SÉCULO XXI
A PARTICIPAÇÃO DO NEGRO NAS ECONOMIAS COLONIAL, IMPERIAL E REPUBLICANA
*
Wilson do Nascimento Barbosa
INTRODUÇÃO
A desumanidade das relações societárias brasileiras espanta a quantos aqui vêm de visita.
Somos um país no qual a pessoa comum está desprovida de direitos econômicos e sociais, e que
legalmente, nega a cada membro da população o direito à saúde, habitação e alimentação. Ou
seja, a fronteira de subsistência das pessoas passa pelo seu direito à existência, mas não garante
tal direito. Por esta razão, o discurso dominador faz uso constante das palavras “cidadão” e
“cidadania”, justamente porque eles não existem.
*
Professor Associado do Departamento de História da FFLCH-USP.
1
Vide Clóvis Moura, O preconceito de cor na literatura de cordel: tentativa de análise sociológica. São Paulo, Editora
Resenha Universitária, 1976; Joel Rufino dos Santos. Que é Racismo? São Paulo, Brasiliense, 1981; e Rita de
Cássia Souza Pierini. Racismo e Sala de Aula no Município de São Paulo: O Caso da Comunidade Negra no Antigo
Curso Primário – Zona Norte – 1970 – 1990. Depto. De História – Dissertação de Mestrado. São Paulo, FFLCH –
CAPH - USP, 1998.
A negação da terra à maioria absoluta da população rural contribuiu para sustentar a baixa
renda da população trabalhadora e a prevalência desorientada da agricultura exportadora, por
mais de um século após o término da escravatura. Por outro lado, a condição de miséria do
migrante interno, dada a ausência de transformação no mundo rural, tornou possível a
reconquista artificial pela burguesia dos frutos do trabalho industrial, tornando o cenário
doméstico do país um quadro desanimador diante do progresso social de outros países. Nas
últimas décadas, por parte das elites desenvolveu-se um desinteresse pela população local, o que
de certo modo pode explicar o agravamento das diferenças socioeconômicas, com o
recrudescimento do racismo e da violência2 .
2
Vide Clóvis Moura, O negro, de bom escravo a mau cidadão? Rio de Janeiro, Conquista, 1977; Sociologia do negro
brasileiro, São Paulo, Editora Ática, 1988 e Dialética radical do Brasil negro, São Paulo, Editora Anita, 1994.
3
Veja: Eric Hobsbawm. Era dos Extremos, São Paulo, Cia das Letras, 1995 e François Chesnais. A mundialização
do capital. São Paulo, Xamã, 1996.
2
Uma ordem social mais equilibrada dentro de uma nação e nas condições do mundo em
globalização, talvez seja mais difícil de instaurar antes dessa etapa mundializadora. Na verdade,
na óptica dos poderosos, qualquer distúrbio local é mal compreendido e deve ser interpretado
como oposto às grandes direções da mudança globalizadora. Nessa esfera estratégica, não há
lugar para os perdedores de hoje. Muito menos para os perdedores da véspera.
Primeiro século-1551-1650;
Segundo século-1651-1750;
Terceiro século-1751-1850;
Quarto século-1851-1950;
Quinto século-1951-... .4
O primeiro século logo se destaca com caracteres próprios: (a) instalação do sistema
escravista, com base na atividade açucareira; (b) crise da autoridade portuguesa nas colônias,
4
Ver: Nelson Werneck Sodré. Formação Histórica do Brasil. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1963.
3
com a "união das coroas ibéricas"; (c) formação dos quilombos e suas implicações étnico-
culturais.
Portugal já vinha se expandindo desde o século XV, com base no tráfico de escravos, ouro
e marfim da costa africana. Parte dos lucros dessas atividades foi usada para financiar plantações
canavieiras nas ilhas afro-portuguesas do Atlântico, que abasteciam Gênova e Amsterdã de
açúcar, diante da oferta insuficiente da Sicília, da Síria e do Egito.
4
Durante o período da união das coroas ibéricas, o comércio no Atlântico havia se tornado
mais complexo. Os reinos africanos, vendedores de escravos do golfo de Benin e Angola,
tornaram-se fortemente dependentes do abastecimento de produtos europeus e luso-brasileiros,
de tal forma que sofreriam colapso sem o tráfico de escravos. As sociedades mercantis do
"comércio triangular" faziam prosperar suas praças na margem do Atlântico, com base nos
ganhos do fluxo de escravos africanos.
5
Para o assunto, ver: Décio Freitas. Palmares, a guerra dos escravos. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1984; Clóvis
Moura. Quilombos, resistência ao escravismo. São Paulo: Editora Ática, 1989. Sérgio Correa da Costa. As Quatro
Coroas de Pedro I, Rio de Janeiro, Gráfica Record Editora, 3. ed. 1968.
5
constituir-se desde uma prisão a um verdadeiro inferno. Submetidos a sofisticados sistemas de
castigos corporais e espirituais, os escravos faziam do horizonte de uma possível fuga, a fonte da
utopia quilombola.
Uma vez que os escravos da costa, trazidos em grande número, vinham na proporção de
três homens para uma mulher, associado ao fato da elevada mortandade do indígena masculino
em sua resistência ao colonizador, verificou-se, desde o primeiro século, a forte tendência à
miscigenação entre as populações escravizadas, que também viram crescer os eventuais filhos
dos colonizadores no seu meio. Estes, acidentalmente foram gerados em grande número, como
resultado de relações sexuais não legalizadas com as escravas. Tal fato contribuiu para criar,
mais tarde, o mito de uma suposta tolerância racial do colonizador e as políticas de dissolução do
negro, por via do branqueamento físico e psicológico, na República contemporânea.
6
A propósito, ver: Édison Carneiro. Antologia do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro, Globo, 1950; Suely Robles Reis
de Queiroz. Escravidão negra em São Paulo: um estudo das tensões provocadas pelo escravismo no século XIX.
Rio de Janeiro, J. Olympio Editora, 1977; e Manolo Garcia Florentino. Em costas negras: uma historia do trafico
atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995.
7
José Alípio Goulart. Da palmatória ao patíbulo; castigos de escravos no Brasil. Rio de Janeiro, Conquista, 1971.
6
crianças dos quilombolas ou das aldeias indígenas, apreendidas nas matas e nas beiras dos rios,
continuaram a ser, indiferentemente, reduzidas à escravidão, sendo, após seus batismos em
igrejas e capelas católicas, entregues aos seus "padrinhos" para que lhes propiciassem a educação
trabalhadora adequada. Emassadas nas senzalas e castigadas do mesmo modo dos demais
escravos, tais crianças logo desapareciam como indivíduos que deveriam ser livres, no coletivo
escravizado.
Por outro lado, a população indígena sobrevivente vivia sobre a dupla pressão dos capitães
do mato escravizadores, de um lado e escravos foragidos, de outro. Ambos vinham ter às suas
aldeias, trazendo consigo a presença constante e destruidora do mundo português.
8
Ver J. A. Goulart. op. cit. e Alaôr Eduardo Scisínio, Dicionário da Escravidão. Rio de Janeiro, Léo Christiano
Editorial Ltda., 1997.
7
de trabalho escravo, o aumento de seu número e a completa entrega de todas as habilidades
profissionais exigidas pelo mundo em urbanização a esta massa.
9
Charles Ralph Boxer. A idade de ouro do Brasil. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969; João Pandiá
Calógeras. Minas Do Brasil E Sua Legislação: Geologia Econômica Do Brasil São Paulo, Nacional, 1938; e Luciano
8
trabalho escrava seria utilizada nas cidades e na economia de serviços. Remeiros, barqueiros,
ferreiros, ourives, calafates, ferramenteiros, barbeiros, marceneiros e carpinteiros; ajudantes de
cirurgiões, soldados, parteiras e mensageiros, quaisquer que fossem as atividades produtivas e de
serviço subalterno, encontradas entre 1550 e 1888, ali se encontravam os escravos.
