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Personalidade e mal moral.

A conexão dos vícios

ECHAVARRÍA, M. F. Personalidad y mal moral. La conexión de los vicios. Espíritu, LXIX (2020), n. 159, pp. 71-94.
Tradução: Instituto Santo Atanásio (Curitiba – PR) – institutosantoatanasio.org

RESUMO

A tradição moral aristotélica afirma que as virtudes estão conectadas, o que implica também
que o caráter moral é uma unidade onde há organização e hierarquia. Os vícios morais, por outro
lado, são considerados nesta tradição como essencialmente inconexos. Contudo, especialmente no
pensamento de Tomás de Aquino, há certa conexão entre alguns vícios. Esta conexão pode ser
considerada de duas maneiras: ou atendendo ao indivíduo e suas inclinações próprias, perspectiva
que não pode ser objeto de ciência; ou atendendo à conexão entre os objetos das inclinações
apetitivas, que é uma consideração que atende a conexões per se entre os vícios morais e que,
portanto, pode ser objeto de ciência. Deste segundo tipo é a consideração dos vícios capitais feita
pelo Aquinate.

1. Introdução: Ética, caráter, personalidade e saúde

Já não é nenhuma novidade dizer hoje que a moral não se trata somente dos deveres, ou
somente sobre a bondade ou maldade dos atos humanos considerados isoladamente, mas sim que
também se deve levar em consideração o caráter, o que inclusive seria o tema principal desta
disciplina, conforme se diz na hoje chamada “ética da virtude”.1 De fato, já explicava Aristóteles,
que a palavra “ética” (ηθική) deriva, por sua vez, de “êthos” (ἦθος), que significa “caráter”, por isso
a ciência ética (ηθική επιστήμη) é “a” ciência do caráter, 2 uma ciência que tem como objeto a
constituição da personalidade moral.

1 Na origem da atual “virtue ethics” estão os ensaios de Anscombre, Foot e, sobretudo, MacIntyre. Cf. G.E.M.
Anscombe (1958). “Modern Moral Philosophy”, Philosophy, 33, 1-19; Ph. Foot (1978). Virtues and Vices and Other
Essays in Moral Philosophy. Berkeley: University of California Press; A. McIntyre (1981). After Virtue: A Study in
Moral Theory. Notre Dame, Indiana: University of Notre Dame Press. A recuperação da temática do caráter e da
virtude também se fez presente no âmbito protestante; cf. S. Hauerwas (1991). A Community of Character: Toward
a Constructive Christian Social Ethics. Notre Dame, Indiana: Notre Dame University Press. Tanto McIntyre no
After Virtue quanto em Hawerwas se desenvolve uma ética das virtudes de tendência sociologista e historicista, que
está desconectada da noção aristotélica de natureza, diferenciando-a da leitura tomista da noção de virtude. Sobre a
importância das virtudes no contexto geral da ética do Arquinate, cf. G. Abbà (1989). Felicità,vita buona e virtù.
Saggio di filosofia morale. Roma: LAS; J. Porter (1990). The Recovery of Virtue. The Relevance of Aquinas for
Christian Ethics. Louisville, Kentuchy: Westminster/John Knox Press.
2 Apesar de suas raízes aristotélicas, não é toda ética da virtude, no sentido contemporâneo da palavra, de orientação
aristotélica; cf. D. Carr, D. Arthur & K. Kristjánsson (Eds.) (2016). Varieties of Virtue Ethics. London: Palgrave
Macmillan.
Neste trabalho utilizaremos de modo intercambiável as palavras caráter e personalidade,
embora no contexto da discussão atual sobre o tema de teoria filosófica do caráter se costume hoje
discutir esta identificação. 3 O motivo principal é que a personalidade seria um constructo da
psicologia para medir determinados traços, entendendo por tais como fatores estatísticos que
permitiriam a previsão de condutas. O caráter, por outro lado, é um conjunto de disposições estáveis
no interior das pessoas que dão conta de seus atos humanos. Deste modo é que se separou o campo
da ação da psicologia da personalidade do da ética da virtude.
No entanto, o problema é muito mais complexo, porque não há na psicologia contemporânea
unanimidade sobre o que se chama personalidade. Se o conceito de personalidade definido mais
acima é o que se emprega em geral nas orientações fatoriais sobre a investigação da personalidade,
entre elas a que se destaca como a mais aceitável é a dos cinco grandes fatores (big five), mas há
muitas outras maneiras de entender a personalidade. Não é nossa intenção entrar aqui em detalhes
acerca dessas questões, mas vamos nos permitir mencionar só duas. A primeira é a concepção de
personalidade do pioneiro da psicologia da personalidade como disciplina acadêmica, Gordon
Allport. Este autor considera que os enfoques fatoriais respondem em geral a uma maneira positiva
de entender a ciência, segundo a qual esta não poderia alcançar uma definição essencial da coisa
estudada e, portanto, se limitaria a ser definida operacionalmente. 4 A partir desta perspectiva, a
personalidade seria um mero constructo do investigador, não correspondendo em nada à realidade
das coisas. Em sentido contrário, Allport propõe uma concepção realista segundo a qual a
personalidade é uma realidade “no interior do indivíduo... que determina sua conduta e pensamentos
característicos”.5 Para Allport, caráter e personalidade não se refeririam a realidades distintas, mas a
diferença dependeria da perspectiva. A palavra “caráter” seria utilizada para se referir à
personalidade enquanto sujeita a avaliação moral; a palavra “personalidade” seria utilizada para
focar nesta mesma realidade a partir de um ponto de vista neutro, sem valoração moral.6 Que este
intento de separação fosse desejável e, de fato, alcançável seria outra questão, e Martin Seligman,
fundador da recente “psicologia positiva”, criticou Allport por causa deste intento de separação,
uma vez que a maturidade pessoal não poderia ser estudada adequadamente prescindindo daquilo
que implicaria a noção de caráter, ou seja, a liberdade e as virtudes. 7 De fato, apesar da diferença
introduzida por Allport, o próprio autor considerava não ser possível falar de maturidade da

3 Hoje se discute muito a diferença ou conexão entre os conceitos de “caráter” da ética da virtude e de “personalidade”
da psicologia. Ver o interessante artigo de K. Banicki (2017). “The Character-Personality Distinction. A Historical,
Conceptual, and Functional Investigation”, Theory & Psychology, 27/1, 50-68.
4 Cf. G. W. Allport (1964). Pattern and Growth in Personality. London-New York: Holt, Rinehart and Winston, 27-28.
5 Allport, Pattern and Growth, 28.
6 Cf. Allport, Pattern and Growth, 30-33.
7 Cf. M. E. P. Seligman (2003). La auténtica felicidad. Barcelona: Bergara, 176-177.
personalidade sem recorrer a critérios éticos, sendo toda sua exposição sobre a personalidade
madura não outra coisa senão a descrição de uma pessoa que se desenvolve segundo determinados
valores e parâmetros éticos.8
Outro exemplo é o uso das palavras “personalidade” e “caráter” de muitos dos mais
importantes pesquisadores da personalidade sob a perspectiva clínica, como Erich Fromm,
Theodore Millon ou Claude Robert Cloninger. Para esses autores, o conceito genérico de
personalidade abarcaria dois conceitos específicos: o de temperamento e o de caráter, de tal maneira
que o caráter seria uma das duas dimensões da personalidade. O temperamento seria a parte da
personalidade determinada biologicamente, enquanto o caráter seria a parte adquirida da
personalidade.9 Fromm afirma explicitamente que este caráter é a parte da personalidade por onde
somos considerados bons ou maus eticamente. 10 Cloninger, por sua vez, considerava que esses
traços adquiridos permitiriam medir a maturidade de uma personalidade, introduzindo alguns
conceitos em sua explicação que nos conectam implicitamente com critérios de ordem ética: a
autodireção (self-directedness), que se refere à capacidade de autogoverno em vistas a um fim; a
cooperatividade (cooperativeness), que se refere à sua atitude frente aos demais; e a auto-
transcendência, que se refere ao desenvolvimento de uma atitude espiritual.11
Esses exemplos bastam para comprovar que, no mínimo, qualquer consideração daquilo que
a psicologia chama “personalidade” nos condizem a considerações éticas e que personalidade e
caráter ou são o mesmo, ou denominam duas maneiras de enfoque sobre a mesma coisa, ou uma é
parte da outra (o caráter, parte da personalidade).
Por outro lado, uma vez que muito frequentemente a personalidade é considerada
principalmente como objeto das ciências da saúde, sem que nos demos conta, acaba por absorver o
terreno dos atos e disposições humanas, ou seja, o terreno da ética, para o campo das ciências da
saúde. Assim, o caráter ou governo das emoções, temas clássicos da ética, terminam sendo terreno

