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Da alfândega ao Valongo: A entrada dos cativos africanos no Rio de Janeiro no

século dezenove sob uma nova perspectiva historiográfica

Reinaldo Bernardes Tavares, Claudia Rodrigues-Carvalho e Andrea Lessa

Este artigo faz uma análise das práticas portuárias empregadas no comércio de africanos na cidade do Rio de Janeiro durante
as duas primeiras décadas do século dezenove. A partir da diferenciação conceitual entre desembarque e descarga final das
arqueações de cativos, novos dados obtidos em fontes primárias inéditas foram confrontados com relatos de cronistas e com
fontes documentais tradicionalmente conhecidas. Sob essa perspectiva, o texto apresenta um panorama sólido e plausível
sobre o processo de importação de escravizados, resgatando a importância do papel da alfândega do Rio de Janeiro
como primeiro local de desembarque, e deslocando para o litoral da Saúde, no antigo bairro do Valongo, o local de descarga
final das arqueações de africanos. Trata-se, portanto, de um cenário divergente da teoria corrente, segundo a qual o Cais do
Valongo, localizado na enseada do Valonguinho, teria sido a porta de entrada dos milhares de cativos africanos que chegaram
ao Rio de Janeiro.
Palavras-chave: diáspora africana, alfândega, Valongo, mercado de escravos, Rio de Janeiro

In this article, we analyze the practices employed at the ports of Rio de Janeiro pertaining to the African slave trade during the
two first decades of the nineteenth century. Based on the conceptual differences between disembarkation and final discharge of
the enslaved, we compare new data obtained from unpublished primary sources with chroniclers’ accounts and previously
known historical documents. From this perspective, the text presents a consistent and plausible vision of
the slave importation process, revealing the importance of the Customs House of Rio de Janeiro as the first landing place,
and moving to the littoral of Saúde, in the old neighborhood of Valongo, the site of final discharge of African captives.
This is in contrast to the current theory that the Valongo Wharf, located on the Valonguinho Cove, would have been the gateway
for the thousands of African captives who arrived in Rio de Janeiro.
Keywords: African diaspora, customs department, Valongo, slave market, Rio de Janeiro

O
comércio de cativos africanos no Brasil atendia à província do Rio de Janeiro e às provín-
ocorreu por um período bastante longo, cias de Minas Gerais e São Paulo (Fragoso
cuja estimativa é de que tenha superado 1992). Era formado por associações entre pode-
a marca de quatro séculos. A impossibilidade de rosos comerciantes de “grosso trato”, que
se mensurar formalmente tamanha indignidade comandavam os negócios negreiros internacio-
humana ocorre em função da regionalização do nalmente, desde o embarque nos portos da
tráfico em um país de dimensões continentais; África, passando pelas operações de venda e dis-
e também em função da impossibilidade de se tribuição, a partir do porto do Rio de Janeiro, e
contabilizar com precisão o número de cativos por pequenos mercadores varejistas submetidos
importados, haja vista as subnotações, as cargas economicamente aos primeiros através do con-
provenientes do contrabando, e a não preserva- trole do crédito, e em função de poderes políti-
ção de boa parte dos registros alfandegários. cos, sociais e comerciais (Florentino 1995).
O mercado de escravos na cidade do Rio de Na cidade do Rio de Janeiro, no antigo bairro
Janeiro tinha alcance local e regional, pois do Valongo (atuais bairros da Gamboa e Saúde;

Reinaldo Bernardes Tavares, Claudia Rodrigues-Carvalho e Andrea Lessa (lessa.mn@gmail.com, autor para contato) ▪
Programa de Pós-graduação em Arqueologia, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Quinta da Boa Vista s/n,
São Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ - CEP: 20940-040, Brasil
Latin American Antiquity 31(2), 2020, pp. 342–359
Copyright © 2020 by the Society for American Archaeology
doi:10.1017/laq.2020.23

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Tavares et al.] DA ALFÂNDEGA AO VALONGO 343

