ABSTRACT: The text questions the relation in itself between literature and ideology, while
taking into account, on one hand, literature as an expression and a way of being of the
imaginary (literature as creation and a work) and, on the other hand, the ideology as it
figures conceptually in the earlier writings of Marx. From this intersection ― examining it
from a critical point of view ― one will think of the signification of literary creation and
poetic speech, and of its reference to social space.
Introdução
Há certamente algo de bizarro no título proposto para este trabalho. Ao menos a uma
primeira vista. Pode texto algum “servir a”, “prestar-se a”? Podemos dizer que a eleição de
um discurso, a apropriação de uma teoria por parte de um grupo, tornada então princípio de
sua práxis significa fazer “uso” desta teoria ou deste discurso? Seria ingênuo supô-lo, sem
mais, salvo sob duas condições: 1) se entendemos o discurso enquanto tal, a teoria enquanto
tal, a instituição de conceitos e categorias enquanto tais como coisa acabada, o que
corresponde ao que poderíamos nomear de instrumentalização da palavra ― nesse caso
estaríamos reduzindo o discurso à sua função, destacando-o assim do imaginário social-
histórico unicamente a partir do qual foi possível que tais coisas um dia emergissem, e com
tal funcionalidade, o que, ademais, significaria não reconhecer a indeterminidade essencial da
linguagem enquanto tal1; e 2) se o campo delimitado para a análise do discurso é o ideológico.
Neste caso, afirmar que um discurso ou teoria pode “servir a”, só tem sentido no âmbito de
1
Em L’institution imaginaire de la société Castoriadis observa: “Enquanto magma [conceito que o autor toma
para indicar o horizonte donde podemos, como coletividade anônima, extrair/ordenar/conjuntivar
indefinidamente as representações a partir das quais tudo pode vir-a-ser dado], as significações da língua não são
elementos de um conjunto submetido à determinidade como modo e critério do ser. Uma significação é
indefinidamente determinável (e este ‘indefinidamente’ é evidentemente essencial) sem que isto queira dizer que
ela é determinada”, 1975 p. 502. Grifos do autor.
1
uma abordagem já, ela mesma, ideológica. Considerar tal ou tal “uso” de uma teoria ou
discurso, e aqui tratar-se-á da obra literária, texto dado em ou a um con-texto, significa outra
coisa que pensar uma teoria ou discurso ― mesmo que este verse sobre a própria literatura.
Do “lugar” da ideologia dir-se-ia: “isto é falso”, “isto é verdadeiro”, ou, em suma, “isto é
ideológico”. Do “lugar” da filosofia interpelar-se-ia: “de onde falas?”, e “a quem falas?”.
Evidentemente, propor-se a refletir as relações entre ideologia e literatura levanta
questões de ordem conceitual importantes. Todo discurso, uma vez que é, ele próprio,
inscrição no espaço público de uma palavra que quer dizer algo ― mas que pode, outrossim,
e a um só tempo, querer dizer outra coisa que aquilo que porta a palavra dita: esconder,
falsear, dizer o contrário do que é dito ― pode apresentar-se como ideológico? Breve, se todo
discurso se configura como instituição social-histórica (CASTORIADIS, 1975), como
expressão do que designa algo2, comporta ele, intrinsecamente, uma dimensão ideológica? E
o que isto quer claramente dizer? Empresas, governos, indivíduos, grupos sociais, mídia, etc.,
podem certamente fazer (e o fazem) uso da linguagem ― linguagem como instrumento, arma,
veículo de interesses particulares, linguagem em sua função de encarnar/apresentar idéias com
vistas a. A filosofia contemporânea, para além do próprio marxismo, explorou sobremaneira
este conceito para que neguemos tal fato. Igualmente, a prática social e política, sobretudo
aquela que se desenrolou ao longo do século XX, nos legou inúmeros exemplos históricos de
sua efetividade. Basta pensarmos, à guisa de exemplo, na ascensão de Hitler ao poder político
na Alemanha, no período stalinista do comunismo soviético, mas também nos mecanismos
ideológicos das bem-sucedidas empresas transnacionais, marcadamente as “empresas-
símbolo” do capitalismo norte-americano, para que a tenhamos ― falamos da ideologia
enquanto tal ― em presença, por assim dizer.
Ora, é uma evidência o fato de que todo discurso instituído comporta um nível
funcional (sem o que a vida em sociedade seria impensável): elaboração coletiva de uma rede
simbólica com vistas à organização da sociedade em seu conjunto. Como é certo que este
processo não se faz sem o confronto de interesses e a manipulação do discurso por parte de
indivíduos e/ou grupos. Por outro lado, o imaginário social-histórico e psíquico ― e tudo o
que dele emerge como linguagem e representação ―, embora sirva-se de imagens para existir,
jamais será redutível às suas imagens, à rede de significantes socialmente instituída.
Todo registro simbólico pressupõe uma atividade imaginária que, todavia, não se
reduz ao simbólico no qual se encarna para exprimir-se. Neste sentido, o risco de se situar o
imaginário como parte de uma totalidade ideológica, como se palavra alguma pronunciada
pudesse escapar a este “universal” do qual deriva o sentido do que é dito/escrito/feito, como
se o domínio do ideológico circunscrevesse os limites de toda atividade e de todo discurso é
render-se a uma concepção determinista do fazer social-histórico3, o que resultaria, afinal, na
impossibilidade de pensarmos uma brecha para a criação humana, da criação enquanto fazer-
ser próprio do social-histórico: não apenas para a reconstrução do que aí está, mas e,
sobretudo, para a invenção do novo, para fazer ser o que não é ainda. Diremos, com
Castoriadis:
2
Castoriadis destaca: “Resta imediato que a existência mesma da sociedade, como fazer/representar do coletivo
anônimo é impossível (em todo caso, inconcebível para nós) sem a instituição do legein (do distinguir-escolher-
pôr-reunir-contar-dizer) e o trabalho da lógica identitária-conjuntista que lhe é incorporado” (ibid., p. 335-336).