8 Cf. Allport, Pattern and Growth, p. 275: “Nossa longa pesquisa sobre o desenvolvimento da individualidade, da
motivação, do estilo cognitivo trazem a nós uma última e crucial questão: O que é ser uma pessoa madura?”
9 Cf. E. Fromm (1985). Ética y psicoanálisis. México D. F.: Fondo de Cultura Económica, p. 64: “Entendo por
personalidade a totalidade das qualidades psíquicas herdadas e adquiridas que sejam características de um indivíduo
e que tornem o indivíduo único. A diferença entre as qualidades herdadas e as adquiridas é, em geral, sinônima da
diferença entre temperamento, dotes e todas as qualidades psíquicas constitucionais, por um lado, e o caráter, por
outro”; Th. Millon & G. S. Everly (1994). La personalidad y sus trastornos. Barcelona: Ediciones Martínez Roca, p.
19: “Resumindo, dentro do contexto deste volume, nós consideraremos a personalidade como um conceito amplo
que pode facilmente incluir temperamento e caráter. O temperamento será considerado como a matéria-prima
biológica a partir da qual a personalidade se formará, e o caráter será considerado como um subgrupo da
personalidade, mais amplo que o temperamento, mas mais reduzido que a personalidade, e definido segundo os
costumes sociais”.
10 Cf. Fromm, Ética y psicoanálisis, p. 64: “Enquanto que as diferenças no temperamento não têm significado ético, as
diferenças no caráter é constituem o verdadeiro problema da ética”.
11 Cf. C. R. Cloninger, D. M. Svrakic & Th. R. Przybeck (1993). “A Psychobiological Model of Temperament and
Character”. Archives of General Psychiatry, 50, 975-990.
privilegiado da psiquiatria e da psicologia clínica, onde os moralistas não ousam entrar. Esta
absorção do moral pelo sanitário é parte de um fenômeno, todavia, mais amplo, e que não foi,
porém, suficientemente discernido. Um exemplo da transcendência do que aqui estamos falando é a
definição mais difundida do conceito de “saúde”: a da Constituição da OMS (1948). Vale a pena
citá-la aqui para que se entenda do que estamos falando: “A saúde é um estado de completo bem-
estar físico, mental e social, e não somente a ausência de distúrbios ou enfermidades”. Esta
definição pretende que a saúde seja muito mais do que aquele hábito entitativo do organismo que
estava em Santo Tomás. Quanto mais? Para responder esta pergunta, é preciso recorrer a outra
definição célebre. Referimo-nos à definição de felicidade de Boécio: “o estado perfeito pela reunião
de todos os bens” (status omnium bonorum aggregatione perfectus12). Se compararmos as partes de
ambas as definições, teremos a surpresa de que o que Boécio, e junto com ele toda a tradição moral
do ocidente, chamava de felicidade coincide praticamente com o que hoje a OMS chama “saúde”.
Deste modo, esta organização transformou-se na garantidora da felicidade humana, sendo posta nas
mãos dos profissionais da saúde. Urge, portanto, uma recuperação para as disciplinas morais dos
temas da felicidade, da personalidade e da afetividade.

2. A teologia da personalidade de Tomás de Aquino

Embora seja objetável que a ética filosófica e a teologia moral de Santo Tomás possam ser
reduzidas à categoria de “ética da virtude”, porque, em sua síntese moral, julgam também ter um
papel fundamental outras noções igualmente importantes como as de felicidade, lei e graça, 13 é
evidente que as virtudes ocupam um lugar fundamental na concepção tomasiana de moral, a tal
ponto que a maior parte da IIa-IIae da Summa Theologiae está organizada em torno das virtudes
fundamentais, e na Ia-IIae as virtudes desempenham um papel fundamental entre os princípios

12 Usada com frequência por Santo Tomás; cf. por exemplo, Summa Theologiae, I, q. 26, a. 1, arg. 1. Se tivermos em
conta que, segundo a concepção clássica, os bens do homem são de três tipos - bens exteriores, bens do corpo e bens
da alma - a reunião de todos os bens se aproxima muito a esse bem-estar físico, mental e social de que fala a
definição da ONU.
13 Cf. N. Austin (2018). Aquinas on Virtue. A Causal Reading. Washington D.C: Georgetown University Press, p. xvi:
“Nós precisamos de uma maneira de reconhecer a contribuição significativa da virtude sem com isso exagerar o seu
significado. Para este fim, é recomendável adotar a distinção da filosofia moral entre ética da virtude e teoria da
virtude. Ética da virtude é notoriamente dificil de definir, mas a frase sugere com seus termos que é uma ética onde
a virtude serve como idéia básica ou foco central. A ética da virtude é mais frequentemente apresentada como uma
alternativa à deontologia ou ao consequencialismo e, portanto, é vista como uma teoria moral autônoma na qual
todas as idéias importantes são derivadas de um conceito básico chamado virtude. A teoria da virtude, em contraste
com a ética da virtude, é um conteúdo da natureza, gênese e papel da virtude (e das virtudes). Ela não afirma ser
uma ética autônoma. [...] A ética teológica precisa de um lugar para a virtude, mas também para os mandamentos,
convenções, felicidade, lei e graça”. Uma síntese tomista que harmoniza todos os elementos da moral católica é a de
SERVAIS PINCKAERS; cf. S. Pinckaers (1985). Les sources de la morale chrétienne. Sa méthode, son contenu, son
histoire. Fribourg, Editions Universitaires; S. Pinckaers (1991). La morale catholique. Cerf Paris; S. Pinkares (2009).
Passions et vertu. Paris: Parole et Silence.
explicativos da ação humana. É também certo que a concepção das virtudes que Santo Tomás
apresenta na IIa-IIae não se limita a um tratamento de cada uma das virtudes como disposições
isoladas, mas o que o Aquinate ali nos apresenta é o que poderíamos chamar uma verdadeira
“teologia da personalidade”. Com efeito, Santo Tomás segue a concepção aristotélica de que as
virtudes morais adquiridas são conexas. Além disso, o Doutor Angélico estende esta idéia de
conexão às virtudes infusas, tanto morais como teológicas. Ainda que se possa ter as virtudes
separadas ou isoladamente de modo imperfeito e informe,14 não pode se ter a virtude segundo o
perfeito estado de virtude sem possuir todas as virtudes fundamentais.15 Esta conexão implica não
só que haja relações recíprocas entre as virtudes, e que conformam um sistema na qual se
necessitam e se apoiam mutuamente, mas também que há uma ordem e hierarquia entre elas. As
mais importantes se comportam como forma das inferiores. Assim, as infusas são mais importantes
que as adquiridas, as teologais são principais a respeito das morais, especialmente a caridade, forma
virtutum, e entre as morais, a prudência é superior à justiça, e esta à fortaleza e à temperança.16 Esta
ordem depende, por sua vez, da ordem dos objetos: as virtudes teológicas, que têm por objeto a
Deus, Sumo Bem, na qual consiste a felicidade, são principais a respeito das que têm por objeto as
operações e as paixões e, por isso, a personalidade cristã se dá em torno daquelas. Por isso, Santo
Tomás define o organismo das virtudes, ou seja, a personalidade virtuosa, como “o conjunto
ordenado de virtudes” (ordinata virtutum congregatio17). Daqui, generalizando, poderíamos definir
a personalidade como “o conjunto ordenado de hábitos operativos”. 18 Esta definição cabe não