Vê-se assim, que se encontram duas tendências para a transformação da força de trabalho
escrava, no curso do terceiro século (1751-1850). A primeira delas é a tendência para a
desescravização e a segunda, a tendência para a diversidade profissional.
Raposo de Almeida Figueiredo. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial na América Portuguesa: Rio de Janeiro,
Bahia e Minas Gerais (1640-1721). Tese de Doutorado Depto. História; FFLCH, USP São Paulo, 1996.
10
Ciro Flamarion Cardoso Agricultura, Escravidão e capitalismo Editora Vozes, Petrópolis, 1979; Economia e
sociedade em áreas coloniais periféricas, Guiana Francesa e Pará, 1750-1817.
Rio de Janeiro, Graal, 1984; A Afro-América: a escravidão no novo mundo. São Paulo, Brasiliense, 1982; Clovis
Moura. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo, Editora Anita, 1994 e Jacques Edgard François D´Adesky
Pluralismo étnico e multiculturalismo - racismos e anti-racismos no Brasil. Tese de Doutorado. São Paulo, FFLCH-
DA-USP, 1997.
9
eventuais, não raro, encontravam uma mesma documentação - muitas vezes clonada -
acobertando a recepção e consumo de diferentes cargas da matéria-prima de elevado valor. No
caso, a repressão policial não atingia os verdadeiros proprietários, mas os escravos e libertos que,
aparentemente, cometiam os delitos de motu proprio. O preço de semelhante risco era
endinheirar-se e/ou comprar a própria liberdade ou, até mesmo, chegar à propriedade de
escravos. O mesmo se dava com minas, fundições e garimpos clandestinos, que em certa monta
haviam de ser encontrados, com tais negros penalizados, restando-nos, hoje, a documentação
como prova das espertezas então praticadas.
O fato é que a mineração, no segundo e terceiro séculos, deu origem a uma camada de
negros pequenos-proprietários, nos mais importantes centros urbanos e ela haveria de subsistir
até os começos da República, quando seria finalmente eliminada pela concorrência da nova
imigração européia.
Assim, o amontoamento produtivo de capital mercantil devia dar-se por outras formas que
negassem essa forma geral - para solucionar de modo específico - aspectos próprios da
acumulação primitiva, em cada situação histórica dada. No caso americano, a forma colonial
principal do capital mercantil havia de dar-se, pois, enquanto capital escravista, pois apenas esta
forma poderia resolver os dois problemas correlatos necessários: uma produção a comando e a
obtenção da mão-de-obra escrava.
10
O capital mercantil deveria "mergulhar" na colônia sob a forma de escravos e maquinário,
para vir à tona, no fim do ciclo reprodutivo, sob a forma de mercadorias transformáveis em mais
dinheiro, ou seja, lucro.
A resposta que nos diz que o capital mercantil é de uma mesma natureza nas metrópoles
nas colônias, não resolve o problema de explicar os mecanismos da acumulação doméstica ou
interna, quando o caso, nas colônias. Houve nas metrópoles uma crescente diferenciação social,
demandada por necessidades de seu crescimento interno, pela qual surgiram novas atividades e
concentrou-se o processo de beneficiamento da produção primária, com sucessivas mudanças
tecnológicas que tinham por mecanismo o surgimento de novas atividades ou profissões
(carpinteiros, marceneiros, ferreiros, mecânicos, tripulantes marítimos, fundidores, etc.)11.
Ocupando-se o capital mercantil, com suas duas formas metropolitanas - capital comercial
e capital usurário - de acumular-se no circuito da distribuição, é de se entender seu mecanismo
de interferir na produção, a partir de aumentos excelentes e extraordinários em seu montante -
particularmente o capital usurário. Por via do roubo, da expropriação de produtores e da
pilhagem, o capital mercantil "acumulava-se", improdutivamente, na esfera da circulação, mas o
sistema industrial da época não era capaz de produzir o montante de produtos e mercadorias que
11
Ver a propósito: João Quartim de Moraes e Marcos Del Roio, orgs., História do Marxismo no Brasil: Visões do
Brasil. Campinas, Unicamp, 2000; e C. Morrison, J. Barrandon, Or du Brésil: monnaie et croissance en France au
XVIIIe siècle. Paris, CNRS Éditions, 1999. Para a esperteza da mineração, ver Paulo Cavalcante de Oliveira Jr.,
Negócios de Trapaça: Caminhos e Descaminhos na América Portuguesa (1700 – 1750). Tese de Doutorado. São
Paulo, DH-FFLCH-USP, 2002.
11
levassem o capital mercantil a um novo patamar de taxas de acumulação. Para manter a taxa
média de acumulação improdutiva, o capital mercantil metropolitano necessitava apropriar-se de
uma certa quantidade crescente de bens, produzidos fora da sua esfera e que seriam
transformados em mercadoria nas condições do desenvolvimento desigual - necessidade de
ganhar nas "duas pontas": ao comprar, e ao vender.
Mas a esfera “normal” do capital mercantil não era para intervir na produção, ultrapassar
gargalos produtivos. Seu desempenho normal era ganhar com base na usura e nas insuficiências
da oferta, e da procura; era tirar partido do desenvolvimento desigual - navegação genovesa e
portuguesa nos séculos XII a XVI; navegação holandesa e espanhola nos séculos XV a XVIII;
navegação inglesa no século XVI a XVIII; etc. A intervenção do capital mercantil na estrutura de
produção se dava, apenas nos casos em que o nível de acumulação da produção oficial mostrava-
se mais rentável que uma parte das operações comerciais alternativas. Ou seja, a produção
artesanal-oficinal havia avançado até um ponto em que carecia de mão-de-obra externa, que ela
podia remunerar melhor, e a reprodução ampliada das oficinas (crescimento mais rápido da taxa
do número de oficinas que o crescimento populacional e da mão-de-obra oficinal). Este tipo de
transformação "aberta" era dinâmica e modificava o capital mercantil em capital industrial12.
Ora, a "descida" do capital mercantil metropolitano, por via do "pacto colonial", só se deu
a partir do saque das grandes navegações. Portanto, o empreendimento colonial teve dois
objetivos práticos: (a) o saque e pilhagem que gerariam as “colônias”; e (b) com os ganhos de
12
Ver: Carlos Prieto. A Mineração e o Novo Mundo. São Paulo, Cultrix, 1976; Paul Mantoux. A revolucao industrial
no seculo XVIIi: estudo sobre os primordios da grande industria moderna na inglaterra, Sao Paulo, Hucitec/unesp, 19-
-, Phyllis Deane. The state and the economic system :an introduction to the history of political economy, Oxford
[England] New York : Oxford University Press, 1989; Revolucao industrial. Rio de Janeiro, Zahar, 1973; Roberto
Martins. Minas e o tráfico de escravos no século XIX, outra vez. In: História e Perspectivas, Uberlândia,
julho/dezembro de 1994, no. 11; Jorge Siqueira. Contribuição ao estudo da transição do escravismo colonial para o
capitalismo urbano-industrial no Rio de Janeiro: A Companhia Luz Stearica (1854-1898). Dissertação de mestrado,
Universidade Federal Fluminense, 1984.
12
(a), levando a um novo patamar de acumulação, complementou o ciclo da produção
metropolitana, de tal forma que se tornasse sistemática, a ocorrência de excedentes na esfera
produtiva. Qual o objetivo da obtenção de tais excedentes? Impedir a esterilização do excesso de
capital mercantil na esfera da circulação.