3
“Tudo isto, bem entendido, não é senão outra maneira de dizer que o legein é instituição primordial e que, a
este nível, a lógica identitária não pode compreender a instituição, visto que a instituição não é nem necessária
nem contingente, que sua emergência não é determinada, mas isto a partir do que, em que e através do que
somente o determinado existe” (ibid., p. 381. Grifos do autor).
2
O essencial da criação não é “descoberta”, mas constituição do novo: a arte
não descobre, mas constitui; e a relação que ela constitui com o “real”,
relação seguramente muito complexa, não é em todo caso uma relação de
verificação. E sobre o plano social, a emergência de novas instituições e de
novas maneiras de viver, não é simplesmente uma “descoberta”, é
constituição ativa (ibid., p. 200-201).
O campo lexical concernente à ideologia encontra nos primeiros escritos de Marx sua
referência axial. Não podemos falar do conceito de ideologia sem nos reportarmos a Marx,
antes de tudo, e à tradição marxista que se encarregou de desenvolvê-lo e estendê-lo a todos
os domínios da atividade humana. Em razão desta exigência, tomar-se-á em consideração
aqui, primeiramente e em breves linhas, a formulação marxiana da noção de ideologia em
suas origens e seu desenvolvimento nos primeiros escritos de Marx. Em seguida, discutir-se-á,
de modo pontual, dois breves escritos de Gyögy Luckács, à guisa de exemplificação do que
chamaríamos uma leitura da ideologização da literatura ― nesse caso já ela mesma
ideológica.
Dos primeiros manuscritos de 1843-1844 ao trabalho da Ideologia Alemã o conceito
de ideologia ― que nesta obra será empregado por Marx pela primeira vez ― foi
progressivamente definindo-se em oposição ao real. Marx diligenciava livrar-se da orientação
marcadamente idealista de Feuerbach, cuja antropologia fundava-se na noção de “ser
genérico” ou “essência genérica” (Gattungswesen), buscando estabelecer, por seu turno, o que
claramente seria o real. Uma vez que se possa determinar o que seja o real, tudo aquilo que
cair fora do real será tomado como ideológico (Cf. RICŒUR, 1997, p. 41). Uma crítica do
real, daquilo que constitui a vida concreta ou a base material da existência, portanto, afetará o
conceito de ideologia que lhe é oposto. Nesse momento o estatuto da ideologia resta
ambivalente: as bases concretas da existência humana, isto é, o que (e como) fazem os
homens para assegurar sua subsistência, negam a ideologia como seu falseamento, ao mesmo
tempo em que a ideologia é engendrada por essas mesmas bases (ibid., p. 42).
A mais evidente expressão desta ambivalência é a religião. Partindo da crítica que
Feuerbach havia já realizado, que Marx mesmo julgava terminada quanto ao essencial, Marx
pretenderá avançar no sentido da elucidação das bases materiais que engendram a religião
como fenômeno de alienação. Para Feuerbach a impossibilidade de o homem libertar-se das
4
Em nossa análise do conceito marxiano de ideologia seguiremos algumas das reflexões de Paul Ricœur
expostas em L’ideologie et l’utopie (Éditions du Seuil, 1997).
3
necessidades leva-o a postular um ser ilusório que represente a potencialização última de suas
próprias capacidades. Impedido de realizar suas potencialidades, o homem acaba por projetar
a si mesmo em um ser Absoluto, livre das necessidades. Desse modo nasce a alienação
religiosa. O homem, assim, transfere a um outro ser uma responsabilidade que é inteiramente
sua: a efetivação dos próprios valores, a construção de uma convivência harmônica e justa
entre os indivíduos. Assim, o modelo da primeira concepção marxiana de ideologia é tomado
de Feuerbach. Se, seguindo a reflexão de Feuerbach, a religião é a consciência de uma
inversão, resta então, concluirá Marx, estabelecer uma crítica deste mundo social do qual a
religião é a consciência invertida (ibid., p. 42-45). Podemos destacar aqui algumas
significativas passagens de um texto de Marx datado de 1843 (embora publicado apenas em
1927) no qual, mesmo não estando explicitado o conceito de ideologia, vemos funcionar o
modelo feuerbachiano. Trata-se de Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel.
Numa acentuada atenção à práxis, à atividade histórica dos homens, portanto, àquilo
que perfaz a realidade humana concreta, Marx opõe o ideológico como aquilo que desvia o
olhar do homem do real, o ilude5. O que é propriamente humano deriva de sua ação, da
construção coletiva do seu mundo. Importa, pois, que a crítica da religião, iniciada por
Feuerbach, tenha seu necessário acabamento na crítica deste mundo invertido que produz a
inversão religiosa, a fantasia, a felicidade no cativeiro, ou a felicidade antecipada pela
promessa do além-cativeiro (“O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade”). O
ideológico será, ainda que não presente aqui como conceito, esta de-formação do real já ele
próprio de-forme. “A miséria da religião é, de uma parte, a expressão da miséria real, e, de
outra parte, o protesto contra a miséria real”. A crítica da religião é, portanto, a “crítica deste
vale de lágrimas, do qual a religião é a auréola” (ibid., 1998, p. 9. Grifos do autor). A miséria
do mundo real conduz os homens à miséria espiritual, à renúncia de sua tarefa histórica,
fazendo-os crer na “realização fantástica” de uma “essência humana”, uma vez que o homem
real não está ainda pronto. Este surgirá a partir do momento e na medida em que os homens se
voltem para si mesmos e abandonem aquele mundo fantástico.
5
“A religião é tão somente o sol ilusório que se põe em torno do homem, a tal ponto que ele não pode mais
voltar-se para si mesmo”, 1998, p. 9.
4
O texto da Ideologia Alemã6, de 1845, aprofundará a ambivalência material/ideal, ou
real/imaginário, pondo acento na “vida real” dos indivíduos, mais do que na consciência
destes enquanto seres partícipes de um universal (o “ser genérico”), como nos textos
anteriores (nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e na Contribuição à crítica da
filosofia do direito de Hegel). Embora a Ideologia Alemã tenha permanecido durante anos
na obscuridade e só tenha sido publicada em 1932, é nesta obra que o conceito de ideologia
aparece pela primeira vez na filosofia marxiana.
