas dominantes que disputam as águas para abastecimento e para produção de energia.
Abaixo, a partir de literatura especializada no tema, analisamos o histórico dos usos da água em
meio urbano em São Paulo, observando a prioridade de uso das represas.
Desde a concessão, em 1927, até 1989, a empresa de capital misto anglo-canadense The São
Paulo Tramwa Light and Power Co que construiu e explorou as represas Billings e Guarapiranga a fim de ter
água em quantidade suficiente para movimentar as turbinas na produção de energia elétrica. Esse uso foi
permeado por uma série de conflitos que resultaram na quebra dos contratos com a Light.
A Light representou um forte poder na cidade de São Paulo. Presente na cidade desde 1899, a
empresa implantou os bondes elétricos, conquistando, ao longo do tempo, o monopólio do fornecimento
dos serviços públicos de energia elétrica, telefonia e transportes públicos. O crescimento da indústria
paulistana ampliou o mercado consumidor de energia elétrica, justificando essa orientação que foi adotada
como prioritária.
Para tanto, entre 1906 e 1908 foi represado o rio Guarapiranga, na cabeceira do rio Pinheiros para
a construção da Represa do Guarapiranga. O lago ficou com um perímetro de 85 km, inundando uma área
de 34 km² (3.400 hectares). Também nessa época foram construídas usinas hidrelétricas, como Edgard de
Souza e Rasgão, localizadas no Rio Tietê, em Santana do Parnaíba, a 40 quilômetros da capital.
O Estado implementava uma política de concessões de serviços públicos com grandes empresas
internacionais. A Light, por sua vez, controlando esses serviços, exercia forte poder sobre as políticas
públicas para ter seus projetos aprovados. Durante a década de 1920, seu investimento prioritário foi a
86
obtenção da concessão do Rio Pinheiros, afluente do Tietê, para reverter seu curso e alimentar uma grande
represa artificial – a Billings – no alto da serra. A concessão de direitos foi obtida pela Lei n° 2249 de
27/12/1927. Nesse período a empresa financiou o projeto de construção da usina Henry Borden,
aproveitando a queda natural da escarpa da Serra do Mar.
“A produção de eletricidade, inicialmente voltada à demanda residencial e aos próprios
bondes, acabou favorecendo o desenvolvimento industrial. Em 1901 foi inaugurada a primeira
usina hidrelétrica de porte no Rio Tietê, em Santana do Parnaíba, mas a demanda, sempre
crescendo alem das previsões, exigiria a construção de uma série de outras usinas,
barragens e represas (como a Guarapiranga, criada em 1907) para garantir a vazão do rio –
comprometendo progressivamente o sistema hídrico paulistano” (ACKEL & CAMPOS, 2002,
p. 26).
Seabra (1987) assinala que como os rios fizeram parte do processo de industrialização em São
Paulo, sua ocupação e retificação não deveriam ser tratadas apenas como obras imprescendíveis de
infraestrutura urbana, mas como instrumentos utilizados na produção capitalista da cidade:
“Em 1926 entrava em funcionamento o primeiro grupo gerador de Cubatão com uma potência
de 44. 347 KW, bastante considerável para época” (Seabra, 1987, p. 158 apud Historia da
Energia n° 2 Eletropaulo). (...) a vida dos rios só teve algo a ver com a vida dos homens, ou a
vida dos homens só teve algo a ver com a vida dos rios, quando começou-lhe a ser atribuída
a condição de recurso natural” (SEABRA, 1987, p. 12).
Em 1928, agrava-se a falta de água e a represa Guarapiranga passou a ser utilizada para
abastecimento. Um ano depois, ocorreu grande enchente em São Paulo, das maiores inundações de sua
história, com o transbordamento dos rios Tietê e Pinheiros, que foi atribuída por muitos pesquisadores
(SEABRA, 1987) à atuação da companhia com as usinas:
“Vários indícios que me conduziram a pensar a „enchente de 1929‟ como uma estratégia de
valorização dos investimentos da Light. A abertura das represas, por si só, bastaria para
colocar o problema da “enchente” de 1929 em seus termos reais, pois que se tratou de uma
inundação que serviu aos interesses do Grupo Light estabelecidos no Pinheiros. As tragédias
e os problemas decorrentes desse fato me levam mais uma vez a pensar no significado que
tem a propriedade da terra nos marcos deste sistema econômico pois, afinal, era o início de
uma luta pela propriedade das terras das várzeas. Ficava a constatação de que a concessão
abrira possibilidades de negociações e de transações muito complexas que envolviam já
alguns níveis da administração pública e mesmo da “inteligência”, haja visto a participação da
Escola Politécnica. A questão que se abria para a Companhia Light, a partir de então, era mais
uma vez, a de transformar um monopólio de direito em monopólio de fato sobre as terras do
vale do Pinheiros” (op.cit., 173-193).
No entanto, segundo a empresa, as obras da represa Billings foram realizadas para o aumento da
capacidade de geração da Usina Henry Borden, não considerando os interesses imobiliários e a degradação
produzida nas represas:
“A partir década de 30, para o aumento da capacidade de geração da Usina Henry Borden,
foram realizadas as obras de retificação e reversão do rio Pinheiros, a formação do
reservatório Billings, a construção das usinas elevatórias de Pedreira e de Traição e da
barragem reguladora Billings-Pedras. Foi construída no Rio Tietê a barragem de Pirapora,
formando o reservatório de Pirapora. Na confluência dos rios Pinheiros e Tietê foi construída a
Estrutura de Retiro com a finalidade de separar as águas dos rios em caso de cheias. O
reservatório Guarapiranga deixou de ter a função de regular a vazão do rio Tietê e passou a
ser usado para o abastecimento de água e o controle de cheia de sua própria bacia. A seção
87
Em 1934, o governo brasileiro decreta o Código das Águas, que prevê a utilização prioritária dos
rios e bacias hidrográficas do País para a geração de energia elétrica. Seabra (1987) explica que a Light and
Power detinha poder também nas esferas federais e exerceu lobbies junto ao congresso, fazendo que essa
decisão fosse favorável aos seus interesses.
Na década de 1940, a Light São Paulo também foi responsável pela retificação do Rio Tietê, Rio
Pinheiros e pela operação de reversão do rio Pinheiros, para levar água do Tietê para a Billings e aumentar a
capacidade de geração de energia da Usina Henry Borden. Em 1942 terminou a construção da represa
Billings e a reversão do rio Pinheiros.
A ocupação predatória das represas está relacionada com a reversão do rio Pinheiros. A companhia
Light executou a mudança do curso do rio para alimentar as turbinas da usina de Cubatão. Em nome da
geração de energia, o rio recebeu toda a poluição proveniente do Tietê fazendo com que toda a represa
Billings fosse também contaminada, afetando, além da água, toda a fauna, flora e os que dependiam das
cadeias tróficas associadas às atividades da represa.
A empresa também começou a investir em outros setores, se associando ao ramo imobiliário a fim
de empreender novos projetos:
“Em 1956, a holding Brazilian Traction Light and Power Co. Ltd. começa a atuar em inúmeros
ramos, dentre os quais o imobiliário, hoteleiro, serviços de engenharia, agropecuária, entre
outros, e muda de nome, passando-se a chamar Brascan - Brasil Canadá Ltda. A empresa
São Paulo Tramway, Light and Power Company se funde com a Rio de Janeiro Tramway,
Light and Power Company, numa única razão social, agora chamada de Light – Serviços de
76
Eletricidade S/A, vinculada à Brascan Ltda ”.
Em 1958, ocorre uma nova crise de abastecimento na cidade e se inicia a captação das águas do
braço do Rio Grande, na represa Billings. Na década de 1970, a poluição das águas dos rios Tietê e
Pinheiros provoca as primeiras florações de algas na Billings. Em 1973, é criado o Plano Nacional de
Saneamento (PLANASA), com a missão de elaborar um planejamento de metas até 1980.
“Em 1976 houve uma cheia excepcional. O nível da represa subiu tanto que foi preciso
reforçar a barragem com sacos de areia, bem como reformular o sistema de extravasamento
77
de água para que não houvesse transbordamento e inundação da região de Socorro ”.
Ancona (2000) esclarece como a estratégia de uso múltiplo mostrava-se incompatível com o que
estabelecia a Lei dos Mananciais:
“Enquanto o PMDI e a LPM definiam o manancial para abastecimento público, restringindo sua
ocupação, mantinha-se em pleno vigor a vinculação da represa para a produção de energia e
o bombeamento das águas poluídas de toda a área metropolitana, que a transformavam numa
grande lagoa de tratamento de esgotos” (ANCONA, 2000, p. 284).
75
O histórico da empresa: retirado de http://www.emae.com.br/, acessado em agosto de 2009.
76
Idem.
77
http://www.mananciais.org.br/site/mananciais_rmsp/guarapiranga/guarahist. Acessado em 13/08/2009.
88
A baixa da qualidade ambiental, aliada à legislação restritiva do uso dos mananciais (1975),
provocou uma queda no preço da terra na região, sendo este um dos fatores que determinou, entre outros,
a ocupação ilegal por moradias precárias. Na década de 1970, houve uma produção de loteamentos
clandestinos bastante ampla, sem a devida fiscalização das áreas:
“A ausência da fiscalização estadual e municipal, a falta de uma destinação imediata para aquelas
terras, a ausência de ofertas alternativas de habitação popular, completaram os elementos de um
quadro que poderia ser encontrado em todas as grandes cidades do país, opondo a qualidade
ambiental ao assentamento residencial pobre” (MARICATO, 1997, p. 64).
Em 1981, o governo do Estado de São Paulo adquiriu a Light paulista e criou a sua própria empresa
de energia, com o nome de Eletropaulo – Eletricidade de São Paulo. Assim, a empresa canadense deixou de
atuar na cidade nesse ramo. A companhia foi novamente privatizada, em 1995, na gestão de Mário Covas e
cindida em quatro empresas independentes: EMAE – Empresa Metropolitana de Águas e Energia S.A.,
Eletropaulo Metropolitana – Eletricidade de São Paulo S.A., EBE – Empresa Bandeirante de Energia S.A e a
EPTE – Empresa Paulista de Transmissão de Energia Elétrica S.A.
Somente em 1989 é que a Billings foi definida pela Constituição Estadual como manancial de
abastecimento público, dada a dificuldade de represar as águas de bacias distantes:
“A Constituição de São Paulo assegura o princípio de preservação e recuperação dos
recursos hídricos superficiais e subterrâneos, com prioridade ao abastecimento público.
Estabelece ainda o prazo de três anos para a paralisação total do bombeamento das águas do
78
Tietê para a Billings ”.
A exploração prioritária das águas das represas para energia teve sérias consequências, sendo a
principal a poluição e degradação devido à reversão do Rio Pinheiros. Esse mecanismo, combatido por
vários especialistas, ainda continua latente. Martins (2006) cita os conflitos entre os ambientalistas e os
industriais do Pólo Petroquímico de Cubatão que reivindicaram o retorno da reversão do rio Tietê, logo após
a resolução que restringia o bombeamento para situações emergenciais, em 1992, proposto pela Secretaria
Estadual do Meio Ambiente. Em 1993 o Consema – Conselho Estadual do Meio Ambiente de São Paulo –
encaminhou uma moção junto ao governo estadual a fim de restringir definitivamente o bombeamento.
78
http://www.socioambiental.org/esp/agua/pgn/grafico.htm. Acessado em agosto de 2009.
79
www.mananciais.org.br/historicodasaguas/guarapiranga. Acessado em agosto de 2009.
89
Em 1995, por pressão das indústrias de Cubatão, foi retomado o bombeamento Tietê-Billings, mas
restrito à ameaça de enchente. Em 1997, foi aprovada a lei de proteção e recuperação de mananciais. Em
1999, o projeto Tietê contou com interceptadores, coletores-tronco e algumas estações de tratamento de
esgoto.
Em 2000, a Billings passou a ser utilizada para o abastecimento de São Paulo. O governo estadual
apresentou proposta de retomar o bombeamento da represa para aumentar a geração de energia na Usina
Henry Borden, por meio da despoluição do rio Pinheiros com a tecnologia de flotação.
No entanto, conforme afirma Martins (2006, p. 50): “Atualmente, a reversão ainda tem sido
utilizada, prejudicando muito a qualidade da água da represa, não só devido à poluição dos rios Tiete e
Pinheiros, como também pela movimentação do lodo tóxico sedimentado no fundo do reservatório”.
A EMAE80, hoje, é a responsável pelas operações de geração de energia elétrica, antes conduzidas
pela Eletropaulo. Por meio da Resolução nº 72, de 25/03/98, da Agência Nacional de Energia Elétrica –
ANEEL lhe foram transferidos os direitos de exploração de Serviços Públicos de Energia Elétrica.
Atualmente a empresa está executando obras para “melhoria da qualidade das águas do rio
Pinheiros, que quando totalmente implantadas, deverão aumentar a disponibilidade hídrica do reservatório
Billings e o aumento da capacidade de geração na usina Henry Borden”, afirma a EMAE. O sistema
experimental aplicado para a despoluição, chamado de flotação, foi questionado pelo Ministério Público, por
meio de uma ACP, e a EMAE foi obrigada a suspender os experimentos. Apesar de marginal, ainda
permanecem os interesses ligados à geração de energia por Henry Borden.
Todo esse histórico vem mostrar que as políticas implementadas de uso múltiplo na gestão das
represas não foram compatíveis entre si. Como analisou Moreira (1990):
“Do lado do abastecimento de água a política pública pretende proteger todos os recursos
hídricos utilizáveis para abastecimento da metrópole paulistana. É instrumentada,
principalmente, pela legislação de proteção dos mananciais, que viabiliza usos múltiplos e
alternativos dos recursos hídricos da bacia do Alto Tietê. De fato, se esses recursos fossem
poluídos não serviriam ao abastecimento de água. Do lado da energia elétrica, a política
pública preserva a reversão dos rios Tietê e Pinheiros, e o recalque das águas poluídas do rio
Pinheiros para a represa Billings, tendo por objetivo a geração de energia elétrica nas usinas
da Eletropaulo em Cubatão. É instrumentada pela operação balanceada, ou seja, pela decisão
do Comitê do Acordo do Ministério de Minas e Energia com o Governo do Estado de São
Paulo, organismo gestor dos recursos hídricos da bacia do Alto Tietê, que reparte a carga
poluidora dos rios Pinheiros e Tietê entre as represas Billings e Pirapora. Essa política
compromete, pelo bombeamento das águas poluídas do rio Pinheiros, um dos mananciais
protegidos por lei - a represa Billings. Do lado do tratamento de esgotos a política pública
prevê o despejo de efluentes de estação de tratamento de esgotos, da região do ABC, sobre
um dos mananciais abrangidos pela legislação de proteção dos mananciais - a represa
Billings. Essa política é instrumentada pelo projeto e pelas obras do controvertido Sanegram”
(MOREIRA, 1990, p.4).
Conforme enfatiza o autor, esse tipo de política foi determinado por interesses específicos:
80
EMAE – A Empresa Metropolitana de Águas e Energia S/A é uma empresa de capital aberto, cuja principal atividade é a geração
de energia. Seu controle acionário pertence ao governo do Estado de São Paulo. A EMAE possui vários tipos de usinas:
hidrelétricas, elevatórias e uma termelétrica, estando classificada entre as 25 maiores estatais brasileiras, por patrimônio.
http://74.125.113.132/search?q=cache:Wifu2-VNjScJ:www.emae.com.br/noticias/Term_Piratiniga/linknovapira.html+controle
+acionário+emae&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br . Acessado em 10/09/2009.
90
“E a quem servem essas políticas? Não servem ao sistema de abastecimento de água, que,
como vimos, necessita de todos os recursos hídricos da Região Metropolitana ainda não
comprometidos pela poluição. Também não servem às populações do entorno das represas
Billings e Pirapora ansiosas pela despoluição dessas represas. Mas servem ao sistema
produtor de energia elétrica, que tem interesse na maior disponibilidade possível de recursos
hídricos, para geração de energia elétrica em Cubatão” (op.cit., p.5).
Assim, a questão dos mananciais metropolitanos, conforme pesquisou Moreira (1990) pode ser
assim sintetizada:
“(...) na disputa entre o sistema de abastecimento de água da Grande São Paulo e o sistema
interligado de energia elétrica da região Sudeste do Brasil, da bacia do Alto Tietê. Essa disputa
ocorre em um ecossistema urbanizado, com a perspectiva de escassez de recursos hídricos
para abastecimento de água, e com a tendência para expansão urbana na direção de
mananciais” (op.cit., p 26).
O autor ainda destaca que se a questão fosse meramente técnica poder-se-ia investir em redes de
infra-estrutura urbana sanitária para a despoluição dos recursos hídricos e substituir as fontes de energia
elétrica que abastecem São Paulo. Segundo Moreira (1990, p. 11), mais do que uma postura técnica,
questões políticas e interesses estão envolvidos nesse jogo: “a postura tecnicista permeou o governo
Montoro, mas poucas iniciativas foram feitas para concretizar qualquer modificação. O autor ainda analisa:
“(...) os recursos hídricos são um meio de consumo coletivo e por tal condição participam no processo de
acumulação capitalista, ganhando acima de tudo, um viés político na disputa entre capital e trabalho” (op.
cit., p. 26).
Sobre a chamada política de preservação dos mananciais, a partir da ótica do gerenciamento dos
recursos hídricos, Moreira (1990) salienta uma série de questionamentos: (i) a política pública de proteção
dos mananciais não resolve a disputa pelos recursos hídricos da bacia do Alto Tietê, mas interfere nessa
disputa. De fato, essa política pública não decide que partes dos recursos hídricos em questão serão
destinadas ao abastecimento de água, à diluição de esgotos, à geração de energia elétrica, e a outros usos.
Mas essa política pública evita que os mananciais sejam poluídos, e assim garante a presença do sistema
de abastecimento de água como disputante desses recursos hídricos: (ii) ao mesmo tempo em que o
Estado de São Paulo optou pela proteção dos mananciais, assumiu uma política de tratamento de esgotos -
SANEGRAN - não totalmente compatível com a proteção dos mananciais; (iii) por muito tempo, a política
pública resumiu-se a disciplinar as atividades de terceiros no perímetro definido como de proteção dos
mananciais e uma política de controle do bombeamento para a represa Billings.
Diferentemente do que prega o senso comum de que a poluição das águas das represas decorre
essencialmente do esgoto doméstico proveniente das ocupações irregulares em área de manancial, pelo
histórico acima, pode-se perceber que parte da poluição das águas da represa decorre de decisões
políticas, relacionadas ao processo de exploração das águas com fins energéticos pela Companhia Light, a
que as represas foram submetidas desde sua criação até 1989.
E também é necessário avaliar a contaminação por esgotos advindos do Rio Pinheiros e Tietê que
exercem um papel preponderante nesse sistema, nas cargas de fósforo e outras substâncias poluentes
encontradas atualmente na represa. Reportagens jornalísticas da série Rios de São Paulo denunciam que
mesmo a região da Faria Lima, parte mais nobre, “com o metro quadrado mais caro da cidade de São
91
Paulo”, não tem seu esgoto coletado. Na região Sul de São Paulo, a rede de esgoto não foi concluída pela
Sabesp, que precisa fazer a interligação entre a rede coletora e o sistema-tronco que o levará para a estação
de tratamento em Barueri. Declarações de Monica Ricittelli81, gerente da estação elevatória de Pomar
(Sabesp), responsável pelo bombeamento do esgoto para Barueri, confirmam que a estação capta apenas
2000 l/s e tem capacidade para funcionar com 11000 l/s, isto é, opera com menos de 20% de sua
capacidade. Essa subutilização decorre da falta de interligação da rede-tronco e das residências na rede
coletora de esgotos implantada, segundo seu depoimento.
E ainda, apesar de proibido pela Constituição Estadual, o próprio Estado realiza experimentos no Rio
Pinheiros, por meio do sistema de flotação, a fim de encontrar alternativas para viabilizar o bombeamento de
mais água para Billings o que garantiria o funcionamento de Henry Borden. Segundo Ivanildo Hespanhol,
professor de Engenharia Hidráulica da USP, “a flotação e a reversão do Rio Pinheiros representam os
principais riscos à represa e comprometimento do abastecimento”85.
81
Repórter Sabina Simonato.“Rios de São Paulo: Esgoto da região nobre de São Paulo não é tratado”.SP TV, 26/11/2009.
Informação verbal, em entrevista a Monica Ricciteli, gerente da Estação Elevatória de Esgoto Pomar.
http://sptv.globo.com/Jornalismo/SPTV/0,,MUL1393404-16581-263,00-
ESGOTO+DA+CAPITAL+NAO+E+TODO+TRATADO.html. Acessado em 12/12/2009.
82
Reportagens Rios de São Paulo. Prefeitos discutem coleta de esgoto. 20 de Outubro de 2009. Disponível
em: http://sptv.globo.com/Jornalismo/SPTV/0,,MUL1347856-16581-263,00-PREFEITOS+DISCUTEM+COLETA+DE+
ESGOTO.html . Acessado em 25/02/2010.
83
Para saber mais consultar o relatório: http://www.cetesb.sp.gov.br/Agua/rios/publicacoes.asp
84
“A negativa da Sabesp em fornecer os dados do monitoramento em tempo real dos reservatórios de São Paulo motivou duas
ongs do ABC; SOS Billings e Terra Viva a impetrarem com Ação Civil Pública, em andamento junto à 6ª Vara Civil do Fórum de São
Bernardo. Pelo mesmo motivo outras quatro ongs de São Paulo; SOS Represa Guarapiranga, Peixe-Vivo, Fiscais da Natureza e
Sociedade Benfeitora de Interlagos, impetraram também com a mesma ação junto á 4ª Vara Civil do Fórum de Santo Amaro”. Ações
Civis Públicas contra a Sabesp. subcomitebillings@yahoogrupos.com.br. 04/01/2007.
85
Conforme Ivanildo Hespanhol, informação verbal, em entrevista para Adriana Ferraz. Cf. FERRAZ, Adriana. Represa Billings está
100% vulnerável. In: Jornal DIÁRIO DO GRANDE ABC de 26/03/2008 http://home.dgabc.com.br/materia.asp?materia=636608.
Acessado em 15/03/2009. “Para o especialista, o tema é questão de saúde pública. “Quando começarem a bombear a água, a
situação do manancial vai se agravar. A flotação não consegue retirar todos os poluentes do rio, isto é sabido, não é preciso fazer
testes. Não adianta também dizer que a água do Rio Pinheiros não será usada para abastecimento por causa da barreira do braço
do Rio Grande. A Billings envia água para a Guarapiranga. São 4 m²/s pelo braço do Itaquacetuba. Este volume sai do corpo central
do reservatório, extremamente poluído”, explicou. Hespanhol defende que o Estado trate a represa sob um ponto de vista
humanitário. “Os rios e represas devem ser integrados com a comunidade, para lazer e abastecimento. É preciso gerar energia, sim,
pela usina de Henry Borden, mas a partir de um sistema de tratamento mais eficiente. Temos de torcer para que o Ministério Público
(que acompanha os testes realizados pela Emae – Empresa Metropolitana de Águas e Energia) receba informações verdadeiras e,
assim, possa impedir o bombeamento de água. Se não acontecer isso, o cenário ficará ainda pior”.
92
Procura-se por meio dessa Tese compreender os conflitos que estão subjacentes aos diferentes
projetos sociais, econômicos e culturais em disputa. Como é objetivo da presente Tese compreender os
conflitos subjacentes ao debate sobre a ocupação das áreas de mananciais, cabe ressaltar a necessidade
de não se considerar o “meio ambiente” como ente uno e genérico. Conforme afirma Carneiro:
“(...) a perspectiva generalizante não percebe o campo dos recursos hídricos como um
campo de disputas pela legitimação de interesses específicos, singulares e territorialmente
localizados, em que os atores travam permanentemente uma luta simbólica, buscando
legitimar seu projeto para transformá-lo no projeto de toda a sociedade” (Carneiro, 2003, p.
77).
Assim, percebe-se como os projetos hegemônicos tendem a exercer influência sobre a definição do
que sejam os usos considerados compatíveis com a proteção ambiental e, por outro lado, responsabilizar
aqueles que não têm força política acusando-os de comprometer a integridade do meio ambiente.
O processo de ocupação do solo da região sul de São Paulo mudou ao longo do tempo, passando
de grandes chácaras aos loteamentos clandestinos e, atualmente, à predominância da moradia precária e
autoconstruída com características de periferia metropolitana.
O início da ocupação da Zona Sul se deu pela formação de “aldeamentos controlados pelos
jesuítas” (SANTORO et al, 2009, p.33). Em 1832 deu origem à vila de Santo Amaro, que viria a se constituir,
mais tarde, em importante pólo industrial de São Paulo. Considerando o histórico de ocupação, percebe-se
que maiores interesses pela região despontam justamente com a construção das represas Guarapiranga
(1906-1909) e Billings (1927). As represas criaram um potencial de lazer impulsionando as atividades
recreativas como clubes de campo, chácaras de recreio.
Na década de 1920 a região do entorno das represas foi marcada pela: “(...) tendência de
ocupação por edificações residenciais e clubes, atraídos por ofertas de lazer e pela qualidade da paisagem.
A prática de iatismo na represa também merece destaque e vários campeões olímpicos brasileiros fizeram
93
escola nas suas águas86”. A represa nessa época representava um local nobre, de encontro e lazer
(BRUNO, 1984).
Na década de 1930 implantou-se o loteamento Interlagos que pretendia servir às famílias de alta
renda. O francês Alfred Agache foi contratado para projetar o bairro que inicialmente se chamava “cidade
satélite balneário” porque havia o objetivo de criar um balneário entre as represas. O loteamento foi
inviabilizado pela crise de 1929 e pela revolução constitucionalista de 1930 e 1932. No entanto, a região
atraiu atividades com fins recreativos, como clubes e áreas de lazer que se encontravam em decadência.
Nos anos 1940, a própria AESA87 terminou as obras do loteamento Interlagos e construiu o autódromo, que
começou a receber corridas de automóveis nacionais e internacionais. Em 2004, o bairro de Interlagos foi
tombado pelo Patrimônio Municipal reconhecendo sua importância para São Paulo.
Também nessa época houve a abertura de loteamentos industriais em Santo Amaro e a região do
entorno tornou-se opção de moradia para os trabalhadores das empresas e indústrias que se instalavam na
região. A região se estabeleceu enquanto local acessível para morar, estreitamente relacionado à expansão
e estruturação do distrito industrial. Assim, na mesma década, foi implantado o loteamento popular Cidade
Dutra, com financiamento do Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Serviços de Transporte (IAPST),
com o objetivo de atender a demanda habitacional dos trabalhadores ligados a esse Instituto. A empresa
realizou não só o loteamento, mas a construção das casas. Isolado do tecido urbano, o loteamento também
exerceu a função polarizadora do desenvolvimento do entorno. A ocupação da Bacia Guarapiranga foi
facilitada pelos eixos de estruturação viária rumo ao interior da bacia e pelo sistema de transporte rodoviário
que permitiu a formação das zonas periféricas.
O processo de industrialização das décadas de 1950 e 1960 contribuiu de maneira incisiva para o
crescimento populacional de Capela do Socorro. Na década de 1950, sob iniciativa de Francisco Mattarazo
Neto, foi executado para fins industriais um loteamento entre as terras de Interlagos e Socorro, o distrito
industrial de Jurubatuba, região de Santo Amaro. A área se tornou mais tarde um moderno centro industrial
da região com a expansão para o vetor sudoeste, incorporando os setores de serviço e imobiliário ao longo
das marginais do Rio Pinheiros (UEMURA, 2000). “Segundo dados do Serviço Nacional de Aprendizagem
(1970-1980), 11% do total de empregos do Município estavam nas indústrias do distrito de Santo Amaro”
(UEMURA, 2000, p. 54). Santoro et al (2009) alertam que nessas décadas também aumentou a oferta de lotes
residenciais.
A partir de 1975/76, com a Lei de Proteção aos Mananciais, restringiu-se o uso e ocupação do
solo na Região Sul, estabelecendo baixos níveis de densidade e limites ao licenciamento de
empreendimentos na área. Apesar disso, assentamentos precários começaram a se instalar na região, com
inexistência de infra-estrutura urbana, lotes menores e consequentemente densidades maiores.
“Praticamente excluídos do mercado imobiliário formal, os preços dos terrenos se tornaram
extremamente baixos. A depreciação do valor da terra, aliada a outros fatores, como uma
inadequada política habitacional, a baixa renda dos trabalhadores, a proximidade de grande
concentração de empregos e as dificuldades de fiscalização, e certa conivência, por parte dos
86
Histórico da Represa Guarapiranga. Para saber mais consultar o site de olho nos mananciais: Cf.
http://www.mananciais.org.br/site/mananciais_rmsp/guarapiranga/guarahist; acessado em agosto de 2009.
87
Construção Civil Auto-Estradas S.A.
94
órgãos públicos, tiveram como efeito a expansão desenfreada dos loteamentos clandestinos e
de favelas, localizadas em grande parte ao longo dos córregos contribuintes da represas”
(ISA, 2003, p. 7).
A região Sul de São Paulo, apesar de ser considerada Área de Proteção dos Mananciais, não fugiu
da mesma política de exclusão territorial que caracterizou a formação das regiões periféricas da cidade.