14 Há uma discussão clássica sobre o que são essas quase virtudes que se possuem de modo imperfeito, ou seja,
inconexo. Existem claramente as disposições naturais ou adquiridas pré-morais, o que Aristóteles chama “virtudes
naturais”, como a facilidade para a temperança ou para a mansidão que deriva do temperamento da criança. Isso não
são hábitos, mas simples disposições. Alguns autores consideram que inclusive em alguns casos pode haver uma
virtude imperfeita que seja verdadeiro hábito, mas um hábito que é incapaz de atuar perfeitamente por causa da
obstrução que proviria das outras disposições desordenadas, que impediriam o pleno exercício dessa virtude, mas
que, uma vez adquiridas ou infundidas as virtudes faltantes, seria liberado e operaria segundo seu pleno poder. Por
outro lado, há a questão da possibilidade de possuir as virtudes morais adquiridas, inclusive com sua conexão, sem
possuir as virtudes infusas. Cf. Austin, Aquinas on Virtue, 177-185.
15 Refiro-me às “virtudes fundamentais”, porque algumas virtudes, como a magnificência, que supõe a posse de
riquezas, não pode se dar em todas as pessoas virtuosas em ato perfeito, mas virtual ou radicalmente. Já às virtudes
imperfeitas não se dão por falta de conexão com as virtudes infusas informadas pela caridade. cf. L. Billot (1905).
De virtutibus infusis. Commentarius in Secundam Partem S. Thomae. Roma: Typographia iuvenum opificium a S.
Ioseph, p. 22: “Adhuc tamen sciendum est quod omnis virtus, ut sit in statu perfecto virtutis, debet non tantum posse
ordinari, sed etiam ordinari de facto ad bonum perfectum quod est ultimum finis. Quapropter, si qua forte virtus
particularis exsistat in homine non bene se habentem ad ultimum finem qui Deo est, ista nondum facit habentem
simpliciter bonum, adeoque non est virtus perfecta, sed imperfecta seu informis, cui nimirum ultima deest forma
moralitatis”
16 Cf., especialmente, Sum. Theol., I-II, q. 65.
17 Cf. Sum. Theol., II-II, q. 161, a. 5, ad 2: “Ad secundum dicendum quod, sicut ordinata virtutum congregatio per
quandam similitudinem aedificio comparatur, ita etiam illud quod est primum in acquisitione virtutum, fundamento
comparatur, quod primum in aedificio iacitur”.
18 Cf. M. F. Echavarría (2005). La praxis de la psicología y sus niveles epistemológicos según santo Tomás de Aquino.
Girona: Documenta Universitaria, 164.
somente à personalidade virtuosa, mas também à que possui vícios, os quais trataremos nas sessões
posteriores.
Porém, para um enfoque completo do que seria a “teologia da personalidade” dentro da
psicologia moral de Santo Tomás,19 é necessário atender a outros componentes fundamentais que se
somam às virtudes fundamentais para a constituição da personalidade. Refiro-me às chamadas
“partes” dessas virtudes, e muito especialmente às que Santo Tomás chama “partes integrais”,
porque as partes “subjetivas” e as partes “potenciais” não mostram necessariamente uma ordem real
entre si, embora as partes potenciais estejam logicamente ordenadas entre si na medida em que
participam do “modo” da virtude cardeal correspondente.20 As partes integrais são “condições” que
fazem com que essas virtudes sejam possíveis. 21 Assim, se a virtude da prudência se ordena
propriamente ao ato do “império”, para poder fazer este ato da razão prática, é necessário que o
sujeito possua outras disposições, que nem sempre são virtudes morais, como a boa memória, a
inteligência do presente, a previsão do futuro, a racionalidade, a sagacidade, a circunspecção e a
precaução.22 Todas estas são capacidades cognitivas, que eventualmente podem colaborar com os
vícios ao invés das virtudes (o mentiroso, por exemplo, tem que ter uma boa memória, e o ladrão
costuma ser muito precavido). De modo semelhante, para que se dê a virtude da temperança, é
necessário o desenvolvimento das disposições positivas, que são a vergonha e a honestidade.23 A
vergonha é o temor pela deformidade da desordem da intemperança; a honestidade é o sentido da
beleza. Sem uma sensibilidade que sinta repugnância pela deformidade moral e admiração pelo belo,
não se têm as bases suficientes para o desenvolvimento da disposição estável da moderação do
apetite por prazer, a temperança. Por si mesmas, nem a vergonha nem a honestidade são a virtude da
temperança, e são inclusive compatíveis com a falta de temperança como virtude perfeita, pois
podem ocorrer na continência e inclusive talvez na incontinência. Contudo, são uma disposição e
condição para a existência da virtude. Em síntese, as virtudes não somente estão conexas entre si,
mas também com outras qualidades positivas, que não necessariamente são virtudes no sentido mais
forte da palavra, mas que tornam possível a virtude.

19 Cf. N. E. Lombardo (2011). The Logic of Desire. Aquinas on Emotion. Washington D.C.: The Catholic University of
America Press, p. xi: “Para Tomás de Aquino, a ética não é outra coisa senão o estudo da psicologia humana à
medida que ela floresce ou deixa de florescer. Diferentemente das abordagens que consideram a psicologia e a ética
como duas categorias distintas que apenas ocasionalmente se preocupam entre si, ou talvez extrinsicamente
relacionadas a um cálculo onde o bem-estar psicológico é pesado contra o fazer o que é certo, a abordagem do
Aquinate oferece uma síntese refrescante entre psicologia e ética”.
20 Cf. De virtutibus, q. 1, a. 12, ad 27.
21 Cf. Sum. Theol., II-II, q. 143, a.u., co.
22 Cf. Sum. Theol., II-II, q. 49.
23 Cf. Sum. Theol., II-II, qq. 144 et 145.
3. A desconexão dos vícios

As disposições contrárias às virtudes são os vícios. Santo Tomás ensina que, diferentemente
das virtudes, todos os vícios não são conexos:

A intenção do agente de, na prática da virtude, seguir a razão, difere da intenção do pecador
no afastar-se da mesma. Pois a intenção de qualquer agente, na prática da virtude, é seguir a
regra da razão; e portanto, a intenção, em todas as virtudes, recai sobre o mesmo objeto. E
por isso todas são conexas entre si por seguir a razão reta dos atos, que é a prudência, como
já dissemos. Ao passo que a intenção do pecador não é a de se afastar do racional, mas
antes, tender para algum bem desejável, que lhe especifica o ato. Ora, tais bens, a que tende
a intenção do pecador, afastando-se da razão, são diversos, sem nenhuma conexão entre si;
antes, são contrários às vezes. Ora, como os vícios e os pecados se especificam pelos seus
objetos, é manifesto que nenhuma conexão têm os pecados entre si, quanto ao que lhes dá a
espécie completa. Pois, não cometemos pecados passando da multidão à unidade, como se
dá com as virtudes, que são conexas, mas, ao contrário, cometemos pecados deixando a
unidade, pela multidão.24

