Você está na página 1de 19

DELA-SÁVIA, Sérgio. Apontamentos sobre ideologia e literatura.

In: CYNTRÃO, Sylvia


(Org.). Revista Cerrados, Brasília, UNB/TEL, Ano 12, n. 15, 2003, [ISSN 0104-3927].

APONTAMENTOS SOBRE LITERATURA E IDEOLOGIA:


A QUE SERVE A LITERATURA?

RESUMO: O texto põe em questão a relação mesma entre literatura e ideologia,


compreendendo, de um lado, a literatura como expressão e modo de ser do imaginário
(literatura como criação e obra) e, de outro, a ideologia tal como esta se configura
conceitualmente nos primeiros escritos de Marx. A partir desta interseção ― e, aqui,
visando-a criticamente ― buscar-se-á pensar o significado da criação literária e da palavra
poética e sua referência ao espaço social.

ABSTRACT: The text questions the relation in itself between literature and ideology, while
taking into account, on one hand, literature as an expression and a way of being of the
imaginary (literature as creation and a work) and, on the other hand, the ideology as it
figures conceptually in the earlier writings of Marx. From this intersection ― examining it
from a critical point of view ― one will think of the signification of literary creation and
poetic speech, and of its reference to social space.

Introdução

Há certamente algo de bizarro no título proposto para este trabalho. Ao menos a uma
primeira vista. Pode texto algum “servir a”, “prestar-se a”? Podemos dizer que a eleição de
um discurso, a apropriação de uma teoria por parte de um grupo, tornada então princípio de
sua práxis significa fazer “uso” desta teoria ou deste discurso? Seria ingênuo supô-lo, sem
mais, salvo sob duas condições: 1) se entendemos o discurso enquanto tal, a teoria enquanto
tal, a instituição de conceitos e categorias enquanto tais como coisa acabada, o que
corresponde ao que poderíamos nomear de instrumentalização da palavra ― nesse caso
estaríamos reduzindo o discurso à sua função, destacando-o assim do imaginário social-
histórico unicamente a partir do qual foi possível que tais coisas um dia emergissem, e com
tal funcionalidade, o que, ademais, significaria não reconhecer a indeterminidade essencial da
linguagem enquanto tal1; e 2) se o campo delimitado para a análise do discurso é o ideológico.
Neste caso, afirmar que um discurso ou teoria pode “servir a”, só tem sentido no âmbito de

1
Em L’institution imaginaire de la société Castoriadis observa: “Enquanto magma [conceito que o autor toma
para indicar o horizonte donde podemos, como coletividade anônima, extrair/ordenar/conjuntivar
indefinidamente as representações a partir das quais tudo pode vir-a-ser dado], as significações da língua não são
elementos de um conjunto submetido à determinidade como modo e critério do ser. Uma significação é
indefinidamente determinável (e este ‘indefinidamente’ é evidentemente essencial) sem que isto queira dizer que
ela é determinada”, 1975 p. 502. Grifos do autor.

1
uma abordagem já, ela mesma, ideológica. Considerar tal ou tal “uso” de uma teoria ou
discurso, e aqui tratar-se-á da obra literária, texto dado em ou a um con-texto, significa outra
coisa que pensar uma teoria ou discurso ― mesmo que este verse sobre a própria literatura.
Do “lugar” da ideologia dir-se-ia: “isto é falso”, “isto é verdadeiro”, ou, em suma, “isto é
ideológico”. Do “lugar” da filosofia interpelar-se-ia: “de onde falas?”, e “a quem falas?”.
Evidentemente, propor-se a refletir as relações entre ideologia e literatura levanta
questões de ordem conceitual importantes. Todo discurso, uma vez que é, ele próprio,
inscrição no espaço público de uma palavra que quer dizer algo ― mas que pode, outrossim,
e a um só tempo, querer dizer outra coisa que aquilo que porta a palavra dita: esconder,
falsear, dizer o contrário do que é dito ― pode apresentar-se como ideológico? Breve, se todo
discurso se configura como instituição social-histórica (CASTORIADIS, 1975), como
expressão do que designa algo2, comporta ele, intrinsecamente, uma dimensão ideológica? E
o que isto quer claramente dizer? Empresas, governos, indivíduos, grupos sociais, mídia, etc.,
podem certamente fazer (e o fazem) uso da linguagem ― linguagem como instrumento, arma,
veículo de interesses particulares, linguagem em sua função de encarnar/apresentar idéias com
vistas a. A filosofia contemporânea, para além do próprio marxismo, explorou sobremaneira
este conceito para que neguemos tal fato. Igualmente, a prática social e política, sobretudo
aquela que se desenrolou ao longo do século XX, nos legou inúmeros exemplos históricos de
sua efetividade. Basta pensarmos, à guisa de exemplo, na ascensão de Hitler ao poder político
na Alemanha, no período stalinista do comunismo soviético, mas também nos mecanismos
ideológicos das bem-sucedidas empresas transnacionais, marcadamente as “empresas-
símbolo” do capitalismo norte-americano, para que a tenhamos ― falamos da ideologia
enquanto tal ― em presença, por assim dizer.
Ora, é uma evidência o fato de que todo discurso instituído comporta um nível
funcional (sem o que a vida em sociedade seria impensável): elaboração coletiva de uma rede
simbólica com vistas à organização da sociedade em seu conjunto. Como é certo que este
processo não se faz sem o confronto de interesses e a manipulação do discurso por parte de
indivíduos e/ou grupos. Por outro lado, o imaginário social-histórico e psíquico ― e tudo o
que dele emerge como linguagem e representação ―, embora sirva-se de imagens para existir,
jamais será redutível às suas imagens, à rede de significantes socialmente instituída.
Todo registro simbólico pressupõe uma atividade imaginária que, todavia, não se
reduz ao simbólico no qual se encarna para exprimir-se. Neste sentido, o risco de se situar o
imaginário como parte de uma totalidade ideológica, como se palavra alguma pronunciada
pudesse escapar a este “universal” do qual deriva o sentido do que é dito/escrito/feito, como
se o domínio do ideológico circunscrevesse os limites de toda atividade e de todo discurso é
render-se a uma concepção determinista do fazer social-histórico3, o que resultaria, afinal, na
impossibilidade de pensarmos uma brecha para a criação humana, da criação enquanto fazer-
ser próprio do social-histórico: não apenas para a reconstrução do que aí está, mas e,
sobretudo, para a invenção do novo, para fazer ser o que não é ainda. Diremos, com
Castoriadis:

2
Castoriadis destaca: “Resta imediato que a existência mesma da sociedade, como fazer/representar do coletivo
anônimo é impossível (em todo caso, inconcebível para nós) sem a instituição do legein (do distinguir-escolher-
pôr-reunir-contar-dizer) e o trabalho da lógica identitária-conjuntista que lhe é incorporado” (ibid., p. 335-336).
3
“Tudo isto, bem entendido, não é senão outra maneira de dizer que o legein é instituição primordial e que, a
este nível, a lógica identitária não pode compreender a instituição, visto que a instituição não é nem necessária
nem contingente, que sua emergência não é determinada, mas isto a partir do que, em que e através do que
somente o determinado existe” (ibid., p. 381. Grifos do autor).

2
O essencial da criação não é “descoberta”, mas constituição do novo: a arte
não descobre, mas constitui; e a relação que ela constitui com o “real”,
relação seguramente muito complexa, não é em todo caso uma relação de
verificação. E sobre o plano social, a emergência de novas instituições e de
novas maneiras de viver, não é simplesmente uma “descoberta”, é
constituição ativa (ibid., p. 200-201).

A literatura ― como a filosofia ― porque invenção de linguagem, nasce como


palavra que não pode ser nem antecipada em seu sentido de ser, nem de-finida em última
instância. Numa apologia à liberdade da criação literária, escreveu Maurice Blanchot: “A obra
― obra de arte, a obra literária ― não é nem acabada nem inacabada: ela é. O que ela diz é
exclusivamente isto: que ela é ― e nada mais” (L’espace littéraire, 1955, p. 14). A literatura
implica a liberdade própria ao ato de criar, uma liberdade que é sempre liberdade partilhada,
porque publicamente reconhecida como palavra poética, como coisa literária. A palavra
poética é intersubjetividade instantânea, seu caminho inclui não apenas aquele que a porta,
mas a todos nós: nós que estamos à sua escuta e caminhamos já em seu caminho e a pensamos
e sonhamos enquanto a seguimos. Que escutamos nós então?

