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Teoria da História I – Prof. dr.

Jorge Grespan
Vitor Henrique Zanata de Barros Sanches
Nº USP 9337919
Vespertino

Questão: Compare as dialéticas de Hegel e Marx com base nos textos lidos nos seminários do
curso.

Em 1873, seis anos após o lançamento da primeira edição de O Capital, Marx escreve um novo
posfácio para a segunda edição em alemão da obra. Nesse curto texto, comentando algumas críticas que
seu livro havia recebido, Marx diz que seu “[…] método dialético, em seus fundamentos, não é apenas
diferente do método hegeliano, mas exatamente o seu oposto. Para Hegel, o processo de pensamento,
que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a transformar num sujeito autônomo, é o demiurgo do
processo efetivo, o que constitui apenas a manifestação externa do primeiro. Para mim, ao contrário, o
ideal não é mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça dos homens” 1. O que salta aos
olhos nesse trecho, se lido atentamente, é a maneira como Marx afirma utilizar a dialética de Hegel
também de forma dialética, afirmando que seu método é o seu “oposto”. Na sequência, Marx se assume
como discípulo de Hegel, pensador que os seus contemporâneos na Alemanha tratavam como um
“cachorro morto”, mas que, mesmo concebendo a dialética de maneira “mistificadora”, foi “[…] o
primeiro a expor, de modo amplo e consciente, suas formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra
de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro
místico”.2 Para além do longo debate existente sobre a filiação de Hegel e Marx, como observar a
“inversão” que o segundo opera sobre o primeiro? Como Marx descobre o “cerne racional” dentro da
dialética hegeliana, e como isso se explicita em sua obra? O texto aqui escrito tem o objetivo de refletir
sobre essas questões através da exposição de trechos da obra dos autores.
Hegel, em sua Introdução à Filosofia da História Universal, editada como A Razão na
História, mostra a sua concepção da dialética, que aparece como a lógica por trás do conflito, da
contradição. A dialética é, além disso, o modo como a razão, o princípio criador, “o que existe em si e
para si, mediante o qual tudo tem o seu valor” 3, age no mundo. Portanto, quando investiga
filosoficamente a História Universal, Hegel conclui que:

1 Marx, K. e Engels, F. O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013 p. 90


2 Idem. p. 91 (grifo meu)
3 HEGEL, G. F. W. A Razão na História. Introdução à Filosofia da História Universal. Lisboa: Edições 70, 2013. p.
32.
“[…] o resultado a que se chegou e que se há de chegar a partir da consideração
da história universal é que ela transcorreu racionalmente, que foi o curso racional e
necessário do espírito universal, o qual é a substância da história, espírito uno, cuja
natureza é uma e sempre a mesma; e que explicita esta sua natureza una na existência
universal.”

Sendo assim, para Hegel a investigação da História Universal deve se dar tendo em mente o
carater uno da mesma, que transcorre racionalmente, e que se desenvolve em via de um fim. Esse é o
modo de agir do “espírito universal”, da “substância da história”. O filósofo alemão, dessa forma
concebe o conjunto dos acontecimentos na história, o “concreto real”, como Marx viria a chama em sua
famosa introdução de 18574, como o reflexo do espírito universal no mundo. A história é, assim, a
manifestação do espírito universal no mundo, já que esse “só tem consciência porquanto é
autoconsciência e constitui, pois, para si uma determinada representação de si, do que ele é
essencialmente, do que é a sua natureza”5.
Em relação à natureza do espírito universal, Hegel afirma que: “A natureza do espírito pode
conhecer-se no seu perfeito contrário. Opomos o espírito à matéria. Assim como a gravidade é a
substância da matéria, assim também, devemos dizer, a liberdade é a substância do espírito. 6” Portanto,
para Hegel, a liberdade é o fim a partir do qual o espírito universal se manifesta no mundo. A liberdade
é, dessa forma, o fim da história, já que essa nada mais é que a razão, ou seja, o modo do espírito
operar no mundo, colocada como fim. E a razão, por sua vez, é a liberdade enquanto processo. E é por
ser universal e livre que o espírito é infinitamente criativo, e por isso racional. A razão é a capacidade
criadora do espírito, e opéra de maneira dialética no mundo, enquanto sujeito, ou seja, como um
movimento no qual o espírito se objetiva no outro, alienando-se, para voltar a si mesmo enriquecido.
Dessa forma, se consciente de si, o espírito é livre. A História Universal é, para Hegel, portanto, nada
mais do que “o progresso na consciência da liberdade”7.
O decorrer da História Universal é dado a partir da história dos povos, agentes particularizantes
do interesse naturalmente universal do espírito, e que realizam individualmente os seus fins, sendo em
si, etapas da caminhada da tomada de consciência do espírito universal, que se realiza universalmente,

