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} 2 A Universidade Empreendedora E importante que uma faculdade de medicina esteja cercada por uma infraestrutura adequada, representada por empresas que estabelegam aplicagdes para suas pesquisas, de forma que tais pesquisas possam beneficiar a comunidade. O contrério também é importante, ou seja, a universidade deve responder a questes comerciais e utilizar a expertise comercial. Introdugao A “capitalizagao do conhecimento” est4 no cerne de uma nova missao para a universidade, a de conectar-se aos usuarios do conhecimento de forma mais préxima e estabelecer-se como um ator econémico por mérito proprio. Uma universidade empreendedora apoia-se sobre quatro pilares: 1 Lideranga académica capaz de formular e implementar uma visdo estratégica. 2 Controle juridico sobre os recursos académicos, incluindo propriedades fisicas, como os prédios da universidade e a propriedade intelectual que resulta da pesquisa. 3 Capacidade organizacional para transferir tecnologia através de patenteamento, licenciamento e incubagao. 4 Umethos empreendedor entre administradores, corpo docente e estudantes. Transcendendo 0 desenvolvimento de pontos fortes na pesquisa, a universidade empreendedora busca achados de pesquisa com potencial tecnolégico e os coloca em pratica. A universidade € uma incubadora natural, que oferece uma estrutura de suporte a professores e alunos para que eles iniciem seus empreendimentos. Tempo e espago, fisico e social, estéo disponiveis para fornecer a 1 Karolinska University, Stockholm: www.karolinska.se. Ultimo acesso em 16 de outubro de 2007. 38 Henry Etzkowitz base a “novos empreendimentos”, sejam eles politicos, intelectuais ou comerciais, exportaveis entre fronteiras altamente permedveis. ‘A universidade também ¢ um campo fértil para novos campos cientificos e novos setores industriais, cada um fertilizando 0 outro. A biotecnologia é o exemplo perfeito recente deste fendmeno, como foi a farmacologia no século XVII. ‘Além dessas caracteristicas empreendedoras “naturais”, uma universidade explicitamente empreendedora toma a frente ao colocar © conhecimento em uso e ao ampliar a contribuigao a criagao do conhecimento académico. A universidade deve identificar as areas de pesquisa e de ensino que irfio se concentrar na criagdo de “pinaculos de exceléncia” para atrair suporte e fundos externos significativos. Uma universidade empreendedora também tem a capacidade de entender e abordar problemas e necessidades de uma sociedade mais ampla, tornando-os as bases de novos projetos de pesquisa e de paradigmas intelectuais, criando um circulo virtuoso com desenvolvimento intelectual interno. Este capitulo discute a transig¢ao da universidade pesquisadora para a universidade empreendedora. Auniversidade empreendedora ‘A transformagao da universidade em uma fonte reconhecida de tecnologia, assim como de recursos humanos e conhecimento, tem criado outras capacidades para transferir formalmente tecnologias, além da pura dependéncia de conexées informais. Além de oferecer novas ideias a empresas existentes, as universidades estao utilizando suas capacidades de pesquisa e de ensino, em 4reas avangadas da ciéncia e da tecnologia, para criar novas empresas. As universidades também estenderam suas capacidades de ensino, passando da educagao de individuos a formagdo de organizagdes através da educagdo empreendedora e dos programas de incubagao. A capitalizagao do conhecimento muda a forma como cientistas observam os resultados de suas pesquisas. Quando a universidade se envolve coma transferéncia de tecnologia e a formagao de empresas, ela atinge uma nova identidade empreendedora. O desenvolvimento de uma cultura empreendedora incentiva o corpo docente a observar os resultados de suas pesquisas, a fim de verificar seu potencial comercial, assim como seu potencial intelectual. Um escritério de transferéncia de tecnologia, com a incumbéncia de buscar tecnologias comercializaveis a partir da pesquisa e vendé-las 4 : Hélice triplice: universidade-industria-governo 39 as empresas, educa 0 corpo docente a se interessar pela utilizag¢ao de sua pesquisa, quando uma atitude empreendedora for fraca ou inexistente. Uma cultura de empreendedorismo pode surgir da busca por financiamentos externos para a condug¢ao de pesquisas. Alternativamente, atitudes e capacidades empreendedoras podem ser formadas em programas de treinamento, cujo propésito é atingir esse objetivo. Os cientistas que querem atingir reconhecimento a partir dos resultados originais também percebem que sua pesquisa pode ter implicagdes comerciais. Eles podem participar das recompensas que podem ser geradas, sem que os dois objetivos interfiram um no outro. O empreendimento académico é transformado em paralelo 4 transig&o para uma economia fundamentada no conhecimento — algumas vezes liderando-a, outras vezes ficando para tras. A produgao de conhecimento cientifico tommou-se um empreendimento econémico, assim como epistemoldégico, mesmo que a economia opere cada vez mais em uma base de recurso-conhecimento.? Em grande parte, este crescimento das tecnologias relacionadas 4 ciéncia tem permanecido “fora da estrutura dos modelos econémicos”,? mesmo que as esferas institucionais da ciéncia, economia, universidade e industria, que até entao eram relativamente separadas e distintas, tenham se tornado intrinsecamente entrelagadas, muitas vezes como resultado de iniciativas governamentais. As esperangas de que as empresas multinacionais ou as chamadas lideres nacionais sejam os atores econdmicos centrais esto retrocedendo. Ao invés disso, acredita-se cada vez mais que o ator econédmico-chave sera um cluster de empresas oriundas ou, ao menos, intimamente associadas a uma universidade ou a uma outra institui¢4o produtora de conhecimento. A universidade empreendedora como impulsionadora da hélice triplice A universidade empreendedora é uma instituigaéo académica que nao esta sob o controle nem do governo, nem da industria. fachlup, Fritz. 1962. The Production and Distribution of Knowledge in the United States. Princeton, NJ: Princeton University Press. > Freeman, Christopher and Luc Soete. 