O texto sustenta um discurso ambíguo sobre a ideologia, permitindo duas perspectivas
de leitura distintas: ora o ideológico refere-se a uma “base material de entidades anônimas”,
não mais atendo-se às representações idealistas e imaginárias das consciências individuais;
ora “o ideológico é o imaginário enquanto oposto ao real” (RICŒUR, 1997, p. 104-105). Esta
oscilação permite, afirma, Ricœur, leituras distintas da obra. Todavia, já desde o prefácio,
Marx indica a amplitude que tomará o conceito de ideologia nesta obra. Uma vez marcada sua
oposição em relação aos jovens hegelianos, que se detinham em representações abstratas,
distantes, segundo Marx, do que se passava concretamente na Alemanha, “o conceito [de
ideologia] é estendido a todas as formas de produção que não especificamente econômicas,
como o direito, o Estado, a arte, a religião e a filosofia” (ibid., p. 106). Isto é o que nos
interessa aqui. O ideológico corresponderá, doravante, ao conjunto das idéias e pensamentos
que turvam a visão dos homens frente ao real. As imagens ou representações do concreto são
como que fantasmagorias, nada mais que reflexos e ecos da atividade real dos homens. Paul
Ricœur bem nota, a propósito, que “no marxismo posterior, a relação entre a realidade e o eco
ou reflexo conduzirá a uma constante depreciação de toda atividade intelectual autônoma”
(ibid., p. 117).
Todas as concepções humanas devem, pois, ser reduzidas7 às bases materiais da
existência, à vida real. Também a arte. Toda criação humana situa-se ― se a quisermos
compreender criticamente, isto é, se a quisermos conhecer em sua realidade ― em referência
à dinâmica concreta da sociedade: a produção das condições materiais da existência. Portanto,
na Ideologia Alemã, “as condições materiais e os indivíduos reais são os dois conceitos
fundamentais” (ibid., p. 108). Isto significa, a um só tempo, que são os homens que criam, por
meio de sua atividade, as bases materiais da sociedade, segundo suas necessidades, e suas
representações do mundo no qual vivem têm vínculo direto com o processo real que se
desenrola na base destas. Este é o ser do homem, esta sua vida real.
Nesse quadro, em que a dinâmica histórica possui um único vetor (as relações de
produção), a partir do qual se constitui a infraestrutura social e da qual tudo o mais procede ―
finalmente tudo: as leis, os valores, a arte, etc. ―, a idéia da criação e da criatividade restam
quimeras, e isto quer dizer, no limite: a produção da cultura nada tem de autônoma; as
criações culturais, elas mesmas, não são mais que sombras. Nas palavras de Marx:
6
Utilizaremos aqui a edição L’idéologie Allemande, Éditions Sociales, 1968. Tradução de Henri Auger, Gilbert
Badia, Jean Baudrillard e Renée Cartelle.
7
Paul Ricœur nota que, para Marx, no que respeita à ideologia, “a crítica é uma redução. A redução de um
conceito a seu fundamento, à base concreta da existência” (1997, p. 42).
5
produtos de seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas
a vida que determina a consciência (1968, p. 36-37).
É evidente que Marx não tem em vista aqui, em primeiro plano, a literatura, que é
nosso interesse, mas, antes e fundamentalmente, a superação das concepções idealistas dos
jovens hegelianos8, centradas em construções demasiado abstratas, regidas por um
determinismo lógico-conceitual9. Mas certo é que este resíduo ideológico que sobra dos
processos efetivos de produção da vida coletiva inclui a arte e, portanto, a literatura, como
veremos mais abaixo10. Como a religião, o direito e a metafísica, a arte não tem história11,
nem tampouco remete à autonomia, o que significa dizer, em suma: a arte ― bem como toda
e qualquer criação do espírito ― não tem realidade própria mas, antes, faz parte do processo
global do indivíduo concreto, vale dizer, daquele que faz a vida real.
A amplitude do que cai sob o âmbito do ideológico, como projeção fantasmagórica
dos processos sociais concretos, infraestruturais, é simplesmente absoluta. Os exemplos se
sucedem no texto de Marx e incluem, por fim, a ciência e a filosofia.
8
Na obra A ideologia alemã, “O termo [ideologia] designa essencialmente os Jovens Hegelianos e, portanto, o
que resulta da decomposição do sistema hegeliano” (RICŒUR, 1997, p. 106).
9
Ricœur lembra que, no texto da Ideologia Alemã, o termo “Vorstellung não designa a imaginação mas, antes, a
concepção, a idéia ou a representação. Marx opõe a maneira pela qual certas coisas aparecem (erscheinen) como
fenômenos, isto é, como representações, à maneira pela qual são efetivamente” (ibid., p. 111-112). Esta nota é
importante para a distinção que iremos marcar mais adiante entre representação (tomada no lato senso de
constituição figurativa ou concepção) e imaginação (cuja significação tomaremos da filosofia de Gaston
Bachelard).
10
Ricœur comenta: “Nesta expressão ‘todo o resto da ideologia’, Marx engloba todas as esferas que implicam
representações em geral, todas as produções culturais ― a arte, a lei, etc: o campo é extremamente largo” (1997,
p. 118).
11
Louis Althusser reafirmará esta perspectiva. Para o autor, a ideologia em geral não tem história. A história é,
antes, o determinante (regional e de classe) das ideologias particulares (Cf. 1980, p. 71-76).
12
Utilizamos a tradução francesa publicada no mesmo volume de L’idéologie allemande, das Éditions Sociales,
já referenciada acima.