Contraditoriamente, em 1976 implantou-se, no Grajaú, um conjunto habitacional da Cohab chamado Bororé,
que levou mais de 13 mil moradores para a área recém-definida como área de mananciais pelo poder
público. Lembrando que a consolidação de um conjunto habitacional obrigou o desenvolvimento de toda
uma infra-estrutura, repetindo os clássicos processos de formação das periferias distantes que
contraditaram os objetivos de “preservação” e “congelamento” orientados pela legislação dos mananciais.
A partir dos anos 1980, a região sul cresceu muito, chegando Parelheiros a atingir taxa de
crescimento anual 8,08% entre os anos 1980 a 1990. Maricato (1997) destaca os fatores que fizeram com
que a região se tornasse local preferencial para assentamentos de baixa renda:
“O carreamento de esgoto de São Paulo para a Billings através do Rio Pinheiros, que causou
o declínio do uso da represa para lazer e a desvalorização das terras; a falta de alternativas
legais de habitação popular; concentração expressiva de empregos industriais na região
próxima de santo Amaro; desvalorização fundiária, devido à própria lei de Proteção dos
Mananciais (1975) que afastou agentes do mercado legal; e, a ausência de fiscalização”
(MARICATO, 1997, p. 34).
Nessa época a ocupação urbana já causava impacto nas represas com as primeiras florações de
alga provenientes principalmente do excesso de despejo de esgotos doméstico na água, com altos índices
de mortandade de peixes anunciados na imprensa.
A região é atualmente densamente ocupada por loteamentos precários que surgiram ao longo da
década de 1970, e foram sendo povoados, de forma mais intensiva, ao longo da década de 1990. Em
grande parte são famílias de migrantes88 e mesmo paulistanos que devido ao custo da moradia, para sair do
aluguel ou despejados de outras favelas89, foram se deslocando para lá. Iam para a área com o “sonho da
casa própria” e encontravam aí um bairro barato. O antigo uso, de chácaras de recreio, deu lugar à
especulação imobiliária informal, que impôs outra lógica de ocupação, a dos loteamentos clandestinos,
transformando as glebas em pequenos lotes comportando grandes densidades. (SEABRA & SPÖRL, 1997).
88
Segundo Torres (2004).
89
Segundo Fix (2001).
95
Apesar dos limites do cadastro, devido ao grande número de loteamentos sem informação (17,6%)
quanto ao ano de implantação, podemos verificar que as décadas de 1970, 1980 e 1990 foram as que
apresentaram maior crescimento de loteamentos clandestinos em todos os distritos pertencentes à área de
manancial. Pela tabela acima, verificamos que entre 1960-1970 houve um acréscimo de 500% no número
de loteamentos clandestinos (6 para 36 loteamentos), de 1970-1980 houve um acréscimo de 101% (36-73
loteamentos) e de 1980 para 1990 houve um acréscimo de 45% (73 para 106 loteamentos), comprovando
que a legislação dos mananciais não foi suficiente para permitir o esperado "congelamento" na ocupação
das áreas, porém verifica-se que os loteamentos vêm crescendo num ritmo mais lento. Destaca-se o distrito
de Grajaú, pelo crescimento abrupto de uma década para outra, apresentando o maior número de
loteamentos clandestinos de toda a região dos mananciais, cerca de 39%. Além do Grajaú (39%), Jardim
Ângela (22%), Parelheiros (18%), Pedreira (9%) e Cidade Dutra (7%) são os distritos que concentram o
maior número de loteamentos clandestinos da região sul da cidade.
90
HABISP - Sistema de informações da Secretaria de Habitação do Município de São Paulo, disponibilizado para acesso ao público
em março de 2008, pelo site www.habisp.inf.br.
96
A interpretação do mapa acima mostra o processo de ocupação da região Sul dos mananciais
segundo a análise feita por Martins:
“A ocupação dessa região teve, no entanto, momentos de maior intensidade a partir do anos
70, quando se observa um número significativo de assentamentos ao longo do braços da
Guarapiranga (principalmente na margem esquerda) e da Billings (entre os braços do Cocaia,
Bororé e na margem direita no Riacho Grande). Entre 1974 e 1980, houve uma pulverização
do processo de ocupação, com expansão das manchas existentes. Entre 1980 e 1985, nota-
se maior ocupação em Embu, Itapecerica da Serra, São Bernardo e Parelheiros. Entre 1985 e
1992, as marchas eram menores, com destaque à cratera da colônia (Billings). E de 1992 a
1995, observou-se ligeira intensificação, em especial, na Billings e na Guarapiranga de
manchas significativas ao sul (MARTINS, 2006, p. 57).
Martins sintetiza os processos que vem ocorrendo na região dos mananciais, avaliando que as
instituições e a legislação não foram capazes de conter a ocupação das áreas de mananciais:
“(...) a existência da lei de Proteção aos Mananciais não modificou o padrão de ocupação
dessas áreas nem isolou os corpos d‟ água como era desejado. O aumento da pobreza,
seguido do crescente déficit habitacional, a reduzida oferta de habitação de interesse social, a
defasagem entre a condição econômica da população e o padrão legal estabelecido, o
intrincado processo de licenciamento e a fragilidade da fiscalização fazem com que essa
forma de ocupação do espaço – irregular e precária – fosse a predominante na região”
(op.cit., p. 57).
Com as análises acima enunciadas pretendemos chamar atenção para os diversos usos e conflitos
que envolvem o território de mananciais, pelas distintas formas como os sujeitos sociais se apropriam seja
da terra seja da água.
Retomaram-se aqui alguns de seus resultados para subsidiar o debate subsequente sobre políticas
para as áreas de mananciais.
O estudo “Os mananciais são menos urbanizados do que se imagina” (WHATELY et al, 2008a)
verificou as mudanças ocorridas na dinâmica de uso e ocupação do solo de áreas de manancial na porção
Sul de São Paulo. Tendo por base esse estudo, o objetivo dessa seção é compreender como vem se dando
a apropriação do solo em mananciais. Apesar de haver uma queda na expansão dos loteamentos
clandestinos, grandes projetos de desenvolvimento (como o Trecho Sul do Rodoanel) estão em processo
de implantação, por parte do Estado, desobedecendo a Legislação dos Mananciais e impondo determinadas
obras sem discussão com os agentes locais (neste caso a subprefeitura Capela do Socorro), provocando
um desmatamento abrupto maior do que ocasionaram as ocupações irregulares em 18 anos.
O trabalho de Whately et al (op cit) usou como metodologia a interpretação de imagens de satélite,
do uso do solo em 1989, 2003 e 2007, tendo como principais conclusões: “os mananciais são menos
urbanizados do que se imagina, uma vez que apenas 16% da área estudada encontra-se ocupada por esse
tipo de uso” (WHATELY et. al, 2008a, p. 129). No entanto, nessa região mora uma população urbana de
cerca de 1 milhão de habitantes, em núcleos precários e com tendência à densificação. Ademais, “a
distribuição dos diferentes tipos de uso não se dá uniformemente no território” (WHATELY et. al, 2008a, p.
142).
91
Essa seção foi baseada na seguinte pesquisa: WHATELY, Marussia; SANTORO, Paula; DIAS, Telma Stephan. Os mananciais são
menos urbanizados do que se imagina. In: WHATELY, Marussia; SANTORO, Paula Freire; FERRARA, Luciana Nicolau; BAJESTEIRO,
Fernanda Blauth (orgs). Mananciais: uma nova realidade? São Paulo: Instituto Socioambiental, 2008, 129-158p.
98
Nesse estudo, o território foi classificado segundo classes e conjuntos de uso e ocupação do solo:
(i) usos antrópicos (tudo o que não é uso urbano: agricultura, campo antrópico92, indústria, lazer,
mineração, silvicultura, solo exposto); (ii) usos urbanos (áreas de ocupação urbana de alta densidade, áreas
de ocupação urbana de média densidade, áreas de ocupação dispersa como chácaras, sítios, pequenos
núcleos urbanos e condomínios); (iii) vegetação nativa (campos de altitude, várzea, vegetação primária ou
secundária em estágio avançado de regeneração; vegetação secundária em estágio inicial/médio de
regeneração); (iv) corpos d‟ água (açudes, lagos e reservatórios).
No gráfico abaixo (WHATELY et. al, 2008a, p. 145), observa-se, resumidamente, como os tipos de
uso são encontrados na região Sul de São Paulo em 2007:
GRÁFICO do
Distribuição 2: Distribuição
conjunto dedo conjunto
classes de classes
de uso na áreadedeuso na área de mananciais
do município
mananciais de São
do município de Paulo no anonodeano
S ão Paulo 2007
de (em
2007%).
(em %)
M ata Atlântica
44%
Corpos d'água
9%
Urbanos
16% Antrópicos
31%
Pelo gráfico acima as duas maiores categorias são Mata Atlântica (44%) e usos antrópicos (31%).
Com relação à mata atlântica93 a maior parte (70,5%) pode ser considerada mata atlântica secundária em
estágio avançado de regeneração ou primária. E, como usos antrópicos foram considerados aqueles usos
não urbanos, como as atividades de agricultura, silvicultura, mineração, indústrias, clubes e áreas de lazer
além de solo exposto e usos não identificados na escala de interpretação de imagem de satélite.
Das análises do uso do solo realizadas pelas autoras encontra-se que 8,5%94 da mata nativa,
19,2% dos usos antrópicos e 24,1% dos usos urbanos da região sul dos mananciais concentram-se no
distrito do Grajaú (WHATELY et. al, 2008a, p. 142), caracterizando o que anteriormente Torres (2004)
chamou de espaço de fronteira, espaço de transição, coincidente com a área objeto de estudo da presente
Tese.
92
Campo antrópico nesse trabalho foi utilizado para enquadrar áreas, aparentemente sem usos definidos. Inclui ainda pequenas
áreas de pastagem e agricultura, áreas sem ocupação urbana, desmatamentos e outros usos não identificados nessa escala de
interpretação (WHATELY et. al, 2008a, p. 145).
93
Entende-se por Mata Atlântica: formações vegetais em estágio inicial e médio e remanescentes florestais em estágio médio e
avançado.
94
Essa porcentagem é aferida considerando os corpos d‟ água, que no Grajaú correspondem a 37,2%.
99
A fim de verificar as mudanças que estão ocorrendo no processo de ocupação do uso do solo na
região sul de São Paulo, as autoras construíram um quadro de análise para verificar como cada classe de
uso do solo se comportou ao longo dos anos, utilizando os períodos compreendidos entre os anos de
1989, 2003 e 2007 a partir da interpretação de imagens de satélite95. Foram verificadas duas dinâmicas
principais:
“Substituição de áreas de Mata Atlântica por atividades econômicas e usos não urbanos, em
especial por áreas de campo antrópico – áreas desmatadas e sem uso aparente – e para
silvicultura; substituição de áreas de campo antrópico por usos urbanos de alta e média
densidade” (WHATELY et. al, 2008a, p 146).
No segundo período (2003-2007), houve uma queda brusca no ritmo de desmatamento, sendo as
áreas devastadas ocupadas prioritariamente por atividades econômicas (agricultura, silvicultura, mineração)
e núcleos dispersos - chácaras e pequenos núcleos urbanos. “Nesse período, 88% do desmatamento está
associado a campos antrópicos, 6% a silvicultura e pouco mais de 3% a todos os usos urbanos”.
(WHATELY et. al, 2008a, p.151).
95
Imagens de satélite Landsat 5 TM e Landsat T7 ETM. Fonte: ISA, 2008. Para maiores detalhes dos mapas produzidos para 1989,
2003 e 2007 consultar WHATELY et. al (2008a, p. 147-150).
100
“A análise dos dados considerando as dinâmicas de alteração entre 1989 e 2003 e entre
2003 e 2007 permitem verificar que as áreas de ocupação urbana de alta densidade parecem
estar diminuindo seu ritmo de expansão. A dinâmica de ocupação de novas áreas é muito
mais forte no primeiro período estudado – crescimento médio de 73 ha/ano – e sofre uma
retração considerável no segundo período – crescimento médio de 5 ha/ano. Isto não quer
dizer que a região esteja ficando menos urbana, mas, entre outros fatores, que as áreas
urbanas existentes estão se adensando. Fato que pode ser confirmado com o cruzamento
com outros temas” (WHATELY et. al, 2008a, p. 151).
O estudo estima que se em 18 anos (1989 – 2007) os desmatamentos chegaram a cerca de 748
ha, a obra rodoviária do Rodoanel no trecho sul, comandada pelo Estado, irá desmatar o equivalente a 741
hectares de vegetação. Conforme explicam as autoras:
“Considerando apenas a vegetação declarada no EIA-RIMA como de Mata Atlântica, o
Rodoanel será responsável por um desmatamento ao longo de seu traçado que equivale a
quase metade de tudo o que foi desmatado pela ocupação urbana (aproximadamente 311 ha)
e demais usos antrópicos no município de São Paulo nos últimos dezoito anos” (WHATELY
et. al, 2008a, p. 156).
Pelos dados acima, observa-se a desmedida entre o comprometimento ambiental advindo dos
grandes empreendimentos versus aquele proveniente da ocupação urbana. Sugere-se assim que:
“Se antes procurávamos evitar o desmatamento para a ocupação urbana
densamente ocupada com habitação de baixa renda em situações precárias, agora
são necessárias políticas no sentido de evitar a implantação de novos usos não -
urbanos ou outras formas de usos econômicos que têm promovido
desmatamento” (WHATELY et al, 2008a, p. 41).
Essas análises indicam a tendência de ocupação da região sul de São Paulo por outros tipos de
atividades, que não a ocupação por moradia popular (a qual vem se adensando nos locais já ocupados). O
desmatamento e consequentemente a destinação para um uso específico podem comprometer a chamada
“região produtora de água”. Ao mesmo tempo, as obras do Rodoanel, enquanto grande projeto urbano
mostra que a prioridade para a área não estaria posta no abastecimento público ou na preservação
ambiental da mata atlântica, mas antes nos propósitos de alavancar um modelo de cidade baseado no
sistema rodoviarista96 e nos investimentos em infraestrutura urbana.
Ferreira (2008) investiga as dinâmicas imobiliárias da cidade formal, traçando uma análise dialética
entre a valorização das terras em áreas centrais e em mananciais. Ao mesmo tempo estuda os reflexos das
novas dinâmicas de valorização imobiliária na cidade de São Paulo, os impactos da implantação do
Rodoanel e da legislação específica da Billings nas áreas de mananciais.
Para tanto, o autor se debruça sobre duas questões fundamentais, que detalharemos abaixo, para a
compreensão das dinâmicas da valorização da terra em áreas de mananciais: (i) as áreas centrais e
consolidadas estão se valorizando e essa valorização traz impactos sobre as áreas de mananciais e (ii) as
96
Segundo Erminia Maricato (1997) o sistema rodoviarista, enquanto modelo de mobilidade urbana, possui raízes fortes e antigas e
se constitui no modelo hegemônico na cidade de São Paulo.
97
Essa seção foi baseada no seguinte trabalho: FERREIRA, João Whitaker. Valorização de terras em áreas centrais e de mananciais.
In: WHATELY, M et al (org). Mananciais: uma nova realidade? São Paulo, Instituto Socioambiental, 2008a.
101
terras em área de mananciais podem vir a se valorizar, como resultado, entre outros fenômenos, da
construção do Trecho Sul do Rodoanel, ou ainda do novo zoneamento proposto no âmbito da nova Lei
Específica da Billings.
A primeira hipótese está relacionada a dinâmicas mais gerais de produção do espaço urbano e dos
fenômenos de valorização fundiária nas cidades capitalistas. Segundo Ferreira (2008), o valor do uso do
solo na cidade capitalista é determinado por:
“(...) sua localização, que é por sua vez definida pelos investimentos em infra-estrutura para
tornar o solo edificável, pelas construções que eventualmente nele existam, pela facilidade de
acessá-lo e, enfim, pela demanda. Esse conjunto de fatores é o que distingue qualitativamente
uma parcela do solo, dando-lhe valor e diferenciando-a em relação a outras” (FERREIRA,
2008, p. 101).
O autor alerta que o padrão de urbanização brasileiro, de caráter desigual e com industrialização a
baixos salários, fez com que as elites se apropriassem das melhores terras e as classes populares fossem
obrigadas a morar cada vez mais distante dos centros:
“A especificidade da nossa urbanização – e da de muitos países periféricos como o Brasil –
está no fato de que ela reflete um crescimento econômico que tinha justamente como
condição a manutenção do baixo valor da mão-de-obra (razão da nossa inserção na
expansão do capitalismo internacional), a não-formação de um mercado consumidor interno
realmente significativo (as camadas de renda superior já eram amplamente suficientes), e a
expatriação reiterada dos excedentes econômicos (Deàk, 2004), sendo, portanto, um
crescimento estruturalmente concentrador da renda, pois baseado na baixa remuneração da
mão-de-obra, em um processo que autores como Roberto Schwarz, Francisco de Oliveira e
Erminia Maricato já chamaram de „industrialização com baixos salários‟. Uma lógica
exatamente oposta à da expansão capitalista „inclusiva‟, em busca de um mercado de
consumo de massa, como ocorrera nos modelos keynesianos na Europa e nos EUA após a
depressão de 30” (op.cit., p. 104).
periferias distantes, sem transportes públicos adequados, sem urbanização nem saneamento.
Ela é bem aceita na cidade formal, desde que seja para trabalhar, onde serve para o
funcionamento da cidade e da economia dos mais ricos. Para morar, entretanto, devem retirar-
se aos seus bairros afastados, como em um apartheid espacial velado, porém muito
significativo” (op.cit., p. 106).
A permanente valorização das áreas centrais com infraestrutura amplia o espraiamento da cidade
em direção às periferias. Esse processo contínuo faz com que aumente a tensão entre a “questão urbana e
a questão ambiental” porque a urbanização espraiada atinge terras com fragilidades ambientais que não
poderiam estar disponíveis para ocupação:
“Na cidade de São Paulo, em que a quase totalidade das terras foram urbanizadas, (cidades
da Região Metropolitana como Diadema chegam a ter mais de 95% de suas terras
urbanizadas) a escassez de terras urbanizáveis e sua constante valorização aumentam
consideravelmente a pressão pela urbanização das áreas de mananciais” (op.cit., p. 107).
O autor assinala que as políticas urbanas atuais exacerbam esse processo. Ao mesmo tempo em
que surgiram programas habitacionais de interesse social no centro, esses foram constantemente
interrompidos na passagem de uma gestão para outra. E cita o Projeto da Nova Luz, bastante questionado
pela população de baixa renda e em processo de implantação nas gestões de Kassab (2006-2012) no
centro de São Paulo:
“(...) O Projeto Nova Luz, ao celebrar a parceria público-privada como um instrumento de
98
privatização da região e de gentrificação , ignora a questão habitacional, subdimensionando
essa problemática e relegando-a a uma mera questão de assistência social para atender,
quando muito, pequena parcela da população de baixa renda já residente no centro. As
Operações Urbanas, por sua vez, que se generalizaram no Plano Diretor de 2002 como um
novo padrão de urbanismo para toda a cidade, mas que na prática subordinam o
planejamento da cidade aos interesses do mercado imobiliário 99, incorporam mais do que
timidamente a questão habitacional em suas leis, e mesmo assim ela nunca foi até hoje
efetivamente considerada nas operações existentes. A população expulsa pelas Operações
Urbanas se desloca, como já foi mostrado por Fix (2000), para as regiões periféricas,
inclusive para os mananciais” (op.cit., p. 108).
Dessa forma, Ferreira afirma que a primeira hipótese enunciada parece coerente e enfatiza que as
novas dinâmicas imobiliárias na cidade de São Paulo, surgidas a partir de 2006, podem exacerbar esses
fenômenos.
98
A desapropriação de “interesse público” posteriormente destinada ao repasse, por licitação, da terra aos proprietários privados
parece ser, aliás, juridicamente questionável. O projeto prevê o incentivo à “novos usos e atividades”, voltados ao setor tecnológico,
que gerem um novo padrão de emprego,alimentando o equívoco da visão “vocacional” da cidade, ignorando que a região é um dos
centros comerciais de varejo mais pujantes do continente.
99
Ver a respeito Ferreira & Fix, “O falso milagre dos CEPACS” (Folha de S. Paulo, "Tendências e Debates", terça 17 de abril de
2001): a explicação é simples. As operações urbanas baseiam-se no princípio de buscar fundos para investimentos em infra-
estrutura junto ao mercado privado, em troca da outorga onerosa do direito de construir acima do permitido. Como é de se esperar
que o mercado imobiliário não vá lá ter grandes interesses em comprar direito de construir em áreas periféricas carentes de infra-
estrutura, mas sim somente onde haja forte valorização, as Operações Urbanas só fazem sentido se propostas em áreas já muito
beneficiadas por infra-estrutura. Dessa forma, o planejamento urbanístico baseado nas Operações Urbanas se subordina aos
interesses do mercado, canalizando investimentos onde a infra-estrutura já é considerável, em detrimento das áreas realmente
necessitadas. Para piorar, como mostrado em Ferreira (2008), para “incentivar” o interesse do setor imobiliário, o Poder Público
acaba ele mesmo investindo fundos públicos anteriormente à Operação Urbana, para torná-la mais “atraente”. Evidentemente, esses
recursos iniciais não são contabilizados nos balanços das operações. Trata-se de um instrumento tipicamente voltado à reiteração
dos padrões de urbanização excludente.
103
Destaca igualmente que com a queda da taxa de juros, a partir de 2006, houve um reaquecimento
do crédito imobiliário e dos empreendimentos nas grandes cidades. Ao mesmo tempo, houve mudanças
nas legislações de investimentos imobiliários visando destravar os gargalos do setor:
“A resolução 3177 do Banco Central obrigou as instituições financeiras a aplicar efetivamente
porcentagem do Fundo de Compensação das Variações Salariais (FCVS, 2%) e do Sistema
Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE - a caderneta de poupança) em empréstimos
imobiliários. Também exigiu dessas instituições que cumprissem o acordo feito em 2000
entre os bancos e o BC, para liberar em parcelas o saldo do FCVS acumulado de uma
renegociação realizada em 1996. Isso colocou no mercado, em 2006, cerca de R$ 8 bilhões
oriundos da poupança, para crédito imobiliário, com perspectiva de aumento nos próximos
anos. Além disso, o governo aprovou a Lei Federal no 10.931/04, de alienação fiduciária, pela
qual o credor pode manter a posse do imóvel até o devedor quitar a dívida, e a Lei de
Incorporação Imobiliária ou Lei de Patrimônio de Afetação, que permite que uma obra
imobiliária seja considerada um negócio autônomo, que se mantém a salvo em caso de
quebra da construtora (como a da Encol)” (op.cit., p.110).
As novas dinâmicas atuais do mercado imobiliário formal, aliadas a uma conjuntura favorável ao
crédito e ao aquecimento da construção civil, promovem uma concorrência pelas escassas terras
desocupadas nas regiões mais distantes do centro urbano. Essa valorização do mercado de terras
desencadeia a disputa pelas terras da periferia (onde há terra disponível para as obras), que não considera
leis ambientais, planos não denota preocupação com a chamada qualidade ou escassez das águas das
represas.
A fim de verificar a segunda hipótese (as terras em área de mananciais podem vir a se valorizar,
como resultado, entre outros fenômenos, da construção do Trecho Sul do Rodoanel, ou ainda do novo
zoneamento proposto no âmbito da nova Lei Específica da Billings), o autor procura mensurar o quanto e
como o Rodoanel irá afetar as dinâmicas urbanas na região onde passa. Ele baseia-se na experiência de
104
implantação do Rodoanel – trecho oeste100 a fim de questionar se aquele modelo não se repete no trecho
sul, com o agravante da questão ambiental:
“(...) O Rodoanel acaba sendo um instrumento importante no processo de espraiamento da
cidade de São Paulo, valorizando áreas cada vez mais distantes. O Trecho Oeste mostra
claramente que a obra atraiu novos assentamentos habitacionais, tanto informais quanto de
condomínios de alto e médio padrão, novas empresas atraídas pela funcionalidade da
rodovia, em especial do setor de logística, promoveu impactos ambientais importantes, que
aliás praticamente não foram compensados pelo empreendedor, o DERSA, conforme exigido
legalmente” (FERREIRA, 2008, p.116).
100
CF. LabHab-FAUUSP/ISA. Impactos urbanísticos do Trecho Oeste do Rodoanel Mário Covas: estudo preliminar. São Paulo,
LabHab-FAUUSP/ISA, em 2005.
105
(i) em azul escuro o traçado em implantação do Trecho Sul que corta as áreas de mananciais.
(ii) em amarelo, a alça oeste que está em funcionamento desde 2002.
A região que estamos estudando, caracterizada por Torres (2004) como fronteira urbana, além das
agudas transformações decorrentes do crescimento populacional, passa por uma série de implicações
relacionadas à condição de espaço periurbano, zona de transição, zona de fragilidades ambientais, com
relevo recortado e que exerce segundo Whately et al (2008d) uma função ambiental para a cidade. Apesar
disso, essas regiões foram incorporadas na “máquina de crescimento” (LOGAN & MOLOTCH, 1987 apud
ARANTES, 2000101) das periferias, e o Estado, possível controlador do crescimento urbano, exerce de
maneira insuficiente esse papel por meio de legislações ambientais, sendo, contraditoriamente indutor de
sua ocupação pelas grandes obras de infra-estrutura viária, como a do Rodoanel.
101
A autora se refere ao conceito de LOGAN & MOLOTCH. LOGAN, John e MOLOTCH, Harvey; "Urban Fortunes: the political
economy of place", University of California Press, 1987.
106
resultado, entre outros fenômenos, da construção do Trecho Sul do Rodoanel, ou ainda do novo
zoneamento proposto no âmbito da nova Lei Específica da Billings.
Atualmente a região Sul de São Paulo vem sofrendo uma série de transformações decorrentes, ao
mesmo tempo, de políticas públicas de preservação dos mananciais (Programa Mananciais e Defesa das
Águas), políticas de regulação (leis específicas das bacias Guarapiranga e Billings) e de políticas públicas
de investimentos, como os grandes projetos viários. Também é parte integrante do processo a expansão
horizontal e periférica, marcada pela ocupação preferencial de loteamentos clandestinos e favelas devido ao
preço barato da terra. A região de antigas chácaras foi sendo gradativamente parcelada pelo mercado
informal e as áreas definidas como APP ou de risco foram ocupadas por favelas. O antigo parcelamento,
com lotes grandes, proporcionava uma apropriação cênica e paisagística para áreas de lazer e clubes com
esportes náuticos. A represa Guarapiranga era o local de turismo e lazer para a elite paulistana. A área foi
forte alvo de loteadores clandestinos, que encontraram na exploração das terras, formas de auferir lucro.
Atualmente grande parte da ocupação, principalmente na Represa Billings, tem servido para a moradia
informal de baixa renda, com o adensamento das áreas já ocupadas e o crescimento expandido para as
cidades adjacentes na RMSP.
O histórico desenvolvido neste capítulo mostra as disputas e interesses que envolvem os usos para
fins econômicos dos recursos hídricos das bacias de Guarapiranga e Billings. Construídas para a geração
de energia, as represas foram posteriormente destinadas para o abastecimento público. No embate entre
industriais de Cubatão, ambientalistas e a indecisão do Governo do Estado, a destinação para captação de
água para abastecimento só foi priorizada a partir de 1989. O constante bombeamento das águas poluídas
do Tietê para o Rio Pinheiros, para a Billings e consequentemente para a represa Guarapiranga, segundo
maior sistema de abastecimento da RMSP, provocou o excesso de poluição acumulado até no fundo das
represas, provocando frequentes afloramentos de algas que despertaram principalmente na mídia e nos
ambientalistas, o debate público para a chamada crise no sistema de abastecimento e para a necessidade
de recuperação das águas das represas. Diversos esforços vêm sendo feitos pelas políticas públicas, mas
há questionamentos que serão vistos com mais detalhes no próximo capítulo, sobre a melhoria da qualidade
das águas.
Pelo quadro acima apontado, percebe-se que a crescente valorização social dos mananciais tem
produzido ao longo do tempo, um processo de legitimação social em torno à questão, além de motivar
diferentes planos, políticas e interesses associados à forma de utilização dessas áreas em São Paulo.
Como salientam Ribeiro & Lago (2001), a utilização frequente pela mídia de metáforas como
“cidade partida”, “desordem urbana”, a oposição bairro-favela vem dotando de legitimidade social a
concepção dualista desses assentamentos. A partir dessa concepção, as ocupações irregulares são
107
entendidas como a não-cidade, devendo ser removidas dos lugares da “cidade”, de valorização urbana ou
dos eixos de “desenvolvimento” urbano.
Argumentos e critérios ambientais são usados em territórios de conflito entre a moradia e o meio
ambiente para orientar o direcionamento das políticas públicas.
No entanto, tal oposição (moradia e meio ambiente) precisa ser contextualizada compreendendo
que a ocupação de assentamentos informais em área de manancial configura a ordem espacial própria do
capitalismo com baixos salários (MARICATO, 1996).