1997. The Economics of Industrial Innovation. London: Pinter Press. p. 3 40 Henry Etzkowitz Na verdade, quando a universidade expande as atividades empreendedoras em relag&o a comercializagao da pesquisa, a industria existente pode perceber a universidade, seja como uma concorrente, assim como uma parceira, podendo ser uma e outra a qualquer momento. Certamente, nem toda universidade se encaixa no modelo empreendedor. Ha universidades que se concentram primariamente no ensino ou na pesquisa, que nao esto interessadas na comercializagao de descobertas nem na participagao de esquemas para a melhoria social. Contudo, ha. um movimento global em diregao A transformagio das instituigdes académicas de varios tipos (como, por exemplo, faculdades, universidades que realizam pesquisa, instituigdes politécnicas etc.) em universidades empreendedoras. “A universidade empreendedora tem um forte grau de autonomia, a fim de estabelecer sua propria diregao estratégica, e participa de outras esferas institucionais, de forma igualitaria, na formulagao de projetos conjuntos visando ao desenvolvimento econémico e social, especialmente no nivel regional. A universidade empreendedora também incorpora as fungées criticas tradicionais da universidade, tipicamente exercidas por estudantes e por uma minoria de membros do corpo docente. A critica pode se concentrar nas fungdes da universidade, incluindo os direitos dos funcionarios da universidade, as atividades de comercializagao e os objetivos de pesquisa, assim, como outros aspectos da sociedade. Essas varias funcdes podem coexistir em tensdo, assim como em cooperagao, ¢ essa é parte da forga do ethos académico. — ‘© modelo de universidade empreendedora vem sendo estendido das atividades de engenharia e negécios para os objetivos sociais. O caso brasileiro tem desenvolvido esse potencial mais claramente através de projetos de incubadoras direcionadas a inclusao social. Com a percepgo de que 0 potencial da incubadora para a formacao de organizagées vai muito além da alta tecnologia, e até mesmo da empresa de negécios, o processo da incubadora se tornou um meio de desenvolver a relagao da universidade em setores até ent&o excluidos da sociedade. A diregao da universidade empreendedora em outros paises depende dos valores que universidade e sociedade desejam concretizar. Uma forte énfase na criago de riqueza, como hoje ocorre no Reino Unido, é apenas uma direcdo para 0 desenvolvimento académico. As universidades podem ter metas simultaneas de negécios e desenvolvimento social, como no Brasil. tna i ii i ali i 1 Hélice triplice: universidade-industria-governo 41 A segunda revolucao académica Uma universidade empreendedora deve ser vista como um oximoro, uma antitese do modelo académico da torre de marfim. Geralmente pensamos em um empreendedor como um individuo que corre grandes riscos para dar inicio a novas atividades, enquanto as organizagdes geralmente desempenham a fun¢ao de institucionalizar e perpetuar uma atividade. Ainda assim, a universidade e outras instituigdes que produzem conhecimento sao vistas como geradoras do futuro crescimento econémico de forma mais direta. O empreendedorismo académico é uma extensao de atividades de ensino e pesquisa, por um lado, e a internacionalizacao das capacidades de transferéncia de tecnologia, assumindo um papel tradicionalmente desempenhado pela industria, por outro lado. A fungao da universidade medieval era a preservacio e a transmissiio do conhecimento. A universidade que realiza pesquisas pode ser rastreada até a reforma humboldtiana do final do século XIX, enfatizando a interconexdo entre ensino ¢ pesquisa, a codificagao da cultura e a formaco do estado-nacao.* A primeira revolucao académica foi a atual transicao de uma instituigdo de ensino para uma de pesquisa a partir da metade do século XIX.5 A segunda revolugao académica é a universidade assumindo a missao de desenvolvimento econémico e social.® Auniversidade nao é mais a universidade da Idade Média, uma comunidade isolada de eruditos. Nao se trata mais da universidade do final do século XIX, seja ela constituida de um acordo de concessao de terras (as chamadas “land-grant universities”) ou do modelo de pesquisa basica. Traduzindo o modelo de “concessdo de terra” para uma nova era, a universidade esta atualmente assumindo um papel mais fundamental na sociedade, um que a torna crucial para a inovagao do futuro da inovagao, a criagao de empregos, o crescimento 7 Veja Rothblatt, Sheldon e Bjom Wittrock (eds.). 1993. The European and American University since 1800. Cambridge: Cambridge University Press. + Rashdall, Hastings. 1936 [1896]. Universities of Europe in the Middle Ages. Oxford: Oxford University Press; Jencks, Christopher e David Riesman, 1968. The Academic Revolution. New York: Doubleday; Graham, Hugh Davis e Nancy Diamond. 1997. The Rise of American Research Universities: Elites and Challengers in the Postwar Era. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press. © Etzkowitz, Henry. 1983. “Entrepreneurial Scientists and Entrepreneurial Universities in American Academic Science”. Minerva, v. 21, p. 198-233. 42. Henry Etzkowitz econémico e a sustentabilidade. E por isso que a universidade esta comegando a ser visualizada como uma instituigao social cada vez mais importante e que se pode dizer que ela esté desempenhando um importante papel, como C. Wright Mills argumentou que os militares tiveram em relagdo a industria e ao governo federal durante a Guerra Fria.” A transigao a universidade empreendedora realga as missdes académicas tradicionais, assim como novas missdes sdo realcadas por sua associagdo com as antigas. A primeira missao académica da educacao inspira uma segunda missio de pesquisa que, por sua vez, impulsiona uma terceira missdo de desenvolvimento econémico e social. A universidade empreendedora é um fenémeno contemporaneo crescente, com a academia assumindo um papel de lideranga em um modo emergente de produgao, baseado na continua inovagao organizacional e tecnolégica. Essa nova missao é concretizada de diferentes formas, em varios paises, dependendo de varias tradigdes académicas. Universalizagaio do empreendedorismo académico ‘A universidade empreendedora dos EUA € 0 resultado direto da responsabilidade de cada professor de financiar sua pesquisa. O empreendedorismo, portanto, se tornou uma caracteristica definidora da academia nos EUA, antes do aparecimento da oportunidade de comercializar 0 conhecimento. Contudo, uma ampla variedade de universidades, inclusive aquelas tradicionalmente mais isoladas dos problemas da sociedade, esta fazendo esta transi¢ao para 0 modo empreendedor. Na Africa, o modelo empreendedor surgiu enquan- to as universidades intervieram para resolver crises tecnolégicas nacionais, criando empresas spin-offs como uma consequéncia involuntaria. No Brasil, a educagdo empreendedora se espalhou pela universidade