A resposta de Santo Tomás é clara, embora contenha mais matizes do que podemos imaginar
à primeira vista. O vício e o pecado, enquanto sejam o pecado da criatura racional, têm o caráter de
privação. O mal e a privação não são apetecíveis per se, porque o objeto que atrai o apetite é o bem.
As virtudes são conexas, porque, ainda que cada virtude tenha sua própria matéria, todas tendem a
algo analogicamente uno, que é o bem da reta razão. Por isso, todas as virtudes morais se unificam
na virtude da prudência, que é a que determina qual é o bem segundo a razão hic et nunc no agir, ao
ser a regra próxima dos atos humanos. O vício e o pecado, ao contrário, definem-se como a
privação da ordem da reta razão e, portanto, por serem males, não têm razão apetecível nem,
portanto, de fim da ação nem de hábito. Sendo assim, não podem ser princípio de unificação. Quem
peca não busca nem pode buscar per se o mal, mas algo que se apresenta sob a aparência de bem,
sendo este bem o que especifica o ato. Pecando pode-se tender a inumeráveis bens criado que não
possuem nenhuma conexão per se e, por isso mesmo, os distintos pecados e vícios são
essencialmente inconexos. Por outro lado, já que a virtude consiste em um termo médio entre duas
desordens extremas, os vícios estão nesses extremos e, portanto, há vícios que são contrários e que
não podem se dar simultaneamente no mesmo sujeito, como a pusilanimidade e a presunção, o
temor e a “intimiditas”.25
A consequência de tudo isso é que, ao ser dissolutivo do bem do homem, que é o da razão, e
por fazer o homem tender a uma multiplicidade de bens, inconexos e às vezes opostos em sua
concretude (não na participação da perfeição comum do bem), tanto mais a tendência do vício
enquanto tal será a decomposição da personalidade moral: a queda a partir da unidade do bem da

24 Sum. Theol., I-II, q. 73, a. 1, co


25 Ibidem.
razão, a multiplicidade do apetite, perdido na multiplicidade dos bens finitos. Não se deve, por isso,
menosprezar o efeito desorganizador da vida humana que tem o pecado, tampouco o caminho
oposto: o efeito unificador e saudável da vida verdadeiramente virtuosa.
Essas afirmações devem nos levar à conclusão de que não é possível estudar o vício e o
pecado a partir da perspectiva da personalidade, ou seja, de algum tipo de conexão que se dê ut in
pluribus entre as distintas formas de inclinação viciosa? Na continuação, explicaremos por que
pensamos que não é assim.

4. A conexão dos vícios

Embora todos os vícios, pelos motivos já explicados, não tenham uma conexão per se entre
si, isso não significa que não haja algum tipo de conexão entre alguns vícios e que captar tal
conexão não seja menos importante para o desenvolvimento da psicologia moral. Pelo contrário, é
muito importante, para entender algo da psicologia do pecado, compreender que os pecados não só
produzem e procedem de vícios, mas que também que há vícios que se relacionam e que se apoiam
mutuamente entre si, que também estão relacionados a outras disposições que não necessariamente
sejam vícios em sentido estrito. Nisso que consiste, justamente, a doutrina dos vícios capitais.26
Chamam-se vícios capitais aquelas disposições morais estáveis, traços do caráter moral, que
inclinam, fora da ordem da reta razão, a fins tão importantes ou atrativos que causam o surgimento
de outros pecados e vícios. Este causar tem a modalidade da causa final. Santo Tomás assim explica
com as seguintes palavras:

Um pecado causa outro como parte de um fim quando o homem comete algum pecado por
causa do fim de outro pecado. Como a avareza causa a fraude, porque o homem comete
fraude para lucrar com o dinheiro. Assim, segundo este modo, se causa o pecado em ato e
formalmente. Portanto, segundo este modo de origem, são chamados de vícios “capitais”
[...]. Pois é evidente que o príncipe ordena aqueles que lhe estão sujeitos para um fim,
assim como o exército é ordenado ao fim pelo general, conforme dito na Metaf., XII. Donde,
segundo Gregório [Magno], os vícios capitais são como generais; e os vícios que deles
nascem são como um exército. Contudo, que um pecado se ordene ao fim de outro, pode
suceder de duas maneiras. Primeira, por causa do próprio pecador, cuja vontade está mais
inclinada ao fim de um pecado do que de outro, o qual é acidental ao pecado. Por isso,
segundo este [modo], não se chamam alguns vícios de “capitais”. De outro modo, diz-se
isso pela disposição mesma dos fins, das quais alguns têm conveniência com outro, a tal
ponto que ordinariamente [ut in pluribus] se ordene ao mesmo. Assim como o engano, que
é o fim da fraude, se ordena a juntar riquezas, que é o fim da avareza. Então, de acordo com
isso, há que considerar os vícios capitais. Portanto, se chamam vícios capitais aqueles que
tendem a alguns fins apetecíveis principalmente por si mesmos, de tal modo que a estes fins
se ordenem outros vícios.27

26 Uma prova da atualidade da doutrina dos vícios capitais é o livro de um catedrático de Psicologia da Universidade
de Barcelona, M. Villegas (2018). Psicología de los siete pecados capitales. Barcelona: Herder. O autor declara
adotar um ponto de vista não religioso, o que reforça o argumento da objetividade da importância desta doutrina.
27 De malo, q. 8 a. 1 co: “unum peccatum causat aliud ex parte finis, in quantum scilicet propter finem unius peccati
committit homo aliud peccatum; sicut avaritia causat fraudem, quia homo ad hoc fraudem committit ut pecuniam
O texto é muito rico, então iremos comentá-lo por partes. Em primeiro lugar, Santo Tomás
afirma que um pecado pode ser cometido por causa de outro quando um deles possui um fim tão
atrativo que, por causa desse fim, se comentam outros pecados. Trata-se de dois pecados distintos,
onde cada um tem seu objeto próprio, mas há ordem de um em relação ao outro, como cometer
fraude por avareza. Temos o pecado de fraude e de avareza, mas aquele não se explicaria, se
buscamos a compreensão do ato humano, se não entendermos que esse ato de fraude foi realizado
para conseguir o bem a que se aspira por avareza, que são as riquezas. Isso que se explica em
relação aos atos também vale para o nível dos hábitos operativo, neste caso, os vícios. E isso pode
ser enfocado segundo dois tipos de consideração:
a) A que atende às disposições individuais, ou seja, à personalidade em sua singularidade:
assim, cada um tem suas próprias inclinações apetitivas habituais e, por causa delas, está mais
disposto a ser atraído por um bem antes que por outro. Isso pode-se dar segundo inumeráveis
variáveis individuais e não pode estar sujeito à ciência nem à arte (a técnica), pois esta só pode
atender ao que se dá ut in pluribus.28 Neste caso, não falamos de vícios capitais, mas, em todo caso,
dos vícios dominantes neste sujeito, como se dirigíssemos a alguns vícios capitais próprios da
idiossincrasia pessoal, o que às vezes se chama de “paixão ou vício dominante”. Assim, em uma
pessoa, o vício da pusilanimidade ou do temor podem ser dominantes e causa de outros vícios a
modo de fim, ainda que não apareçam na lista dos vícios capitais.
b) A que atende à ordem dos bens ou fins as quais tende o apetite. Um vício pode-se ordenar
ao fim de outro ut in pluribus quando em geral se observa que se tende a cometer um pecado, ou
melhor, a ter inclinações a determinados pecados como meio para alcançar o fim de um vício
principal, o qual é chamado “vicio capital”. Estes vícios tendem a fins “apetecíveis por si” enquanto
que os vícios subalternos tendem a meio para esses fins. Embora não se esteja considerando aqui as
personalidades individuais, como no caso anterior, está se contemplando conexões objetivas entre
vícios, que tendem a ocorrer na maioria dos casos. Encontramo-nos, assim, com uma conexão entre
vícios na medida em que, em geral e pela natureza mesma dos bens a quais tais vícios apontam