Figura 1) encontrava-se instalado o complexo são mais fidedignas, uma vez que as normas de
escravista conhecido localmente por Mercado contabilidade alfandegária e as regras de arquea-
de Escravos do Valongo, dotado de lazareto, ção estavam sob o controle direto do estado por-
cemitério e lojas para venda de cativos (Pereira tuguês. Segundo pesquisas realizadas em
2007). Com o advento da chegada da Corte Por- arquivos do escritório da alfândega do Rio de
tuguesa em 1808, o mercado do Valongo se torna Janeiro, estima-se que cerca de 600 mil cativos
“grande centro redistribuidor de escravos para a africanos entraram no Rio de Janeiro apenas
Região Sudeste do Brasil” (Soares 2007:40), entre os anos de 1811 e 1843 (Karash 2000).
principalmente nas duas primeiras décadas do Manolo Florentino (1995), através de pesquisa
século dezenove. No Brasil, estima-se que em no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro em jor-
1800 já havia quase um milhão de escravos, nais, periódicos e documentos de entrada de
dos quais 10% estavam concentrados nas zonas navios, estima que de 1790 até 1830 tenham
urbanas, e o restante trabalhava na agricultura, entrado pelo porto do Rio de Janeiro 706.870
pesca, transporte e mineração (Luna e Klein cativos africanos. Os dados de Florentino são
2010). No início do século dezenove, em face bem organizados e, portanto, valiosos para dis-
da necessidade de abastecimento do “braço cussões sobre demografia. Quando quantificados
escravo” para o estabelecimento da Corte Joa- anualmente para o período entre 1801 e 1830
nina e, posteriormente, Imperial, o número de observa-se uma estimativa de 564.345 para as
cativos do sexo masculino em muito superou o primeiras décadas do século dezenove (Floren-
de mulheres e crianças, criando novas dinâmicas tino 1995). No levantamento realizado pela
na vida escrava e na prática mercadológica (Góes equipe do “Voyage: Trans-Atlantic Slave
1993). Voyage Trade Database” para o período de
Com a proibição do tráfico de escravos na 1801 até 1825 (Eltis e Richardson 2008), a esti-
década de 30 do século dezenove, garantida por mativa de desembarque para o sudeste brasileiro,
acordo bilateral entre a Grã-Bretanha e o Império em sua quase totalidade para o Rio de Janeiro, é
do Brasil, o comércio retalhista de escravos do de 449.566 cativos africanos. Somando-se os
Rio de Janeiro se reorganizou em escritórios e dados para os períodos entre 1801 e 1850,
casas de negócios variados, levando à desarticu- estima-se que 714.909 cativos tiveram como des-
lação do complexo do Valongo. Nesse contexto, tino essa mesma região (Eltis e Richardson 2008:
foram realizados negócios sorrateiros através de slavevoyages.org/assessment/estimates).
transações comerciais rentáveis que aceitavam Comparando-se o levantamento de Florentino
dinheiro, escravos, mercadorias e demais objetos (1995) com o de Eltis e Richardson (2008)
de valor, visando burlar a proibição estatal (Soa- para o período entre 1801 e 1825, observa-se
res 2007:43-44). No entanto, não foi apenas o 378.345 indivíduos contra 449.566, respectiva-
complexo que sentiu as mudanças com o pro- mente. A diferença de 71.221 cativos entre
cesso de ilegalidade, os próprios comerciantes ambos se explica pela maior abrangência territo-
de escravos, que antes eram vistos como exemplo rial dos dados utilizados pelo segundo trabalho.
de empreendedorismo e sucesso, foram então Assim, embora não sejam os únicos, existem
equiparados aos gananciosos piratas, uma vez pelo menos três conjuntos de dados mais robus-
que passaram a ser de fato contrabandistas. Con- tos relativos ao comércio de africanos para o Rio
tribuiu para esta situação a inércia do Estado, o de Janeiro, os quais até o momento proporciona-
qual não estava preparado para ações de repres- ram um panorama convergente. São eles resul-
são ao “infame comércio”, tão lucrativo e ampla- tantes da pesquisa de Karash (2000) sobre
mente espalhado pelo vasto litoral brasileiro dados alfandegários, ou seja, em fonte estatal, a
(Rodrigues 2000). qual fornece uma boa amostra inicial; da pes-
Os dados demográficos da escravidão na quisa de Florentino (1995), que se aproxima bas-
cidade do Rio de Janeiro se tornam mais precisos tante dos números estimados em estudos mais
para o período entre 1811 e 1831 em função da recentes; e os dados coletados e organizados
conjuntura histórica associada à presença da Eltis e Richardson (2008), mais acurados e
Corte Joanina. Para esse período, as estimativas abrangentes, os quais demonstram a magnitude

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Figura 1. Mapa com indicação da cidade do Rio de Janeiro e do atual bairro da Gamboa, parte do antigo bairro do
Valongo, endereço do complexo escravista do Valongo. Desenho de Reinaldo Bernardes Tavares.

do fluxo de embarcações e de pessoas, e os locais Assim, a chegada dos africanos no porto do


utilizados para as ações de desembarque, sendo Rio de Janeiro se efetivava através da ação de
complementados por novas fontes históricas, desembarque na área da alfândega (Figura 2),
assim que identificadas. onde as levas de africanos seguiam para conta-
gem, registro e pagamento de impostos por
Sobre a importação de africanos para o Rio parte dos negociantes, sendo logo em seguida
de Janeiro reembarcados e enviados para a quarentena. A
descarga final, por sua vez, ocorria apenas após
A despeito das preciosas informações fornecidas o exame das autoridades sanitárias (Provedoria
pelos estudos anteriormente mencionados, é da Saúde) e o cumprimento de um período
correto afirmar que podem existir algumas mínimo de oito dias de quarentena prévia.
imprecisões tanto na perspectiva quantitativa A partir da década de oitenta do século vinte,
quanto qualitativa, uma vez que não há como uma perspectiva teórica surge com o lançamento
mensurar as atividades de contrabando e as inco- do livro “História dos Bairros (Saúde, Gamboa e
rreções de uma escrituração suscetível à corrup- Santo Cristo)”, escrita por Elizabeth Dezouzart
ção. Por outro lado, até o momento, a leitura Cardoso e colaboradores em 1987. Trata-se de
das fontes primárias e a organização dos dados uma obra ricamente ilustrada com fotografias e
não foram realizadas considerando-se as duas gravuras, porém carente de citações diretas e fontes
etapas envolvidas na importação dos cativos, dis- primárias. Baseada em fontes pictóricas e em pou-
tintas sob a perspectiva conceitual e logística: a cos relatos de cronistas, a obra apresenta a ideia do
chegada dos indivíduos então tratados como “Cais do Valongo como polo central do comércio
“cargas vivas” no porto do Rio de Janeiro, após de escravos” (Cardoso et al. 1987:29; Figura 2).
a travessia Atlântica (desembarque); e o local O historiador Jaime Rodrigues, possivelmente
de descarga final dessas arqueações de cativos influenciado pela ideia de protagonismo do Cais
na região do Valongo (descarga). do Valongo contida na obra de Cardoso e

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Tavares et al.] DA ALFÂNDEGA AO VALONGO 345

