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Curso: Filosofia Política:A cultura Pela cultura

Aluna : Elsa Ponce

Do Trauma à Utopia: As Loucas Da Praça De Maio

Na longa história da resistência contra a ditadura argentina entre 1976 e 1982, a figura
das Mães da Praça de Maio ocupa no imaginário social um espaço que abre inúmeras
discussões acerca de como tem sido possível a elaboração do duelo pela perda dos filhos
e sua transformação em projeto político tal como elas mesmas definem sua experiência.
Na sua trajetória se adverte tanto um agir no marco da decisão e da racionalidade que
assegura um corte com a vivência traumática da perda dos filhos, quanto uma grande
dose de loucura que habilita seu caráter utópico.
As primeiras reações coletivas ao desaparecimento dos filhos durante a ditadura são a
paralisia e o medo de iniciar uma indagação sobre o acontecido, produzindo-se
imprecisões valorativas, dúvidas ou contradições. O passo seguinte tem sido a quebra do
silêncio e a tentativa desesperada de busca de informação sobre o paradeiro dos
seqüestrados, depositando confiança nas instituições e autoridades através das primeiras
explicações que lhes foram dadas.
Um dos relatos lembra hoje: "Nosotras golpeábamos todas las puertas, nos
encontrábamos en el Ministerio del Interior, algunas en la Policía, algunas en la
calle, algunas en la desesperación de ir a la cárcel a ver si estaban nuestros hijos.”1
Até transcorridos alguns meses depois das primeiras desaparições, os familiares dos
detidos – desaparecidos, embora se encontrassem cotidianamente nas mesmas
dependências policiais, militares, judiciais e eclesiais, seguiam a rotina de apresentar
hábeas corpus individuais, entrevistar – se com autoridades, apelar a contatos políticos
que influenciassem nos âmbitos que poderiam oferecer informações. Trata-se de uma
instância em que a racionalidade orienta as atitudes dos indivíduos frente ao regime
vigente e no qual o agir segue o molde dos desejos e das crenças.
Mas a intimidade que criava circular pelos mesmos espaços reclamando pelos filhos
abriu particularmente entre as mães a troca de informações que recebiam, socializando
desde as opiniões mais ingênuas até as mais céticas. A maioria destas mulheres não
passava de simples donas-de-casa que desconheciam detalhes das vidas dos seus filhos e
que por isso mesmo alegaram continuamente ‘inocência’ ante as autoridades militares, a
família e a opinião pública nos primeiros momentos, assumindo assim o discurso da
ditadura de ‘culpabilidade’ dos detidos-desaparecidos.
Desde meados dos anos 70 se assistia no país a uma campanha da Junta militar cujo
eixo era ‘por algo será’, em referência a que havia um ‘envolvimento dos detidos com
atividades subversivas’, o que teria legitimado a prisão. Enquanto a ditadura
argumentava que o ‘estado caótico do país’ devia ser disciplinado e que os ‘subversivos
apátridas’ eram seus responsáveis, se aplicava um extenso programa de punição sobre
as organizações políticas, sindicais, sociais, artísticas e intelectuais, alcançando a

1
Hebe de Bonafini- presidenta da Asociación Madres de Plaza de Mayo
cidadania para que não participasse de experiências coletivas mas que pudesse
questionar a legitimidade do regime de alguma forma.2
Uma das primeiras atitudes chamativas do comportamento destas mulheres teve lugar
em 1978. Contrariando o clima geral do país na época, enquanto a maioria da cidadania
argentina festejava que suas principais capitais fossem sedes do Mundial de futebol e
que a seleção nacional estivesse se aproximando da conquista da copa, as Mães, durante
o mês do campeonato, intensificaram suas atividades. Calculando que a imprensa estaria
atenta a mostrar qualquer particularidade do cotidiano, organizaram uma concentração
com cartazes que continham os nomes, fotos e datas do desaparecimento dos seus
filhos.3
Quando se intensificara o agir repressivo, em 1979, começaram a se reunir sob a
denominação Madres de la Plaza de Mayo, já que era neste local onde se davam
citamarcavam encontro, semanalmente, em meio ado toque de recolher imposto pela
Junta Militar. Do respeito às regras e aos discursos oficiais sobre a detenção, nem
sempre admitida pelos militares, as Mães passaram a questioná-los, o que se
intensificava na medida em que os encontros e as ações de busca e reclamo se
incrementaram. Nesse momento começaram a ser espionadas pelas forças policiais cuja
percepção abriu a deliberação sobre como continuar se organizando.