lucretur; et secundum hoc peccatum causatur a peccato in actu et formaliter. Et ideo secundum istum modum
originis dicuntur vitia capitalia […]. Manifestum est enim quod princeps ordinat sibi subiectos ad finem suum, sicut
exercitus ordinatur ad finem ducis, ut dicitur in XII Metaph. Unde, secundum Gregorium, vitia capitalia sunt quasi
duces; et vitia quae ex eis oriuntur, sunt quasi exercitus. Quod autem unum peccatum ordinetur ad finem alterius,
potest dupliciter contingere. Uno modo ex parte ipsius peccantis, cuius voluntas est pronior ad finem unius peccati
quam alterius; sed hoc accidit peccatis. Unde secundum hoc non dicuntur aliqua vitia capitalia. Alio vero modo
dicuntur ex ipsa habitudine finium quorum unus habet quamdam convenientiam cum alio, ita quod ut in pluribus ad
ipsum ordinetur; sicut deceptio, quae est finis fraudis, ordinatur ad pecunias congregandas, quod est finis avaritiae;
et secundum hoc oportet capitalia vitia assumere. Illa ergo dicuntur capitalia vitia quae habent quosdam fines
principaliter secundum se appetibiles, ut sic ad huiusmodi fines alia vitia ordinentur”.
28 É chamativo como esta observação parece conectar, ante litteram, a concepção da personalidade em Santo Tomás
com a de Gordon Allport ao distinguir o enfoque idiográfico do nomotético; cf. Allport, Pattern and Growth, 3-21.
desordenadamente, alguns vícios tendem a subordinar-se a outros. Este suceder, em geral, possui
relação com uma conexão essencial entre os meios e os fins que, ainda que não ocorra sempre,
consegue intervir em causas contingentes, tal como sucede tanto nas coisas morais quanto nas
naturais, e pela participação da liberdade.29 Esta consideração, por ser objetiva e essencial, pode ser
objeto da ciência moral.
Por causa da disposição do homem pecar, pode acontecer que qualquer vício se ordene a
qualquer fim. Todavia, segundo a disposição que os objetos ou os fins têm entre si, alguns
determinadamente se ordenam a outros, do quais procedem. Entretanto, na consideração da moral, é
dada atenção ao que se sucede na maioria [ut in pluribus], bem como na consideração da [ciência]
natural.30
Em síntese, a primeira forma de consideração da estrutura dos hábitos na personalidade
individual é mais próxima do sujeito atuante, mas é menos científica, objeto da experiência e da
prudência. A segunda forma de consideração, embora mais remota aos casos particulares, é mais
universal e científica. Ambas as perspectivas são complementares. A segunda perspectiva é muito
importante para compreender a coerência que há entre si de determinadas inclinações. A primeira é
importante, porque permite compreender a estrutura da personalidade tal como se dá na realidade
das pessoas. Com efeito, o caráter de uma pessoa que possui autênticos vícios não é puro vício, nem
todas as disposições que possui são vícios morais. Além de poder possuir, por exemplos, algumas
virtudes intelectuais, pode ter também algumas virtudes morais, embora de modo imperfeito, seja
por pura disposição, seja como hábitos imperfeitos por estarem incorporados em uma estrutura
organizada em torno de um falso fim último que prescinde da prudência, que é a forma das virtudes
morais:

Como já dissemos, não é por qualquer ato pecaminoso que somos privados da virtude
oposta. Assim, dela não nos priva o pecado venial; por sua vez, o pecado mortal nos priva
da virtude infusa, por nos afastar de Deus; mas, um só ato pecaminoso, ainda mortal, não
nos tira o hábito da virtude adquirida. Porém, se os atos se multiplicarem a ponto de
gerarem um hábito contrário, fica excluído o hábito da virtude adquirida; e excluída esta,

29 Cf. Sum. Theol., I-II, q. 84, a. 1, ad 3: “Ad tertium dicendum quod, sicut in rebus naturalibus non quaeritur quid
semper fiat, sed quid in pluribus accidit, eo quod natura corruptibilium rerum impediri potest, ut non semper eodem
modo operetur; ita etiam in moralibus consideratur quod ut in pluribus est, non autem quod est semper, eo quod
voluntas non ex necessitate operatur. Non igitur dicitur avaritia radix omnis mali, quin interdum aliquod aliud
malum sit radix eius, sed quia ex ipsa frequentius alia mala oriuntur, ratione praedicta” [A ordem natural não implica
na realização inevitável dos fatos, senão o que se dá na maior parte das vezes, porque a natureza das coisas
corruptíveis pode ser impedida de agir sempre do mesmo modo. Assim também, na ordem moral, consideramos o
que é mais frequente, e não o que se deva realizar sempre, porque a vontade não obra necessariamente. Por onde, o
considerar-se a avareza raiz de todos os males não significa que, às vezes, algum outro mal não seja a sua raiz, mas
que, no mais das vezes, dela nascem os outros, pela razão já exposta].
30 De malo, q. 8 a. 1 ad 4: “Ad quartum dicendum, quod ex dispositione hominis peccantis potest contingere quodlibet
vitium ad finem cuiuslibet ordinetur: sed secundum habitudinem obiectorum vel finium quam habent ad invicem,
quaedam determinate a quibusdam oriuntur, a quibus etiam frequentius procedunt. In consideratione autem morali
attenditur id quod est ut in pluribus, sicut et in consideratione naturali”.
fica também excluída a prudência. Pois, agindo contra qualquer virtude, agimos contra a
prudência, sem a qual não pode existir nenhuma virtude moral, conforme já estabelecemos.
E, por consequência, ficam excluídas todas as virtudes morais, enquanto ao que há de
perfeito e formal na virtude; e isso elas o têm na medida em que participam da prudência;
permanecem, contudo, as inclinações para os atos virtuosos, que não implicam a essência
da virtude. Mas disso não se segue que incorrermos em todos os vícios ou pecados.
Primeiro, porque uma mesma virtude se opõem a vários vícios; de modo que a virtude pode
ser excluída por um deles, sem que os outros existam. Segundo, porque o pecado se opõe
diretamente à virtude, quanto à inclinação desta para o ato, como já dissemos. Portanto,
enquanto permanecerem algumas inclinações virtuosas, não podemos nos considerar como
tendo os vícios ou pecados opostos.31

Com isso, retornamos ao argumento da sessão anterior: não somente não se podem ter todos
os vícios, mas inclusive quem possui vícios importantes, e quem estrutura sua vida em torno aos
fins desses vícios, ordinariamente tem, junto com estes, algumas inclinações positivas, virtudes
imperfeitas por causa da falta de conexão na prudência e na caridade com o restante das virtudes.
Isso significa que sua personalidade moral não pode ser perfeitamente coesa em torno aos falsos
fins que persegue. Embora, em princípio, não seja possível que exista alguém que só possua vícios,
nem sequer poderia possuir a todos, caso a pessoa possuísse, isso até poderia configurar uma
personalidade mais coerente, melhor organizada, mas, pelo mesmo motivo, seria mais contrária à
razão e à natureza, mais artificial e mais deforme, uma espécie de monstro psico-moral. Para lograr
isso, seria necessário um exercício consciente contra natura que acabaria não só com as virtudes,
mas também com as disposições pré-morais na sensibilidade e no entorno que torna possível as
virtudes. Quando isso é alcançado, estamos diante da progressão na malícia que torna os homens
bestiais. Disso falou Santo Tomás quando estudou as causas das tendências contra natura no
Comentários à Ética a Nicômaco de Aristóteles.32