Figura 2. Desenho representando o antigo bairro do Valongo com as localidades Gamboa e Saúde, além das principais
unidades que formavam o complexo do Valongo (Cais do Valongo, Cemitério dos Pretos Novos e Lazareto da Gamboa).
Os bairros adjacentes estão representados para melhor localização da região do Valongo. O desenho apresenta retifi-
cação do litoral uma vez que foi baseado em carta cadastral atual. Desenho de Reinaldo Bernardes Tavares.

colaboradores (1987), em seu livro de 2005 “De 2013 com as pesquisas de Lima (2013a,
Costa a Costa: escravos, marinheiros e interme- 2013b) e Soares (2017).
diários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Assim, percebe-se que há uma confusão
janeiro (1780–1860)”, inaugura a teoria do gerada pelo desconhecimento de duas práticas
desembarque direto no Cais do Valongo: distintas de desembaraço de mercadorias que
chegam a um porto, a saber: o desembarque e a
Localizado a noroeste da cidade, na enseada
ação de descarga. Em um primeiro momento
entre o outeiro da Saúde e o Morro do Livra-
ocorre o desembarque, que se configura como
mento, na Freguesia de Santa Rita, o cais do
trâmite de controle alfandegário; e em um
Valongo dava acesso ao mercado de escravos
segundo momento são realizadas as ações de
homônimo. Entre 1780 e 1831, aproximada-
descarregamento da mercadoria, ou descarga,
mente, quando da primeira proibição do trá-
que é parte da logística de importação. O descon-
fico no Brasil, aquele foi o local por onde os
hecimento desse detalhe, por um lado, minimiza
africanos legalmente importados desembar-
o importante papel da alfândega do porto do Rio
caram no Rio de Janeiro [Rodrigues
de Janeiro, uma vez que causa a falsa impressão
2005:299].
de que há no século dezenove o “desembarque
A associação das ideias de protagonismo e de direto” de levas de africanos em um cais exclu-
desembarque direto no cais torna-se o foco da sivo para o tráfico negreiro. Esse é sem dúvida
investigação histórica e arqueológica que ocorre- um aspecto muito relevante para a historiografia
ria na busca pelo Cais do Valongo a partir de no que se refere ao processo de importação

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humana desde a África. Por outro lado, desde a contavam-nos por sexo e anotavam o número
obra de Cardoso e colaboradores (1987) e, de crias que acompanhavam mães. Depois
principalmente, a partir da sua escavação em que os importadores pagassem os impostos
2011 no âmbito do projeto Porto Maravilha sobre todos os escravos acima de três anos
para revitalização da Zona Portuária, o Cais do de idade, os africanos eram levados em gru-
Valongo vem ganhando grande notoriedade pos para o local do leilão. Se houvesse com-
nacional e mundial. Além de receber o título de pradores suficientes, eram imediatamente
Patrimônio Mundial da UNESCO, passou a ser leiloados perto da alfândega e seus destinos
reconhecido, inclusive por movimentos eram determinados logo após o desembar-
socioculturais de lideranças afrodescendentes, que. Os que não fossem vendidos naquele
como o local sagrado do desembarque de ances- dia eram então conduzidos para casas a fim
trais africanos. de restaurarem a saúde e serem preparados
Atualmente, o Cais do Valongo é conhecido para venda.
no meio acadêmico (Lima et al. 2016; Soares [. . .] Embora estivessem estabelecidos no
2017) e entre o grande público como sendo o distrito comercial havia catorze anos, os
local onde desembarcaram centenas de milhares negociantes de escravos foram proibidos
de cativos africanos que seriam vendidos no em 1824 de ali vender novos africanos,
mercado do Valongo ou encaminhados para sendo obrigados a mudar seus negócios
outras praças. Será que após tantas décadas de para o Valongo. Porém, os africanos ainda
silêncio a história finalmente trouxe à luz o eco tinham de desembarcar e ser contados na
das primeiras experiências dos africanos no alfândega antes de atravessar as ruas do Rio
novo continente em sua terrível jornada rumo até o Valongo, onde eram guardados em
ao cativeiro? casas ou armazéns para esperar a venda.
A fim de discutir essa questão analisaremos no Em 1830, quando o tráfico de escravos foi
presente texto o processo de importação de cati- declarado ilegal, a parada intermediária na
vos africanos para o Rio de Janeiro, partindo do alfândega foi eliminada [Karasch
menosprezado papel da alfândega na historiogra- 2000:73-74; grifo nosso].
fia da escravidão brasileira, para então apresentar-
Foi a partir da pesquisa de Karasch, portanto,
mos a questão da descarga final das arqueações
que houve uma melhor compreensão sobre os
sob uma nova perspectiva historiográfica.
trâmites alfandegários e as distintas etapas do
processo de importação dos cativos para o Rio
Alfândega do Rio de Janeiro: O local da de Janeiro. Essa primeira aproximação ao tema,
chegada dos cativos africanos no entanto, ficou mais restrita ao momento da
chegada dos africanos, não existindo a preocupa-
A alfândega do Rio de Janeiro ganhou destaque
ção em se discutir a logística relacionada ao pro-
na história associada à diáspora africana a partir
cesso de descarga final das arqueações de
da pesquisa de Mary C. Karasch, apresentada
africanos provenientes dos navios negreiros que
na obra seminal “A vida dos escravos no Rio
aportavam no Rio de Janeiro. Com a análise
de Janeiro (1808–1850)”, publicada em 2000:
dos documentos primários, apresentados abaixo,
As primeiras impressões dependiam, no esperamos contribuir para a diminuição dessa
entanto, do período. Antes de 1824, os lacuna observada na produção historiográfica
navios negreiros entravam livremente no recente, que se tornou base para pesquisas
porto para descarregar suas “cargas” no cen- arqueológicas e mesmo para a elaboração de
tro do Rio. Depois de ancorar ao largo e pas- um dossiê de candidatura a Patrimônio da Huma-
sar por formalidades oficiais, as tripulações nidade (UNESCO). Entendemos ser necessário o
dos navios tinham permissão para transferir aprofundamento das pesquisas, a fim de se esta-
os africanos para barcaças a remo menores belecer bases mais sólidas e argumentações mais
e levá-los para a alfândega, no distrito consistentes para um entendimento do processo
comercial. As autoridades alfandegárias de chegada, venda e interiorização dos grupos