6
A tradição marxista se encarregará de precisar o funcionamento dos processos
ideológicos13. Certo é que, fora desta tradição, o conceito de ideologia receberá novas
significações. Tais desdobramentos, todavia, escapam aos objetivos deste artigo. Poderíamos
finalmente, no sentido da tradição marxista, ao qual decidimos circunscrever nossa análise
caracterizar a ideologia como sendo, em geral:
13
Vale conferir as reflexões de três importantes pensadores sobre os esquemas funcionais da ideologia e sua
relação com a ciência: Paul Ricœur (Interpretação e Ideologias, Editora Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1977,
Louis Althusser, 1980, e Karl Manheim, Ideologia e Utopia, publicado no Brasil pela Zahar em 1972.
14
Reportemo-nos ao comentário de Ricœur : « A produção das idéias, das representações e da consciência [der
Ideen, Vorstellugen, des Bewusstsein] está, desde o início, direta e intimamente mesclada à atividade material e
ao comércio dos homens, ela é a linguagem da vida real » (1997, p. 114).
15
Ver Ricœur Interpretação e Ideologias, 1977 (particularmente os capítulos 2 e 3) e Karl Manheim, Ideologia
e Utopia, 1972 (segunda parte).
16
São eles: “Marxismo e história da literatura” e “Gênese e valor das criações literárias”, comentados nesta
ordem.
17
Nos serviremos aqui da edição francesa da PUF, publicada no mesmo ano sob o título Littérature,
philosophie, marxisme. Tradução de Jean-Marie Brohm e Andréas Streiff.
7
classe burguesa ― para o que oferecerá ele alguns exemplos ―, caberá ao proletariado para o
qual “a arte é uma arte de classe afirmada, uma arte engajada, proclamando os objetivos
propostos da luta de classe. Do ponto de vista da classe burguesa, entretanto, isto revela já o
processo de dissolução ideológica” (ibid., p. 86). Retenhamos, por ora, esta idéia: a arte
literária, porquanto inserida numa sociedade dividida em classes, forçosamente expressa os
conteúdos ideológicos das classes em questão e é em virtude deste vínculo que a podemos
compreender.
Escrito no ano seguinte (1923), o artigo intitulado “Gênese e valor das criações
literárias” assinala uma posição mais crítica de Luckács quanto à interpretação marxista da
literatura. Ele não nega que a literatura deva ser compreendida como “parte integrante do
conjunto do desenvolvimento social” (ibid., p. 102). Igualmente, quando se trata da história da
literatura, afirma Luckács que devemos partir “da situação das classes que criam a literatura
da época considerada”, bem como tomar em consideração “a luta das camadas sociais às quais
as correntes literárias servem como forma de expressão ideológica” (ibid., p. 103). A
diferença na posição assumida por Luckács neste artigo em relação ao texto publicado no ano
anterior, indicado acima, é observável na análise que esboça acerca do significado
inteiramente distinto de que se revestem as obras literárias ao longo da história. Com efeito,
Marx havia enunciado este problema na Introdução de Contribuição à crítica da economia
política:
Bem entendida esta nota metodológica de Marx, trata-se, a partir de uma análise
marxista da história da literatura, de estar atento ao eco singular que produz um texto literário
em diferentes sociedades e períodos da história. Ora, o que Luckács põe em questão é,
propriamente, para dizer noutros termos, a ressonância que encontra uma obra literária no seio
do imaginário social-histórico. O imperativo que dirige aos teóricos marxistas da arte é o de
não tomarem como fixos o conteúdo e a forma de uma obra, pois o imaginário social-histórico
desenha, a cada vez, novos contornos para a mesma peça literária. Dito por Luckács: “O
conteúdo de classe original de uma obra literária pode adquirir, no curso do desenvolvimento
[histórico], uma função diametralmente oposta à que foi sua significação primitiva” (1978, p.
104. O grifo é nosso). Não basta, pois, situá-las como parte do desenvolvimento social,
mesmo porque dentre várias obras literárias produzidas em um mesmo período, tendo estas a
mesma origem social, portanto, participando das mesmas “relações de classe”, apenas
algumas logram exprimir apropriada e eficazmente um conteúdo ideológico. Uma análise
estética marxista da criação literária não pode, pois, deter-se na identificação das relações
entre o conteúdo e a forma de uma obra e sua origem social. Ela deverá explorar, sobretudo,
as relações entre as condições da realidade vivida em uma época e a expressão literária daí
extraída (ibid., p. 104-105).
Embora note-se neste texto o avanço de Luckács em termos de uma exigência de
autocrítica da análise marxista da obra literária, o esquema de fundo permanece inalterado: a
obra literária toma sua significação dos processos sociais, fundamentalmente, da luta de classe
que se desenrola sob seus pés. O sentido do texto literário, sentido este primitivo (carregado
de uma tonalidade ideológica original) ou posteriormente redefinido por outros con-textos
(quando novas condições sociais e, aqui, novas condições de classe, lhe conferem novo
8
significado ou função ideológica), não será mais que o de produto de uma situação histórica
concreta, não mais que a expressão artística de conteúdos de classe.
O que importa marcar aqui é o fato de que nestes dois artigos de Luckács a literatura é
pensada a partir do primado do desenvolvimento histórico dos processos de reprodução da
vida coletiva. Assim, a literatura, mais precisamente, a criação literária enquanto tal, a
imaginação poética, então, é situada no horizonte da causalidade sócio-histórica, e, portanto,
é duplamente condicionada: 1) pela reprodução material da existência ― arte como produto
derivado da dinâmica social; e 2) a literatura como veículo ideológico. A essência do poético
será, então, determinada a partir de um princípio exterior à imaginação poética ela mesma,
nesse caso: a práxis. A autonomia da imaginação literária não será, doravante, possível.
9
Sem dúvida, em sua vida prodigiosa, o imaginário cria imagens, mas
apresenta-se sempre como algo além de suas imagens, é sempre um pouco
mais que suas imagens. O poema é essencialmente uma aspiração a imagens
novas. Corresponde à necessidade essencial de novidade que caracteriza o
psiquismo humano (1950, p. 8. Grifos do autor).