1. Do lugar da ideologia4: uma função ideológica da literatura?

O campo lexical concernente à ideologia encontra nos primeiros escritos de Marx sua
referência axial. Não podemos falar do conceito de ideologia sem nos reportarmos a Marx,
antes de tudo, e à tradição marxista que se encarregou de desenvolvê-lo e estendê-lo a todos
os domínios da atividade humana. Em razão desta exigência, tomar-se-á em consideração
aqui, primeiramente e em breves linhas, a formulação marxiana da noção de ideologia em
suas origens e seu desenvolvimento nos primeiros escritos de Marx. Em seguida, discutir-se-á,
de modo pontual, dois breves escritos de Gyögy Luckács, à guisa de exemplificação do que
chamaríamos uma leitura da ideologização da literatura ― nesse caso já ela mesma
ideológica.
Dos primeiros manuscritos de 1843-1844 ao trabalho da Ideologia Alemã o conceito
de ideologia ― que nesta obra será empregado por Marx pela primeira vez ― foi
progressivamente definindo-se em oposição ao real. Marx diligenciava livrar-se da orientação
marcadamente idealista de Feuerbach, cuja antropologia fundava-se na noção de “ser
genérico” ou “essência genérica” (Gattungswesen), buscando estabelecer, por seu turno, o que
claramente seria o real. Uma vez que se possa determinar o que seja o real, tudo aquilo que
cair fora do real será tomado como ideológico (Cf. RICŒUR, 1997, p. 41). Uma crítica do
real, daquilo que constitui a vida concreta ou a base material da existência, portanto, afetará o
conceito de ideologia que lhe é oposto. Nesse momento o estatuto da ideologia resta
ambivalente: as bases concretas da existência humana, isto é, o que (e como) fazem os
homens para assegurar sua subsistência, negam a ideologia como seu falseamento, ao mesmo
tempo em que a ideologia é engendrada por essas mesmas bases (ibid., p. 42).
A mais evidente expressão desta ambivalência é a religião. Partindo da crítica que
Feuerbach havia já realizado, que Marx mesmo julgava terminada quanto ao essencial, Marx
pretenderá avançar no sentido da elucidação das bases materiais que engendram a religião
como fenômeno de alienação. Para Feuerbach a impossibilidade de o homem libertar-se das

4
Em nossa análise do conceito marxiano de ideologia seguiremos algumas das reflexões de Paul Ricœur
expostas em L’ideologie et l’utopie (Éditions du Seuil, 1997).

3
necessidades leva-o a postular um ser ilusório que represente a potencialização última de suas
próprias capacidades. Impedido de realizar suas potencialidades, o homem acaba por projetar
a si mesmo em um ser Absoluto, livre das necessidades. Desse modo nasce a alienação
religiosa. O homem, assim, transfere a um outro ser uma responsabilidade que é inteiramente
sua: a efetivação dos próprios valores, a construção de uma convivência harmônica e justa
entre os indivíduos. Assim, o modelo da primeira concepção marxiana de ideologia é tomado
de Feuerbach. Se, seguindo a reflexão de Feuerbach, a religião é a consciência de uma
inversão, resta então, concluirá Marx, estabelecer uma crítica deste mundo social do qual a
religião é a consciência invertida (ibid., p. 42-45). Podemos destacar aqui algumas
significativas passagens de um texto de Marx datado de 1843 (embora publicado apenas em
1927) no qual, mesmo não estando explicitado o conceito de ideologia, vemos funcionar o
modelo feuerbachiano. Trata-se de Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel.

O fundamento da crítica irreligiosa é este: o homem faz a religião, a religião


não faz o homem. A religião é realmente a consciência e o sentimento
próprio do homem que, ou ainda não se encontrou, ou está já perdido. Mas o
homem não é um ser abstrato, exterior ao mundo real. O homem é o mundo
do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado, esta sociedade produz a
religião, uma consciência errônea do mundo, porque eles constituem, eles
mesmos, um mundo falso. A religião é (...) a realização fantástica da
essência humana, porque a essência humana não tem realidade verdadeira. A
luta contra a religião é, por conseguinte, a luta contra este mundo do qual a
religião é o aroma espiritual. A miséria da religião é, de uma parte, a
expressão da miséria real, e, de outra parte, o protesto contra a miséria real.
A religião é o suspiro da criatura oprimida, a alma de um mundo sem
coração, do mesmo modo que ela é o espírito de uma época sem espírito. Ela
é o ópio do povo (1998, p. 7-8. Grifos do autor).

Numa acentuada atenção à práxis, à atividade histórica dos homens, portanto, àquilo
que perfaz a realidade humana concreta, Marx opõe o ideológico como aquilo que desvia o
olhar do homem do real, o ilude5. O que é propriamente humano deriva de sua ação, da
construção coletiva do seu mundo. Importa, pois, que a crítica da religião, iniciada por
Feuerbach, tenha seu necessário acabamento na crítica deste mundo invertido que produz a
inversão religiosa, a fantasia, a felicidade no cativeiro, ou a felicidade antecipada pela
promessa do além-cativeiro (“O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade”). O
ideológico será, ainda que não presente aqui como conceito, esta de-formação do real já ele
próprio de-forme. “A miséria da religião é, de uma parte, a expressão da miséria real, e, de
outra parte, o protesto contra a miséria real”. A crítica da religião é, portanto, a “crítica deste
vale de lágrimas, do qual a religião é a auréola” (ibid., 1998, p. 9. Grifos do autor). A miséria
do mundo real conduz os homens à miséria espiritual, à renúncia de sua tarefa histórica,
fazendo-os crer na “realização fantástica” de uma “essência humana”, uma vez que o homem
real não está ainda pronto. Este surgirá a partir do momento e na medida em que os homens se
voltem para si mesmos e abandonem aquele mundo fantástico.

5
“A religião é tão somente o sol ilusório que se põe em torno do homem, a tal ponto que ele não pode mais
voltar-se para si mesmo”, 1998, p. 9.

4
O texto da Ideologia Alemã6, de 1845, aprofundará a ambivalência material/ideal, ou
real/imaginário, pondo acento na “vida real” dos indivíduos, mais do que na consciência
destes enquanto seres partícipes de um universal (o “ser genérico”), como nos textos
anteriores (nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e na Contribuição à crítica da
filosofia do direito de Hegel). Embora a Ideologia Alemã tenha permanecido durante anos
na obscuridade e só tenha sido publicada em 1932, é nesta obra que o conceito de ideologia
aparece pela primeira vez na filosofia marxiana.
O texto sustenta um discurso ambíguo sobre a ideologia, permitindo duas perspectivas
de leitura distintas: ora o ideológico refere-se a uma “base material de entidades anônimas”,
não mais atendo-se às representações idealistas e imaginárias das consciências individuais;
ora “o ideológico é o imaginário enquanto oposto ao real” (RICŒUR, 1997, p. 104-105). Esta
oscilação permite, afirma, Ricœur, leituras distintas da obra. Todavia, já desde o prefácio,
Marx indica a amplitude que tomará o conceito de ideologia nesta obra. Uma vez marcada sua
oposição em relação aos jovens hegelianos, que se detinham em representações abstratas,
distantes, segundo Marx, do que se passava concretamente na Alemanha, “o conceito [de
ideologia] é estendido a todas as formas de produção que não especificamente econômicas,
como o direito, o Estado, a arte, a religião e a filosofia” (ibid., p. 106). Isto é o que nos
interessa aqui. O ideológico corresponderá, doravante, ao conjunto das idéias e pensamentos
que turvam a visão dos homens frente ao real. As imagens ou representações do concreto são
como que fantasmagorias, nada mais que reflexos e ecos da atividade real dos homens. Paul
Ricœur bem nota, a propósito, que “no marxismo posterior, a relação entre a realidade e o eco
ou reflexo conduzirá a uma constante depreciação de toda atividade intelectual autônoma”
(ibid., p. 117).
Todas as concepções humanas devem, pois, ser reduzidas7 às bases materiais da
existência, à vida real. Também a arte. Toda criação humana situa-se ― se a quisermos
compreender criticamente, isto é, se a quisermos conhecer em sua realidade ― em referência
à dinâmica concreta da sociedade: a produção das condições materiais da existência. Portanto,
na Ideologia Alemã, “as condições materiais e os indivíduos reais são os dois conceitos
fundamentais” (ibid., p. 108). Isto significa, a um só tempo, que são os homens que criam, por
meio de sua atividade, as bases materiais da sociedade, segundo suas necessidades, e suas
representações do mundo no qual vivem têm vínculo direto com o processo real que se
desenrola na base destas. Este é o ser do homem, esta sua vida real.
Nesse quadro, em que a dinâmica histórica possui um único vetor (as relações de
produção), a partir do qual se constitui a infraestrutura social e da qual tudo o mais procede ―
finalmente tudo: as leis, os valores, a arte, etc. ―, a idéia da criação e da criatividade restam
quimeras, e isto quer dizer, no limite: a produção da cultura nada tem de autônoma; as
criações culturais, elas mesmas, não são mais que sombras. Nas palavras de Marx:

Por conseqüência, a moral, a religião, a metafísica e todo o resto da


ideologia, assim como as formas de consciência que lhes são
correspondentes, perdem imediatamente toda aparência de autonomia. Elas
não têm história, não têm desenvolvimento; são, ao contrário, os homens
que, desenvolvendo sua produção material e suas relações materiais,
transformam, com esta realidade que lhes é própria, seu pensamento e os

6
Utilizaremos aqui a edição L’idéologie Allemande, Éditions Sociales, 1968. Tradução de Henri Auger, Gilbert
Badia, Jean Baudrillard e Renée Cartelle.
7
Paul Ricœur nota que, para Marx, no que respeita à ideologia, “a crítica é uma redução. A redução de um
conceito a seu fundamento, à base concreta da existência” (1997, p. 42).