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Tavares et al.] DA ALFÂNDEGA AO VALONGO 347

de africanos que foram introduzidos no Brasil Lavre o fez.


através do processo de escravidão. João Soares Tavares – Manoel Antonio da
Para este fim, é preciso resgatar o papel da Cunha de Souto Maior. (sic)
alfândega desde o período colonial através da (Arquivo Geral da Cidade do Rio de
análise de uma fonte documental primária. Janeiro [AGCRJ], Archivo do Districto
Trata-se de uma queixa dos “Oficiais da Câmara Federal – Revista de documentos para a his-
da Cidade” ao Rei de Portugal D. José I, em vinte tória da Cidade do Rio de Janeiro, 4° ano –
de setembro de 1752, sobre a desordem devido à maio de 1897, f. 23.)
falta de observância das posturas do Senado,
uma vez que os negros que “vem de Angola e O texto apresentado é condizente com o
Costa da Mina” são atravessados em plena alfân- período histórico na medida em que a conjuntura
dega. O documento informa que o Rei de Portu- econômica aponta para uma atitude em prol dos
gal, D. José I, após tomar conhecimento da comerciantes por parte de um déspota esclare-
queixa, mandou que o Governador e Capitão cido, pois o rei mandara ouvir os empresários
Geral, D. Antônio Almeida Soares Portugal, ter- “homens de negócio”, apesar de haver uma
ceiro conde de Alvintes e Primeiro Marquês do queixa formal feita pela própria Câmara. O docu-
Lavradio, ouvisse os comerciantes “homens de mento, no entanto, deixa uma dúvida: esses
negócios” para ter mais notícias sobre essa maté- escravos eram vendidos imediatamente após o
ria, e que por fim a reportasse. desembarque? Para responder a esse questiona-
O texto original é transcrito paleografica- mento, recorremos à leitura de um trecho da res-
mente pela Revista do Arquivo do Distrito Fede- posta do próprio Senado da Câmara, enviada ao
ral, atual Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, rei em vinte e sete de julho de 1762:
ainda no final do século dezenove: Carta do Senado da Camara, que a Ordem
Sobre informar na representação da Câmara a Retro faz menção.
respeito dos atravessadores dos negros, que Senhor, é tão grande a desordem que há
vai de Angola. nesta cidade por falta da observância das
Dom José por graça de Deus Rei de Por- posturas do Senado, principalmente na que
tugal e dos Algarves, de quem e além mar faz respeito aos atravessadores dos negros,
em África senhor de Guiné e . . . Faço que vem de Angola, e Costa da Mina, que
saber a vós governador e capitão general da não vivem de outro negócio para revenderem
Capitania do Rio de Janeiro, que vende-se e aos senhores de engenho, lavradores, rocei-
que me prestarão os oficiais da Câmara ros, e povo da mesma, câmara digo da
dessa cidade em carta de vinte de setembro mesma cidade, de sorte que a saída da Alfân-
de mil setecentos e cinqüenta e dois de que dega, ou vão comprados ou seguem os
com esta ser vos remete cópia, sobre a desor- comissários, que vem de Angola, enviado
dem que há nessa cidade, por falta de aos Senhores de Engenho, Lavradores, e
observância que postura do Senado, princi- Roceiros de fora para se fornecerem deles
palmente no que respeita aos atravessadores para as suas fábricas servem precisados a
dos negros que vem de Angola e Costa da compre-los pelo que lhes pedem, e muitas
Mina. Me pareceu ordenar vos informeis vezes como dinheiro que era bastante para a
com vosso parecer ouvindo os homens de compra de cinco escravos se não utilizam
negócio, que vos parecer são mais desinte- de três, ficando defraudados de que quem
ressados ou podem ter mais notícias desta lhes trabalhe nos engenhos, e roças, e estas
matéria. El Rey Nosso Senhor o mandou perdidas por falta de cultivo, diminuindo
pelos conselhos de seu conselho ultramarino por esta causa as lavouras, e tendo prejuízo
abaixo assinados, e se passou por duas vias. notável aos dízimos Reais, e como nesta
Estevão Luiz Correa e faz em Lisboa a cidade, se junto todos os negros, que vem
vinte e três de julho de mil setecentos e ses- do sobredito reino de Angola, e Costa da
senta – Secretário Joaquim Miguel Lopes da Mina, experimentam o mesmo dono, os