O discurso da escassez bem como da degradação ambiental dos mananciais tem incentivado uma
série de políticas públicas na área ambiental e habitacional em São Paulo e com ela o incremento dos
processos de urbanização dos assentamentos precários. Atualmente, o discurso da “degradação ambiental”
e da “cidade desordenada” orienta intervenções urbanas por (re) vitalização, (re) gularização e (re)
urbanização dos territórios marcados pela irregularidade e pela exclusão ou, no seu oposto, de territórios
eleitos para grandes empreendimentos. Isso quer dizer que este discurso, ao mesmo tempo em que produz
uma ideologia marcada pela dualidade barbárie/civilidade, orienta a conduta dos agentes públicos e privados
na definição de novas formas de ação.
No entanto, como se verificará no capítulo 4, muitos conflitos são resultantes do modo como essas
urbanizações são realizadas pelo poder público e empresas terceirizadas. Atualmente, a população
moradora das áreas contempladas pelas políticas públicas olha com desconfiança e temor porque não
sabem quais serão as chamadas “melhorias” e a quem elas beneficiam. Segundo pesquisa empírica, as
principais reclamações dizem respeito ao não envolvimento da população afetada no projeto de
urbanização, aos processos de remoção inerentes à urbanização e as alternativas precárias de habitação
nos casos de reassentamento.
No jogo dos grandes projetos ou em projetos de “revitalização” (como ocorre na área central de
São Paulo) as ocupações precárias são empurradas de um lado para outro da cidade em nome do chamado
desenvolvimento urbano. Esse fato foi destacado na pesquisa de Torres (2004) quando fala do espaço de
fronteira. Esses empreendimentos variam desde a construção de uma obra viária, ferrovia, hidrelétrica,
ponte, parque, praças, a projetos de urbanização de favelas, e de revitalização das áreas centrais com
expulsão da população residente que não pode pagar pela valorização crescente da área.
O fenômeno destacado por Alves (2007, p. 306) do “(...) expressivo aumento da desigualdade
ambiental no município em período recente” e as considerações de Taschner (2003, p.36) de que as
favelas correspondem a uma “(...) situação de risco para os próprios favelados, como para a população
como um todo, pela contaminação dos mananciais e destruição da área de proteção” vêm afirmar o
argumento da distribuição desigual dos riscos ambientais em que os despossuídos sofrem do risco
desproporcional, mas que no caso dos mananciais, não se conseguiu evitar que os riscos afetassem
também as camadas de mais alta renda. Essa situação singular pode ter justificado uma série de
investimentos públicos como se verá no próximo capítulo, sobre a atuação do Estado em áreas de
mananciais.
108
O objetivo deste capítulo é analisar o histórico das políticas públicas para a área de mananciais no
município de São Paulo a fim de compreender como, ao longo do tempo, os pressupostos e a forma de
fazer política em mananciais foram se transformando.
Para analisar a atuação do poder Executivo, o capítulo foi organizado a partir dos principais
objetivos das gestões de governo e dos programas relacionados especificamente à questão dos
Mananciais, observando o direcionamento das políticas, sua continuidade ou reconfiguração de uma gestão
para outra.
Deu-se prioridade ao entendimento das políticas de controle do uso do solo e recuperação urbana
nas áreas de mananciais, que são exercidas principalmente pelas secretarias municipais de Habitação, do
Verde e Meio Ambiente e pela Subprefeitura Capela do Socorro. Para isso, foram feitas entrevistas com
técnicos municipais e gestores públicos a fim de compreender suas visões do Programa Mananciais e do
conflito envolvendo moradia precária em área juridicamente protegida.
A autora também participou do seminário “Mananciais: uma nova realidade?”, realizado em maio
de 2008, promovido pelo Instituto Socioambiental - ISA, que reuniu vários profissionais das secretarias
estaduais e municipais, academia e ONGs para a discussão integrada dessa problemática, o que forneceu
mais subsídios para este capítulo.
Não se pretende, com esse capítulo, fazer uma avaliação instrumental do “Programa Mananciais”,
mesmo porque as intervenções estão em andamento e não é o objetivo central dessa análise. Procurar-se-
á, todavia, reconhecer seus objetivos e avaliações com base na literatura existente, a fim de observar
criticamente o conjunto das políticas para mananciais no âmbito específico deste estudo. Procura-se
destacar, ainda, como o Estado, em especial os atores envolvidos com a questão moradia precária em área
de manancial, compreendem esse conflito e como está sendo feito o manejo político e urbanístico de tais
áreas, o que permite visualizar as articulações políticas com vistas a atuar em relação ao conflito em
estudo.
Cabe lembrar as dificuldades enfrentadas para conseguir informações nos órgãos responsáveis.
Tomou-se o cuidado em não fazer a reprodução dos discursos e intenções registrados nos planos e
propostas, mas sim avaliar seu entrelaçamento com a prática concreta. No entanto, a não ser para os
técnicos que trabalham nos órgãos, é muito difícil para o pesquisador ter acesso às informações,
principalmente do Programa Mananciais, em que o gerenciamento dos planos e projetos é terceirizado, no
caso do município de São Paulo, para a empresa JNS/Hagaplan. Outra questão é que as informações estão
dispersas em várias secretarias, mostrando desde o início a fragmentação das políticas para os mananciais.
No caso da Sehab, conseguiu-se entrevistar o coordenador do programa.
109
Inicia-se essa tarefa verificando como as administrações municipais e estaduais trabalharam com a
questão dos mananciais e qual foi o direcionamento político dado para a questão.
Ancona (2002), em sua tese de doutorado, enunciou diferentes momentos da política pública de
meio ambiente para a metrópole paulista. A autora traça o perfil principalmente das ações dirigidas ao
saneamento ambiental, classificando quatro grandes períodos: (i) Período do sanitarismo e “embelezamento
urbano”, que se inicia no final do século XIX, pautado pelo urbanismo sanitarista e pela edição de códigos
destinados à melhoria higiênica das edificações; (ii) Período denominado “A industrialização e a degradação
ambiental”, que compreende principalmente os anos de 1930-1965, que caracteriza-se pela consolidação
de São Paulo como o maior centro industrial do País, com crescimento acelerado, expansão periférica,
metropolização e ideologia do planejamento (esse período é marcado por comprometimentos ambientais,
como a falta de água e o grande número de enchentes em partes da cidade); (iii) Período correspondente à
época da ditadura militar, orientado por uma abordagem tecnocrática das questões ambientais
metropolitanas e marcado por medidas de controle da poluição ambiental, pelos superplanos, pela
instituição do zoneamento e dos serviços de saneamento ambiental (a ideologia ambientalista começa a
penetrar no discurso da mídia e da opinião pública); (iv) E, finalmente, o que a autora considera o período
do ambientalismo e de políticas explicitamente designadas como ambientais na metrópole paulista. Essa
estruturação ocorreu nas décadas de 1980 e 1990.
A síntese acima oferece um primeiro passo para compreender as concepções das políticas para
meio ambiente que influenciaram a estruturação da metrópole e na formação da institucionalidade própria
para trabalhar a questão ambiental. Ver-se-á o rebatimento dessas concepções nas práticas de cada
gestão.
Uma das primeiras políticas de proteção dos recursos hídricos na Região Metropolitana de São
Paulo foi elaborada na gestão do governador Paulo Egídio (1975-1979). Nesse momento, entendia-se que
os problemas em área de manancial eram causados pela ausência de legislação ambiental reguladora do
uso e ocupação do solo.
102
Lei Estadual de Proteção aos Mananciais nº 898 de 18 de dezembro de 1975 que disciplinou o uso do solo para a proteção dos
mananciais, cursos e reservatórios de água de interesse da região Metropolitana de São Paulo e dá providências correlatas. E a Lei
nº 1.172 de 17 de novembro de 1976 que delimitou as áreas de proteção aos mananciais (APM).
110
O modelo foi estruturado tendo por base que as cargas poluidoras deveriam ser resolvidas
apenas pela capacidade de depuração natural das águas, não contando com processos químicos.
Segundo Ancona (2002, p. 285), “por meio dessa lei, 53% do território da Região Metropolitana,
correspondendo a 4.234 km², foram classificados como áreas de proteção aos mananciais – APM”.
Além de abrangente, a Lei de Proteção aos Mananciais - LPM tinha aplicação complicada porque
não seguia o modelo dos zoneamentos municipais, ao contrário, regulava áreas em zona urbana e outras
em zonas rurais. Ao mesmo tempo, segundo Ancona (2002, p. 286), a lei estipulava parâmetros de controle
das densidades em grandes lotes que variavam bastante entre 700 m², 1.500 m² e 6.000 m², tornando-se
difícil sua aplicação:
O “congelamento” em nível construtivo em São Paulo deu-se numa área de intenso dinamismo
socioeconômico, próximo à área industrial – Santo Amaro, em São Paulo, e na região do ABC, reconhecida
pela industrialização, pelas lutas sindicais e pelo conhecimento tecnológico agregado ao pólo industrial.
Devido ao baixo preço das áreas e à inexistência de infra-estrutura, a LPM criou condições para a
proliferação de loteamentos clandestinos e irregulares, principalmente nos reservatórios das represas
Guarapiranga e Billings, por suas localizações próximas a áreas de maior oferta de emprego.
Porém, ao mesmo tempo em que se aplica a lei de proteção aos mananciais executa-se o Projeto
de Saneamento para a Grande São Paulo – Sanegran103, que trouxe como consequência o
comprometimento da Represa Billings, por receber o esgoto da RMSP.
103
O Sanegran, implantado em agosto de 1977, foi dividido em duas etapas, sendo que a primeira foi subdividida em duas fases. A
primeira previa o tratamento de 15.100 litros de esgoto por segundo e deveria estar concluída em 1983. Todavia, em 1983, após o
investimento de mais de 1 bilhão de dólares, o Sanegran passa a tratar apenas 120 litros de esgoto por segundo, isto é, menos de
1% da meta prevista. Fonte: http://www.abcdaecologia.hpg.ig.com.br/aguaesgotosanegran.htm, Acesso em 15/12/2009.
111
aperfeiçoamento. No entanto, essa comissão não formulou qualquer revisão, contribuindo apenas com
recomendações de caráter geral (MOREIRA, 1990, p. 43 apud ANCONA, 2002, p. 291).
Na gestão dos prefeitos Reinaldo de Barros (1979-1982) e Salim Curiati (1982-1983), grande
número de loteamentos clandestinos na região dos mananciais é regularizado, mostrando uma tendência
irreversível à ocupação das áreas (idem, ibidem).
Assim, o modelo de preservação integral dos mananciais apresentado pela legislação estadual não
era compatível com a dinâmica e a pressão por ocupação da região sul de São Paulo, sendo necessária
uma urgente revisão em sua concepção e em seus parâmetros. No entanto, o não enfrentamento da
questão por parte de algumas gestões estaduais demonstrou que a tarefa não era nada simples e que uma
série de embates e negociações estavam em questão nesse território da cidade.
Ancona avalia que o modelo da lei de proteção dos mananciais de 1975/76 trata o território “como
se ele estivesse em lugar nenhum, algo genérico. Em torno de um corpo de água no meio de nada”.
Segundo a autora, o modelo da lei de manancial era preservar sem, no entanto, depender de investimentos
do poder público: “Quer dizer, não desapropriou nada, não criou nenhum parque e botou uma lei de uso do
solo restritiva. Delegou à propriedade particular a incumbência de preservar”104. Assim, os parâmetros de
uso do solo da lei de mananciais foram definidos, e ainda o são, em parte, estritamente em função da
proteção da qualidade da água, ou seja, quanto mais perto da represa, mais restritivo e, quanto mais longe,
menos. Essa concepção refletida no entorno das represas produziu uma incoerência na forma de ocupação,
como explica Ancona:
“O perto da represa era praticamente dentro da cidade, se você não sabe que ali é área de
manancial, que é área de proteção, não vai ficar sabendo mesmo, porque são partes da
cidade, densas, iguaizinhas ou mais densas do que qualquer parte urbana. É um tecido
totalmente urbanizado, impermeabilizado, com grandes avenidas, grandes sistemas de
transporte. Isso é o perto da represa, que é o mais restritivo do ponto de vista da lei. Depois,
lá longe, na nascente, em Juquitiba, São Lourenço da Serra, lá você tem a parte mais
permissiva, porque está longe do corpo de água. Essas porções mais distantes a gente
achava que deviam, como cabeceiras, ser mais preservadas, até porque não estavam
ocupadas. E perto da cidade tinha de mudar a lei e consolidar. Aí a própria lei tinha uma
brecha, que ela dá todos esses parâmetros, mas permite a exceção para empreendimentos
públicos, de interesse público. Então isso foi a base legal para aprovar posteriormente o
105
programa Guarapiranga” .
104
Entrevista concedida a autora desta pesquisa, em 10/11/2009, por Ana Lúcia Ancona. (Trabalhou na Prefeitura de São Paulo,
principalmente na área de planejamento, depois de habitação fazendo a interface com a política ambiental, quando essa política não
era ainda um setor da gestão pública. Na gestão da Luiza Erundina, coordenou um grupo de trabalho sobre os mananciais. A partir
de 1997, ainda na Secretaria de Planejamento, coordenou a revisão da lei dos mananciais. Na gestão de Marta Suplicy foi para a
Secretaria de Habitação e coordenou o próprio Programa Guarapiranga).
105
Idem.
112
A estratégia mais explícita nesse período foi a da Lei de Proteção dos Mananciais para a Região
Metropolitana de São Paulo, que estabeleceu parâmetros restritivos bastante questionados pelos próprios
técnicos do Estado devido à dificuldade de sua aplicabilidade.
“(...) os zoneamentos, assim com as normas edilícias, surgem como demandas das classes
dominantes e se efetivam apenas quando atendem interesses específicos dessas classes
(Villaça, 1995:1999). As dimensões das irregularidades (em relação a essas normas), que
superam 60% dos lotes e edificações existentes na cidade de São Paulo, confirmam a
assertiva. Assim, não há como esperar que normas urbanísticas, que não correspondem a
encomendas específicas das elites, possam funcionar como instrumentos de racionalização
do uso do solo e de conservação dos recursos naturais para todos, como se os conflitos de
classe não estivessem inscritos no espaço, através de uma determinada geografia que é a
segregação” (VILLAÇA, 2001, p. 337).
O questionamento de Villaça aplica-se para o caso em estudo, porque a restrição de uso, de certa
forma, não atendia aos proprietários de terra das áreas, gerando o efeito inverso ao da preservação, o
aumento de loteamentos clandestinos na região. Como afirma Moreira: “O efeito da política pública de
proteção dos mananciais, sobre a área urbanizada foi transferir os encargos da proteção aos proprietários e
usuários da área protegida” (MOREIRA 1990, p. 30). No entanto, por outro lado, a legislação serviu à
reprodução da classe trabalhadora com baixos salários, em lugares distantes, consolidando o modelo de
moradias periféricas. A legislação serviu para consolidar os interesses de uma classe dominante em
segregar, desde essa época, delimitando espaços diferenciados e colaborando para a formação da
desigualdade ambiental na cidade.
Em 1989, Luiza Erundina assumiu a Prefeitura de São Paulo com compromissos com a melhoria
das condições habitacionais de bairros populares. Em 1990, ocorreu o fenômeno de floração de algas na
represa Guarapiranga, devido ao excesso de esgotos não tratados lançados diretamente em suas águas.
Segundo Filardo (2004), as florações de algas em 1989-1991, que conferiram à água sabor de inseticida e
aparência oleosa, foram fator preponderante para se pensar um programa de recuperação para as áreas de
manancial. Esse fato define politicamente a urgência de um programa de recuperação de Guarapiranga.
113
Ancona descreve quais atitudes foram inicialmente tomadas na gestão de Erundina. A autora avalia que
havia uma incompatibilidade entre a Lei Estadual de Proteção dos Mananciais e a Lei Municipal de Uso e
Ocupação do Solo, complicando ainda mais a tarefa de regulamentar a região:
“A expansão das redes de água e de esgotos desses bairros, que tinha sido iniciada pela
SABESP em 1980, encontrava problemas de continuidade relacionados com as restrições da
LPM e com os próprios interesses econômico-financeiros da empresa. Pela primeira vez, a
prefeitura da capital enfrentou abertamente o debate sobre a política de proteção dos
mananciais, fazendo isso através de dois encaminhamentos: (i) a de um grupo pioneiro de
fiscalização integrada das áreas de proteção, que foi denominado SOS Mananciais e teve
vários desdobramentos, com a criação, em 1994, de uma Comissão Especial de Proteção
aos Mananciais, designada CEPM-Guarapiranga e também o CEPM-Billings. (ii) a criação de
um grupo de trabalho que tinha como objetivo propor um plano de preservação, uso e
ocupação do solo para as APM. Os trabalhos do grupo apontavam: (a) a incompatibilidade
entre as legislações; (b) o fato de que a ocupação real, apesar de irregular, estava mais
próxima das disposições da lei municipal do que da lei estadual; (c) uma caracterização de
três grandes áreas homogêneas quanto à ocupação, que foram denominadas de setores 1, 2
e 3” (ANCONA, 2002, p. 293 - 294).
As declarações de Ancona (2002) mostram que a gestão Erundina, diferente das anteriores, avança
significativamente no sentido de pensar um sistema de fiscalização, a revisão da antiga lei e um programa
de intervenção em mananciais, como ver-se-á adiante no Programa Guarapiranga. Devido à sua importância
e pelos recursos aportados, esse programa será mostrado adiante com mais detalhes, como uma grande
intervenção que procurou enfrentar a complexidade dos mananciais.
Em 1991, na gestão do governador Luiz Antônio Fleury Filho (1991-1995), as competências para
aplicação da Lei Estadual de Proteção dos Mananciais passaram para a Secretaria do Meio Ambiente, que
também não elaborou proposta de revisão de legislação.
Com a Constituição Federal de 1988, entra em cena um novo agente, o Ministério Público do
Estado de São Paulo106, que passará a pressionar o governo do Estado e o município no sentido de tomar
providências em relação às irregularidades presentes em área de manancial, principalmente em relação aos
loteamentos clandestinos. O Ministério Público atuará, principalmente, exigindo o cumprimento da
legislação ambiental.
“Como a LPM continuava em vigor, definindo a irregularidade da maior parte das áreas objeto
do Programa Guarapiranga, criou-se uma situação confusa do ponto de vista legal. As ações
de desfazimento de loteamentos movidas pelo Ministério passaram a considerar o Programa,
mas, nos casos em que as obras previstas não tinham sido executadas, os moradores
continuaram sendo ameaçados pelas ações de desocupação” (ANCONA, 2002, p. 297).
A declaração de Ancona mostra um Estado com ações desconexas desde o início de suas
intervenções. Se, por um lado, a prefeitura e o governo do Estado agiam em prol de prover as áreas com
obras de urbanização, outras já sofriam, com as ações do Ministério Público, as ameaças de remoção
associadas ao grande número de loteamentos clandestinos.
Paralelamente, foi criado o Sistema Integrado de Gerenciamento dos Recursos Hídricos (SIGRH),
em 1991, uma nova política estadual dos Recursos Hídricos que se estruturou por meio de órgãos
106
Detalharemos melhor a atuação do Ministério Público em subcapítulo próprio, item 3.5.1.
114
Ancona destaca o contexto em que se insere a revisão da LPM e analisa os fatores que mantiveram
acesas as pressões pela alteração da legislação na década de 1990:
Assim sendo, em 1995 o governador Mário Covas (1995-1999) cria Comissão Especial de
Revisão da Legislação de Proteção aos Mananciais, coordenada pela Secretaria de Estado de Meio
Ambiente. A revisão da LPM encontrou resistência dos grupos ambientalistas preservacionistas, de
setores da academia e de entidades de classe, como a OAB-SP, que temia a ocupação da área caso as
exigências fossem reduzidas. (Ancona, 2002).
A comissão que coordenava a revisão, sob o comando de Fabio Feldman, fez pesquisa para
identificar as questões prioritárias de mudança na LPM, sendo que fiscalização, flexibilização dos índices
urbanísticos, anistia à ocupação irregular e o tratamento de esgoto foram os temas destacados. Segundo
Ancona:
“Os poucos consensos verificados nos discursos dos diversos atores que participavam dos
debates sobre a revisão da LPM eram: (i) que a questão da preservação dos mananciais
passava pelo equacionamento de políticas habitacionais mais enérgicas; (ii) que a legislação
devia conter instrumentos de apoio e indução a atividades mais compatíveis coma proteção
dos recursos hídricos; e (iii) que deveria haver uma especificidade de tratamento e gestão
107
No entanto, no site da SABESP afirma-se que as secretarias estaduais determinaram a paralisação do bombeamento: “Em 1992,
as secretarias de Recursos Hídricos e Meio Ambiente decidiram que o bombeamento das águas do Rio Pinheiros seria realizado
somente em algumas situações, como controle das cheias”. Fonte:
http://www.sabesp.com.br/CalandraWeb/CalandraRedirect/?temp=4&proj=sabesp&pub=T&db=&docid=1A79663C3EE0D06D8
32571AE006ED94B, acesso em 08/08/2009.
115
compatíveis com as diferentes sub regionais da RMSP que já tinham sido reconhecidas na
criação dos 5 sub-comitês das Bacias Hidrográficas do Alto Tietê” (ANCONA, 2002, p. 303).
Em 1997, foi aprovada pela Assembléia Legislativa a nova lei dos mananciais, Lei n° 9866/97, que
estabeleceu importantes diretrizes para a criação e regulamentação das Áreas de Proteção e Recuperação
dos Mananciais (APRM), cujas delimitações deveriam ser propostas pelos subcomitês; estabeleceu
infrações e penalidades que se tornaram imediatamente aplicáveis; foi autorizada a execução de obras
emergenciais nas bacias protegidas pela LPM; estabeleceu diretrizes de infraestrutura sanitária, tratando da
disposição de resíduos sólidos e lançamentos de efluentes e determinou a elaboração das legislações
específicas por bacia hidrográfica.
Em outubro de 1998, foi aprovado o Plano Emergencial dos Mananciais da Bacia Alto Tietê,
propostos pela Lei 9866/97. Esse plano significaria a ampliação de infraestrutura de saneamento nas áreas
mais precárias, principalmente para a represa Billings, porque incluía a autorização de melhorias em 228
bairros no entorno da Billings (67 no município de São Paulo) e 20 na Guarapiranga, dentre o total de 313
áreas abrangidas. No entanto, Ancona (2002) destaca o fato que, diferentemente do Programa
Guarapiranga, o Plano Emergencial não estabeleceu uma unidade de gerenciamento e, dessa forma, a falta
de articulação entre os agentes e os descompassos dos investimentos ocasionaram problemas em seu
andamento.
Ao contrário do período anterior, a década de 1990 é marcada por um intenso debate acerca de
políticas e instrumentos, pela formalização do SIGRH, dos subcomitês, com o objetivo de propor
alternativas ao conceito de proteção integral, visto o crescimento dos loteamentos e ocupações em
mananciais. À iniciativa da prefeitura municipal do início do Programa Guarapiranga irá se somar o trabalho
de Fábio Feldman, no governo estadual, sendo reconhecido pelo debate público e a formalização da nova lei
dos mananciais de 1997. Neste período, se por um lado existia a resistência de grupos ambientalistas com
viés estritamente preservacionista, também se observa a formação de grupos que discutem a necessidade
de compatibilizar a preservação com a ocupação existente.
108
Entrevista concedida à autora em 10/11/2009.
116
adensamento e valorização imobiliária; (ii) uma faixa intermediária definida como o “front da mancha
contínua”, que tinha de ser altamente fiscalizada e focada pela política pública (a ideia era controlar a
expansão urbana com usos compatíveis); (iii) por fim, uma terceira faixa de preservação onde seriam
propostos os chamados “usos sustentáveis”.
Relacionam-se abaixo algumas informações básicas do programa, a partir dos dados oficiais, a fim
de compreender objetivo, estruturação e aspectos importantes que permitam uma rápida avaliação do
cumprimento de seus objetivos.
109
Gerenciar a implantação do programa, acompanhar os procedimentos licitatórios e de contratação, bem como a execução das
atividades previstas e elaborar relatórios periódicos exigidos pelos financiadores.
117
Subprograma 5 – Sistema de Gestão Ambiental. As principais ações desse subprograma eram: (i)
educação sanitária e ambiental; (ii) capacitação de equipes técnicas e ONGs; (iii) fiscalização; (iv)
elaboração do Plano de Desenvolvimento de Proteção Ambiental – PDPA (apontar caminhos para o
desenvolvimento sustentável) e do Modelo de Correlação Uso do Solo x Qualidade de Água. O PDPA dividiu
a bacia em áreas de intervenção: área de restrição à ocupação; área de ocupação dirigida; áreas de
recuperação ambiental; (v) criação de um sistema de monitoramento (físico e qualidade da água).
No término do programa (2000), foi elaborado Relatório Final de balanço pela Unidade Gestora do
Programa – UGP110. Segundo Filardo essa avaliação foi positiva considerando os seguintes aspectos:
110
Para uma avaliação completa do Programa Guarapiranga, consultar: Filardo, Ângelo. Externalidade e gestão dos valores do
ambiente: considerações teóricas e uma aplicação ao caso do Programa Guarapiranga (1991-2000). Tese FAU/USP, 2004.
118
Filardo ainda apresenta um conjunto de indicadores ambientais, tabulados desde o início da operação do
Programa, que colocam em xeque seu principal objetivo, o controle da qualidade de água:
“O índice de qualidade de água (IQA) flutuou entre valores próximos ao limite inferior da
qualidade boa em contraposição com a ideia de manter os níveis de qualidade ótima; os
indicadores de sólidos em suspensão (DBO) mostram que estes não sofreram redução
significativa; o indicador de fósforo manteve-se acima das metas estabelecidas” (op.cit, p.
287).
Filardo (2004) alerta que o balanço feito pelos gestores do programa e pelo Banco Mundial
baseava-se nas obras executadas, mas que isso não é suficiente para garantir os objetivos propostos
para tais áreas: “De fato, enquanto realização física, o Programa Guarapiranga pode ostentar um
histórico de sucessos. No entanto, a sustentabilidade dessas realizações depende de se encontrarem
os meios de lidar com a reprodução da cidade” (op.cit,, p. 321).
Apesar de ser considerada uma experiência pioneira e ainda de ter inserido o tratamento das
áreas livres, como proposta de requalificação dos bairros que passaram por intervenção, ver-se-á
adiante, que segundo a literatura existente, em muitos aspectos a avaliação não foi positiva
principalmente no que diz respeito à qualidade das águas da represa. E acima de tudo não se conseguiu
regular a questão da produção do espaço de periferia no sentido de oferecer condições, à população
pobre em especial, de acesso à terra urbanizada, incluindo a preservação dos “espaços de fronteira”.
111
UEMURA, Margareth Matiko. Programa Guarapiranga. Alternativa para a proteção dos Mananciais? Mestrado em Urbanismo.
Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUC Campinas, Campinas, 2000.
119
Quanto à organização institucional, a autora alerta que o programa demorou a iniciar suas
atividades e houve uma lacuna em sua execução. Somente em 1994 foram realizadas as contratações pela
Sabesp e pela prefeitura municipal, com as obras iniciadas em 1995. O mesmo aconteceu com os demais
executores, como a UGP, a CDHU e a SMA. Houve também inconstância da participação dos técnicos
representantes do poder público no subcomitê Cotia-Guarapiranga. O subcomitê não funcionou como uma
instância de descentralização, como se esperava, porque possuía pequeno poder decisório e dependia da
designação de técnicos de diversos órgãos.
O modelo proposto para a gestão do programa seguiu o Sistema Estadual de Recursos Hídricos,
com participação paritária e tripartite entre Estado, Município e Sociedade Civil. No entanto, não houve ação
integrada entre os diversos setores, como previsto. Isso resultou em obras pulverizadas, intervenções
incompletas e formas de atuar diversas num mesmo subprograma. Uemura (2000, p. 143) argumenta que
“(i) não houve complementaridade nas ações; (ii) os avanços e novas experiências não foram
compartilhadas e reavaliadas; (iii) a operação e a qualidade dos serviços não melhorou; (iv) a ação e
diálogo entre governo e sociedade não foi ampliada”.
As ações que exigiam do Estado um desenho institucional integrado não foram realizadas, tais
como: ação social, participação, educação sanitária e ambiental, fiscalização integrada e o monitoramento.
Verificou-se bastante resistência por parte do Estado em descentralizar as decisões, em ceder poder ou em
inserir a sociedade civil nas discussões por meio dos subcomitês e comitês. Ocorriam também disputas
pelo gerenciamento das secretarias executivas dos comitês, o que gerava apenas atraso do processo e
prejudicava a ação colegiada (ASSIS, 1998, p. 87 apud UEMURA, 2000, p. 144).
Segundo Uemura (2000), adotou-se o critério de urbanizar as favelas por razões de ordem
orçamentária, em que a urbanização (4,5 mil dólares/família) é muito inferior à remoção (20 mil
dólares/família). No entanto, não se adotou o critério de urbanizar as favelas situadas nas sub-bacias mais
poluentes e também não se utilizou o parâmetro de custo/família previsto inicialmente. Os valores de
construção de habitação popular se equiparam ao preço/m² do padrão classe média:
112
“A ação pública não utiliza os instrumentos de informação, capacitação e participação para dar suporte a suas ações. A medida
de “bom desempenho” está sempre relacionado a “medir” a quantidade de obras executadas, pois é através das obras se
movimentam parte dos setores dominantes da sociedade e é utilizando-a como suporte que se faz o jogo clientelista” (UEMURA,
2000, p. 140).