Dita atitude coincide com respostas institucionais cada vez mais contraditórias, o que
criou espaço para a dúvida sobre o verdadeiro destino dos detidos, produzindo-se então
um primeiro ‘corte’ com a conformidade das explicações recebidas nos primeiros
momentos já que: “Y un día, estando en la Iglesia de los asesinos, la de Stella Maris,
que es la iglesia de la Marina, donde íbamos a ver a Mons. Gracelli, Azucena dijo
que ya basta, que no se podía estar más ahí, que ya no conseguíamos nada, que por
qué no íbamos a la plaza y hacíamos una carta para pedir audiencia y que nos
dijeran qué había pasado con nuestros hijos..."4
É neste momento que a vivência do assédio policial é assumida com duas atitudes que
combinam precisamente a irracionalidade e o cálculo. As Mães começaram a se
encontrar em lugares até então impensáveis, nas praças e lugares públicos, devido à
proibição da Junta de qualquer atividade coletiva. Simulando conversar de futilidades se
davam cita em pequenos grupos e trocavam informações sobre as quais cada uma ia
obtendo novas pistas. Surgem nesse momento as primeiras detenções delas e a reação é:
“O vamos todas o no va ninguna”, obrigando aos policiais a detê-las todas juntas,
quebrando a lógica dos militares de decidir quem deve ser suspeito e quem deve ser
culpado.
Uma vez liberada uma ou algumas delas, o resto continuava nas celas exigindo ser
libertadas todas de uma vez. O mesmo acontecia ao exigirem-se documentos de uma,
todas apresentavam os seus ao mesmo tempo, numa tentativa de atrapalhar a rotina
policial. Este procedimento, incessante desde o início da organização das Mães,
despertou paulatinamente a preocupação das forças policiais. Em conseqüência outra
prática que passou a ser freqüente entre elas foi o diálogo em código, cientes de serem

2
Denominado Proceso de Re- organización Nacional, o aparelho de persecução e tortura desde o Estado
argentino, agia em duas esferas: uma visível, personificada em instituições diversas particularmente
administradas pelas forças armadas e policiais que generalizou o presídio político e o exílio de centos de
cidadãos e outra, clandestina que instituiu a figura da ‘desaparição forçada de pessoas’, sua tortura e
extermínio
3
Repórteres holandeses foram os primeiros a mostrar para o mundo essas imagens, com o que o nome da
ditadura argentina e a situação da desaparição de pessoas transcendeu internacionalmente pela primeira
vez. Pouco depois as Mães receberam os primeiros convites europeus para difundir seus reclamos.
4
Hebe de Bonafini
seguidas permanentemente, chegando a usar inclusive, em algumas ocasiões, disfarces.
Isto não impediu que acontecesse o que afetaria o diagnóstico mesmo delas sobre a
ditadura, a chamada ‘infiltração’ de militares na organização, com figuras que obteriam
informação sobre suas atividades.
A decisão sobre a relação entre meios e fins passou a se combinar então com o uso de
recursos que poderiam se definir como irracionais, já que desafiavam a lógica coletiva
de medo e submissão. Talvez o episódio que mais ilustra este traço é o acontecido em
1980 na Casa de Governo, quando as Mães esperavam a presença do embaixador norte-
americano Cyirus Vance, que se encontraria com a Junta Militar como conseqüência da
repercussão do informe da Comissão Interamericana de Direitos Humanos publicado
meses antes contendo alguns dados sobre a violação aos direitos humanos no país. As
mulheres, não autorizadas a permanecer no prédio, foram ameaçadas de expulsão pelos
guardas e devido à insistência delas os policiais receberam a ordem de ameaçá-las. Eles
foram colocados em posição de disparo, elas amarradas (? Pelos policiais? Ou se ataram
elas próprias?) às colunas do pátio do prédio, gritaram ao em uníssono ‘Fuego’!! para
estupor da guarda. O fato deteve os policiais surpresos. Irrompia assim a loucura como
ingrediente que quebra o marco de previsões dos agentes e se configura um quadro de
caracteres da organização que vai adquirindo um distintivo utópico na medida que o
desafio aos poderes da ditadura se questionam através das ações.
Frente à alternativa de ficar em casa e confiar nas informações e enganos das forças
armadas ou denunciar a repressão, as Mães escolheram o caminho de arriscar a própria
vida mediante a publicidade dos crimes e torturas. Era um salto à loucura no contexto de
crescente extermínio de pessoas que o regime levara adiante, tanto que em 1977 três das
fundadoras da organização foram seqüestradas. Longe de se amedrontar, as Mães
desenvolveram nos seus discursos a tese de que eram perigosas para o regime.