31 Sum. Theol., I-II, q. 73, a. 1, ad 2: “Ad secundum dicendum quod, sicut supra dictum est, non per quemlibet actum
peccati tollitur virtus opposita, nam peccatum veniale virtutem non tollit; peccatum autem mortale tollit virtutem
infusam, inquantum avertit a Deo; sed unus actus peccati etiam mortalis, non tollit habitum virtutis acquisitae. Sed si
multiplicentur actus intantum quod generetur contrarius habitus, excluditur habitus virtutis acquisitae. Qua exclusa,
excluditur prudentia, quia cum homo agit contra quamcumque virtutem, agit contra prudentiam. Sine prudentia
autem nulla virtus moralis esse potest, ut supra habitum est. Et ideo per consequens excluduntur omnes virtutes
morales, quantum ad perfectum et formale esse virtutis, quod habent secundum quod participant prudentiam,
remanent tamen inclinationes ad actus virtutum, non habentes rationem virtutis. Sed non sequitur quod propter hoc
homo incurrat omnia vitia vel peccata. Primo quidem, quia uni virtuti plura vitia opponuntur, ita quod virtus potest
privari per unum eorum, etsi alterum non adsit. Secundo, quia peccatum directe opponitur virtuti quantum ad
inclinationem virtutis ad actum, ut supra dictum est, unde, remanentibus aliquibus inclinationibus virtuosis, non
potest dici quod homo habeat vitia vel peccata opposita”.
32 Sententia Ethic., lib. 7, l. 1, n. 12: “Et ponit tres modos secundum quos aliqui fiunt bestiales. Quorum primus est ex
conversatione gentis, sicut apud barbaros qui rationabilibus legibus non reguntur, propter malam convivendi
consuetudinem aliqui incidunt in malitiam bestialem. Secundo contingit aliquibus propter aegritudines et orbitates,
idest amissiones carorum, ex quibus in amentiam incidunt et quasi bestiales fiunt. Tertio propter magnum
augmentum malitiae, ex quo contingit quod quosdam superexcellenter infamamus dicentes eos bestiales. Quia igitur,
sicut virtus divina raro in bonis invenitur, ita bestialitas raro in malis: videntur sibi per oppositum respondere”.
5. A conexão nos vícios capitais

Não estando a primeira forma de considerar a conexão entre os vícios sujeita à ciência, então
iremos nos centralizar na conexão que se estabelece entre os vícios capitais e outros vícios ou
pecados que se ordenam àqueles, os quais são chamados por Santo Tomás, seguindo a São Gregório
Magino, de “filhas” dos vícios capitais. Foi dito antes que a razão pela qual não se fala de conexão
dos vícios é justamente porque são um mal, ou seja, uma privação, que enquanto tal não pode
produzir ordem. Entretanto, entre os chamados vícios capitais e suas “filhas” há uma ordem,
justamente na medida em que os atos e objetos daqueles vícios são como o fim destes outros. Como
é possível dizer que entre os vícios pode e não pode haver ordem e unidade? O Aquinate explica
isso da seguinte maneira:

O pecado carece de ordem pelo afastamento que causa, pois, a partir desta perspectiva tem
razão de mal; pois, na verdade, segundo Agostinho, o mal é a privação do modo, da espécie
e da ordem. Quanto ao que busca, contudo, o pecado implica um certo bem e, a partir desta
perspectiva é susceptível de ordem. 33

O “afastamento” de Deus e a “busca” pela criatura são os dois aspectos que têm os atos de
pecado e, por conseguinte, os vícios que a eles inclinam. Em qualquer pecado, a pessoa prefere o
bem criado ao Bem divino, então por querer se apoderar daquele bem fora da ordem estabelecida
por Deus, afasta-se dEle, depreciando o ditame da reta razão. Enquanto seja separação do Bem
divino e do bem da razão, o pecado é privação e, portanto, algo incapaz de estabelecer ordem e
unidade na multiplicidade dos atos e tendências do homem. Porém, a partir do aspecto da busca
pelo bem finito, inclusive o aparente, dado que este possui alguma participação do bem, pode haver
finalidade, ordem e unidade.34 Esta é a ordem que se pode dar em uma personalidade dominada
pelos vícios e é a ordem de que trata a doutrina dos vícios capitais, que são vícios que engendram e
coordenam outros vícios, ou seja, outras disposições do caráter que são contrárias à reta razão.
Assim explica Santo Tomás:

Capital vem de cabeça. Ora, esta propriamente é o membro principal e diretivo de todo o
animal. Por isso, chama-se metaforicamente de cabeça a tudo o que é princípio e diretivo; e

33 Sum. Theol., I-II, q. 84, a. 3, ad 2: “Ad secundum dicendum quod peccatum caret ordine ex parte aversionis, ex hac
enim parte habet rationem mali; malum autem, secundum Augustinum, in libro de natura boni, est privatio modi,
speciei et ordinis. Sed ex parte conversionis, respicit quoddam bonum. Et ideo ex hac parte potest habere ordinem”.
34 Por este motivo, para mostrar o caráter de mal dos vícios, o método de exposição adequado é o de desenvolver o
tema dentro do contexto do tratamento da virtude que privam. É assim que faz Santo Tomás na Summa e, em parte,
este é o método do livro de K. Timple & C. A. Boyd (Eds.) (2015). Virtues & Their Vices. New York: Oxford
University Press. Contudo, este não é o método de exposição mais adequado para mostrar a conexão dos vícios. Para
este fim, é melhor expor os vícios a partir dos vícios capitais dos quais derivam em geral, como faz Santo Tomás em
De malo, e como faz na Summa nos artigos em que explica cada vício capital com suas “filhas”, embora faça em um
contexto geral de exposição das virtudes com sua ordem.
também os homens, que dirigem e governam, são chamados cabeças. Por onde, de um
modo, a denominação de vício capital vem de cabeça, em sentido próprio. E nesta acepção
chama-se pecado capital o punido com a pena capital. Mas não é neste sentido que tratamos
agora dos pecados capitais, mas consideramos aqui o pecado capital como derivado de
cabeça, em outra acepção, a saber, a metafórica, significando que ele é o princípio ou o
diretivo dos outros pecados. E assim chama-se vício capital aquele donde os outros nascem,
e principalmente quanto à origem da causa final que é a origem formal como já se disse.
Por onde, o vício capital não só é o princípio dos outros, mas também os dirige e de certo
modo os chefia. Pois sempre a arte ou o hábito, a que pertence o fim, tem o principado e o
império sobre os meios. Por isso Gregório compara esses vícios capitais com os chefes dos
exércitos.35