120
Para Uemura, seriam necessários mecanismos de controle social sobre o planejamento das
obras e os custos da execução. O custo médio das obras, segundo planilha de gerenciamento (R$
11.936,00), foi maior que os previstos por família pela PMSP (R$ 6.900,00) e o estimado pela UGP (R$
5.966,00).
A autora alerta que, durante a implementação do programa, algumas decisões atenderam aos
chamados “grupos preferenciais”, comprometendo seus resultados:
A autora sugere que esses “grupos preferenciais” seriam os setores ligados à construção e ao
saneamento público. Segundo ela, nesse período, consolidaram-se na cidade as grandes obras públicas
enquanto mola-mestra para a acumulação de riquezas e poder das empreiteiras e para geração de
empregos, muitas vezes precarizados, ligados à indústria da construção civil.
Quanto aos recursos investidos, Uemura (2000, p. 107) analisa a forma de gestão conforme sua
distribuição em lotes para as empreiteiras: “A divisão da bacia em 13 grandes lotes, com recursos
insuficientes associados ao baixo controle sobre as obras, permitiu que as empreiteiras iniciassem as obras
de urbanização em diversas favelas espalhadas pela bacia com custos além dos disponibilizados no
programa”. O resultado foi a dispersão e pulverização das obras, provocadas pela falta de recursos e, a
partir de 1998, pela distribuição de contratos em lotes de favelas pela PMSP, permitindo que a empreiteira
iniciasse a urbanização por sub-bacia, e não, como esperado, daquelas que possuíam maior contribuição
de esgoto para a represa.
Os recursos inicialmente previstos para os programas tiveram que ser ampliados devido aos gastos
com o subprograma 3 que tratava da recuperação urbana (a urbanização e a adequação de infraestrutura nas
favelas e loteamentos irregulares ou clandestinos). Dessa forma, a continuidade do programa dependeu de
grandes investimentos financeiros e ações de curto prazo, com o risco de perderem-se os trabalhos iniciados,
principalmente no que se refere à urbanização de favelas.
executado pelo DUSM, de fazer vistorias em “mutirão” com as prefeituras, não foi suficiente porque
somente a cada quatro meses retornava à área para nova vistoria.
Quanto aos subprogramas, Uemura avalia que, apesar de o subprograma 5, responsável pela
implantação de um sistema de gestão, ter mantido um orçamento coerente com a proposta de criar novas
formas de gestão na área de proteção dos mananciais, esse valor foi diluído em investimentos em outros
subprogramas, que contemplavam a execução de obras. Do total gasto, somente 1,6% dos recursos foi
empregado em atividades relacionadas à gestão da bacia.
A participação e o trabalho social ocorreram apenas como parte do que foi executado pelas
empreiteiras, com o objetivo específico de viabilizar a relocação das famílias que seriam atingidas pela
execução das obras.
No subprograma 2 Coleta e Disposição Final de Lixo, a ação ficou restrita às obras de regularização
dos aterros sanitários e à compra de equipamentos para os municípios.
As intervenções atingem 67 núcleos, dos 168 previstos nas favelas, e 54 dos 135 loteamentos
inicialmente propostos. Assim, foram atingidos apenas 37,6% do total de famílias (22.599 famílias) previsto
pelo programa.
O questionamento central da autora está no fato de que mesmo com todas as obras realizadas,
com a implantação da rede coletora de esgotos, não houve melhoras significativas na qualidade da água da
122
represa. Isto porque a Sabesp utilizou o sistema convencional (redes, coletores e elevatórias) de
esgotamento sanitário, método que apresenta o inconveniente de entrar em funcionamento apenas quando
todo o sistema for interligado e as obras finalizadas. Como as obras não foram concluídas, colaboraram
para que o esgoto chegasse mais rápido à represa, contribuindo para sua poluição. Assim, não foi possível
medir o impacto na melhora da qualidade da água, pois os esgotos não foram exportados para fora da bacia
e as ampliações do sistema não entraram em funcionamento. Ao mesmo tempo, houve resistência por parte
dos órgãos públicos em adotar tecnologias diferentes das convencionais e, muitas vezes, mais apropriadas
às especificidades do local. Além disso, as empresas contratadas pela Sabesp faliram antes de concluírem
as obras. Executaram os trechos mais simples e encerraram o contrato, deixando o principal coletor tronco
seccionado em diversos trechos.
Após seis anos de atuação do programa, as exportações de esgoto, que no início eram de 10,58%,
não chegam a 24% do total dos resíduos.
A autora destaca também que o impacto do Rodoanel enquanto indutor do crescimento não foi
levado em consideração na elaboração do programa, porque sua implantação foi tomada como irreversível,
visto o dinamismo econômico do eixo viário para transporte de cargas. Ao mesmo tempo, a Unidade de
Gerenciamento do Programa- UGP omitiu-se na discussão sobre o traçado proposto para o Rodoanel, que
cruza importantes nascentes da represa Guarapiranga.
A autora levanta a hipótese de que uma maior consciência ambiental e melhores resultados do
programa estariam associados a uma maior participação dos moradores no momento da intervenção: “(...)
se fosse de fato viabilizado os programas de Educação Sanitária e Ambiental e a Capacitação Técnica, bem
como ampliado o diálogo com os moradores, poderiam ter gerado uma nova sinergia e desencadear
processos de auto-organização e tomada de consciência para a preservação do manancial” (Uemura, 2000,
p. 149).
113
FILARDO, Angelo. Externalidade e gestão dos valores do ambiente: considerações teóricas e uma aplicação ao caso do
Programa Guarapiranga (1991-2000). Doutorado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – FAU/USP, São Paulo, 2004.
123
Filardo chama a atenção para o fato de que as ações do Programa Guarapiranga não consideraram
os interesses dos diversos atores intervenientes no espaço, tais como:
“As relações locais, os horizontes de tempo e a relação com os valores de uso e de troca
produzidos pelo Programa têm grande variação conforme se analisem os interesses de
proprietários e empreendedores imobiliários, proprietários de glebas e de imóveis urbanos
que não residem na periferia, moradores proprietários de imóveis regulares, moradores
inquilinos, grileiros de terras de propriedade duvidosa, moradores que adquiriram a posse
estável de terrenos em parcelamentos clandestinos, moradores ocupantes de terrenos
públicos. Tampouco grupos ambientalistas - seja entidades de atuação mais geral ou
entidades de proprietários com duplo interesse, ambiental e imobiliário – (...) apesar de sua
pressão sobre o poder público para agir sobre essa situação” (FILARDO, 2004, p. 251).
Além da importante atuação estatal (federal, estadual e municipal), Filardo destaca o papel central
do Banco Mundial no Programa Guarapiranga. O autor afirma que, além de ter sido o principal financiador, a
planilha de execução dos gastos foi controlada por esse agente, sendo necessário o cumprimento dos
prazos com vistas a não perder os recursos. O Programa Guarapiranga, com uma gestão centralizada, ficou
sujeito a uma “temporalidade forçada114” e às condições impostas pelo agente financiador, no sentido de
cumprir os desembolsos acordados (Filardo, 2004, p. 318). Esse fator restringiu uma série de alterações
que, surgidas ao longo do processo, mereceriam revisão na forma como as empreiteiras executavam suas
ações. Ou mesmo, a estrutura rígida não permitia redirecionar os investimentos, a partir de problemas
constados pelo monitoramento.
Filardo produz avaliações mais amplas do ponto de vista urbano, questionando que os estudos por
bacia não contemplam a dinâmica de reprodução da cidade: “Do ponto de vista da dinâmica urbana, o
caráter genérico das medidas propostas evidência a insegurança dos formuladores do Programa quanto ao
futuro da ocupação do solo da Bacia” (op.cit., p. 321). “A dinâmica urbana metropolitana – com expulsão
das populações de menor renda dos anéis centrais e o crescimento dos anéis periféricos – não foi
considerada na elaboração das ações” (op cit, p. 321). O autor aponta que, ao contrário, as intervenções
foram sempre no sentido de considerar ações na própria bacia, não levando em conta as influências do
entorno, as relações entre emprego e moradia e dinâmica do mercado imobiliário. Ao desconsiderar todos
esses elementos, se restringiram a medidas corretivas no interior da própria bacia hidrográfica.
114
Filardo explica como sendo uma temporalidade emergencial aos requisitos do cronograma e recursos e menos preocupado
com a produção de resultados duradouros.
124
cirúrgica, e com base nessa ilusão foram gastos US$ 262 milhões, o grosso em obras corretivas, sem que
se tenha avançado significativamente no esforço de alterar a dinâmica urbana que agride os mananciais”
(op.cit, p. 322).
“Uma série de opções na Gestão do Programa – por exemplo, a opção por grandes obras,
em grandes lotes de obras, adjudicados a grandes empreiteiras – privilegia a condução
centralizada das ações, exclui os canais usuais de gestão urbana e da infra-estrutura, em
favor de uma estrutura „ágil‟ (de fato ela foi capaz de ser ágil) centralizada na Sehab e
encara a população local como objeto, não sujeito, da intervenção” (op.cit, p. 317).
A partir da gestão de 1992, segundo Filardo, ocorreu uma ampliação do poder das empreiteiras,
à medida que a interlocução ocorria entre a administração superior e as empresas contratadas,
determinando a alocação dos recursos, frentes de obras e ritmo de implementação do programa.
Apesar do site da Prefeitura de São Paulo, na página da Secretaria de Habitação115, considerar que
as políticas para mananciais foram paralisadas por quatro anos (2001-2004), segundo Cymbalista &
Santoro (2007) e conforme a tabela a seguir, na gestão da prefeita Marta Suplicy, com o término dos
recursos financiados pelo BIRD no Programa Guarapiranga em 2000, a prefeitura dispôs de verbas de seu
orçamento para dar continuidade ao programa até a renovação do financiamento internacional.
Segundo Ancona, desde 1999 a Secretaria Estadual de Recursos Hídr icos e a Prefeitura de
São Paulo estavam trabalhando na elaboração de um novo pedido de financiamento para completar
as obras do Programa Guarapiranga e estendê-las para a Bacia Billings. No entanto, os recursos só
foram liberados em 2005. Ancona explica como foi o processo de elaboração do projeto:
115
“O Programa Guarapiranga teve início em 1996 e seu objetivo era a recuperação socioambiental de favelas e loteamentos
precários localizados na região da represa Guarapiranga na cidade de São Paulo. Depois de quatro anos paralisado, em 2005 o
Programa foi ampliado e passou a atuar também nas áreas da represa Billings, passando a ser denominado Programa Mananciais”.
Disponível em http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/habitacao/programas/index.php?p=3377 acesso em 2008.
126
“Desta vez o projeto, designado Projeto de Saneamento Ambiental dos Mananciais Alto Tietê,
foi desenvolvido com a participação da sociedade civil, das prefeituras do ABC e de um
número mais amplo de órgãos públicos, a partir da instituição do Comitê da Bacia
Hidrográfica do Alto Tietê e dos seus subcomitês.” (ANCONA, 2002, p. 297).
Segundo os documentos oficiais do Programa, fornecidos pela Sehab 116, seu objetivo
principal é preservar os mananciais de água para abastecimento da Região Metropolitana de São
Paulo, mantendo suas condições operacionais, buscando controlar a ocupação de seu território e
melhorar a qualidade de vida da população residente, particularmente no que diz respeito à infra -
estrutura sanitária e habitação.
O documento ainda cita como objetivos específicos do Programa Mananciais: (i) correção
dos principais fatores de poluição dos corpos d‟água naturais (recursos hídricos/serviços de
saneamento); (ii) melhoria dos padrões de ocupação urbana, através de intervenções em
loteamentos irregulares e favelas; (iii) melhoria da qualidade de vida da população residente
(atenuação da pobreza); (iv) melhoria do padrão operacional dos serviços de infra-estrutura básica,
especialmente nas áreas de maior densidade urbana; (v) proteção e recuperação ambiental.
Ações do Programa:
• implantação de redes de água e de coleta de esgoto;
• drenagem de águas pluviais e de córregos;
• coleta de lixo;
• melhorias viárias para veículos e pedestres, com pavimentação e
abertura de ruas e vielas;
• eliminação de áreas de risco;
• iluminação pública;
• criação de áreas de lazer e centros comunitários;
• re-assentamento de famílias;
• construção de unidades habitacionais;
• acompanhamento social junto à população moradora do local;
• educação ambiental;
• regularização fundiária mediante aprovação das Leis Específicas de
Proteção e Recuperação dos Mananciais Guarapiranga e Billings.
116
Documento fornecido pelo Sr. Ricardo Sampaio, elaborado pela JNS/Hagaplan a respeito do Programa Mananciais.
117
Site da SEHAB - http://portal.prefeitura.sp.gov.br/secretarias/habitacao/programas/0005. Acesso em 10/07/2009.
127
O Programa Mananciais, assim como o Projeto Mananciais (que envolve toda a bacia do Alto
Tiête, como se verá adiante), é coordenado pela SSE – Secretaria de Saneamento e Energia do Estado de
São Paulo, através de uma UGP – Unidade de Gerenciamento do Projeto. Além dos órgãos estaduais,
Secretaria de Meio Ambiente, a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São
Paulo (CDHU) e a Companhia de Saneamento de São Paulo (Sabesp), destacam-se as prefeituras
municipais de São Bernardo do Campo, Santo André e Diadema.
As áreas eleitas para intervenção são as integrantes dos Planos Emergenciais118 das Represas
Billings e Guarapiranga, que visam à supressão de situações de risco à vida, à saúde pública e à qualidade
das águas dos mananciais que abastecem cerca de 3,5 milhões de habitantes na RMSP; ações civis
públicas e ações judiciais em áreas de risco e áreas de intervenção; e da Carta Consulta Cofiex – Comissão
de Financiamento Externo, além de áreas remanescentes do Programa Guarapiranga.
118
Lei nº 9866/97, Art 47: Nas áreas de proteção de mananciais de que trata as Leis 898, de 18 de dezembro de 1975 e 1172, de
17 de novembro de 1976, até que sejam promulgadas as leis específicas para as APRMs – Áreas de Proteção e Recuperação de
Mananciais, poderão ser executadas obras emergenciais nas hipóteses em que as condições ambientais e sanitárias apresentem
riscos de vida e à saúde pública ou comprometam a utilização dos mananciais para fins de abastecimento.
128
Segundo a Sehab, são vinte áreas já urbanizadas entre 2005 e 2008 e mais de 46.808 mil famílias
beneficiadas diretamente com as obras de urbanização, sendo 25 mil moradoras de favelas e 22.088 mil
moradoras de loteamentos irregulares de baixa renda. Segue tabela abaixo das obras concluídas por meio
do Programa Mananciais entre 2005 e 2008:
Das 81 áreas, 45 áreas estão incluídas no PAC na região da Billings-Guarapiranga. Seguem abaixo
os números oficiais:
A previsão dos resultados por meio da aplicação dos recursos do Programa de Recuperação de Mananciais120.
Favelas a serem urbanizados: 45
Área total atendida: 1.151 hectares
Famílias beneficiadas: 44.940
Famílias removidas e reassentadas em conjuntos habitacionais: 3.910
Famílias realocadas nos próprios núcleos: 1.305
Drenagem e canalizações: 42 km
Sistemas de abastecimento de água: 112 km
Sistemas de esgotamento sanitário: 186 km
Sistema viário: 228 km
Obras de contenção: 10 ha
Paisagismo: 28 ha
Plantio de árvores: 8.700 mudas
Mobiliário urbano e equipamentos de lazer: 4.870 unidades
Campos de futebol e áreas de recreação: 63.000 m2
Equipamentos de coleta de lixo: 520 unidades
O mapa e a listagem a seguir mostram as áreas que foram objeto de intervenção do Programa
Guarapiranga (1991-2000) e as áreas incluídas no Programa Mananciais (2001- atual). Apesar da prefeitura
atual considerar o inicio do Programa Mananciais em 2005, no período 2001-2004, houve continuidade
com os recursos próprios da prefeitura.
119
http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/habitacao/programas/index.php?p=3377 . Acesso em 05/05/2009.
120
http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/lenoticia.php?id=96311. Notícia de Seg, 30/06/08 - 15h58. Acesso em abril de
2009.
130
131
132
45 42
40
35 33
30
25
20
15 14
10
5
5 3 3
0 1
0
Capela do Socorro Cidade Ademar M' Boi Mirim Parelheiros
Para aprofundar o presente estudo, foram escolhidas três áreas de Capela do Socorro, onde estão
em andamento as intervenções do Programa Mananciais. Estes casos, que serão analisados no próximo
capítulo, permitirão verificar como a população tem recebido as intervenções urbanas do programa.
121
As informações da 1ª fase (2005-2008) do Programa Mananciais são as constantes na Tabela 15: Obras do Programa
Mananciais 2005-2008. As informações referentes a 2ª fase do Programa (2009-em diante) são as 81 áreas constantes no site da
Sehab: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/habitacao/programas/index.php?p=3377. Acesso em 10/06/2009.
122
Entrevista concedida à autora em 03/11/2009, com Ricardo Sampaio, coordenador do Programa Mananciais – Sehab. Entrevista
concedida à autora em 04/08/2009, com Aldo Foltz Hanser, coordenador de Planejamento e Desenvolvimento Urbano.
133
“colaborar” com o sistema de fiscalização proposto pela SVMA. Ressaltou que, com relação à preservação
do meio ambiente, a subprefeitura estava elaborando os projetos de parques, alguns sendo implantados,
que fariam parte do projeto maior da Orla do Guarapiranga e, com base nessa experiência, construiu o seu
relato.
Ricardo Sampaio enuncia o esquema lógico que, segundo ele, está proposto nas intervenções que
vêm sendo feitas em mananciais: “a sustentabilidade da região dos mananciais”. Para ele, não há
experiências desse tipo de política no Brasil. Afirma que em São Paulo, Estado e municípios pertencentes à
região estão dando os primeiros passos em termos de saneamento ambiental, fazendo o que é possível ser
executado, tendo em vista as condições adversas. Assim, é necessário compreender que a gestão pública
possui recursos limitados e, partindo do saneamento ambiental, recuperar a qualidade das águas para
depois aplicar a chamada regularização fundiária sustentável. Segundo ele, um dos maiores desafios é
aprender como administrar o conflito moradia e meio ambiente numa região de mananciais com
características urbanas. Para garantir a autossustentabilidade da região, acredita que haveria a necessidade
de ações de geração de emprego e renda associadas ao meio ambiente. Segundo seu relato:
“A gente sempre se pergunta, o que fazer para tornar essa região autossustentável? Num
primeiro caminho isso passa pela geração de renda para essas famílias que moram lá,
principalmente uma renda vinculada à qualidade do meio ambiente. Um exemplo singelo seria
o potencial que essas áreas têm com o lazer, o turismo. Então quanto mais salubre nós
consigamos manter as águas dessas duas regiões, maior será a possibilidade de lazer e
turismo, portanto maior possibilidade de geração de renda para aquelas famílias que hoje têm
uma renda familiar entre um e três e meio salários mínimos, o que é um problema grave.
Outras possibilidades urbanas, por exemplo, escritórios, gerando emprego, gerando renda. E
aí essas famílias e a população irão trabalhar pela qualidade de meio ambiente. Isso vai
demandar uma mudança de postura, uma atitude nova por parte do poder público e da
população. Os dois (questão social e ambiental) estão diretamente vinculados, não
separados. Então é mais que fiscalização, é educação ambiental, para que tenha uma melhora
no nível cultural, uma modificação nos diversos aspectos culturais dessas famílias hoje
residentes e prepará-las para uma possibilidade do aumento da renda vinculada à qualidade
do meio ambiente. Então creio que a trabalho é extenuante, longo e não se encerra agora. É
apenas o princípio, estamos vendo a possibilidade de no futuro isso vir a acontecer. Seria um
processo dinâmico onde a gente hoje implanta a infra-estrutura urbana, e uma vez essa infra-
estrutura implantada, cabe a continuidade com a educação ambiental, com a geração de
renda, cada morador ou os moradores terem uma profissão, vinculada ao meio ambiente,
então é bastante complexo. A integração dessas duas questões fundamentais (moradia e
meio ambiente) e a complementação entre elas, é que vai dizer do sucesso ou fracasso, acho
123
que isso é sinônimo de sustentabilidade do programa” .
123
Informação verbal, conforme entrevista citada.
134
124
Idem.
135
“Só que para deslocar esse centro hoteleiro para cá, você tem que melhorar a qualidade da água.
Para tanto, você tem que tirar os lugares invadidos e tem que evitar que novos lugares sejam
invadidos. Você tem que evitar a invasão. Como você evita a invasão? Veja bem, na área da
represa, no espelho de água, existe uma cota de cheia máxima. E nessa área, que seria a área
inundável, que o pessoal começa a fazer as favelas, nas partes mais altas. Para evitar invasões
novas, falou-se para a concessionária, que é a Emae, conservar e evitar a invasão. Só que a Emae
não tem condições de fazer isso. E ela viu que a Prefeitura poderia fazer os parques. Se a prefeitura
fizer os parques, a prefeitura cuida. A Emae está dando a concessão para quem consegue cuidar,
então a Emae cedeu a concessão das áreas para a prefeitura construir parques. A prefeitura está
desenvolvendo alguns parques, nessa região, sabe que podem ser inundáveis em algum dia,
ocupar a várzea, mas quando seca você limpa e usa novamente. Conceito de ocupar a várzea com
parques. Meta no plano plurianual é de onze parques na Capela do Socorro. Concentrou aqui na
126
Capela porque você não precisa desapropriar para fazer os parques, já tem áreas livres” .
O coordenador informa quais são esses parques, quais as atividades previstas nos projetos já
elaborados, evidenciando que esses parques127 não são áreas de lazer para a população em geral. A presença de
Campo de golfe, Centro Olímpico de Velas, pista de aeromodelismo, campo de rugby e a ligação com os clubes
de lazer privados mostram que essas áreas tendem a se destinar a usos seletivos das camadas de mais alta
renda:
“A ideia que estamos desenvolvendo aqui é o seguinte: (i) Onde tem a Avenida Robert Kennedy,
tem um Parque da Barragem, que deve ser inaugurado acho que domingo agora, é o primeiro
dessa série. Depois vem o Praia de São Paulo – Praia do Sol – aeromodelismo. Futebol de areia.
(ii) Parque Atlântica; (iii) Parque Castelo – Trapilhe para pescar – mirante. Concentração de
pássaros. (iv) Parque Nove de Julho – campo de rugby; (v) Parque São José I; (vi) Parque São
José II. Nesses parques estão colocando equipamento que as pessoas possam durante o dia e
usufruir essas áreas, podem pescar, equipamentos de ginástica para terceira idade, playground,
pista de caminhada, campo de futebol. Pretendem fazer competições internacionais de
aeromodelismo. E cada parque irá ter uma característica diferente. O mesmo raciocínio que a gente
está tendo aqui a gente está tendo na Billings. Então lá está sendo projetado o Parque da Prainha e
125
Idem.
126
Idem.
127
O decreto nº 49.444 criou o Parque São José, o Parque do Castelo foi instituído pelo Decreto nº 49.445; o Parque 9 de Julho, foi
criado pelo Decreto nº 49.446, e o Decreto nº 49.447 instituiu o Parque da Barragem. "Esses parques representam uma reocupação
do espaço urbano, antes controlado por interesses privados", afirmou o secretário municipal de Esportes, Lazer e Recreação.
136
o Parque da 1ª Balsa e vão existir mais. Como a coisa “pegou” do lado de cá (Guarapiranga) de
fazer os parques, e alguns políticos que estão apoiando as obras, fazendo indicações para ter
ciclovias, lá na Billings. Para a gente é bom que tenha apoio dos políticos, porque é uma maneira
128
de conseguir recursos para viabilizar isso” .
Aldo explica que a prefeitura tem investido na região da Avenida Roberto Kennedy porque pretende
mudar o perfil de ocupação da região, transformando-a em uma área com comércio e serviços mais
selecionados129:
“A Avenida Robert Kennedy tem uma vida noturna intensa, com o passar do tempo, as coisas
que tinham foram se degradando. Começou a aparecer muita boate, inferninho, e o pessoal do
Grajaú da periferia vem tudo para Robert Kennedy, onde acontece a bagunça. A tendência que
vai existir com esses parques é trazer investimentos melhores, veio o restaurante M Borden, Bar
do Lago, Zeca Hora, estão vindo alguns empreendimentos que estão trazendo uma clientela
mais selecionada. Mas você não pode dizer para esse pessoal: „vocês não venham para cá‟,
você não pode proibir. Mas você tem que criar uma alternativa para que eles fiquem onde estão
130
e não venham para cá” .
Aldo explica o que a prefeitura está fazendo nos bairros com vistas ao projeto de enobrecimento da
região da Robert Kennedy. Com apoio financeiro da Comunidade Européia e da prefeitura, foi construído o
Pólo Cultural no Grajaú, um conjunto de atividades no mesmo lugar. Foi inaugurado em meados de 2009,
sendo o projeto geral da subprefeitura. Segundo o prefeito Gilberto Kassab foi a inauguração mais
importante do ano (2009):
128
Informação verbal, conforme entrevista citada.
129
Para saber mais acessar: “Promotoria de SP quer barrar parque na represa Guarapiranga” em 02/09/2010, “Prefeitura derruba
motel para ampliar parque da Guarapiranga”, 04/05/2010; “Prefeitura constrói pista para caminhada na represa Guarapiranga”,
22/04/2010; “Liminar barra construção de parque na represa de Guarapiranga, em SP” 10/09/2010 -
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/796622-liminar-barra-construcao-de-parque-na-represa-de-guarapiranga-em-sp.shtml.
130
Informação verbal, conforme entrevista citada.
131
Idem.
137
Segundo Aldo, para que a região da Robert Kennedy se torne mais “seletiva” é preciso oferecer atrativos
nos bairros, para que essa população, (se referindo aos moradores do Grajaú), permaneçam no “seu lugar” e não
venham a atrapalhar o ritmo dos negócios:
“Estamos pensando em repetir essa ideia em alguns lugares (Pólo Cultural), aí você consegue segurar
as pessoas, no bairro deles, porque tem atividade tem alguma coisa para fazer e não vem aqui para a
Kennedy. E aqui desenvolve um comércio melhor, uma atividade diferenciada, circula mais dinheiro,
vai ter mais turismo, mais segurança, então você tem que fazer soluções integradas. Segura lá, não
adianta você proibir, que na Kennedy a coisa é violenta. Uma vez eu estava voltando, andando no
corredor do ônibus e jogaram uma peça de carro contra o ônibus, estilhaçou vidro, cortou gente, a
molecada que fica lá, o vandalismo, então essas coisas tem que evitar. Existiam alguns empresários
da noite ali que tinham clubes, inferninhos, achavam que nunca iam conseguir tirar essas coisas,
porque era ruim e foi tirado, foi mudando. Foi tirado o muro que era da delegacia, tirar o muro e
colocar gradil para a pessoa ver a represa. O Kassab veio e começou a demolir e viram que a coisa
era irreversível. Os parques estão sendo bem aceitos. Passou no Parque da Barragem, quase pronto,
e estava lotado de gente e os usuários vieram reclamar que queriam o parque dos dois lados. A
132
própria população está pedindo esse tipo de coisa, então a gente vê o acerto dessas soluções” .
As declarações de Aldo apontam para um planejamento pensado no longo prazo que, longe de promover
uma cidade com equipamentos urbanos e justiça social, revela intenções de caráter elitista e segregador. O
equipamento cultural no Grajaú assume várias funções, sendo um deles, segundo a entrevista, concentrar seus
moradores “em seu lugar”, de mudança de comportamento, liberando a Robert Kennedy para outros fins tidos
como mais nobres. Quanto aos parques de lazer não se pode afirmar categoricamente como serão apropriados e
quem os usará. No entanto, apesar de ainda em construção, esses já são elogiados pela imprensa, estão
associados aos clubes particulares e existe uma tendência de serem apropriados por camadas sociais que possam
pagar para usar os equipamentos.
132
Idem.
133
Acselrad, Henri. “Infraestrutura e insustentabilidade”. Revista CREA/RJ, n. 31, ago/set. 2000, pp.8-11.
138
139
140
O Projeto Mananciais é um programa amplo134 em nível estadual, que inclui todas as ações
desenvolvidas na Bacia do Alto Tietê pelas prefeituras e demais órgãos do Estado, como Sabesp e CDHU.
Algumas delas estão em andamento (principalmente as relacionadas às bacias Guarapiranga e Billings) e
outras iniciando suas atividades por meio da solicitação de empréstimo internacional.
As informações abaixo foram retiradas do site oficial do programa. Com isso, procura-se esclarecer
como os órgãos públicos o definem oficialmente:
O Projeto Mananciais tem como áreas de intervenção cinco subbacias de mananciais da RMSP, utilizadas para o seu
abastecimento público: Guarapiranga, Billings, Alto Tietê-Cabeceiras, Juqueri-Cantareira e Alto e Baixo Cotia. A implementação
do Projeto envolverá ações estruturais e não-estruturais, de curto, médio e longo prazo, voltadas, simultaneamente, a objetivos
ambientais, sociais e de ordenamento territorial, definidos a partir do entendimento de que, nas áreas de mananciais da RMSP,
as situações mais agudas se caracterizam pela sobreposição de problemas de uso e ocupação do solo com o consequente
comprometimento da qualidade das águas, frequentemente envolvendo quadros acentuados de pobreza urbana.