O que mediava entre o cálculo e a loucura era uma inusitada criatividade que conseguia
chamar a atenção dos setores aos quais ainda não tinha causado impacto a propaganda
da Junta Militar.
Essa bipolaridade do agir foi se consolidando nos usos simbólicos que as Mães
desenvolviam. Assim, o distintivo de suas cabeças não é na verdade um lençol, mas
senão uma referência material aos seus filhos. Em 1977 as mulheres decidem participar
da grande peregrinação à catedral basílica de Lujan, fato que anualmente reúne fiéis
católicos de todo o país e muitos membros da hierarquia eclesiástica argentina. A idéia
era estarem presentes na celebração final e mostrar suas consignas aos assistentes e à
cúpula da igreja, pedindo uma tomada de posição. Devido à multidão que assistiria, se
fazia impossível ser identificadas como um coletivo, foi então quando decidiram que
todas iriam com uma fralda dos seus filhos na cabeça. Nasce assim o que seria até o
presente a distinção não apenas icônica das Mães senão o que elas mesmas definem
como ‘ la muestra de que nuestros hijos nos parieron’. Sobre aquela iniciativa
afirmam alguns anos depois: “En esa ocasión queríamos que la Iglesia nos viese y
nos escuchara, y que la multitud que iba a Luján, supiera de nuestro reclamo”.
Com efeito, a sua presença chamou a atenção e foi difundida em alguns meios
jornalísticos até vários dias após.
A consigna central: ‘Aparición Com Vida’ começou a ser reconhecida na época por
quase todo o arco político, ainda que clandestino. Nessa direção algumas entidades,
muitas das quais tinham militantes presos ou desaparecidos, começaram a se solidarizar
com a tarefa de denúncia das Mães. Com isso o contexto de terror e violência
generalizada ficava desafiado. Os primeiros passos utópicos estavam sendo dados.
O agir das Mães ia se tornando eficaz na medida que a deliberação mediava entre o
cálculo e a irracionalidade, o que lhes permitiu obter seu próprio arquivo dos centros
clandestinos de detenção, seus responsáveis e cúmplices, abrindo uma ruptura com o
principal controle da ditadura: a informação.
De maneira que no momento de avaliar a diferença de estratégias seguidas a respeito de
outras entidades defensoras de direitos humanos, as Mães consideram: “mucha gente se
pregunta por qué habiendo otros organismos las Madres fuimos a la Plaza y por
qué nos sentíamos tan bien allí. Y esto es una cosa que la pensamos ahora, no la
pensábamos entonces . Y cuánto más hablo con otra gente que sabe más que
nosotros, más nos damos cuenta de por qué se crearon las Madres. Y... nos
creamos porque en los otros organismos no nos sentíamos bien cerca, había
siempre un escritorio de por medio, había siempre una cosa más burocrática, y en
la Plaza éramos todas iguales. Ese ‘¿qué te pasó?’’¿cómo fue?’. Eramos una igual
a la otra, a todas nos habían llevado los hijos, a todas nos pasaba lo mismo,
habíamos ido a los mismos lugares y era como que no había ningún tipo de
diferencia, ningún distanciamiento. Por eso es que nos sentíamos bien por eso es
que la plaza agrupó, consolidó".5
O elo que as unia então era não só a dor comum dos filhos desaparecidos senão o afeito
como vínculo primário que as diferenciaria de outros agentes embarcados na mesma
causa.
Se o estado de coisas implementado pela ditadura tinha aberto a busca incessante dos
desaparecidos, o passo seguinte foi saber por que eles tinham sido vítimas de
perseguição. Isso deparou a maioria das Mães com uma história oculta: a da militância
dos jovens filhos em organizações diversas, partidos políticos, sindicatos, entidades de
igreja da teologia da libertação, etc. Entravam assim numa fase que as confrontaria com
uma parte da verdade sobre a ditadura que na sua maioria ignoravam ou nem
suspeitavam.
Essa instância as obrigou a tomar posição sobre o conceito de ‘culpabilidade’ com que a
ditadura justificava seus procedimentos e a aderir ou se distanciar dos postulados das
organizações às quais a maioria dos jovens desaparecidos pertenciam. Foi um outro
estágio da politização que as depararia com o juízo da cidadania sobre a reivindicação
das atividades e princípios políticos que seus filhos professaram.
