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A performance solo e o sujeito autobiográfico

A performance solo e o sujeito autobiográfico

A na Bernstein

D
urante os anos 70, a arte da performance e cena teatral, o que se tem é um personagem já
a body art exploraram, de maneiras ines- escrito que é trazido à vida por um ator; pode
peradas e provocativas, o colapso dos limi- ser descrita, portanto, como uma citação na qual
tes entre vida e arte provocado inicialmen- a natureza fictícia do personagem e de suas ações
te pela Action painting, a arte conceitual, e é evidente. Justamente por esta razão é que J. L.
os Happenings dos anos 60, trazendo para o pro- Austin exclui a representação teatral de sua de-
cesso de produção e de recepção da arte um sig- finição de elocuções performativas, rotulando-
nificado totalmente novo. a de parasítica. Austin observa que a elocução
Da mesma forma que os Happenings, a performativa dita por um ator no palco é nula
performance e a body art exibem uma flexibi- ou vazia, uma vez que ele não faz alguma coisa,
lidade estrutural e uma indefinição que rom- mas representa uma ação. A função do ator é
pem com a convencionalidade e as restrições portanto interpretativa.
formais das práticas tanto do teatro quanto das Na arte da performance, o performer é o
artes visuais. autor do seu próprio script. Além do mais, a
Conceitualmente, a arte da performance performance quase sempre exibe uma forte atu-
é complexa e polêmica, não apenas porque abri- alidade e é bastante responsiva às questões polí-
ga uma multiplicidade de formas, mas também ticas e sociais do momento. Diferentemente do
porque, enquanto “gênero”, tem estado em per- ator teatral, o performer não pretende represen-
manente transformação desde o seu surgimento. tar um outro e habitar um espaço e tempo fictí-
O forte conteúdo de artes visuais que apresen- cios. Como Lynda Hart apropriadamente ob-
tava no início deu lugar, ao longo das duas últi- serva, “a arte da performance não permite a per-
mas décadas, a uma performance mais orienta- cepção da distância entre o performer e sua
da pela narrativa. linguagem e gestos, que o ator possui automati-
A despeito dessa flexibilidade conceitual, camente através do uso histórico do ‘personagem’”
pode-se afirmar que um dos traços principais da (Hart, 1996, p. 115-6). A razão dessa dificulda-
arte da performance é o seu caráter autoral. Na de em distanciar o performer de sua linguagem

Ana Bernstein é crítica e pesquisadora de teatro, formada pelo Centro de Letras e Artes da Uni-Rio,
com Mestrado em História Social da Cultura pela PUC-RJ. Atualmente cursa o Doutorado em
Performance Studies na New York University.

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e gestos reside precisamente no fato de que na Shaw e Penny Arcade, possui um forte caráter
performance as funções do artista, autor e per- público. Contrariamente à idéia de uma arma-
sona estão fundidas. Além disso, a fusão do au- dilha em auto-absorção que Richard Sennett
tor e performer é ainda mais complicada pela define como “narcisismo” e que leva à inação
imbricação do sujeito e do objeto, tanto pelo do corpo social, uma parte significativa da arte
uso do corpo como um lugar de representação da performance nos Estados Unidos nas últimas
quanto pelo emprego freqüente de material auto- duas décadas vem intervindo politicamente de
biográfico. maneira significativa e constante na esfera pú-
A body art e arte da performance, com seu blica. A teoria e as práticas feministas têm sido
caráter multidisciplinar, exigem que as relações inestimáveis nesse processo, e isso explica, em
entre artista, trabalho artístico e público sejam parte, porque as três artistas analisadas neste tra-
repensadas. O corpo atuante e quase sempre balho são mulheres. A performance solo auto-
despido do artista tornou-se não apenas o veí- biográfica tem, de fato, desempenhado uma
culo para o trabalho, mas o objeto de arte em função crítica na criação de um espaço discur-
si. Artistas como Marina Abramovic e Chris sivo para minorias que não se enquadram na
Burden criaram performances nas quais eles pu- normatividade do discurso ideológico domi-
xaram seus corpos ao limite extremo da dor e nante. Para aqueles relegados ao silêncio dentro
da resistência física e emocional. Carolee Schnee- do discurso dominante, a performance solo au-
mann fez do corpo erótico, sexual, o objeto tobiográfica tem sido instrumental para a rei-
principal da performance em trabalhos como vindicação por diversas minorias do papel de
Meat Joy (1964) e Interior Scroll (1975), usando agentes sociais e na criação de uma “contra-es-
seu corpo como “material integral” do seu tra- fera pública”. Afinal, como Foucault postula, se
balho. O modo de recepção passa, portanto, da “o discurso pode ser tanto um instrumento e
observação de um objeto de arte contido em si um efeito do poder”, ele pode também funcio-
e independente de seu criador, para uma rela- nar como “um obstáculo, uma pedra no cami-
ção intersubjetiva com o sujeito encarnado do nho, um ponto de resistência e um ponto de
artista em processo de produção do trabalho, partida para uma estratégia oposicional. O dis-
trazendo à luz “a relação entre visão e significa- curso transmite e produz poder, reforça o po-
do, entre o ato de fazer e o ser”, nas palavras de der, mas também o enfraquece e o revela, tor-
Kristine Stiles (1998, p. 228). O corpo torna- na-o frágil e faz com que seja possível obstruí-
se então o ponto de mediação entre uma série lo” (Foucault, 1990, p. 101).
de relações binárias de oposição, tais como o
interior e o exterior, sujeito e mundo, público e
privado, subjetividade e objetividade. O corpo Tratamento de choque:
é o lugar em que essas contradições ocorrem. o trabalho de Karen Finley
O intenso interesse pela autobiografia de-
“I’m living in hell and I intend to keep my
monstrado pela arte da performance, particu-
devil out”
larmente em trabalhos solos, pode parecer, a
Karen Finley.
priori, apenas um sintoma da profunda preocu-
pação com o sujeito que marca a modernidade. Ela entra vestida de noiva, a mais idealizada
A autobiografia é geralmente entendida como imagem feminina para sempre cristalizada. A
algo privado, como um olhar que se volta para longa cauda do vestido, porém, está embrulha-
o interior de si mesmo. A performance solo auto- da no seu braço, que a carrega como se uma fos-
biográfica, no entanto, como eu pretendo de- se uma sacola de compras, enquanto ela limpa
monstrar nesta apresentação através do exame o espaço com um aspirador de pó durante sua
comparativo dos trabalhos de Karen Finley, Peggy entrada. De pé, bem próxima à primeira fileira