Os objetivos específicos do Projeto contemplam os seguintes aspectos: (i) correção dos principais fatores de poluição dos
corpos d´água naturais; (ii) melhoria dos padrões de ocupação urbana; (iii) melhoria da qualidade de vida da população e
atenuação da pobreza urbana; (iv) melhoria do padrão de desempenho operacional dos serviços públicos de infraestrutura; (v)
proteção e recuperação ambiental; (vi) contenção da ocupação inadequada e promoção de usos compatíveis com as
necessidades ambientais; (vii) desenvolvimento tecnológico e do processo de tratamento da água; e, (viii) gestão integrada das
sub-bacias e estudos técnicos de interesse para esta gestão.
Este programa, denominado Programa Metropolitano de Mananciais, inclui:
a) Programa Guarapiranga e Billings, cujo escopo contempla ações de desenvolvimento urbano (expansão de infra-estrutura
pública em loteamentos de baixa renda, urbanização de favelas, construção de unidades habitacionais para famílias a serem
reassentadas, regularização fundiária) nas bacias Billings e Guarapiranga em 45 núcleos, que abrigam cerca de 44 mil famílias.
Participam do Programa o Governo do Estado (Secretaria de Saneamento e Energia, Sabesp e CDHU) e a Prefeitura de São
Paulo (Secretaria da Habitação). O orçamento alcança R$ 870 milhões e conta com o apoio dos recursos do Governo Federal
(PAC). A coordenação está sob a responsabilidade da mesma UGP do Programa Mananciais.
b) Programa Córrego Limpo, que reúne a Prefeitura de São Paulo e a Sabesp, tem por objetivo corrigir deficiências de
sistemas já existentes de esgotamento sanitário, ampliando as vazões transportadas até as estações de tratamento e
gerando maiores benefícios ambientais. Uma vez que as deficiências são mais agudas em áreas marcadas pela urbanização
desorganizada (arruamento inadequado, ocupação de fundos de vale por favelas e outras moradias, problemas de
drenagem), a ação da Sabesp com frequência deve ser apoiada por intervenções da Prefeitura, como remoção de imóveis
situados nas faixas ribeirinhas ou reurbanização de favelas nas proximidades dos fundos de vale para permitir a implantação
de coletores-tronco, e a implantação de parques lineares para a preservação dos fundos de vale. Contempla um total de 100
córregos com população estimada em 3,8 milhões de habitantes e orçamento estimativo de R$ 440 milhões, dos quais R$
310 milhões deverão ser aportados pela Sabesp e R$ 130 milhões pela Prefeitura de São Paulo.
c) Pró-Billings - Programa Integrado de Melhoria Ambiental na Área de Mananciais da Represa Billings no município de São
Bernardo do Campo, a ser financiado pela JICA – Japan International Cooperation Agency para a Sabesp.
d) Projeto Orla Guarapiranga, desenvolvido pela Prefeitura de São Paulo seu objetivo é a recuperação da região da orla do
Guarapiranga para as atividades de esporte, turismo e lazer, por meio de investimentos na implantação de novos parques e
equipamentos para uso da população. Os parques deverão ocupar, principalmente, áreas cedidas pela Empresa
Metropolitana de Águas e Energia – EMAE (empresa do Governo do Estado), a quem pertence o patrimônio da barragem, da
represa e de suas margens. Prevê-se um total de cinco parques, com área total de 1 milhão de m 2, sendo um deles o Nove
de Julho, que faz parte do Programa Mananciais. Os parques serão interligados por uma via pública, uma pista de
caminhada e uma ciclovia.
134
Projeto “guarda-chuva” de todas as ações empreendidas em área de manancial do Alto Tietê, envolvendo os municípios da
RMSP cujos territórios estão total ou parcialmente situados nas bacias protegidas.
141
A Secretaria de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo, por meio do Projeto Mananciais,
“numa perspectiva de uma avaliação ambiental mais abrangente” e vislumbrado o colapso no abastecimento
público, tem estudado algumas alternativas (que vão desde a exploração das águas subterrâneas até a
exploração de reservas hídricas mais distantes, como sistema São Lourenço, na região de Juquitiba, com
potencial para 4.700 litros por segundo) para o enfrentamento dos problemas de oferta de água na RMSP. Não
se sabe ao certo o que isso significa em termos de viabilidade do manancial que é utilizado atualmente
(Billings e Guarapiranga), mas uma série de estudos foi realizada a fim de propor alternativas, pensando no
possível colapso do sistema atual. As alternativas apresentadas abaixo integram o Relatório de Avaliação
Ambiental do Projeto Mananciais:
135
In: Sumário Executivo do Relatório de Avaliação Ambiental (p. xxi- xxii). GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Secretaria de
Saneamento e Energia do Estado de São Paulo – SSE. Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento – BIRD. Relatório
de Avaliação Ambiental dos Componentes do Projeto Mananciais. Junho de 2007- (Revisado em 15 de Junho de 2009). Disponível
em: http://www.saneamento.sp.gov.br/mananciais/RAA_jun09/RAA%20revJun09.pdf acesso em junho 2009.
142
recuperação urbana e saneamento ambiental. Isso demonstra uma intenção de prover a região de infra-
estrutura urbana, de grandes obras de macrodrenagem, consolidando a ocupação existente, no entanto, sem
um acompanhamento de controle de qualidade das obras ou de políticas articuladas direcionadas ao controle
da expansão da ocupação. Como mostra a tabela abaixo:
“Na verdade, no passado se dizia que governar era abrir estradas. Isso não é da década de
20? A frase, do ex-presidente Washington Luiz, foi o mote da sua campanha em 1920. Eu
diria, hoje, que governar, em grande medida, é despoluir rios, pelo menos nas grandes
regiões metropolitanas. Temos feito um esforço muito grande nessa direção. Não apenas
diretamente nas obras que envolvem o Rio Tietê e o Rio Pinheiros, mas também nas áreas
143
dos afluentes, através do programa Córrego Limpo, feito junto com a Prefeitura, em que
pequenos córregos são despoluídos. Nós temos em torno de 50 já despoluídos - e são eles
que antes iam levando a água poluída e os detritos para os grandes rios. Quero lembrar
também que, no caso de São Paulo, nós temos mais de um quinto da população brasileira.
Mas temos apenas 1,6% da disponibilidade de água. A disponibilidade de água no Brasil é
uma das maiores do mundo - mas a distribuição desta disponibilidade no nosso território é
extremamente desigual. O que sublinha uma outra questão crucial, que é não apenas
ambiental, do ponto de vista das condições de respiração, do ponto de vista das condições
de saúde, mas é também do ponto de vista do abastecimento de água, cada vez mais
136
comprometida por esta poluição ”
Assim, o saneamento ambiental assume um papel importante na retórica política, na vertente que
aponta a “escassez” do recurso e a problemática do abastecimento como questões de interesse de toda a
população.
Num período anterior à criação da Secretaria do Verde e Meio Ambiente - SVMA, o controle
do uso do solo em mananciais dava-se por ações e estratégias definidas pela SEHAB, que procurava
organizar-se a fim de conter o crescimento de loteamentos irregulares ou clandestinamente
implantados. Também atuava na contenção de novos assentamentos ilegais em conjunto com as
subprefeituras.
Maricato (1997) afirma que a institucionalidade para lidar com os parcelamentos irregulares
praticamente inexistia anteriormente à gestão da ex-prefeita Luiza Erundina, porque não havia um
departamento equipado e com técnicos para abordar essa questão. Dessa forma, o Estado foi, num
período anterior, totalmente omisso no controle do uso do solo em assentamentos informais:
Maricato também alerta que, na gestão Erundina, sentiu-se a necessidade de criar um grupo
integrado para a fiscalização intergovernamental em mananciais, devido aos conflitos de
136
Pronunciamento de José Serra no Seminário Rios de São Paulo. Promovido pela Globo Universidade em parceria com a USP:
http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/lenoticia.php?id=200666&c=201 Acesso em 10/01/2010.
144
competência superpostos entre os organismos e a desconexão entre as legi slações incidentes sobre
a área, sobretudo a lei de mananciais estadual e a lei de controle do uso do solo municipal. Essa
desarticulação no controle e fiscalização da área, entre outros fatores, resultou num crescente
número de ocupações irregulares, como apresentado no capítulo anterior dessa Tese.
A forte atuação do SOS Mananciais, com o apoio do RESOLO, fez com que seus fiscais sofressem
pressão de grupos armados, tamanhas eram as transformações que estavam ocorrendo na área:
O intenso trabalho do SOS Mananciais é lembrado por vários órgãos como uma experiência positiva
e de fiscalização integrada com diversas instituições como ISA, ONG Espaço, SOS Mata Atlântica, devido a
inúmeras palestras e debates envolvendo a questão da moradia na região sul de São Paulo. Maricato
descreve abaixo a sua composição:
“Em 11/01/91 começa a nascer o que viria a ser o Grupo de Fiscalização Integrada SOS
Mananciais, composto por: Secretaria de Energia e Saneamento, Secretaria de Meio
Ambiente, Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano, Cetesb, Eletropaulo, Sabesp,
DPRN, Polícia Florestal e a Prefeitura de São Paulo. Em um ano de ação, o SOS Mananciais
fez 1.836 vistorias, com 292 intimações a imobiliárias, comércio, aterros, indústrias e lixões,
262 multas, 275 embargos e 529 apreensões. O grupo, formado principalmente por pessoal
de nível universitário, apresentava uma dedicação e entusiasmo incomuns, mas não raros, no
funcionalismo público” (op.cit., p. 36).
Maricato (1997), que foi secretária da habitação na gestão da prefeita Luiza Erundina, oferece uma
avaliação geral das ações no combate aos loteamentos ilegais, grande parte concentrada na região
considerada de mananciais:
A atuação do controle do uso do solo em mananciais, até então restrita à Secretaria da Habitação,
por meio do RESOLO, passou, com o SOS Mananciais, a integrar membros de outras secretarias, inclusive
da recém-criada Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente (SVMA), em 1993. Essa agregou um
departamento de controle, licenciamento e fiscalização e um departamento de planejamento. Até então, no
que se refere ao meio ambiente, a secretaria tinha tradição de cuidar de parques e áreas verdes, declara
Patrícia Sepe137.
Por cerca de quatro anos, a secretaria investiu na contratação de especialistas como geólogos,
agrônomos, biólogos, que foram trabalhar na fiscalização integrada com o Estado. Nesse meio tempo,
começaram a ser estruturados os comitês de bacias do Alto Tietê e subcomitê Guarapiranga e Billings, nos
quais a SVMA foi ativa também na concepção da lei específica Guarapiranga.
Segundo Patrícia Sepe, a SVMA teve períodos de articulação e desarticulação. Tanto no âmbito do
comitê do Alto Tietê e dos subcomitês, houve épocas de maior ou menor participação e também em nível
de gestão. Dependendo do direcionamento político do prefeito, havia maior ou menor prioridade a esses
assuntos.
Um dos problemas adicionais que relata é que toda essa articulação intergovernamental para a
fiscalização se perdeu entre 1998 a 2004, quando os prefeitos Maluf/Celso Pitta acabaram com a
fiscalização integrada do SOS Mananciais.
Abandonou-se totalmente a fiscalização por conta das opções dos secretários responsáveis por
essas áreas na administração, que orientaram suas atuações a criação de unidades de conservação,
estratégia diversa da anteriormente adotada. Os conflitos de direcionamentos políticos diferenciados dos
governos que se seguem, o de Marta Suplicy (PT) na prefeitura e Mário Covas/Geraldo Alckmin (PSDB) no
Estado, segundo Patrícia Sepe, também acabaram dificultando o trabalho integrado que passou a ocorrer
posteriormente em governos com a mesma orientação política.
137
Conforme Patrícia Sepe, geóloga, diretoria do COPLAN- Coordenadoria de planejamento ambiental da SVMA. Entrevista
concedida à autora em 19/11/2009.
148
Com a eleição de José Serra à prefeitura (em 2004), segundo Cymbalista e Santoro (2007), o
alinhamento entre as políticas dos governos municipal e estadual oferece condições de um trabalho mais
integrado. Mesmo sem uma análise mais aprofundada de seus resultados, é possível constatar as
mudanças de orientação que ocorreram, como declara Patrícia Sepe:
“Em linhas gerais, as políticas públicas para mananciais da SVMA foram marcadas, num
primeiro momento, pelo comando/controle, por ter fiscalização, e a institucionalização dos
comitês (de bacias). Depois, uma coisa mais de planejamento das unidades de conservação
(Capivari-Monos e Bororé-Colônia). E hoje a gente tem os dois, o comando/controle e essa
articulação de ter uma política de parques e uma política de unidades de conservação, de
138
terras públicas, de pensar uma política de serviços ambientais” .
As afirmações de Sepe apontam que, atualmente, haveria uma tendência a uma política mais
completa, onde estariam associadas ações de controle da ocupação bem como ações de planejamento
para pensar a preservação em longo prazo. Ver-se-á abaixo como essa política tem se consolidado.
Em 2007, a fiscalização integrada entre Estado e prefeitura nas áreas de mananciais foi
denominada Operação Defesa das Águas.
“Quando Eduardo Jorge entra na SVMA, em 2007, ele decide implementar um programa que
chama Operação Defesa das Águas, que tem a finalidade de olhar para essas áreas como
produtoras de águas, como áreas que precisam ser preservadas, e não simplesmente como
locus de habitação de interesse social, como foram vistas historicamente. Quando você olha
para os mananciais, antes era só política habitacional que estava sendo implementada, nada
de recuperação ambiental estava sendo feito, então essa operação das águas tem algumas
139
vertentes, uma primeira vertente é a fiscalização ”.
Iniciada entre 2005 e 2006, a descentralização da Secretaria do Verde e Meio Ambiente contou
com a criação de quatro núcleos de gestão descentralizada, ampliados para dez140 em 2009. Na Região Sul,
são três, um responsável por M‟ Boi Mirim e Campo Limpo, outro por Capela do Socorro e Parelheiros e o
terceiro por Jabaquara, Santo Amaro e Cidade Ademar. Essa descentralização, segundo a prefeitura, ocorre
pela necessidade de estar mais próxima da subprefeitura e das áreas a serem fiscalizadas. Segundo Marcos
Galhego141, a SVMA foi uma das únicas secretarias não descentralizadas à época da criação das
138
Informação verbal, conforme entrevista citada.
139
Conforme Alejandra Maria Devecchi- Coordenadora do Departamento de Planejamento Ambiental- DEPLAN, entrevista concedida
a autora em 19/11/2009.
140
Divisão Técnica do Núcleo de Gestão Descentralizada Norte 1- Subprefeitura de Freguesia do Ó, Perus e Pirituba/ Jaraguá;
Divisão Técnica do Núcleo de Gestão Descentralizada Norte 2 - Casa Verde/ Cachoeirinha, Santana/ Tucuruvi, Jaçanã/ Tremembé,
Vila Maria / Vila Guilherme; Divisão Técnica do Núcleo de Gestão Descentralizada Sul 1- M boi Mirim e Campo Limpo; Divisão
Técnica do Núcleo de Gestão Descentralizada Sul 2 - Cidade Ademar Jabaquara; Santo Amaro. Divisão Técnica do Núcleo de
Gestão Descentralizada Sul 3- Capela do Socorro e Parelheiros. Divisão Técnica do Núcleo de Gestão Descentralizada Leste 2 -
Aricanduva/ Vila Formosa/ Carrão;Ermelino Matarazzo/Ponte Rasa; Penha/Cangaíba; Vila Matilde; Vila Prudente/Sapopemba. Divisão
Técnica do Núcleo de Gestão Descentralizada Leste 1 e 3- Cidade Tiradentes; São Mateus; Itaquera; Guaianases; São Miguel; Itaim
Paulista. Divisão Técnica do Núcleo de Gestão Descentralizada Centro-Oeste 1 – Lapa; Butantã; Pinheiros. Divisão Técnica do
Núcleo de Gestão Descentralizada Centro-Oeste 2 Sé; Vila Mariana; Ipiranga; Mooca.
141
Marcos Galhego é diretor do Núcleo de Gestão Descentralizada 1, responsável pela subprefeitura de M‟ Boi Mirim e Campo
Limpo.
149
subprefeituras por conta do pequeno núcleo técnico. Para ele, um dos pilares desses núcleos é a
fiscalização, a fim de otimizar as ações dos diversos órgãos e promover o chamado “congelamento das
áreas de mananciais” na zona sul de São Paulo:
“A fiscalização atua com base na lei de crimes ambientais. Na região de mananciais, desde
2007, até antes. Em 2005, houve a criação de um convênio de fiscalização integrada entre
Estado e Prefeitura, e a partir disso começaram ações conjuntas entre diversos órgãos. Aí
vêm a Secretaria do Verde, as subprefeituras envolvidas na região de mananciais, como
M‟Boi Mirim, Parelheiros, Capela do Socorro e Cidade Ademar. Em 2007, houve uma
evolução nesse convênio, a gente buscou dar uma „priorização‟ e resolver alguns problemas
operacionais que tínhamos aqui e, com uma articulação, sem dúvida nenhuma, de nosso
secretário. O Eduardo Jorge levou isso para a Secretaria de Governo e houve uma
rearticulação das outras secretarias e iniciou-se o que é chamado de Operação Defesa das
Águas, cujo foco principal é a fiscalização, mas depois a gente descentralizou em diversas
outras ações. A ideia, basicamente, é juntar todo mundo, todos os órgãos e secretarias que
atuam na mesma região para que a gente possa fazer um planejamento em conjunto, possa
discutir. Até então a gente via cada um correr para um lado, muitas vezes de uma forma em
142
que o resultado do todo não era bom” .
Aprimoramento da fiscalização e do controle, por meio: a) Criação da Guarda Ambiental; b) Criação da Zeladoria
Urbano-Ambiental e Agentes da Comunidade; c) Alocação de Agentes de Controle Ambiental e Agentes Vistores;
d) Articulação com as Polícias Militar, Ambiental e Civil.
Congelamento de áreas e ocupações: Uma das primeiras ações práticas da Operação é congelar as ocupações
existentes em áreas de preservação nas subprefeituras de M‟Boi Mirim, Parelheiros e Capela do Socorro,
impedindo a expansão dos assentamentos irregulares. Isso será feito com a demarcação e sinalização das
áreas, cadastramento dos moradores, divulgação de boletins, mapeamento e retirada de construções nos locais
proibidos.
142
Conforme entrevista concedida à autora por Marcos Galhego em 04/12/2009, no núcleo descentralizado de M‟ Boi Mirim.
143
Prefeitura lança Operação Defesa das Águas. 23/03/2007 – Parelheiros. Fonte:
http://www2.prefeitura.sp.gov.br/noticias/ars/sppa/2007/04/0002. Acesso em 24/03/2009.
150
Desfazimento e remoções: A Operação prevê o desfazimento imediato das construções irregulares recentes,
evitando-se a expansão do problema. Também será planejada a remoção de parte das famílias já instaladas em
áreas de proteção, mediante a análise caso a caso, de acordo com a lei.
Urbanização de favelas e bairros: A Prefeitura, com base na Lei Especifica da Guarapiranga e na Lei do Plano
Diretor e seus instrumentos, fará a definição dos assentamentos que poderão ser urbanizados total ou
parcialmente.
Alternativas às famílias: Se for definida a necessidade de remoção, esses casos serão analisados
individualmente para identificar quais soluções poderão ser oferecidas aos moradores.
Regularização fundiária: A Operação Defesa das Águas também prevê a regularização fundiária, a partir do
levantamento dos loteamentos, o que já foi iniciado. Isso significará a regularização dos títulos de posse e até a
expedição de Habite-se.
Limpeza e coleta de resíduos sólidos: A Prefeitura já deu início à implantação de sistema de limpeza em toda a
orla da Guarapiranga e, em seguida, na Billings, assim como nos córregos contribuintes e bairros adjacentes. A
Secretaria Estadual de Saneamento definiu que a Sabesp passa a assumir a parte da limpeza de lixo dentro do
leito dos córregos e das represas, numa operação conjunta com a Prefeitura de São Paulo (Limpurb).
Desenvolvimento econômico e social: O mapeamento dos diversos estudos e projetos de investimentos para a
região dos mananciais poderá melhor articulá-los no âmbito de uma matriz de desenvolvimento sustentável.
Exemplo são os projetos para a Orla da Guarapiranga. Vários projetos e propostas para a mesma finalidade, de
iniciativas diversas e fontes de financiamento públicas e privadas, estão sendo analisados entre si para articulá-
los e integrá-los com cronograma que considera o potencial e o impacto dos investimentos na recuperação,
proteção e desenvolvimento da região.
144
Conforme entrevista concedida a autora, por Marcos Galhego em 04/12/2009, no núcleo descentralizado de M‟ Boi Mirim.
151
A fiscalização diária das áreas é feita pela Guarda Civil Metropolitana Ambiental. Ela percorre
perímetros considerados prioritários 145 para conter novos focos de invasão ou de ocupação irregular.
“A GCM faz essa ronda diária e nos passa os relatórios produzidos. Com base nesses relatórios e em
outras coisas que eventualmente surgem, como uma denúncia anônima, a gente faz uma
programação de vistorias”, diz Marcos Galhego 146.
“Por mais que se procure, não temos a agilidade que se gostaria, porque tem que
notificar, por mais que saiba que é uma área irregular, que não é da pessoa e que se
enquadra nos critérios para demolição, tenho de seguir todo um procedim ento que é
lento, é moroso, porque muitas vezes há também dúvidas jurídicas, e muitas vezes a
gente chega lá e não encontra o morador. A população também sabe, digamos assim,
de mecanismos para que eles possam tentar se safar e construir. Aí, se agente não
consegue chegar antes e demolir ou parar a obra, antes que ele conclua, agente tem
de entrar em outro procedimento, que é notificar da mesma forma, que é passar para
nosso secretário (SVMA) para que ele determine essa demolição. Isso é para casos
em que a pessoa está há menos de um ano. Quando ela está há mais de dois anos
agente tem de fazer outras consultas jurídicas para saber se pode demolir ou não. Até
um ano agente pode. As pessoas estão cientes, de um modo geral foram avisadas que
147
não podem construir ”.
“O ideal, o correto para a gente conseguir impedir era a gente chegar lá e demolir na
hora, sem tem que notificar absolutamente nada. O certo para isso funcionar, não
estou falando da questão jurídica, apenas do operacional, era a gente sair agora,
demolir e falar: “Aqui não pode construir”. Só que não, a gente tem de ir lá notificar,
depois tem de vir aqui responder, mas a pessoa pode se recusar a receber a
148
notificação... Infelizmente, a gente não pode demolir sem ter esses procedimentos” .
Para o administrador, não se pode “perder para novas ocupações”. Assim, os procedimentos
de fiscalização são bastante austeros, usa-se o medo, sendo aplicada uma fiscalização ostensiva,
acreditando que “o certo para funcionar é demolir”. Afirma ainda que o ritmo adotado é menor que a
necessidade, que é necessário respeitar os procedimentos legais e que o projeto, no longo prazo, é a
criação de parques considerados naturais a fim de fazer a contenção do espraiamento da ocupação e
dar uso para a população. Afirma que a estratégia básica do programa Defesa das Águas é agir com
a repressão, mas que, no entanto, encontra-se em formação um projeto de parques naturais com a
função de conter a ocupação dispersa nas áreas de mananciais, a fim de proteger as reservas
145
Perímetros prioritários: Cada subprefeitura indicou algumas áreas e a SVMA avaliou a pertinência sobre o enfoque ambiental.
“Houve certa negociação entre nós e as subprefeituras para determinar quais seriam esse perímetros prioritários. Basicamente
seriam aqueles próximos a córregos, áreas verdes, para impedir o avanço de novas ocupações”.
146
Idem.
147
Conforme entrevista concedida a autora, por Marcos Galhego em 04/12/2009, no núcleo descentralizado de M‟ Boi Mirim.
148
Idem.
152
remanescentes. Ele trabalha com a ideia da cidade compacta, da ocupação das áreas livres em
locais que dispõem de infraestrutura.
“Quando vamos a determinado bairro que está em expansão, a gente notifica e fala que, se
existirem novas casas, por favor nos comuniquem, porque se isso ampliar pode ser que na
hora da demolição sobre para todo mundo, a gente usa do medo mesmo para as pessoas
entenderem que a gente não está brincando. Tem essa fiscalização que é ostensiva, que atua
em cima da repressão, mas temos também um plano para a construção de parques, dando
uso para as áreas que estão propensas a ser invadidas e ocupadas. E que esse uso seja
apropriado pela própria população, senão a gente vai perder para novas ocupações. Então a
gente está com um plano de parques bem ousado, mas gente está desenvolvendo isso
149
ainda” .
Marcos Galhego questiona a solução habitacional proposta pelo Programa Man anciais, no
entanto, pode-se perceber que as ações dessas secretarias, SVMA e SEHAB, são bastante
descoladas em se tratando de remoção e criação de parques, por um lado, e o atendimento
habitacional, por outro.
“Se a gente fosse pensar em remoção de casas que estão na área de córregos, com
certeza essas famílias, para elas saírem, teriam de ter outra moradia. Pessoas que
estão há mais tempo. Não sei como está agora, mas sei que antes havia uma verba
indenizatória de R$ 5 mil, R$ 8 mil para área de risco, que recebia isso e muitas vezes
invadia outra área de mananciais. Não acho que essa solução tenha sido eficaz,
muitas vezes até aumentou o próprio problema”.
Esse descolamento das ações tem causado uma série de conflitos entre moradores e os
órgãos públicos. Se a secretaria que atua na remoção ou na fiscalização não tiver uma atuação
integrada com a secretaria responsável em oferecer uma solução habitacional, é de se esperar que
no território os direitos fundamentais, como a vida, moradia e meio ambiente sej am violados.
149
Idem.
153
154
155
Como os programas Mananciais e Defesa das Águas (entre outros em nível estadual) ainda estão
em andamento, não se pretende fazer uma avaliação instrumental como realizado por Uemura (2000) para o
Programa Guarapiranga. Apontam-se abaixo algumas considerações a partir de avaliações já existentes
feitas por atores sociais relevantes que acompanham essa questão em São Paulo e por entrevistas
realizadas para essa Tese, com representantes de instituições diretamente envolvidas com o programa ou
afetadas pelas intervenções públicas em mananciais.
Segundo Elizabete França (2009), apesar dos vários estudos críticos sobre o Programa
Guarapiranga (MARTINS, S., 1999; FILARDO, A. 2004; MARTINS, M. 2006; WHATELY M. & CUNHA, P.
2006), é possível identificar vários avanços do Programa: “O mais importante deles diz respeito às
mudanças da legislação de proteção aos mananciais (...) que permitia ao poder público intervir nas áreas
ocupadas de forma precária nas regiões de mananciais; e também (...) poder contar com novos
instrumentos de gestão. (FRANÇA, 2009, p. 182-183).
A superintendente enfatiza, mais uma vez, o caráter técnico das intervenções, a força da legislação
urbano-ambiental e dos instrumentos de gestão urbana a orientar os rumos das intervenções,
desconsiderando o que já foi debatido na sociologia urbana acerca do caráter ideológico da lei (Villaça,
1999).
Outro aspecto por ela destacado são as lições aprendidas com o Programa Guarapiranga e que
permanecem na atual política para mananciais: “a compreensão da questão ambiental como componente
central das políticas públicas e a criação de uma cultura de integração institucional para o desenvolvimento
de ações multissetoriais” (op.cit., p. 184). Aponta também o papel do subprograma de recuperação urbana:
“Ao definir como conceito central do programa que a capacidade de poluição não estava
vinculada diretamente às famílias de baixa renda que viviam na região, mas sim, a falta de
investimentos no setor de infra-estrutura básica, as ações de recuperação urbana e ambiental
passaram a cumprir uma função além do simples combate à contaminação das águas do
manancial” (op.cit., p. 190).
Para a autora (2009) as políticas de recuperação urbana são fonte de aprendizados e inovações
relacionadas à: integração dos assentamentos precários à cidade; respeito pelo patrimônio construído; ouvir
150
Elizabete França, arquiteta, servidora pública da SEHAB/PMSP (1993-2000) e Superintendente de Habitação Popular (2005-
atual). Apesar da pesquisa de Elizabete França (2009) avaliar o Programa Guarapiranga, a autora continua no comando da
SEHAB/PMSP do atual Programa Mananciais, considerado uma continuidade do programa anterior. Desta forma, a avaliação
institucional não deve alterar-se significativamente.
156
o “cliente”; respeito à configuração urbana do lugar; construção de espaços públicos a fim de melhorar a
vida dos assentamentos precários; influência das legislações ambientais.
França destaca a experiência do Programa Guarapiranga como sendo fonte de boas práticas nos
sentido de considerar uma “política pública abrangente e multissetorial”, fornecendo uma espécie de
“metodologia para projetos de urbanização de favelas, visando, principalmente, sua transformação em
bairro integrado à cidade formal”.
“Os projetos e obras passaram a ter como objetivo maior a integração dos assentamentos
precários e informais, à cidade reconhecida como formal adotando-se, a partir daí, o conceito
de “qualidade urbana”, ou seja, a transformação de áreas de “urbanização sem cidade” em
novos bairros dotados de serviços e que permitam aos moradores, o seu “pertencimento” à
cidade” (op.cit., p. 190).