5
produtos de seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, mas
a vida que determina a consciência (1968, p. 36-37).

É evidente que Marx não tem em vista aqui, em primeiro plano, a literatura, que é
nosso interesse, mas, antes e fundamentalmente, a superação das concepções idealistas dos
jovens hegelianos8, centradas em construções demasiado abstratas, regidas por um
determinismo lógico-conceitual9. Mas certo é que este resíduo ideológico que sobra dos
processos efetivos de produção da vida coletiva inclui a arte e, portanto, a literatura, como
veremos mais abaixo10. Como a religião, o direito e a metafísica, a arte não tem história11,
nem tampouco remete à autonomia, o que significa dizer, em suma: a arte ― bem como toda
e qualquer criação do espírito ― não tem realidade própria mas, antes, faz parte do processo
global do indivíduo concreto, vale dizer, daquele que faz a vida real.
A amplitude do que cai sob o âmbito do ideológico, como projeção fantasmagórica
dos processos sociais concretos, infraestruturais, é simplesmente absoluta. Os exemplos se
sucedem no texto de Marx e incluem, por fim, a ciência e a filosofia.

É aí onde cessa a especulação, é na vida real que começa, pois, a ciência


real, positiva, a análise da atividade prática, do processo, do
desenvolvimento prático dos homens. As frases ocas sobre a consciência
cessam, um saber real os deve substituir. Com o estudo da realidade a
filosofia cessa de ter um meio onde ela exista de maneira autônoma. Em seu
lugar se poderia no máximo pôr uma síntese dos resultados mais gerais que é
possível abstrair do estudo do desenvolvimento histórico dos homens. Estas
abstrações, tomadas em si mesmas, destacadas da história real, não têm
absolutamente nenhum valor (1968, p. 37).

Esse descrédito a respeito da filosofia já fora antecipado na célebre décima primeira


das Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos não fizeram senão interpretar o mundo de
diferentes maneiras; importa, porém, transformá-lo”12. Ao que Paul Ricœur perguntará: “Mas
podemos transformar sem interpretar?” (1997, p. 106). É possível instituirmos um discurso e
uma linguagem sobre a práxis que não comportem, já de início, uma dimensão simbólica?
Afirmará ainda Ricœur: “Se a linguagem não é já constitutiva da ação, então não podemos
dispor deste conceito positivo de ideologia” (ibid., p. 120).

8
Na obra A ideologia alemã, “O termo [ideologia] designa essencialmente os Jovens Hegelianos e, portanto, o
que resulta da decomposição do sistema hegeliano” (RICŒUR, 1997, p. 106).
9
Ricœur lembra que, no texto da Ideologia Alemã, o termo “Vorstellung não designa a imaginação mas, antes, a
concepção, a idéia ou a representação. Marx opõe a maneira pela qual certas coisas aparecem (erscheinen) como
fenômenos, isto é, como representações, à maneira pela qual são efetivamente” (ibid., p. 111-112). Esta nota é
importante para a distinção que iremos marcar mais adiante entre representação (tomada no lato senso de
constituição figurativa ou concepção) e imaginação (cuja significação tomaremos da filosofia de Gaston
Bachelard).
10
Ricœur comenta: “Nesta expressão ‘todo o resto da ideologia’, Marx engloba todas as esferas que implicam
representações em geral, todas as produções culturais ― a arte, a lei, etc: o campo é extremamente largo” (1997,
p. 118).
11
Louis Althusser reafirmará esta perspectiva. Para o autor, a ideologia em geral não tem história. A história é,
antes, o determinante (regional e de classe) das ideologias particulares (Cf. 1980, p. 71-76).
12
Utilizamos a tradução francesa publicada no mesmo volume de L’idéologie allemande, das Éditions Sociales,
já referenciada acima.

6
A tradição marxista se encarregará de precisar o funcionamento dos processos
ideológicos13. Certo é que, fora desta tradição, o conceito de ideologia receberá novas
significações. Tais desdobramentos, todavia, escapam aos objetivos deste artigo. Poderíamos
finalmente, no sentido da tradição marxista, ao qual decidimos circunscrever nossa análise
caracterizar a ideologia como sendo, em geral:

a) O processo de constituição das idéias e representações a partir das condições


reais de vida de uma dada classe social e sua situação histórica14;
b) O modo de interpretação/distorção da realidade segundo interesses de
classe15; e:
c) A estratégia de legitimação e perpetuação de um status quo e/ou autoridade
(RICŒUR, 1977, p. 68-72).

Para o que nos interessa fundamentalmente, a saber, as relações entre ideologia e


literatura, penso ser oportuno considerarmos, em breves linhas, as reflexões de Gyögy
Luckács acerca da literatura, uma vez que foi este o pensador que mais ousou na tentativa de
elaborar uma estética marxista. Todavia, um estudo deste tema em Luckács exigiria, por si
mesmo, um estudo da obra de Luckács, o que é obviamente impensável nos limites de um
simples artigo. Presentemente, nos ateremos a dois ensaios16 do filósofo, escritos entre os
anos de 1922 e 1923, período de seu exílio em Viena, em colaboração ao jornal Rote Fahne,
órgão do Partido comunista alemão. Estes artigos foram praticamente esquecidos, sobre eles
nada havia sido dito, salvo uma breve referência do próprio Luckács em uma nota de rodapé à
obra História e consciência de classe (1923). Foi, contudo, esta breve notação o que levou
Michel Löwy a redescobri-los e publicá-los em conjunto em 1978 no volume intitulado Die
Rote Fahne17.
Em “Marxismo e história da literatura” (1922) Luckács faz comentário crítico a um
artigo de orientação marxista publicado anteriormente no Rote Fahne. O autor, não citado por
Luckács, criticara a concepção burguesa da “arte pela arte”, que considera “arma ideológica
burguesa semelhante àquela da ciência pura” (1978, p. 85). Luckács não nega que a literatura
possa servir de arma ideológica, mas entende que isto “não esgota a significação de classe da
teoria da arte pela arte” (ibid., p. 85). Luckács, diferentemente, vê nesta teoria um sinal da
decadência da cultura burguesa. A literatura burguesa nascera em oposição à arte feudal-
absolutista, portanto, como “arte engajada”, plenamente situada no movimento histórico
revolucionário que a classe burguesa levava a cabo então. Para o filósofo húngaro, a arte
burguesa, já desde a época weimariana (com Goethe e Schiller), esvaziara-se em substância,
aos poucos distanciando-se do espírito de classe que ela mesma instituíra. Numa perspectiva
marxista particularmente estrita, Luckács afirmará que este “papel revolucionário” da arte,
como expressão de um espírito de classe, então abandonado pelos expoentes literários da

13
Vale conferir as reflexões de três importantes pensadores sobre os esquemas funcionais da ideologia e sua
relação com a ciência: Paul Ricœur (Interpretação e Ideologias, Editora Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1977,
Louis Althusser, 1980, e Karl Manheim, Ideologia e Utopia, publicado no Brasil pela Zahar em 1972.
14
Reportemo-nos ao comentário de Ricœur : « A produção das idéias, das representações e da consciência [der
Ideen, Vorstellugen, des Bewusstsein] está, desde o início, direta e intimamente mesclada à atividade material e
ao comércio dos homens, ela é a linguagem da vida real » (1997, p. 114).
15
Ver Ricœur Interpretação e Ideologias, 1977 (particularmente os capítulos 2 e 3) e Karl Manheim, Ideologia
e Utopia, 1972 (segunda parte).
16
São eles: “Marxismo e história da literatura” e “Gênese e valor das criações literárias”, comentados nesta
ordem.
17
Nos serviremos aqui da edição francesa da PUF, publicada no mesmo ano sob o título Littérature,
philosophie, marxisme. Tradução de Jean-Marie Brohm e Andréas Streiff.