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que os vem comprar de todas as minas, assim magros, com outros defeitos, que por baratos
gerais, como São Paulo, Goytacases, e se sujeitam a tratar delas, afim de os vende-
Cuiabá e pela falta da sua entrada nelas expe- rem com alguma utilidade, em remuneração
rimentam um notável prejuízo todos reais do seu trabalho, isto mesmo podem fazer os
precedidos tudo da limitada pena, a que se interessados na conta que o Senado da
estende a postura deste Senado contra os atra- Câmara na presença de sua Majestade.’ –
vessadores, como consta da cópia número Ultimamente Excelentíssimo Senhor nessa
primeiro, e quando o mesmo Senado ver se cidade sempre há abundância de escravos, e
podia remediar mal tão grande, e pernicioso por falta de satisfação no tempo estipulado,
mandou publicar há anos o edital, que consta e fiados no privilégios (aquele que o tem)
da cópia número segundo, e tendo se fixado de não ser obrigado se não pela terceira
algumas vezes no decurso dos anos passados, parte do rendimento de suas fazendas:
não for bastante para cessar o mal expressado. Além disto entendo como entram anual-
A vista do qual recorre este Senado a mente de oito até dez mil escravos é impossí-
Vossa Majestade para que com a sua clemên- vel conservando-se o comércio deles
cia evite um dano, que ameaça a perdição de sentir-se a falta ponderada, nos quintos e
todo este continente, proibindo-se não atra- dízimos Reais, ao mesmo tempo que não
vessem negros, e contra os que violarem a duvidamos se diminua a entrada de escravos
ordem de Vossa Majestade, sejam punidos com detrimento do mesmo, pondo-se em
com a severa pena de perderem não só os prática o que por esta ordem se pretende. –
ditos negros que tiverem comprado, Temos exposto o que alcançamos neste par-
aplicando-se o seu produto, uma parte para ticular sobre o qual Vossa Excelência deter-
o conselho, outra para que sejam desterrados minará o que for servido. Rio de Janeiro a
para Angola os transgressores, que os atra- vinte e sete de julho de mil setecentos e ses-
vessarem nomeando Vossa majestade Minis- senta e dois anos. Manoel Roiz Ferreira –
tro Reto, que privativamente conheça os Antonio Pinto de Miranda, João Hopmam –
ditos atravessadores, havendo devassa aberta Francisco Ferreira Guimarães – Manoel dos
para que prontamente se dê execução à dila- Santos Pinto – Manoel Barboza dos Santos
tação, e que está verificada contra qualquer – Manoel Ferreira Gomes [sic; grifo nosso].
atravessador com número de três testemun-
(AGCRJ, Archivo do Districto Federal –
has se lhe imponham Câmara que Sua Majes-
Revista de documentos para a história da
tade determine-se proceda contra essa
Cidade do Rio de Janeiro, 4° ano – maio de
qualidade de compradores, como atravessa-
1897, f. 26.)
dores a fim dos comerciantes dos escravos,
os vendem somente aos senhores de O texto esclarece que há um interstício de oito
engenho, lavradores, mineiros e moradores dias entre o momento de entrada no porto, quando
que deles carecem facultando-se lhe para a carga era despachada na alfândega, e sua libera-
isso a demora de oito dias, depois da sua ção para venda: “Facultando-lhe para isso a demora
entrada, e despacho da Alfândega, sem aten- de oito dias, depois da sua entrada e despacho na
derem (ainda que pareça pouco tempo) as Alfândega” [. . .] “proibindo-se lhe a liberdade de
conseqüências que disto mesmo se segue cada um os vender logo que chegam, ou quando
em prejuízo gravíssimo deste comércio, proi- puder pelo risco da vida que estão sujeitos”.
bindo se lhes a liberdade de cada um os ven- Esse documento, datado de 1762, faz referên-
dem logo que chegam, ou quando puder pelo cia a um período histórico anterior à transferên-
risco da vinda a que estão sujeitas, quanto cia do Mercado de Escravos, mandada proceder
mais: - ‘estas chamadas atravessadores não pelo Segundo Marquês do Lavradio – D. Luiz
são os que compram todos os escravos que de Almeida Portugal Soares D’Eça Alarcão
estão nessa cidade, nem tão pouco, os conso- Melo Silva Mascarenhas (décimo terceiro Vice-
mem em si antes como pobres só compram rei entre 1769 e 1779), – quando houve um
aqueles os mais não querem, por doentes, forte arrocho econômico da metrópole sobre a

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Tavares et al.] DA ALFÂNDEGA AO VALONGO 349

colônia. Daí a preocupação do rei com os seus As conjunturas econômicas do Primeiro