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de espectadores, ela desliga o aspirador e dá iní- mo as exiba visualmente – como acontece em


cio a uma digressão sobre o perfil psicológico The American Chestnut com as imagens do seu
sadomasoquista de Winnie the Pooh e sua tur- parto projetadas em um tríptico de slides e mos-
ma, estabelecendo uma empatia imediata – e trando a cabeça de um bebê saindo de uma
uma certa intimidade – com o público. enorme vagina –, ela também incorpora uma
Servindo como contraponto para sua fala, multiplicidade de vozes à sua própria. Seu traba-
o aspirador de pó é ligado e desligado, criando lho não é uma prosa narrativa strictu senso, uma
pausas, marcando o início de uma nova passa- vez que seus monólogos são uma mistura de
gem ou a retomada de um pensamento. A frag- prosa e poesia e podem ser escritos tanto na pri-
mentação deste momento ilustra o espírito do meira quanto na terceira pessoa, de um ponto
trabalho. The American Chestnut, o penúltimo de vista feminino ou masculino. O foco da sua
trabalho de Karen Finley, é uma colagem de vá- “narrativa” não é nunca na sua vida individual
rios monólogos que se juntam para formar um per se ou na sua personalidade. Mais precisa-
todo orgânico. O caráter de assemblage do tra- mente, os limites entre autobiografia e ficção
balho não nos deixa esquecer que Finley é tam- são problematizados. A mesma incerteza cerca
bém uma artista plástica que trabalha com ins- a tríade autor-narrador-protagonista. Estórias
talações. Nesse sentido, vídeo e projeção de pessoais são reescritas, reinventadas, e mistura-
slides possuem tanta importância para a com- das com ficção na performance. É o caso, por
posição do trabalho quanto o corpo nu ou se- exemplo, do suicídio do pai de Finley. Finley
minu da performer: são todos elementos da nunca representa o suicídio de seu pai em si,
mesma linguagem. mas em mais de um de seus monólogos há um
O trabalho de Finley é ao mesmo tempo pai que se mata. Ela cria diferentes cenários e
extremamente pessoal e profundamente políti- contextos para isso, como em The Constant State
co. Uma grande parte de seus textos segue uma of Desire e em We Keep Our Victims Ready, mas
linha confessional e é escrito, portanto, freqüen- o fato real está presente apenas como subtexto e
temente na primeira pessoa do singular: Frases não está sujeito à verificação factual.
do tipo “Deixa eu lhe contar a respeito de...”, Grande parte do poder do trabalho de
“Eu sonhei...”, “Eu me lembro...” ou “Eu fiz...” Finley vem da falsa impressão que dá de que é
são tão recorrentes em seu trabalho que se tor- uma fala saída diretamente do inconsciente,
naram uma de suas características mais distintas. como um fluxo de idéias abrupto, impolido,
Ainda assim a maneira como Finley em- não censurado. A crítica teatral C. Carr definiu
prega o material autobiográfico não se enqua- esta fala como uma “Fala do Id”. Para Lynda
dra na definição de Philippe Lejeune de auto- Hart, “a linguagem de [The Constant State of]
biografia e do pacto autobiográfico. De acordo Desire, sua lógica não seqüencial, suas mudan-
com o teórico francês, autobiografia é uma “pro- ças abruptas, suas disjunções e deslocamentos,
sa narrativa retrospectiva escrita por uma pes- sua raiva freqüentemente incubada, imita a lin-
soa real a respeito de sua própria existência, guagem do inconsciente, trazendo para o pri-
onde o foco se encontra na sua vida individual, meiro plano a famosa afirmação de Lacan de
na história particular de sua personalidade” que o inconsciente é estruturado como lingua-
(Lejeune, 1989, p. 4). A autobiografia pressu- gem” (Hart, 1996, p. 112).
poria, portanto, um contrato entre o autor e o A impressão de um fluxo de idéias fluin-
leitor que deveria ser a afirmação, no texto, da do direto do inconsciente é reforçada ainda mais
identidade do nome próprio, da assinatura do pelo caráter não estudado, incompleto da per-
autor, com o narrador e o protagonista. formance. Finley não possui nenhuma técnica
Embora Karen Finley fale de coisas ínti- de atuação e nunca ensaia seus trabalhos antes
mas, de experiências pessoais de vida, e até mes- de apresentá-los ao público, a fim de não perder