Conforme podemos ver claramente neste parágrafo, os bens a que tende o apetite
desordenado engendram uma ordem nova, que é a do caráter vicioso, que Santo Tomás compara ao
das artes. Neste contexto, há alguns vícios que, pelo caráter sumamente atrativo de seus objetos, são
capazes de engendrar todos os vícios, e que se destacam entre os vícios capitais. Estes são a soberba
(superbia) e a cobiça (cupiditas). A soberba é o apetite desordenado pela própria excelência e, como
a todo homem apetece naturalmente o pleno desenvolvimento de suas potencialidades, isso pode ser
concretizado, neste caso, desordenadamente, por meio de qualquer bem, a soberba pode causar
qualquer pecado, porque por meio de qualquer um deles o homem poderia estar buscando a própria
36
excelência. A cobiça é o apetite desordenado por riquezas. Embora as riquezas sejam
essencialmente bens úteis e não bens deleitáveis por si, nem honestos, contudo, para quem tem um
apetite voltado para os bens terrenos, gera uma fortíssima atração, porque mediante o dinheiro é
possível comprar todos os bens corruptíveis. Assim, a cobiça é a “raiz” de todo pecado (1 Tm 6,10),
porque pode alimentar a todos.37
A partir disso, Santo Tomás detém-se em alguns vícios que, ainda que não tenham a
extensão causal da soberba e da cobiça, arrastam consigo ordinariamente constelações de vícios
bem determinados: a vanglória (inanis gloria), a inveja (invidia), a avareza (avaritia), a ira (ira), a
tristeza (tristitia) ou acídia (accidia), a gula (gula) e a luxuria (luxuria). Não poderemos tratar a
todos, mas bastam alguns exemplos para entender a importância de considerar a conexão destes
vícios.

35 Sum. Theol., I-II, q. 84, a. 3, co: “Respondeo dicendum quod capitale a capite di desordecitur. Caput autem proprie
quidem est quoddam membrum animalis, quod est principium et directivum totius animalis. Unde metaphorice
omne principium caput vocatur, et etiam homines qui alios dirigunt et gubernant, capita aliorum dicuntur. Dicitur
ergo vitium capitale uno modo a capite proprie dicto, et secundum hoc, peccatum capitale dicitur peccatum quod
capitis poena punitur. Sed sic nunc non intendimus de capitalibus peccatis, sed secundum quod alio modo dicitur
peccatum capitale a capite prout metaphorice significat principium vel directivum aliorum. Et sic dicitur vitium
capitale ex quo alia vitia oriuntur, et praecipue secundum originem causae finalis, quae est formalis origo, ut supra
dictum est. Et ideo vitium capitale non solum est principium aliorum, sed etiam est directivum et quodammodo
ductivum aliorum, semper enim ars vel habitus ad quem pertinet finis, principatur et imperat circa ea quae sunt ad
finem. Unde Gregorius, XXXI Moral., huiusmodi vitia capitalia ducibus exercituum comparat”.
36 Cf. Sum. Theol., I-II, q. 84, a. 2.
37 Cf. Sum. Theol., I-II, q. 84, a. 1.
Comecemos, primeiramente, pela vanglória. Este vício opõe-se à virtude da magnanimidade
por excesso e consiste em um apetite desordenado pela manifestação da própria excelência, ou seja,
que a própria perfeição seja conhecida. À vanglória associam-se como vícios conexos os seguintes:
a jactância (jactantia), a presunção de novidades (praesumptio novitatum), a hipocrisia, a
obstinação (pertinatcia), a discórdia (discordia), a disputa (contentio) e a desobediência
(inbedientia). A lógica pela qual estes vícios se conectam com a vaidade é esta: dado que este vício
consiste na tendência de manifestar a própria excelência, a este fim pode-se ordenar distintos meios.
Primeiramente, se a manifestação da própria superioridade é buscada diretamente, com o uso das
palavras, então temos a jactância, ou por outros atos. Se os atos dos quais se glorifica são reais,
temos a presunção, principalmente pela originalidade ou novidade, porque o que é novo produz
maior admiração. Se, ao contrário, a perfeição por que se glorifica é falsa, temos a hipocrisia. Em
segundo lugar, pode-se manifestar indiretamente a própria excelência, mostrando que não se é
inferior aos demais. Nesta linha causal temos a obstinação, onde a pessoa se mantém em seu
parecer apesar de ouvir melhores razões do próximo; a discórdia, onde a pessoa não quer ceder em
suas decisões para que sua vontade concorde com a dos outros; a disputa, que conduz a discutir com
os demais vociferendo; e a desobediência, onde não se quer executar as ordens de um superior.38 Ao
tratar do vício capital da inveja, Santo Tomás acrescenta que ela também é filha da vanglória, o que
não impede, por sua vez, que seja um vício capital donde nascem outros.39 A partir do ponto de vista
da psicologia do pecado, todas estas considerações têm grande utilidade. Quando um padre, um
educador, um superior, encontra alguém que se comporta segundo alguma dessas maneiras, por
exemplo, que é desobediente ou presunçoso, pode inferir como provável que há por trás disso uma
desordem da vaidade. Com mais segurança ainda podemos fazer esta inferência se nos
encontrarmos com o complexo de todos esses defeitos. Por sua vez, a vanglória procede muitas
vezes da soberba, que, sendo o apetite desordenado pela própria excelência, pode causar o apetite
pela manifestação da própria excelência. Este complexo de vício dá lugar a um tipo psico-moral, o
do vaidoso com complexo de superioridade.
Abordemos, por outro lado, um vício carnal, como a luxúria, o apetite desordenado pelos
prazeres venéreos. Seguindo a Gregório, o Aquinate conecta a luxúria com as seguintes desordens: a
cegueira mental (caecitas mentis), a inconsideração (inconsideratio), a inconstância (inconstantia),
a precipitação (pracipitatio), o amor próprio (amor sui), o ódio de Deus (odium Dei), o amor ao
tempo presente (affectus prasenti saeculi), e o horror ou desesperação do futuro (horror vel

38 Cf. Sum. Theol., I-II, q. 132, a. 5.


39 Cf. Sum. Theol., I-II, q. 36, a. 4.
desesperatio futuri). A explicação é a seguinte: por ser uma inclinação intensa aos prazeres
sensíveis, e em particular aos sexuais, a luxúria afeta o funcionamento das potências superiores, ou
seja, a razão e a vontade. Portanto, os vícios que se associam à luxúria terão relação com a afetação
destas potências. A razão vê-se afetada, em primeiro lugar, quanto ao seu primeiro ato, a simples
inteligência que apreende algo como um bem. Esta simples apreensão do bem é substituída pela
cegueira da mente. Nisso diferencia-se de um efeito semelhante oriundo de outro vício capital, a
gula, que é do embotamento do sentido (hebetudo sensus). Pelo apego aos bens sensíveis que ocorre
pelo contentamento do ventre, próprio da gula (gastrimargia, “loucura do ventre” como chamavam
os gregos40), a mente perde a agudeza que lhe permite superar os acidentes e chegar à essência das
coisas e então a mente se torna superficial. No caso da luxúria, por outro lado, o que se produz é
uma simples superficialidade na apreciação do bem e do mal, ou algo ainda pior, uma autêntica
cegueira mental com respeito aos bens espirituais. Em continuidade estão os atos da razão dirigidos
aos meios que conduzem ao fim, como a deliberação (consilium), o juízo (iudicium) e o império
(imperium), que são substituídos pelos vícios contrários à virtude da prudência: a precipitação, onde
se atua impulsivamente sem prévia deliberação ou conselho; a inconsideração, onde se julga de
maneira desviada; e a inconstância, onde, embora se tenha deliberado e julgado previamente o bem,
não se leva a cabo a ação justa previamente escolhida. Pelo lado da vontade, temos as seguintes
desordens: em primeiro lugar, a respeito de seu primeiro movimento, que é o apetite do fim, temos
o amor sui (a philautía dos Padres orientais41), que não é outra coisa que o egoísmo, porque, ao
apetecer o prazer contra a reta razão, a pessoa se coloca a si mesma como medida do bem; como
consequência, desenvolve-se o ódio de Deus, porque aparece, com seus mandamentos, como quem
proíbe o livre desfrute desse prazer. Depois se desordena também o apetite dos meios que conduzem
ao fim. Neste nível temos o amor do presente século, pois quem deseja o prazer sensível precisa se
posicionar no aqui e agora. Como consequência, cai-se na desesperação e horror do tempo futuro,
porque a dissipação nos prazeres do presente leva a descuidar dos bens espirituais. É muito aguda a

