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POLITICA INDIGENISTA NO SÉCULO XIX

Manuela Carneiro da Cunha

lembrete, à guisa de preâmbulo: zer que a questão indígena deixou de ser es-

Um
fi-

zemos neste capítulo, que reproduz sencialmente uma questão de mão-de-obra pa-
em
grande parte a introdução à com- ra se tornar uma questão de terras. Nas regiões
pilação das leis indigenistas do sécu- de povoamento antigo, trata-se mesquinha-
lo XIX (Carneiro da Cunha, no prelo), largo mente de se apoderar das terras dos aldeamen-
uso da legislação. Outros autores preferiram tos. Nas frentes de expansão ou nas rotas flu-

se apoiar nos relatóriosde presidentes das pro- viais a serem estabelecidas, faz-se largo uso,

víncias e em de viajantes. Pareceu-nos


relatos quando se o consegue, do trabalho indígena,
no entanto que, por violadas que tenham si- mas são sem dúvida a conquista territorial e
do, as leis expressam por excelência e até em a segurança dos caminhos e dos colonos os
suas contradições o pensamento indigenista motores do processo. A mão-de-obra indíge-
dominante da época. Não se pense, é claro, na só é ainda fundamental como uma alterna-
que se possam confiandir com o que realmen- tiva local e transitória diante de novas oportu-
te ocorreu: o que ocorreu é o assunto de ou- nidades. É o caso da extração da borracha na-
tros capítulos deste mesmo livro. tural da Amazónia ocidental enquanto não se
O século XIX é um século heterogéneo, o estabeleceu a imigração de trabalhadores nor-
único que conheceu três regimes políticos: destinos.
embora do período se passem no
dois terços Outra característica do século XIX é o es-
Império, ele começa ainda na Colónia e ter- treitamento da arena em que se discute e de-
mina na República Velha. Inicia-se em pleno cide a política indigenista. Se durante quase
tráfico negreiro e termina com o início das três séculos ela oscilava em função de três in-
grandes vagas de imigrantes livres. E, como se teresses básicos, o dos moradores, o da Coroa
sabe, um período de tensões entre oligarquias e o dos jesuítas, com a vinda da corte portu-
locais e surtos de centralização do poder. E guesa para o Brasil, em 1808, a distância ideo-
também um século em que o Brasil, à sua ma- lógica entre o poder central e o local encurta-
neira, se moderniza: à sua maneira, porque o se na proporção da distância física. Desde
poder e os privilégios pouco mudam. 1759, quando o marquês de Pombal havia ex-
Não só o século, o país também é hetero- pulsado os jesuítas, nenhum projeto ou voz dis-
géneo: áreas de colonização antiga contrastam sonante se inteipunha n(^ debate: (juando mis-
com de expansão novas. O Sudeste e,
frentes sionários são reintroduzidos no Brasil, na dé-
um pouco mais tarde, a Amazónia, conhecem cada de 1840, ficarão estritamente a serviço
uma riqueza inédita. do Estado. Os grupos indígenas, sem represen-
A política indigeinsta do período leva a mar- tação real em ní\el algum, só se manifestam
ca de todas essas disparidades. Mas para ca- por hostilidades, rebeliões e eventuais petições
racterizar o século como um todo, pode-se di- ao imperador ou processos na Jíistiça. Assim,
134 iiistxSrix rxis índios no bkasii.

