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I - INTRODUÇÃO:
A gnose atua sempre como uma subcorrente em relação ao pensamento hegemônico. Ela é o que
se mantém oculto, no pólo dialético do ocultar-revelando e do revelar-ocultando, exigindo, desse modo,
uma análise hermenêutica para o entendimento de seus pressupostos. Representa, assim, do ponto de vista
da compreensão do homem e do mundo, a contracultura e as heresias em cada época, e possivelmente a
semente do novo, do que está por vir.
A emergência de uma atitude gnóstica ocorre em relação às questões não respondidas, pelo
paradigma hegemônico, e à perda do sentido da vida, com o desmoronamento dos valores, das culturas e
instituições. Quando o paradigma já não é mais um referencial operante, quando se carecem de novos
pressupostos e novas idéias; então, retoma-se o processo de conscientização para a subida em uma oitava
superior, da qual o mito de Prometeu é uma metáfora.
A gnose pode manifestar-se na religião, na filosofia e na política (o mito do salvador da pátria =
Hitler). A missão gnóstica é a de revelar o saber oculto, substituindo as trevas pela luz que amplie os
níveis de consciência da humanidade. Foram gnoses religiosas: as de Alexandria, o cristianismo, o
luteranismo, na atualidade os Brahma Kumaris etc. Nas gnoses filosóficas podem-se incluir o
positivismo, o paradigma emergente, os estóicos, Hegel (e o Espírito alienado), Marx (e a dialética de
exclusão entre opressores e oprimidos), Nietzshe (com a proclamação da morte de Deuse suas críticas ao
racionalismo e ao cristianismo), Heidegger (e o Dasein), Jung (com seus arquétipos do inconsciente
coletivo). Entre as gnoses políticas, o marxismo (em suas aplicações à praxis) , Bakunin, Lênin, Sorel e o
princípio do poder, o fascismo, enfim todas as “mystiques politiques” ou as “religiões políticas” etc.
O pressuposto metafísico da gnose institui o que está em cima como o que está embaixo; o que
está dentro, como o que está fora: o microcosmo refletindo o macrocosmo, consoante a fórmula do
CORPUS HERMETICUM. Trata-se, então, de estabelecer as correlações e analogias entre as duas
realidades que, na verdade, expressam a mesma essência.
Do ponto de vista religioso, duas concepções se defrontam com dinâmicas bem diferentes: a
religião como religare e como relegere - a primeira caracterizando o aspecto salvador da religião pela fé;
a segunda, tentando promover a busca e o encontro com Deus, pelo conhecimento. Trata-se, nesta, do
esforço libertador do autoconhecimento; naquela, do messianismo pela salvação coletiva através da fé.
Confrontam-se, assim, as religiões oficiais e até de Estado e as religiões de mistérios, de sentido iniciático
(os mistérios eleusinos, dionisíacos, órficos, na Grécia; o mitraico, adotado depois pelos militares de
Roma; o culto praticado por escravos, o cristianismo em sua origem, o gênero apocalíptico, o
maniqueísmo e outras).
Para o gnóstico não há questão proibida, tema tabu ou dogma, menos ainda a verdade revelada
através de profetas ou oráculos. Assim, uma característica da gnose religiosa é a eliminação do
intermediário autorizado (padre, ministro, pastor...) e a tentativa da experiência direta e, portanto, mística,
de Deus. O pressuposto é o da imanência de Deus, habitando na alma humana, sendo dela o mais
importante parceiro.
Na verdade o gnóstico já não é mais o buscador, aquele que está à procura das respostas: Ele já
tem as respostas. Cristo disse: “Conhecei a verdade e Ela vos libertará!” Os gregos proclamavam:
“Conhece-te a ti mesmo e conhecerás a Deus”.
A dicotomia entre essas duas concepções se concretizava, principalmente, pela existência de
religiões oficiais ou de Estado versus as religiões de mistérios e o ritos de iniciação. Na verdade, a gnose
é uma vivência mais que um simples conhecimento intelectual.