As imagens poéticas não têm outra significação senão significação poética. Não
queremos ver a imagem pensando em outra coisa, preocupados em ver “além” da imagem, ou
por trás desta, em busca de sua “causa”, do enredo psicológico que nos dê segurança de
análise ou da base sócio-histórica que lhe desnude a trama social e seus conflitos, dos quais
ela não é mais que um reflexo. A palavra poética não quer dizer outra coisa, ela não oculta
nem revela senão o ser de uma imagem nova, como clarifica Bachelard: “Por sua novidade,
uma imagem poética abala toda atividade lingüística. A imagem poética nos remete à origem
do ser falante” (1992, p. 7). Suas raízes não estão, portanto, numa psique que, cheia de si,
10
explode em devaneios. As explicações psicológicas buscam causas para as imagens poéticas
fora das próprias imagens poéticas. Ora, as imagens poéticas não apresentam correlações de
passado e presente. O instante poético é absoluto. Ele marca, antes, uma ruptura com qualquer
concepção de tempo horizontal, sucessivo, causal.
Falar, pois, da literatura como expressão de certa ideologia é já circunscrever o sentido
de ser de uma imagem poética que não cessa de renovar-se a cada leitura, em cada leitor. As
imagens poéticas, porque não têm passado, porque não têm uma causa, porque nascem de
arroubo, porque “trazem a marca da primitividade”, exigem, portanto, a ruptura definitiva
com a explicação causal, qualquer que seja sua natureza. O psicanalista, por força de ofício,
não pode ater-se à atualidade assinalada pelo ser da imagem. Despreza a novidade da imagem
porque quer buscar, “através” dela, a realidade que a explica. “Esquece a pesquisa inversa:
sobre a realidade, buscar a positividade da imagem” (BACHELARD, 1948b, p. 20).
Poderemos, certamente, estender esta crítica de Bachelard da leitura “psicologizante” da
literatura a outras formas de discurso que igualmente comportem alguma dimensão causal.
Uma fenomenologia da imaginação poética nos concede os “benefícios do elementar”.
Bachelard assinala: “A literatura deve surpreender. Certamente, as imagens literárias podem
explorar imagens fundamentais, mas cada umas das imagens que surgem sob a pena de um
escritor deve ter o seu diferencial de novidade” (ibid., p. 1948b, p. 6).
A imagem literária reduplica a vida precisamente naquilo que a vida tem de não-
previsível, de surpreendente. Aquele, pois, que se põe a pensar as imagens que sonham os
poetas, deve, sem as obrigações do mundo da percepção, se debruçar sobre uma imagem
literária com a mesma abertura de alma que aquela da qual se originou a própria imagem,
deve estar disposto a bem sonhar. Para dizer com Bachelard, ele deve, enfim, “(...)
compreender que a perspectiva é solidária de uma dinâmica do olho, que nada é fixo para
aquele que alternadamente pensa e sonha...” (1993, p. 121).
Esta é, a meu ver, a grande contribuição de Gaston Bachelard, do Bachelard noturno,
do filósofo da imagem: ele conquistou, primeiramente para si mesmo, e depois para todos nós,
o direito de sonhar.
Tentaremos aqui uma aproximação à palavra em seu sentido poético. Terá a palavra
poética algo de próprio? Em que ela modifica o ser da linguagem? Antes de responder a essa
questão será preciso fazer algum esforço por acompanhar a palavra enquanto tal. Mas o que
isto significa? O que significa esta proposição — “Acompanhar a palavra enquanto tal” — e o
que a palavra significa enquanto palavra? É possível encontrar o sentido da palavra? A fala, o
dizer, o discurso empreendido, a frase posta-proposta-suposta, repousam eles sobre um fundo
comum, o mesmo fundamento, este: a palavra? É ela a essência mesma de algo que se
metamorfoseia em formas e sentidos tão múltiplos quantos são seus doadores? E, enfim, se é a
palavra doação, quem é seu signatário e a quem ela se destina?
Heidegger nos propõe experimentarmos o caminho em direção à palavra, em direção
ao que ela tem de próprio.
Eis a dificuldade primeira em pensarmos um caminho em direção à palavra: trata-se
de uma imagem física que supõe certa distância entre a palavra e nós que a buscamos.
Estamos então longe da palavra. Mas isto é possível? O que somos fora da palavra? A palavra
18
As reflexões apresentadas a seguir são fruto da leitura da conferência de Heidegger intitulada “Le chemin vers
la parole” (Die Sprache), de 1959, publicada como capítulo final do livro Acheminement vers la parole (1976,
p. 227-257).
11
não é, portanto, uma das muitas capacidades humanas, mas, antes, ela assinala o ser mesmo
do humano: “o ser humano repousa na palavra” (HEIDEGGER, 1976, p. 228). Mas, por outro
lado, se estamos sempre na e junto da palavra isto não significa que a possuímos. A palavra
não está incrustada na natureza humana como algo dado, naturalmente funcional. Estamos na
palavra, mas não a temos, não habitamos imediatamente o que ela tem de próprio. O ser da
palavra precisa ser, pois, alcançado.
Obviamente, a palavra tem parte na natureza humana. Dirá Humboldt, em sua obra Da
diversidade da estrutura da palavra humana e sua influência sobre o desenvolvimento
espiritual da espécie humana, citado por Heidegger: “A palavra não é uma obra (Ergon),
mas uma atividade (Energeia). Ela é (...) som articulado apto a exprimir o pensamento (ibid.,
p. 233. Grifos do autor). Todavia, mesmo Humboldt considerará que a palavra jamais pode
ser limitada a mera expressão vocal do pensamento. Para ele, o verdadeiro e essencial da
palavra é o falar em sua totalidade (ibid., p. 233). A palavra é “um verdadeiro mundo que o
espírito deve necessariamente pôr entre ele e os objetos graças ao trabalho interno de sua
força” (ibid., p. 234. Grifos do autor). Tudo isto que o espírito humano produz, a partir do
trabalho interno de sua força é o mundo. Mundo enquanto percebido, mundo enquanto
expressão da linguagem. Isto significa, neste caso, que o essencial da palavra é o de ser
expressão do mundo enquanto subjetividade (ibid., p. 235).