Como sabemos, o capital mercantil teve que: inventar novos mecanismos de concentração
social dos ganhos da troca desigual, a fim de poder concentrar mão-de-obra nas colônias; tal
concentração de mão-de-obra, atuando a comando, só podia ser obtida na época através da
experiência histórica de escravização; e nessas pré-condições, uma parte do capital mercantil
precisava "recuar" até formas históricas anteriores, ou seja, imobilizar-se sob a forma de
patrimônio físico, para operar a mão-de-obra escrava nas colônias.
É evidente que a "imobilização do capital mercantil" nas colônias, sob a forma de prédios,
navios, máquinas, etc., não se constitui uma esterilização do tipo da construção gótica. Esta
imobilização não é um serviço, mas um meio de produção. Se ocorresse na metrópole, seria a
transformação do capital mercantil no capital industrial, a faceta principal da acumulação
primitiva, do ponto de vista histórico-econômico. No caso em que a imobilização ocorresse na
colônia, o capital mercantil deveria se transformar em capital escravista, porque não seria lógico
tachar de capital-dinheiro, uma relação social que se estabelecesse a partir da posse de escravos e
criasse, produtivamente, uma dinâmica própria.
Não se tratava de uma esterilização. Esta forma do capital mercantil, o capital escravista,
assumiu assim vida própria ao mesmo tempo em que transferia bens líquidos da produção para as
metrópoles, era o Midas da escravização. Buscava transformar em escravos e meios de produção
escravistas tudo que tocava, correndo, por esta forma para o elevado ritmo de produção
comandado pelo comércio exterior. Quanto mais produzia, mais derrubava o valor da sua
produção; competia consigo mesmo em cada local; permitia às colônias competirem entre si;
13
criação degenerada pela especialização que precisaria ser destruído, quando não fosse mais útil.
A história evidencia que assim ocorreu, embora houvesse deixado vasta herança cultural13.
Tabela
Metamorfose do capital mercantil para fins de acumulação
------------------
Fonte: Imaginado.
A tabela nos mostra dois exemplos de acumulação colonial, sob diferentes formas
produtivas. O primeiro caso, nos mostra a transformação do capital mercantil em capital
pecuário, tendo como principais fatores produtivos a terra barata - quase gratuita para a classe
13
Ver Karl Marx, El Capital. México, FCE, 1956. 3 volumes. Jacob Gorender. O escravismo Colonial, São Paulo,
Editora Atica, 1988; e Robert Davis. Capital, State, and White Labour in South Africa, 1900-1960. Atlantic Highlands,
N.J., 1979..
14
dominante da metrópole - ou recursos naturais (RN) abundantes, alguma mão-de-obra e algum
gado.
Assim, se o oligarca colonial possui não dois bois, mas 20.000 bois, ele terá tanto
assegurado menor flutuação na faixa da média da acumulação pecuária, quanto apresentará a
tendência para o seu capital pecuário se formar acima desta média. O raciocínio é similar para
qualquer forma do capital colonial, tornando-se a forma de exploração mais interessante em
função da demanda externa, metropolitana, pois a razão de ser da metamorfose do capital é sua
efetiva realização no nível do mercado internacional e não a simples produção de montanhas de
inutilidades coloniais, aspecto "involuntário" da sua reprodução.
14
Ver Oskar Lange. La Reprodución Ampliada, Fundo de Cultura Economica, México; Teoria de la Reprodución y de
Acumulación, Barcelona, Ariel, 1970. Arghiri Emmanuel. Le profit et les crises: une approche nouvelle des contradictions du
capitalisme, Paris, F. Maspero, 1974.
15
queijos e doces em conserva. Vemos que elas cobrem duas naturezas: o consumo local e as
exportações. As diferentes organizações econômicas destas produções eram cobertas pelo
guarda-chuva de maximização dos preços, que as grandes exportações ofereciam do tipo: café,
algodão, açúcar, borracha, minerais preciosos, aguardente, couro e drogas do sertão15.
As taxas de reprodução, nas condições de exploração dos recursos naturais, não eram um
único elemento diferenciado no processo do capital produtivo, uma vez que o problema da
realização já existia. Portanto, a posição particular de cada produto no nível da demanda externa
otimizava a sua maximização específica; é o fator que explica o retrocesso do capital usurário e
da categoria dos mercadores, ao longo do século XIX, em proveito do capital industrial. Quanto
maior o mercado, maior a determinação da procura; quanto maior a procura, maior o espaço para
a produção por máquinas, inovações tecnológicas; capital industrial, enfim.
Por esta razão, vemos a simbiose aparentemente estranha, da mão-de-obra escravista com
maquinário da revolução industrial. Nas condições do café, o escravismo deixava de ser uma
sociedade para se constituir em forma exportadora.
15
Veja: Delso Renault. Indústria, escravidão, sociedade: uma pesquisa historiográfica do Rio de Janeiro no século
XIX, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1976; Mafalda P. Zemella. O Abastecimento da Capitania das Minas
Gerais no Séc. XVIII, São Paulo, 1951; Celso Furtado. Formação Econômica do Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Fundo de
Cultura, 1959.
16
Por outro lado, quanto mais se expandiu o capital industrial, maior era a tendência para que
os preços das mercadorias fossem determinados no nível da produção industrial, medindo-se em
termos de salário não pagos e reduzindo, cada vez mais, as margens de ganho de capital usurário.
Daí a necessidade deste de acorrer massivamente à produção colonial e semicolonial, para
transformar-se, em longo prazo, em novas mercadorias e capital industrial.
16
Veja: Arghiri Emmanuel, A troca desigual, B.E.C., Ed. Estampa, 2 vols. Lisboa, 1976; Marina Bianchi, A Teoria do
Valor, Lisboa, Edições 70, 1981.
17
Neste período, o avanço das formas industriais do capital haviam de significar, também,
uma reorientação do capital mercantil, tão bem caracterizada no novo balanço de forças do
congresso de Viena e do impacto das rebeliões populares de 1817, 1830, e, logo, 1848.
O problema nacional se colocaria para o capital industrial que, com o avanço do navio a
vapor e da ferrovia, amadurecia para a grande transformação dos transportes, com mais uma fase
de "encolhimento do mundo". A derrota do "bloqueio continental" de Napoleão, a derrota dos
"100 dias", era também a derrota irremissível do capital mercantil em escala internacional e o
advento da era do industrialismo.
Como é amplamente conhecida, a economia da colônia, logo Reino Unido, passou por
grave incerteza e comoção no período, adaptando-se finalmente ao ciclo das demandas
industriais, fundamentalmente através do café. Temos assim um novo momento do escravismo
brasileiro, ligado à mão-de-obra na produção intensiva de café, para a exportação. A queda
gradual dos valores de exportação, após esforço do período pombalino, avançou até o período da
presença de Dom João, agora feita demanda por novos produtos tropicais. O Maranhão,
aproveitando-se da guerra anglo-americana, pôde, temporariamente, avantajar sua condição de
exportador de algodão, sem, contudo, propiciar mudanças estruturais por via desta fase
favorável.
Assim, a deterioração dos termos de troca criou forte endividamento externo, ampliado
pela presença da Corte portuguesa e os custos das guerras de Dom Pedro. Faltava um produto-
guia na pauta de exportações e este produto novo foi o café, espalhando sua produção pela
baixada fluminense e as terras em torno da baía do Rio de Janeiro. A consolidação do café como
centro da atividade exportadora e da captação de divisas, portanto, veio a ocorrer no período de
1830-1860, produzindo produto em território paulista nos anos 30, em escala econômica17.