a questão indígena acaba sendo tunção ape- bilidade dos índios; \'on Martins, apesar de
nas da maior ou menor centralização política suas extensas v iagens pelo Brasil e seu conhe-
do momenta e a desemoltura do poder local cimento etnográfico e linguístico, pela posição
aumenta na razão direta da distância da contrária. Até por uma questão de orgulho na-
corte. cional, a humanidade dos índios era afirmada
Porque é fundamentalmente um problema oficialmente, mas privadamente ou para uso
de terras e porque os índios são cada vez me- interno no país, no entanto, a ideia da bestia-
nos essenciais como mão-de-obra, a questão lidade, da fereza, em suma da animalidade dos
indígena passa a ser discutida em termos que, índios, era comumente expressa. Em 1S23. Jo-
embora não sejam inéditos, nunca haviam no sé Bonifácio escrevia: "Crê ainda hoje muita
entanto sido colocados como uma política ge- parte dos portugueses que o índio só tem fi-
ral a ser adotada. Debate-se a partir do fim do gura humana, sem ser capaz de perfectibili-
século WIII e até meados do século XIX, se se dade". Quatro anos mais tarde, o presidente
de\em exterminar os índios "bravos", "desin- da província de Minas Gerais, ao ser indaga-
festando" os sertões — solução em geral pro- do sobre a índole dos AvTnorés e Botocudos.
pícia aos colonos — ou se cumpre civilizá-los responde nos termos seguintes: "Permita-me
e incluí-los na sociedade política — solução V. exa. refletir que de tigres só nascem tigres

em geral propugnada por estadistas e que su- de leões, leões se geram; e dos cruéis Botocu-
punha sua possível incorporação como mão- dos (que devoram, e bebem o sangue huma-
de-obra. Ou seja, nos termos da época, se se no) só pode resultar prole semelhante" (Fran-
de\e usar de brandura ou de \ iolência. Este cisco Pereira de Santa Apolónia ao visconde
debate, cujas conseqiiências práticas não dei- de São Leopoldo, 31 de março de 1S27, in
xam dúvidas, trava-se fi-eqiientemente de for- Naud, 1971:319).
ma toda teórica, em termos da humanidade ou
animalidade dos índios.
UM DESTINO FUNESTO
Uma variante da discussão sobre a humanida-
S.\0 HUMANOS^ de dos índios, e que já prefigura o evolucio-
Paradoxalmente, com efeito, é no século .\IX nismo, era a posição desses povos no que já
que a questão da humanidade dos índios se se entendia então como uma história da es-
coloca pela primeira \ez. O século .XM — con- pécie humana dentro da história natural. O cé-
trariamente ao que se podia supor pela decla- lebre naturalista francês Buffon havia defen-
ração papal em
1532 que afirmava que os ín- dido a tese de que a natureza nas Américas
dios tinham alma —
jamais duvidara de que fenecia sem chegar a seu pleno acabamento:
se tratavade homens e mulheres. Mas o cien- era o continente dos animais miúdos, que não
tificismo do século XIX está preocupado em rivalizavam com os portentosos elefantes e ri-

demarcar claramente os antropóides dos hu- nocerontes africanos. Alguns anos mais tarde,
manos, e a linha de demarcação é sujeita a em 1768, um abade de Estrasbui^a Conielius
controvérsias. Blumenbach, um dos fundado- de um livro em que extrapola
Pauvv, publica
res da antropologia fi'sica, por exemplo, anali- à humanidade nas Américiís o que Bufton ha-
sa um crânio de Botocudo e o classifica a meio via ditode sua fauna. Assim como gnuules vuú-
caminho entre o orangotango e o homem. mais não podiam vingiu" no Novo Munda a es-
Menos biológico e mais filosófico, o crité- pécie humana estav^i igualmente destinada a
rio da primeira metade do século é também degenerar nessas regiões sem chegar a atin-
aquele, ainda setecentista, da perfectibilidade: gir a maturidade: como prova b.istavam os m-
o homem é aquele animal que se auto- dios,que seriam a senescència de uma huma-
domestica e se alça acima de sua própria na- nidade prematuramente envelhecida e desti-
tureza (V ide, para uma discussão mais detidha- nada à extinção ide, para uma m^igistnil
(^v

da. Carneiro da Cunha, 1986). A esse respei- discussão do assunta Gerbi. 1973). IV>uco dis-
to, uma certa e prev isível clivagem se introduz cutida no Bnisil. embora muito nuil rewbida
no início do Império, entre cientistas estran- nos KIA e nos países latino-aniericanos que a
geiros, como o grande naturalista \bn Miuiius, entendiam como uma condenação glolvd da
por exemplo, e letrados brasileiros como José possibilidaile do civilização no Novo Munda
lionifácio. José Bonifácio opina pela perfecti- essa teoria CiUiheceu no entanto aqui dois dt^

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