Resta saber se a proposição de Humboldt pode nos conduzir ao que a palavra tem de
próprio, à essência da palavra enquanto palavra. De pronto, Heidegger situará os limites,
historicamente compreensíveis, desta compreensão:
12
apreender o que então aparece e deixar retomar (trabalhar ou tratar) o que foi apreendido”
(ibid., p. 231).
Dizer, falar, portar a palavra remete, pois, ao que no tempo é dado em presença. Não
fixação imediata de um signo como instrumento de uma designação (ibid., p. 231). Este
sentido de ser que a palavra porta, que ela traz à presença ― o mostrar ―, carrega em seu
desdobramento um traço-de-abertura (tracé-ouvrant), que permite o
acolhimento/recolhimento do sentido da palavra em seu conjunto, em seu sentido inteiro,
tanto do que é falado, quanto do que resta infalado (imparlé [Ungesprochenes]) (ibid., p.
237), mas que no “dizer” mostra, deixa aparecer, dá a ver e a escutar. “Dizer e falar não são a
mesma coisa. Alguém pode falar e falar sem fim, e isto não quer dizer nada. Ao contrário, eis
alguém que faz silêncio, ele não fala e, não falando, ele pode dizer muito” (ibid., p. 239).
Todos os signos da linguagem têm sua origem e sentido de ser no horizonte aberto do
mostrar. O mostrar desvela, assim, as intenções abrigadas pelo falado/infalado, pelas
ressonâncias e ecos da palavra dita. Esse mostrar da palavra no que ela deixa entre-ver, no que
ela des-vela como próprio tem sua fonte no Dito que, o frisa Heidegger, não se confunde com
o “simplesmente dito”. O Dito (Die Sage) é, antes, “a palavra em seu desdobramento” (ibid.,
p. 240). Inteiramente distinto de algo que resta definido e pronto, determinado e fixo, o Dito é
transitivo, ele é no tempo: d e s d o b r a m e n t o... O Dito remete, pois, a este
entrelaçamento da palavra que, no entanto, não permanece envolto em si, mas que se
desenvolve. Chegamos assim à idéia inicial: o desenvolvimento da palavra, seu desdobrar no
tempo não é outra coisa que o caminho mesmo da palavra em direção à palavra. “O caminho
em direção à palavra se desdobra na palavra ela mesma. O caminho em direção à palavra no
sentido do fato de falar é a palavra enquanto Dito” (ibid., p. 244).
A palavra mostra-se, deixa-se vir à presença pelo Dito. O que é mostrado,
“presentado”, não permanece na obscuridade. Antes, o Dito, ao mostrar a palavra no que ela
tem de próprio, torna-a apropriável. A transitividade da palavra implica sua apropriação por
aquele que a escuta. O Dito, o mostrar a palavra enquanto esta se deixa aparecer como o que
vem em presença ― a palavra enquanto palavra ― faz, então, seu caminho no e pelo
apropriamento. O apropriamento abre caminho à palavra: o encontro de quem atentamente
escuta com a ressonância esclarecedora do Dito. Heidegger sublinha:
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A tradução desta expressão, em qualquer idioma, é particularmente difícil, tanto por sua especificidade no
alemão, quanto pelo sentido que ela ganha no contexto do pensamento de Heidegger. Com efeito, o pronome
neutro es permite a flexão impessoal de alguns verbos alemães, tais como: es wächst (cresce), es blüht (floresce),
es klopft (batem à porta), entre outros. O verbo geben (dar) é um caso especial. Usado impessoalmente, o sentido
altera-se: es gibt (há) e es gab (houve). Em Carta sobre o humanismo, Heidegger argumenta que um
pensamento não pode ser considerado humanismo “se este humanismo é um existencialismo e faz sua esta
proposição de Sartre: precisamente somos sobre um plano em que há somente homens. Se o empregamos do
ponto de vista de Ser e Tempo, conviria antes dizer: precisamente somos sobre um plano em que há
principalmente o Ser. Mas, donde vem e o que é o plano? O Ser e o plano são o mesmo. Em Ser e Tempo se diz,
refletidamente e com toda a intenção: il y a l’Être [há o Ser, em francês no original alemão]: ‘es gibt’ das Sein.
Este ‘il y a’ [há] não traduz exatamente ‘es gibt’, pois o ‘es’ (ele) que aqui ‘gibt’ (dá) [Heidegger retoma, pois, o
sentido original do verbo geben] é o próprio ser. O ‘gibt’ (dá) designa, todavia, a essência do Ser, essência do
que se dá, que outorga sua verdade. O dar-se no aberto, com o aberto mesmo, é o próprio ser” (Lettre sur
l’humanisme, 1957, p. 83. Os grifos são do tradutor, mas não constam do original alemão nesta edição
bilíngüe).
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“ser” tem ainda necessidade de alcançar o seu próprio enquanto presença
(ibid., p. 246).
4. Literatura e democracia
Em sua obra Donner la mort (1999) Derrida, fabulosamente, faz a literatura herdeira
da tradição bíblica, a que remonta a Abraão, mais precisamente, à cena do sacrifício de
Abraão. Em que sentido representaria esta enigmática demanda divina, crudelíssima a olhos
nus, o sacrifício do amor providencial dado a Sara em sua velhice, a morte dada ao filho da
promessa, sinal da aliança que fizera Iahvé com Abraão, futuro do amor de Deus pela
descendência do justo e selo de sua bênção, em que sentido, perguntamos, representaria tal
cena um anúncio da literatura?
20
A propósito do apropriamento da palavra, Heidegger considera: “Se nós entendemos sob a palavra Geetz (a lei,
o estatuto) a reunião do que se deixa cada vez vir em presença em seu próprio, isto é, estar em seu lugar lá onde
ele pertence àquele com quem se reconcilia, então o apropriamento é o mais simples e o mais doce dos estatutos”
(1976, p. 248).