O colapso do Primeiro Reinado pode ser compreendido pela contradição entre uma política
centralista em excesso; e a insuficiência de renda disponível, de capacidade de pagamento no
exterior, etc., condições que decorriam da referida ausência de um produto-guia na economia e
17
Veja, a propósito: José Jobson de A. Arruda. O Brasil no comércio colonial, 1796-1808: contribuição ao estudo
quantitativo da economia colonial, São Paulo: Hucitec, 1982; Brasil Gerson. A escravidão no Império, Rio de Janeiro,
18
exportação. Por isto, a efetiva formação e consolidação do estado brasileiro foram um fenômeno
do período da Maioridade, em que a balança comercial já favorecia recursos para as atividades
mínimas do poder central. O café permitia a consolidação do Estado, o sucesso da Maioridade e
traria, pouco a pouco, o superávit das receitas sobre as despesas, fato que permitiu a
sobrevivência da monarquia centralizada, no cenário da segunda metade de um século XIX
instável e, mesmo, cambiante.
(A) Condições de circulação no setor produtivo. A circulação se coloca, aqui, nos seguintes
níveis: (1) circulação física dos bens, matérias-primas e insumos; (2) circulação dos produtos
finais para seus mercados consumidores; (3) circulação dos recursos necessários (mão-de-obra,
dinheiro, equipamentos) à efetivação da produção.
Pallas, 1975: e Leslie Bethell. A Abolição do Tráfico de Escravos no Brasil: A Grã Bretanha, o Brasil e a Questão do
Tráfico de Escravos: 1807-1867. Trad. Vera Neves Pedroso.
19
A tração animal e os barcos à vela continuaram a predominar nos transportes locais e
regionais da economia cafeeira, embora em nível internacional a saca de café transladou-se
gradualmente, do lombo de burro e do barco à vela para ferrovia e o navio a vapor. O avanço da
organização, à época da expansão cafeeira, constituía-se de um elemento - ao menos potencial -
de competição pelos recursos disponíveis - mão-de-obra, dinheiro, equipamentos. De fato, o
apogeu do escravismo cafeicultor seria breve (1830-1880). Isto implica reconhecer o caráter
mais complexo da expansão escravista no café, frente a outros fatores mercadológicos, que havia
ocorrido no caso do ouro e do açúcar18.
18
Veja: Clóvis Moura. O Negro no Mercado de Trabalho, São Paulo, Conselho de Participação e desenvolvimento
da Comunidade Negra, Estado de São Paulo, 1988; Décio Freitas. O Escravismo Brasileiro, Porto Alegre, Mercado
Aberto, 1982; e Ciro Flamarion Cardoso (org). Escravidão e Abolição no Brasil: novas perspectivas, Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1988.
20
desfavoravelmente, a partir de 1850, apesar dos "meia cara" e das migrações internas.
Conseqüentemente, a mudança técnica passou a ser o fator decisivo para assegurar o
desempenho de uma mão-de-obra em envelhecimento e de caráter escravo, apesar da introdução
de máquinas e melhorias das plantas. Por outro lado, competitivamente para o capital escravista,
o escravo mostrava-se elemento ativo na mudança técnica nos processos de industrialização e de
urbanização.
(C) Estrutura das unidades produtivas. O café exigiu, em sua organização escravista,
empresas ou unidades produtivas diferentes dos ciclos de produtos anteriores. Como se pode
observar na literatura, a fazenda cafeeira, muito distinta do engenho ou da plantação de cana-de-
açúcar; da mina, de garganta ou de aluvião; dos lavadores de ouro ou diamantes. As mudanças
na orientação da produção levaram em conta tanto a existência de novos recursos técnicos e
mercadológicos, quanto à experiência histórica acumulada no país e a expansão dos núcleos
urbanos, próprio do século XIX19.
19
Veja: Francisco Foot. História da Indústria e do Trabalho no Brasil, São Paulo, Global Ed., 1982; Trem Fantasma:
a modernidade na selva, São Paulo, Cia. das Letras, 1991 e Edgar Carone. União e Estado na Vida Política da
Primeira República, São Paulo, 1971.
21
estivesse ligada ao fim do monopólio da terra, tal elite poderia tornar-se, mesmo, abolicionista,
fato que se verificou na prática.
20
Veja: Clóvis Moura. O Negro, de Bom Escravo a Mau Cidadão? Rio de Janeiro, Conquista, 1977 e Roberto C.
Simonsen. Evolução Industrial do Brasil e outros Estudos, São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1973.
22
Através do café, na medida em que se criavam as condições para o desaparecimento da
escravidão, consolidavam-se na estrutura social e política todos os seus elementos negativos. A
recusa à ruptura da escravidão, que a expansão do café justificava, era também a recusa às
mudanças estruturais, à industrialização. Por outro lado, estas pressões culturais
desindustrializantes que o café expressava eram contra-trabalhadas na prática, pelo efeito de
guarda-chuva de seus recursos, acarretando a valoração das terras, das plantações e da
agricultura em geral, elevando o preço dos escravos, premissas de uma futura industrialização e
fonte imediata do movimento imigratório dos anos 1870-192021.
(F) Posição da escravidão cafeeira para o futuro previsível à época. Não se diz,
evidentemente, nada de novo ao afirmar que a opção pelo café era para viabilizar novamente a
escravidão. Dando-se-lhe vigor econômico, era possível, de fato, a uma elite fraca e incipiente
como a do Segundo Reinado fazer face à Inglaterra, contrapondo a esta a alternativa de mais uma
república de negros. Sem dúvida, o espectro era suficiente para apaziguar os mais exaltados
ânimos britânicos22.
21
Ver: Francisco Foot. Nem Pátria, nem Patrão! São Paulo, Brasiliense, 1984, Lúcio Kowarick. Trabalho e
Vadiagem: A origem do Trabalho Livre no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1987; e Valentin Lazzarotto. Pobres
construtores de riqueza: Absorção da Mão-de-Obra e expansão industrial na metalúrgica Abramo Eberle, 1905-
1970, Caxias do Sul, 1981.
22
Célia Maria Marinho de Azevedo. Onda Negra, Medo Branco: O Negro no Imaginário das Elites séc. XIX, Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1987.
23
sociedade: o que é de recear se não faça sem comoção nas famílias, que
repercutir no Estado".23
Vê-se no texto que a ruptura das relações entre senhor e escravo, além de destruir a
organização então existente, podia levar à alteração da sociedade, ou seja, à indesejável
formação de uma sociedade de indivíduos livres. O fim da escravidão se daria – de outro modo -
pela extinção física dos escravos e o café próspero era o melhor instrumento para isso.
Do ponto de vista estratégico, pode-se dizer que a opção pelo gradualismo - o fim dos
escravos e não da escravatura - não foi plenamente efetivada, mas o efeito de bloquear a
formação de uma economia social, ou seja, de mercado livre, resultou na preservação dos
odiosos monopólios institucionalizados na vida brasileira do Segundo Reinado e sua
transferência à Primeira República. Esta visão cultural do problema da escravidão contribuía,
segundo se supõe, para desmobilizar os recursos obtidos pelo café e disponíveis para todo tipo de
modernização, dentre estes o mais importante, qual seja a industrialização efetiva. Havia,
portanto, uma contradição na riqueza trazida pelo café: ela condenava a escravidão e mantinha,
pelo lucro elevado, estruturas geradas pela escravidão. Nesse sentido é que o capital escravista
voltou a ser capital mercantil e usurário, em sua "viagem" histórica necessária para tornar-se
capital industrial, fenômeno que só iria se concretizar no período 1913-196224.
Durante o século XIX, particularmente após a extinção do tráfico, cresceu cada vez mais a
importância das atividades dos mercados locais. Isto porque um certo número de atividades, ao
longo do tempo histórico, deixava de se articular indiretamente com o mercado internacional,
23
Agostinho Marques Perdigão Malheiros. Apud A Escravidão no Brasil, Ensaio Histórico-Jurídico-Social, tomo II,
Edições Cultura, 1944, pp. 200-201, (1a. edição de 1867).