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a espontaneidade. Ela geralmente cerra os olhos Ela esfrega seu corpo nu com chocolate e lam-
durante a performance de um monólogo – e sua buza sua bunda com inhame. Seus monólogos
voz se transforma numa espécie de lamento ou têm títulos do tipo “I’m an ass man”, “strangling
transe encantatório. Se por um acaso ela esque- baby birds”, “cut off balls”, “fist fuck”, e “Vomit
ce o texto, ela simplesmente pega o script e o lê. Belly”, para citar alguns.
Finley descreve seu processo de trabalho da se- A agressividade do seu trabalho está cer-
guinte maneira: tamente mais de acordo com o teatro da cruel-
dade de Artaud do que com a idéia tradicional
“Todos os meus trabalhos são work-in-progress:
de que a experiência estética produz prazer.
cada noite que eu faço um trabalho (...) eu
Finley não procura agradar ninguém. A violên-
experimento algumas coisas para mim mes-
cia de suas performances freqüentemente pro-
ma. Eu não ensaio minhas performances. Meu
vocava reações também violentas do público já
show pode fracassar quando eu vou para o
intoxicado de bebida nos clubes de performan-
palco. (...) Eu não planejo a ordem das cenas.
ce em que Karen Finley se apresentava nos fins
A única coisa que faço de antemão é escrever
de noite no começo de sua carreira, nos início
o meu script. (...) Mas eu posso sempre des-
dos anos 80. Os homens freqüentemente a in-
cartar o script.
sultavam e, por vezes, reagiam fisicamente du-
(...) Durante a performance eu tento deixar
rante a performance. C. Carr descreve algumas
todas as diferentes vozes que estão na minha
dessas reações em seu artigo Unspeakable Prac-
cabeça serem ouvidas. Eu digo aquilo que
tices, Unnatural Acts:
geralmente não é dito numa performance – o
que está passando na minha cabeça naquele “Finley apareceu de súbito no palco, por vol-
momento. Eu não me censuro. O mundo da ta de uma hora da manhã, trajando um ves-
minha performance é esse mundo interior – tido de baile de mau gosto. Durante horas a
dentro de mim, dentro de qualquer um. multidão punky entorpecida vinha se afogan-
É por essa razão que eu lido com muita in- do em bebida. Com sua habitual postura de
formação pessoal em meus trabalhos. Quan- confrontação, Finley gritou, ‘Vocês, seus
do eu comecei a trabalhar com performance, tipinhos vestidos de couro com cabelo espe-
eu falava muito sobre autismo e suicídio. Eu tado, eu adoro pensar em vocês se mastur-
queria usar coisas que aconteceram na minha bando!’
vida pessoal ou ao redor dela. (...) Eu quero Ela lhes disse como ia colocar uns pêssegos
explorar isso ainda mais nesse momento. Eu na sua buceta, e então pegar um desses filhos
planejo continuar colocando meus sentidos, da puta e colocá-lo sob seu vestido de festa e
minha raiva e emoções na performance” dizer a ele, ‘Baby coma esses pêssegos e cre-
me’ e então ela iria fazer uma visita às freiras
(Finley, 1999, p. 486).
porque ‘Eu não consigo dormir a menos que
Essa sensação de fluxo incontrolado é, além do eu escute o som de xoxota’, o que ela seguiu
mais, intensificada pelo conteúdo “pervertido” com (...) o número de merda líquida (‘O que
do seu trabalho. As performances de Finley são eu faço é, eu chupo, baby.’) Ela pontuou o
normalmente violentas, escatológicas e profun- momento derramando um vidro de calda de
damente perturbadoras. Ela fala sobre pais que chocolate Hershey no seu vestido.
estupram suas próprias filhas ou que abusam Uma onda poderosa de histeria correu pela
sexualmente das amiguinhas de suas filhas, fi- multidão. Dois rapazes jovens perto de mim
lhos fodendo suas mães, netos sodomizando estavam se contraindo e soltando guinchos e
suas avozinhas com inhames, mulheres espan- dobrados em dois. Finley então levantou seu
cadas por seus maridos, mães que matam seus vestido e mostrou a bunda nua para o públi-
bebês. Ela fala de merda, porra, urina e comida. co e anunciou: ‘Isto é Inhame no Traseiro da

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Minha Vovozinha’. ‘OH DEUS!’, gritou um Então eu ouço minha mãe chegar em casa. E
dos homens perto de mim. Ele e seu amigo ela começa a gritar, com todos os pulmões.
começaram a atirar cigarros acesos em Finley. ‘O que aconteceu com os legumes do jantar
Eles estavam totalmente fora de controle” de hoje? O que aconteceu com os legumes?
(Carr, 1993, p. 125). Você andou brincando com sua comida de
novo, menina? Eu ia fazer a receita favorita
Tabus tais como orifícios corporais, relações in-
do seu pai.’
cestuosas e diferentes tipos de perversão sexual, Eu apenas quero gritar, mas não posso, claro,
constantemente endereçados em seus monólo- ‘Mamãe, abra seus olhos! VOCÊ NÃO SABE
gos, conferem ao seu trabalho um valor de cho- QUE EU SOU A FAVORITA DO PAPAI?’”
que. Finley não diferencia entre atos tais como (Finley, 1990, p. 20-1).
comer, cagar, trepar ou vomitar. Nesse sentido,
seu trabalho pode ser definido como rabelai- A violência verbal e visual que marca o trabalho
siano, já que ela explora o corpo em seu extre- de Finley possui também um importante aspec-
mo grotesco. Em suas performances, tudo é ex- to construtivo, porque toma uma posição polí-
cessivo e degradante. Como em Rabelais, para tica, que não pode ser separada de questões fe-
quem a principal característica do corpo grotes- ministas e de gênero sexual. A degradação do
co é sua “natureza incompleta e aberta, e sua corpo em suas performances, seja a violação do
interação com o mundo”, “revelada de forma mais estupro ou a exibição do corpo feminino nu
concreta e completa na ação de comer” (Bakhtin, coberto de imundície, traz para o primeiro pla-
1984, p. 281), os monólogos de Finley exibem no questões de abuso e discriminação da mu-
sempre um consumo e excreção de comida imo- lher na sociedade patriarcal. Ao mesmo tempo,
derados e transgressivos, associados com corpos desfaz conscientemente a imagem feminina ide-
impuros. Os limites entre o interior e o exteri- alizada, associada com limpeza e maternidade.
O choque de ver essa mulher branca, desejável,
or, entre orifícios usados para o consumo e
bonita, degradando seu corpo ou falando sujo
excreção de comida e para atos sexuais são per-
sobre orifícios anais, tem sido não somente
manentemente confundidos, como no monó-
apontado pela imprensa, que não hesitou em
logo Refrigerador:
chamar suas performances de doentias e defini-
“E a primeira, e a primeira, e a primeira me- la como uma histérica, mas acabou resultando
mória, memória que tenho, que tenho de meu também no cancelamento de seu patrocínio
pai é dele me colocando no refrigerador. Ele pelo National Endowment for the Arts. Finley
tinha o hábito de tirar toda minha roupa do traz para a esfera pública o que é normalmente
meu corpo de cinco anos de idade e eu ficava confinado à esfera privada e portanto sobre con-
sentada nua naquela prateleira prateada da trole. Nesse sentido, seu trabalho se afina com
geladeira. (...) a política feminista de que “o pessoal é políti-
Então ele se abaixava em direção à gaveta dos co” e que as esferas pública e privada não estão
legumes, abria a gaveta e tirava as cenouras, o dissociadas mas sim interligadas e permeadas
aipo, a abobrinha, os pepinos. E então ele por relações de classe, gênero sexual e sexo. Por-
começava a trabalhar o meu buraquinho, tanto, ao invés de ser uma voz isolada e voltada
meu pequeno buraquinho, meu pequeno para si mesma, a narrativa autobiográfica na per-
pequeno buraquinho. Meu buraquinho de formance solo funciona como um instrumento
menina. Me mostrando ‘como é ser como a público na criação de um senso de comunidade.
mamãe’, ele diz. Me mostrando ‘como é ser Os monólogos de Finley estão, por con-
uma mulher, ser amada. Essa é uma tarefa seguinte, imersos em um drama duplo: psi-
para o papai’, ele me diz. Trabalhando meu canalítico e político. Eles abordam questões
buraquinho. (...) como a política que envolve a epidemia de Aids,