De maneira que a tarefa das Mães passou de ser a denúncia da repressão militar para o
assinalamento das razões pelas quais ela tinha se implantado no país. Passaram a
afirmar publicamente ‘mi hijo era inocente’, a enfatizar ‘nuestros hijos eran
revolucionarios’. Do choro e o sofrimento individual à defesa coletiva de toda uma
geração que tinha se envolvido com projetos políticos, antecipando com isso a posta em
suspeita dos poderes do Estado. Passaram enfim, do reclamo silencioso mediante
recursos judiciais e apelos a tramites pessoais para a denúncia internacional do
genocídio no país.
Na medida que as ações das Mães deixaram de ser meramente defensivas de sua
integridade física frente aos militares para formular táticas de investigação sobre o
terrorismo de Estado, elas assumem um papel utópico que lhes permite projetar no
futuro os possíveis efeitos de sua ação. Nessa direção, as análises de conjuntura política
que fizeram as colocaram em posições, na época, controversas. Assim por exemplo,
durante a guerra das Malvinas, frente à qual argumentaram que era mais uma tentativa
da ditadura de ganhar a simpatia da população e criar uma cortina de fumaça sobre os

5
Idem anterior
extermínios e atrocidades do regime, o que deu curso a duras condenações da maioria
dos setores da população e dos partidos políticos.
Retomando a descrição das táticas contra os militares o relato diz: "cuando nos
detenian rezábamos y entre rezo y rezo les deciamos asesinos. Como tienen tanto
respeto a la religión, se paralizaban". Se havia lacunas de indeterminação na decisão,
elas eram preenchidas com recursos que lidavam com o imaginário coletivo e
desconstruíam seus valores mais prezados ao denunciar suas incoerências e
contradições.
De maneira que o caráter utópico do agir das Mães foi se formulando a partir dos
interstícios do poder da ditadura alcançando efeitos naquele momento não esperados,
mas que atingiam sua legitimidade, já que as reações defensivas se incrementaram.
Entre um passado que motivava para agir e um futuro ao mesmo tempo incerto, as Mães
ocuparam os resquícios do poder instituído e criaram uma lógica que lhes permitiu
confrontar a ordem dominante, superando com isso os impasses no agir coletivo que a
maioria da sociedade tinha internalizado.
É a promessa de um futuro menos incerto então o que alimenta o caráter utópico das
Mães, fundado na certeza de que o passado não deve se repetir ou ao dizer de Eagleton:
“Como Walter Benjamim sabia, não são os sonhos com os seus netos vivendo em
liberdade que estimulam os homens e mulheres à revolta, mas a memória de seus
ancestrais escravizados”.
Em 1980 começaram as diferenciações discursivas a respeito dos outros organismos de
direitos humanos e com isso as distinções das Mães sobre os caminhos a seguir foram
bem marcantes. Enquanto a maioria deles afirmava que os desaparecidos na verdade
estavam todos mortos, as Mães mantiveram a consigna de ‘Com Vida los Llevaron,
Con Vida los Queremos’ argumentando que exigir aparição com vida implicava não
conceder à ditadura a aceitação resignada da morte, e sim abrir para o Estado a
possibilidade de guardar silêncio sobre o genocídio.
Toda essa distinção deu lugar a uma série de campanhas tendentes a visibilizar mais
ainda os seus reclamos, como a que organizaram em torno da pergunta: "¿Sabe Usted
Dónde Están Los Desaparecidos?” O como a que nos dias finais da ditadura consistiu
duma exposição de silhuetas de militares contendo nomes, apelidos e cargos que
ocuparam durante a ditadura.
As Mães ganhavam assim a cena política nacional e em grande medida sua luta obrigou
a transição democrática a deliberar o que fazer a respeito dos militares. Houve, com
efeito, um julgamento das suas cúpulas, que elas denunciaram como uma estratégia que
não desvelaria a verdade do acontecido e que não daria a pena merecida aos
responsáveis pelos crimes cometidos.
Um fato narrado há alguns anos por Hebe de Bonafini neste sentido, ilustra como os
juizes estavam interessados em ‘despolitizar’ o processo. Convidada para assistir, junto
com outros militantes de organismos de direitos humanos, mas com a condição de que
não usassem distintivos, ela entrou com seu lenço branco como é de rigor entre as Mães
em qualquer circunstância pública e o presidente do tribunal mandou tirá-lo. Ela
obedeceu, mas logo tirou outro debaixo da sua saia e colocou na sua cabeça. Um
policial lhe quitoulho retirou novamente e ela continuou tirando da saia outro e assim
sucessivamente até conseguir cansar o guarda e fazê-lo desistir do seu propósito.