23
Veja: Caio Prado Jr., História Econômica do Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1981, Humberto Bastos.
Desenvolvimento ou Escravidão, São Paulo, Livraria Martins Fontes, 2ª Ed., 1964; e V.I. Lenin. Sobre El Problema
de Los Mercados, Espanha, Siglo Veintiuno Ed., 1974.
24
Veja: Karl Marx, El Capital. op. cit.
24
representando, pois, um nível menos importante no processo de monetarização da economia, mas
articulava-se de modo próprio em nível local. A envergadura dessas atividades local variava,
obviamente, de região para região. Combinando a exploração escravista com outras formas de
trabalho, estas atividades desempenharam um papel suplementar ao processo da acumulação e
papel de primeiro plano, com relação à formação social brasileira.
Essa dinâmica lenta e quase linear, que caracterizava os setores do produto suplementar,
emprestava-lhe, também, significativa função complementar para eventuais picos de demanda de
mão-de-obra, cada vez mais presentes pelo efeito do fechamento institucional do tráfico. No
setor do capital escravista exportador, a separação entre o excedente e o consumo do trabalho
empregado fazia-se fortemente, pois a produção assumia a forma de mercadorias e estas,
exportadas, geravam ganhos em divisa, manifestando-se como poder-de-compra no exterior.
Quanto aos setores do produto suplementar, esta relação de apropriação comumente se
obscurecia, pela lentidão e, às vezes, incerteza da transformação dos produtos em mercadoria;
em dadas circunstâncias, o predomínio do trabalho escravo fazia com que o mesmo fosse
apropriado concretamente em atividades improdutivas, sem racionalidade para o sistema,
verificando-se baixa produtividade. Portanto, do ponto de vista da acumulação, os setores do
produto suplementar não desempenhavam o papel de um fator autônomo, mas de mercados
25
primitivos que eram incorporados ou desincorporados, de acordo com a lógica histórica da
produção exportadora25.
Temos fortes indicativos do grau elevado de exportação do capital interno, tanto dos
fazendeiros do setor exportador, quanto dos pequenos-proprietários. As crenças liberais então
dominantes e a estrutura legal existente não visualizavam o chamado "problema nacional",
apontando mais para um apoio à divisão internacional do trabalho, fato que foi um contínuo,
desde o governo conservador de 1848 (Araújo Lima; Rodrigues Torres;) até João Alfredo e a Lei
Áurea (1887-88). Havia uma preocupação com depósitos em bancos estrangeiros, com o porte de
moeda estrangeira, que era entesourada junto com ouro e pedras preciosas. Uma grande
quantidade de recurso potencial para o investimento produtivo era drenado do mercado pelo
mecanismo do entesouramento, fazendo-se uma política de valorização dos patrimônios físicos -
terras, prédios, embarcações - e não do patrimônio mobiliário, o que desfavorecia o crescimento
e a mudança.
26
Ver: Tom Kemp. Modelos Historicos de Industrialización. Barcelona, 1981 e Celso Furtado. Subdesenvolvimento e
Estagnação na América Latina. Rio de Janeiro. Ed. Civ. Bras. 1967.
26
A entrada incompleta de lucros auferidos com as exportações, tendo em vista a formação
de reservas individuais em bancos metropolitanos, constituía-se mecanismo corrente e
descompensador da formação da capacidade externa de pagamento. Já existiam a sobrefaturação
de produtos importados, subfaturação de produtos exportados e transferência de recursos
financeiros para o exterior fora das normas legais - especulação sobre o câmbio -, com o
contrabando de moeda, metais e pedras preciosas, etc., tudo organizado por grupos "nacionais" e
"estrangeiros".
Este aumento relativo da eficiência dos investimentos faz-se, de modo mais cabal, a partir
do conflito com o Paraguai, quando o país entra num patamar de modernização, cujo elemento
central é a nova imigração. A conjuntura do fim de século (Grande Depressão: 1873-1896)
haveria de colocar novos desafios adaptativos, que feriram de modo profundo a lógica da ordem
econômica baseada na escravidão, levando mesmo ao seu desaparecimento.
Sendo a produção marcadamente orientada por técnicas manuais, inclusive em oficinas que
possuíam equipamentos mais modernos - a exemplo de Ponta d'Areia, Arsenal da Marinha,
estaleiro de Salvador -, os ramos de produção consumiam uma grande quantidade de força de
trabalho, havendo uma certa competição por mão-de-obra entre as diferentes atividades. Os
quase monopólios específicos do circuito de circulação desestimulavam, de fato, o aumento da
produção e da produtividade, em virtude dos baixos rendimentos da grande massa da população.
Sendo, conseqüentemente, instável o excedente de produção, a lucratividade era máxima no
circuito comercial, que superava as eventuais dificuldades ao evento e venda de mercadorias. A
baixa margem de lucro, em nível de produção, diminuía a importância dos investimentos,
27
Veja: Flávio Versiani J. R. Mendonça de Barros (orgs.). Formação Econômica do Brasil. A Experiência da
28
desestimulando o crescimento da eficiência produtiva e da escala da produção. Particularmente,
com relação às atividades secundárias, compreendiam grande capacidade ociosa, apesar da
pequena produção; operavam nas folgas das importações ou na produção de bens que não
compensava carregar sobre o oceano. Daí que sempre floresceu a posição do "intermediário".28
Apenas como referência, quando se compara o número de escravos de 1887 com relação a
1849, este caiu para 39,6%. Os escravos agrícolas da província do Rio de Janeiro eram, em 1887,
cerca de 51,9% do número de 1849. No entanto, em São Paulo os escravos na agricultura eram,
em 1887 o total de 85,3% do número de 1849. Isto significa que, enquanto certas províncias
viam decrescer seu número de escravos, eles ainda se mantinham ou se ampliavam, em São
Paulo, no Segundo Reinado.
29
Veja: Márcia N. Kuniochi. A Prática Financeira do Barão de Mauá. Dissertação de Mestrado. São Paulo, FFLCH-
USP, 1975; Crédito, Negócios e Acumulação. Rio de Janeiro: 1844-1857. Tese de Doutorado. São Paulo, DH-
FFLCH-USP, 2001 e Mauro Brandão Lopes. Cambial em Moeda Estrangeira. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais,
1978.
30
121%. O setor terciário foi o que mais se expandiu no período, sendo acrescido em 152%. O
agregado “consumo pessoal” expandiu-se, de 1849 para 1887, em 128%. Quanto à produção de
café pelos escravos, apesar do número decrescente destes, expandiu-se 247%. O consumo per
capita, em termos reais, expandiu-se 21,5%. O preço médio do escravo sofreu elevação de
246%. A procura por escravos aumentou 145% e o produto da província de São Paulo, o que
mais cresceu no período, aumentou 4,6 vezes30.
Nessas condições, sob suas formas escravista e usurária, o capital mercantil apossou-se de
uma enorme quantidade de terras e de pessoas, sendo estas, quando escravas, um duplo de mão-
de-obra e forma de capital usurário. Os proprietários da terra, quando não resultavam de doações
metropolitanas politicamente justificadas, surgiam da prática do comércio, principalmente o
tráfico de escravos, dedicando-se ao comércio geral; às instituições municipais para efeito de
serviço das ordens; por fim, tornando-se proprietários de terras. Por quê os mercadores davam
importância a terra? Porque só ela podia proteger a propriedade – de forma quase absoluta – de
todas as flutuações das demais formas apropriadoras.
30
Ver: Wilson do Nascimento Barbosa. A Crisálida: 1850-1888. Tese de Livre Docência. São Paulo, DH-FFLCH-SP,
2 vols. 1994.