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A reflexão de Derrida nutre-se da narrativa de Kierkegaard, já ela mesma ficcionista,
sobre o sacrifício de Abraão (“Era uma vez um homem que tinha, em sua infância, ouvido a
bela história de Abraão posto por Deus à prova...”, [KIERKEGAARD, Crainte et
tremblement, 1935, p. 7]). Nota Derrida o acento posto por Kierkegaard no singular silêncio
de Abraão, fato silenciado na cena bíblica original: “Eles foram três dias em silêncio; manhã
do quarto dia, Abraão não diz uma palavra...” (KIERKEGAARD, 1935, p. 9); “Eles
caminharam em silêncio; (...) Ele preparou o holocausto em silêncio” (ibid., p. 11); “Nada
disto jamais foi dito ao mundo, e Isaac jamais disse a alguém algo do que ele tinha visto...”
(ibid., p. 12-13); “Ele não diz nada a Sara, nada a Eliezer: quem aliás podia compreender? E a
tentação, por sua natureza, não lhe tinha imposto o voto de silêncio?” (ibid., p. 27).
Eis que a literatura vê-se então portadora do silêncio de Abraão, do segredo justificado
pelo justo, do absoluto silêncio diante do Absoluto, do sagrado direito de nada dizer. Ela será
portadora do sentido suspenso... A literatura herda, assim, a singularidade absoluta do
segredo, ao mesmo tempo em que, enquanto instituição moderna, ela negará este sagrado, ou
qualquer filiação ao sagrado. Conservando o secreto do segredo, a liberdade do não-dizer, o
absoluto direito ao silêncio, o direito ao não-revelar ― pesadamente sustentado por Abraão
em seu temor a Deus ― a literatura, não obstante, trairá o sagrado deste silêncio em nome da
liberdade de tudo dizer e tudo calar, de tudo revelar e tudo ocultar.
O signo deste silêncio, ou deste direito ao silêncio, será marcado por uma tensão entre
a autonomia da criação, da liberdade prática indissociável ― e mesmo emblemática ― da
modernidade, e a heteronomia do reconhecimento público (1999, p. 208) ― outorgado
institucionalmente ― do estatuto propriamente literário de um texto. Dirá Derrida:
Giramos aqui em torno da idéia do poder herdado pela literatura de tudo dizer, e de
tudo esconder, de seu direito ao segredo ― seja do que ela diz ou guarda ― cujo limite tenso,
enquanto discurso, e porque obra, porque coisa “legível” e “inteligível”, é posto pela
convenção pública do que vem a ser “coisa literária”.
Mas o que, afinal, liga a literatura ao silêncio de Abraão? E o que a faz signo de um
direito ao silêncio que igualmente a distancia da origem bíblica deste silêncio? Voltemos à
narração fictícia de Kierkegaard.
Em seu sacrifício, Abraão guarda silêncio. Não demanda pelas razões de Deus, não
consulta a razão dos seus, cala diante de Isaac. Em silêncio, cumpre a fé jurada, mesmo que
esta lhe custe a vida de seu primogênito, o futuro de sua vida, a vida de seu futuro. E eis que,
tempos após, algo tão inesperado quanto atordoante acontece: Abraão, só, vai a caminho de
Morija. Cai com o rosto por terra e pede a Deus perdão. Mas perdão porquê? Não abandou ele
a exigência ética de preservar a vida de seu único filho, seu bem-amado primogênito, herdeiro
de seus dias, abandonando-se à fé, guardando silêncio e fidelidade a Deus que lho ordenara o
sacrifício? Abraão, no entanto, pede perdão a Deus justamente por ter querido sacrificar a
Deus seu filho Isaac. Se não foi ele capaz de compreender como pecado tal ato, como poderá
agora crer no perdão divino? (KIERKEGAARD, 1935, p. 12). O tormento de Abraão, no
caminho para Morija, não tem fim. Por várias vezes tenta retomar o caminho, mas não alcança
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paz. Cai por terra novamente. Seu espírito não tem repouso. Abraão se sabe portador do mais
terrível pecado: não saber que era pecado não amar seu único filho, seu bem mais caro (ibid.,
p. 12), a ponto de lhe preservar a vida. Derrida bem assinala a tensão vivida/vívida de Abraão,
descrita/imaginada por Kierkegaard, cujo pecado não tem perdão:
Em sua ficção de tipo literário, Abraão julga ele mesmo seu pecado
imperdoável. E é por isso que ele pede perdão. Não se pede perdão senão
para o imperdoável. Jamais se perdoa o que é perdoável, eis a aporia do
perdão im-possível que meditamos (1999, p. 170).
Eis o fundo do drama de Abraão. Ele sabe que seu pecado é imperdoável, por isso
pede perdão. E nesse caso, é debalde buscar saber se, em verdade, Deus o acordará ou não.
Deus, Ele próprio, secretamente confessara a Noé sua falta por haver amaldiçoado a terra por
causa de suas criaturas (Gn 8: 21-22), como lamentará, mais tarde, de haver pensado, por um
momento, em exterminar seu povo que, no deserto, à tardança de Moisés, rendera-se à
concupiscência e à idolatria, no que foi severamente repreendido por Moisés. Foi então que
Deus, arrependendo-se, voltou atrás, esquecendo-se mesmo de que era Aarão, o irmão de
Moisés, quem estava adiante do povo em seu pecado21. Mas a quem irá Deus pedir perdão,
pergunta Derrida (ibid., p. 189)? Quem Lhe pode conceder perdão senão Ele mesmo? E isto é
possível: pedir perdão a si? Ocupar, ao mesmo tempo, o lugar do culpado e daquele que, não
havendo falta, pode reconhecer o erro do outro e lhe dar o perdão? Seria isto dupla e
Absolutamente imperdoável. Deus, então, renova a Aliança com seu povo e lhe dá sua Lei.