como parte de um esforgo para incentivar os alunos de todos os campos a se dedicarem a inova¢ao. Incentivar a universidade a assumir um papel mais amplo no desenvolvimento econdmico e social é uma tendéncia politica comum, sendo que alguns paises tomam emprestadas ideias de programas e politicas de outros. Na Europa, & comercializaco da pesquisa surge 7” Mills, C. Wright, 1958. The Power Elite. New York: Oxford University Press. Hélice triplice: universidade-industria-govemo 43 tipicamente como uma misséo de cima para baixo (top-down) do governo nacional*. O empreendedorismo é geralmente introduzido nas universidades europeias pelo treinamento de estudantes para realizarem atividades de formagao de empresas, a0 invés de esperar que o professor tome a frente. O treinamento empreendedor também é um fenémeno crescente nos programas de PhD nos EUA e cada vez mais empreendedores académicos europeus podem ser encontrados no Reino Unido, na Espanha e em outros lugares, de forma que esses dois modos certamente no s4o contraditérios. Uma rede de sobreposigao dupla dos grupos de pesquisa académica e das empresas start-ups, com aliangas entre grandes empresas, universidades e as proprias start-ups parece ser 0 padrao emergente da intersecao entre academia e negécios na biotecnologia, na ciéncia da computagdo e em campos similares. Um maior papel da universidade na inovagao também envolve a criacao de novos conceitos de negécio. Alguns deles podem derivar da pesquisa formal, como a biotecnologia, derivada do DNA recombinante. No entanto, como 0 site de busca Google, eles também podem surgir de interagdes informais entre colegas, que resultam em uma nova ideia. Esse novo papel deu um passo adicional com a criacdo de inovagdes organizacionais e educacionais dentro da universidade e através da colaboragdio com grupos externos, tais como redes de business angels, para colocar ideias académicas com potencial industrial em pratica. Fazer patentes a partir da pesquisa académica ¢ licencia-las para empresas através de escritorios de transferéncia de tecnologia representam um método; criar empresas spin-offs, nas instalagdes de uma incubadora explicita outro. Mais de 200 universidades dos EUA atualmente mantém escrit6rios de transferéncia de tecnologia para facilitar a comercializagao da pesquisa. Patentes e licengas baseadas nas descobertas académicas contribuem com mais de 40 bilhdes de délares para a economia dos EUAe mais de 300 empresas foram estabelecidas diretamente a partir de pesquisas académicas em 1999. Esses resultados econ6micos foram baseados no potencial comercial revelado nos resultados de pesquisa que os cientistas académicos fizeram para suas universidades.® 3 Herrera, S. 2001. “Academic Research is the Engine of Europe’s Biotech Industry”. Red Herring, dezembro, p. 72-74. © Veja www.AUTM.com. Ultimo acesso em 16 de outubro de 2007. 44 — Henry Etzkowitz Conhecimento polivalente Membros do corpo docente, tanto na ciéncia tradicional quanto na ciéncia emergente e nas disciplinas de engenharia, cada vez mais percebem sua pesquisa a partir de uma perspectiva dual da contribuigao disciplinar e do uso pratico. Os cientistas académicos que tém participado da formagao de empresas geralmente percebem sua pesquisa em andamento através de novas lentes. Eles aprenderam a tomar a perspectiva dos capitalistas de risco, com quem interagem durante o processo de formacg4o de empresas, para identificar oportunidades comerciais em seus projetos de pesquisa. Ao invés de direcionar a universidade a metas de pesquisa de curto prazo, esta nova onda de interesse na comercializagao geralmente se deriva da pesquisa basica. O potencial para a comercializagao oferece um impeto adicional aos projetos de pesquisa de longo prazo que tenham potencial para inovagao descontinua. Uma Jacuna de tempo entre a descoberta e a utilizagdo, com 0 potencial para aumentar a competitividade, e outras mudangas na produgao de conhecimento surgem primariamente da dinamica dentro da propria esfera do conhecimento. Essas mudangas sao introduzidas no papel da universidade, transformando-a em uma instituicdo mais fundamental para a produtividade industrial. O substrato adjacente para 0 surgimento da universidade empreendedora que retém as caracteristicas classicas da universidade de pesquisa do tipo “torre de marfim” é 0 crescimento de campos de pesquisa polivalentes com potenciais tedricos, tecnolégicos € comerciais simultaneos.'° O reconhecimento de que © conhecimento esta imbuido com miultiplos atributos tem incentivado papéis miltiplos tanto de académicos € seu envolvimento com empresas de biotecnologia como de pesquisadores industriais nas suas pesquisas académicas. O conhecimento univalente segue uma sequéncia de pesquisa basica a aplicada, geralmente realizada em diferentes periodos de tempo, em diferentes locais, por diferentes pessoas. O surgimento do conhecimento polivalente estabeleceu o conceito de pesquisa translacional (uma nogdo mais complexa que a de pesquisa aplicada) e uma atividade que é intimamente associada 4 T Viale, Riccardo e Henry Etzkowitz. 2005. “Third Academic Revolution: Polyvalent Knowledge; The ‘DNA’ of the Triple Helix”. In: Triple Helix 5. Turin, Italy. www triplehelix5.com. Ultimo acesso em 16 de outubro de 2007. Hélice triplice: universidade-industria-governo 45 investigagao fundamental e pode ser mais provavelmente conduzida em conjunto. A natureza unitaria do conhecimento também oferece uma moldura para reconciliar missdes académicas miltiplas e torna- las complementares. Em épocas anteriores, 0 padrao académico — publico/privado, tecnoldgica/artes liberais, com concesséo de terras/sem concessaio de terras — explicava muito da postura das universidades em relagdo ao envolvimento industrial. De forma similar, 0 tipo de disciplina — pesquisa de engenharia/pesquisa basica — oferecia, entre as faculdades, uma clara disting&o, que poderia prever a presenga ou a relativa falta de conexdes industriais. Uma mudanga tecténica ocorreu com o surgimento da biotecnologia, a partir da biologia molecular. Alguns observadores veem isso como um desenvolvimento relativamente unico e isolado.'' No entanto, parece que as ciéncias fisicas estéo passando por uma transformagdo similar, com o surgimento da nanotecnologia como um campo com implicagdes tedricas, tecnoldgicas € comerciais conjuntas. Além disso, algumas disciplinas novas, tais como ciéncia da computagao, que cresceram como uma sintese da pesquisa basica e de engenharia, tiveram essa caracteristica dual desde