7
classe burguesa ― para o que oferecerá ele alguns exemplos ―, caberá ao proletariado para o
qual “a arte é uma arte de classe afirmada, uma arte engajada, proclamando os objetivos
propostos da luta de classe. Do ponto de vista da classe burguesa, entretanto, isto revela já o
processo de dissolução ideológica” (ibid., p. 86). Retenhamos, por ora, esta idéia: a arte
literária, porquanto inserida numa sociedade dividida em classes, forçosamente expressa os
conteúdos ideológicos das classes em questão e é em virtude deste vínculo que a podemos
compreender.
Escrito no ano seguinte (1923), o artigo intitulado “Gênese e valor das criações
literárias” assinala uma posição mais crítica de Luckács quanto à interpretação marxista da
literatura. Ele não nega que a literatura deva ser compreendida como “parte integrante do
conjunto do desenvolvimento social” (ibid., p. 102). Igualmente, quando se trata da história da
literatura, afirma Luckács que devemos partir “da situação das classes que criam a literatura
da época considerada”, bem como tomar em consideração “a luta das camadas sociais às quais
as correntes literárias servem como forma de expressão ideológica” (ibid., p. 103). A
diferença na posição assumida por Luckács neste artigo em relação ao texto publicado no ano
anterior, indicado acima, é observável na análise que esboça acerca do significado
inteiramente distinto de que se revestem as obras literárias ao longo da história. Com efeito,
Marx havia enunciado este problema na Introdução de Contribuição à crítica da economia
política:

A dificuldade não é de compreender que a arte grega e a epopéia estão


ligadas a certas formas do desenvolvimento social. A dificuldade reside no
fato de que elas nos causam ainda um prazer estético e que elas têm, ainda
para nós, de algum modo, o valor de normas e de modelos inacessíveis
(1957, p. 175).

Bem entendida esta nota metodológica de Marx, trata-se, a partir de uma análise
marxista da história da literatura, de estar atento ao eco singular que produz um texto literário
em diferentes sociedades e períodos da história. Ora, o que Luckács põe em questão é,
propriamente, para dizer noutros termos, a ressonância que encontra uma obra literária no seio
do imaginário social-histórico. O imperativo que dirige aos teóricos marxistas da arte é o de
não tomarem como fixos o conteúdo e a forma de uma obra, pois o imaginário social-histórico
desenha, a cada vez, novos contornos para a mesma peça literária. Dito por Luckács: “O
conteúdo de classe original de uma obra literária pode adquirir, no curso do desenvolvimento
[histórico], uma função diametralmente oposta à que foi sua significação primitiva” (1978, p.
104. O grifo é nosso). Não basta, pois, situá-las como parte do desenvolvimento social,
mesmo porque dentre várias obras literárias produzidas em um mesmo período, tendo estas a
mesma origem social, portanto, participando das mesmas “relações de classe”, apenas
algumas logram exprimir apropriada e eficazmente um conteúdo ideológico. Uma análise
estética marxista da criação literária não pode, pois, deter-se na identificação das relações
entre o conteúdo e a forma de uma obra e sua origem social. Ela deverá explorar, sobretudo,
as relações entre as condições da realidade vivida em uma época e a expressão literária daí
extraída (ibid., p. 104-105).
Embora note-se neste texto o avanço de Luckács em termos de uma exigência de
autocrítica da análise marxista da obra literária, o esquema de fundo permanece inalterado: a
obra literária toma sua significação dos processos sociais, fundamentalmente, da luta de classe
que se desenrola sob seus pés. O sentido do texto literário, sentido este primitivo (carregado
de uma tonalidade ideológica original) ou posteriormente redefinido por outros con-textos
(quando novas condições sociais e, aqui, novas condições de classe, lhe conferem novo

8
significado ou função ideológica), não será mais que o de produto de uma situação histórica
concreta, não mais que a expressão artística de conteúdos de classe.
O que importa marcar aqui é o fato de que nestes dois artigos de Luckács a literatura é
pensada a partir do primado do desenvolvimento histórico dos processos de reprodução da
vida coletiva. Assim, a literatura, mais precisamente, a criação literária enquanto tal, a
imaginação poética, então, é situada no horizonte da causalidade sócio-histórica, e, portanto,
é duplamente condicionada: 1) pela reprodução material da existência ― arte como produto
derivado da dinâmica social; e 2) a literatura como veículo ideológico. A essência do poético
será, então, determinada a partir de um princípio exterior à imaginação poética ela mesma,
nesse caso: a práxis. A autonomia da imaginação literária não será, doravante, possível.

2. Do lugar da literatura: uma fenomenologia da imaginação poética.

Que entendemos por imaginação poética, ou imaginação literária? Como podemos


pensá-la e em que momento? O poeta sabe a imagem poética enquanto nasce ela de sua
escrita? E nós, que estamos à distância e não somos nós a inscrevê-la, onde estamos quando
nos propomos decifrar o enigma de seu aparecimento? É preciso, pois, antes de tudo, tentar
dizer algo sobre este fundo donde brota a imagem poética: a imaginação. Para bem fazê-lo,
seguiremos aqui algumas das reflexões de Gaston Bachelard acerca do imaginário poético.
Em 1943, em sua obra O ar e os sonhos, Bachelard iluminava o estudo da imaginação
com palavras renovadoras:

Como muitos problemas psicológicos, as pesquisas sobre a imaginação são


confundidas pela falsa luz da etimologia. Pretende-se que a imaginação seja
a faculdade de formar imagens. Ora, ela é antes a faculdade de deformar as
imagens fornecidas pela percepção, ela é, sobretudo, a faculdade de libertar-
nos das imagens primeiras, de mudar as imagens. Se não há mudança de
imagens, união inesperada de imagens, não há imaginação, não há ação
imaginante. Se uma imagem presente não faz pensar numa imagem ausente,
se uma imagem ocasional não determina uma prodigalidade de imagens
aberrantes, uma explosão de imagens, não há imaginação. Há percepção,
lembrança de uma percepção, memória familiar, hábito das cores e das
formas. O vocábulo fundamental que corresponde à imaginação não é
imagem, mas imaginário. (...) Graças ao imaginário, a imaginação é
essencialmente aberta, evasiva. É ela, no psiquismo humano, a própria
experiência da abertura, a própria experiência da novidade (1950, p. 7.
Grifos do autor).

Nesta compreensão, o imaginário não se limita a um papel meramente refletor seja do


profundo psíquico, seja do mundo sensível percebido. Portanto, o imaginário não resta, de um
lado, como tela sobre a qual o inconsciente estenderia seus conteúdos, nem, por outro, como
faculdade articuladora das imagens que retemos do campo perceptivo. Tomado atentamente
em si mesmo, o imaginário apresenta-se antes como atividade, como faculdade produtora.
Podemos, pois, repetir, contra toda rígida determinação da imagem literária, as palavras de
Bachelard: “Nada prepara uma imagem poética, nem a cultura, no modo literário, nem a
percepção, no modo psicológico” (1992, p. 8).
Todavia, conquanto as crie, o imaginário não se fixa em suas imagens, como dirá
ainda Bachelard:

9
Sem dúvida, em sua vida prodigiosa, o imaginário cria imagens, mas
apresenta-se sempre como algo além de suas imagens, é sempre um pouco
mais que suas imagens. O poema é essencialmente uma aspiração a imagens
novas. Corresponde à necessidade essencial de novidade que caracteriza o
psiquismo humano (1950, p. 8. Grifos do autor).

Pensar a imaginação poética impõe-nos captar a imagem literária no instante da sua


inauguração. É preciso estar “presente à imagem no minuto da imagem, (...) no êxtase da
novidade da imagem” (1992, p. 1). Mas como fazer isto? Como “nascer e renascer no
momento em que surge um verso dominante” (ibid., p. 1)? Bachelard já havia escrito em A
terra e os devaneios do repouso: “Todo conhecimento da intimidade das coisas é
imediatamente um poema” (1948a, p. 11). Mas, novamente, como fazer isto? Como tornar-se
íntimo da intimidade do instante poético? Como fundar, assim, uma “metafísica da
imaginação” (1992, p. 3)?
Sabemos que Bachelard, ao recorrer ao método fenomenológico, a partir de A poética
do espaço, tinha por objetivo um estudo da imaginação literária que fosse uma “ontologia do
ser poético”, e que, nessa medida, escapasse a toda explicação causal para o surgimento da
imagem (1992, Introdução). Aqui Bachelard tem por alvo as interpretações psicologistas da
imagem, como assinala explicitamente nesta passagem da Introdução: “As causas alegadas
pelo psicólogo e pelo psicanalista não podem jamais explicar bem o caráter realmente
inesperado da imagem nova, como também não explicam a adesão que ela suscita numa alma
estranha ao processo de sua criação” (1992, p. 2). Assim, a fenomenologia nos possibilitaria,
contra toda posição causal, a compreensão da imagem poética na sua realidade específica,
sobretudo, em seu nascimento como simples imagem. “É pelo resgate deste valor de origem
de diversas imagens poéticas que deve interessar-se, em um estudo da imaginação, uma
fenomenologia da imaginação poética” (1992, p. 8).
A imagem poética nova, uma simples imagem, não tem causalidade. Ela não é o puro
reflexo de potências psíquicas, como não é, tampouco, o espelho da dinâmica social, da
materialidade da vida real que possibilitaria sua emergência. Mas ela não é, igualmente, dirá
ainda Bachelard, o eco subjetivo de uma figura arquetípica.

