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ENTREVISTA / CARLOS NAVARRO

IMPRENSA EM QUESTÃO

Lembranças de uma pioneira no jornalismo baiano

Por Washington Fagner Abreu Ramos Amorim em 12/09/2011 na edição 659

Neste ano de 2011 comemoram-se 200 anos do jornalismo baiano. O surgimento do


jornal Idade D’ouro do Brasil, também chamado de Gazeta da Bahia, em 14 de maio de
1811, foi o marco no trabalho da imprensa. De lá para cá, inúmeros jornais foram
surgindo no estado, como Diário da Bahia (1856), Diário de Notícias(1875), Jornal da
Bahia (1853),A Tarde (1912), Jornal da Bahia (1958)e Correio da Bahia (1978). Mas
na comemoração deste bicentenário é importante lembrar de uma das mais importantes
jornalistas que a Bahia criou. Estou falando de Zilah Moreira, a primeira correspondente
mulher do jornal O Estado de S. Paulo na Bahia durante a ditadura militar e uma das
pioneiras no estado.
Zilah Moreira teve sua história marcada no jornalismo baiano devido aos constantes
embates com o, à época, prefeito de Salvador e, posteriormente, governador da Bahia
Antonio Carlos Magalhães. Zilah Moreira ainda fez a cobertura das mortes dos
guerrilheiros Carlos Marighella e Carlos Lamarca e foi uma das responsáveis pela
criação da primeira sucursal do O Estado de S. Paulo na Bahia. Para contar a história
desta jornalista, conversei com o também jornalista Carlos Navarro, que ingressou
no Estadão através de Zilah Moreira e que, por muito tempo, foi o chefe de redação da
sucursal baiana. Zilah Moreira faleceu em 25 de fevereiro de 2007, em decorrência de
uma infecção hospitalar, depois de uma cirurgia de correção do fêmur, aos 85 anos de
idade.
“Naquela época ainda existiam repórteres”
Como o senhor ingressou no jornalismo? Por que escolheu a profissão? Qual foi o
primeiro veículo?
Carlos Navarro– Eu faço jornalismo desde garoto. Com 14 anos de idade eu tinha um
programa de rádio,A Voz do Estudante, lá em Alagoinhas (108 Km de Salvador) e
pouco tempo depois me engajei em uma turma que editou uma revista local
chamada Revistinha Cometa. Já fazia política estudantil e me engajei na política
convencional. Fiz vestibular para jornalismo, passei e vim estudar em Salvador.
Simultaneamente, quando passei no vestibular, um amigo de Alagoinhas chamado Alan
Garcia, que já morreu, trabalhava no Jornal da Bahia e me levou para trabalhar lá.
O jornalismo era muito diferente naquela época?
C.N.– Era muito diferente. Naquela época ainda havia repórteres. O sujeito que recebe a
pauta e vai para a rua apurar, investigar e trazer a informação de volta a redação. É bem
diferente de hoje porque não havia computador, não havia internet. O repórter tinha que
ir pessoalmente, as entrevistas eram presenciais, o sistema telefônico era precário,
principalmente se fosse fora de Salvador, no interior do estado, por exemplo. Naquela
época, eu diria que ainda existiam repórteres, um sujeito que vai para a rua pedir
informação. Hoje, em qualquer redação, o sujeito recebe três, quatro pautas, na sua
mesa mesmo ele levanta, telefona, vai no Google e produz as suas matérias. Acho que
essas matérias são tão pasteurizadas, tão iguais em todos os jornais, em todos os blogs e
as fontes são praticamente as mesmas.
“Advogada, ela virou jornalista no Estadão”
O senhor era do Jornal da Bahia. O que o fez sair do jornal e ingressar no Estadão?
C.N.– É. Eu comecei no Jornal da Bahia, quando passei no vestibular em 1969 e um
ano e meio depois eu entrei no O Estado de S. Paulo justamente pelas mãos de Zilah
Moreira. Haviam alguns repórteres novos no Jornal da Bahia e quem mais se destacava
era eu e Mariluce Moura, uma moça que se mudou para São Paulo e era uma repórter
