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Daniella Villalta1
Resumo
Este artigo faz parte do estudo que venho desenvolvendo no doutorado em Artes Visuais
da Escola de Belas Artes da UFRJ, onde procuro compreender o que uma geração de
artistas eletrônicos tenta fazer com a experiência que vem dos indígenas e da cultura
ayahuasqueira. A cultura da ayahuasca e o xamanismo amazônico estão em diálogo com
o mundo, e meu interesse geral é conhecer esses diálogos nas artes eletrônicas interativas
e que relações essa geração de artistas estabelece com a cultura ameríndia da ayahuasca
no campo da percepção, das subjetividades e da estética. Para esse estudo gostaria apenas
de relacionar a experiência visionária e a performance de transformação das formas do
xamanismo com a arte eletrônica imersiva a partir de dois exemplos: The Treachery of
Sanctuary, do artista americano Chris Milk, de 2012 e Submergence, do coletivo europeu
SQUIDSOUP, de 2013. Na investigação inicial desses projetos artísticos aparecem
vestígios de daquelas experiências visionárias que colocam o sujeito em outras ordens de
percepção, não-ordinárias, envolventes e imersivas. São esses indícios ou sobrevivências
que interessam no estudo dessa relação.
1
Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais – EBA/UFRJ, desde 2014.2
2
Manguebeat Chico Science & Nação Zumbi - Computadores fazem arte. Álbum Da Lama Ao Caos.
Gravadora Chaos, 1994.
As interfaces criadas a partir das inovações tecnológicas, incluem cada vez mais o corpo
nos experimentos, não se tratando apenas de criar possibilidades imagéticas. Segundo
Arantes (2005), os cenários da arte na era digital são múltiplos e se compõem de
A bebida ritual Ayahuasca é amplamente utilizada pelos grupos Pano, Aruák e Tukano
contabilizando, segundo Luna (1986), 72 povos indígenas que fazem uso dela na
Amazônia Ocidental, mas não se restringe ao universo do xamanismo ameríndio.
Conhecida por populações ribeirinhas, seringueiros, por mestiços e caboclos da região
amazônica, além de ser usada em diversos rituais vegetalistas, tem ocorrido também em
cultos urbanos espalhados pelo Brasil e pelo mundo, especialmente a partir duas últimas
décadas.
A ayahuasca pode ser pensada como uma tecnologia vegetal, uma potente interface capaz
de favorecer a expansão da consciência e o acesso ao saber. Existem inúmeras definições
acadêmicas para o termo, podendo significar uma bebida, uma medicina ancestral, além
de também definir uma das plantas de sua composição (cipó ou liana) ou ainda um ritual.
Mais recentemente, vem sendo cogitada como patrimônio cultural. Em Labate, Goulart e
Araújo (2004),
Mircea Eliade (1951) aponta esse complexo fenômeno como sendo “la tecnica del
extasis”(ELIADE, 1996. 6ª reimpressão, p. 22). Em uma obra posterior, em coautoria
com Ioan Couliano, os autores definem xamanismo explicando que esse conjunto de
técnicas arcaicas de êxtase,
3
Compilação de imagens disponíveis na rede.
substâncias alucinógenas, como a ayahuasca, que aparece na diversidade do xamanismo
amazônico sob outras nomenclaturas como caapi, yagé, mariri, cipó.
4
http://pixels.com/featured/yana-yacumama-pablo-amaringo.html
5
A autora cita Dobkin de Ríos, Harner, Langdon, Reichel-Dolmatoff e Torres Laborde.
de redes hexagonais e quadriculados, articulados aos estímulos sonoros que podem torná-
las ainda mais brilhantes. Assim também são as visões descritas pelos xamãs Shipibo-
Conibo: luminosas, melódicas (levando a estados de consciência sinestésica), com
projeções que resplandecem em formas geométricas. A autora ressalta que isso exclui a
afirmação de que padrões geométricos ou reticulados presentes nas visões de diversos
grupos sejam de ordem subjetiva ou cultural, estando ligados a um estado fosfênico que
se apresenta em outros estimulantes narcóticos.
Tecelagem Shipibo-Conibo6.
Lagrou (2012) explica que ao relacionar o estilo formal da arte gráfica kaxinawá com os
contextos rituais de seu uso, observou a relação entre um estilo de pensar, um estilo de
perceber e um estilo particular de mostrar que implica em ocultar a maior parte do que
poderia ser visto. Uma arte de sugerir.
6
https://br.pinterest.com/pin/491314640575890918/
capturar.
Langdon (2004) explora as experiências dos Siona da Colômbia com o yagé e suas
narrativas, e ensina que as visões advindas do uso do cipó estão intimamente ligadas à
aquisição de conhecimento. O mestre xamã lidera os ritos, sendo os poderes de ver e saber
essenciais para acompanhar os outros nos caminhos xamânicos. Conforme cita, “Os Siona
dizem que o xamã ‘dá as dicas com seus cânticos, e a gente vai vendo’ o ‘outro lado’:
suas cenas, sua beleza, suas cores, seus cheiros, seus ritmos e seus sons se tornam
realidade (LANGDON, 2004. p.72)”, com uma forte tradição oral, poética e performativa
que embelezam a experiência de contar e ouvir.