A grande questão, pois, colocada à indagação e ao coração do homem é a da origem da dor e do
sofrimento do mundo. O próprio abandono do termo grego kosmos - que significa beleza - substituído
pelo termo latino mundo, que era o buraco onde se jogavam os detritos na antiga Roma, é um poderoso
indicador da radical mudança que se operara no inconsciente coletivo, na passagem do mundo pagão para
o mundo cristão. O cristianismo fundou toda uma ética na base da dualidade entre corpo e alma, matéria e
espírito, imanência e transcendência, anulando qualquer valor aos termos iniciais dos pares de opostos,
tornando unilateral o desenvolvimento do espírito humano e, como adverte Jung, em certo sentido
reprimiu seu lado sombrio, projetando-o em forças metafísicas, representantes do Mal.
E a queixa dos filhos de Raquel encontra eco em suas lamentações: “Quem nos jogou nas trevas”
“Quem éramos nós?” “Onde estávamos?” “De onde fomos expulsos?” “Aonde nos precipitamos?” “De
que temos de nos livrar para o retorno à nossa morada?” Estas são as eternas questões que todos os
gnósticos se colocam, em qualquer época histórica, em qualquer latitude do Planeta.
E a resposta/explicação também é sempre a mesma: a verdadeira vida não é deste mundo, pertence
aos mundos siderais - ao Paraíso, ao Cosmos, ao Nirvana, ao WU-CHI (não-sopro, vazio) etc. O mundo
em que vivemos não passa de uma prisão para o espírito que vive o sentimento de ter sido expulso, de que
está alienado, mas que experiencia a dialética dolorosa de querer fugir ao mundo e, ao mesmo tempo, dele
tem medo de liberar-se.
Essa angústia ou leva o Homem ao desespero niilista, daquele que perdeu o contato com suas
fontes superiores, ou força o caminho na busca do mito pessoal, daquele significado que torna toda vida
digna de ser vivida e todo homem merecedor do respeito devido a seu ser consciente.
Inerente à essa última postura, coloca-se o mito da SALVAÇÃO, quer pelo Divino Mediador -
Jesus, o Cristo - quer pela fé no encontro direto entre o Deus Transcendente e o Deus Imanente, a
centelha de que todo homem é portador, e que estabelece o trânsito entre a dimensão temporal de nossa
consciência corpórea e a eternidade, a dimensão própria do espírito.
As etapas da SALVAÇÃO passam por dois tipos de atitudes opostas: aquelas que se refugiam em
práticas mágicas, revelando a crença egóica da possibilidade da interferência do Homem no Drama
Cósmico; e aquelas que se referem ao êxtase místico, onde o abandono total do ego (o ascetismo), permite
que o Self se manifeste, ativando a imago Dei, presente no recôndito da alma humana. Trata-se, portanto,
de construir uma nova imagem do Homem...
Da mesma forma, do liberalismo ao indiferentismo ou ao ascetismo, a questão é sempre a de matar
o homem velho, o mundo velho, de abandonar as velhas crenças e estruturas para se fazer nascer o
homem novo, o mundo novo, perfazendo o caminho da agnóia (ou ignorância) à gnose (ou
conhecimento). Este é o caminho da verdadeira SALVAÇÃO. Há, no entanto, pontos de vista
divergentes, que não admitem a possibilidade da salvação, como os de Mani, concebendo uma luta
cósmica infindável entre as forças da luz e das trevas, do bem e do mal, consagrando de vez um dualismo
que até hoje se faz presente.
Como já dissemos, para o gnóstico não há pergunta proibida, não há tema tabu ou dogma, quando
a civilização está em crise e o paradigma já não é mais um referencial. Nesses momentos surgirão vozes
que falarão no deserto, mas que de qualquer forma indicarão o novo caminho e a boa nova. Assim foi
com o ramo cristão do judaísmo, assim será na Nova Era que se avizinha, sedenta de novas sínteses, que
derrubem os muros da incompreensão e coloquem as pontes da fraternidade, do amor e da paz. Até
porque o século XXI será espiritual ou não será...
Urge um novo nível de consciência, a partir desse processo de conscientização individual e
coletivo, que represente uma nova vinda de Prometeu com o fogo revivido do céu. Assim, a melhor
postura de análise é a gnóstica, pois ela não se fecha em nenhum conhecimento, ou tradição; pelo
contrário, busca sempre a revelação nas oitavas superiores, pois não se deixa levar pelas aparências do
momento, nem pelas limitações pessoais. Lá onde o UM impera, o ensinamento flui sem reservas para
todo aquele que ousar ouvir o coração do Eterno.