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o direito ao aborto, o racismo, a misoginia e a tituído no próprio processo da escrita, através


homofobia, bem como as relações de poder. da polifonia de seus textos. É este contínuo diá-
Finley dá voz às mulheres, às minorias étnicas e logo interior entre o sujeito e o outro que faz
sexuais, aos desabrigados. Ela incorpora essas com que essas vozes tornem-se a voz própria de
vozes como se fossem a sua própria, misturan- Finley. Nesse sentido, não importa se as estóri-
do-as com estórias pessoais, memórias e experi- as narradas foram de fato vividas ou não por
ências. O resultado é um texto polifônico no Finley. A verdade autobiográfica não deriva do
qual o dialogismo surge como uma estratégia aspecto referencial de seus textos, ela é igual-
consciente da narrativa. Essas elocuções cheias mente fabricada por eles. Karen Finley pode
de ecos de palavras de outras pessoas, são en- então dizer, como o artista performático Tim
contradas às vezes dentro de um mesmo monó- Miller em seu solo autobiográfico Sex/Love/Sto-
logo, como Strangling Baby Birds, onde o ries: “Eu lembro de tantas coisas, algumas delas
narrador muda abruptamente da terceira para a até mesmo aconteceram” (Román, 1998, p.
primeira pessoa do singular. Essa polifonia pode 143).
ser também ouvida na mudança de vozes e de
diferentes posicionalidades do sujeito de um
monólogo para o outro, entre os textos que se
Há um animal dentro de mim:
juntam para formar um trabalho em particular. o trabalho de Peggy Shaw
E no entanto essas vozes não são personagens
“I’m just thousands of parts of other people
teatrais, não são nem mesmo claramente deli-
mashed into one body”
neadas. No “estado de transe” em que Finley
Peggy Shaw
atua, essas diferentes vozes, como nota C. Carr,
“fluem de uma para a outra durante o curso de Menopausal Gentleman, o último solo de Peggy
um monólogo na medida em que este se move Shaw, é um trabalho que se baseia no que pare-
de um estado emocional para o próximo, os des- ce ser, a princípio, uma contradição em termos,
locados gêneros sexuais e narrativas mantendo- enunciada pelo provocativo título. Enquanto
se juntos por uma lógica febril de sonho” (Carr, o primeiro termo designa um fenômeno bio-
1993, p. 130). lógico geralmente relacionado no imaginário
Finley freqüentemente refere-se a si mes- público ao sexo feminino – ainda que a meno-
ma em performance como uma médium, um pausa masculina seja um fato cientificamente
veículo para que coisas possam sair de dentro provado –, o último se refere a uma qualidade
de si ou penetrar o seu interior, como se, nesse associada exclusivamente à masculinidade. Ele
transe, sua psiquê fosse revelada ao público sem descreve um comportamento (especialmente em
mediação, num aparente fluxo espontâneo. Con- relação às mulheres) que está de acordo com
tudo, esse “transe” não cancela ou aliena a pre- um conjunto de regras representativo dos al-
sença autoral, pois sabemos que essa esponta- tos preceitos da sociedade. Nesta performan-
neidade é um efeito adquirido por uma narra- ce, porém, gentleman está associado a um tipo
tiva construída de forma consciente e cuidadosa. diferente de masculinidade, a do sapatão, geral-
Não se pode, portanto, descrever o traba- mente considerada ultrajante pelo normativo
lho de Finley como uma narrativa linear que heterossexual.
busca dar, em retrospecto, um senso de conti- A contradição textual tem um paralelo
nuidade e unidade ao sujeito autobiográfico. visual no material de divulgação da performan-
Mais precisamente, o que vemos é a narrativa ce: uma fotografia de uma mulher madura ves-
inacurada de um sujeito fragmentado que se tindo uma calça de homem com suspensórios,
abre para e se identifica com múltiplas vozes. O mas sem camisa, deixando à mostra seus seios
sujeito autobiográfico é, por conseguinte, cons- nus. Sua mão direita está enfiada por dentro da