40 Cf. Sententia Ethic., lib. 3, l. 20, n. 623. A respeito dos Padres orientais, cf. J.-C. Larchet (1997). Therapeutique des
maladies spirituelles. Une introduction à la tradition ascétique de l’Église orthodoxe. Paris: Cerf, 163-164: “La
gastrimargie, par tous ses aspects que nous avons évoqués, et en particulier pour la raison qu’elle constitue une
perversion de l’usage naturel et normal de la nourriture, est qualifiée par les Pères de maladie. Saint Jean Cassien
par example dit à propos des trois formes de cette passion qu’il a décrites: ‘Il y a là trois foyers de maladies de l’âme
aussi redoutables qu’elles sont nombreuses.’ On comprend également qu’elle puisse être considérée par eux comme
une forme de folie. Saint Dorothée de Gaza en prend d’ailleurs comme argument supplémentaire l’origine même des
appellations de ‘laimargie’ et ‘gastrimargie’: ‘Μαργαινεινэ signifie chez les auteurs païennes ‘être hors de soi’ et
l’insensé est appelé μαργος” . Quand il arrive à quelqu’un cette maladie (νοσος) et cette folie (μανια) de remplir le
ventre, on l’appelle gastrimargie (γαστριμαργια), c’est-à-dire ‘folie du ventre’. Quand il s’agit seulement du plaisir
de la bouche on l’appelle ‘laimargie’ (λαιμαργια), c’est-à-dire ‘folie de la bouche’”
41 Cf. Larchet (1997). Thérapeutique des maladies spirituelles, 151-152 : “La philautie (φιλαυτία) est considérée par
beaucoup de Pères comme la source de tous les maux de l’âme, la mêre de toutes les passions, et en premier lieu des
trois passions génériques dont toutes les autres sont dérivées: gastrimargie, philargyrie et cénodoxie. ‘C’est elle
incontestablement, écrit saint Maxime, qui engendre la folie des trois pensées prèmieres et fondamentales’”.
observação de que por detrás da busca desordenada do prazer se oculta uma abismal desesperação.
O luxurioso é um desesperado; quando não consegue gozar, cai em depressão por se encontrar com
a própria esclerose espiritual. O predomínio deste vício capital dá-nos outro tipo psico-moral: o da
pessoa egoísta, centrada na busca de prazeres e do desfrute do aqui e agora, cega ao mundo dos
valores.
Um caso especial são os que constituem aqueles vícios, como a inveja e a acídia, cujo objeto
não é algo que aparece como bom, mas como mal, pois em ambos os casos se trata de hábitos
relativos a sentir uma tristeza desordenada. A inveja é a tristeza pelo bem alheio, que é avaliado
como um mal próprio; e a acídia, a tristeza pelo bem divino interior, que é valorada como uma mal
na medida em que se opõe à inclinação desordenada aos bens criados. Trata-se de dois vícios
capitais, ou seja, que engendram e organizam outros vícios, mas que não é diretamente a causa de
atração a um bem, mas sim a repulsa de um mal, ainda que por detrás da rejeição daquilo que
aparece como mal esteja o amor desordenado por si e pelos bens finitos. O mais interessante é o
vício da acídia. Este tem como vícios subalternos a malícia (malitia), o rancor (rancor), a
pulsilanimidade (pusillanimitas), a desesperação (desesperatio), a apatia a respeito dos preceitos
(topor circa praecepta), e a divagação mental sobre coisas ilícitas (evagatio mentis circa illicita). A
explicação é esta: quem se entristece de Deus como objeto interior da contemplação, que nesta vida
é obscuro e com frequência não se deixa sentir, mas que se oculta na nuvem da fé, lhe sucede,
primeiramente, que precisar fugir para as coisas exteriores, porque não consegue permanecer
consigo mesmo no próprio interior, porque ali sente tristeza e “nenhum homem pode permanecer
por um tempo prolongado sem prazer e na tristeza”.42 Esta fuga refere-se à divagação da mente
sobre coisas ilícitas que, segundo o Aquinate, seguindo a São Isidoro, se compõe, por sua vez, das
seguintes atitudes: a volubilidade da vontade, que denomina “importunação da mente”
(importunitas mentis); a divagação cognitiva, que é o vício da curiosidade (curiositas); a
loquacidade incontrolada, que se chama verbosidade (verbositas); quanto aos movimentos corporais,
a inquietude; e quanto à necessidade de mudar constantemente de lugar, a instabilidade
(instabilitas). Todos esses vícios têm em comum a dissipação, mediante as distintas potências, nas
coisas criadas. Como consequência da separação do bem divino como fim, temos o vício da
desesperação; a respeito dos meios que conduzem ao fim, tratando-se do que é estritamente
necessário, que é o cumprimento dos preceitos morais, cai-se no defeito da anomia, ou seja, da
apatia no cumprimento dos mandamentos; tratando-se daquilo que se cai sob conselho, de algo que
seja mais árduo, se cai na pusilanimidade. Como consequência do afastamento do bem divino
interior e do relaxamento moral, termina-se cultivando um ressentimento ou rancor pelas pessoas

42 De malo, q. 11, a. 4 ; Sum. Theol., I-II, q. 35, a. 4, ad 2.


que induzem a perseguição dos bens espirituais; e finalmente, por sentir ódio pelos próprios bens
espirituais, é o que se chama “malícia”. Como podemos ver, a acídia é um vício capital de grande
importância pela enorme constelação de vícios que fomenta, e que são seriamente lesivos ao maior
bem do homem. A acídia não é, por isso, um vício isolado, e tem a tendência de engendrar um tipo
psico-moral: o do homem interiormente amargurado, dissolvido na multidão das atividades, com
uma inquietude má, extrovertido e extensivamente ativista, porém paralizado intensiva e
interiormente, pusilânime, relaxado moralmente e ressentido.

Conclusão

Acreditamos que nós conseguimos mostrar como em santo Tomás se encontra uma
consideração sobre as disposições contrárias à reta razão, ou seja, os vícios, a partir da perspectiva
da personalidade. Ainda que para o Aquinate todos os vícios não sejam essencialmente conexos,
alguns vícios podem, e de fato costumam, estar conectados. Esta conexão dos vícios pode ser
destacada de duas maneiras: a partir da consideração das disposições individuais e a partir das
conexões objetivas de acordo aos bens criados a qual tendem os vícios. A primeira perspectiva não
pode ser objeto do discurso científico por estar centrada no que se sucede nas variações individuais,
mas a segunda perspectiva pode ser objeto da ciência moral. Trata-se do modo de conexão dos
vícios capitais que reúnem em torno de si constelações completas de defeitos morais, em geral (mas
não exclusivamente) a título de causa final. Os vícios capitais com seus vícios subalternos dão lugar
a tipos de personalidade que se tornam compreensíveis a partir da conexão desses defeitos
secundários em ligação com o vício capital correspondente. Encontra-se aqui, em nossa opinião,
uma interessante contribuição de Santo Tomás para a psicologia moral, uma contribuição que faz
parte de uma mais complexa e profunda “teologia da personalidade”.

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