IV - A GNOSE DE ALEXANDRIA:
Os principais representantes da gnose de Alexandria (séc. II a V d.C.) são Valentino, Basilides,
Carpócrates e Marcião.. “Quem nos jogou nas trevas?” A grande questão, pois, colocada à indagação e ao
coração do homem é a da origem da dor e do sofrimento do mundo.
A resposta era dada mediante inspirações literárias e míticas, das quais destacamos quatro mitos:
1) o mito do paraíso perdido (o inconsciente urobórico);
2) o mito da queda ou da exclusão (a queda angélica e a queda adâmica = paralelo ao conceito
grego da hybris X metron = não o mal no sentido ético do termo. O abandono pela família,
como início do processo de individuação);
3) o mito da busca (sensação de alienação e de ter sido expulso, o herói ou a alma
enfrentando as dificuldades e a aventura da vida);
4) o mito do eterno retorno (o estranhamento e fuga deste mundo - introspecção necessária à
individuação), a sensação de ser errante ou estar de passagem; a sensação do déja-vu (teoria da
reminiscência de Platão: toda lembrança é uma recordação); a necessidade de retorno à origem e à
verdadeira vida dos espaços siderais - Cosmos, Paraíso, Nirvana (o medo da volta).
Desse ponto de vista mítico, as almas mais puras guardam a lembrança de sua origem divina e a
ela querem retornar. Marcião funda uma seita religiosa, com base em práticas ascéticas e moral rígida,
pelo pressuposto de que o corpo devia tornar-se sagrado, por ser o templo do Espírito nele aprisionado.
A atitude gnóstica não reconhece um mundo que é uma prisão. O gnosticismo busca o
reconhecimento do que éramos, do que fomos, de onde estávamos, de onde fomos expulsos, aonde nos
precipitamos e do que temos de nos livrar e renascer pelo impulso salvador do espírito (pneuma): “Não
se põe vinho novo em odre velho”...Mito de morte e renascimento...
Que ensinavam estes mestres? Que havia um Deus supremo, increado, que era o máximo de
Unidade. Que Deus não havia criado o mundo, mas este havia sido emanado de sua Sophia, segundo um
mito gnóstico, através de desdobramentos (emanações) numa série complexa de entidades intermediárias
- espíritos inferiores - que terminariam, estes sim, por criar o mundo.
Assim, o desprezo dos gnósticos era pelo kosmos do Demiurgo e não pela Natureza, onde Deus
habita. Cultivavam, pois, a idéia de um deus imanente (o Anthropos), idéia que foi incorporada pelos
alquimistas como a lumen naturae (a luz da Natureza). Na psicologia analítica, representa os instintos e
o inconsciente. Cumpria salvar o homem do mundo, que nem era um cosmos, nem criação de Deus,
diferençando-se os gnósticos, tanto dos gregos como do judaísmo-cristão sobre a questão da origem do
mundo.
Teoria da emanação antes que da criação, nela já há um primeiro confronto com o que viria a ser
a ortodoxia apostólica e seus pressupostos de crença: DEUS, a CRIAÇÃO e a REVELAÇÃO, através de
alguns intermediários autorizados, os primeiros dos quais naturalmente os apóstolos, entre eles os que
viriam a compor os evangelhos canônicos.
Para Carpócrates as almas humanas seriam anteriores à produção do mundo, tendo vivido,
portanto no seio da divindade e experimentado a máxima Unidade (influência da teoria platônica das
formas puras). Basilides supõe que as entidades divinas, vivendo no Estereoma celeste, teriam
engendrado o primeiro ARCONTE e suas principais entidades (os éons). As principais emanações do
Absoluto seriam: Sofia ou o lado feminino e criador de Deus: a sabedoria divina (sophos = Sábio), seu
amor e misericórdia como a redentora do homem; o Nous, a inteligência e a sabedoria divina que rege
todos os processos do universo; o Logos, isto é, o dizer, o Verbo que, ao nomear, impregna o ente de
significação; a Energueia, a energia criadora; a Dynamis, como a força, o movimento universal, a
Aletheia, a verdade, a descoberta (fonte do Logos, como princípio constitutivo da coesão e da Vida) e a
Phronesis, discernimento e inteligência prática responsável pelo mundo da manifestação. Elas seriam os
arcontes ou regentes do mundo, seus primeiros éons.