Outra campanha importante do coletivo foi a das 30.000 silhuetas brancas de tamanho
humano que simbolizavam os 30.000 desaparecidos e que colaram pela cidade de
Buenos Aires. E outra que fizeram depois de que a junta militar se auto anistiara em
1983, que também cobriu as principais ruas da capital com silhuetas de mãos e a
consigna “Dále Una Mano A Los Desaparecidos’ na qual a população assinou chegando
a um milhão de firmas assinaturas, que ocuparam a principal avenida da capital federal.
Em outra oportunidade, organizaram a Marcha das máscaras em frente à sede do Poder
Judiciário federal em protesto pela negação deste a assumir o julgamento das juntas que
governaram durante a ditadura.
Uma mobilização que se realiza desde os anos de chumbo por iniciativa das Mães é a
denominada Marcha da Resistência, que se iniciara como vigília de 24 horas em 1981,
um dia em que trocaram três ditadores, como elas mesmas lembram, e que se pode
afirmar que é a primeira mobilização coletiva durante o longo período ditatorial. Na
oportunidade as mulheres também realizaram um jejum para exigir o fim da ditadura.
Assim pois, no mês de dezembro de cada ano essa marcha se repete na própria Praça de
Maio onde semanalmente elas fazem a chamada ‘Ronda de los Jueves’, em que
oferecem o material que produzem, lêem-se adesões a sua luta, denúncias sobre a
situação política do país, concluindo com um discurso de alguma das militantes
focalizando a notícia mais relevante da semana no nível nacional e internacional e
pronunciando seu posicionamento frente a ela.
Finalizada a ditadura, a primeira medida do governo da transição foi a promoção da
exumação de cadáveres com o objetivo induzir a que as famílias declarassem finalmente
a morte dos seus parentes e se encerrassem os casos. As Mães argumentaram na ocasião
‘No daremos el tiro de gracia a nuestros hijos’, e ‘no daremos por legitimado el
asesinato’, com o que se abriu uma brecha com o resto da militância pela causa dos
direitos humanos.
As Mães denunciaram que se tratava de uma vileza da Junta Militar para que os
familiares se conformassem e que pelo contrário, se devia reconhecer o inimigo,
identificar seus cúmplices, seus mecanismos, e desvendar seus objetivos.
Como se explica a decisão da recusa a recuperar os corpos dos filhos? Acho que a
energia utópica das Mães consiste numa reflexividade que as coloca por fora das
representações sobre a dor e a morte precisamente a partir da experiência de ter
compreendido os fundamentos do terrorismo de Estado. Na recusa à individualização da
desaparição e sua imolação há uma politização do sofrimento que é distintiva destas
mulheres.
No contexto de mudanças da transição democrática argentina e a abertura do julgamento
das juntas militares, a maioria dos partidos políticos e organismos defensores de direitos
humanos passou a afirmar que o eixo da mobilização deixava de ser o reclamo pelos
desaparecidos, mortos e exilados durante o chamado ‘processo de reorganização
nacional’ e que tinha chegado o momento de confiar na democracia. As Mães não só se
opuseram a este diagnóstico senão que ficaram isoladas com seu discurso, mobilizações
e práticas.
A coerência interna do agir vai então assinalando o rumo da trajetória do coletivo Mães
da Praça de Maio, que o manteria até o presente sob uma apologia do ‘impossível’, já
que à negação da aceitação de exumação de cadáveres as Mães agregaram sua oposição
a um recurso que também se generalizara desde os anos 80: as homenagens em
instituições públicas aos desaparecidos argumentando que se trata de âmbitos que
formam parte do Estado que executou o terrorismo ou que foram seus cúmplices.
