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O erro de Narciso – Louis Lavelle

Apresentação – Contemplação de Narciso; por Alfredo Bosi


No começo, era o mito. Há diferentes versões da história de narciso, que
a mitologia grega nos legou. Mas em todas o núcleo é sempre o mesmo:
Narciso era um formoso adolescente, filho dos amores de um deus-rio, Cêfiso,
e uma ninfa. Quando nasceu, os pais interrogaram o vidente Tirésias sobre o
destino de Narciso, e a resposta foi enigmática: O menino conheceria a velhice
se não visse a si mesmo... Chegando à juventude, sua rara beleza despertava
paixões ardentes nos que o contemplavam, mas era com frio desdém que ele
reagia ao amor de mortais e imortais. Como tantas, a ninfa Eco se apaixonou
por Narciso e precisou amargar a mesma decepção: encerrou-se em solitária
caverna onde foi definhando até que de sua pessoa não restasse mais do que
uma voz que gemia. Então, as jovens desprezadas pediram vingança aos céus:
Nêmesis, a justa, as ouviu. Em uma tarde de calor esbraseante, Narciso,
fatigado de longas horas de caça, abeirou-se de um riacho para dessedentar-
se. No espelho das águas viu sua figura e por ela se apaixonou perdidamente.
Nada o demoveria do enleio que o enfeitiçara: quedou-se a contemplar a
própria imagem até que a morte o levou para as regiões trevosas banhadas
pelo Estige. Junto a essas águas sombrias Narciso não cessa de perseguir sua
amada figura. No lugar onde morreu, brotou uma flor a que os homens deram o
nome de narciso: bordas cor de sangue tinham suas pétalas amarelas.
Narciso foi condenado a fitar para sempre o que não tem substância, o
que é puro reflexo tremulando na água, fugidio, impalpável, inacessível, mas
nem por isso menos presente e sedutor aos olhos de quem o ama. Duplo sem
corpo como o eco a que foi reduzida a pobre ninfa; som que só se produz
quando outra voz, viva voz, o emite. Vazios ambos, reflexo e eco, mas forte o
bastante para arrastar a um destino nefasto até mesmo os filhos dos deuses.
11. O cimo da alma
É impossível dar um sentido à vida, e mesmo aceitar viver, se não se
descobriu alguma vez o elevado cimo da consciência onde o pensamento e a
vontade buscam se estabelecer, de onde jamais se deveria deixá-los descer,
cuja lembrança nos volta ao espírito carregada ao mesmo tempo de saudade e
de esperança, e que continua ainda a nos sustentar quando não temos a força
de o escalar. Não pode pretender fazer sua morada lá quem não tiver adotado
como regra inflexível rechaçar todas as solicitações medíocres, as conversas
inúteis e ociosas, os pensamentos do amor-próprio sempre associados a
alguma preocupação que nos pesa, a algum interesse que nos distrai. E
mesmo assim essa regra não basta: poderíamos segui-la com fidelidade e
permanecer, no entanto, num estado de indiferença e secura. O cimo da
consciência é uma extremidade brilhante que somente nossa atividade mais
pura é capaz de atingir: o menor grão de poeira basta para diminuí-lo e
obscurecê-lo; nossa alma não obtêm nesse cimo nenhuma sustentação e logo
torna a cair; no entanto, é lá que ela encontra o único equilíbrio que lhe
convém, e que é ao mesmo tempo o mais perfeito e o mais instável.
E é então, por uma espécie de paradoxo, que a capacidade de nossa
consciência se vê exatamente preenchida. Todos os poderes da alma se
exercem e se conciliam: mesmo a contrariedade deles, que era um empecilho,
aumenta ainda mais a força e a desenvoltura de todos os seus movimentos. A
suprema tensão interior coincide com o supremo repouso que nos comunica a
própria presença das coisas e dá às mais humildes um extraordinário relevo e
uma luz sobrenatural. A intenção é tão simples e correta que o mundo lhe é
dócil e parece receber uma significação que a realiza. O que há de dentro do
mundo é para nós transparente, enquanto o que há dentro do eu coincide com
essa claridade: e a alma está tão acima dos estados que ela sente que estes
não são mais capazes de perturbá-la.
É no presente, portanto, que se acha situado o cimo da nossa
consciência. Mas não sabemos nos manter nele: escusamo-nos dizendo que
ele não poderia fornecer um material bastante grande ao nosso pensamento e
à nossa ação, e por isso o abandonamos sempre. Queremos esquecer que ele
pede um esforço demasiado grande à nossa coragem, e assim nos desviamos
para dar à nossa atividade enfraquecida um objeto mais frágil e mais acessível,
capaz de distraí-la e que é buscado no passado ou no futuro, isto é, na
lembrança ou no sonho.
O presente é um cimo de onde avistamos a infinidade do mundo como
um oceano sem margens, onde não há porto que possamos alcançar um dia,
nem caminho rumo a uma misteriosa distância, que nos escaparia sempre. A
infinidade é a negação do fim e, portanto, também do caminho. Ela mesma é o
fim e o caminho. Pois a consciência só obtém o equilíbrio e a segurança
quando alimenta seu olhar com o infinito, em vez de fazer dele um perpétuo
mais além.

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