Com a criação do mundo pelo Demiurgo (YALDABAOTH ou JAVÉ), diz a gnose mítica que
Sofia, desejosa de conhecer todos os meandros do Pai, cai nos mundos inferiores da matéria, apaixona-se
e é por ela abraçada, não podendo mais afastar-se do convívio dos homens, também eles decaídos.
Por esse mito - das centelhas de luz (espírito) presas na matéria - se configuraria a possibilidade
do Absoluto de, ao contemplar o Abismo, ter se entristecido com o “Não-Ser”, tendo suas lágrimas
derramadas se transformado em centelhas de luz que se aprisionaram à realidade física. A alma e o
espírito do homem... E o Eterno Deus Altíssimo sonhou ainda por muito tempo. No sonho ele viu o
mundo que criou potencialmente, se expressar ciclo cósmico após ciclo cósmico (éons). Quando acordou
do sonho, o Altíssimo deu um grande sorriso e, voando como um pássaro, lançou-se no abismo da noite,
repartindo-se em milhares de pedaços que cintilavam com tal esplendor espiritual, com tal intensidade,
que ...Fez-se a luz!
Assim é que cada um de nós é uma partícula desta luz. A gnose mística sustenta ainda que é
destino da humanidade descobrir sua unidade divina e reunir-se novamente, retornando ao lugar da queda,
ao local onde feminino e masculino eram um só no Absoluto. A lenda ainda conta que para empreender
feito de tal envergadura, o ser humano deverá encontrar embaixo, no elemento adâmico, a unidade
perdida, para só então retornar ao Paraíso, coagulando-se com as milhares de miríades de si mesmo.
Sofia representará assim o arquétipo do amor divino pelos homens, a misericórdia de Deus pela
criação, e seu retorno ao mundo divino expressa a exigência da redenção da humanidade. Enquanto
aprisionada na matéria perdida entre os homens é a Sophia Achamot, aguardando sua redenção para
voltar a ser a companheira de Deus, primícia de suas obras: a divina Sophia Shekiná.
Uma variante do mito diz que Deus, para criar o mundo, debruçou-se em uma janela e ficou longo
tempo a sonhar. Era noite, o mais denso caos, e a sucessão de imagens passava pelos Pensamentos de
Deus. Lá fora o negrume do abismo sem fim contrastava sobremaneira com os Pensamentos do Eterno.
No seu sonho, Deus criava Adão, o homem universal à sua imagem refletida. Sonhou também que fez
cair Adão em um profundo sono magnético, de modo que Adão adormeceu e o Ser Altíssimo tomou uma
das imagens mentais com que este sonhava e revestiu de beleza e forma corporal a sua base. Depois
consolidou a essência desse produto da imaginação que tinha extraído de Adão, fazendo dela sua esposa
intelectual e lha trouxe. E o Eterno Deus Altíssimo sonhou ainda por muito tempo. No sonho ele viu o
mundo que criou potencialmente, se expressar e manifestar. O final da lenda é misteriosa, pois termina
com o Homem-Deus frente ao Superior Incógnito, um duplo seu: sua imagem e semelhança.
Compare-se com a teoria bíblica das quedas (angelical, de Samael, e humana, de Adão) opondo o
problema do livre-arbítrio ao do destino, sem conseguir alcançar a noção de complementaridade entre os
princípios, o que seria feito, do outro lado do mundo: na China taoista, com seus pares “yang/yin” e com
uma ética que visava aproximar o jen tao (o tao do homem) ao ch’ien tao ( tao do Céu), tendo como
modelo as leis naturais e cósmicas...
Assim, ao lado do Deus transcendente (ainda que escondido: Júpiter, Javé, Espírito Absoluto,
Dialética Materialista), admitiam os gnósticos a imanência de Deus no coração do Homem, ou seja uma
nova imagem do Homem , aceitando também que o Homem poderia vir a redimir o espírito, tanto quanto
o Homem-Deus viera para redimir o Homem carnal. Nesse sentido - alquímico, por excelência - os
gnósticos e depois os alquimistas farão a ponte entre o paganismo e o cristianismo, tanto quanto os
essênios serão o elo entre o judaísmo e o cristianismo. Até chegar a Jung e sua contundente crítica ao
cristianismo, em especial a relativa à transcendência de Deus, colocada como dogma de fé, e afastando a
imagem divina da interioridade humana que, sem ela ressecou no materialismo vigente em nossa época
(ver Dourley, J.P. - A DOENÇA QUE SOMOS NÓS, 1987).