brilhante. E tinham pedido a Zilah um repórter para ajudá-la. Na época, ela era
correspondente do Estadão. Então, ela me contou depois que tinha eu e Mariluce e
aquele que chegasse primeiro na redação no dia que ela estava lá, que era um dia de
sábado, ela escolheria para fazer a entrevista com o Carlos Garcia que era o diretor da
sucursal de Recife. Isso no final de 1970. A Bahia, politicamente no jornal, pertencia a
Pernambuco que era a única sucursal que tinha no Nordeste. Normalmente todo
moleque faz farra na sexta-feira, especialmente em redação, e era um dia que eu nunca
chegava cedo. Mas, nesse dia quem se atrasou foi Mariluce e foi ai que Zilah me
escolheu. Ela me perguntou se eu queria conversar com o Garcia e foi assim que eu
entrei no Estadão.
E como Zilah Moreira ingressou no jornal?
C.N.– A história de Zilah é curiosa no jornalismo. O irmão dela era jornalista, chamado
Roschild Moreira. Trabalhava no jornal A Tarde e era correspondente do Estadão. Isso
nos anos 60, não me lembro muito bem. Talvez início dos anos 60. E o Roschild
morreu. Como tinha filhos pequenos, o jornal, para ajudar a família – porque naquela
época as pessoas não eram contratadas, eu mesmo só fui contratado quatro anos depois
de entrar no Estadão – e mantiveram Zilah até como maneira de ajudar as crianças até
elas atingirem a maioridade. O jornal era um jornal de família e não como é hoje, uma
empresa. Então as pessoas gostaram da Zilah e ela foi ficando. Zilah era advogada, não
era jornalista. Ela aprendeu na prática, pela tenacidade dela. Era muito despachada. Sem
nunca ter feito jornalismo, de repente começou a fazer matéria, cobrir esportes e assim
ela virou jornalista no Estadão. Naquele tempo, o jornal não tinha sucursal, não tinha
base aqui. Então ela se instalou no Jornal da Bahia, talvez pela ligação da família
Mesquita com João Falcão, não sei direito. E Zilah ficava lá porque naquele tempo você
passava as matérias por telefone, ou por rádio (Western) ou pelo telex. E o Jornal da
Bahia tinha o telex.
“Ela escrevia os textos à mão e o teletipista datilografava”
Tinha outras mulheres no jornalismo baiano naquela época? E no Estadão aqui na
Bahia, teve outras ou pode-se dizer que ela foi pioneira?
C.N.– Foi em 1969 que houve a regulação da profissão, com a nova legislação da
ditadura. Manteve aquelas pessoas que não tinham diploma, até porque aqui na Bahia os
jornalistas eram advogados, ou faziam filosofia. Então, com a regulamentação, os
jornais começaram a procurar estudantes de jornalismo. Nessa época, no Jornal da
Bahia, estavam todas estudando, Mariluce Moura, Ana Sampaio, Lúcia Ferreira.
Na Tribuna da Bahia havia pouquíssimas, uma ou duas mulheres, Evanice Santos e uma
morena que não me lembro o nome. Eram pouquíssimas.
É verdade que no início ela fazia reportagens de todas as editorias? Era fácil para ela?
C.N.– Olha, para outras mulheres talvez fosse difícil. Não para Zilah Moreira. Com a
desenvoltura dela, com a espirituosidade ela entrava em qualquer lugar. Para ela poderia
ser um estádio de futebol, um palácio do governo. Zilah era muito arisca. Falava muito,
procurava e investigava.
Até então ela era correspondente. Como e quando o Estadão decidiu implantar uma
sucursal de fato?
C.N.– Ficamos eu e Zilah até 1973 quando foi criada a sucursal. Criada a sucursal, veio
um diretor de São Paulo, o Cleonte Pereira de Oliveira, e aí nos começamos a produzir
matérias em um outro nível de trabalho que já não era mais correspondência. Éramos no
início três ou quatro repórteres. Passei a chefiar a reportagem e produzíamos cinco, seis
matérias por dia. Começamos primeiro ali no Edifício Bráulio Xavier, na frente da