reais direitos advindos dos impostos cobrados Império não eram tão diferentes de quando da
na alfândega. chegada da Família Real, cerca de vinte anos
Para continuarmos a linha de raciocínio, é antes. Havia uma grave crise financeira em fun-
necessário procurar outra fonte ou relato que evi- ção do esvaziamento dos cofres públicos devido
dencie a permanência desse processo de entrada ao retorno de D. João VI a Portugal e aovultoso
e despacho via alfândega, até o fim do tráfico endividamento assumido pelo Brasil junto à
legal de escravos em 1831. Para essa tarefa, reco- Inglaterra, em troca do reconhecimento da inde-
rremos ao relato do viajante Johan Moritz pendência por parte de Portugal. A importante
Rugendas, que esteve no Brasil durante o Pri- arrecadação com os direitos alfandegários, porta-
meiro Império, entre 1822 e 1825, e conheceu nto, não permitiria que se renunciasse ao rígido
tanto o Mercado de Escravos do Valongo quanto controle exercido sobre cada arqueação de cati-
a alfândega do Rio de Janeiro. vos africanos que entrava no porto do Rio de
Janeiro.
Logo que o negociante obtém licença
Os documentos primários analisados, tanto
para desembarcar seus escravos, são eles
textuais quanto pictóricos, portanto, atestam a
colocados perto da Alfândega, donde são
primeira experiência dos cativos em terra firme
registrados depois do pagamento dos direitos
e resgatam a importância da alfândega do Rio
de entrada.
de Janeiro no processo de diáspora africana.
Da alfândega são os negros conduzidos
Era da alfândega do Rio de Janeiro que as
para os mercados, verdadeiras cocheiras: aí
arqueações de cativos africanos partiam para
ficam até encontrar comprador. A maioria
diversos destinos no Brasil. Antes da obrigatorie-
dessas cocheiras se acha situada no bairro
dade de quarentena nas ilhas das Enxadas e Bom
do Valongo, perto da praia [Rugendas
Jesus, três modalidades básicas de comércio
1979:256; grifo nosso].
podiam ser praticadas já a partir do desembarque,
Rugendas não somente descreveu de forma visando a interiorização da carga: o leilão direto,
textual como também desenhou o desembarque em atacado; a remessa de carga consignada, com
de cativos africanos nas proximidades da alfân- o efetivo reembarque para outros pontos do lito-
dega. Na composição sobre a obra de Rugendas ral; e o negócio no varejo, destinado à venda
“Débarquement” (Diener e Costa 1979), é possí- direta para o pequeno consumidor.
vel notar ao fundo o Mosteiro de São Bento e o
Arsenal de Marinha da Corte, corroborando a Praias da região da Saúde: O local de
descrição textual. Percebe-se a intenção de ilus- descarga das arqueações de cativos
trar não somente o desembarque, mas também africanos
o processo de transporte em pequenas embarca-
ções até o atracadouro, a escrituração e o registro. Conforme relatado no trecho da resposta do
Naturalmente, não se trata de uma fotografia Senado da Câmara enviada ao rei em vinte e
moderna que capta de forma instantânea a ima- sete de julho de 1762, acima transcrito, passados
gem, mas sim uma gravura que revela um dis- os oito dias de interdição obrigatória da carga
curso carregado de subjetividade. Ainda assim, viva, os comerciantes tinham autorização para
o desenho é muito descritivo e tem a função de vender os africanos no Mercado do Valongo.
apresentar aos estrangeiros, através do seu relato Assim, dá-se início à segunda etapa do processo
pictórico, o cotidiano de um país considerado de importação dos cativos. Após sua chegada no
pitoresco. porto do Rio de Janeiro e desembaraços alfande-
Menos conhecido do que a gravura colorida, o gários, era o momento de serem reembarcados
risco original de Rugendas (Diener e Costa 1979) para então seguirem em um primeiro momento
é muito mais intenso e ressalta o desembarque de para as ilhas das Enxadas e posteriormente para
cativos africanos no período entre 1822 e 1825 a Ilha de Bom Jesus (Figura 3), onde cumpriam
na alfândega do Rio de Janeiro, junto com outras quarentena. Mas onde era realizada a descarga
cargas. das arqueações?

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350 LATIN AMERICAN ANTIQUITY [Vol. 31, No. 2, 2020

Tal como discutido acima, essa questão foi A primeira fonte que vamos analisar é uma
recentemente trazida à tona após a escavação carta do Intendente Geral da Polícia da Corte, o
do Cais do Valongo em 2011 (Lima 2013a, desembargador Paulo Fernandes Viana, datada
2013b; Lima et al. 2016), o qual foi considerado de vinte e sete de maio de 1808. Nesse docu-
o local de “desembarque” no Rio de Janeiro de mento fica determinado que fosse feita a separa-
milhares de africanos escravizados. Na busca ção dos escravos doentes de bexigas ou
por documentos primários que pudessem subsi- escorbuto, dos sãos. Os primeiros deveriam ser
diar uma discussão mais robusta sobre essa ques- levados para a Ilha das Enxadas, enquanto “os
tão, nos deparamos, na verdade, com a ausência Saons desembarquem para o lugar que está
de documentos que indicassem de forma clara a por detras do trapiche da saúde” (sic) (Figura
enseada do Valonguinho, onde estava localizado 3). E, ainda, “Aqueles que estiverem no primeiro
o referido cais, como destino final das arquea- caso deverão vir ancorar mesmo de fronte do
ções de cativos. Trapiche da Saúde, para dali fazerem o
Ao contrário, identificamos textos primários desembarque”.
inéditos com indicações precisas da descarga Notamos que à época Paulo Fernandes Viana
das arqueações em outra região do antigo bairro não fez distinção nominal entre as operações de
do Valongo. É possível que a interpretação de desembarque e descarga, denominando o pro-
Lima e colaboradores (2016) e Soares (2017) cesso de descarga de sãos e doentes como
tenha se baseado em uma concepção enviesada “desembarque”. Esse detalhe não é contraditó-
do termo Valongo, conforme discutiremos abaixo. rio, mas demonstra que a palavra desembarque
Assim, à luz de documentos inéditos, discuti- foi utilizada em sentido prático, direto, de sair
remos em seguida uma nova perspectiva histó- de qualquer embarcação. Da mesma forma, os
rica para a segunda etapa do processo de demais documentos da época fazem uso apenas
importação dos africanos para o Rio de Janeiro, do termo “desembarque”, sendo ignorada a ter-
a qual, assim como a primeira, era de cunho obri- minologia técnica para os processos em questão.
gatório. As etapas referidas são as de desembar- O texto dá ainda outras orientações sobre as car-
que aos “pés da alfândega”, mediante rígido gas de cativos infectados: “dará parte sem lhe
controle sanitário e recolhimento de direitos permitir o desembarque, nem que possa navegar
aduaneiros; e de descarga, quando os cativos para a cidade”.
eram finalmente entregues ao destinatário comer- Registro da Carta do Intendente Geral da
cial assim que eram lavados e vestidos no Laza- Polícia desta Corte dirigida ao Doutor Juiz
reto (Figura 2) ou após a quarentena no mesmo de Fora Presidente da Câmara da mesma
local. em 27 de maio de 1808.
A breve permanência dos cativos na alfân- Não permitindo já o estado em que se
dega, como referido anteriormente, tinha como acha esta Corte que os escravos vindos da
objetivo resguardar os interesses do Real Erário, Costa d’África desembarquem para o
já que era necessário manter o rígido controle das Valongo, e ali se vendam fará V.M. [Vossa
entradas evitando o contrabando negreiro. Os Mercê] desde já intimar o Vereador que
africanos apenas pisavam em terra firme e logo serve de Provedor da Saúde, que além de
eram reembarcados e encaminhados para outro fazer esta visita, com a maior possível cir-
ponto do litoral. Na etapa posterior, eles eram cunspecção não dispensando jamais de ir a
descarregados e ocorria a sua interiorização atra- ela todas as pessoas que para isso estão depu-
vés da distribuição e venda direta em mercados e tadas; logo que achar doentes de bexigas, ou
através do tráfico retalhista. Tratando-se do escorbutados, ordenará que estes vão para a
período joanino, representativo de um contexto Ilha das Enxadas, e que os sãos desembar-
histórico diferenciado no qual a monarquia portu- quem para o lugar que está por detrás do Tra-
guesa estava em exílio no Brasil, totalmente desca- piche da Saúde, e ali mesmo serão expostos a
pitalizada e dependente da proteção inglesa, o vendagem, sem que possam vir para os
ordenamento das entradas das arqueações de cati- Armazéns do Valongo, e que chame a sua
vos era regulado pela Intendência Geral de Polícia. presença desde já todas as pessoas que