31
classe exploradora dos grandes proprietários de terra ao seu ápice histórico na colônia. No
entanto, cumprida sua função de acumulação primitiva, que permitiu incorporar o ciclo agrícola
das colônias no insuficiente ciclo agrícola das metrópoles, inundadas estas de mercadorias
coloniais a preços cadentes, colocava-se na ordem-do-dia a necessidade de eliminar o trabalho
escravo, abrindo mercados para os países que haviam realizado a revolução industrial31.
O recesso do capital escravista deu-se, no Brasil, por duas vias: o retorno ao capital
mercantil e usurário, e o avanço até o capital industrial.
O capital industrial impôs, portanto, suas soluções: a substituição dos escravos como base
do capital usurário, transferindo seu valor para o patrimônio das fazendas (1870 – 1888) e a
transformação da massa escrava em um subproletariado, remunerado abaixo da fronteira de
subsistência. Este duplo movimento foi obtido por: ampliação das áreas agricultáveis disponíveis
e intensificação da competição interna da agricultura local de exportação; e a intensa imigração
européia, capaz de reduzir, ao mínimo, o custo da força de trabalho ofertada.
A ampliação desmesurada das áreas agrícolas foi obtida com o surto ferroviário nas
colônias e semicolônias. No caso brasileiro, aumentando a produção a exportar, os cafeicultores
concorreram entre si para fornecer às metrópoles produtos tropicais a preços cadentes, ao mesmo
tempo em que deviam pagar o custo das ferrovias e da imigração de novos trabalhadores. Por
outro lado, a introdução de mão-de-obra imigrante em excesso rebaixava o salário de
subsistência e acirrava a competição entre os trabalhadores por um posto-de-trabalho. Em longo
prazo, jogava a mão-de-obra imigrante para fora das fazendas em cada crise agrícola de
realização (vide 1902-04; 1914-15; etc.), colocando-se no cenário da urbanização, com o
crescimento da pequena indústria (1890 – 1930) e a recusa da nova imigração à proletarização
(surgimento de uma pequena-burguesia urbana e rural; 1900 – 1940)32.
31
Ver: Décio Freitas. Escravos e senhores de escravos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983; e Brasil Gerson. A
Escravidão..., Op. cit.
32
Ver: Florestan Fernandes. A integração do negro na sociedade de classes, São Paulo, 2 vols. 3ª ed. Editora Ática,
1978; Maria Sylvia de Carvalho Franco. Homens Livres na Ordem Escravocrata, São Paulo, Ática, 1974; Alba Maria
32
destruiu o setor de pequenos proprietários negros, que havia se formado nas condições da
produção e circulação aurífera; e desqualificou a mão-de-obra trabalhadora negra, expondo-a à
intensa competição, face os novos imigrantes, que recebiam, de qualquer forma, maior apoio do
sistema institucional do que os descendentes de escravos e libertos. Na maioria dos municípios,
por exemplo, foram elaboradas disposições que vetavam crianças negras a freqüentar as poucas
escolas existentes.
Figueiredo Morandini. O Trabalhador Migrante Nacional em São Paulo, 1920-1923, Dissertação de Mestrado, São
Paulo, PUC-SP, 1978; e José de Souza Martins. O Cativeiro da Terra. São Paulo, Hucitec, 1986.
33
Ver: Bóris Fausto. Trabalho Urbano e Conflito Social, 1890-1920, Rio de Janeiro, Difel, 1977 e Relatórios do
Banco do Brasil: 1910 a 1930.
33
“empurravam” para mais adiante. Desta forma, atuavam os mesmos como desmatadores
graciosos das fazendas. Quando o trabalho de colonização era feito longe da frente agrícola, os
negros davam origem a ocupações duradouras, “quilombos” que também se constituíram
verdadeiros bolsões de cultura negra, afastados totalmente das pressões diretas das políticas de
“desafricanização’ e do “branqueamento”. No entanto, no ambiente urbano de Salvador, Recife,
Rio de Janeiro, São Paulo, Ouro Preto, São Luís e logo Belo Horizonte, os negros constituíram-
se parte importante, quando não dominante, da força de trabalho34.
A Revolução de 1930 e o impacto das chamadas políticas varguistas, com sua lei do
trabalho nacional, reabriram o caminho ao gradual aproveitamento da mão-de-obra negra nas
atividades industriais urbanas. Era interesse do Estado varguista reduzir a influência dos
sindicatos controlados por imigrantes europeus e seus descendentes, que haviam adquirido
capacidade de negociação no período anterior. A mais ampla industrialização, em surtos do
período seguinte (1933-38; 1939-1946; 1955-62), levaria a amplo crescimento do proletariado e
compreenderia trabalhadores negros.
A tendência dos negros libertados da escravidão para deixar as fazendas e formar frentes
de colonização dentro das matas resultou, também, em choques mais ou menos extensos com as
autoridades, que refletiam predominantemente os interesses dos proprietários de terra. Estes não
gostavam de perder a sua mão-de-obra quase grátis e enviavam forças policiais e militares para
esmagar tais focos espontâneos de “reforma agrária”. Estes movimentos agraristas ficaram
conhecidos na literatura como “messiânicos”, quase sempre em atitude que busca ignorar seu
fundamento libertário social e econômico: Canudos (1896-1897), o Contestado (1911–1914), o
Caldeirão (1937), entre outros, foram movimentos pela terra cujo maior contingente isolado era
de trabalhadores negros35.
34
Ver: Anuário Estatístico do Brasil – (IBGE) – (década 1940); Directoria Geral de Estatística (DGE) – Synopse do
Recenseamento de 31 de dezembro de 1890. Rio de Janeiro, 1931 e Directoria Geral de Estatística (DGE) –
Recenseamento do Brasil realizado em 1o de setembro de 1920, 5 vols., Rio de Janeiro, 1922 a 1926.
35
Ver: Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares. A Guerra de Canudos, 3ª Ed., Rio de Janeiro, I. N. do Livro,
1885 e Rui Facó Cangaceiros e fanaticos: genese e lutas, Rio de Janeiro, Bertrand, 1988; e Brasil século XX, Rio
de Janeiro, Vitória, 1960.
34
fonte de toda a riqueza; e a precisão de reduzir dos trabalhadores sem terra a indigência, com a
compra potencial posterior de sua força de trabalho por preços abaixo da fronteira de
subsistência. O monopólio da terra permite valorizá-la enquanto capital existente e eliminar
focos de concorrência que venham a aumentar a produção. Os proprietários de terra podem
aceitar a imposição competitiva o capital industrial externo ou a divisão internacional do trabalho
e deterioração dos termos-de-troca, mas não podem tolerar a concorrência de pobres sem terra,
particularmente negros ou seus ex-escravos.
36
Veja: Petrônio José Domingues. Uma História não contada: negro, racismo e trabalho no pós-abolição em São
Paulo (1889-1930). São Paulo, DH-FFLCH – USP, 2000.
35
regime escravista. Isto se caracterizou também como: o aumento da concorrência dos produtos
de exportação, tanto no plano doméstico como externo; e os reajustes econômicos internos, sob
formas de ondas sucessivas (1890–1923), que aceleraram a expansão e o colapso do regime de
colonato, levaram ao crescimento da ocupação do solo agricultável, com grande número de
fazendas, e redução da taxa de lucro, durante todo o período da Primeira República (1889–1930).
Minas Gerais, Bahia e estados nordestinos, são áreas onde a população negra predominava
e sua mão-de-obra era constantemente ofertada para outras regiões, com a redução dos custos
oriundos do trabalho para as mesmas, e a cessão definitiva de uma população adulta resistente e
produtiva. Deve-se observar que os custos com instrução, treinamento, saúde, transporte, etc., da
força de trabalho interna foram, até bem recentemente, quase inexistentes, na prática, para as
empresas e o Estado.
