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ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL

CONSELHO SECCIONAL DO DISTRITO FEDERAL


PRESIDÊNCIA
OFÍCIO Nº 376/2020 - SAP Brasília, 26 de julho de 2020.

A Sua Excelência o Senhor


RAFAEL PRUDENTE
Deputado Distrital
Câmara Legislativa do Distrito Federal
Praça Municipal, Quadra 2, Lote 5
Brasília - DF

Assunto: Posicionamento a respeito do conteúdo do Projeto de Lei 1.958/2018.

Senhor Deputado,

A Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Distrito Federal, por seu


presidente e pelas suas Comissões de Cultura, Esporte e Lazer e de Relações
Institucionais e Governamentais – vêm, respeitosamente, manifestar-se a respeito do
conteúdo do Projeto de Lei 1.958/2018, que dispõe sobre a proibição de exposição
artística ou cultural com teor pornográfico ou vilipêndio a símbolos religiosos em
espaços públicos no Distrito Federal.

O ímpeto que move o autor da proposição também move esta Ordem: a


proteção da criança e do adolescente, a proteção dos símbolos religiosos e a proteção
dos valores da sociedade.

Entretanto, a forma, o conteúdo, a autoridade para a iniciativa e o instrumento


legal escolhidos não têm como prosperar, seja porque violam a Constituição Federal e
tratados internacionais, seja também porque o que pretende coibir acaba por ter
consequências confusas para o respeito a textos e representações religiosos, por não
equacionar adequadamente o que é pornografia e o que é conteúdo religioso, e olvidar a
relação que há entre um e outro na tradição, por exemplo, judaico-cristã, mas também
na arte Oriental e Ocidental, conforme se demonstra a seguir.

A Constituição Federal estabelece em seu art. 220:

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a


informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer
restrição, observado o disposto nesta Constituição.

[...]

§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e


artística.

§ 3º Compete à lei federal:

I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao poder público


informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem,
locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;

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[...]

Na ADPF 130, o Supremo Tribunal Federal entendeu que só a própria


Constituição Federal pode estabelecer limites à liberdade de expressão, com base em
interpretação literal do art. 220 da CF. Logo, só o poder constituinte derivado poderia
legislar sobre liberdade de expressão e, mesmo assim, continuaria vedada a censura (§
2º).
Eventualmente, alguém poderia alegar que a Convenção Americana de Direitos
Humanos autorizaria restrições à liberdade artística, nos seguintes termos:

Artigo 13. Liberdade de pensamento e de expressão

1.Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse


direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e
ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por
escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo
de sua escolha.

2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito


a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser
expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:

a. o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou

b. a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou


da moral públicas.

3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos,


tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa,
de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na
difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar
a comunicação e a circulação de ideias e opiniões.

4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o


objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da
infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2 [grifo
nosso].

Entretanto, o inciso “4” destacado tem sua aplicação suspensa, pois se


encontra em contradição com a prescrição constitucional do art. 220, conforme já
mencionado.

Quanto ao art. 2º do projeto de lei, a Comissão entende, s.m.j, que padece de


vício de inconstitucionalidade formal, já que cabe ao Congresso Nacional legislar sobre
espetáculos públicos.

No mérito, a matéria trafega na superfície das questões que coloca e não se dá


conta das consequências contraditórias do que propõe. A proposição veda exposição
pública de textos, desenhos, vídeos e performances com conteúdo pornográfico e ataque
a símbolo religioso.

De um lado, se toda representação de ato sexual é pornografia e, portanto,


vedada, toda uma tradição do Ukiyo-e japonês, que é a origem do atual mangá, estaria
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proibida de ser exposta em Brasília. Uma arte de quatrocentos anos. Brasília e Ceilândia
estariam proibidas de ver e discutir o brasileiríssimo Zéfiro, que marcou a iconografia
nacional enquanto vivo? Teríamos de ir a Luziânia, em Goiás, para ver arte dessa
relevância?

Que é o ato sexual? A penetração carnal ou o estarem juntos duas pessoas


nuas? Quando começa o ato sexual numa representação pictórica? Brasília estaria
proibida de ver “O Triunfo de Baco”, de Diego Velasquez, um dos maiores pintores
espanhóis da História? Do mesmo Velasquez, que pintou famosamente a família real
espanhola, Brasília poderia ver “La Maya Vestida” no Museu Nacional, mas “La Maya
Desnuda” apenas, e talvez apropriadamente, em Formosa?

O projeto proíbe textos que violem símbolos religiosos ou exponham


pornografia. A rigor, o projeto proíbe o Velho Testamento cristão e a Torá judaica. Para
dar apenas um exemplo, duas filhas embriagam o pai e cometem ato sexual com ele
com a finalidade de engravidarem e garantirem que sua descendência conte com um
homem para dar continuidade à família. Sexo, embriaguez, incesto, sexo grupal. Tudo
isto está na Bíblia, na passagem de Ló e suas filhas.

Será, então, proibido expor a Bíblia e a Torá em Taguatinga e em São


Sebastião, os fiéis serão obrigados a ler esses livros sagrados em Cidade Ocidental ou
em Girassol?
Diante do exposto, a Comissão de Relações Institucionais e Governamentais
faz-lhe chegar nossa preocupação com a higidez da lei proposta e a própria
inconsequência do que ali se contém. Embora já tenha sido aprovada em primeiro turno
pelo Egrégio colegiado da Câmara Legislativa do Distrito Federal, espera-se por sua
rejeição por inconstitucionalidade, que sempre pode ser arguida, e por, no mérito, criar
mais problemas do que equalizar um sentimento pudico que pode ser resolvido com não
frequentar exposição de arte, nem ler livros – duas alternativas que tampouco constroem
uma nação livre, justa e solidária, como nos orienta o Art. 3º da Constituição Federal.

Sem mais, cumprimento-o cordialmente com os mais elevados protestos de


consideração e apreço.

Atenciosamente,
DÉLIO LINS E SILVA Assinado de forma digital por
DÉLIO LINS E SILVA JÚNIOR
JÚNIOR Dados: 2020.08.26 17:13:33 -03'00'
DÉLIO LINS E SILVA JÚNIOR
Presidente do Conselho Seccional do Distrito Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil
VERANNE CRISTINA Assinado de forma digital por VERANNE
CRISTINA MELO MAGALHÃES
MELO MAGALHÃES Dados: 2020.08.26 17:16:18 -03'00'
VERANNE CRISTINA MELO MAGALHÃES
Presidente da Comissão de Cultura, Esporte e Lazer da OAB/DF
CAIO LEONARDO BESSA Assinado de forma digital por CAIO LEONARDO
BESSA RODRIGUES
RODRIGUES Dados: 2020.08.26 17:20:06 -03'00'
CAIO LEONARDO BESSA RODRIGUES
Presidente da Comissão de Relações Institucionais e Governamentais da OAB/DF
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PRESIDÊNCIA

HECTOR FREITAS
Membro da Comissão de Relações Institucionais e Governamentais da OAB/DF
Relator da Matéria na Comissão

BERNARDO PABLO SUKIENNIK


Membro da Comissão de Relações Institucionais e Governamentais da OAB/DF
Relator Adjunto

BEETHOVEN ANDRADE
Membro da Comissão de Relações Institucionais e Governamentais da OAB/DF
Relator Adjunto

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