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calça surgindo novamente através do zíper aber- sujeito o discurso narrativo no qual o ‘Eu’ é ao
to, parando em frente ao seu sexo, enquanto a mesmo tempo sujeito e objeto” (Starobinski,
mão esquerda descansa em sua coxa, por sobre 1972, p. 78).
a calça. Essa imagem se abre a diferentes inter- Em Menopausal Gentleman, Peggy Shaw
pretações: a mais óbvia é a imagem da mulher descreve uma tal transformação nos seguintes
fálica, na qual a mão emerge da abertura do zí- termos, como abertura de sua performance:
per como um pênis. No clássico discurso psi-
“Eu estava andando e me encontrei abraçada
canalítico, é a imagem da lésbica que se apro-
a uma árvore no centro da cidade. A árvore
priou do pênis abertamente sem se preocupar
se chocou contra meu peito e fez com que eu
em disfarçar o fato por meio de uma máscara
perdesse o fôlego. Antes de eu cair, antes que
de feminilidade. Ao mesmo tempo, sugere um
eu diminuísse o passo por meio da pancada
gesto auto-erótico, o ato de tocar a si mesma
com a árvore, eu aparentava ser perfeitamen-
por prazer, afirmando, portanto, o desejo sexu-
te normal. Há maneiras melhores de se dimi-
al e a agência da mulher. É possível lê-la ainda
nuir o passo”.
como cobrindo o seu sexo: um sexo que não
pode ser visto, sugerindo simultaneamente a A colisão com a árvore é, claro, uma metáfora
invisibilidade da Mulher (que não é senão o escolhida por Shaw para descrever o impacto e
espelho do homem) e a invisibilidade da sexua- o caráter inesperado de uma experiência de vida
lidade lésbica, fundida aqui sob o signo “sexo”. transformadora e de uma literal transformação
Uma fusão produzida pela polissemia da pala- interna: menopausa. Menopausal Gentleman é
vra sexo, usada tanto para denotar o sexo bio- uma reflexão sobre o medo de envelhecer e as
lógico quanto identidades de gênero e práticas transformações físicas e emocionais provocadas
sexuais. pela menopausa. Peggy Shaw examina o que sig-
O close up da fotografia deixa de fora da nifica ser sapatão – ou, como diz o título, um
moldura o que se encontra acima dos ombros e gentleman – e passar pelo inevitável processo
abaixo da área próxima à genitália. Dentro da menopausal; o que significa vivenciar uma vio-
moldura, porém, e da mesma forma como lenta mudança física. Perturbadora e problemá-
acontece com o título do trabalho, encontramos tica para a maioria das mulheres, a menopausa
as categorias de masculino e feminino conden- pode ser ainda mais estressante para o sapatão
sadas e indistintas, abalando a visão normativa que, a despeito do seu sexo biológico, marca seu
do sistema binário sexual, em que o masculino gênero sexual como masculino. “É difícil ser um
é atributo exclusivo do homem e o feminino da gentleman em menopausa”, Peggy Shaw confes-
mulher. Ao declarar a si mesma um gentleman sa ao público.
em menopausa, Peggy Shaw está não somente Da mesma forma que a imagem de divul-
torcendo a linguagem em direções inesperadas, gação deixa de fora da moldura precisamente o
mas também questionando classificações “natu- rosto de Peggy Shaw, aquilo que a individuali-
rais” de gênero sexuais. De fato, essa única ima- za, e revela apenas um corpo de mulher, Meno-
gem epitomiza a complexidade das questões le- pausal Gentleman é um trabalho que, embora
vantadas pelo seu trabalho. largamente autobiográfico, abre a discussão so-
Em seu ensaio The Style of Autobiogra- bre questões de gênero e sexualidade, sobre o
phy, Jean Starobinski escreve que “alguém difi- controle político e ideológico imposto pelo Es-
cilmente teria motivo suficiente para escrever tado sobre o corpo da mulher, sobre o valor de
uma autobiografia não fosse alguma mudança uso de corpos produtivos e improdutivos, de
radical ocorrida em sua vida (...). É essa trans- construções de identidade. Torna-se claro, des-
formação interna do indivíduo – e o caráter sa forma, como assuntos íntimos e pessoais de
exemplar dessa transformação – que fornece ao sujeitos/corpos individuais são constituídos pela

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interseção de várias práticas culturais e se im- terno dá a vocês uma idéia de como eu me sin-
bricam com o corpo político. to. Por dentro eu estou toda enfaixada, porque
Peggy Shaw emprega um tom diretamen- você não pode ter um terno excelente como esse
te confessional, deixando claro desde o início a e ter calombos do lado de fora”.
natureza autobiográfica de sua performance: Com um clássico humor camp, ela revela
o quão cuidadosamente “constrói” seu gênero
“Deixe eu tentar descrever para você... como
de forma que o exterior corresponda ao seu sen-
tudo se parece e como tudo acontece dentro
timento interior.
do meu corpo, do crepúsculo ao alvorecer da
noite do meu corpo. Eu estou tentando pas- “Ser um gentleman é muito importante para
sar por uma pessoa quando há um animal mim... Eu tenho que me concentrar para
dentro de mim, um animal em fogo que es- manter minha voz baixa, para combinar com
pera pelas sombras da noite. Andando e su- meu terno. (...) Você tem que gastar um bo-
ando e girando, uma fera em cativeiro dentro cado de tempo sendo um gentleman. Eu sou
do meu corpo, exaurindo os sulcos do meu o gentleman trabalhador que dá mais duro no
chão” (Shaw, 1997). show business. (Ela cospe como homem) Ser um
gentleman significa que meus sapatos estão
Ao invés da usual narrativa que vai do nasci-
brilhando. Sapatos são um dos elementos de
mento ao tempo presente da escrita esperada da
um gentleman. E abotoaduras. E assovio”.
maioria das autobiografias, Menopausal Gentle-
man cobre um período de tempo que vai “do Shaw não está afirmando que o gênero sexual é
crepúsculo ao alvorecer da noite do corpo” de performativo no sentido volitivo. Como Judith
Peggy Shaw. Que a temporalidade da narrativa Butler bem observa, “um sujeito tão voluntario-
seja determinada de acordo com o corpo da au- so e instrumental, alguém que decide a respeito
tora/narradora/performer, faz todo o sentido, do seu gênero, claramente não é seu gênero des-
uma vez que tanto a narrativa quanto a perfor- de o princípio e falha em reconhecer que a sua
mance são estruturadas ao seu redor. Peggy Shaw existência já é decidida pelo gênero” (Butler,
engaja cada membro, cada parte do seu corpo 1993b, p. x). O gênero é performativo apenas
para falar de amor, desejo, perda e medo. no sentido em que “constitui como um efeito o
O corpo é tratado não apenas no seu as- próprio sujeito que aparenta expressar” (Butler,
pecto físico, menopausal, mas também como 1993a, p. 314). Por meio da performance, en-
limiar, como ponto de mediação entre o públi- tretanto, Peggy Shaw torna seu gênero visível,
co e o privado, como meio de comunicação en- passível de leitura, para o público. Ela consci-
tre o que está dentro e o que está fora, como entemente questiona o sistema binário de gê-
subjetividade encarnada. Shaw usa sua sapatice neros, ao mesmo tempo em que reivindica uma
para desfazer a fusão de sexo, gênero e sexuali- identidade constituída através do desejo. Shaw
dade, e para tornar claro como significados cul- não está tentando passar por homem, sua
turais são inscritos no corpo. Ela explora as sapatice não é uma afetação nem uma mascara-
antinomias entre aparência e essência, normal e da, como ela explica humoristicamente:
anormal, interior e exterior, entre representações
“Eu nasci assim. Eu nasci sapatão. Eu não
construídas e verdades íntimas.
aprendi a ser sapatão na escola de teatro. Eu
“O interior do meu corpo”, diz Shaw,
sou tão queer que eu não tenho que falar a
“parece tão frágil. Eu sempre tive medo de co-
respeito. Isso fala por si mesmo”.
locar meus dedos dentro de mim. Engraçado
como o sexo da mulher é do lado de dentro, o A questão de “passar” é importante e complexa.
do homem do lado de fora. É o jeito que as coi- No sistema binário de gêneros, a heterossexua-
sas são. Meu corpo está dentro desse terno. O lidade é não apenas naturalizada, mas se torna