Mesmo reconhecendo a importância das intervenções estatais, o que se observará na análise nos
casos empíricos é que o discurso difere da prática. Diversas políticas com ações desconexas são aplicadas
na região dos mananciais com ações de regularização, remoção e fiscalização, retomando, em
determinados casos, as ameaças de remoção frente ao discurso de preservação da região produtora de
águas. Nestas a população é tratada como objeto das intervenções ou como causadora de danos
ambientais.
Para a SVMA a seleção das áreas e a tipologia das intervenções deveriam considerar outras
variáveis. Além de considerar como critério as áreas intensamente urbanizadas, como ocorre atualmente, as
intervenções deveriam incluir áreas que apresentem um padrão urbano menos denso, nas suas porções
mais ao sul com o objetivo estratégico da produção de água, sendo necessário para sua conservação e
preservação uma atuação voltada também para desfazimentos, isto é remoção das ocupações mais
recentes, de forma a atender a resolução do Conama n° 369/06. Outro ponto de discordância são os
157
modelos de projetos aplicados nas intervenções. Para Serpe, as soluções apresentadas até o momento são
bastante tradicionais. Ela cita o exemplo do tratamento da drenagem que em muitas áreas não é definido
qual será a solução para a canalização, se será adotado uma tipologia aberta ou fechada de escoamento
das águas. Segundo Sepe, as soluções estão muito tímidas não apresentando ganhos ambientais: “Agora
tenta-se uma negociação de não fazer mais soluções tradicionais, quando dá para dar uma ambientalizada,
mas ainda é um programa muito de obra, bastante convencional151”.
Segundo Sepe, “entende-se que um dos objetivos a serem alcançados com a implementação das
obras é a regularização das áreas. Esse processo, quando bem conduzido, considerando os aspectos
sociais e ambientais constitui importante instrumento de justiça e cidadania” (SEPE, 2008, p. 245).
“A grande preocupação que se coloca é de que não havendo intervenções do poder público,
seja para a implantação de obras de urbanização ou para a remoção parcial ou total das
famílias em áreas menos adensadas e localizadas em áreas estratégicas para a produção de
água, o simples reconhecimento destas áreas como ZEIS-1 não terá nenhuma efetividade
enquanto política pública seja de habitação ou de proteção dos mananciais” (SEPE, 2008, p.
248).
Sepe (2008) questiona a forma de intervenção do Programa Mananciais que, em geral, não tem
contemplado a resolução do Conama n° 386/06, que admite faixa marginal de 15 metros desocupada ao
longo dos cursos d‟ água:
“Entretanto, com exceção da solução proposta para o Cantinho do Céu, onde se prevê um
total de 1830 famílias removidas com a desocupação das áreas de 1ª categoria e de
preservação ambiental às margens da Represa Billings, algumas áreas tais como a Nova
Grajaú II, Cocaia I e Jardim Toca, face a sua proximidade com a Represa Billings, apresentam
propostas de intervenções cuja efetividade para a melhoria da qualidade e quantidade de água
é muito restrita” (op.cit.,, p. 245).
A SVMA não deixa de ressaltar a importância da atuação do poder público nas áreas de mananciais
na região Sul de São Paulo a fim de “minimizar o impacto do avanço da ocupação urbana” (Sepe, 2008, p.
151
Entrevista concedida à autora por Patrícia Sepe, SVMA, em 19/11/2009.
152
De acordo com o Plano Diretor Lei nº13.430/2002, as ZEIS-1 são áreas ocupadas por população de baixa renda como favelas,
loteamentos irregulares e conjuntos habitacionais de interesse social nos quais podem ser feitas recuperações urbanísticas,
regularização fundiária, produção e manutenção de habitações de interesse social, incluindo equipamentos sociais e culturais,
espaços públicos, serviço e comércio de caráter local.
158
249), no entanto, afirma que este não foi capaz de reverter o quadro de degradação ambiental e social da
região:
“As obras e intervenções realizadas na última década tiveram como foco central a melhoria
das condições urbanísticas dos assentamentos e a redução do aporte de carga poluidora
(esgotos domésticos, prioritariamente). Dados apresentados pela coordenação do Programa
Guarapiranga ressaltam a importância destas intervenções na melhoria da qualidade da água
do reservatório Guarapiranga. No entanto, resultados mais efetivos e duradouros só serão
alcançados se, (...) aliadas às intervenções já realizadas (...) sejam priorizadas também as
ações e intervenções de combate a erosão e ao assoreamento dos dois reservatórios (...)
considerando o sistema bacia hidrográfica-reservatório como um sistema único. O segundo
pressuposto, é a necessidade de se buscar uma nova forma na valoração econômica de
áreas prestadoras de serviços ambientais (...)” (op.cit.,, p. 250).
A SVMA propõe uma forma diferenciada de intervir em mananciais, que está associada à prioridade
de pensar a região como “produtora de água”. Assim, o manejo adequado das áreas não ocupadas
incentivando a ocupação compacta, a criação de parques naturais, a implementação dos serviços
ambientais colaborariam com a noção de preservação. O fortalecimento institucional da SVMA tem levado,
nos últimos anos, a um enfrentamento público e político e afirmação das divergências na forma de atuação
do poder público em mananciais. Esse embate aparece publicamente em seminários sobre o tema, em
reuniões com a população153, o que tem levado a um trabalho distanciado entre as secretarias, em se
tratando da atuação municipal em áreas de manancial.
Abaixo, traçaram-se alguns apontamentos a partir de atores sociais que se propõem a monitorar as
políticas públicas em São Paulo, mostrando as conexões entre as ações municipais e os conflitos
decorrentes dessa atuação, que serão evidenciados no próximo capítulo dessa Tese.
153
Informação concedida à autora por meio de entrevista com o diretor do Núcleo de Gestão Descentralizada 1, responsável pela
subprefeitura de M‟ Boi Mirim e Campo Limpo, Marcos Galhego. Ele referiu-se a uma audiência na região sul de São Paulo em que o
coordenador Ricardo Sampaio (SEHAB) questionou se toda a população não estava satisfeita com as obras, especialmente o asfalto
executado em todo o bairro, questionando o coordenador da SVMA que fiscaliza as obras executadas pelas empreiteiras e a
impermeabilização ocasionada pelas obras.
154
Denominou-se “observadores” de Políticas Públicas o conjunto de instituições e atores que procuram monitorar a
implementação das políticas de habitação e meio ambiente na região de mananciais do Município de São Paulo: Observatório dos
Direitos Dos Cidadãos - esforço conjunto do Instituto Pólis e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Observatório dos
Recursos dos Mananciais, esforço conjunto para monitoramento das ações em mananciais, formado por Fundação Getúlio Vargas,
Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo (CDHEP), Instituto Socioambiental (ISA), ONG Vitae Civilis .
159
Partindo do orçamento previsto e liquidado da SEHAB (2004-2006), Cymbalista & Santoro (2007)
verificam uma redução no orçamento liquidado no período 2004-2006 para as áreas centrais da cidade e
ainda uma reapropriação dos recursos para investimentos em urbanização de favelas, inclusive em
mananciais. Segundo a avaliação dos autores essa redução significa descontinuidades e redirecionamentos
das ações e projetos bem como prioridades políticas bastante diferenciadas, se comparada à gestão
anterior de Marta Suplicy (2000-2004).
E ainda chamam a atenção que, para o caso de mananciais, mais de 50% do orçamento provem de
recursos propostos por emendas de vereadores:
Esse fato é importante para qualificar que além da prefeitura, vereadores e/ou interesses ligados a
esses grupos estão manifestando sua preocupação com a ampliação das ações e recursos em mananciais,
confirmando a ideia difundida de que o abastecimento público atinge a “todos” na cidade.
Conforme o orçamento do município de São Paulo, no período 2004-2009 houve um aumento dos
recursos investidos pela SEHAB no Programa Mananciais. Neste período estes passam de R$ 37 milhões
para mais de R$ 250 milhões, crescimento de 575% nos valores anualizados no período. Destaque para o
ano de 2006, em que houve crescimento de 121,67% em relação a 2005. Em 2008, a aplicação também foi
dobrada em relação ao ano anterior. A comparação com os recursos totais da Secretaria de Habitação
deixam ainda mais clara essa prioridade. Em 2004, os investimentos no Programa Mananciais
representavam 0,29% do orçamento total da secretaria. Em 2009, chegam a 1,31%, conforme dados da
tabela abaixo.
155
Segundo tabela das ações da Sehab e do Fundo Municipal de Habitação previstas e liquidadas no Orçamento- 2004-2006, o
orçamento liquidado em 2004, R$ 37.084.950,00 (31,75% do orçamento das ações da SEHAB); em 2005, R$ 37.188.841,00 (31,90%
das ações da SEHAB); em 2006 82.435.001,00 (37,56 % das ações da SEHAB). Fonte: (Cymbalista e Santoro, 2007, p.21)
160
(1) Variação dos recursos aplicados do Programa Mananciais em relação ao ano anterior.
(2) % do orçamento do Programa Mananciais em relação ao total do orçamento da Sehab/PMSP.
Fonte: Orçamento do Município de São Paulo, Tabulação Simone Polli, 2010. Disponível em:
http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/orc_homenew.php. Acessado em 20/01/2010.
Conforme tabela acima e a análise construída por Santoro et alii (2009) dos dados comparativos
dos recursos investidos e das famílias atendidas dos Programas Guarapiranga e Billings, permite também
observar que, pelos recursos investidos, a SEHAB tem ultimamente ampliado sua atenção à questão dos
mananciais:
O volume de recursos aplicados levou determinados atores da sociedade civil a procurar organizar-
se a fim de monitorar sua aplicação. Para tanto, entidades como o Centro de Direitos Humanos e Popular de
Campo Limpo (CDHEP) e a Fundação Getúlio Vargas se articularam para a construção do Observatório de
Recursos Públicos na Região de Mananciais de São Paulo156. No entanto, conforme entrevista para essa
Tese, Ana Silvia Puppim, uma das articuladoras do observatório, declara que a principal descoberta é que o
“Estado é opaco” na apresentação de projetos e informações que garantam um controle social das obras
em execução. Segue abaixo o seu depoimento:
156
http://www.cdhep.org.br/HF_observatorio.php
161
chegar, um contrato entre a prefeitura e uma empreiteira. A gente queria acompanhar, olhar
se o que está escrito no contrato, porque é nele que está especificado o que tem que fazer e
como tem que fazer. E aí põe o contrato na mão da população que mora ao redor, explica o
que está no contrato, se estiver numa linguagem difícil. A população acompanha, porque
quem está ali morando do lado todo dia tem condições de ver. A gente perguntou para um
representante do poder público: mas o contrato não é publico, não é um serviço público? Não
é um segredo de estado! O contrato é público, mas o conteúdo não é publico, ele falou pra
gente. No observatório a gente tem descoberto que é muito complicado ter as informações
em sua concretude. O que nós queríamos inicialmente que era ter a informação clara, sentar
com a população e explicar é essa a informação. Então a gente tem descoberto como o poder
público é opaco, não é nada transparente, ele tem uma áurea de transparência, mas não é.
157
Principalmente com a população carente que é tratada de qualquer maneira .
O histórico dos programas demonstra que o poder público tem ampliado a aplicação de recursos
para intervir nas áreas de mananciais. No entanto, Santoro et alii (2009, p. 125) alertam para uma série de
descompassos dessas ações:
“(...) há um grande descompasso entre a formulação de uma política ampla, que vise a
recuperação de áreas ocupadas - orientada principalmente pela revisão da legislação
específica - e a falta de definições quanto a uma política de proteção, voltada às áreas não
ocupadas. Trata-se da necessidade de elaborar uma a política fundiária e de uso do solo
destas áreas, não somente por meio de uma legislação restritiva. Há que se conhecer em
maior profundidade o histórico dessas propriedades não ocupadas, diagnosticar sua
potencialidade ambiental, e fazer propostas de usos compatíveis com a produção de água.
Apesar de existirem projetos nesse sentido, de iniciativa privada ou pública, não há a
articulação em torno de uma política de proteção que oriente a ação pública e vá além da
tentativa de aplicação da legislação de restrição de uso da propriedade, muitas vezes
superada pelos próprios interesses privados. Simultaneamente, a dinâmica urbana de uso da
terra pressiona o parcelamento e o uso para fins urbanos, que são altamente lucrativos. A
urbanização avança sobre os mananciais cada vez mais não só com a ocupação para
moradia da população de baixa renda, mas é reforçada por obras como o Rodoanel, que
apesar de estar amparado num discurso ambiental é fator central que redefinirá o uso do solo
na região no sentido da expansão e não da contenção da ocupação. A multiplicidade de usos,
impactos e demandas sociais presentes no manancial, exigem uma multiplicidade de ações e
políticas para sua recuperação e proteção. Não é o que se verifica com as intervenções
recentes, que reproduzem modelos já criticados e em certa medida avaliados tanto no
aspecto habitacional, social, urbano e ambiental” (op.cit, p.125).
A desarticulação nas políticas públicas evidenciada acima por Santoro et alii (2009) é comprovada
pelas ações da Prefeitura e Estado em mananciais, onde estão dissociadas as políticas de estruturação
urbana, de saneamento ambiental com as políticas mais amplas de controle da ocupação. Essa crítica, que
se considera bastante pertinente, aponta para os diferentes conflitos ambientais decorrentes dessa
desarticulação no território entre aqueles atores que propugnam o seu direito à moradia e o Estado com as
diferentes e dissociadas formas de intervir em mananciais. Ver-se-á adiante quais são os principais
conflitos decorrentes dessa atuação do Estado em mananciais.
157
Conforme entrevista concedida à autora por Ana Silvia Puppim, em 06/11/2009.
158
ONG que trabalha com produção de informações e diagnóstico participativo nos mananciais de São Paulo há mais de 10 anos.
162
forneceu soluções adequadas para reverter as tendências de degradação das bacias hidrográficas, resultando
na diminuição da qualidade da água de todos os reservatórios da RMSP”159. Segundo a ONG, a proposta de
proteção dos mananciais deveria contemplar: (i) a diversificação das formas de tratamento dos esgotos; (ii)
ampliação das áreas protegidas; (iii) limitar o avanço da cidade sobre os mananciais; (iv) envolver e oferecer
informações à sociedade civil.
“As iniciativas governamentais também pecam pela falta de transparência para que a
sociedade possa participar e acompanhar os projetos em curso e investimentos previstos.
Apesar de o governo estadual colocar na internet informações gerais sobre o PRM e sobre o
PAC, não existe endereço, site ou ferramenta na Internet, por exemplo, que permita que os
moradores e demais cidadãos saibam o que está acontecendo em cada uma das áreas
escolhidas para receber as obras. Também não há disponibilidade de informações sobre a
melhoria ambiental, urbanística e da qualidade da água antes e após a execução de cada uma
160
das obras” .
A ampliação dos núcleos descentralizados, a priorização da política para fiscalização por parte da
SVMA, a orientação do Ministério Público para que a Prefeitura de fato assuma essa vertente, tem produzido
ações que, segundo ver-se-á em um estudo empírico, configuram abuso de poder na atuação de
fiscalização, desrespeitando os moradores que já habitam o local muitas vezes há mais de 25 anos.
Essa proximidade dos núcleos descentralizados da SVMA nas subprefeituras, destacada como um
ponto positivo pela administração, tem sido entendido pela população, segundo Ana Silvia do CDHEP e
Liliane do CEDECA, como uma ação repressiva, que tende a aumentar a tensão e medo em torno da
insegurança da posse da moradia. O chamado “congelamento” é ridicularizado pela população que não
pode ampliar sua casa161. Ao mesmo tempo, o Ministério Público tem apoiado as ações de fiscalização em
mananciais como forma de impedir novos loteamentos clandestinos.
A questão central a ser debatida é que as políticas não articulam estratégias que pensam o território em
sua concretude, isto é, por meio das relações entre os atores e processos que produzem esse tipo de espaço.
Estas têm se concentrado em obras físicas especialmente de infra-estrutura urbana que não garantem a
sustentação dos objetivos. Verifica-se assim a necessidade da construção de mecanismos mais justos que
pensem em interferir estruturalmente na lógica de produção da cidade periférica, precária e ambientalmente
desigual a fim de promover o acesso à terra e à cidade para a população de baixa renda, garantindo a
preservação das áreas ambientais relevantes.
159
http://www.mananciais.org.br/site/mergulhe_nessa/noticias?nsa_id=2716 “PAC e demais programas para mananciais
apresentam soluções incompletas”. Acesso em 17/07/2008.
160
http://www.mananciais.org.br/site/mergulhe_nessa/noticias?nsa_id=2716 Acesso em 14/07/2008.
161
Conforme depoimento de Jaime Crowe em 08/12/2009.
163
comunidades indígenas e minorias étnico-sociais). A instituição da Ação Civil Pública162 e do Inquérito Civil,
bem como a criação da Defensoria Pública no âmbito da Constituição Federal de 1988, como instituição
essencial à função jurisdicional do Estado (art. 134), teve reflexos diretos na pressão exercida sobre outros
poderes e na resistência dos moradores, como mostram os casos estudados nesta Tese, relacionados aos
conflitos por moradia em áreas ambientalmente protegidas.
A atuação do Ministério Público nos litígios envolvendo moradia em áreas de mananciais inicia-se na
década de 1990. Em relação aos mananciais, o MP trabalhou em parceria com SEHAB/Resolo no período
anterior à formação da Promotoria de Habitação, em que as Ações Civis Públicas (ACPs) ainda eram
tratadas no Núcleo Operacional de Combate a Loteamentos Clandestinos. Esse núcleo tinha atribuição
apenas criminal, de receber os inquéritos policiais relativos aos loteamentos clandestinos da cidade de São
Paulo.
162
Mesmo estando referida no capítulo da CF relativo ao Ministério Público (artigo 129, inciso III) não é de exclusividade deste
órgão.
163
Cf. POLLI, Simone. Mapeamento dos litígios no cadastro do Ministério Público de São Paulo: apontamentos de uma pesquisa em
andamento. Semana IPPUR, 2008. Cd rom.
164
Coordenador da Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público, entrevista concedida à autora em 29/10/2009.
164
muitas das ações em área de proteção de mananciais havia a preocupação com a preservação ambiental,
mas também uma vertente social.
Segundo seu estatuto, a PJHURB tem como objetivo a defesa da ordem urbanística, incluindo a
verificação da legalidade de loteamentos e ocupações. Para o próprio Ministério Público de São Paulo, os
fatos que podem significar violação à ordem urbanística são:
“Quando a ordem urbanística é atingida por ações que podem prejudicar o direito à terra
urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos
serviços públicos, ao trabalho, à circulação e ao lazer, ou, ainda, quando o Poder Público
Municipal deixa de regular as transformações do meio ambiente urbano, é possível provocar a
intervenção da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, a fim de que sejam adotadas
todas as medidas jurídicas (inquérito civil, termo de ajustamento de conduta e ação civil
pública) que visam a recompor o bem-estar de todos os que habitam ou circulam nas
cidades, preservando o direito a cidades sustentáveis para as presentes e futuras
165
gerações” .
Por sua experiência na promotoria, a Dra. Claudia Beré afirma que dos Inquéritos Civis instaurados,
menos de 5% viram Ações Civis Públicas encaminhadas à Justiça. Isso ocorre porque há a tendência de
resolver muitas questões com a instauração de inquéritos:
As informações abaixo organizadas foram coletadas por meio de consulta direta da pesquisadora
aos livros de procedimentos instaurados da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo do município
de São Paulo, buscando construir o mapeamento dos litígios envolvendo moradia e meio ambiente no
165
Conforme http://www.mp.sp.gov.br/portal/page?_pageid=103,12817&_dad=portal&_schema=PORTAL acesso em
21/09/2007.
166
Informação verbal, entrevista concedida à autora no dia 11/09/2008.
165
município de São Paulo para identificar que tipos de caso ocorrem na região sul de São Paulo, a
abrangência do atendimento e balizar a escolha dos estudos empíricos.
A partir do banco de dados, foi feita contagem dos processos por região e por ano, no período
(2000-2007), a fim de obter detalhes da trajetória das denúncias por região da cidade e identificar aquelas
que se referiam à Zona Sul de São Paulo, em áreas de mananciais à qual será dada ênfase nesta Tese. Do
total de 2.831 denúncias, 343 (isto é, 12%) referem-se a Zona Sul de São Paulo, que compreende as
Subprefeituras de Campo Limpo, Cidade Ademar, M´Boi Mirim, Socorro, Parelheiros. Para efeitos desse
trabalho e com o objetivo de compatibilizar com o perímetro estabelecido na lei de proteção dos
mananciais, será considerando a Zona Sul como as demais subprefeituras excluindo-se a Subprefeitura de
Campo Limpo.
“O Plano Diretor Estratégico de São Paulo exige que sejam feitas várias legislações, estudo de
impacto de vizinhança, plano de habitação, parcelamento compulsório do solo, estudo de
impacto de vizinhança, estudo e regulamentação dos helipontos. O Plano Diretor de São Paulo
foi aprovado em 2002 e, agora em 2008, sem que nada disso tenha sido feito, a Câmara está
propondo a revisão desse plano. Se a Câmara Municipal tivesse feito uma lei de impacto de
vizinhança, talvez a gente não tivesse tantas reclamações de trânsito, excesso de carros e
barulho. A culpa também está no Executivo, que se incumbe de encaminhar as leis. Ou
167
existem as leis e o Executivo não implementa” .
Os dados do gráfico abaixo demonstram que 21,58% dos atendimentos da PJHURB são feitos na
Zona Oeste, considerada a área mais nobre da cidade. A Zona Leste 2 concentra os menores números
(6,57%), apesar de ser uma das regiões com menor renda da cidade. E a Zona Sul, que em grande parte se
assemelha à Leste 2 em indicadores sociais168 e que concentra a região dos mananciais, está num patamar
intermediário (12,12% dos casos). Assim, levanta-se a hipótese de que determinados grupos sociais, de
renda alta ou média, que têm mais acesso à informação ou ao poder, utilizam com maior frequência o
Ministério Público para reivindicar direitos. No entanto, mesmo com a existência de uma série de conflitos
na Zona Sul envolvendo a questão da moradia, esses casos não têm aparecido em sua totalidade nos
indicadores como também o MP não é o órgão mais procurado pela população. A promotora Claudia Beré
afirma que receber muitas reclamações de determinada região não quer dizer que esta seja,
necessariamente, a pior da cidade, mas apenas que as pessoas conhecem melhor os caminhos para que
suas denúncias cheguem ao Ministério Público.
167
Informação verbal, entrevista concedida à autora no dia 11/09/2008.
168
Com algumas exceções concentradas na região de Interlagos e no entorno da bacia do Guarapiranga.
166
21,58%
16,21%
13,81%
12,82%
12,12%
9,64%
7,25%
6,57%
Se isolarmos a Zona Oeste, Extremo Leste e Zona Sul, é possível avaliar, por ano, o número de
reclamações recebidas pela PJHURB para cada uma dessas regiões, conforme tabela:
167
140
120
n° de procedimentos
100
80
60
40
20
0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007
ano de entrada da denúncia
Verifica-se, pelos números acima, que a população das áreas periféricas da cidade, em geral, é
pouco participante nas denúncias na PJHURB. A Dra. Claudia Beré associa esse fato a duas questões: (i)
centralização do atendimento e (ii) desconfiança em geral de autoridades devido à ilegalidade das áreas:
“Um caso interessante que demonstra isso é o das obras em uma Praça em São Miguel
Paulista. Estava com os brinquedos quebrados, a Prefeitura ia fazer um chafariz. Não fez nem
cobriu o buraco, daí a moradora reclama de uma série de irregularidades. Mas há vários
casos parecidos com esse em Pinheiros, aqui na promotoria. E da Zona Leste é raro vir
reclamações. A moradora chegou ao MP e fez de cara uma reclamação: ela foi no Fórum de
São Miguel Paulista e a encaminharam aqui para o Centro. Como ela tinha de sair de tão
longe para fazer essa reclamação? Em São Paulo, é claro o problema da distância. O morador
de São Miguel só vai sair de lá para vir até aqui se for algo que esteja de fato incomodando,
existe problema de descentralização de atendimento do MP. Outro problema é a desconfiança
em geral de autoridades. Num núcleo que é irregular. há o medo de que, ao fazer uma
denúncia, que uma medida possa se voltar contra a própria pessoa e sua permanência no
169
lugar ”.
A ilegalidade oferece restrições à cidadania para a população e reflete-se nas demais relações
sociais, mesmo nas que não têm a ver com terra ou habitação. A condição de ilegal oferece margem para
estigmatizações, associadas a bandidos e criminosos. Santos (1993), ao analisar uma favela carioca
chamada de Pasárgada, estuda em detalhes como a ilegalidade jurídica provoca repercussão sobre as
demais esferas da vida e na própria condição humana.
169
Informação verbal, entrevista concedida à autora no dia 11/09/2008.
168
Com efeito, a análise dos números de atendimentos do MP, indica certa elitização nas
reivindicações, com a concentração de 21,58% das investigações em apenas 8% da população de São
Paulo, uma região predominantemente de alta renda (Pinheiros, Lapa e Butantã). O afastamento verificado
entre os setores de predominância de baixa renda e as investigações da Promotoria de Habitação e
Urbanismo (PJHURB) aponta para questionamentos quanto a se esse público alvo sente-se contemplado
em suas representações no MP; se conhece os caminhos da representação e se a forma de atuação do
Ministério Público tem dado conta desse tipo de reivindicação.
Por meio de pesquisa em 2.831 denúncias registradas no banco de dados da Promotoria PJHURB
no período de 2000-2007, foram verificadas quais regiões contavam com mais denúncias e quais eram as
principais atividades geradoras de conflito. Apesar da constatação de que a região sul171 de São Paulo não
é, numericamente, a que conta com mais representações ao Ministério Público, pode-se perceber que a
Capela do Socorro se destaca em relação às demais subprefeituras pertencentes ao perímetro de proteção
dos mananciais, com 40,81% das representações.
25
20
Cidade Ademar
M' Boi Mirim
15
Capela do Socorro
Parelheiros
10
0
2000 2001 20002 2003 2004 2005 2006 2007
170
Idem.
171
Para efeitos desse trabalho, considera-se a região sul dos mananciais as Subprefeituras Parelheiros, Capela do Socorro, M‟ Boi
Mirim e Cidade Ademar que, em parte ou no todo, estão contidas dentro do perímetro da Área de Proteção dos Mananciais na região
sul de São Paulo, segundo Lei Estadual nº 1.172 de 17 de novembro de 1976 - delimita as áreas de proteção dos mananciais,
cursos e reservatórios de água de interesse da RMSP.
169
Pode-se classificar as denúncias na Zona Sul de São Paulo em sete grupos, ordenados segundo as
funções desempenhas pelo Ministério Público, conforme Beré (2005):
A tabela abaixo relaciona a atuação do Ministério Público com os processos encontrados na Zona
Sul de São Paulo, nas Subprefeituras de Capela do Socorro, M‟ Boi Mirim, Parelheiros, Cidade Ademar que,
em parte ou no todo, estão contidas no perímetro da Lei de Proteção dos Mananciais:
Dos grupos acima mencionados, os que causam interesse especial de acordo com os objetivos
desta Tese são os grupos, 1, 2, 5 e 7, que relacionam moradia de baixa renda em área de manancial, e que
concentram o total de 74,45% das investigações na região sul de São Paulo. O grupo 5 – Assentamentos ou
ocupações em áreas de risco, apesar de conter 20 procedimentos, gerou vários desmembramentos
internos, devido principalmente ao lugar em que estavam localizados, resultando, no todo, em 78
denúncias. Segundo a promotora Beré, no ano 2000 foi organizado pela Prefeitura um programa de
identificação das áreas de risco, assim denominadas por conta de oferecerem risco de deslizamento.
Quanto ao principal denunciante, cabe lembrar que o dado foi coletado apenas entre os anos de
2002-2007, porque o banco de dados apresenta-se incompleto. Segundo a encarregada pelo cadastro, não se
tinha a cultura de anotar o representante da denúncia, até para garantir o anonimato. Cabe ainda salientar que
para cada processo pode haver mais de um denunciante, isto é, em alguns casos, a denúncia é feita em
conjunto por iniciativa de moradores ou de uma ou mais instituições.
O quadro a seguir mostra que, de um total de 317 denúncias, 36 (11,36%) foram feitas pelo
morador ou grupo de moradores, associações, centros de convivência ou por movimento social organizado;
79 (24,92%) delas tinham como autor o poder público, em suas três esferas, incluindo a polícia civil e o
próprio Ministério Público, responsável por uma série de desdobramentos ou novos procedimentos. As
denúncias anônimas somaram apenas 4 (1,26%) e, enfim, em 196 deles (61,83 %) não consta nenhuma
anotação, devido à ausência de registro.
171
A primeira posição entre os investigados é assumida por pessoa física ou grupo de pessoas,
proprietários da área, associação de moradores, centro comunitário, organização comunitária, com 32,81%
dos inquéritos civis instaurados. Como o direito tende a responsabilizar civilmente as pessoas, os
procedimentos iniciam-se com pessoas físicas e podem, no decorrer das investigações, contar com novos
investigados conforme são verificadas as responsabilidades.