O autor considera ainda que a visão não se restringe ao domínio visual, mas se integra
aos outros sentidos gerando percepções auditivas (vozes, música, explosões), estéticas
(percepção do contato sobre o corpo), olfativas (odores intensos, que enjoam ou
agradam), percepções cruzadas (onde sons são vistos com cores, odores percebidos como
formas, um sabor de modo tátil), além de percepções “gerais” que incluem presenças boas
ou más, ambientes, atmosferas, etc.
Em suma, as substâncias psicoativas como a ayahuasca, aliadas aos cantos, às danças, aos
sonhos e a outras técnicas extáticas, atuam como modificadores do corpo e da mente,
amplificando a experiência sensível, abrindo caminho para viagens no tempo e no espaço
e permitindo a percepção de seres que habitam o mundo invisível, espiritual e verdadeiro.
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Para ampliar esse tópico, ver SHANON, Benny. A ayahuasca e o estudo da mente. In
LABATE&ARAUJO (Org.) O uso ritual da ayahuasca. São Paulo: FAPESP-Mercado de Letras, 2004,
onde o autor expõe sob o ponto de vista da psicologia cognitiva, complexos quadros com os conteúdos mais
frequentes nas visões da ayahuasca, além de oferecer subsídios teóricos acerca da consciência e das teorias
da mente no contexto da experiência visionária.
As reaparições das formas – percepção digital, arte eletrônica e experiência
visionária
Patrícia Arantes (2005) descreve uma série de instalações onde o corpo e convidado a
experimentar interagindo e transformando a obra de arte9. A pesquisadora elenca ainda
outras categorias ou desdobramentos da arte tecnológica, destacando os trabalhos onde a
experiência com a realidade virtual acontece por meio de interfaces imersivas em um
espaço tridimensional.
Diana Domingues (2003) aponta a experiência tecnológica como uma forma ritual de
atualizar os mitos explorando seus limites, “nos quais o mágico, o sensível, o inesperado,
o imprevisível, o efêmero, a autorregeneração alimentam o imaginário e o desejo humano
de sonhar (DOMIGUES, 2003. p.63) ” e afirma também uma aproximação possível entre
as formas de percepção de espaços virtuais em culturas arcaicas e a arte digital.
9
Ver Patrícia Arantes. Arte e Mídia. Perspectivas da estética digital. São Paulo: SENAC, 2005. p.p.68 e
seguintes.
10
Disponível em www.arteonline.arq.br/museu/ensaios/ensaiosantigos/diana.htm Acesso em 10/12/2014.
estados alterados da consciência (ASCOTT, 2003, p.247). É nos estados alterados da
consciência (também chamados de estados não ordinários de consciência), que operam
os indícios, os rastros de uma modalidade de experiência onde o presente se tece de
múltiplos passados.
Para um exercício analítico dos vestígios das experiências visionárias da ayahuasca nas
instalações já referidas, recorro a Aby Warburg, historiador da arte que se interessava
pelas práticas festivas do Renascimento e pelos rastros da Antiguidade que nelas
persistiam. Assim, partia do ponto de vista daquilo que dessa era sobrevivia nos atos, nos
gestos, nos objetos em movimento, nas formas, nos estilos e nos comportamentos. Suas
observações se orientavam para os deslocamentos no tempo que tais reaparições
realizavam, não em busca de sua “essência”, mas antes, de seus traços de exceção. Um
modelo cultural onde as sobrevivências, esses rastros fantasmais se “exprimiam por
extratos, blocos híbridos, rizomas, complexidades específicas, retornos frequentemente
inesperados e objetivos sempre frustrados (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.25) ”.
11
http://thecreatorsproject.vice.com/chris-milk/chris-milk Acesso em 10/01/15.
12
Submergence é uma matriz imersiva de 8064 LEDs suspensos por um campo de luz com sensores de
movimento que responde às ações e ilumina conforme as pessoas se movem através dele. A peça foi criada
por Anthony Rowe, Gaz Bushell, Chris Bennewith, Liam Birtles e Ollie Bown. Disponível em
http://www.thisiscolossal.com - Acesso em 12/fev/15.
13
http://www.squidsoup.org/blog Acesso em 20/jan/15.
Submergence. Instalação na galeria ROM, Oslo, 2013.
O trabalho combina música, o espaço físico e os mundos virtuais, criando espaços que
propõem envolvimento e interação na exploração do ambiente imersivo. Submergence foi
exibido pela primeira vez na Galeria ROM em Oslo, Noruega, em 2013, e sua proposta
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Disponível em http://vimeo.com/60665655 Acesso 20/jan/ 2015. Ver também:
http://photographyplayground.olympus.de/en/2014/09/01/squidsoupsubmergence.html?tag=artists
Considerações finais prévias
Meu objetivo ao produzir esse artigo foi o de explorar uma parte da bibliografia
disponível nos eixos do xamanismo, da experiência visionária da ayahuasca e dos regimes
de percepção da arte imersiva e assim tentar colocá-los em relação na construção de um
objeto de estudo viável na perspectiva da relação entre arte contemporânea e a cultura da
ayahuasca.