98
A performance solo e o sujeito autobiográfico

de fato, compulsória, e sexualidades e gêneros retórica “ligada à menopausa é a do colapso do


que escapam a este modelo são classificadas controle central” (Martin, 1997, p. 34), como
como patológicas e perversas. Dentro de tal es- Emily Martin torna evidente em seu estudo
trutura, é quase impossível para a masculinida- Medical Metaphors of Women’s Bodies, em que a
de do sapatão ser reconhecida como outra coisa autora analisa o uso da linguagem médica em
que não a mera imitação da masculinidade he- relação ao corpo das mulheres1. A menopausa
terossexual. Em Imitation and Gender Subordi- constitui-se então como uma questão privada,
nation, Judith Butler chama atenção para o fato pessoal e muito íntima, a ser discutida apenas
de que não há tal coisa como “um gênero pró- dentro dos limites do consultório médico ou da
prio a um sexo e não à outro” e conclui que gê- esfera doméstica. Algumas mulheres consideram
nero é portanto “um tipo de imitação para o mais desejável passar como perfeitamente fun-
qual não há original” (Butler, 1993a, p. 313-4), cional, escondendo do mundo externo a trans-
ainda que a heterossexualidade compulsória formação interna, mantendo-a “dentro do ar-
tente sempre instituir-se como norma. Como mário”. Passando por straight quando de fato se
Shaw demonstra em sua performance, a mas- sentem queer. Nesse sentido, a postura “perfei-
culinidade não é propriedade do homem e não tamente funcional” é uma performance drag
concerne apenas a um modelo heterossexual. O como outra qualquer, que depende apenas da
sapatão deixa então de ser uma imitação e se economia entre o visível e o invisível.
afirma como a articulação de uma masculinida- A importância de Menopausal Gentleman
de da mulher, tornando possível imaginar gê- reside precisamente em discutir essas questões,
neros sexuais diferentes daqueles já legitimados. quase nunca tratadas em público, a menos que
Relacionado com a menopausa, o proble- seja dentro dos limites seguros do discurso mé-
ma de “passar” abre-se ainda a uma outra di- dico ou a serviço dos interesses das corporações
mensão. Submetido a uma série de transforma- farmacêuticas. A narrativa autobiográfica de Shaw
ções fora do controle do consciente, o corpo em confere visibilidade à menopausa, emprestando-
menopausa revela-se como um corpo indiscipli- lhe o peso de um sujeito encarnado. Da mesma
nado, improdutivo, dando origem a medos em forma que os grupos de conscientização da mu-
relação à insanidade, à degeneração física, e ao lher dos anos 70 encorajaram a exposição pú-
declínio sexual, gerando um grande nível de blica de questões pessoais, a performance con-
ansiedade em relação ao futuro. Em regra, as fessional de Shaw cria um vínculo entre per-
mulheres tendem a não admitir publicamente former e público, baseado no reconhecimento
essa mudança. Geralmente apresentada de for- de experiências compartilhadas. Ela permite ao
ma negativa e até mesmo patológica, a imagem público rir da menopausa e das políticas sexuais,

1 Qualquer sumária descrição médica sobre menopausa informa-nos que a redução aguda dos níveis de
hormônios produzidos pelo corpo “pode causar conseqüências ao mesmo tempo agudas e crônicas em
tecidos dependentes de hormônios tais como o cérebro, os ossos, o coração, os vasos sanguíneos e a
pele” (Endocrinology and Menopause – documento produzido pela Endocrinology Society e publicado em
seu website). Os efeitos mais comuns são ondas de calor, suores noturnos, instabilidade emocional,
ressecamento da vagina e da vulva, atrofia vaginal (resultando em dor durante o ato sexual), irritabi-
lidade, insônia, perda de memória, incontinência urinária, enxaquecas, cansaço, risco de doenças do
coração, aumento do risco de osteosporose, do mal de Alznheimer, risco de câncer colo-retal, flutuações
no desejo sexual e depressão (essa informação está disponível em diferentes websites sobre o assunto.
Os dados utilizados foram encontrados em The Foundation for Better Health Care e The North Ame-
rican Menopause Society).