Conforme o cadastro, o Estado172 assume segunda posição, com 22,08% dos litígios investigados,
diferentemente do que acontece no Rio de Janeiro, onde o Estado assume a liderança173. Segundo explica a
Dra. Claudia Beré, situação semelhante não aparece no cadastro geral do MP-SP porque, muitas vezes,
apenas no decorrer das investigações são acionados os órgãos públicos como participantes dos litígios: “A
partir do momento em que eles perceberam que também seriam investigados, começaram a não
encaminhar mais os processos para o MP ou a entrar conjuntamente com as ações”174.
Ao mesmo tempo, a imprecisão dessa tabela está no fato de que são mencionadas as pessoas
físicas e nem sempre vem discriminado seu papel no litígio.
172
Governo Municipal - Secretarias Municipais, Subprefeituras, Governo Estadual (CPTM, SABESP, CDHU, EMAE), Governo Federal
– CEF ou Polícia Militar, Policia Civil, Guarda Municipal.
173
Segundo Mario Fuks (2001) o Estado assume um papel protagonista nos Conflitos Ambientais no Rio de Janeiro.
174
Entrevista concedida à autora em 15/01/2009.
172
Cabe salientar que no cadastro raramente informa-se como a denúncia chegou ao conhecimento do MP.
Em casos específicos, há a afirmação de que são denúncias anônimas, quando o representante pretende manter-
se oculto com medo de represálias ou, em alguns casos, quando a instauração de Inquérito Civil é promovida por
reportagens ou denúncias nos meios de comunicação.
No caso específico da PJHURB/ MPSP, a promotora Claudia Beré analisa que as denúncias, ao
referirem-se ao caso específico do parcelamento do solo, chegam principalmente por intermédio de órgãos
públicos encarregados da fiscalização que, ao constatarem irregularidades, fazem a necessária comunicação.
Outra forma é por meio do adquirente de lote, que comparece no atendimento ao público para pedir orientação
ou fazer reclamação. Uma terceira forma é por meio de organizações não governamentais dedicadas à defesa
do meio ambiente. Por vezes, o Cartório do Registro de Imóveis é quem leva os fatos ao Ministério Público,
especialmente no que se refere à inexecução de obras de infra-estrutura ou comunicando o registro de grande
número de vendas de frações ideais de tamanho menor àquele indicado no parcelamento ilegal do imóvel.
173
As entrevistas realizadas para esta pesquisa com os promotores da PJHURB José Carlos de Freitas
e Claudia Beré ajudam a compreender as diferentes posições existentes no Ministério Público ao se tratar
desse problema para o caso de São Paulo, bem como estes compreendem as políticas em mananciais.
Seguem abaixo trechos dessas entrevistas.
José Carlos de Freitas explica que no interior do Ministério Público há visões diferenciadas com
relação aos direitos e ao conflito de moradia em área de manancial. Segundo ele, depende da concepção de
quem vai investigar a questão e a formação especializada do promotor:
“Se você consultar um promotor da área ambiental, ele vai ter uma visão quase que
exclusivamente ambientalista, e não está errado. Se você for consultar uma promotoria com
uma visão social mais acentuada, vai ter que se preocupar com essa questão. Dentro do
Ministério Público você tem promotores com uma formação na área de direito ambiental
especializado, assim como você tem esta promotoria, que é especializada na área de
habitação e urbanismo, e você tem um conceito do trabalho dela que gira em torno do social,
da pessoa humana, da pessoa física. É lógico, você não pode desconsiderar o meio
ambiente, mas também não pode ter uma concepção essencialmente ambientalista, sem ter a
175
preocupação com o ser humano que está ocupando esses espaços” .
Além da visão individualizada de cada promotor, apontada por Freitas, acredita-se que são
importantes os seguintes aspectos: a experiência de atuação, a estrutura organizacional da instituição, além
da bagagem interna no âmbito de cada promotoria e a orientação política da instituição Ministério Público,
sendo que esta última tem peso relevante no momento da tomada de decisão e no encaminhamento de
possíveis soluções.
O promotor José Carlos Freitas enfatiza três diferentes abordagens ao falar do conflito moradia e
meio ambiente: (i) numa visão tradicional, pergunta-se qual proteção deve prevalecer; (ii) numa segunda
opção, uma solução de regularização que reduza ao máximo o impacto ambiental; (iii) uma terceira visão
questiona: será que não é um falso conflito? Essa afirmação considera que a origem do problema está
relacionada a disputas que mudam constantemente.
A primeira delas seria a visão estritamente ambiental, que busca o ideal para o meio ambiente e
acredita que, rigorosamente, as pessoas deveriam ser retiradas do local. O promotor faz uma série de
questionamentos quanto a essa visão, considerada por ele mais purista:
“Tirar as pessoas é o ideal, mas colocá-las onde? Você vai gerar outro tipo de conflito.
Porque essa remoção vai implicar o seguinte: essas famílias, se não forem indenizadas, se
não tiverem nenhuma alternativa habitacional, elas vão morar em outra área. E que outra área
vai ser? Uma área de risco ou uma área de proteção ambiental. Então, em vez de você
solucionar um conflito, você está criando outro. Ou está mudando a posição do conflito para
outro lugar. O ideal é que não tivesse ninguém. Só que a partir do momento que tem uma
ocupação e você tem atuação omissa do poder público, do estado e município na
fiscalização, e a ocupação foi gerada por um ato de pessoas que venderam lotes ali. O estado
não se aparelhou devidamente para coibir este tipo de ocupação. Hoje o conflito indaga: que
proteção que deve prevalecer? Rigorosamente deveria ser feita a retirada das famílias, essa é
a visão tradicional. O detalhe é o seguinte: você começa a colocar na balança alguns pesos.
175
Entrevista concedida à autora por José Carlos de Freitas em 29/10/2009.
174
Você nota que tem fundamentação constitucional a proteção ao meio ambiente, mas também
tem fundamento constitucional o direito a moradia. Meio ambiente, Art 225o e direito a
moradia, Art 6o, direito social. A Constituição não tem direitos contraditórios. É na aplicação
dela que você vai entender que existe espaço para o exercício de um direito e eventualmente
não existe espaço para o exercício de outro direito. Quando você fala de meio ambiente, de
áreas que são protegidas, o que você tem são limitações, restrições antrópicas com a
ocupação humana, muito rigorosas. É lógico que a proteção principal é o meio ambiente
como um todo. Quando você diz que direito a moradia é um direito social, que o poder
público tem de prover a população com habitação, então você também tem que tutelar esse
direito. O detalhe é quando esses dois atores querem ocupar o mesmo espaço ao mesmo
176
tempo, aí que se gera o conflito ”.
Na visão acima, explicita-se a condição do meio ambiente enquanto um “ator social” que se
contrapõe à moradia, outro ator. No entanto, apesar do promotor exemplificar onde estão os conflitos
acredita-se que estes se dão pelas diferentes formas de apropriação do território em mananciais, seja pelo
uso da água ou do entorno dos reservatórios.
“Na situação atual, nós estamos diante de uma realidade: área proibida de ser ocupada, área
ocupada, e o poder público que incentivou essa ocupação (no caso dos ex-administradores
regionais), o poder público que se omitiu na ocupação e que agora levou benefícios. Qual é o
comportamento que devemos ter a partir daí? Acho que uma solução é a regularização que
diminua ao máximo o impacto ambiental. Lógico que 100% não vai ser possível, pois
representaria a retirada de todas as famílias, recuperar a área, garantir a permeabilidade do
solo, retirar todo o esgoto que foi jogado lá há anos, enfim, descontaminar toda essa área e
tudo mais. Então, hoje diante desta realidade, a solução é regularizar aquilo que é possível,
177
com o menor impacto social e ambiental ”.
Freitas também cita a necessidade de se punir os responsáveis pelo incentivo ou pela omissão
diante da produção de loteamentos clandestinos. Acredita na regularização como uma forma de remediar
práticas ilegais e afirma que a punição é importante para que essa situação não se torne a regra em termos
de ocupação em manancial. Entende que a regularização não pode ser uma política única, porque sempre
se estará correndo atrás do incêndio. Exemplifica com o caso do Cantinho do Céu, em que a lei de
improbidade administrativa foi aplicada num processo criminal contra ex-administradores regionais:
“Outro aspecto é não deixar de punir quem foi o responsável por isso. Porque quando você
chama o poder público para regularizar você está “punindo o poder publico”, fazendo ele
investir dinheiro para regularizar. Só que você não pode pura e simplesmente, diante de uma
situação como essa, depois do fato consumado, simplesmente regularizar e deixar de punir
alguns atores. Por isso que a ação na sua origem teve a preocupação de responsabilizar os
administradores regionais para que, se for procedente a sentença, nesse aspecto, criar-se
uma cultura de que quem incentivar ou omitir-se vai responder com seu patrimônio, com seu
cargo, com seus direitos políticos, que são exatamente as consequências da lei de
176
Idem.
177
Idem
175
improbidade administrativa. É uma postura para aquilo que se convencionou chamar de fato
consumado, de situação irreversível, você precisa ter uma punição. Não dá para deixar imune
a nenhum tipo de pena aqueles atores principais que colaboraram com esse tipo de
178
situação” .
Uma terceira forma de interpretar o conflito moradia e meio ambiente, como explica Freitas, é
analisar se a questão não é um falso conflito. O promotor parte do princípio de que as leis são produtos
sociais e culturais e, como tal, um pacto social de acordo com o que a sociedade brasileira estabeleceu
como áreas juridicamente protegidas. Questiona se não seria um falso conflito, porque compreende as
restrições ambientais como construções sociais. Afirma que dotar a área de infra-estrutura urbana e de
saneamento ambiental poderia harmonizar os direitos:
“Será que não tem lugar para ambos conviverem de acordo com certas limitações? Será que
a configuração de áreas protegidas não é um fenômeno social, resultado de um pacto social?
Se a gente for visitar algumas cidades americanas, aquilo que a gente considera hoje topo de
morro ou encosta, lá tem mansões construídas nesses topos de morro ou encostas de
morro. Porque lá não é área protegida, porque na Argentina não é área protegida e aqui no
Brasil é? Então é um pacto social. A Constituição resolveu que existem determinados bens
que têm que ser tutelados e vai haver algum tipo de sacrifício. E eu parto dessa linha de que
quando você cria uma norma protetiva, ela parte de um pacto social, porque o critério que é
adotado pela legislação não é semelhante aos demais países por força da ocupação de áreas
de outros países que não seguem o mesmo padrão brasileiro. E, mesmo dentro do próprio
país, você tem normas de exceção. Recentemente foi editada uma lei dentro do programa
“Minha Casa Minha Vida” que era uma medida provisória, e essa medida provisória foi
convertida em lei que prega a regularização fundiária, inclusive em áreas de preservação
permanente. Ela admite, por exemplo, que haja só o licenciamento municipal, excluindo de
certa forma o Estado do poder de licenciar, mesmo na regularização. Então a própria
legislação reconhece a incompetência do poder público em fiscalizar essas áreas, reconhece
a falência do estado, porque o fato já está consumado, a situação está consolidada, o poder
público já levou benefícios de obras e serviços e vem uma lei justamente para dar uma
179
roupagem jurídica para a regularização ”.
As três visões apresentadas demonstram que as posições no interior do Ministério Público não são
monolíticas. A atuação da PJMAC, como declararam Beré e Freitas, possui uma visão bastante voltada para
o enfoque ambientalizado da questão. As diferentes posturas orientam intervenções públicas que, muitas
vezes, são contraditórias. Grupos sociais dominantes se apropriam do discurso de acordo com seus
interesses. Ainda muito divergente, o debate precisa ser amadurecido a partir de noções que considerem os
diferentes interesses em disputa.
“No ano de 1997, os promotores de justiça de São Bernardo decidiram reunir as duas
atribuições com um único promotor, e com exclusividade, diante da complexidade da
situação local: centenas de loteamentos e ocupações irregulares, majoritariamente de baixa
renda, em incontrolável avanço sobre as áreas de proteção aos mananciais da represa
178
Idem.
179
Idem.
180
Rosângela Staurenghi - Promotora de Justiça do Meio Ambiente de São Bernardo do Campo.
176
Billings. Os dois primeiros anos do trabalho foram marcados por uma severa repressão à
ocupação ilegal, articulando-se as ações da promotoria com os órgãos de fiscalização
ambiental e da polícia civil e ambiental. Mas nos anos seguintes iniciou-se o trabalho de
intervenção nos assentamentos, tendente à recuperação dos passivos ambientais e sociais
existentes. Através do programa bairros ecológicos do Município de São Bernardo e do Plano
Emergencial de recuperação dos mananciais, foi possível propor uma nova forma de
intervenção sustentável do Poder Público em parceria com as comunidades envolvidas,
orientada por termos de ajustamento de conduta (art. 5º, parágrafo 6º. da lei 7347/85)
firmados com o Ministério Público e as comunidades beneficiadas” (STAURENGHI , 2007, p.
1).
Rosangela Staurenghi afirma que os resultados da atuação conjunta foram satisfatórios, mas que
esses conflitos continuarão existindo devido às diferentes disputas pelo uso do reservatório e do seu
entorno. Afirma ainda que, em cada momento histórico, novos elementos podem ser associados, resultando
em novas disputas que estão longe de serem solucionadas:
“Os resultados até agora obtidos são extraordinários, quer no controle de novas ocupações,
quer na qualidade das intervenções, quer na participação, envolvimento e mudanças de
atitude da população, quer na conservação das urbanizações, quer na recuperação do meio
ambiente natural. Do ponto de vista jurídico, a harmonização dos interesses ambientais e
urbanísticos conflitantes, protegidos por lei e pela Constituição, tem solução doutrinária. Do
ponto de vista extra-jurídico, ambiental, social e econômico, a questão talvez ofereça
reflexões mais extensas. E elas são necessárias porque, em certa medida, elas influenciam as
soluções jurídicas” (STAURENGHI , 2007, p. 3).
Apesar dessa experiência ter durado apenas um período limitado, em que contava com o apoio da
administração local, entende-se que a especialização das atribuições tende a orientar o promotor à leitura e à
aplicação rigorosa da legislação, sob a pretensão de alcançar resultados eficientes, olhando unilateralmente a
questão e criando vários impasses. E, ainda, que determinadas comarcas do Ministério Público já têm
analisado o conflito a partir do reconhecimento das disputas que são inerentes, visto os interesses na
apropriação dos recursos territorializados.
complicado”, afirma181. Sobre a mudança e substituição de Serra por Kassab, diz não ter sentido mudanças
significativas entre uma gestão e outra.
Explicitando a atuação do MP, a promotora afirma que muitas vezes é proposital a abertura de
diversas ações e, e em outros casos, não. As ações vão sendo ajuizadas, outros promotores também fazem
o mesmo e, de repente, a prefeitura resolve montar um programa apropriado que englobe os casos. Outro
ponto que destaca como crítico é que muitos políticos entram no poder com poucos projetos: “Então você
o chama e apresenta os problemas para ele tomar ciência. E ele, até por não ter outros projetos, acaba
comprando aquela ideia”, analisa. Para Beré, esse intercâmbio é interessante, sem contar que o promotor
gosta de influir nas políticas. Porém para a administração, isso nem sempre é visto com bons olhos, porque
o administrador responsável costuma achar que o promotor tem uma visão parcial. “Mas como a
promotoria trabalha em toda a cidade, a gente já tem uma visão mais abrangente. Em algumas regiões, a
gente recebe muitas reclamações, isso não quer dizer que essa região seja pior, mas que as pessoas
conhecem os caminhos para reclamar”, conclui183.
“No final dos anos 1990, o Ministério Público assinou uma série de Termos de Ajustamento
de Conduta (TAC) com o município de São Paulo, que tratavam de regularização por meio do
programa lote legal de 25 mil lotes, com a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e
Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) e também com a Companhia Habitacional de São
181
Entrevista concedida a autora em 11/09/2008, pela promotora Claudia Beré.
182
Idem.
183
Idem.
178
As pesquisas das autoras (2009) levantam a hipótese de que o Ministério Público tem exercido
poder e forte influência e, em alguns casos, até pautado as decisões das políticas urbanas e os programas
a ser implementados pelo Executivo (SEHAB). As entrevistas realizadas para esta Tese e as obras do PAC
no Município de São Paulo corroboram tal afirmação, evidenciando forte pressão sobre a administração
municipal.
A relação entre Prefeitura e MP, que num primeiro momento afirmou-se como de parceria, num
segundo momento funcionou como uma prática de pressão e exigência de cumprimento da lei. A inclusão
do Executivo como parte investigada nas ações, e o conjunto de denúncias, levou a fragilização da parceria
inicialmente instituída, porque as representações acabaram se voltando contra o poder executivo, que
passou a ser investigado nos processos. Como consequência, houve redução no encaminhamento de
representações da Prefeitura ao Ministério Público186, afirma Claudia Beré.
184
Idem.
185
Em 1996, a Lei Estadual no 9.866/96 aprovou um Plano Emergencial, que procedeu a um licenciamento de exceção que
propiciou a instalação de redes de água e de esgoto em áreas em que se fazia evidente o risco à saúde da população.
186
Existe um regulamento que obriga o poder executivo a comunicar o Ministério Público a respeito dos parcelamentos
clandestinos e irregulares bem como qualquer outro dano que comprometa a chamada ordem urbanística, no entanto, a Prefeitura
depois de inserida nas denúncias abandonou tal procedimento.
179
Violeta Saldanha Kubrusly187 relata que a Justiça mandava para a SEHAB ordens de desfazimento e
desocupação de mais de 100 áreas ao mesmo tempo, sem a compreensão da inviabilidade de tal mandato.
A atuação do Ministério Público no município de São Paulo, por meio da PJHURB, pode ser
considerada fundamental no avanço da forma de pensar os mananciais. Além disso, possui histórico de
atuação desde a década de 1990, o que permite uma larga experiência com habitação em mananciais,
contribuindo paras as mudanças de direcionamento e prioridades ao longo do tempo. A pressão exercida pelo
Ministério Público, principalmente sobre a prefeitura, resultou numa série de estudos e planos, seja para áreas
de risco, seja o Plano Emergencial para os mananciais.
187
Informação verbal conforme apresentação em Seminário promovido pelo Instituto Sócioambiental: Mananciais: uma nova
realidade? 2007. Com base na transcrição: “Acho que a gente devia seguir em uma sinergia mais positiva, mais de menos
acirramento para se chegar a alguma coisa, evitar que um magistrado possa dizer que uma Prefeitura de São Paulo é ré porque ela
tem que acabar o problema habitacional em 30 dias. Isso é quase uma anedota. Para a gente evitar que essas coisas se avolumem,
a gente podia trabalhar e tentar reforçar o sistema integrado de gestão de recursos hídricos”.
180
Atualmente a PJHURB direciona sua artilharia para a fiscalização188, a fim de evitar novas
ocupações incentivando, de certo modo, a política denominada de “congelamento das áreas de manancial”.
Segundo entrevista com o Promotor José Carlos de Freitas o contribuinte paulista não pode mais pagar
pelos erros dos agentes públicos. Para ele, os prejuízos e gastos públicos com regularização fundiária,
degradação ambiental e poluição das águas sai do bolso do contribuinte, que não pode mais arcar com tais
situações. Será visto em profundidade tal argumentação no estudo de caso do Jardim Gaivotas.
A Defensoria Pública do Estado foi criada em janeiro de 2006, sendo São Paulo um dos últimos a
instituir esse órgão, previsto na Constituição de 1988. A instituição tem por objetivo: “(...) prestar
assistência jurídica integral e gratuita, individual e coletiva, judicial e extrajudicial para a população que não
tem condições de pagar advogados privados”. Antes da sanção da lei que criou a Defensoria, a assistência
jurídica à população de baixa renda era feita pela Procuradoria Geral do Estado.
A Defensoria Pública de São Paulo atua em qualquer caso de competência da Justiça Estadual, isto
é, há uma diversidade bastante ampla de ações na defesa de um cidadão ou de um grupo de cidadãos
carentes. É dividida nas seguintes áreas de atuação: a) Área Cível; b) Tutela Coletiva; c) Área Criminal; d)
Área da Infância e Juventude; e) Área de Execução Criminal.
Ainda conta com apoio de núcleos especializados – de natureza permanente – cujo objetivo é promover
uma atuação estratégica da instituição em áreas consideradas de sensível importância. Os núcleos são regidos
pela Lei Complementar Estadual nº 988 de 2006, e por um regimento interno, dividindo-se em: a) Cidadania e
Direitos Humanos; b) Infância e Juventude; c) Habitação e Urbanismo; d) Segunda Instância e Tribunais
Superiores; e) Situação Carcerária; f) Combate a Discriminação, Racismo e Preconceito; g) Proteção e Defesa
dos Direitos da Mulher; h) Direitos do Idoso.
Devido a sua recente formalização, ainda enfrenta desafios no sentido de estruturar seus órgãos,
lutar pela ampliação de cargos de defensores públicos e pela criação de cargos de apoio, como os de
assistentes sociais, psicólogos e escriturários.
No âmbito desta Tese, cabe destacar o trabalho do núcleo especializado em Habitação e Urbanismo
(NHABURB)189 e o apoio jurídico oferecido pela tutela coletiva por meio das ACPs e por termos de
ajustamento de conduta:
188
Informação verbal concedida por José Carlos de Freitas em 29/10/2009.
189
Segundo seu regimento interno: “O NHABURB é órgão de execução e de atuação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo
de caráter permanente e tem como missão primordial prestar suporte e auxílio no desempenho da atividade funcional dos membros
da instituição sempre que a demanda for coletiva ou em casos individuais de repercussão geral, referente direta ou indiretamente ao
181
“(...) ações civis públicas na defesa coletiva dos cidadãos carentes. Esse instrumento pode
ser manejado em diversas áreas do Direito – tais como Habitação, Urbanismo, Saúde, Meio-
Ambiente e Defesa do Consumidor. A lei prevê também que a Defensoria Pública promova
termos de ajustamento de conduta (acordos extrajudiciais com força legal) para garantir que
as demandas dessa natureza sejam resolvidas rapidamente e sem necessidade de um
190
processo judicial” .
Além disso, o Núcleo de Habitação e Urbanismo tem acompanhado o Projeto de Lei Federal de
Responsabilidade Territorial, que revogará a atual Lei Federal de Parcelamento do Solo Urbano, bem
como o Projeto de Lei de Revisão do Plano Diretor do Município de São Paulo, que é, inclusive, objeto de
impugnação por via judicial, sendo a Defensoria Pública co-autora do processo. E, por fim, está
preparando edital para licitação do projeto de regularização fundiária sustentável, financiado junto ao
Ministério das Cidades, para captação de recursos para propositura de 1.300 ações de usucapião e ou
Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia.
As atividades descritas no relatório mostram que as ações são bastante diversificadas e vão além
da instauração de medidas judiciais e extrajudiciais para tutela de interesses individuais, coletivos e
difusos. Incentiva-se o intercâmbio com entidades parceiras de luta pela moradia, a representação
perante conselhos ou órgãos colegiados, conscientização da população via instituição da jornada por
moradia digna, esclarecimento a respeito de seus direitos e garantias fundamentais, além de visitas as
áreas e famílias atendidas.
Segundo Loureiro, o núcleo realiza atendimentos diários a grupos que procuram a Defensoria
ameaçados de remoção, bem como embates judiciais em torno de legislações que sejam consideradas
prejudiciais ao direito social à habitação.
direito à moradia digna e o direito à cidade”, conforme prevê a Lei Estadual 988/06 e a Deliberação CSDP-38, de 4 de maio de
2007.
190
Tutela Coletiva segundo a Defensoria do Estado de São Paulo.
http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Default.aspx?idPagina=2870 acesso em janeiro 2010.
191
Cedido pelo seu coordenador Carlos Henrique A. Loureiro.
182
Com base no relatório anual apresentado ao colegiado da Defensoria, é possível verificar que,
apenas nesse núcleo especializado, o trabalho de atendimento variou na seguinte proporção:
25,10%
20,65% Norte
Centro
Oeste
Centro Sul
12,96% 13,36% Sul
10,12% Leste 1 e 2
8,10% Fora de São Paulo
5,26% Não identificado
4,45%
Norte Centro Oeste Centro Sul Sul Leste 1 e 2 Fora de São Não
Paulo identificado
O gráfico acima mostra que no período de atuação da Defensoria Pública (dez 2006-fev 2010), os
moradores da Zona Sul de São Paulo (subprefeituras de Campo Limpo; Cidade Ademar; M´Boi Mirim;
Capela do Socorro e Parelheiros) fizeram o maior número de solicitações, com 20,87% dos processos do
Nhaburb. E ao comparar os processos atendidos pela Defensoria Pública de São Paulo/Nhaburb e as áreas
atendidas pelo Programa Mananciais em sua 1ª e 2ª fase, ver-se-á que 21%193 das áreas do Programa
Mananciais/Sehab coincidem com os atendimentos da Defensoria, demonstrando que os conflitos
192
As discrepâncias dos dados de 2006 e 2010 referem-se ao início e fim do relatório. O relatório refere-se ao período de
04/12/2006, quando começou a funcionar o NHABURB, até fevereiro de 2010.
193
Das 101 áreas selecionadas na fase 1ª e 2ª fase do Programa Mananciais, 21 delas estão em processo na Defensoria Pública,
cujos moradores recorreram a esta instituição, sentindo-se lesados em seu direito à moradia.
183
envolvendo moradia em área de manancial também são causados pela forma de atuação do Estado nessas
áreas.
Com relação ao entendimento de moradia em área juridicamente protegida, o defensor explica que
considera possível a compatibilização entre o direito à moradia e o direito ao meio ambiente. Para tanto, a
Defensoria foi uma das organizadoras da 2ª Jornada por Moradia Digna, citada anteriormente, que objetivou
trazer esse debate (da compatibilização entre os direitos) para a opinião pública. Segundo o defensor Carlos
Henrique Loureiro:
“Existe um mito que precisa ser desfeito junto à opinião pública de que o meio ambiente é
intocável, alguma coisa tal como sagrada, então ele não pode ser violado, como se a
regularização fundiária de área de preservação permanente constituísse uma violação. Na
realidade, a questão da desordem urbana e da segregação socioespacial se manifesta de
forma contundente na ocupação das áreas de risco e de proteção ambiental e não é
considerada pela opinião pública porque ela não é consciente disto. Então, a nossa
preocupação foi trazer esse problema, fazer com que a opinião pública considerasse essas
questões a respeito da dinâmica do desenvolvimento urbano no país e como isso se reflete
nas ocupações das áreas de preservação ambiental e das possibilidades que exista
efetivamente a compatibilização entre direito a moradia e meio ambiente até como uma forma
de inserção social, porque essas pessoas, digo que são milhões de pessoas, elas não
escolheram morar em áreas de proteção ambiental, foram levadas a isso. E à medida que
você proporciona a regularização fundiária e urbanística em área de preservação ambiental,
claro, sempre respeitando critérios técnicos de compatibilidade, você promove cidadania à
medida que integra as pessoas ao meio urbano. A nossa luta então, quando a gente pensou
em promover a jornada, de fato foi trazer à tona o problema da possibilidade de regularização
fundiária em áreas de preservação ambiental, a possibilidade de compatibilizar esses dois
direitos na perspectiva de que isso constituía um dever de Estado, à medida que ele teria que
resgatar da sua inércia ou dos erros da dinâmica do desenvolvimento urbano que provocaram
essa desordem, que fez com que milhões de pessoas ocupassem áreas de preservação
ambiental. Então essas pessoas que foram excluídas mereciam, sim, ser tratadas como
cidadãs, e isso passava pela regularização fundiária e urbanística das áreas de preservação
194
ambiental” .
Em seu relato, Loureiro afirma que a Defensoria tem recebido muitas representações com origem
na forma com que o Estado vem intervindo nas áreas, desencadeando o conflito entre moradores e o poder
público, principalmente envolvendo a Secretaria Municipal de Habitação ou as construtoras licitadas por
esta. Diz que recebe frequentemente reclamações, representações, sem que o poder público dê uma
resposta, para a questão da moradia que é fundamental. Embora considere possível a compatibilização
entre o direito à moradia e o direito ao meio ambiente, sabe que nem sempre isso acontece. “De fato,
muitas vezes a remoção se justifica pela preservação do meio ambiente. Mas, por outro lado, o poder
público não se responsabiliza em efetuando a remoção, resguardar o direito de moradia dessa população
removida”195, afirma. Para ele, o poder público se esquiva completamente de responder sobre esse aspecto
e simplesmente remove, sem dar alternativa de moradia digna. Considera que isso é uma
irresponsabilidade, porque não é uma política sustentável, porque ao não dar alternativas, a população
removida vai reproduzir irregularidade em outro lugar e ocupar, conseguintemente, áreas de proteção
ambiental em outro local. “É um ciclo vicioso que não se sustenta pela própria ação do poder público, que
194
Entrevista concedida a autora em 24/09/2009.
195
Idem.
184
não enfrenta de forma séria esse problema”196, conclui. Para Loureiro, o poder público prefere reproduzir o
mito da proteção ao meio ambiente, esquecendo-se que para o ser humano, entre as condições essenciais
para uma vida digna, está a moradia. As representações surgem sempre porque, de fato, o poder público ou
não está consciente ou está consciente e não consegue enfrentar o problema, que acontece todo dia.