Quando, afirma o filósofo, no decorrer das nossas observações, tivermos que


mencionar a relação de uma imagem poética nova com um arquétipo
adormecido no inconsciente será necessário compreendermos que essa
relação não é propriamente causal. A imagem poética não está submetida a
um impulso. Ela não é o eco de um passado. É antes o inverso: pela explosão
de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos e não se vê mais em
que profundidade esses ecos vão repercutir e cessar. Por sua novidade, por
sua atividade, a imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio.
Ela advém de uma ontologia direta. (1992, p. 1-2. Grifo do autor).

As imagens poéticas não têm outra significação senão significação poética. Não
queremos ver a imagem pensando em outra coisa, preocupados em ver “além” da imagem, ou
por trás desta, em busca de sua “causa”, do enredo psicológico que nos dê segurança de
análise ou da base sócio-histórica que lhe desnude a trama social e seus conflitos, dos quais
ela não é mais que um reflexo. A palavra poética não quer dizer outra coisa, ela não oculta
nem revela senão o ser de uma imagem nova, como clarifica Bachelard: “Por sua novidade,
uma imagem poética abala toda atividade lingüística. A imagem poética nos remete à origem
do ser falante” (1992, p. 7). Suas raízes não estão, portanto, numa psique que, cheia de si,

10
explode em devaneios. As explicações psicológicas buscam causas para as imagens poéticas
fora das próprias imagens poéticas. Ora, as imagens poéticas não apresentam correlações de
passado e presente. O instante poético é absoluto. Ele marca, antes, uma ruptura com qualquer
concepção de tempo horizontal, sucessivo, causal.
Falar, pois, da literatura como expressão de certa ideologia é já circunscrever o sentido
de ser de uma imagem poética que não cessa de renovar-se a cada leitura, em cada leitor. As
imagens poéticas, porque não têm passado, porque não têm uma causa, porque nascem de
arroubo, porque “trazem a marca da primitividade”, exigem, portanto, a ruptura definitiva
com a explicação causal, qualquer que seja sua natureza. O psicanalista, por força de ofício,
não pode ater-se à atualidade assinalada pelo ser da imagem. Despreza a novidade da imagem
porque quer buscar, “através” dela, a realidade que a explica. “Esquece a pesquisa inversa:
sobre a realidade, buscar a positividade da imagem” (BACHELARD, 1948b, p. 20).
Poderemos, certamente, estender esta crítica de Bachelard da leitura “psicologizante” da
literatura a outras formas de discurso que igualmente comportem alguma dimensão causal.
Uma fenomenologia da imaginação poética nos concede os “benefícios do elementar”.
Bachelard assinala: “A literatura deve surpreender. Certamente, as imagens literárias podem
explorar imagens fundamentais, mas cada umas das imagens que surgem sob a pena de um
escritor deve ter o seu diferencial de novidade” (ibid., p. 1948b, p. 6).
A imagem literária reduplica a vida precisamente naquilo que a vida tem de não-
previsível, de surpreendente. Aquele, pois, que se põe a pensar as imagens que sonham os
poetas, deve, sem as obrigações do mundo da percepção, se debruçar sobre uma imagem
literária com a mesma abertura de alma que aquela da qual se originou a própria imagem,
deve estar disposto a bem sonhar. Para dizer com Bachelard, ele deve, enfim, “(...)
compreender que a perspectiva é solidária de uma dinâmica do olho, que nada é fixo para
aquele que alternadamente pensa e sonha...” (1993, p. 121).
Esta é, a meu ver, a grande contribuição de Gaston Bachelard, do Bachelard noturno,
do filósofo da imagem: ele conquistou, primeiramente para si mesmo, e depois para todos nós,
o direito de sonhar.

3. A palavra poética e seu sentido18

Tentaremos aqui uma aproximação à palavra em seu sentido poético. Terá a palavra
poética algo de próprio? Em que ela modifica o ser da linguagem? Antes de responder a essa
questão será preciso fazer algum esforço por acompanhar a palavra enquanto tal. Mas o que
isto significa? O que significa esta proposição — “Acompanhar a palavra enquanto tal” — e o
que a palavra significa enquanto palavra? É possível encontrar o sentido da palavra? A fala, o
dizer, o discurso empreendido, a frase posta-proposta-suposta, repousam eles sobre um fundo
comum, o mesmo fundamento, este: a palavra? É ela a essência mesma de algo que se
metamorfoseia em formas e sentidos tão múltiplos quantos são seus doadores? E, enfim, se é a
palavra doação, quem é seu signatário e a quem ela se destina?
Heidegger nos propõe experimentarmos o caminho em direção à palavra, em direção
ao que ela tem de próprio.
Eis a dificuldade primeira em pensarmos um caminho em direção à palavra: trata-se
de uma imagem física que supõe certa distância entre a palavra e nós que a buscamos.
Estamos então longe da palavra. Mas isto é possível? O que somos fora da palavra? A palavra

18
As reflexões apresentadas a seguir são fruto da leitura da conferência de Heidegger intitulada “Le chemin vers
la parole” (Die Sprache), de 1959, publicada como capítulo final do livro Acheminement vers la parole (1976,
p. 227-257).

11
não é, portanto, uma das muitas capacidades humanas, mas, antes, ela assinala o ser mesmo
do humano: “o ser humano repousa na palavra” (HEIDEGGER, 1976, p. 228). Mas, por outro
lado, se estamos sempre na e junto da palavra isto não significa que a possuímos. A palavra
não está incrustada na natureza humana como algo dado, naturalmente funcional. Estamos na
palavra, mas não a temos, não habitamos imediatamente o que ela tem de próprio. O ser da
palavra precisa ser, pois, alcançado.
Obviamente, a palavra tem parte na natureza humana. Dirá Humboldt, em sua obra Da
diversidade da estrutura da palavra humana e sua influência sobre o desenvolvimento
espiritual da espécie humana, citado por Heidegger: “A palavra não é uma obra (Ergon),
mas uma atividade (Energeia). Ela é (...) som articulado apto a exprimir o pensamento (ibid.,
p. 233. Grifos do autor). Todavia, mesmo Humboldt considerará que a palavra jamais pode
ser limitada a mera expressão vocal do pensamento. Para ele, o verdadeiro e essencial da
palavra é o falar em sua totalidade (ibid., p. 233). A palavra é “um verdadeiro mundo que o
espírito deve necessariamente pôr entre ele e os objetos graças ao trabalho interno de sua
força” (ibid., p. 234. Grifos do autor). Tudo isto que o espírito humano produz, a partir do
trabalho interno de sua força é o mundo. Mundo enquanto percebido, mundo enquanto
expressão da linguagem. Isto significa, neste caso, que o essencial da palavra é o de ser
expressão do mundo enquanto subjetividade (ibid., p. 235).
Resta saber se a proposição de Humboldt pode nos conduzir ao que a palavra tem de
próprio, à essência da palavra enquanto palavra. De pronto, Heidegger situará os limites,
historicamente compreensíveis, desta compreensão:

O caminho de Humboldt em direção à palavra orienta-se pelo homem,


conduz através da palavra e desemboca em outra coisa: dar o fundamento do
desenvolvimento espiritual da espécie humana e expor este
desenvolvimento. A essência da palavra concebida a partir de uma tal
perspectiva não nos permite ainda ver o desdobramento mesmo da palavra: a
maneira segundo a qual a palavra se desdobra (west), quer dizer dura
(währt), isto é, permanece reunida nisto que ela recolhe e guarda e concilia
como próprio, enquanto palavra, a palavra para si-mesma (ibid., p. 235-
236).