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sala preta

ao mesmo tempo em que incentiva uma refle- ce da entrada da rua. A sala é realmente peque-
xão crítica a respeito dessas questões. Nesse na, com apenas uma arquibancada improvisada
sentido, o trabalho solo de Peggy Shaw com- para uma platéia também pequena. Não há ne-
partilha da preocupação do seu grupo teatral nhum refletor, nem palco. A distância entre a
Split Britches sobre a necessidade de se repensar primeira fileira de espectadores e a parede des-
a política e a semiótica da representação da mu- cascada ao fundo da área da performance não
lher no palco, visando a construção de uma vi- chega a 3 metros. Ao centro, apenas um velho
sibilidade lésbica no teatro. Numa entrevista em microfone num pedestal. À esquerda, próxima
1986, Shaw definia o projeto do grupo em ter- à parede, uma cadeira velha e alguns papéis es-
mos que podem ser tomados emprestados tam- palhados no chão. O único banheiro fica à di-
bém para a definição do seu projeto de solo au- reita, e o público tem que atravessar o palco para
tobiográfico: ir até lá.
Embora a presença de Penny seja mágica,
“É uma coisa muito nova ser lésbica... Então
as estórias que ela conta em A Thousand and
nós estamos tentando descobrir o que é a lés-
One Nights of Penny Arcade são assustadoramen-
bica. Ou o que eu sou. Nós estamos tentan-
te reais. A beleza das mil e uma noites, como Bor-
do descobrir sem todas essas outras constri-
ges observou, reside na idéia de infinito contida
ções e regras... tentando descobrir a respeito
no título, de incontáveis, intermináveis noites às
de todas essas vidas que tem sido escritas ao
quais se adiciona mais uma. Da mesma forma,
redor por tantas centenas de anos” (Patraka,
em A Thousand and One Nights of Penny Arcade
1993, p. 217).
as estórias nunca terminam, elas são inumerá-
veis porque são estórias que estão sendo escritas
todos os dias na cena artística de downtown New
Eu sou uma perdedora: York, ou do que resta dela. Como Sherazade,
o trabalho de Penny Arcade Penny Arcade conta estórias para sobreviver.
Penny Arcade, cinqüenta anos de idade,
“I’m writing my way out of my life”
descende, em suas palavras, “de uma longa fi-
Penny Arcade (Fan Mail #2)
leira de pessoas da qual não sobrou muita gente
No outono de 1997, Penny Arcade fez uma sé- em pé”. A maioria de seus amigos e pares que
rie de performances na House of Candles, inti- fizeram a cena artística nas décadas de 60, 70 e
tulada A Thousand and One Nights of Penny 80 – Jack Smith, Ethyl Eichelberger, Charles
Arcade. A House of Candles é o que muitos cha- Ludlam, Kevin Bradigan, David Wojnarovich,
mariam de um “buraco”: uma velha loja caindo e tantos outros – ou morreram de Aids ou se
aos pedaços na Rivington Street, numa parte do suicidaram. Em seu trabalho, Penny celebra e
Lower East Side que na época ainda se parecia ajuda a manter vivo o legado desses artistas ago-
com uma terra de ninguém, i.e., o que o Lower ra mortos.
East Side era antes do processo de gentrification2 A Thousand and One Nights of Penny
que teve início nos últimos anos. Arcade é um trabalho sobre o desaparecimento
O espaço é uma espécie de corredor, e da boemia, do underground, do verdadeiro
uma cortina barata divide a área da performan- mundo artístico que está rapidamente sendo

2 Gentrification é o termo inglês usado para indicar o processo pelo qual uma determinada rua ou área
habitada por populações pobres é transformada pela mudança de pessoas de classes sociais mais eleva-
das para esta área. Cf. Longman Dictionary of Contemporary English.

100
A performance solo e o sujeito autobiográfico

substituído por uma cultura de mercado. As es- diz que vem de uma longa linha de perdedores.
tórias da vida artística de Penny Arcade são “Na América, dizem a todo mundo que eles vão
entrelaçadas com a transformação social e polí- vencer, mas todos não podem vencer! ALGU-
tica da cena cultural de Nova York, resultante MAS PESSOAS TÊM QUE PERDER!”
de uma política conservadora de direita. Penny Jack Smith fracassou publicamente. Penny
faz a crônica do fim de Nova York como capital nos conta que “ele praticamente morreu de
cultural e o surgimento da capital do shopping fome. Ele morreu de Aids, mas antes disso ele
mall. passou fome por 20 anos”. Os artistas de van-
“O lower east side”, ela conta, “era uma guarda, os poetas, os junkies, as putas, a verda-
Meca para os desajustados, perdedores e desvia- deira boemia, esses não estão preocupados em
dos. Nós não participávamos da cultura do main- ganhar, são perdedores intencionais. O under-
stream. Nós permanecíamos nas laterais”. “O ground pode ser destruído, mas não pode ser co-
lower east side costumava ser cheio de escritores, optado pelo mercado, transformado em commo-
pintores, poetas, fotógrafos, produtores de fil- dity. “O underground é inviolável”, diz Penny.
me, escultores, músicos, designers, junkies, pu- “Não é um lugar. É um espaço metafísico. O
tas e gente excêntrica. Agora está cheio de estu- underground é onde a boemia encontra o sub-
dantes universitários pretendendo ser escritores, mundo, o mundo do crime. Se você não tem
pintores, poetas, junkies, putas e gente excên- uma classe criminosa funcionando na sua cena
trica. Em outras palavras, os dez garotos mais artística – você tem academia”.
populares de cada escola de segundo grau no Mais do que qualquer outro artista per-
mundo estão agora vivendo no lower east side. formático, o trabalho de Penny demonstra a in-
Essas são as pessoas que a maioria dos que se definição dos limites entre vida e arte. Em Bad
mudaram para Nova York – se mudaram para Reputation, um trabalho autobiográfico, mas
escapar delas. (...) Ouça, quando Penny Arcade não solo, ela ilustra esse aspecto com uma ane-
é considerada a pessoa mais excêntrica down- dota: “Dois anos atrás, eu fui convidada para
town, há um problema!” participar com Nan Goldin de um painel sobre
Penny escreve sobre a sua vida, sua vizi- arte transgressiva. Eu estava falando com Nan
nhança, sobre os lugares onde a boemia flores- no telefone e ela disse, ‘A propósito Penny, o
ceu. Ela escreve sobre os artistas que estão sen- que é arte transgressiva?’ Eu disse, ‘Bem, Nan,
do forçados a se mudar devido aos altos preços arte transgressiva é como os acadêmicos cha-
dos aluguéis; ela denuncia a política municipal mam aquilo que eu e você chamamos de vida
de demolir prédios habitados por moradores de real!’”
baixa renda, deixando um grande número de Bad Reputation é o relato de Penny de
famílias desabrigadas e despossuídas. Ela discur- como ela foi rotulada como bad girl aos treze
sa contra a política conservadora do prefeito anos e acabou fugindo de casa, indo parar no
Giuliani que nos últimos oito anos vem atacan- Reformatório aos quatorze anos. Ela narra como
do incansavelmente não apenas as artes, mas os foi estuprada por um velho “amigo” aos dezes-
clubes de dança e de strip-tease, as prostitutas, seis e sua mudança para Nova York aos dezesete,
os desabrigados, os pobres. onde foi adotada pelas drag queens do East
Penny conta estórias da sua geração e la- Village. A estrutura do trabalho, porém, cons-
menta que a nova geração tenha parado de ex- tantemente relaciona suas anedotas pessoais
perimentar, não respondendo mais aos proble- com o quadro social mais amplo. Ela fala de to-
mas políticos e sociais. Ela anuncia que a sua das as garotas rotuladas de bad girls que eventu-
performance é sobre a nobreza do fracasso e o almente acabaram viciadas em drogas ou prosti-
seu lento declínio. Porque “é importante fracas- tuídas, e de todas as mulheres abusadas sexual-
sar em público”. Ela se declara uma perdedora, mente – como na estória de Aileen Wournos,

