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Autoria: Isabella D’Eça Almeida, Rodrigo Novais Saraiva e Bruno Sacramento

RESUMO

VAN VELTHEM, Lucia Hussak. 2002. ""Feito por inimigos": os brancos e seus bens
nas representações Wayana do contato". In: B. Albert & A. Ramos (eds.). Pacificando o
branco: cosmologias do contato no norte amazônico. São Paulo: Ed. UNESP/Imprensa
Oficial do Estado. pp. 61-78.

O artigo aqui apresentado integra um livro que incita a reflexão sobre a


complexidade do contato entre os ameríndios colonizados e o europeu colonizador. Neste
trabalho, Lucia Van Velthen busca as concepções dos Wayana e Aparai presentes nos
objetos produzidos por eles mesmos e aqueles adquiridos através do escambo com o branco
e outros grupos. Aspectos da estrutura social e cosmológicos são abordados como vias de
compreensão da arte e estética enquanto instrumentos que mantém a ordem do universo e
dos próprios indivíduos. Seus estudos são voltados, primeiramente, para a fabricação e
simbologia da arte e estética das cestarias indígenas e nos materiais frutos dos contatos; em
seguida, a autora traça o paralelismo existente entre os objetos indígenas e os estrangeiros,
ambos parte integrante de um mesmo referencial simbólico e de alteridade.

Os Wayana e Aparai habitam a Terra Indígena Parque de Tumucumaque e a Terra


Indígena Rio Paru d´Este. No Brasil, isolados até o século XIX, quando os primeiros
contatos foram estabelecidos com viajantes, naturalistas e frentes extrativistas. Nas outras
fronteiras houve contatos desde o sec. XVII com outros povos indígenas e trabalhadores
negros de plantações na Guiana Holandesa e Guiana Francesa. Todos conflituosos. Como
meio de aproximação, os “visitantes” – exploradores, missionários evangélicos, jesuítas e
até mesmo os funcionários da FUNAI – promoviam a entregas de presentes para os nativos.
Sua localização estratégia propiciou o intenso intercâmbio de objetos estrangeiros e,
posteriormente, a inevitável resignificação dos industrializados de acordo com as
concepções daqueles que os adotam.

O saber tradicional do povo Wayana e Aparai é transmitido oralmente pelos mais


velhos através das narrativas que explicam desde a origem do universo até os contatos com
outros povos. A cosmologia apresenta a Terra como uma ilha cercada por água e habitados
por seres que sustentam o céu nas costas, onde os humanos têm relação mais estreita com
os seres das matas e dos rios. Os demiurgos, heróis criadores (Mopó e Ikujuri), respondem
pela criação de todos os seres e elementos da natureza, bem como o próprio Cosmo, e essa
relação é expressa na estética das produções indígenas e resignificações dos bens alógenos.

Para os Wayana e Aparai é bem esclarecida e reconhecida a humanidade dos outros


povos – conhecidos ou não –, havendo uma complexa classificação desses povos segundos
seus critérios. Há os Wekê (parente) que correspondem aos Wayana e Aparai; há os Wekê
tapek (falsos parentes) também conhecidos como estrangeiros e incorporam os outros
povos indígenas, brancos, europeus, Maroon e Criollo. O estrangeiro é sempre uma ameaça
em potencial, sobretudo o branco que recebe outras classificações Wayana: os povos
indígenas são referidos como “gente com força” que enfrentavam os Wayana tais quais
verdadeiros guerreiros – mesmo sabendo que seriam derrotados. Os brancos eram
designados como “gente que tem medo”, pois promoviam ataques a aldeias que estavam
desguarnecidas de guerreiros que se ausentavam para a caça ou cultivo. Nestas incursões,
mulheres e crianças eram mortas e, ao contrário dos Wekê tapek indígenas, os brancos se
valiam apenas da força de suas armas e cães ferozes.

Brancos, negros e outras etnias, bem como os objetos oriundos dos contatos, são
percebidos e assimilados na tríade "inimigos / animal / sobrenatural". Características físicas
e comportamentais são observadas numa lógica em que as representações simbólicas da
cosmologia ameríndia são atribuídas aos estrangeiros. Inseridos em categorias bem
marcadas, a humanidade é subdividida em concepções que distinguem os Wayana dos
outros humanos, formando dualidades: "Wayana"/"estrangeiro", "parente"/"falso parente",
"gente com força"/"gente que tem medo". Esse tipo de qualificação social dos brancos e
negros, também enquanto inimigo/canibal, é considerado para elaborar sua identidade
simbólica.

Apesar de as narrativas apresentarem a origem do universo no tempo primordial,


essas não se encerram nesse passado longínquo. São reconfiguradas e atualizadas a partir
das influências da contemporaneidade, das vivências em curso; refletem o contexto
experimentado, traduzindo as complexas relações que envolvem humanos e não-humanos.

Através das concepções de mundo dos Wayana e Aparai, a autora estudou o


processo de valorização dos objetos produzidos. Como pessoas e as coisas foram criados
pelos demiurgos num tempo primordial, estes se tornaram arquétipos para as coisas
materiais produzidas pelos indígenas. Tais modelos foram transmitidos na forma de objetos
pelos Wayanas, que passaram a reproduzi-los de acordo com os parâmetros primervos,
numa reelaboração estética e cognitiva, adequando-os ao seu cotidiano e usos rituais. As
cestarias de confecção exclusiva masculina, o tipiti, os recipientes cerâmicos, cuias, rodas
de teto, flechas e demais utensílios, os diferentes tipos de matéria-prima, formas e
funcionalidades das coisas e as múltiplas aplicações de grafismos são explicadas pela
ontologia indígena. Os produtos industrializados são reelaborados e coexistem com os
legítimos Wayana, sendo regidos pelos mesmos princípios que resultam das atividades
criativas das deidades criadoras do universo. Dessa forma, na “arte da aculturação” o que
aparenta ser um surgimento de uma estética desconhecida, está sobre uma temática
familiar, aponta autora, afastando a ideia de uma passividade e fascínio débil dos indígenas
diante dos elementos estrangeiros.
GLOSSÁRIO

Alógeno – aquilo que teve origem em outro ambiente do que se encontra; pertencente à
outra nação, etnia.

Criollo – descendentes de escravos africanos libertos, frequentemente misturados com


brancos.

Demiurgo – o Artífice ou o Criador; em alguns sistemas de crenças, é a deidade


responsável pela criação do universo físico.

Escambo – prática comercial baseada na troca, permuta de materiais sem o uso do recurso
monetário.

Maroon – povo de ascendência africana que habitam o Suriname (Guiana Holandesa) e a


Guiana Francesa.

Ontologia – parte da Filosofia que estuda a origem do ser, sua natureza, existência e
realidade.

Primevo – primordial, primeiros tempos, antigo.

Roda de teto – roda de madeira (raiz da árvore sumaúna) feita para arrematar o esteio
central do teto das casas comunitárias destinadas aos rituais, reuniões e atividades coletivas
dos Wayanas. As rodas de teto são decoradas com referências aos seres sobrenaturais.

Tipiti – espremedor feito de palha trançada, utilizado para drenar a massa da mandioca
ralada e obter o extrato básico para a produção de farinha.

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