seu inicio e uma sintese de segunda ordem também pode ser identificada no surgimento de protodisciplinas, como a bioinformatica. Origens da universidade empreendedora A formagao de empresa como resultado das atividades de pesquisa no MIT e em Harvard ocorreu ja no final do século XIX nos campos de consultoria industrial € instrumentagao cientifica.! No entanto, essas entidades comerciais eram vistas como anomalias, nao como um resultado normal das atividades de pesquisa académica. Até duas décadas atrds, essa visio cética de formagao de empresa também era aceita pela maioria dos professores e administradores nas universidades que realizavam pesquisas em artes liberais (literatura, linguas, filosofia, historia, matemitica e ciéncias). Nos tltimos anos, as universidades de artes liberais tém revisitado sua visdo, tornando a i Mowery, David, Richard Nelson, Bhaven Sampat e Aristide Ziedonis 2004. Ivory Tower and Industrial Innovation: University-Industry Technology Transfer Before and After the Bayh-Dole Act, Stanford: Stanford University Press. "2 Shimshoni, Daniel. 1970. “The mobile scientist in the American instrument industry”, Minerva, v. 8, p. 59-89. 46 — Henry Etzkowitz formagiio de empresas parte do empreendimento académico, através da formulagao de politicas que regulem a participagao do corpo docente e 0 estabelecimento de mecanismos administrativos, como escritorios de licenciamento e instalagdes de incubadoras, a fim de incentivar essa tendéncia. Embora a formagio de empresas por académicos nao seja um fenémeno novo, apenas recentemente as universidades passaram a incentivar seus membros a dar esse passo. Mais ainda, os professores que participam da formagio de empresas também estaéo mantendo seus cargos docentes, apés uma licenga para dar inicio 4 empresa. Durante o pés-guerra, o MIT foi a primeira instituigao académica, seguida por Stanford, a ter um numero significativo de membros do corpo docente participando na organizacao de empresas, criando uma cultura empreendedora nessas universidades, o que incentivou outros professores e graduandos a seguir 0 exemplo de suas agGes. ‘A universidade empreendedora surgiu de duas estratégias de desenvolvimento aparentemente contraditérias em universidades do século XIX: a “land-grant university”, incluindo faculdades destinadas a melhoria da agricultura, como a Berkeley, ¢ da industria, como 0 MIT, e as classicas universidades torres de marfim, como a Johns Hopkins e a Universidade de Chicago, baseadas em pesquisa pura. Esses modelos de universidade de pesquisa e de “land-grant universities”, existindo em paralelo até recentemente, convergiram devido a crescente relevancia da pesquisa basica para o desenvolvimento tecnoldgico e industrial. Ao assumir um novo papel na sociedade, a universidade passa por mudangas internas de forma a integrar novas fungdes e relagées. A “légica interna” da missao académica original tem sido ampliada a partir da conservagao do conhecimento (educagao) para incluir também a criag’io de conhecimento (pesquisa) e, entdo, a aplicagéo deste novo conhecimento (empreendedorismo). Cada sucessiva inovagao organizacional académica da a universidade uma maior capacidade de estabelecer sua propria diregdo estratégica. A universidade de pesquisa surgiu como um formato institucional distintivo na metade do século XIX, reunindo duas atividades, ensino e pesquisa, que se desenvolveram separadamente em faculdades e sociedades cientificas. Na Alemanha, os governos estaduais tiveram um papel crucial no desenvolvimento de universidades dedicadas 4 pesquisa durante Hélice triplice: universidade-indastria-governo 47 0 século XVIII, usando seu controle do processo de ascenséo na carreira universitaria para fazer da realizagao de pesquisa um critério decisivo. Professores eram nomeados e laboratérios eram apoiados, mesmo com as objegdes das autoridades universitarias. Os governos de estados alemiaes, inicialmente conscientes sobre a contribui¢aéo que um respeitavel corpo docente de uma universidade poderia fazer em relagao ao prestigio nacional, logo perceberam também a contribuig&o que a ciéncia poderia fazer para 0 desenvolvimento econémico e por isso a financiaram.'? O desenvolvimento de conexées entre universidade e industria na Alemanha ocorreu apesar do crescente apelo que o ideal da ciéncia pura tinha para muitos cientistas académicos. Na Alemanha, muitos dos primeiros fabricantes de produtos quimicos receberam treinamento como quimicos nas universidades e isso, sem duvida, facilitou o seu relacionamento com quimicos que permaneceram na academia. Isso também os conscientizou sobre a validade da conexao académica para os cientistas. O contexto social da ciéncia académica alema dessa era também é instrutivo. As origens farmacéuticas da quimica académica alema precoce condicionavam seus praticantes a buscar aplicagdes praticas para suas habilidades em pesquisa. A conexao farmacéutica com os negocios ofereceu uma moldura para esses quimicos, na qual eles podiam pensar em desenvolver produtos quimicos para venda, como um farmacéutico daquela época desenvolveria e comercializaria uma preparacao médica. Nem os termos do compromisso universitario, na época, parecem evitar empreendimentos comerciais. Na verdade, os governos de estado alemaes, que eram os empregadores supremos dos quimicos académicos, justificaram seu patrocinio a disciplina por meio da capacidade de seus praticantes de originarem produtos uteis. Os casos esporddicos nos quais os governos de estado alemaes deram inicio 4 operagdo de manufatura com base nas recomendagées de professores e ofereceram apoio financeiro para os empreendimentos dos professores eram indicativos precoces dos atuais esfor¢gos sistematicos dos governos de estado americanos para usar a ciéncia académica para 0 desenvolvimento econédmico. © Gustin, Bernard. 1975. “The Emergence of the German Chemical Profession 1790- 1867”. (Tese de Doutorado/PhD), University of Chicago. =e 48 Henry Etzkowitz Os empreendimentos alemies da metade do século XIX eram uma anomalia, e nao devem ser vistos como antecedentes dos atuais desenvolvimentos. Embora relagdes proximas de consultoria tenham sido estabelecidas e mantidas, especialmente entre quimicos académicos e a industria quimica, o status do servidor civil do professorado alemio impediu a formagiio de empresas. Assim, nao se estabeleceram ligagées entre os esforcos, tais como o de Liebig, ea situacao atual. O desenvolvimento das relagées entre universidade e industria As relagdes contemporaneas entre universidade e industria emanam de duas fontes distintas e de uma terceira corrente hibrida emergente: 1 Interesses ligados a pesquisa b: de pesquisa e 6rgados similares. 