Heidegger, no início deste texto, propusera uma “fórmula”, a partir da qual


poderíamos pensar um caminho em direção à palavra, é esta: “conduzir à palavra a palavra
enquanto palavra” (ibid., p. 228). O que significa tal caminho? O filósofo responde:
“Apresentar a palavra em sua liberdade a fim de a representar enquanto palavra e, uma vez
representada, de a exprimir” (ibid., p. 228). Aparentemente, nada mais que um vertiginoso
entrelaçamento da palavra sobre si mesma: a palavra conduzida a si mesma enquanto palavra.
Um pensamento mais pragmático quereria bem antes desvencilhar-se deste entrelaçamento da
palavra: da palavra lançada sobre si mesma, presente a si como palavra. Trata-se, ao
contrário, de desenlaçar a palavra entrelaçada em si de maneira que ela deixe ver suas
múltiplas relações: o que ela porta em si, o que ela tem de próprio.
Que porta a palavra dita? Ela diz. A palavra diz mesmo sem ser dita. Se o espanto ou o
terror nos assaltam, silenciamos. Isto não significa impossibilidade de falar. Se alguém,
exemplifica então Heidegger, perde a fala por acidente, “ele não fala mais. Ele não pode mais
fazer silêncio. Ele tornou-se mudo” (ibid., p. 230). Deixar de dizer é também (e já) dizer.
Dizer e silenciar serão, pois, e sempre, mostrar, no sentido de deixar aparecer o que na alma
está abrigado. Na palavra repousa, assim, uma espécie de desabrigamento. “Mostrar é, sob
múltiplos modos, em desvelando ou velando, conduzir alguma coisa a aparecer, deixar

12
apreender o que então aparece e deixar retomar (trabalhar ou tratar) o que foi apreendido”
(ibid., p. 231).
Dizer, falar, portar a palavra remete, pois, ao que no tempo é dado em presença. Não
fixação imediata de um signo como instrumento de uma designação (ibid., p. 231). Este
sentido de ser que a palavra porta, que ela traz à presença ― o mostrar ―, carrega em seu
desdobramento um traço-de-abertura (tracé-ouvrant), que permite o
acolhimento/recolhimento do sentido da palavra em seu conjunto, em seu sentido inteiro,
tanto do que é falado, quanto do que resta infalado (imparlé [Ungesprochenes]) (ibid., p.
237), mas que no “dizer” mostra, deixa aparecer, dá a ver e a escutar. “Dizer e falar não são a
mesma coisa. Alguém pode falar e falar sem fim, e isto não quer dizer nada. Ao contrário, eis
alguém que faz silêncio, ele não fala e, não falando, ele pode dizer muito” (ibid., p. 239).
Todos os signos da linguagem têm sua origem e sentido de ser no horizonte aberto do
mostrar. O mostrar desvela, assim, as intenções abrigadas pelo falado/infalado, pelas
ressonâncias e ecos da palavra dita. Esse mostrar da palavra no que ela deixa entre-ver, no que
ela des-vela como próprio tem sua fonte no Dito que, o frisa Heidegger, não se confunde com
o “simplesmente dito”. O Dito (Die Sage) é, antes, “a palavra em seu desdobramento” (ibid.,
p. 240). Inteiramente distinto de algo que resta definido e pronto, determinado e fixo, o Dito é
transitivo, ele é no tempo: d e s d o b r a m e n t o... O Dito remete, pois, a este
entrelaçamento da palavra que, no entanto, não permanece envolto em si, mas que se
desenvolve. Chegamos assim à idéia inicial: o desenvolvimento da palavra, seu desdobrar no
tempo não é outra coisa que o caminho mesmo da palavra em direção à palavra. “O caminho
em direção à palavra se desdobra na palavra ela mesma. O caminho em direção à palavra no
sentido do fato de falar é a palavra enquanto Dito” (ibid., p. 244).
A palavra mostra-se, deixa-se vir à presença pelo Dito. O que é mostrado,
“presentado”, não permanece na obscuridade. Antes, o Dito, ao mostrar a palavra no que ela
tem de próprio, torna-a apropriável. A transitividade da palavra implica sua apropriação por
aquele que a escuta. O Dito, o mostrar a palavra enquanto esta se deixa aparecer como o que
vem em presença ― a palavra enquanto palavra ― faz, então, seu caminho no e pelo
apropriamento. O apropriamento abre caminho à palavra: o encontro de quem atentamente
escuta com a ressonância esclarecedora do Dito. Heidegger sublinha:

O apropriamento descoberto no mostrar do Dito, não se deixa representar


nem como chegada nem como acabamento. (...) O apropriamento não é o
produto (resultado) de outra coisa, mas a doação mesma, cujo simples dom
em presença concede algo como um Es gibt (dá)19; deste “dá”, mesmo o

19
A tradução desta expressão, em qualquer idioma, é particularmente difícil, tanto por sua especificidade no
alemão, quanto pelo sentido que ela ganha no contexto do pensamento de Heidegger. Com efeito, o pronome
neutro es permite a flexão impessoal de alguns verbos alemães, tais como: es wächst (cresce), es blüht (floresce),
es klopft (batem à porta), entre outros. O verbo geben (dar) é um caso especial. Usado impessoalmente, o sentido
altera-se: es gibt (há) e es gab (houve). Em Carta sobre o humanismo, Heidegger argumenta que um
pensamento não pode ser considerado humanismo “se este humanismo é um existencialismo e faz sua esta
proposição de Sartre: precisamente somos sobre um plano em que há somente homens. Se o empregamos do
ponto de vista de Ser e Tempo, conviria antes dizer: precisamente somos sobre um plano em que há
principalmente o Ser. Mas, donde vem e o que é o plano? O Ser e o plano são o mesmo. Em Ser e Tempo se diz,
refletidamente e com toda a intenção: il y a l’Être [há o Ser, em francês no original alemão]: ‘es gibt’ das Sein.
Este ‘il y a’ [há] não traduz exatamente ‘es gibt’, pois o ‘es’ (ele) que aqui ‘gibt’ (dá) [Heidegger retoma, pois, o
sentido original do verbo geben] é o próprio ser. O ‘gibt’ (dá) designa, todavia, a essência do Ser, essência do
que se dá, que outorga sua verdade. O dar-se no aberto, com o aberto mesmo, é o próprio ser” (Lettre sur
l’humanisme, 1957, p. 83. Os grifos são do tradutor, mas não constam do original alemão nesta edição
bilíngüe).

13
“ser” tem ainda necessidade de alcançar o seu próprio enquanto presença
(ibid., p. 246).

A fórmula proposta por Heidegger ― “conduzir à palavra a palavra enquanto palavra”


― diz, ela mesma, esse caminho aberto pelo apropriamento da palavra, seu traço-de-abertura,
na escuta à palavra doada, dita. Ela não expõe ou determina o sentido da palavra, mas a des-
prende em si como caminho e nos convida a acolhê-la em sua liberdade.
Ora, o estar-a-caminho do Dito, o desdobramento da palavra enquanto palavra no
tempo, não significa outra coisa que a destinação histórica da palavra. Heidegger solidamente
o afirma: “Não há palavra natural no sentido em que ela seria a palavra de uma natureza
humana sem destino, a-histórica e dada em si. Toda palavra é histórica. (...) Mesmo a língua
como informação não é a palavra em si ― ela é, ao contrário, histórica, segundo o sentido e
nos limites da época presente do mundo” (ibid., p. 253. Grifo do autor).
A palavra é, pois, sentido de ser porque se dá à escuta. Em seu desdobrar ela
invoca/provoca/convoca ao seu apropriamento. Isto somente é possível na dádiva do encontro
com a palavra. Embora a palavra diga solitariamente (ibid., p. 254), embora seja ela só
enquanto fala, ela não é desprovida de relações. “O ser humano não é capaz de falar senão na
medida em que, pertencendo ao Dito, ele lhe empresta escuta a fim de poder, dizendo ele em
seguida, dizer uma palavra” (ibid., p. 254).
A palavra, agora, então, a palavra poética, supõe o encontro entre duas almas, uma que
fala, outra que escuta. Esta que fala, escutando-se a si própria ao mesmo tempo em que fala,
aquela que escuta, falando para si o que escuta nas ressonâncias da palavra dita. Onde ambas
se encontram? Elas se encontram na obra. No sentido de Heidegger, diremos que a palavra
poética alcança seu estatuto20 ― palavra poética enquanto tal ― em sendo dita e ouvida e
redita no espaço da obra, no espaço literário. É precisamente isto o que nos diz Maurice
Blanchot em uma obra cujo nome é, justamente, o espaço literário: “A obra é obra somente
quando ela torna-se intimidade aberta de alguém que a escreve e de alguém que a lê, o espaço
violentamente desdobrado pela contestação mútua do poder de dizer e do poder de escutar”
(1955, p. 35).
O poder de tudo dizer ― mas também o poder de silenciar ― e a consideração do
espaço social como lugar do reconhecimento da obra enquanto “coisa literária” é o que nos
ocupará a seguir.

4. Literatura e democracia

Em sua obra Donner la mort (1999) Derrida, fabulosamente, faz a literatura herdeira
da tradição bíblica, a que remonta a Abraão, mais precisamente, à cena do sacrifício de
Abraão. Em que sentido representaria esta enigmática demanda divina, crudelíssima a olhos
nus, o sacrifício do amor providencial dado a Sara em sua velhice, a morte dada ao filho da
promessa, sinal da aliança que fizera Iahvé com Abraão, futuro do amor de Deus pela
descendência do justo e selo de sua bênção, em que sentido, perguntamos, representaria tal
cena um anúncio da literatura?