Praça Castro Alves. Agora com a sucursal já funcionando, nessa época já trabalhava eu,
Pedro Formigle, Carlos Gonzáles, Fernando Escariz. Então, a sucursal ganhou um
dinamismo de redação. Nós tínhamos pautas discutidas, ou propostas por Salvador ou
propostas por São Paulo. E não tinha muito sentido estar Zilah neste corre-corre. Ela já
era uma senhora. Então ela ganhou uma sala, ficou na área administrativa, como chefe
da sucursal, e fazia as reportagens, mas no ritmo dela, tipo uma matéria especial, um
pedido de São Paulo e que não precisasse do corre-corre. Me lembro que no começo
Zilah nem datilografava. Ela escrevia os textos à mão para Simão Alves, que era o
teletipista, datilografar.
“O cara se suicidou com quatro tiros nas costas”
E como era a relação do jornal com a sucursal? Como eram enviadas as reportagens?
C.N.– O Estadão tinha uma coisa positiva. Respeitava o seu trabalho. Era conservador,
mas protegia o repórter dele. O jornal podia até não publicar a matéria, mas também não
alterava.
Ela participou diretamente ou indiretamente da cobertura das mortes de Carlos
Lamarca e Carlos Marighella?
C.N.– A morte de Marighella, eu não estava no jornal. Mas a morte de Lamarca, Zilah
cobriu também. Eu fui fazer para o Jornal da Bahia e Zilah foi comigo para o Estadão.
A cobertura da morte de Lamarca dividiu o Estadão. Dois repórteres foram para o local
onde ele tinha sido morto. E outro grupo ficou aqui. Eu estava no Jornal da Bahia nesta
época. E vi, cheguei a tocar no corpo de Lamarca no Nina Rodrigues. Além das marcas
de bala, ele tinha umas marcas em baixo, mas não era de balas, parecendo que enfiaram
o sabre nele. E aí o famoso Charles Pittex, um legista que colocava o charuto no dedão
do pé do defunto, disse que era bala. Eu me lembro que as pessoas que falaram disso fui
eu, Zilah e uma menina repórter do jornal O Globo e falamos que aquilo não era bala,
era marca de sabre. Charles Pittex confirmou. Mas, um agente de segurança disse para
gente que nós não tínhamos visto nada e que tudo aquilo ali era marca de bala. E
ninguém publicou nada, nem eu nem a menina do Globo, nem Zilah. E Zilah esteve ao
meu lado o tempo todo. O caso de Iara, mulher de Lamarca, é um caso que eu acabei
assistindo. Zilah chegou e me disse: “Aconteceu um tiroteio na Pituba, vai pra lá.” Eu
fui. E aí, duas coisas: primeiro ninguém sabia quem era Iara, eles não divulgavam,
fomos saber depois. Mas nesse dia teve um caso interessante: um cara foi morto com
quatro tiros nas costas e o coronel Luiz Arthur (chefe da Polícia Federal na Bahia) disse
que ele se matou, que se suicidou. Ai disse que o cara se matou com quatro tiros nas
costas. E nesse dia Iara morreu. Não podíamos entrar porque ela morreu no apartamento
e hoje fica a dúvida se ela se matou ou não, mas me parece que ela realmente se matou
para não se entregar. Nós voltamos para a redação. Invariavelmente, o coronel Luiz
Arthur chegava na redação com um papelzinho na mão dizendo assunto tal proibido e
ninguém podia dizer nada.
“Por muitos anos, Zilah foi minha chefe”
Ela é famosa também pelos conflitos com o ex-governador Antônio Carlos Magalhães?
Houve um tempo em que o próprio político pediu a cabeça de Zilah Moreira
no Estadão?
C.N.– Ela se destacou muito aqui quando ousou na ditadura “bater” em Antonio Carlos
Magalhães. Quando falo em bater é publicar matérias que não agradava Antonio Carlos.
Antonio Carlos, então, começou a persegui-la. Ele ainda prefeito, não era nem
governador. Quando eu entrei no Jornal da Bahia estava no início de uma briga com
Antonio Carlos. Antonio Carlos se desentendeu com João Carlos Teixeira Gomes e
começou a perseguir o Jornal da Bahia. Não chegou a fechar, mas quase destruiu o