O indicado explica também que parte das suas investigações sobre o aparelho de terror
fosse dirigida ao reconhecimento das instituições que consentiram a tortura e a morte. E
foram as Mães precisamente as primeiras a denunciar que a igreja católica argentina
teve, majoritariamente, alguma participação no dia-a-dia das práticas repressivas. Um
protesto realizado pelas Mães em 9 de julho de 1990 na Catedral Basílica de Buenos
Aires mostra esta radicalidade no questionamento à instituição. Na data, aniversário da
independência nacional, a cúpula católica argentina se congrega junto às autoridades
civis e militares para comemorar o fato em torno a um solene te-déum. As mulheres,
concentradas no átrio, ante cada alocução do cardeal que presidia a cerimônia,
respondiam: "No Matarás", "No Violarás", "No Robarás". O caráter utópico das
Mães aqui consiste em dessacralizar o espaço sagrado e preencher o discurso teológico
com fatos políticos. Este episódio se repetiria, por exemplo, na véspera de 9 de julho de
1996, em que as Mães ocuparam o interior da catedral para esperar o início do te-déum
do dia seguinte, em que pretendiam denunciar os nomes de bispos e sacerdotes que
tinham participado dando apoio aos torturadores ou mesmo entrando nos campos de
concentração para persuadir os detentos a ‘confessar’.6
Outra decisão que distinguiu as Mães de outros agentes frente ao debate argentino pós-
ditadura foi sua oposição a receber reparação econômica pelas desaparições, afirmando
que ‘la sangre de sus hijos no se negocia’, diferenciando-se novamente do resto dos
setores afetados pela repressão e que reclamavam justiça. Já nos finais dos anos 80 isto
se reafirmaria com um discurso público em que denunciavam a continuidade política
entre ditadura e democracia argumentando que a impunidade para o genocídio formava
parte de um acordo entre setores de poder interessados em manter um mesmo modelo
econômico e social no país. Todas estas definições se mantiveram até o presente e se
resumem na consigna ‘Ni olvido Ni Perdón’, mesmo porque entre 1989 e 1994 o
Estado consolidou a impunidade mediante leis e decretos e libertou as cúpulas da Junta
militar que cumpriam condenação.
Mas da denúncia do autoritarismo e da fragilidade democrática para puní-lo, as Mães
passaram a um reclamo mais amplo que ‘Aparição com Vida e Castigo aos
Culpadosáveis’, já que desde os anos 90 declamam ser partidárias de ‘Socialismo ou
Barbárie’. A isto devemos agregar o desenvolvimento de inúmeras experiências de
difusão, cultura, formação política de militantes sociais, campanhas solidárias com
entidades e figuras que lutam pelos direitos humanos no mundo e etc. Contam
atualmente com uma forte organização que desenvolve permanentemente atividades no
país e no mundo.
Diremos então que a primeira condição da utopia que se reconhece nas Mães é uma alça
imaginativa que permite detectar os interstícios de uma ordem de coisas para agir
diferenciadamente, ou o que Ernst Bloch denominara ‘sonhar despertos’. Dito fermento
imaginativo habilita um giro na percepção do mundo vivenciado como trauma a partir
da violência, torcendo seu rumo mediante a socialização da dor para um horizonte onde
os sujeitos trocam a insegurança do ‘sofrer só’ pela ‘energia de um nós’.
O que orienta o rumo utópico das Mães não é apenas a necessidade de projetar a dor em
outros contextos senão mas uma criatividade dirigida a desconstruir o desejo (??), de
reencontrar com vida os filhos, com o que a estimativa do cálculo se combina, se
recobre de uma grande dose de irracionalidade no percurso do seu agir.
Penso na distinção de Bloch novamente. Entre os sonhos que não chegam a nenhuma
parte e os sonhos que tem razão há um terceiro tipo, as tendências, que ocupam o lugar
de mediação entre o real e o impossível. Acho interessante nos aproximarmos dessa
possibilidade ao falar das Mães em termos duma contínua interseção entre o que é e o
que não existe.

6
Mas nessa noite o vigário pede a intervenção de um juiz e são desalojadas violentamente pelas forças
policiais. A coletiva de imprensa por elas dada para denunciar o fato abriu com a pergunta: De Quién es
la Catedral?
O primeiro é a existência inexorável do terrorismo de Estado e sobre o qual há uma
linha explicativa dominante, mas sobre o qual se ergue o segundo mediante uma re-
interpretação sempre criativa em termos discursivos e empíricos por parte das Mães,
talvez resumida no dizer: "...y vino um milico diciendo bueno, acá no se puede, hay
estado de sitio, no pueden estar acá sentadas, esto ya es una reunión, marchen,
caminen", y empezó a golpear con las manos y con los palos... y la policía nos hizo
caminar, nosotras no pensábamos marchar”.
O questionamento ao sistema político por elas encarnado opera então como uma
racionalidade extrema munida dum compêndio de informação rigoroso ensamblado com
práticas de mobilização e protesto que apelam a formas imprevisíveis, conseguindo
então inovar a credibilidade na política como intervenção sobre o mundo.
O caráter utópico das Mães consiste na possibilidade de atualizar uma idéia de política
que na verdade vem do miolo da modernidade, pois acha no interior da frustração um
princípio universal como força motriz para traçar sua vida. A passagem do trauma à
dialética é possível porque a experiência do martírio mostrou-lhes que se fixar nele
significaria uma continuação silenciosa da dor, e que sua reparação apenas teria caráter
simbólico.