A ação mítica de Lúcifer ou de Prometeu representa a possibilidade de subida do nível de
consciência, graças ao impulso para a salvação que vem do espírito (pneuma) e, sobretudo, ao aspecto
divino do feminino em seu afã de conhecer-se: Sofia, Lilith, Eva ou Pandora, por exemplo.
Podemos caracterizar, pois, a gnose de Alexandria como uma proposta de:
1) hierarquia entre os indivíduos (o homem hylético, o psíquico, o pneumático) versus a
hierarquia eclesiástica, que separava o clero dos fiéis. Como se percebe, tal hierarquia se
estabelece, consoante o desenvolvimento espiritual de cada um: os hyléticos, que vivem ao
nível da matéria: os psíquicos, que se deixam levar por suas paixões, só se alçam ao anímico e
os pneumáticos que alcançam o mundo espiritual propriamente dito. Em cada grau, no entanto,
havia perfeita igualdade, sem distinção entre os sexos ou entre fiéis e sacerdotes. Não havia,
pois, uma hierarquia eclesiástica no sentido restrito do termo.
2) ausência do intérprete autorizado.
3) uma metafísica das relações entre o Criador e a criatura através de quatro movimentos: a
emanação, a criação, a formação e a manifestação.
4) configurar o criador do mundo na figura do demiurgo (responsável pelo mal e pelo
sofrimento). Ficam, assim, recusadas as idéias do judaísmo e do maniqueismo sobre o livre-
arbítrio ou o destino como origem do mal .
5) partir da idéia de um Deus imanente em complementação à de um Deus transcendente.
6) uma missão do homem redimindo o espírito (Deus), contrária à tradição de um Homem-Deus
redimindo o homem carnal. Nesse sentido a Alquimia se revela como continuação do
gnosticismo.
7) opor a idéia messiânica de uma salvação coletiva ao esforço libertador do autoconhecimento
individual e solitário (A verdade vos libertará...Conhece-te a ti mesmo e conhecerás a Deus...).
Obs. O mal para os gnósticos não é apenas uma categoria moral, a hybris grega oposta ao
métron, nem deve ser atribuído às quedas luciferina ou adâmica, em função do livre-arbítrio. “À
pergunta: por que o homem deseja o mal?” respondem com a idéia de destino, como isca, colocado pelas
moiras, entidades que urdiam o destino das coisas, na mitologia grega.
VI - CONCLUSÃO
Jung é um gnóstico, na medida em que vivencia a experiência direta e interior (1914-19) com as
imagens arquetípicas: sombra, trevas etc., como o caminho do auto-conhecimento e da individuação.
O processo junguiano de individuação é a contrapartida moderna da luta pela aquisição gnóstica
do autoconhecimento. Assim, salvar o Homem do mundo é para um gnóstico o que Jung denomina de
desidentificação em relação ao Outro exterior e ao Outro interior, inclusive de sua Sombra, já que o Bem
e o mal estariam contidos no Pleroma, a realidade indivisa primitiva, indiferenciada, para Jung, o
inconsciente de Deus, contendo em potencial o caos e o cosmos.
Os Sermões representam a expressão metafórica de uma experiência interna. Assim, alguns
paralelos podem ser traçados entre os princípios gnósticos e a psicologia junguiana. São em número de
oito:
1- o elemento pneumatológico = Si-mesmo;
2- diálogo consciência/inconsciente, como a tentativa de experiência direta com a realidade
arquetípica;
3- processo de individuação como o percurso da alma para retornar à sua verdadeira morada, a
seu hthos, pelo processo de autoconhecimento;
4- a aceitação do mal, da dor e do sofrimento como ontologicamente substantes e não apenas
como ausência do Bem;
5- a vivência da alienação da consciência para atingir a plenitude;
6- o Pleroma, o Anthropos e o Si-mesmo, como a experiência dos opostos;
7- a plenitude do Si-mesmo como aspiração substitutiva à da santidade de Deus e dos santos;
8- a plenitude e não a perfeição moral como escolhas emocionalmente auto-sustentadas.