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sala preta

uma prostituta condenada à morte por matar Conclusão


sete homens. “Nós vivemos numa sociedade”,
diz Penny, “que não acredita que prostitutas A dificuldade – para não falar na impossibilida-
possam ser estupradas, especialmente as mais de – em definir a arte da performance como um
ordinárias. Nós vivemos numa sociedade que gênero, mencionada no começo dessa apresen-
não acredita que prostitutas possam ser abusa- tação, é igualmente válida no que se refere à au-
das sexualmente. Eu li que Aileen Wuornos es- tobiografia. Como bem observou Paul de Man,
teve no reformatório quando tinha 14 anos, “empírica e teoreticamente a autobiografia pres-
como eu. (...) Eu me pergunto porque minha ta-se pobremente à definição genérica; cada ins-
vida e a dela acabaram por ser tão diferentes. tância específica parece ser uma exceção à nor-
(...) Durante muito tempo eu pensei que tinha ma” (de Man, 1984, p. 68). Tanto a auto-
sobrevivido a despeito de todas as coisas ruins biografia quanto a performance são processos
que me aconteceram. Mas então eu comecei a abertos, compreendendo uma miríade de for-
considerar a possibilidade de que eu me tornei mas possíveis. Talvez por esta razão, a perfor-
o que sou por causa de todas essas coisas”. mance solo tenha se tornado um meio tão pri-
Seu trabalho não é sobre sentir-se vítima, vilegiado para investigações autobiográficas,
é sobre ser um alvo, como ela mesma coloca. abrindo novas possibilidades de representação
Para Penny, o trabalho autobiográfico só faz sen- do sujeito.
tido se pode conectar as suas experiências com A autobiografia é geralmente entendida
as experiências de outras pessoas: “Eu não con- em termos de um movimento de singularização
to tudo como alguém faria numa confissão, eu de uma vida exemplar, uma vida que por suas
conto apenas aquilo que me ancora ao mundo, qualidades individuais e seu caráter único é me-
aquilo que me torna semelhante aos outros, não recedora de ser distinguida de outras vidas mais
aquilo que me faz diferente”. ordinárias. A narrativa de uma vida exemplar
É interessante observar, entretanto, que permite aos leitores/receptores reconhecer o
tanto os críticos quanto os acadêmicos vêm per- particular no universal, a humanidade no sujei-
sistentemente ignorando Penny Arcade. E em- to individual. Por trás desta idéia está a suposi-
bora ela seja largamente conhecida na Europa e ção de que o sujeito em questão é um sujeito
na Austrália, ela enfrenta grandes dificuldades universal.
financeiras para produzir seu trabalho nos Esta- As vidas de Karen Finley, Peggy Shaw, e
dos Unidos, mesmo depois de 30 anos de vida Penny Arcade dificilmente poderiam ser descri-
artística. Seu trabalho é, em certo sentido, qua- tas como exemplares, ou como modelos que
se heróico, como ela mesma observa, não sem podem servir de espelho universal para a huma-
ironia, em A Thousand and One Nights: nidade. Mulheres, lésbicas e artistas não corres-
pondem exatamente à definição do sujeito uni-
“Quem disse que não há mais boemia... olhe versal que, de maneira geral, é construída como
para vocês – vocês estão aqui... nesse buraco um sujeito masculino, branco e europeu. Seus
sujo no lower east side... e aqui estou eu, Penny trabalhos engajam sujeitos divididos, cujas iden-
Arcade, capacho profissional, a mais famosa tidades são marcadas por raça, classe, gênero e
artista performática de Nova York... famosa sexualidade. É somente em relação a esses sig-
no mundo inteiro... e agora afundada em fra- nificados culturais e históricos inscritos nos cor-
casso como uma verdadeira boemia e vocês... pos dos sujeitos que qualquer identificação é
Sim, olhem para mim... como Joana d’Arc... possível. A performance solo autobiográfica,
sendo heróica... (...) sim e vocês, todos vocês... portanto, não conecta a humanidade a um todo,
eu... vocês, nós... olhe para nós... os últimos em nome de um sujeito universal, mas antes
remanescentes da boemia...” aponta as diferenças, as dissimilaridades, as des-

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A performance solo e o sujeito autobiográfico

continuidades. Ela revela como construção o tação e outros não. É, portanto, somente como
que é assumido como “natural” ou “biológico” identidades-em-diferença que qualquer identi-
e, neste processo, revela o próprio sistema de re- ficação é possível, e que um sentido de identi-
presentação, o discurso ideológico por meio do dade comunal pode ser alcançado.
qual alguns sujeitos chegam a adquirir represen-

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