Os vinte anos de existência das Locas da Praça vão num rumo que des-certifica o
diagnóstico de que não há paradigmas novos no cenário ocidental e traduz o que
William James chamara de ‘vontade de crer’.
A história das Mães é o desenvolvimento dessa vontade que se projeta numa outra
gestão da cidadania enquanto reapropriação do espaço público pelas mulheres,
decididas a relegar a um segundo plano seus papéis tradicionais, irrigando assim com
outro conceito de feminilidade a cultura política argentina.7 Não é a igualdade da
mulher com o homem o centro das suas reivindicações, senão a de ‘justiça para todos’,
trasvasando a tônica dominante dos movimentos populares e partidos políticos que
apelam ao discurso feminista para definir sua participação na mobilização coletiva.
Para as Mães o mundo é o ‘lugar onde sempre é possível criar poder e aportar na
tomada de consciência sobre a realidade em que vivemos’, por isso seu potencial
utópico não é a proclama do ‘não é possível’ ou do esgotamento da utopia como
imaginava Baudelaire. Neste sentido o discurso delas é mais antimoderno pois se
distancia da idéia de ‘o mundo sonhado’ pelo qual se esperara sempre.
O que atravessa o ideário das Mães, juntando o cálculo e a loucura, é um ‘estar sendo’,
uma espécie de propedêutica que se alimenta de arte, história, testemunhos sobre a vida
e a morte no sistema capitalista, que as faz se constituir em interlocutoras de diversos
atores na cena política, e não só argentina.
Mas talvez o signo mais originário das Loucas da Praça seja a intensa relação que
conseguiram estabelecer com a juventude, com quem nos últimos anos desenvolveram
diversas experiências. O que mais integra essa é a recentemente criada Universidad
Popular Madres de Plaza de Mayo, destinada à formação política dos jovens argentinos,
recriando acaso os laços maternos perdidos com a desaparição dos filhos, mas também
prenchendo-os de novos conteúdos alimentados com a experiência coletiva dos últimos
vinte e quatro anos.
Não são apenas as tensões da sociedade o que nutre o mundo imaginado das Mães, é
também uma postura estética, no sentido do resgate contínuo daquilo que há de mais
inovador na cultura. Basta ver como elas, através das suas oficinas de arte, animam o
encontro de olhares diferentes sobre a realidade. E basta também revisar a extensa
7
As Mães costumam dizer que seus filhos as deixaram ‘grávidas para sempre’ para explicar sua
continuidade na cena política
literatura por elas e sobre elas produzida, que dá conta da audácia para falar com o
mundo mediante um estilo comunicativo também recuperado do baú da cultura: a
palavra escrita sob a forma de cartas. Desde os presos políticos do mundo inteiro até as
mulheres iranianas, passando pelas crianças moradoras de rua, sem-terra,
desempregados etc., cada semana o destinatário é um ‘que pode ser nosso filho’, dizem,
convertendo-se assim talvez nas utopus mais visíveis da história contemporânea.
Há nelas juramento sagrado de fazer justiça e um inquérito permanente sobre toda
história argentina equacionados com o desprezo pelos vícios de poder da política
institucional, mas também um visível sentido da alegria pela escolha feita. Quer dizer,
são artífices dum mundo desejado e outro que se faz invertendo os valores consolidados
no imaginário.
Contra os cânones da psiquiatria possivelmente, diremos que a loucura das Mães não
paralisa, senão que dissolve a angústia no agir coletivo, atualizando assim parte da
função política da melancolia que achou na deliberação o canto primordial onde se
teceram os primeiros sinais de esperança.
Com elas o passado se reverte, não é mais o drama individual das famílias dos
desaparecidos nem a reivindicação da esquerda que quer um mundo diferente, para
mencionar só dois argumentos freqüentes sobre sua continuidade na cena depois de duas
décadas. Não é um salto à outra representação do político senão o desenvolvimento de
uma intuição sobre a política que promovem, ou como elas mesmas afirmam
insistentemente, ‘pondo o corpo’ no dia-a-dia da vida social, fato extraordinário
tratando-se de mulheres que começaram sua militância após os cinqüenta anos e que na
sua maioria hoje tem mais de setenta anos.
Talvez as Mães, ao fazerem o caminho inverso dos seus filhos, isto é, ao passarem da
prática para a reflexividade, do agir ao discurso, atualizam o mito da caverna platônica,
em que o olhar passa da opacidade à transparência, podendo elaborar novas e fecundas
definições da sociedade. Conseguem, enfim, superar a melancolia como patologia que
envolveu a grande parte dos atores políticos argentinos nas ultimas décadas.