2 Um projeto industrial para o qual a contribui¢ao académica é solicitada. 3 A formulagao conjunta de programas de pesquisa com metas basicas e aplicadas conjuntas e miultiplas fontes de financia- mento. Cada uma dessas consultas em relag&o 4 pesquisa possui seu correlato organizacional, mesmo que eles se sobreponham e nao sejam contraditérios. A pesquisa basica ocorre em grupos de pesquisa que funcionem como “quasi-firmas”, parques tecnolégicos que oferecem um espa¢o fisico para empresas com unidades de pesquisa ofertando projetos e oportunidades de colaboragao para seus pares da academia, e centros oferecem um formato para ligar grupos de pesquisa e pesquisadores de empresa em um todo maior com uma estrutura de tomada de decisdo conjunta. Um todo maior € criado a partir desses elementos, como elementos cognitivos e organizacionais seguindo o caminho linear e 0 linear reverso, que na sua intersec¢ao fertilizam um ao outro. Com a integragao de uma terceira missao Auniversidade, isto é, ade contribuir para o desenvolvimento econdmico € social através da transferéncia de tecnologia, sob diversas formas, a disseminagao de conhecimento académico ocorre por meio de patentes, assim como de publicagoes. A estrutura de recompensa da academia apenas comegou a ser ajustada para acomodar esta expansdo nos modos de ica e financiados por conselhos Hélice triplice: universidade-industria-governo 49 disseminag4o. Stanford, por exemplo, recentemente mudou seus critérios de promogao para creditar a atividade de patenteamento. A fonte dessa mudanga pode ser tragada ao surgimento de uma academia empreendedora na reitoria da universidade. Um evento similar ocorreu no MIT, com relagao A atividade de consultoria, quando Vannevar Bush se tornou Diretor da Faculdade de Engenharia, em uma época anterior.'* Ele rejeitou um relatério de comité que colocava a consultoria sob restrigdes severas, dizendo que esses nao eram os termos sob os quais ele havia sido recrutado para trabalhar no MIT. Ha impulsos internos e externos a essa transformagao. Por um lado, os crescentes recursos financeiros necessarios para a conduga0 de pesquisas inevitavelmente levaram os cientistas a prestarem mais atengio as tarefas de levantamento de fundos, e 0 éxito nessas tarefas se tornou um pré-requisito a capacidade de atingir 0 sucesso na pesquisa. Por outro lado, as oportunidades de comercializagao apareceram no fluxo sinuoso da pesquisa, ¢ um crescente numero de cientistas, a partir do inicio do século XX, percebeu que era produtivo aprimorar seus programas de pesquisa levando em conta as questdes industriais, assim como as questées académicas. Além disso, a partir da década de 1930, as regides, e depois os governos federal e estaduais, comegaram a visualizar a universidade, apoiada por instrumentos de capital de risco e por instalagdes de incubadoras, como uma fonte de desenvolvimento econémico e renova¢a O primeiro passo em diregao a um ethos empreendedor académico éa maior sensibilidade aos resultados com potencial pratico, seguido por uma vontade de participar da realizagdo de seu potencial.'* Tal mudanga geralmente ocorre porque observadores externos prestam ateng&o a pesquisa académica por essa mesma razao. O préximo passo em direcao a um ethos empreendedor académico é trabalhar com problemas praticos colocados por nao académicos e que podem ter um duplo potencial. Por um lado, tal trabalho satisfaz as necessidades de apoiadores do empreendimento académico e oferece suporte a tal empreendimento. Por outro lado, essas tarefas relativas @ Euckowitz, Henry. 2002. MIT and the Rise of Entrepreneurial Science. London: Routledge. \s Para ter acesso a uma pesquisa sobre este fendmeno em uma disciplina académica, a piologia molecular, veja David Blumenthal etal. 1986. “Industrial Support of University Research in Biotechnology”. Science, n. 231, p. 242-246. 50 Henry Etzkowitz A pesquisa para terceiros podem levar ao posicionamento de novas questdes da pesquisa com potencial tedrico. A universidade empreendedora se une a uma dinamica linear reversa de contribuigao da sociedade ao modelo linear classico de avango disciplinar. Quando os dois processos operam em. conjunto — geralmente através do escritério de transferéncia de tecnologia da universidade, levando tecnologias e conhecimentos relevantes para fora da universidade e trazendo problemas para dentro dela — um processo interativo é gerado, no qual cada ponto de partida linear aprimora 0 outro. As instalagdes da incubadora na universidade, abrigando tanto empresas geradas a partir de pesquisas académicas quanto empresas trazidas a orbita da universidade por empreendedores buscando 0 aprimoramento através de uma conexao mais proxima com a cena académica, exemplificam a dinamica interativa. Um fiuxo de mao dupla de influéncia é criado entre auniversidade e uma sociedade cada vez mais fundamentada no conhecimento, uma vez que a distancia entre as esferas institucionais é reduzida. As universidades negociam parcerias com empresas start-ups que surgem da pesquisa académica, nas quais elas investem capital financeiro e intelectual em troca de patriménio liquido. Elas também fazem acordos amplos com empresas com intensa atuagao em P&D, para obter fundos em troca de acesso preferencial a direitos de patente e status de corpo docente adjunto para os pesquisadores dessas empresas. O contetido e os formatos para 0 ensino, a pesquisa a ligacdo em si também sao afetados. Com o assumir de um papel ativo no desenvolvimento econémico missdes académicas existentes permanecem, mas também se abre caminho para que elas sejam realizadas de novas formas. O desenvolvimento da transferéncia de tecnologia geralmente comega com um escritério responsdvel por essa ligagdo, dando um passo além do de transferir conhecimento via formacao de alunos e publicagdes. As universidades estabeleceram escritérios de transferéncia de tecnologia para facilitar os contatos, formalizando o processo por meio do qual as empresas fazem seus proprios contatos através de antigos alunos e conexGes pessoais. Um agente de ligagao individual pode ser responsdvel por organizar interagdes entre um departamento ou uma unidade de pesquisa e um grupo de empresas interessadas. Isso pode acontecer sob a forma de reuniées individuais, possivelmente levando a contratos de consultoria ou apresentagdes do Hélice triplice: universidade-indtistria-governo 51 trabalho de uma unidade, tipicamente através de palestras de alunos de pés-graduagéio a um grupo de empresas de forma regular. Grupo de pesquisa (quasi-firmas) Empreendedor Fluxo de conhecimento Publicagao Alunos de pés-graduaggo ——_Escritério de ligagao (individuos) Consulta Pesquisa Escritério de transferéncia Contrato de tecnologia Propriedade intelectual Patente Incubadora Licenga Tecnologia Empreendedor Formagdo de empresas Alunos de pés-graduacao —————————E—EE (organizagses) Figura 2.1 A evolugao das capacidades de transferéncia de tecnologia nas universidades. Em um segundo estagio, a universidade desenvolve a capacidade organizacional para patentear, comercializar e licenciar a propriedade intelectual. O escritério de transferéncia de tecnologia opera como um mecanismo de busca duplo, extraindo a tecnologia dos grupos de pesquisa universitarios, por um lado, e buscando um lugar para ela, por outro. Nos tltimos anos, as universidades tém explorado varias formas de agregar valor a tecnologias em estégio inicial oriundas do ambiente académico, pois realizam pesquisas de mercado, buscam apoio ao desenvolvimento e incorporam tais tecnologias em empresas. Em um terceiro estagio, o conhecimento e a tecnologia sao incorporados em uma empresa e retirados da universidade por um empreendedor. A formagao de empresas a partir da pesquisa académica foi uma atividade informal por muitos anos, comegando com empresas de instrumentagdo surgindo do trabalho no MIT e em Harvard, no final do século XIX. A formalizagao inicial desse 52 Henry Etzkowitz processo ocorreu por meio da invengao da empresa de capital de risco, que oferecia uma estrutura de suporte externo para projetos de formagao de empresas, que frequentemente eram inicialmente Jocalizados em um espa¢o disponivel nos prédios académicos. ‘A incubadora, uma organiza¢ao formal que oferecia espago € outros tipos de assisténcia a empresas iniciais oriundas da pesquisa académica, foi introduzida durante 0 inicio da década de 1980, no Renssellear Polytechnic Institute, uma instituigao de ensino (em Troy, Nova York) que nao tinha tradicdo na formagaio de empresas e tem sido amplamente utilizada desde entao. Auniversidade como empreendedora Para ser empreendedora, uma universidade precisa ter um grau consideravel de independéncia do estado e da industria, mas também um alto grau de interagao com essas esferas institucionais. Se um sistema universitario opera como antigamente acontecia na Suécia, onde o Ministério de Educagao Superior decidia quantos alunos seriam admitidos a cada ano por disciplina, raramente hhavera a possibilidade de ter suficiente autonomia sobre a qual se possa basear uma universidade empreendedora. O primeiro requisito € que a universidade tenha algum controle sobre sua propria diregao estratégica.'® O segundo requisito é que exista uma estreita interagao com outras esferas, que a universidade nao seja uma torre de marfim isolada da sociedade. Isso significa que a universidade aceita uma visio estratégica de seu proprio desenvolvimento e de sua relagao com parceiros potenciais, mas na verdade é muito mais do que isso. Por um lado, a relagao da universidade com a sociedade muda, enquanto que, por outro lado, ha uma renovagao da estrutura interna da universidade. A faculdade de ensino classica ainda existe nos EUA e na Irlanda, mas devemos traté-la como uma “primeira” célula periférica de nosso modelo de universidade empreendedora. No entanto, ela é a célula-tronco da academia, a base a partir da qual as universidades tém sido construidas até bem recentemente, quando uma nova linha de desenvolvimento académico, uma quarta célula, surgiu a partir de empresas e parques de ciéncia, de uma 1% Clark, Burton. 1999. Creating Entrepreneurial Universities: Organizational Pathways of Transformation. New York: Pergamon. Hélice triplice: universidade-industria-governo 53 base enraizada em atividades econémicas, ao invés de uma base de ensino e educacional, enraizada na preservac4o e na transmissao de conhecimento. A universidade empreendedora transicional A primeira variante da universidade empreendedora é uma fase transicional a partir da universidade de pesquisa. Assim, a universidade empreendedora transicional, a célula nimero dois em nossa tabela , continua a operar com metas de formulagao de problemas e pesquisa, como processos internos que ocorrem dentro das disciplinas cientificas e dos grupos de pesquisa académica. O que difere é que os resultados economicamente e socialmente liteis do chamado “fiuxo sinuoso de pesquisa basica” sao levados em consideragao e passos especificos so tomados para que eles sejam utilizados. Uma série de mecanismos organizacionais (como, por exemplo, os escritérios de patentes e de ligac&o) é criada para organizar sua transferéncia entre as fortes fronteiras que ainda existem entre a universidade e a sociedade mais ampla. O modelo de inovagao é um modelo linear assistido, com mecanismos de transferéncia, em contraposicao a universidade de pesquisa classica, baseada em um modelo linear puro, no qual o conhecimento flui através de alunos de pés-graduagao, publicagdes e confe- réncias, A universidade empreendedora madura A caracteristica mais importante da universidade empreendedora madura é que a definigao de problema-pesquisa vem de fontes externas, assim como de dentro da universidade e de disciplinas cientificas. Em sua forma mais ampla, a definigao de problemas de pesquisa surge como um projeto conjunto a partir da interacao entre pesquisadores universitarios e fontes externas. Na verdade, o que teria sido considerado “externo” no modelo anterior se torna “menos externo” quando as fronteiras séo reduzidas. Assim como existe um fluxo de mao dupla entre o ensino e a pesquisa no modelo classico de universidade de pesquisa, hoje também ha um fiuxo de mao dupla entre pesquisa e atividades econémicas e sociais. Embora os dados quantitativos sejam limitados, um grupo significativo e em continua expans4o de cientistas académicos e engenheiros, assim como de disciplinas e subdisciplinas, se envolve em intera- 54 — Henry Etzkowitz ges industriais que transcendem a disseminagao tradicional do conhecimento.'” ‘A universidade empreendedora toma a iniciativa de colocar © conhecimento em uso. Ha varios mecanismos organizacionais para esse propésito que trabalham de forma diversa em diferentes paises. Os direitos em relagao a propriedade intelectual podem ser compartilhados entre inventores € a universidade, como acontece nos EUA; na