20
A propósito do apropriamento da palavra, Heidegger considera: “Se nós entendemos sob a palavra Geetz (a lei,
o estatuto) a reunião do que se deixa cada vez vir em presença em seu próprio, isto é, estar em seu lugar lá onde
ele pertence àquele com quem se reconcilia, então o apropriamento é o mais simples e o mais doce dos estatutos”
(1976, p. 248).

14
A reflexão de Derrida nutre-se da narrativa de Kierkegaard, já ela mesma ficcionista,
sobre o sacrifício de Abraão (“Era uma vez um homem que tinha, em sua infância, ouvido a
bela história de Abraão posto por Deus à prova...”, [KIERKEGAARD, Crainte et
tremblement, 1935, p. 7]). Nota Derrida o acento posto por Kierkegaard no singular silêncio
de Abraão, fato silenciado na cena bíblica original: “Eles foram três dias em silêncio; manhã
do quarto dia, Abraão não diz uma palavra...” (KIERKEGAARD, 1935, p. 9); “Eles
caminharam em silêncio; (...) Ele preparou o holocausto em silêncio” (ibid., p. 11); “Nada
disto jamais foi dito ao mundo, e Isaac jamais disse a alguém algo do que ele tinha visto...”
(ibid., p. 12-13); “Ele não diz nada a Sara, nada a Eliezer: quem aliás podia compreender? E a
tentação, por sua natureza, não lhe tinha imposto o voto de silêncio?” (ibid., p. 27).
Eis que a literatura vê-se então portadora do silêncio de Abraão, do segredo justificado
pelo justo, do absoluto silêncio diante do Absoluto, do sagrado direito de nada dizer. Ela será
portadora do sentido suspenso... A literatura herda, assim, a singularidade absoluta do
segredo, ao mesmo tempo em que, enquanto instituição moderna, ela negará este sagrado, ou
qualquer filiação ao sagrado. Conservando o secreto do segredo, a liberdade do não-dizer, o
absoluto direito ao silêncio, o direito ao não-revelar ― pesadamente sustentado por Abraão
em seu temor a Deus ― a literatura, não obstante, trairá o sagrado deste silêncio em nome da
liberdade de tudo dizer e tudo calar, de tudo revelar e tudo ocultar.
O signo deste silêncio, ou deste direito ao silêncio, será marcado por uma tensão entre
a autonomia da criação, da liberdade prática indissociável ― e mesmo emblemática ― da
modernidade, e a heteronomia do reconhecimento público (1999, p. 208) ― outorgado
institucionalmente ― do estatuto propriamente literário de um texto. Dirá Derrida:

Pode tornar-se coisa literária todo texto confiado ao espaço público,


relativamente legível ou inteligível, mas cujo conteúdo, o sentido, o
referente, o signatário e o destinatário não são realidades plenamente
determináveis, realidades ao mesmo tempo não-fictícias ou isentas de toda
ficção, dadas, como tais, por uma intuição, a algum juízo determinante (ibid.,
p. 174-175. Grifos do autor).

Giramos aqui em torno da idéia do poder herdado pela literatura de tudo dizer, e de
tudo esconder, de seu direito ao segredo ― seja do que ela diz ou guarda ― cujo limite tenso,
enquanto discurso, e porque obra, porque coisa “legível” e “inteligível”, é posto pela
convenção pública do que vem a ser “coisa literária”.
Mas o que, afinal, liga a literatura ao silêncio de Abraão? E o que a faz signo de um
direito ao silêncio que igualmente a distancia da origem bíblica deste silêncio? Voltemos à
narração fictícia de Kierkegaard.
Em seu sacrifício, Abraão guarda silêncio. Não demanda pelas razões de Deus, não
consulta a razão dos seus, cala diante de Isaac. Em silêncio, cumpre a fé jurada, mesmo que
esta lhe custe a vida de seu primogênito, o futuro de sua vida, a vida de seu futuro. E eis que,
tempos após, algo tão inesperado quanto atordoante acontece: Abraão, só, vai a caminho de
Morija. Cai com o rosto por terra e pede a Deus perdão. Mas perdão porquê? Não abandou ele
a exigência ética de preservar a vida de seu único filho, seu bem-amado primogênito, herdeiro
de seus dias, abandonando-se à fé, guardando silêncio e fidelidade a Deus que lho ordenara o
sacrifício? Abraão, no entanto, pede perdão a Deus justamente por ter querido sacrificar a
Deus seu filho Isaac. Se não foi ele capaz de compreender como pecado tal ato, como poderá
agora crer no perdão divino? (KIERKEGAARD, 1935, p. 12). O tormento de Abraão, no
caminho para Morija, não tem fim. Por várias vezes tenta retomar o caminho, mas não alcança

15
paz. Cai por terra novamente. Seu espírito não tem repouso. Abraão se sabe portador do mais
terrível pecado: não saber que era pecado não amar seu único filho, seu bem mais caro (ibid.,
p. 12), a ponto de lhe preservar a vida. Derrida bem assinala a tensão vivida/vívida de Abraão,
descrita/imaginada por Kierkegaard, cujo pecado não tem perdão:

Em sua ficção de tipo literário, Abraão julga ele mesmo seu pecado
imperdoável. E é por isso que ele pede perdão. Não se pede perdão senão
para o imperdoável. Jamais se perdoa o que é perdoável, eis a aporia do
perdão im-possível que meditamos (1999, p. 170).

Em outra passagem, mais à frente, o filósofo acrescenta:

Perdoar é consagrar o mal que se absolve como um mal inolvidável e


imperdoável. Em razão da mesma identificação especular, não se pode,
portanto, inocentar perdoando. Não se perdoa um inocente. Se, em
perdoando, inocenta-se, se é igualmente culpado de perdoar. O perdão
acordado é tão culposo quanto o perdão demandado, ele confessa a culpa. A
partir de então, não se pode perdoar sem ser culpado e, por conseguinte, sem
ter que pedir perdão por perdoar (ibid., p. 182).

Eis o fundo do drama de Abraão. Ele sabe que seu pecado é imperdoável, por isso
pede perdão. E nesse caso, é debalde buscar saber se, em verdade, Deus o acordará ou não.
Deus, Ele próprio, secretamente confessara a Noé sua falta por haver amaldiçoado a terra por
causa de suas criaturas (Gn 8: 21-22), como lamentará, mais tarde, de haver pensado, por um
momento, em exterminar seu povo que, no deserto, à tardança de Moisés, rendera-se à
concupiscência e à idolatria, no que foi severamente repreendido por Moisés. Foi então que
Deus, arrependendo-se, voltou atrás, esquecendo-se mesmo de que era Aarão, o irmão de
Moisés, quem estava adiante do povo em seu pecado21. Mas a quem irá Deus pedir perdão,
pergunta Derrida (ibid., p. 189)? Quem Lhe pode conceder perdão senão Ele mesmo? E isto é
possível: pedir perdão a si? Ocupar, ao mesmo tempo, o lugar do culpado e daquele que, não
havendo falta, pode reconhecer o erro do outro e lhe dar o perdão? Seria isto dupla e
Absolutamente imperdoável. Deus, então, renova a Aliança com seu povo e lhe dá sua Lei.
Abraão pede perdão por haver preferido o silêncio que o liga a Deus ao amor secreto
que o liga ao filho (ibid., p. 169). No entanto, resta saber: a literatura, ao ser fiel apenas à sua
palavra, ao reclamar para si o direito de tudo e nada dizer ― e, em silenciando, ainda assim,
muito dizer ―, terá ela algo a confessar? A i-responsabilidade do discurso literário pode ser
perdoada? Se sim, quem lhe poderá acordar perdão? O que faz, pois, a literatura (fenômeno
moderno) herdeira do silêncio de Abraão não é senão a singularidade absoluta do segredo:
Abraão guardara silêncio diante do Absoluto. O segredo, aí então experimentado, é absoluto:
absoluto segredo diante do Absoluto. À literatura caberá a dessacralização deste absoluto
direito ao segredo (ibid., p. 203). O conteúdo do que é segredado, doravante, pouco importará.
Então, que escusas deve a literatura ao espaço público, ao mundo social: à sua
moralidade, à sua forma de organização e modo de reprodução, a seus valores, sacros ou não,

21
Moisés diz a Deus: “Volte atrás em tua cólera ardente e renuncie ao mal que tu querias fazer a teu povo. (...) E
Yahvé renunciou a fazer o mal do qual havia ameaçado seu povo” (Ex 32: 11-14).