4 Cf. Marx, K. “O método da economia política. Karl Marx. Apresentação de João Quartim de Moraes e tradução de
Fausto Castilho”. In: Revista Crítica Marxista, vol. 30. 2010. p. 103-125.
5 HEGEL, G. F. W. A Razão na História. Introdução à Filosofia da História Universal. Lisboa: Edições 70, 2013. p.
53
6 Idem. p. 53
7 Idem. p. 59
na somatória dos escombros dos desígnios particularistas dos povos, que se esgotam em si mesmos.
Portanto:

“os espíritos dos povos são os membros do processo em que o Espírito chega ao
livre conhecimento de si mesmo. Mas os povos são existências para si - não temos aqui a
ver com o espírito em si - e como tais têm existência natural; e porque os princípios são
distintos, também os povos são naturalmente distintos. 8”

Há, para Hegel, uma tensão entre os interesses particularistas, expressado na História Universal
pelo espírito dos povos, e o universal. Essa tensão se dá de maneira dialética, ou seja, é exatamente por
se particularizar e negar a si enquanto particular, que o espírito é universal. É é no decorrer da tomada
de consciência do espírito universal que os desígnios particulares surgem, e se definem em oposição ao
universal, acreditando serem eles mesmos universais. A dialética entre os interesses particulares dos
povos e o interesse universal do espírito se resolve, para Hegel, no plano do mundo, quando o
particular se torna universal, e não há mais contradição entre os interesses particulares dos povos, que
se encerram se si mesmos, e o fim da história universal. No fim da história, dessa forma, os fins e os
meios são a mesma coisa.
Por fim, Hegel assume que o Estado aparece na história dos povos quando esses entendem o seu
particular como universal, criando leis universais a partir de própria história. Na sociedade burguesa,
entretanto, o Estado não toma uma forma particular, mas sim universal, já ele se constituí tendo como
fim a garantia da liberdade, fim, por si própria, da história universal enquanto manifestação racional do
espírito universal. O Estado burguês seria universal, já que “o Estado, a pátria, constituem uma
comunidade de existência, porque a vontade subjectiva do homem se sujeita às leis, esvanece-se a
oposição entre liberdade e necessidade.9”
É a partir desse ponto, do princípio hegeliano que o Estado burguês seria a culminação dos
interesses particularistas na universalidade, que Marx inicia, no início da década de 1840, com A
crítica à filosofia do direito de Hegel, a sua crítica à filosofia de Hegel. Já em sua fase madura, no já
citado posfácio à segunda edição d’O Capital, Marx escreve:

“Na sua forma mistificada, a dialéctica tornou-se moda alemã, porque ela parecia
glorificar o existente. Na sua figura racional, ela é um escândalo e uma abominação para a
burguesia e para os seus porta-vozes doutrinários, porque, na compreensão positiva do

8 Idem. p. 61
9 Idem. p. 100
existente, ela encerra também ao mesmo tempo a compreensão da sua negação, da sua
decadência necessária; porque ela apreende cada forma devinda no fluir do movimento,
portanto, também pelo seu lado transitório; porque não deixa que nada se lhe imponha; porque,
pela sua essência, é crítica e revolucionária.10“