1) - se há um Deus supremo, transcendente; por outro lado, há um Deus imanente, em cada ser
humano, que cumpre libertar e contactar, pela experiência direta do divino em nós;
2) - o caminho para isso é o da transformação da alma, cadinho onde as experiências místicas
ocorrem, e onde se cumpre (ou não) o casamento alquímico do Rei e da Rainha, do divino e do
humano, em nossos corações: é o Caminho da Individuação;
3) - a meta e o propósito da vida são, portanto, o atingimento desse estado de consciência, a
partir da inconsciência - da agnoia - anterior, sombra que sustenta o desabrochar da consciência
divina no Homem;
4) - o grande pecado da alma é a ignorância (avidya, em sânscrito) que a mantém nas trevas,
afastada de sua divina origem.
5) - a possibilidade de se realizar a transmutação da alma é sustentada pelos arquétipos,
elementos estruturantes da psiqué, padrões e formas dominantes que organizam o ego,
complexo do nível consciente, assim como as demais partes que se confrontam na arena
psíquica: a sombra - geralmente identificada pelos aspectos rejeitados, não assimilados que
permanecem subliminares na inconsciência; a persona - cuja base arquetípica permite a
adaptação ao mundo exterior, de relação, integrando a consciência coletiva no indivíduo etc.
6) - dos arquétipos - do pai, da mãe, do puer, da puella, do senex, do animus, da anima e
outros - o principal, é o SELF (Si-mesmo), o que coordena, estrutura e corrige
compensatoriamente os desvios das ações conscientes. Representa a imagem de Deus em
nossa alma, o Deus interior, o Cristo imanente, objeto constante da busca gnóstica pelo
conhecimento e pela devoção.
7) - por último, a relação dual entre matéria e espírito, se é resolvida por alguns gnósticos pela
negação da primeira e até por sua tentativa de supressão, por outros, mantido embora o
dualismo, a matéria é considerada divina, por ser o Templo que abriga o espírito e, assim, é
considerada e respeitada. Alguns gnósticos chegaram ao extremo de supor que nada do que
fosse materialmente feito poderia afetar o espírito, razão pela qual permitiam-se até exageros e
licenciosidades, condenados pelos demais (Carpócrates).
8) - ABRAXAS é a energia psíquica, a vida criativa que confere significado a partir da ilha da
consciência que emerge do inconsciente. O mergulho neste, no entanto, exige o afastamento do
espetáculo feérico da vida ativa sustentada por ABRAXAS.
Os Sete sermões representam a descida pelo setenário do Pleroma à psiqué humana, a criadora das
imagens, sendo o homem o mediador entre as duas eternidades, e a sincronicidade o ponto de encontro
entre ambas. Trata-se do encontro entre a física subatômica e a psicologia analítica.
É o homem que dá significado através da consciência - reino das avaliações subjetivas -
contactando e ativando emocionalmente o inconsciente e, assim, trazendo as imagens arquetípicas à luz
da consciência. Sendo os arquétipos psicofísicos ou psicóides, eles se manifestam nos dois planos, o que
caracteriza sua transgressividade.
O homem, como alquimista e sacerdote dessa nova gnose, é um modelo unitário da realidade com
conexões causais e acausais, reconciliando espírito e matéria, na unidade do mundo, na síntese do unus
mundus. Vida e espírito se reúnem: o espírito dá o significado, mas ele não é nada sem a vida...
Sem dúvida, que a natureza dual da condição humana aconselha o convívio sábio com estas forças
instintivas, inconscientes, que deverão ser encaminhadas - pela GNOSE, pelo reconhecimento - à luz da
consciência, que delas retirará a necessária energia para a Grande Obra, a saber a transmutação do
chumbo em ouro, da matéria bruta em matéria sutil, ultrapassando os sete corpos, os 32 caminhos e as 50
portas - estreitas que sejam - para se chegar à flor de ouro, que jaz escondida no fundo de nossas almas.
Achá-la é o desafio diuturno da vida de cada um de nós!
No entanto, é preciso precaver-se contra o falso otimismo do poder positivo da mente: é preciso
estar sempre de olhos abertos, sabendo introvertê-los, para fugir da sedução de ABRAXAS, encontrando
o Deus interior que realiza a própria transformação, como realidade psíquica, que dá significado à vida,
engendrando o processo de individuação.
BIBLIOGRAFIA
* Livre-Docente e Doutora em Ciências pela UERJ. Pesquisadora da obra de Jung, com livros e
artigos publicados.