16
a seus erros, seus, da sociedade? Que tem a literatura a pedir perdão, seja do que diz ou
guarda em silêncio? Será a literatura culpada de apenas sonhar em seu caminho, este, da
imagem poética?
Derrida concluirá fazendo anotações que nos parecem urgentes, mais que apropriadas:

a) Por seu direito, “em princípio, de tudo dizer e tudo esconder, pelo que a literatura é
inseparável de uma democracia do porvir” (ibid., p. 206. Grifo do autor);
b) Pela natureza supostamente fictícia de toda obra literária, o que isenta o autor de
responsabilidade, “diante da lei política ou cívica, do sentido e do referente (do que
quer dizer e visa, exibe ou decodifica [encrypte] o interior de seu texto que pode, pois,
sempre, não deter-se em pôr algum sentido ou algum referente, nem tampouco querer
dizer) tudo agravando, na mesma proporção, até ao infinito, sua responsabilidade pelo
evento singular que constitui cada obra” (ibid., p. 206. Grifos do autor);
c) Por sua virtude “propriamente fenomenológica”, o que desobriga o texto literário a
“responder ou a corresponder a qualquer sentido ou realidade no mundo” ―
suspensão da “tese do sentido determinado ou do referente real” (ibid., p. 206. Grifos
do autor);
d) Por não haver para a literatura outra lei que a “singularidade do evento, a obra” (ibid.,
p. 206. Grifo do autor);

Por tudo isto, podemos afirmar com Derrida que a literatura é herdeira do sacro silêncio
testemunhado pela história bíblica do sacrifício de Abraão, mas que ela renega, ao mesmo
tempo, sua filiação a este sagrado, sua pertença ao sagrado. Duplo pecado: de silenciar sobre
sua filiação; e de se permitir dizer o que não poderia ser dito, de desvelar todo segredo.

Conclusão: imaginário poético e mundo das significações sociais.

Há, dissemos no início, um sentido funcional da palavra (sua dimensão identitária-


conjuntista, nos termos de Castoriadis): a palavra enquanto designação,
expressão/representação do que é. Estamos aqui, uma vez mais, no campo semântico do
legein: linguagem enquanto poder do coletivo anônimo de distinguir-escolher-pôr-reunir-
contar-dizer, de fazer ser tudo e qualquer coisa como isto — elemento definido (e
infinitamente definível), identificável e distinguível, sempre referenciado ao conjunto de
signos igualmente (e a cada tempo) instituídos. Mas é impossível que o legein seja operado de
igual maneira em todos os estratos sociais ― uma homogeneidade das significações sociais
não seria outra coisa que a morte da linguagem enquanto modo de ser do social-histórico.
Como instituição, o conjunto das significações sociais encarnado na linguagem não é jamais
definição unívoca do ser. Toda linguagem é sempre atribuição de sentido, investimento de
significação, o que comporta, evidentemente, um nível identitário da palavra. Mas,
precisamente porque são investimento de significação, as designações da linguagem supõem a
possibilidade de que, permanentemente, novas remissões sejam erigidas e cingidas às
significações anteriormente fundadas. “A permeabilidade indeterminada e indefinida entre os
mundos de representações dos indivíduos e os significados lingüísticos é condição da
existência, do funcionamento e da alteração tanto para uns como para outros”
(CASTORIADIS, 1975, p. 501)22.

22
Para um aprofundamento desta questão ver os capítulos V e VII desta obra.

17
Se assim podemos compreender o processo evidentemente complexo de instituição das
significações sociais, não restará muito distante o entendimento de que o legein, enquanto
fazer-ser coletivo do que é ― instituição do conjunto de signos que configuram o mundo
social, “como posição primeira, inaugural, irredutível do social-histórico e do imaginário
social tal qual se manifesta cada vez em uma sociedade dada” (ibid., p. 532) ―, é passível de
violências: de definição de um sentido de ser, determinação identitária do que vale como
(correto, permitido, bom, válido, desejável, etc.). Por outro lado, o mundo das significações
sociais é o que permite tanto que as coisas sejam o que são (“As coisas são o que são
mediante as significações que elas figuram, imediatamente ou mediatamente, diretamente ou
indiretamente”, [ibid., p. 514]), quanto que elas sejam, a um só tempo, o que “faz existir
indivíduos para os quais há percepção, palavra e reflexão, que são indefinidamente auto-
reprodutíveis como indivíduos sociais, para cada um dos quais há sempre e ao mesmo tempo
mundo privado e mundo público, e cuja vida em sociedade é, em um certo sentido, a vida e o
funcionamento da sociedade como sociedade instituída” (ibid., p. 534. Grifo do autor).
Breve, se não é possível pensar nem, de um lado, em uma identidade absoluta do
indivíduo ― tal como o delineou o sonho moderno/burguês do sujeito autônomo e, por
projeção transcendental, do mundo como sua determinação voluntária e caprichosa ― nem,
por outro, numa imersão absoluta dos indivíduos em um caudal de significações sociais das
quais eles deteriam tão somente um uso instrumental, finalmente, se “a instituição do legein
[é] inseparável da instituição do indivíduo como indivíduo social” (ibid., p. 376), não há
mundo de significações sociais sem que os indivíduos sejam ao mesmo tempo instituídos
como capazes de operar os esquemas lógicos de composição, decomposição, identificação,
distinção que o perfazem a instituição do legein. “Ora, a existência do indivíduo como
indivíduo social e seu ‘funcionamento’ no e pelo legein implica e exige ‘positivamente’ que
ele seja um tal fluxo representativo singular; se ele não fosse assim, não seria mais que
máquina falante ― isto é, absolutamente nada” (ibid., p. 376-377. Grifo do autor).
O ideológico insere-se precisamente neste processo histórico de designação do que é,
na medida em que sempre é possível que o discurso ― porque conotação ― seja
instrumentalização perversa da palavra. Todavia, situado no mesmo horizonte ― este das
significações imaginárias sociais ― o imaginário poético, a criação literária enquanto tal, não
pode ser reduzido a decalque do real, ou entendido como palavra que toma seu sentido de ser
que não do próprio imaginário poético.
A literatura, finalmente, como fenômeno social-histórico singular nem “reflete” o “ser
real” ― o que seria isto fora da instituição? ― nem pode ser “julgada” a partir de uma lógica
que lhe seria anterior e que ocupasse o lugar do que é verdadeiro. Isto porque, simplesmente,
“o poema ― a literatura ― parece ligada a uma palavra que não pode interromper-se, pois ela
não fala, ela é” (BLANCHOT, 1955, p. 35).

18
Bibliografia

ALTHUSSER, Louis. Ideologias e aparelhos ideológicos do Estado, Editora


Presença/Martins Fontes, 1980.
BACHELARD, Gaston. L’air et les songes: essai sur l’imagination du mouvement. Paris:
Librairie José Corti, 1950.
——————. La poétique de l’espace. Paris: Quadrige/PUF, 1992.
——————. La terre et les rêveries du repos. Paris: Librarie José Corti, 1948a.
——————. La terre et les rêveries de la volonté. Paris: Librairie José Corti, 1948b.
——————. Le droit de rêver. Paris: PUF, 1993.
BLANCHOT, Maurice. L’espace litteraire. Paris: Gallimard, 1955.
CASTORIADIS, Cornelius. L’institution imaginaire de la société. Paris: Éditions du Seuil,
1975.
DERRIDA, Jacques. Donner la mort. Paris: Galilée, 1999.
LA BIBLE DE JÉRUSALÉM. Traduit en français sous la direction de l’École biblique de
Jérusalém. Paris: CERF, 1998.
HEIDEGGER, Martin. Acheminement vers la parole. Traduit de l’allemand par Jean
Beaufret, Wolfgang Brokmeier et François Fédier. Paris: Gallimard, 1976.
——————. Lettre sur l’humanisme. Texte allemand traduit et présenté par Roger
Munier. Paris: Aubier, 1957.
KIERKEGAARD, S. Crainte et tremblement: lyrique-dialectique. Traduit du danois par P.-
H. Tisseau. Introduction de Jean Wahl. Paris: Éditions Aubier-Montaigne, 1935.
LUCKÁCS, Gyögy. Littérature, philosophie, marxisme. Traduction de Jean-Marie Brohm
et Andréas Streiff. Paris : PUF, 1978.
MANHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.
MARX, Karl et ENGELS, Friedrich. L’idéologie allemande: critique de la philosophie
allemande la plus récente dans la personne de ses représentants Feuerbach, B. Bauer et
Stirner, et du socialisme allemand dans celle de ses différents prophètes. Présenté et annotée
par Gilbert Badia. Traduction de Henri Auger, Gilbert Badia, Jean Baudrillard et Renée
Cartelle. Paris: Éditions Sociales, 1968.
MARX, Karl. Contribution à la critique de la Philosophie du droit de Hegel. Traduit de
l’allemand par Jules Molitor. Paris: Éditions Allia, 1998.
——————. Contribution à la critique de l’économie politique. Présenté et annotée par
Gilbert Badia. Traduction de Gilbert Badia et Renée Cartelle. Paris: Éditions Sociales, 1957.
RICŒUR, Paul. L’ideologie et l’utopie. Paris: Éditions du Seuil, 1997.
——————. Interpretação e Ideologias. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1977.

19

Você também pode gostar