Suécia, eles sao de propriedade exclusiva do professor. No entanto, “empresas de holding” universitarias tém sido estabelecidas para comprar esses direitos e comercializé-los. Quando a universidade se envolve com a transferéncia de tecnologia e a formagao de empresas, ela atinge uma nova identidade empreendedora. Isso faz parte da tendéncia de longo prazo segundo a qual a expertise de negécios, anteriormente localizada dentro da universidade como uma fung’o extra-académica, é estendida para areas académicas tradicionais. A terceira célula é uma nova universidade empreendedora, organizada sobre a base de um parque de ciéncia, um instituto de pesquisa ou um grupo de empresas. Tais instituigdes académicas comecaram como uma extensao de uma empresa ou um instituto de pesquisa. Alguns exemplos incluem o programa de doutoramento em ciéncias politicas patrocinado pela corporagao RAND, nos EUA, e o desenvolvimento do Blekinge Institute of Technology, com base no parque de ciéncia Soft Center, em Karlskronna Ronneby, na Suécia. Nesse modelo, a atividade econémica fundamentada no conhecimento precede 0 desenvolvimento do trabalho académico, que é, ento, construido e intimamente ligado a sua fonte originadora. A universidade, a0 menos em suas fases iniciais, é uma extensaio do parque tecnolégico, do instituto de pesquisa ou dos grupos de empresas. Finalmente, as atividades académicas podem levar ao surgimento de uma universidade empreendedora totalmente madura. 7 Campbell, Katherine. 2002. “Global Investing: Moving beyond the Silicon Valley: Europe’s High-Tech Centres Differ from Their US Cousins”. FT.com. Ultimo acesso em 16 de outubro de 2007. Veja também ACM TechNews, v. 4, n. 301, 18 jan. 2002 “Moving beyond the Silicon Valley Model": “Os clusters europeus de alta tecnologia esto seguindo um modelo muito diferente, como o usado em Silicon Valley, ¢ eles parecem ser 0 mais adequado para esta aplicagao. O Silicon Valley tem se caracterizado por uma superabundéncia de capital, um ambiente dinamico € um amplo mercado Joméstico”. http://www.acm.org/technews/articles/2002-4/0118f.htmi#item3. | ; ' t , Hélice triplice: universidade-inddstria-governo 55 A quarta célula é a integracao das atividades empreendedoras ao trabalho académico regular da universidade. Isso significa que 0 treinamento empreendedor estd disponivel a todos os alunos. Assim como os alunos aprendem a escrever seus ensaios pessoais, um artigo cientifico para testar hipéteses contra evidéncias e expressar seus pensamentos, eles também devem aprender a escrever um plano de negocios para estabelecer um projeto para ser realizado, um método para atingir aquela meta, além de um teste de mercado. Além disso, assim como 0 laboratério est ao lado da sala de aula, as instalagdes da incubadora também deveriam ser parte de cada departamento aca- démico, com a incubadora — responsavel pelo treinamento de organi- zag6es — vista tanto como um bra¢o de desenvolvimento educacional quanto econémico da universidade. A universidade empreendedora madura é uma rede sem fissura de atividades de ensino, pesquisa e empreendedorismo, cada uma dando suporte as outras. A legitimacao do empreendedorismo académico Os mecanismos organizacionais de transferéncia de tecnologia, inventados no inicio do século XX no MIT, desde ent&o tém se difundido para uma gama mais ampla de instituigdes académicas. O modelo americano foi institucionalizado em 1980 pela emenda a Lei de Marcas e Patentes Bayh-Dole, através da qual o Congresso dos EUA péde lidar com a propriedade intelectual intangivel das universidades, oriunda de pesquisas académicas financiadas pelo governo federal. A Lei Bayh-Dole, de 1980, resolveu a contradi¢do entre a propriedade do governo sobre os direitos de propriedade intelectual na pesquisa financiada por ele em universidades e 0 desejo de ver tais direitos sendo colocados em uso. A Lei Bayh-Dole criou um sistema de desenvolvimento de propriedade intelectual que combinava os beneficios privados e publicos, em uma estrutura equilibrada. O regime Bayh-Dole levou em consideragéo a necessidade de incentivar todos os participantes a simultaneamente adiantarem a comercializago e maximizarem o acesso ao conhecimento criado com fundos governamentais. Enquanto a transferéncia de tecnologia da universidade precedia ao Bayh-Dole e estava em uma trajetria ascendente na época de sua aprovagiio, a lei codificou e legitimou um conjunto de praticas e relagdes informais entre universidade, industria e governo durante o século precedente. 56 Henry Etzkowitz Aleiresolveu os problemas com partes que contribuiam pouco, mas se beneficiavam muito, problemas esses enfrentados pelas empresas que lidavam com propriedade intelectual de propriedade do governo e produzida na universidade. Uma empresa temia que se seguisse adiante e se gastassem somas consideraveis no desenvolvimento de uma tecnologia bem-sucedida, entéo uma segunda empresa poderia aparecer e demandar acesso a tal tecnologia, com base no fato de que essa foi financiada com o dinheiro dos contribuintes. Ao colocar essa propriedade intelectual de forma segura dentro da universidade, uma empresa poderia ter a garantia de que quando uma licenga exclusiva fosse expedida, essa empresa a receberia. Os escritérios de transferéncia de tecnologia aceitam de forma uniforme a validade ea necessidade da lei. Ela nao apenas fornece uma base a transferéncia de tecnologia como também incentiva 0 corpo docente a participar, ja que eles tém a garantia de receber uma fatia significativa dos rendimentos, em contraste com os funciondrios corporativos, que estao a mercé de seus empregadores. Transformacao e continuidade académica Uma grande razao para esta ampliagao do papel da universidade foi seu custo-beneficio: combinar pesquisa ¢ ensino era muito menos caro do que manter instituigdes separadas para cada propésito, 0 que se tornou um lugar comum na Europa. Contudo, embora alguns ainda lamentem a énfase que as universidades atualmente dao a pesquisa, os proponentes da expansao da missao da universidade, em sua maioria, tem sido defendidos com base em argumentos pedagogicos. O conhecimento gerado pela pesquisa do corpo docente concede relevancia e vitalidade ao seu ensino. A oposigao ao novo papel empreendedor das universidades tende a passar por uma evolugao similar. Isso acontece porque, no caso de disputas sobre o envolvimento do corpo docente com a pesquisa, conflitos de interesse relativos 4 sua comercializagao sao sintomas da mudan¢ga na misséo académica. Manter as fronteiras