Dir-se-ia que as Mães não se inscrevem nem entre os utopianos românticos que
inspiraram muitos dos movimentos sociais contemporâneos sempre anelantes dum
mundo perdido com a era capitalista, nem entre os utopianos iluministas, confiantes na
razão e na técnica como salvo-condutos da humanidade. A delas é uma condição
utópica que acha na revisão da própria prática a fonte explicativa dos seus horizontes, e
cuja rebeldia nas formas em que se expressam as situa entre as poucas corsárias em
tempos de crise da política, se esta pode ser entendida como arte de cavalgar em busca
dum mundo melhor.
Sublinho que a reivindicação do caráter utópico das Mães não se sustenta na sua adesão
a um modelo político ou seu discurso contra a ordem democrática, senão na
desmistificação das relações sociais e a subversão das formas tradicionais de protesto.
O signo utópico das Loucas da Praça de Maio, enfim, é a politização da maternidade e
sua visibilidade no espaço público, que não se abandona por acreditar que só nele se
constrói um outro país.

Boa a idéia de ver a fecundidade da loucura no agir político. Com efeito, é justamente a
loucura que as capacita a intervir ali onde qualquer mínima racionalidade ensina que o
mais prudente é calar-se, é ouvir as respostas da ditadura etc. O que aqui chamo de
“qualquer mínima racionalidade” é a idéia básica hobbesiana de que preservar a própria
vida é um núcleo da razão. Vc, com efeito, mostra a fecundidade da loucura, fazendo
que elas ocupem o espaço público. Mas penso que:
1) vc poderia mostrar que – num momento em que essa racionalidade dita o
silêncio da sociedade – somente a experiência da maternidade e do vínculo que
ela cria para a mulher permite arrebentar com os cálculos. Essa ênfase na
maternidade não está devidamente marcada, tanto que uma frase-chave (nossos
filhos nos deixaram grávidas para sempre) fica em rodapé e não é, ela própria,
analisada;
2) há no seu trabalho um pressuposto de que do trauma à dialética ocorre um
avanço, uma evolução, um progresso. Isso cria um subtexto que diz: elas eram
donas de casa, simples, não tinham consciência política – mas a foram
alcançando, a ponto de chegarem ao socialismo. – Ora, tenho sérias dúvidas
quanto a essa “evolução”. Primeiro, a força delas esteve em algo irredutível,
portanto não passível de dialética ( a dialética sempre efetua uma redução,
uma dissolução das dores insuperáveis, marcadas, enfatizadas. Seria bom vc ver
Gerard Lebrun, O avesso da dialética, cap. A dialética pacificadora). A dialética
ensinaria a elas paciência, que foi justamente o que não tiveram! E foi por não
serem dialéticas que elas agiram. Aqui, a suposta evolução mataria a ação delas.
– Desse ponto de vista, as análises sobre o caráter irredutível de crimes contra os
nazistas, efetuadas por Adorno, Arendt e outros são talvez mais pertinentes do
que a idéia de que, daí, elas ascenderam ao socialismo. Até porque, com todo o
respeito à generosidade dos assassinados pela ditadura, em muitos casos o que
eles defendiam era também autoritário. Nesse sentido, as mães foram além dos
próprios filhos. Ao teimarem em questões muito precisas, ao tomarem posições
em função disso, elas foram além das avaliações políticas que os atores fizeram
ao longo de pelo menos 20 anos: como, aliás, vc mostra ao elas ficarem contra a
invasão das Malvinas, os compromissos com os militares, as tentativas de
apaziguamento.
3) Em outras palavras, há um subtexto que diz o contrário do seu primeiro e mais
manifesto texto. O manifesto diz: a loucura delas abriu um espaço público de
ação. O latente afirma: mas essa loucura não ia longe e elas acabaram chegando
a uma racionalidade superior, a socialista, a política (“politizaram seu
discurso”). Ora, o que me parece é que a qualidade delas esteve em que nunca
deixaram de lado a maternidade e o princípio ético – ou seja, ao contrário do
bê-á-bá da política de esquerda, mantiveram uma âncora sólida no que não é
político, ou pelo menos não é a política de nenhum dos atores envolvidos, nem
sequer a dos próprios filhos.
Acredito que afirmar isso seja difícil, até porque poderia implicar uma certa crítica
ao modo como os desaparecidos agiram – e com isso, claro, elas não concordariam.
Mas há uma lógica na ação delas que é justamente essa. E com isso algo que parece
pré-político ou pré-socialista ou talvez mesmo liberal vai além do político ou
socialista ou anti-liberal.
Nota A

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