36
A industrialização brasileira, pós 1929, se caracterizou por uma prevalência do capital
industrial local, formado por uma combinação expansiva de capitais privados e capitais públicos,
em mãos do Estado, que foram utilizados para financiar empresas e atividades industriais no
período referido. Aquele tipo de industrialização consumiu enormes quantidades de força de
trabalho, levando a contribuir certamente na mudança de cenário do país, de rural para urbano.
Dessa forma, com o rápido crescimento das cidades, voltou-se para ali o centro das
disparidades sociais, com o excesso de oferta de trabalho sobre as taxas de industrialização e a
carência de serviços básicos como saneamento, saúde e educação. Desde a década de 70, apesar
da retomada temporária da industrialização (1969-82), os diferenciais de riqueza e bem-estar
social se extremariam como nunca, superando mesmo as diferenças do mundo escravista. Os
efeitos positivos da industrialização sobre a renda deixaram de ser distribuídos aos trabalhadores
industriais, nas condições de uma estrutura sindical controlada primeiro, pela polícia política da
37
Ditadura (1964–1990) e depois, pelo desemprego maciço associado a desindustrialização e
globalização. Um terço da população urbana dos grandes centros manteve-se, nas últimas duas
décadas, como favelada. Cinqüenta por cento da força de trabalho urbana atinge até o salário-
mínimo.
Como conseqüência de uma posição de renda nitidamente administrada para ser inferior, a
população negra não apresenta apenas salários inferiores para o mesmo trabalho masculino ou
feminino. Ela termina por concentrar os piores resultados nos indicadores de qualidade de vida.
Considerando-se, por exemplo, os 174 países que compõem o Índice de Desenvolvimento
Humano da ONU (IDH-ONU), o Brasil estava, em 1999, em 79º lugar. Quando se examina
apenas a posição da população negra - dividida na classificação oficial em “negros” e “pardos” -,
a posição seria a 157ª, com um indicador 0,418, próximo ao Djibuti (0,412). Como os negros
podem ser tão pobres no Brasil? A explicação não pode deixar de lado uma política sistemática e
silenciosa de discriminação, praticada pelas diferentes camadas da população proprietária no
país. A questão é compreensível com um exemplo. Segundo o Banco Mundial, pelo menos 1,5
bilhão da população mundial sobrevive com uma renda de até 1 dólar por dia. Considera-se 1
dólar ao câmbio de R$ 2,80 e tem-se uma renda de até R$ 2,80 por dia. Qual a renda mensal
correspondente? 2,80 X 30 = 84, ou seja, oitenta e quatro reais per capita ao mês. Considera-se
um coletivo familiar de 4 pessoas e tem-se: 84 X 4 = 336. Ou seja, trezentos e trinta e seis reais
por família. Suponha uma família negra muito comum, na periferia de uma grande cidade
brasileira, formada por quatro pessoas: a mãe, a avó e duas crianças. Suponha-se que esta mãe-
de-família negra trabalha como empregada doméstica. Vê-se, de pronto, que a hipótese da
mesma ganhar 300 ou 400 reais mensais se restringe a uma minoria das grandes cidades. Daí
pode-se compreender diretamente como mesmo a fronteira de miséria do Banco Mundial pode
ser difícil de ser mantida para a população negra brasileira. Ainda que nas condições do mundo
urbano, onde o padrão de rendimento deveria depender da produtividade industrial crescente38.
37
Ver: Maria da Conceição Tavares. Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro. Rio de Janeiro,
Zahar Editores, 8ª Ed., 1978 e Celso Furtado. A Nova Dependência: Dívida Externa e Monetarismo. Rio de Janeiro,
ª
Ed. Paz e Terra, 2 Ed., 1982.
38
Ver: Edmar Bacha e Herbert Klein (orgs.). A Transição Incompleta: Brasil desde 1945, 2 vols., Rio de Janeiro, Ed.
Paz e Terra, 1986 e Marcos Cordeiro Pires. Dependência de Importações e Crise da Mundialização: Crescimento e
Flutuações na Economia Brasileira (1980-2000). Tese de Doutorado. São Paulo, DH-FFLCH-USP, 2002.
38
A restrição étnica da propriedade – por um período histórico prolongado – gera hábitos
difíceis de erradicar na população beneficiada. De fato, não há nada na sociedade brasileira,
décimo parque industrial do mundo, que explique níveis salariais tão baixos para a mão-de-obra
menos qualificada. Tais níveis são tão baixos que, atualmente refletem depressivamente sobre a
economia agrícola, sua margem de lucro e o valor da terra. Seria este o caso clássico em que o
“feitiço” voltar-se-ia “contra o feiticeiro”.
O Brasil, campeão mundial de concentração de renda é, obviamente, o país que exclui 16%
de sua população das condições mínimas de saúde, educação e higiene, exigidas pela ONU. 80%
destes 16% são constituídos por população negra.
Trinta milhões de brasileiros vivem em miséria absoluta. Quarenta e três milhões não
possuem água potável. Vinte e um milhões morrerão até os 40 anos de idade. Cinqüenta e quatro
milhões não possuem esgotos. Este é o preço que o país tem pagado para manter uma mão-de-
obra abaixo da fronteira de subsistência, compreendida quase exclusivamente de negros de todos
os tipos. Com essa mão-de-obra excessivamente barata, o país consegue corresponder às
necessidades de oferta a preços cadentes do comércio externo e satisfazer o seu estranho e
persistente ego escravista39.
É fato que, as pessoas não-negras estão acostumadas a pagar uma fração de até 50% do
vencimento ou salário de um trabalhador não-negro, para um trabalhador negro. O negro deve
valer menos, ele deve constituir um “terceiro mundo” da força de trabalho. Isto, por si, só explica
o subdesenvolvimento brasileiro. Um trabalhador desprovido de rendimento não pode participar
da poupança ou expandir o mercado doméstico. Observe-se que na maioria das regiões, o negro
constitui a espinha dorsal do proletariado, ainda que atendendo aos epítetos de “baiano”,
“mineiro”, “paraíba” ou “carioca”.
39
Ver: Nilson José Dalledone. A gênese do Mercosul: antecedentes e desdobramentos. Tese de Doutorado. São
Paulo, DH – FFLCH – USP, 2001 e Reinaldo Gonçalves. Estudo da competitividade da industria brasileira:
estratégias dos oligopólios mundiais nos anos 90 e oportunidades do Brasil; nota técnica temática do bloco
condicionantes internacionais da competitividade, Campinas: Mct/finep/padct, 1993.
39
coincide com os 10 primeiros países do mundo, coincidentemente, “países brancos”. Ou seja, na
África do Sul, desaparece o subdesenvolvimento, sendo obviamente o subdesenvolvimento em
função da presença da “população negra”. Nesse caso, o desenvolvimento trata-se de uma função
da “população branca”, o que leva a interrogar, como Max Weber, para que existem as
“sociedades não-homogêneas”. Deve-se recorrer ao parâmetro de que sociedades como as da
América Latina são sociedades coloniais ou semicoloniais, cuja explicação existencial resida
fora delas. Evidentemente, há 100 ou 200 anos atrás, quando um grupo inglês ou francês
escravizava uma aldeia africana ou asiática, a vida da referida aldeia passava a ser regulada pelo
relógio dos interesses do grupo externo, que efetuava sua exploração. Nesse caso, a renda
monetária, eventualmente, acumulada em metais preciosos não poderia ser computada para toda
a população aldeã, o que eliminaria a acumulação, mas seria considerada propriedade exclusiva
do grupo minoritário externo. Tal concentração de renda implica uma compreensão própria da
distribuição dos frutos do enriquecimento. É disso que se trata o chamado “Terceiro Mundo”.