Pela entrevista de Loureiro, é possível observar que as próprias intervenções em obras públicas têm
gerado confrontos entre moradores e a prefeitura municipal. De acordo com o relatório da Defensoria
Pública, as reclamações advêm das grandes obras públicas, como as marginais Tietê e Pinheiros, as
operações urbanas em áreas específicas da cidade, como a Avenida Água Espraiada, Água Branca,
construção de viadutos, pontes, e, por fim, as ações em mananciais, analisadas na presente Tese197. Em
alguns casos, apesar de contar com verba para atendimento habitacional, retardam sua aplicação ou
regularizam uma parcela pequena dos assentamentos. Essas ações vão ao encontro dos interesses
imobiliários, com valorização do capital a partir das intervenções públicas.
“O Programa Mananciais é uma excelente iniciativa do poder público, é muito bom que o
poder público assuma a responsabilidade de promover a regularização fundiária e urbanística
em área de proteção ambiental. Essa iniciativa é pioneira na Prefeitura de São Paulo e acho
que deve ser estimulada. O problema é que ela não tem uma característica de universalidade,
porque acaba regularizando numa certa área para uma quantidade de pessoas, excluindo
outras, então ela é incompleta e na medida que ela é incompleta, acaba servindo também, pra
fazer com que o circulo vicioso continue vigoroso, na medida com que as pessoas
desocupem áreas em que são removidas e passem a ocupar outras áreas de proteção
ambiental. A gente sabe das dificuldades de ter uma ação política e administrativa ampla para
dar conta de fazer regularização fundiária urbanística para 2 milhões de pessoas, que é o
contingente estimado de ocupações em área de preservação ambiental em São Paulo. Porém,
é necessário que se faça um esforço conjugado, e na verdade é que não vai se resolver a
questão das ocupações em áreas de preservação ambiental se não se pensar em uma política
de habitação de uma forma ampla, especialmente a política de habitação de interesse social,
porque o fato é que a segregação socioambiental que resulta em ocupações em áreas de
preservação ambiental ocorre por falta de habitação de interesse social em áreas de
qualificação urbana, no centro ou em outras áreas. E essas conexões precisam ser
articuladas de modo que você passe a ter alternativa de habitação em locais que possam
servir de alternativas para as pessoas que, sem essas alternativas, ocupam áreas de
preservação ambiental. Isso acaba deslocando as pessoas das áreas de preservação
ambiental para as áreas ocupadas efetivamente, ou urbanizadas efetivamente que têm
capacidade de dar conta de prestar o serviço público de forma regular. O grande problema
dos assentamentos em áreas de preservação ambiental é que, como a regularização é
complexa o assentamento produz muito impacto ambiental, porque você não tem coleta de
lixo, tem esgoto a céu aberto contaminando os mananciais. Isso é um problema grave, mas à
196
Idem.
197
Outras obras que devem ser a causa de mais tensionamentos: Uma delas é a construção de um parque linear na Zona Leste,
como compensação ambiental para a ampliação da Marginal do Tietê, que pretende desalojar cerca de 12 mil famílias dos bairros
de São Miguel Paulista e Itaim Paulista. Na Zona Sul, a construção de um túnel de 4,5 quilômetros que ligará a Avenida Jornalista
Roberto Marinho à Rodovia dos Imigrantes será responsável pelo despejo de aproximadamente oito mil famílias.
http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/nacional/nacional/especulacao-empurra-os-pobres-cada-vez-mais-pra-la Acesso em
05/06/2009.
185
medida que desloca essa população para as áreas de infra-estrutura urbana qualificada, com
habitação de interesse social, esse impacto precário em áreas de proteção ambiental diminui
drasticamente. Então precisa investir em uma regulação fundiária e urbanística de áreas de
proteção ambiental, onde ela é possível tecnicamente e por outro lado, investir em áreas de
infra-estrutura urbana qualificada no centro ou em outros bairros que possam dar conta de
198
absorver essa demanda” .
Para ele, não há dúvida da necessidade de se ter um programa como o Programa Mananciais nem da
necessidade de se intensificar a fiscalização para impedir a ocupação. Por um lado há boas intenções, mas a
todo momento surgem novas representações, novas queixas da população. A partir do momento em que a
Defensoria, os movimentos sociais e as instituições de pesquisa passaram a opor alguma resistência e a levar
para a opinião pública essas questões, o poder público sentiu que talvez precisasse repensar a forma como
estava sendo conduzida a política.
“O poder público tornou-se mais cauteloso no sentido de ser mais arbitrário, e mais violento
no sentido de não proporcionar defesa nenhuma para as pessoas removidas. Porque antes as
pessoas eram comunicadas previamente, recebiam comunicações oficiais, hoje isso sequer
acontece, de modo que as remoções ocorrem quase que instantaneamente, sem
possibilidade de ter uma reação judicial a elas... O grande problema em todas essas
intervenções é que o fundamento do programa mananciais não é exatamente promover a
justiça social. A grande questão que está colocada é resolver o problema da sustentabilidade
da política de abastecimento de água potável, você minimizar ou eliminar os impactos dos
200
assentamentos precários. Ela não é pensada da perspectiva da justiça social” .
O defensor relata que apesar da atuação intensiva da Defensoria em denunciar os casos de infração
ao direito à moradia, não houve uma mudança de direção no sentido de políticas de preservação aplicadas,
pelo contrário, ocorreu a intensificação de ações violentas, seja por meio da fiscalização em mananciais,
seja pelas ações de remoção de áreas ocupadas, o que tem ampliado a violência e os embates nas áreas de
mananciais.
Também esclarece que ocorrem mudanças na cultura dos direitos por meio de “ondas de
reivindicações”, e esses embates ganham preponderância de acordo com a forma como é acolhido pela
sociedade e se torna hegemônico. Alerta que na cultura jurídica o direito ao meio ambiente é um discurso
que flui facilmente na sociedade, pela sua universalidade, e que os pleitos pelo direito à cidade ainda
precisam se fortalecer:
“Especialmente na cultura jurídica, você tem ondas de reivindicações em relação aos novos
diretos sociais, isso envolve o direito ao meio ambiente e direito à cidade. Só que a onda do
198
Entrevista concedida à autora em 24/09/2009.
199
Idem.
200
Entrevista concedida à autora em 24/09/2009.
186
direito ao meio ambiente, embora recente, ela é mais antiga que a onda do direto à cidade. Os
ambientalistas têm uma articulação política e um discurso que flui na sociedade, e esse
reconhecidamente é um esforço válido, tem sua justificativa, mas, no entanto, historicamente,
ele não foi construído de forma articulada com o direito à cidade. Então, quando a onda do
direito à cidade nasceu, nasceu já tentando estabelecer um diálogo com os defensores do
meio ambiente, só que essas tensões continuam, e esses debates continuam. Existiram
avanços com a articulação e a compatibilização legal disso, mas o fato é que é necessário
avançar muito, porque eu acho que, e repito, embora o meio ambiente natural seja algo muito
importante, é preciso que os ambientalistas reconheçam o problema da ocupação do espaço
urbano e das responsabilidades pela desordem urbana para poderem ver a perspectiva do
meio ambiente de uma forma mais responsável, e não simplesmente culpabilizar a população
201
pobre” .
O defensor entende que a participação da população na formulação das políticas seria a forma ideal
para evitar o descaso com os moradores das áreas. No entanto, enquanto esses espaços de diálogo não se
abrem, acredita que a judicialização dos conflitos é uma forma de colocá-los à mesa, expondo junto à
opinião pública os efeitos que tais intervenções vêm causando a população residente: “Eu acho que uma
alternativa de luta em relação ao programa de mananciais, que envolve questões tão delicadas, é a via
judicial. Embora não seja a mais apropriada, é uma via possível. Isso expõe a questão junto à opinião
pública, de certa forma leva a voz dos excluídos ao judiciário e, por conta disso, proporciona uma maior
visibilidade ou maior eco junto à opinião publica, enfim é uma resposta a barbárie”202, afirma. O defensor
complementa que é preferível discutir de forma civilizada no Judiciário, do que simplesmente impor
violência à população pobre e, eventualmente, a população pobre responder com violência também.
Considera que o ideal seria avançar para construir, de fato, um espaço de cidadania, em que haja
oportunidade real para que a população atingida pelas intervenções tenha a possibilidade de participar das
formulações dos programas. Para ele, isso deslocaria os vícios de fundamentações dessas intervenções,
do problema da sustentabilidade do fornecimento de água para a questão da justiça social. “Só as pessoas
que ocupam as áreas têm consciência dos próprios problemas e das próprias necessidades então isso
cortaria pela raiz todos os defeitos e todos os vícios de encaminhamento dessa política”, conclui.
O defensor alerta, ainda, para as consequências do crescimento maciço dos despejos nas
ocupações e a piora nas condições de vida nas periferias. De acordo com ele, a tendência é de um aumento
inevitável das tensões entre moradores e forças do Estado. "Eu vejo a hora em que a Defensoria Pública, o
Ministério Público e o Poder Judiciário não poderão mais mediar os conflitos, porque a situação caminha a
passos largos para uma convulsão social"203, prevê.
201
Idem.
202
Idem.
203
http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/nacional/relatorio-confirma-crimes-motivados-pela-especulacao-
imobiliaria/?searchterm=relatório%20especulação%20imobiliária. 22/12/2009. A partir do relatório da plataforma Dhesca.
187
relatório diz respeito à “abundância de recursos para grandes obras de infra-estrutura, mas desrespeito com
o seu cidadão204”.
Diferentemente do Ministério Público, até pela sua função, a Defensoria é o locus privilegiado de
atendimento à população despossuída que tem sofrido com as obras públicas e as remoções em São
Paulo. Portanto, pela pesquisa feita e pelas entrevistas com os responsáveis, percebe-se o endurecimento
das ações municipais em mananciais, seja em torno das ações de remoção para os projetos urbanos, seja
na fiscalização, o que tem causado pânico à população que convive diariamente com a vigilância ampliada.
A intensificação dos expedientes de repressão, numa tentativa de controlar a ocupação do entorno da
represa, sob o mote do abastecimento de água potável para toda a cidade, pode conduzir a mais violência
pelo enfrentamento direto com a população, numa militarização das ações. As políticas incompletas, além
de alimentar o ciclo vicioso da ilegalidade e da degradação, podem aumentar a especulação imobiliária
informal, que se apropria das benfeitorias das obras públicas de infra-estrutura urbana e saneamento, além
de poder ampliar a ocupação expandida para os municípios da RMSP, reafirmando uma tendência.
A participação desses novos atores sociais, tanto o Ministério Público como a Defensoria, nos
conflitos envolvendo os que propugnam seu direito à moradia em áreas juridicamente protegidas, tem
colaborado na explicitação dos conflitos e no crescente processo de judicialização, isto é, a procura ao
Poder Judiciário a fim de garantir a tutela de direitos coletivos e difusos. Quando as demandas não são
atendidas em outras instâncias, por políticas públicas ou solicitações diretas à administração, acabam
sendo levadas ao Judiciário. Esse fenômeno representa crescente procura por esse Poder na tutela dos
direitos. O Ministério Público e a Defensoria têm contribuído nessa tarefa de forma diferenciada, fornecendo
maiores subsídios para o debate, alertando a população moradora de seus direitos, e interferindo nas
intervenções públicas a fim de respeitar direitos fundamentais de seus moradores. A prefeitura tem
verificado que a Defensoria está alerta e tem, em muitos casos, atendido a população que se sente
prejudicada pelas obras estatais. No entanto, tais ações, até o momento, não tem repercutido em um
avanço em termos de direitos fundamentais, como veremos adiante, mas na explicitação dos conflitos e em
alguns casos no aumento da violência.
204
Entre os dias 17 e 18 de dezembro, o relator nacional da Plataforma, Orlando Junior, e o assessor da Relatoria, Cristiano Muller,
visitaram comunidades na periferia e moradores em situação de rua, além de participarem de reuniões com representantes do poder
público.
188
apesar dos dois órgãos trabalharem com a questão da habitação e urbanismo, o público alvo e as
reclamações tem sido diferentemente trabalhado, o que alerta para distintos direcionamentos e atuações
que precisariam ser mais bem investigados.
Procurou-se ao longo desse capítulo destacar como o Estado compreende esse conflito e como
está sendo feito o manejo político e urbanístico de tais áreas, o que permitiria visualizar as articulações
políticas com vistas a resolver o dilema em estudo.
A primeira delas é que, apesar de depender umas da outras, as ações em mananciais não estão
entrelaçadas entre si e muito menos no âmbito das políticas públicas, como, por exemplo, no Programa
Mananciais (basicamente infra-estrutura urbana) e na Operação Defesa das Águas (fiscalização em
mananciais), que foram os programas governamentais estudados neste capítulo.
Os embates atualmente pesquisados no interior das esferas institucionais refletem uma luta
discursiva e por projetos que opõem diferentes formas de se pensar o território da Zona Sul de São Paulo.
Por um lado, a SVMA compreende o território enquanto uma importante região produtora de água, avaliando
que as políticas públicas deveriam ser mais eficientes no sentido de barrar o crescimento, de se estabelecer
um modelo de cidade compacta, de se manter as áreas permeáveis, de criar parques naturais, de garantir
os serviços ambientais prestados por essas regiões por meio do controle da ocupação urbana e com
preservação dos remanescentes florestais. Para a SVMA, a forma como as políticas públicas em
mananciais vêm se dando atualmente tende a consolidar o antigo modelo, abrindo ainda mais o espaço
para a apropriação no padrão de periferia, isto é, com deficiências em infra-estrutura e alto crescimento
populacional. Essa forma de pensar o território pode ser evidenciada pela revisão dos Planos Regionais
205
Por se tratar apenas da questão da moradia irregular em área de manancial.
189
Estratégicos, como explicado anteriormente por Sepe206. Para a secretaria, a partir do momento em que
uma área é regularizada, concede-se o direito de habitar naquele espaço. Essa concessão traz,
consequentemente, a expansão urbana incontrolável pelos instrumentos atuais do Estado. Assim, a SVMA
propõe medidas enérgicas de controle do território por meio da aplicação da lei de crimes ambientais.
Por um lado, há setores do governo, que pensando nas deseconomias urbanas da metrópole,
impõem a implantação de grandes projetos de infra-estrutura urbana, como o Rodoanel, a fim de garantir a
mobilidade na metrópole e o deslocamento dos produtos para o porto de Santos e também a fácil conexão
com outras regiões do país. Amplamente questionado por setores da sociedade, propõem a mitigação dos
danos ambientais por meio da desapropriação de áreas e da criação de grandes parques naturais.
Em se tratando de política habitacional em São Paulo, pode-se observar que o último plano
habitacional, pelo menos de acesso público, é o de 2003207. Apesar da ênfase em urbanização de favelas e
ações em mananciais por parte do executivo e do reconhecimento da importância e validade de tais ações,
pelas entrevistas realizadas para esta Tese com técnicos da área (Patrícia Sepe, Marcos Galhego, Ana
Ancona), organizações (Pólis e ISA, CDHEP, Espaço, Cedeca), Ministério Público e Defensoria, notam-se as
incongruências de tais políticas prejudicando a eficácia das ações, principalmente quando observado o seu
reflexo no território. Enquanto aplica-se uma política higienista208 para o Centro com o Projeto da “Nova
Luz”, nas áreas de mananciais estão sendo feitas políticas de regularização fundiária, cuja mensuração dos
resultados não é possível por estarem em curso, mas que estão gerando uma série de conflitos como ver-
se-á no próximo capítulo dessa Tese. E ainda, muitos dos problemas apresentados no Programa
Mananciais seguem a mesma receita do Programa Guarapiranga, anteriormente avaliado por especialistas
como Uemura (2000) e Filardo (2004).
206
Entrevista concedida à autora em 19/11/2009.
207
No momento de fechamento dessa Tese, setembro de 2010, a Prefeitura Municipal de São Paulo acaba de tornar público, para
debate, uma primeira versão do Plano de Habitação do Município.
208
ROLNIK, Raquel. Territórios em Disputa In: Coletivo Política do Impossível. Cidade Luz: uma investigação-ação no centro de São
Paulo. Funarte, 2008. GATTI, Simone. O „espaço vital‟ no centro de São Paulo: segregação sócio-espacial, renovação urbana e
gentrificação. Anais do Anais do Seminário URBICENTROS. João Pessoa, 2010. Disponível no site:
http://www.ppgau.ufba.br/2009/urbicentros_www.swf. Acesso em 04/07/2010.
190
Apesar dos investimentos maciços na região sul de São Paulo, relatos de instituições que
trabalham com direitos humanos e a questão da moradia na região Sul, como o CDHEP e o Cedeca,
mostram como está sendo negativamente afetada a população moradora.
Essa noção corrobora com o documento da relatoria dos Direitos Humanos da Plataforma Brasileira
de direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais. As principais conclusões da visita da
Relatoria Nacional do Direito Humano à Cidade, Plataforma Dhesca, realizado em São Paulo nos dias 17 e
18 de dezembro de 2009, são de que as intervenções públicas estão causando uma série de transtornos e
negligências aos direitos fundamentais:
“Em São Paulo e em sua região metropolitana, a Relatoria pode constatar abundância de
recursos para grandes obras de infra-estrutura, mas ausência de prioridade e descuido por
parte do poder público e das empresas contratadas para com o direito à moradia dos
cidadãos situados nas áreas de intervenção desses projetos. Para a relatoria, a situação
revela problemas relacionados diretamente com a construção de megaempreendimentos,
como a ampliação da Marginal do Tietê, a implantação do Parque das Várzeas do Tietê
(conhecido como parque linear) e a construção do Rodoanel. Isso evidencia que estamos
diante de um processo que precisa de atenção e de discussão pela sociedade. São Paulo
parece ser um exemplo da mercantilização das cidades, com a entrega de seus espaços mais
rentáveis e valorizados à iniciativa privada e transferência da população pobre para regiões
cada vez mais afastadas do centro, muitas vezes situadas em áreas de risco”. (SANTOS Jr &
MÜLLER, 2009, p. 30).
Apesar da infra-estrutura de esgotamento sanitário ser uma das principais metas dos programas,
visando implantar a coleta e o bombeamento do esgoto para fora da bacia hidrográfica - objetivo almejado
pela UGP, Sabesp e SSE - esta não foi atingida desde o Programa Guarapiranga, segundo informações
oficiais e denúncias do Instituto Socioambiental.209
O apelo à preservação do meio ambiente entra nas políticas públicas como uma bandeira política,
mitificando a ideia de que pobre polui e fortalecendo o pensamento único. Qual é o governante que assume
o ônus político de permitir a regularização da condição da moradia de 400 mil famílias em mananciais numa
região como São Paulo? A resposta a essa questão direciona que tipo de manejo político e urbanístico tem-
se feito e como são empreendidas tais ações.
209
http://www.socioambiental.org/inst/sem/guarapiranga2006/docs/pop_saneamento.pdf. Acesso 04/06/2009 e WHATELY,
Marussia; CUNHA, Pilar. Seminário Guarapiranga 2006. Proposição de ações prioritárias para garantir água de boa qualidade para
abastecimento público. Instituto Socioambiental, São Paulo, 2006. Disponível para download:
http://www.socioambiental.org/inst/sem/guarapiranga2006/pgn/docs.html.
191
Os relatórios oficiais dos programas para mananciais apontam, repetidamente, que a causa da
degradação e o consequente comprometimento da qualidade das águas concentra-se na forma de uso e
ocupação do solo, especialmente “envolvendo quadros acentuados de pobreza urbana”. Essa visão tende a
criminalizar individualmente seus moradores pela condição de degradação da represa, encobrindo que essa
situação é fruto de uma série de interesses e formas de apropriação diferenciada do território: sejam as
disputas entre a geração de energia e o abastecimento público; sejam as restrições de uso das propriedades e
a especulação do mercado imobiliário informal; sejam as disputas pela preservação da Mata Atlântica e as
expectativas de uso e gozo das propriedades para produção industrial, mineração, produção agrícola, lazer,
com as chácaras de recreio, atividades náuticas e conservação da paisagem; e a apropriação do espaço para
a construção de obras viárias, conflitando com os interesses de manutenção para a produção de água.
“A expansão de população de baixa renda para zonas mais periféricas resultou, dentre outros
fenômenos, na desqualificação ambiental de territórios legalmente protegidos – conforme
exemplos de algumas APRMs -, surgindo regiões com padrões de ocupação fortemente
diferenciados e desiguais, que conjugam baixa renda e pobreza, índices de criminalidade mais
elevados, ausência de infra-estrutura urbana básica, degradação ambiental, com frequentes
ocupações de encostas, fundos de vale, beiras de rios, córregos e várzeas por favelas e
loteamentos irregulares. Função deste cenário, fontes de abastecimento dentre as mais
importantes da bacia do Alto Tietê – como o Guarapiranga e a Billings - encontram-se
agudamente afetadas por esta expansão da malha urbana, pondo em risco a sustentabilidade do
fornecimento público de água da RMSP” (GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2009, p. 10).
210
Apresentação em power point cedida pelo coordenador Ricardo Sampaio que apresenta os resultados da valorização imobiliária
a partir dos investimentos públicos no período 1994-2004. Pesquisa de Valorização Imobiliária e Análise de Benefícios. Resultado
Geral Obtido (Favelas). Pesquisa BIRD (Consórcio COBRAPE / JNS / CNEQ).
211
Exposição verbal da profa. Maria Lúcia Refinetti Martins, em apresentação da sessão livre do Grupo Água em Meio Urbano no
ENANPUR, Florianópolis, 2009.
192
Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social e o seu respectivo fundo e conselhos (SNHIS – FNHIS,
Conselhos, Planos Estadual e Municipal e, por fim, o Conselho das Cidades que opera sobre o saneamento,
habitação, transportes e política urbana a nível federal e suas ramificações a nível estadual e municipal.
Além disso, em nível estadual há secretarias, empresas e autarquias que trabalham com a gestão dos
recursos hídricos da bacia do Alto Tietê, com o subcomitê da Bacia Guarapiranga e da Bacia Billings e Cantareira
para o caso do município de São Paulo. Também a Secretaria Estadual do Meio Ambiente trata dessas questões.
A fim de gerenciar o abastecimento público de água e energia, atua a Secretaria Estadual de Energia e
Saneamento que concentra a Unidade Gestora dos Mananciais, bem como os órgãos da Sabesp (tratamento de
água e esgoto) e Emae (energia). Já a proteção dos recursos hídricos por meio do controle do uso do solo é
exercida atualmente pela Secretaria Municipal de Habitação em conjunto com ação da Secretaria Estadual de
Habitação. Estas executam obras de recuperação dos mananciais pelo componente da estruturação do território.
As subprefeituras também exercem o papel de fiscalização por meio de um grupo intersetorial e a Cetesb exerce
o controle da poluição das áreas. A atuação estatal em área de mananciais apresenta-se como um desafio e
ainda envolve uma esfera metropolitana com dificuldades de se fortalecer no atual sistema federativo.
Neste capítulo, pode-se observar a combinação das políticas no sentido de priorizar a instalação de
infra-estrutura de saneamento. No entanto, mais do que uma questão social, essa pode ser entendida como um
suporte às atividades econômicas e, portanto, parte do processo de acumulação capitalista da cidade. A análise
setorial da questão dos mananciais por parte do poder público mantém antigos privilégios e encobre os conflitos.
Moreira avalia para quem servem essas políticas, para o autor o Estado tem um papel fundamental para
apaziguar os conflitos:
“No tratamento dessa questão (mananciais) predomina o enfoque setorial do poder público,
ou seja, o procedimento de evitar o confronto das partes em conflito ou contradição,
mediante atendimento em separado de cada uma das partes, como se seu problema fosse
autônomo em relação aos demais, que mantém a questão sob o controle do setor
hegemônico na sociedade e no poder público” (MOREIRA, 1990, p. 17).
A avaliação feita por Moreira na década de 1990, apesar de referir-se ao embate entre o sistema de
abastecimento e o produtor de energia, permanece atual no sentido do tratamento setorial da questão e na
forma de resolução dos conflitos. As políticas desarticuladas e incompletas servem para fortalecer a
permanência do controle do Estado e de forças hegemônicas nas políticas dos mananciais de São Paulo,
seguindo uma conveniência própria e interesses específicos quais sejam, aqueles relacionados ao usufruto
dos benefícios do território, como a implantação do Rodoanel, com a possível valorização imobiliária local
formal/informal pelo mercado, das grandes empreiteiras, mantendo também a preocupação centrada nos
meios de consumo coletivo, que não deixam de servir à reprodução da cidade capitalista212.
212
“(...) os sistemas de abastecimento de água, de afastamento de esgotos e de geração energética, que materializam a solução
desses problemas, são meios de consumo coletivo e nessa condição participam da divisão social peculiar à cidade capitalista”
(MOREIRA, 1990, p. 26).
193
Para compreender o caráter da atuação do Estado nas áreas de em mananciais, e as reações que
provocam junto à população, serão analisadas aqui três formas distintas de sua intervenção, quais sejam,
regularização, remoção e fiscalização. A partir da leitura de material documental, a respeito dos conflitos e
de entrevistas realizadas com uma amostra de moradores212, procurou-se identificar os impactos desse
programa nas áreas específicas escolhidas.
Os estudos de caso procuraram incorporar a análise das Ações Civis Públicas (propostas pelo
Ministério Público e Defensoria), a fim de auxiliar no desvendamento da complexidade do conflito, trazendo
para o debate os diferentes sujeitos sociais. Depois de uma ampla pesquisa no Ministério Público e na
Defensoria, foram escolhidos casos que geraram grande conflituosidade entre os sujeitos sociais, seja pela
ação movida pelo MP ou pelo enfrentamento dos moradores residentes nas áreas. Estes casos procuraram
representar diferentes formas de intervenção do Estado no território.
Trata-se de conflitos que apresentam “difícil solubilidade” por suas características peculiares tais
como: a problemática habitacional e urbana envolvida, a ausência de políticas sociais, o desgaste do
planejamento e da regulação urbano-ambiental.
As disputas por apropriação do território envolvem os sujeitos que reclamam seu direito à moradia,
instituições estatais que lhe propugnam importância devido a seus atributos “ambientais”, grupos de
interesse com estratégias negociais que defendem seu uso em nome do “desenvolvimento” ou do direito à
propriedade, organizações ambientalistas que militam em defesa da proteção ambiental e do meio ambiente
como patrimônio comum e órgãos colegiados de política urbano-ambiental, nos níveis estadual, municipal e
regional, que reivindicam seu espaço de participação e poder nas decisões.
212
A justificativa metodológica para a escolha dos entrevistados encontra-se na introdução da presente Tese e a relação dos
entrevistados encontra-se no Anexo 1.
194
a este estatuto, seus moradores sofrem com carências de infraestrutura e de instrumentos públicos de
controle social. As áreas caracterizam-se por dualidades e ambiguidades jurídicas. As normas urbanísticas
(principalmente de parcelamento e construção), ambientais e sociais já não são efetivas para a população
residente. Trata-se de conflitos contra a remoção, pela manutenção da ocupação, pela expropriação do solo
ocupado, pela regularização do título de posse ou de propriedade, por melhores condições de infraestrutura.
Serão caracterizados com mais detalhe, os tipos de conflito no decorrer da exposição da pesquisa empírica.
Os conflitos, inicialmente tratados como conflitos fundiários pela irregularidade da posse da terra, a
partir do momento em que a questão ambiental tomou relevância pública, passaram a se constituir também
em conflitos ambientais. Essa dupla caracterização é parte da complexidade da questão e requer para o seu
entendimento a inclusão de uma dimensão histórica, a fim de reconstituir os conflitos e as ações de
resistência frente às ameaças.
Nos conflitos sociais aqui estudados procurou-se reconhecer as diversas formas como, na
linguagem dos direitos, aparecem os pleitos por acesso à moradia pelos sujeitos sociais que são acusados
de poluir o meio ambiente, bem como o entendimento e as intervenções oferecidas pelo Estado em área de
manancial. Mais do que isso, os conflitos sociais são gerados, abafados e eventualmente resolvidos pelas
intervenções do Estado nas chamadas políticas de proteção dos mananciais.
O primeiro caso a ser analisado nessa Tese é aquele localizado no assentamento denominado
Cantinho do Céu. O conflito iniciado em 1991 gerou grande mal-estar político e mobilizou a associação dos
moradores, grileiros, subprefeitura, Ministério Público e a Justiça em torno de uma grande ocupação
inicialmente liderada por movimentos sociais, que atualmente foi considerada resolvida pelo Estado através do
projeto de regularização fundiária do Complexo Cantinho do Céu, em curso por meio de obras do PAC. O
segundo caso situa-se no Jardim Gaivotas, onde os moradores são alvo de uma política de fiscalização
marcada por ações de repressão e de criminalização por morarem em mananciais. A Prefeitura, em ação
conjunta com a Polícia, recorre à Lei de Crimes Ambientais. Com a edição da ordem interna n° 1, as remoções
foram sumárias, alegando também que as construções eram recentes. A área foi inserida no “Complexo
Cantinho do Céu” a partir de um projeto de regularização fundiária. O terceiro caso é o do Parque
Cocaia1/Toca, onde a intervenção do Estado gerou a mobilização de coletivos de luta pelo direito de
permanência no local de moradia. Enquanto isso, o Estado, por se tratar de uma área de preservação
213
Conforme discutido no capítulo 1 da presente Tese.
195
permanente (APP), demonstrou a intenção de remover a população para transformar a área em um parque
linear, com a justificativa de controle da qualidade das águas da represa.