“Crítica e revolucionária“, pois, ao ler a dialética de Hegel de forma dialética, ao dar voz ao
negativo do elogio que Hegel empreende da sociedade burguesa, Marx faz surgir as suas contradições
reais, não mais no plano das ideias, “demiurgo do real“, mas na concretude da vida material. Os
interesses particulares, representados pela história dos povos, se tornam em Marx os conflitos de classe.
Essas, por sua vez, não são uma manifestação do espírito universal em busca da consciência, mas sim
cisões sociais condicionadas, em especial na sociedade burguesa, pela maneira como o homem se
relaciona com a natureza e se reproduz socialmente através do trabalho. Como explicita Marx, em sua
Introdução à crítica da economia política de 1857:

“Ao considerar a economia política de um dado país, começamos por sua população,
sua divisão em classes, distribuída pela cidade, campo e mar; os diversos ramos da produção, a
exportação e a importação, a produção anual e o consumo anual, os preços das mercadorias etc.
É que parece correto começar pelo real e pelo concreto, pela pressuposição efetivamente real e,
assim, em economia, por exemplo, pela população: fundamento e sujeito do ato todo da
produção social. A uma consideração mais precisa, contudo, isto se revela falso. A população,
por exemplo, se omito as classes que a constituem, é uma mera abstração. Estas últimas, por sua
vez, são uma expressão vazia se não conheço os elementos sobre que repousam, a saber, o
trabalho assalariado, o capital etc. E esses pressupõem a troca, a divisão do trabalho, os preços
etc., de sorte que o capital, por exemplo, nada é, sem o valor, o dinheiro, o preço etc. 11”

Com a guinada materialista de Marx, dessa forma, o Estado burguês de Hegel, realização do
princípio universal da liberdade, fim único da história, se torna um estado de privilégios, onde a
liberdade se dá apenas de maneira formal, sem que, no mundo “concreto”, os homens a experimentem.
Mais do que isso, o “Estado universal” de Hegel, se mostra um Estado de classe, que protege a classe
dominante em detrimento da dominada. A própria figura do Estado, no desenvolvimento do
pensamento de Marx, assim como a dos povos, perde protagonismo em função da base material a partir
da qual os homens se reproduzem socialmente. São as classes sociais, determinações fundamentadas

10 Marx, K. e Engels, F. O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013 p. 91


11 Marx, K. “O método da economia política. Karl Marx. Apresentação de João Quartim de Moraes e tradução de Fausto
Castilho”. In: Revista Crítica Marxista, vol. 30. 2010. p. 109.
nessa base econômica, que se tornam os verdadeiros agentes de transformação da história, através de
uma relação dialética. Eis a máxima, “a luta de classes é o motor da história”.
A própria liberdade, fim da História Universal, se torna historicamente situada em Marx. Para
ele: “A libertação é um ato histórico e não um ato de pensamento, e é ocasionado por condições
históricas, pelas condições da indústria, do comércio, da agricultura, do intercâmbio… 12”. E a História
Universal, por sua vez, só é universal na medida em que os povos e as nações, que se desenvolvem
mais ou menos isoladamente, são colocadas em contato por um “modo de produção”, pela troca
internacional de mercadorias: “quanto mais no curso desse desenvolvimento se expandem os círculos
singulares que atuam uns sobre os outros, quanto mais o isolamento primitivo das nacionalidades
singulares é destruído pelo modo de produção desenvolvido, pelo intercâmbio e pela divisão do
trabalho surgida de forma natural entre as diferentes nações, tanto mais a história torna-se história
mundial.13”
Por fim, cabe dizer que, ao operar a chamada “inversão” de Hegel, Marx não mais vê a história
através de uma teologia, de um fim a partir do qual o Espírito Universal se realiza e toma consciência.
A História não é uma sucessão de histórias particulares que culminariam na “grande história”, mas sim
a sobreposição de modos humanos de se reproduzir socialmente, na qual é ação dos homens, postos
enquanto classes revolucionárias (do proletariado, no caso do capitalismo; mas também da burguesia,
na antiga sociedade feudal), que gera transformações.

12 Marx, K. e Engels, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p. 29


13 Idem. p. 40

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