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Tavares et al.] DA ALFÂNDEGA AO VALONGO 351

Figura 3. Desenho representando a rota de entrada de cativos africanos para a Alfândega, rotas marítimas para as ilhas
de quarentena com posterior descarga final na região do Morro da Saúde, e rota terrestre da Alfândega até o Valongo,
utilizada até a transferência do mercado de escravos para aquela região. Desenho de Reinaldo Bernardes Tavares.

costumam traficar neste negócio, para que deverão vir ancorar mesmo defronte do Tra-
certos dessa providência procurem com piche da Saúde, para da li fazerem o desem-
tempo dispor ali mais acomodações para barque. Essa providência deve ser registrada
este fim. No caso porém de vir alguma conta- na Câmara, para o escrivão dela a fazer ler a
giada dará parte sem lhe permitir o desem- qualquer vereador, que para o futuro houver
barque, nem que possa navegar pela cidade. de servir de Provedor da Saúde. Deus guarde
Aqueles que estiverem no primeiro caso a Vossa Mercê. Rio de Janeiro, 27 de maio de

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352 LATIN AMERICAN ANTIQUITY [Vol. 31, No. 2, 2020

1808. Paulo Fernandes Viana. apresenta reconhecida importância para a ques-


Senhor Doutor Juiz de Fora Agostinho tão da importação de cativos africanos para o
Pettra Bitencourt. Cumpra-se e registre Rio de Janeiro e sua distribuição para o Mercado
esse, e o escrivão da Câmara remeta logo do Valongo. Nesse alvará é determinada a subs-
cópia desta ordem ao Vereador mais velho. tituição do ponto de ancoragem das embarcações
Rio de Janeiro 27 de maio de 1808 – Pettra –. carregadas com arqueações de cativos da Ilha das
Nada mais contém em a dita carta a qual Enxadas pela Ilha de Bom Jesus, enquanto não
fiz registrar bem, e fielmente, em fé de que existia o Lazareto da Gamboa (Figura 3).
conferi, subscrevi, e assinei nesta Corte do
IV. As sobreditas embarcações nacionais
Rio de Janeiro aos 27 de maio de 1808
e estrangeiras, que forem do comércio, paga-
[sic; grifo nosso].
rão por entrada para o Lazareto, a saber: os
(AGCRJ, Archivo do Districto Federal –
navios, corvetas e bergantins 2$000; as
Revista de documentos para a história da
sumacas 1$200; e os barcos da Costa
Cidade do Rio de Janeiro, 4° ano – maio de
400réis; o que será arrecadado na alfândega
1897, f. 236.)
na ocasião em que se cobram os mais direitos
Permanecemos, portanto, alinhados à tese de do porto, remetendo-se todos os meses para o
Mary Karasch (2000), segundo a qual acontecia cofre da Saúde; e que o produto desta impo-
um desembarque obrigatório na alfândega para sição se pagarão os ordenados, e farão as
os desembaraços burocráticos. Mediante o docu- mais despesas deste estabelecimento.
mento acima apresentado, no entanto, fica claro Quando porém estiverem em quarentena pes-
que após 1808, mesmo com a obrigatoriedade soas e mercadorias, deverão pagar as despe-
do desembarque na alfândega, fica proibida a sas que com elas se fizerem, como é prática
entrada dos cativos recém-chegados através da nos mais Lazaretos; o que se regulará e taxará
região central da cidade, a saber, Rua Direita e no Regimento particular, que se há de fazer
adjacências, assim como o tráfego a pé para para o sobredito lazareto.
sua condução até o Mercado do Valongo. O V. Os navios que trouxerem carregação
documento indica claramente que após essa de escravos esperarão no ancoradouro do
data as arqueações eram transportadas para a Poço, ou no da Boa Viagem, até que se
região do Morro da Saúde, ou melhor, “por faça a visita da Saúde pelo Guarda-Mór e
detrás do Morro da Saúde” (Figura 2), no atual demais oficiais; e feita ela irão ancorar, e
bairro da Gamboa. As embarcações que contin- ter quarentena no ancoradouro da ilha de
ham doentes eram obrigadas a descarregar as Jesus.
arqueações diretamente na Ilha das Enxadas, VI. No ato da visita se determinarão os
não sendo permitido nem mesmo o desembarque dias que cada um destes navios deve ter de
primário na alfândega. quarentena, conforme as moléstias que trou-
A chegada da Família Real portuguesa ao Rio xer, mortandade que tenha havido, e mais
de Janeiro desfaz as antigas práticas comerciais circunstâncias que ocorrerem; porém nunca
coloniais. O processo de “abertura dos portos terão de quarentena menos de oito dias, em
às nações amigas” fez com que a prática portuá- que os negros estejam desembarcados, e em
ria fosse revisada, organizando-se as operações terra na referida ilha p para ali serem tratados,
de desembarque e descarga de cativos africanos fazendo-os lavar, vestir de roupas novas, e
sob a tutela da Intendência Geral de Polícia da sustentar de alimentos frescos; depois do
Corte, principal órgão da administração do que se lhes dará o bilhete de saúde e poderão
governo absolutista, responsável pela imposição entrar na Cidade para se exporem à venda no
de posturas e reordenação urbana da Corte e sítio estabelecido do Valongo.
ligada diretamente ao trono. VII. O referido tratamento deverá ser feito
O documento abaixo transcrito, o alvará de debaixo da inspeção do Guarda da Saúde que
vinte e dois de janeiro de 1810 no qual se “Dá ali deve assistir, ou do Guarda–Mor, que
Regimento ao Provedor-Mor da Saúde”, também deve cuidar também desse estabelecimento,