entre a ciéncia publica e a apropria¢ao privada esta se tornando uma questéo menos problematica do que o desenvolvimento de formatos de transferéncia de tecnologia que ampliem a pesquisa, assim como a comercializacao. Os escritérios de transferéncia de tecnologia sabem que precisam expandir seu papel, auxiliando membros do corpo docente a obterem fundos de pesquisa Hélice triplice: universidade-indastria-governo 57 para explorar as implicagdes tecnoldgicas de sua pesquisa e, assim, chegar a aplicago de patentes. Quando a prote¢ao da propriedade intelectual for atingida, tais escritérios percebem que, para colocar a tecnologia em uso, eles precisam ir além de comercializar licengas para ajudar a formar empresas, mesmo que 0 objetivo de longo prazo seja a transferéncia para uma empresa existente. Quando a pesquisa académica for definida como um bem comercializavel e for tratada como propriedade intelectual, as formas tradicionais de disseminagao, como a publicagéo em periddicos académicos e apresentagdes em conferéncias, persistem. Na verdade, ter um artigo publicado em um importante periddico pode ajudar uma empresa que busca financiamento e até mesmo aumentar o valor de suas ag6es. Ao se tornarem empreendedoras, as universidades nao abrem mio de suas fung6es anteriores de ensino e pesquisa desinteressada. Os grupos de pesquisa académica e as start-ups fundamentadas em ciéncias existem em um continuum, com relagao a prémios de reconhecimento e financiamento. As spin-offs universitarias percebem que é vantajoso para elas atrairem investidores para participar da elaboragao da descoberta original e publicarem em conjunto com seus colaboradores académicos. O licenciamento, as joint ventures, a comercializagao ¢ a venda de produtos oferecem campos adicionais para a disseminagao do conhecimento para areas mais amplas da sociedade, que vao além da publicagao. As normas da universidade empreendedora O modelo académico empreendedor pode ser expresso em cinco normas. Essas normas para 0 empreendedorismo e seus opostos vivem em uma tensao proficua entre si. O resultado ideal sera alcancado quando houver um equilibrio entre elas. Elas podem servir como diretrizes para a transformagao das instituigdes académicas. 1 Capitalizagao: 0 conhecimento é criado e transmitido para © uso, assim como para o avanco disciplinar; a capitalizagao do conhecimento se torna base para o desenvolvimento econdmico e social e, assim, de um papel aprimorado da Universidade na sociedade. 2 Interdependéncia: a universidade empreendedora interage intimamente com a industria e o governo; ela nao é uma torre de marfim isolada da sociedade. 58 Henry Etzkowitz 3 Independéncia: a universidade empreendedora é uma instituigdo relativamente independente; nao é uma “criatura” dependente de outra esfera institucional. 4 Hibridizagao: a resolugao das tensdes entre os principios de interdependéncia e a independéncia é um impulso para a criago de formatos organizacionais para concretizar ambos os objetivos simultaneamente. 5. Reflexividade: ha uma continua renovag4o na estrutura interna da universidade quando sua relagao com a industria e o governo muda, e da industria e do governo quando suas relagdes com a universidade sao revisadas. Conclusao A transformagao da academia, de uma instituigao “secundaria” para uma “priméria” é um resultado inesperado do desenvolvimento institucional da sociedade moderna." Em consequéncia, “a industria do conhecimento em sociedades modernas nao é mais uma questao menor governada por uma elite intelectual, uma atividade que pode ser considerada descartavel por lideres pragmaticos; ela é um empreendimento colossal em pé de igualdade com a industria pesada, e tao necessdria quanto esta ao pais no qual esta situada”.’? ‘Anteriormente, a localizag3o da pesquisa académica tinha pouca importancia, ja que os resultados, incorporados a artigos e publicagdes, tinham a capacidade de circular em qualquer lugar. Considerando que cada vez mais as implicagdes da pesquisa surgem em um menor intervalo de tempo apés a descoberta, a localizagao da pesquisa se torna uma questo politica, relevante a todas as economias locais. Isso leva o governo, em diferentes niveis, assim como as instituigdes produtoras, a realizarem contribuig6es mais significativas aeconomia e a sociedade. A maior produgao de conhecimento nao se traduz prontamente em maior produtividade econdmica, mesmo que se observe um tempo consideravel para que os requerimentos do conhecimento circulem entre as fronteiras institucional, politica e organizacional. Uma abordagem mais pratica 4 inovagao esta sendo introduzida em it Mills, C. Wright. 1958. The Power Elite. New York: Oxford University Press. ‘9 Graham, Loren. 1998. What Have We Learned about Science and Technology from the Russian Experience? Palo Alto: Stanford University Press, p. 129. Hélice triplice: universidade-indstria-governo 59 paises e regides em diferentes niveis de desenvolvimento cientifico, econémico e social. Os analistas da inovagao tém examinado as fontes e as consequéncias de tais esforgos, sem chegarem a um consenso sobre a relagdo entre pesquisa e os resultados. Ha apenas uma suposigao de que a relacao seja fortalecedora, ou que possa ser fortalecida, mesmo quando for fraca. O paradoxo sueco, de altos gastos com P&D, com um retorno sobre este investimento relativamente baixo a primeira vista, exemplifica um paradoxo de inovagao mais amplo — lacunas na relacao entre ciéncia, tecnologia e industria — que se manifesta em diferentes situagGes. Nos EUA, existe uma lacuna entre pesquisa e desenvolvimento, o chamado “vale da morte”, que é apenas parcialmente preenchido pelo capital de risco publico. No Brasil, apesar de um crescente movimento de incubadoras, ha um fornecimento insuficiente de start-ups de alta tecnologia para utilizar os fundos publicos que recentemente foram disponibilizados para dar inicio a uma industria de capital de risco. Por outro lado, até recentemente, o Reino Unido privava suas universidades de financiamento para a pesquisa, colocando em diivida a viabilidade de sua base de ciéncia como uma plataforma para a inovacdo. Paises em desenvolvimento precisam lutar contra uma gama ainda maior de lacunas, pois suas infraestruturas institucionais sao mais frageis. Contudo, por varias razoes histéricas, as universidades tém sido estabelecidas em quase todas as partes do mundo, disponibilizando uma plataforma potencial para a inovacao fundamentada no conhecimento.

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