jornal. No início, a redação tinha 35, 40 pessoas, ficaram seis ou oito. E Zilah,
possivelmente influenciada por esse clima de reação a Antonio Carlos, fez matérias que
não agradaram a ele, que ameaçou demiti-la. Naquele tempo, os Mesquitas tinham
pavor de Antonio Carlos. Já não estavam bem com a ditadura. O Estadão ajudou a fazer
o golpe de 64, mas logo depois rompeu devido à censura a imprensa. Zilah era tão
espirituosa que ia para as entrevistas coletivas e peitava Antonio Carlos. Isso deu-lhe
muita notoriedade, até porque o Estadão garantia e divulgava e foi exemplo para todo
mundo, com a coragem de encarar um poderoso e, ainda mais, na ditadura.
Eu soube que ela simpatizava muito com o ex-governador Roberto Santos. Mas ele não
foi governador indicado pelas Forças Armadas?
C.N.– Eu acho que Zilah não tinha ideologia política. Se fosse olhar por esse lado, ela
seria uma conservadora até porque ela era de uma família tradicional daqui, pelos
costumes, pela cultura dela, não tinha nada de revolucionária. Agora eu mesmo fui
amigo de Roberto Santos. O motivo era porque nós brigávamos com Antonio Carlos.
O jornal deixou de circular alguma vez, neste período?
C.N.– Não, nunca deixou de circular. O que acontecia era que se tinha uma matéria que
falava mal de Antonio Carlos, o malote que chegava aqui ou ele comprava tudo na mão
do distribuidor ou ele mandava apreender no aeroporto.
Como era sua relação com Zilah Moreira?
C.N.– Por muitos anos, Zilah foi minha chefe. Ela era a correspondente e eu era uma
espécie de repórter auxiliar, embora eu fosse jornalista e ela não. As coisas com São
Paulo todas eram tratadas com Zilah. Quando instalou a sucursal, Zilah meio que
chefiando a parte administrativa e eu chefiando a redação.
“Ela dirigia mal pra burro”
Por que ela saiu do jornal?
C.N.– Tenho impressão que Zilah se aposentou no início dos anos 80, porque em 88 nós
nos mudamos para o Max Center e Zilah já não estava mais conosco. Saiu para se
aposentar.
Para o senhor, qual a importância de Zilah Moreira para o jornalismo baiano?
C.N.– A vida e o trabalho distância as pessoas. Quando deixei o jornal, tive que sair de
Salvador porque aqui eu não podia trabalhar – Antonio Carlos não deixava. Boa parte
dos meus amigos estavam trabalhando no governo, mas mesmo assim eu não ia
conseguir nada. Fui para São Paulo fazer campanha política e só voltei para Salvador
em 2004 para a campanha de Nelson Pelegrino. Sou muito amigo do sobrinho dela,
Marquinhos Moreira. Conversávamos muito por telefone, mas de Zilah eu tinha só
notícias através de amigos em comum. Mas como Zilah já não andava mais nas
redações e eu vim para cá para fazer uma campanha, depois fui para a Prefeitura, fiquei
lá seis meses e saí para ir para o Tribunal de Justiça. Então eu fiquei um pouco afastado.
Mas claro que eu fui informado da morte dela, fui para o velório, fui para o enterro e
claro que entristeceu todo mundo.
Um caso interessante.
C.N.– Isso é um caso importante. Em 1965, o dr. Julio Mesquita veio aqui para
Salvador. Não sei se tinham preparado uma recepção para ele, mas foi Zilah que o foi
recebeu no aeroporto, com um fusquinha todo velho arrebentado. Ele circulou pela
Bahia, dispensou carro oficial que o governo botou à disposição com batedor e tudo e
saía só com Zilah no fusquinha dela. Luiz Viana era o governador. Então ele ia com
Zilah para as reuniões com Luiz Viana. Estava recém-inaugurado o Hotel da Bahia. E
Zilah dirigia mal pra burro, era barbeira.
*** [Washington Fagner Abreu Ramos Amorim é jornalista, Salvador, BA]

Fonte:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_lembrancas_de_uma_pioneira_
no_jornalismo_baiano

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