Abraão pede perdão por haver preferido o silêncio que o liga a Deus ao amor secreto
que o liga ao filho (ibid., p. 169). No entanto, resta saber: a literatura, ao ser fiel apenas à sua
palavra, ao reclamar para si o direito de tudo e nada dizer ― e, em silenciando, ainda assim,
muito dizer ―, terá ela algo a confessar? A i-responsabilidade do discurso literário pode ser
perdoada? Se sim, quem lhe poderá acordar perdão? O que faz, pois, a literatura (fenômeno
moderno) herdeira do silêncio de Abraão não é senão a singularidade absoluta do segredo:
Abraão guardara silêncio diante do Absoluto. O segredo, aí então experimentado, é absoluto:
absoluto segredo diante do Absoluto. À literatura caberá a dessacralização deste absoluto
direito ao segredo (ibid., p. 203). O conteúdo do que é segredado, doravante, pouco importará.
Então, que escusas deve a literatura ao espaço público, ao mundo social: à sua
moralidade, à sua forma de organização e modo de reprodução, a seus valores, sacros ou não,
21
Moisés diz a Deus: “Volte atrás em tua cólera ardente e renuncie ao mal que tu querias fazer a teu povo. (...) E
Yahvé renunciou a fazer o mal do qual havia ameaçado seu povo” (Ex 32: 11-14).
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a seus erros, seus, da sociedade? Que tem a literatura a pedir perdão, seja do que diz ou
guarda em silêncio? Será a literatura culpada de apenas sonhar em seu caminho, este, da
imagem poética?
Derrida concluirá fazendo anotações que nos parecem urgentes, mais que apropriadas:
a) Por seu direito, “em princípio, de tudo dizer e tudo esconder, pelo que a literatura é
inseparável de uma democracia do porvir” (ibid., p. 206. Grifo do autor);
b) Pela natureza supostamente fictícia de toda obra literária, o que isenta o autor de
responsabilidade, “diante da lei política ou cívica, do sentido e do referente (do que
quer dizer e visa, exibe ou decodifica [encrypte] o interior de seu texto que pode, pois,
sempre, não deter-se em pôr algum sentido ou algum referente, nem tampouco querer
dizer) tudo agravando, na mesma proporção, até ao infinito, sua responsabilidade pelo
evento singular que constitui cada obra” (ibid., p. 206. Grifos do autor);
c) Por sua virtude “propriamente fenomenológica”, o que desobriga o texto literário a
“responder ou a corresponder a qualquer sentido ou realidade no mundo” ―
suspensão da “tese do sentido determinado ou do referente real” (ibid., p. 206. Grifos
do autor);
d) Por não haver para a literatura outra lei que a “singularidade do evento, a obra” (ibid.,
p. 206. Grifo do autor);
Por tudo isto, podemos afirmar com Derrida que a literatura é herdeira do sacro silêncio
testemunhado pela história bíblica do sacrifício de Abraão, mas que ela renega, ao mesmo
tempo, sua filiação a este sagrado, sua pertença ao sagrado. Duplo pecado: de silenciar sobre
sua filiação; e de se permitir dizer o que não poderia ser dito, de desvelar todo segredo.
22
Para um aprofundamento desta questão ver os capítulos V e VII desta obra.
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Se assim podemos compreender o processo evidentemente complexo de instituição das
significações sociais, não restará muito distante o entendimento de que o legein, enquanto
fazer-ser coletivo do que é ― instituição do conjunto de signos que configuram o mundo
social, “como posição primeira, inaugural, irredutível do social-histórico e do imaginário
social tal qual se manifesta cada vez em uma sociedade dada” (ibid., p. 532) ―, é passível de
violências: de definição de um sentido de ser, determinação identitária do que vale como
(correto, permitido, bom, válido, desejável, etc.). Por outro lado, o mundo das significações
sociais é o que permite tanto que as coisas sejam o que são (“As coisas são o que são
mediante as significações que elas figuram, imediatamente ou mediatamente, diretamente ou
indiretamente”, [ibid., p. 514]), quanto que elas sejam, a um só tempo, o que “faz existir
indivíduos para os quais há percepção, palavra e reflexão, que são indefinidamente auto-
reprodutíveis como indivíduos sociais, para cada um dos quais há sempre e ao mesmo tempo
mundo privado e mundo público, e cuja vida em sociedade é, em um certo sentido, a vida e o
funcionamento da sociedade como sociedade instituída” (ibid., p. 534. Grifo do autor).
Breve, se não é possível pensar nem, de um lado, em uma identidade absoluta do
indivíduo ― tal como o delineou o sonho moderno/burguês do sujeito autônomo e, por
projeção transcendental, do mundo como sua determinação voluntária e caprichosa ― nem,
por outro, numa imersão absoluta dos indivíduos em um caudal de significações sociais das
quais eles deteriam tão somente um uso instrumental, finalmente, se “a instituição do legein
[é] inseparável da instituição do indivíduo como indivíduo social” (ibid., p. 376), não há
mundo de significações sociais sem que os indivíduos sejam ao mesmo tempo instituídos
como capazes de operar os esquemas lógicos de composição, decomposição, identificação,
distinção que o perfazem a instituição do legein. “Ora, a existência do indivíduo como
indivíduo social e seu ‘funcionamento’ no e pelo legein implica e exige ‘positivamente’ que
ele seja um tal fluxo representativo singular; se ele não fosse assim, não seria mais que
máquina falante ― isto é, absolutamente nada” (ibid., p. 376-377. Grifo do autor).
O ideológico insere-se precisamente neste processo histórico de designação do que é,
na medida em que sempre é possível que o discurso ― porque conotação ― seja
instrumentalização perversa da palavra. Todavia, situado no mesmo horizonte ― este das
significações imaginárias sociais ― o imaginário poético, a criação literária enquanto tal, não
pode ser reduzido a decalque do real, ou entendido como palavra que toma seu sentido de ser
que não do próprio imaginário poético.
A literatura, finalmente, como fenômeno social-histórico singular nem “reflete” o “ser
real” ― o que seria isto fora da instituição? ― nem pode ser “julgada” a partir de uma lógica
que lhe seria anterior e que ocupasse o lugar do que é verdadeiro. Isto porque, simplesmente,
“o poema ― a literatura ― parece ligada a uma palavra que não pode interromper-se, pois ela
não fala, ela é” (BLANCHOT, 1955, p. 35).
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Bibliografia
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