Quando se consideram as três variáveis componentes do IDH: renda per capita, índice de
alfabetização e expectativa de vida, torna-se difícil escamotear o efeito extremo dos diferenciais
socioeconômicos na estrutura étnica da sociedade.
O IMPACTO DA GLOBALIZAÇÃO
A maioria dos países oriundos da expansão colonial européia não foi capaz de dar origem a
elites multiculturalizadas, em que os interesses do conjunto da população fossem viabilizados. O
ambiente de integração puramente financeira guiado pelo consenso neoliberal, sob o nome de
“globalização”, está muito distante de uma mundialização que compreendesse uma livre
circulação de capital e trabalho40.
40
entre as diferentes nações. Por isso, em longo prazo ela gera assimetrias similares ou até mais
díspares dentro das nações pobres: segundo o IBGE, o 1% mais rico da população brasileira, em
1998, possuía mais renda que os 50% mais pobres (13,8% contra 13,5%).
Esta aparente “fatalidade tropical” implica, no Brasil, uma taxa de mortalidade entre
crianças negras e “pardas” de dois terços maior que a da população branca, da mesma idade. Em
probabilidade, a criança negra tem 67% de chance maior de morrer do que uma criança branca
(1996). A fonte de tal problema só pode ser indicada na renda insuficiente das famílias negras e
“pardas”. A mortalidade das crianças negras no país chega a superar a da África, pelos dados do
mesmo relatório.∗ (Brasil, para 1996: 76 por mil, nascidos vivos; África do Sul: 67 por mil;
Zimbábue: 74 por mil).∗∗
Tabela 1
Regiões Taxa de desocupação a mais por sexo e por cor (em % - 1995)
Brasil 22,3 14
40
Jacques Adda. Globalización de la Economia. Madrid, Seguitur, 1999; Samir Amin. El Capitalismo en la
Globalización. Barcelona, Paidós, 1999 e O Eurocentrismo: Crítica de uma Ideologia. Lisboa, 1999.
* Indicadores Sociais Mínimos; IBGE; Internet.
∗∗
Dados da ONU
41
Norte urbano 7,0 6,6
Lendo a tabela 1, tem-se que, para cada cem mulheres brancas sem atividade remunerada
ou ocupação, em 1995, havia no Brasil mais de 122 mulheres negras na mesma situação. Para
cada cem homens brancos então desocupados, havia 114 homens negros desocupados. Isso pode
ser percebido, olhando-se a tripulação dos caminhões de limpeza urbana: quando a crise
econômica aperta, os negros cedem ali seus lugares para brancos41.
No norte urbano, havia 107 mulheres negras desocupadas para cada 100 mulheres brancas;
e quase a mesma proporção para os homens. No Nordeste, havia mais de 118 mulheres negras
desocupadas para cada cem mulheres brancas. Quanto aos homens, havia mais de 104 negros
sem ocupação remunerada para cada cem homens brancos.
No Sudeste, havia mais de 117 mulheres negras sem ocupação para cada cem mulheres
brancas. Quanto aos homens, encontrava-se praticamente 121 negros sem trabalho para cada
grupo de cem homens brancos na mesma situação. Com relação ao Sul, a situação agravava-se:
havia quase 165 mulheres negras desempregadas para cada 100 mulheres brancas; e quase 150
homens negros para cada grupo de 100 homens brancos na mesma situação. No caso da região
Centro-Oeste, encontravam-se mais de 117 mulheres negras sem ocupação, para cada cem
mulheres brancas. Quanto aos homens, para cada cem homens brancos sem atividade
remunerada, encontravam-se cerca de 99 negros na mesma situação. Este parece ser o único caso
da atração do salário menor estar funcionando.
Tabela 2
41
Ver: São Paulo em Perspectiva, Revista da Fundação SEADE (Miguel W. Chaia, ed.) Capitalismo:
ciclos e crises atuais. Vol. 12, no. 3, julho/setembro, 1998.
42
Regiões Número a mais relativo, de pessoas com renda até 2 salários mínimos
(%) 1995
Mulheres Homens
Brasil 32,8 64,2
Norte urbano 23,4 28,6
Nordeste 14,1 19,9
Sudeste 33,9 58,3
Sul 25,3 40,2
Centro-Oeste 22,4 26,7
Fonte: IBGE; Pnad, 1995; in Celso Simões e Ricardo Cardoso (1997)
Ao olhar a tabela 3, pode-se ler que, para cada grupo de cem mulheres brancas no Brasil,
em 1995, que tinham renda até dois salários mínimos, havia quase 133 mulheres negras. Ou seja,
no êxito, ao se possuir alguma renda, as mulheres negras terão rendas menores, com 33% a mais
de chances, que as mulheres brancas. Quanto aos homens negros, mais de 164 terão a renda de
até 2 salários mínimos para cada cem homens brancos na mesma situação.
No Norte urbano, para cada cem mulheres brancas com este baixo nível de renda havia, em
1995, mais de 123 mulheres negras. Quanto aos homens na mesma situação, haveria mais de 128
negros para cada cem brancos. No caso do Nordeste 114 mulheres negras estariam neste patamar
de renda para cada 100 brancas. E 120 negros, praticamente, para cada cem brancos. No Sudeste
a má vontade salarial se agrava. Para cada 100 mulheres brancas, encontravam-se 134 mulheres
negras; para cada cem brancos, encontravam-se mais de 158 negros. Quanto ao Sul, havia mais
de 125 negras para cada grupo de cem brancas; e mais de 140 negros, para cada cem brancos.
Finalmente, no Centro-Oeste, havia mais de 122 mulheres negras para cada cem mulheres
brancas; e mais de 126 negros para cada cem brancos.
Tabela 3 1995
43
Mulheres Homens
Quando se verificam as posições no Sudeste, houve mais de 184 mulheres negras semi-
analfabetas para cada grupo de cem mulheres brancas. O aumento na região se expressa como
praticamente 194 homens negros com analfabetismo funcional, para cada grupo de cem homens
brancos. A região Sul exibiu mais de 223 mulheres negras para cada cem mulheres brancas; com
mais de 203 negros para cada cem brancos. Por fim, a Centro-Oeste apresentou mais de 170
mulheres negras para cada grupo de cem mulheres brancas; e mais de 165 negros, para cada
grupo de cem brancos, na mesma situação.
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É interessante observar o caráter discriminatório desses diferenciais étnicos, porque onde
há mais do propalado “desenvolvimento” ou “urbanização”, os indicadores mostram as maiores
discrepâncias. Por exemplo, na região Sudeste, a mortalidade de crianças “de cor” é 71% maior
do que aquela entre as crianças brancas (53 por mil e 31 por mil, respectivamente). Quando se
verifica o Nordeste, região supostamente mais pobre, a diferença cai para 23% a mais, em
mortalidade das crianças de “cor”. A concentração de renda, explicada também por fatores extra-
econômicos, agrava, portanto os problemas de saúde, educação, habitação, segurança pública,
etc.
O leque das segregações, a que está submetida a população negra e “parda” do Brasil tem
sua amplitude sempre diversificada. Por exemplo, apesar do negro ser mais pobre e menos
instruído, ele tende a ser mais criminalizado inclusive em questões econômicas: sofre maior
número de consultas no SPC; é mais – relativamente – cadastrado no SERASA; é mais vítima do
I.R; é objeto de maior recusa de todos os tipos de crédito. Concedeu-se menos contas bancárias –
em expressão relativa – aos negros, mas ele é mais barrado pelas portas eletrônicas dos bancos.
O exame de todos os indicadores socioeconômicos do país, quando ponderados para expressar a
posição relativa do negro, aponta-o claramente em desvantagem. Isso, por certo, contribui para o
crescente aumento do diferencial entre as taxas de mortalidade das duas populações, com uma
ponderação maior do que fatores genéticos ou biológicos.
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