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Tavares et al.] DA ALFÂNDEGA AO VALONGO 353

qual constrangerá os donos a praticar estas de 1810 – “Marca os emolumentos que devem
providências; e no caso em que tenham omis- perceber os empregados das Provedorias Móres
são nas primeiras 24 horas, o mandará fazer à de Saúde deste Estado”. No documento, precisa-
custa deles e para pagamento das despesas mente no artigo XI está assim descrito:
requererá as minhas justiças mandatos exe-
cutivos, para penhorar e fazer arrematar XI – Constando das averiguações a que pro-
bens que bastem para o mencionado paga- cedeu o Provedor Mór da Saúde, que a Ilha
mento, e para as custas respectivas [sic; de Jesus era mui distante desta Cidade, e
grifo nosso]. com passagem de mar, e por estas razões
(Câmara dos Deputados [CD], Alvará que menos própria para a quarentena que
dá regimento ao Provedor Mor da Saúde, 22 devem fazer os escravos novos; e attendendo,
jan 1810) que não é esta rigorosamente necessária para
os que chegam sem suspeita de epidemias:
No mesmo alvará o Príncipe Regente D. João determino, em declaração dos §§V. e VI.
VI determina que a utilidade dos lazaretos seja a do Regimento que o logar da quarentena
de proporcionar o local para o desembarque de seja adiante do sitio da Saúde, designando
cativos africanos, agasalho dos mesmos e aco- pelo Provedor Mor; e que desembarcados
modações em terra antes de entrarem nas povoa- nelle os escravos que chegarem sãos, sendo
ções, conforme abaixo: lavados, envoltos em roupas novas, se entre-
guem logo a seus donos para os poderem
XXVII. Em cada uma das referidas terras os vender nos seus armazéns, ficando de qua-
Governadores, ouvindo ao Ouvidor da rentena os doentes ou empestados pelo
Comarca e ao Guarda-Mor respectivo, desti- tempo que julgar necessário [sic; grifo
narão o sítio e lugar proporcionado para ser- nosso].
vir de lazareto para os negros, e mandarão (CD, Alvará que marca os emolumentos que
fazer as acomodações precisas para o seu devem perceber os empregados dos Provedo-
desembarque e agasalho em terra, onde res Móres de Saúde desse Estado. 28 jul
deverá praticar o que se ordena neste Regi- 1810)
mento, antes de entrarem nas povoações,
pagando-se as despesas pelo cofre das comu- O terceiro texto, anteriormente publicado por
nicações que ficam declaradas, cujas somas Honorato (2011), é um fragmento da representa-
se poderão adiantar pela minha Real ção dos proprietários, consignatários e armado-
Fazenda. E os Guardas-mores assistirão no res de resgate de escravos apresentada a sua
sítio conveniente que pelos sobreditos lhes Alteza Real D. João, de 1810, reclamando do
for determinado, assim como os mais Ofi- alto valor pago pelo aluguel dos galpões destina-
ciais da Saúde, para com promptidão cumpri- dos ao “desembarque” e venda de escravos.
rem com as suas obrigações; e executarão o
que neste Regimento se lhes determina, [. . .] os proprietários são obrigados pela
dando as partes, e remetendo ex-ofício os visita da saúde a desembarcarem as armações
processos ao Magistrado que servir de inteiras em um armazém da Gamboa a título
Provedor-Mor [sic; grifo nosso]. de Lazareto para se pagarem aos proprietários
(CD., Alvará que dá regimento ao Provedor do dito armazém, quatrocentos reis por cada
Mor da Saúde, 22 jan 1810) um por entrarem nele, serem lavados, e vesti-
dos de novo para saírem para os outros do
Outro documento, ainda mais relevante do Valongo, lugar destinado a venda deles [. . .]
que o anterior, que vem também direto do Prín- [grifo nosso].
cipe Regente D. João, vai apontar a região da (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,
Gamboa, “adiante do sítio da Saúde”, ou seja, manuscrito II-34,26,019, documento 65,
por detrás do Morro da Saúde, como o local de Representação dos Proprietários, Consignatá-
quarentena e “descarga” das arqueações para a rios e Armadores de Resgate de Escravos a
região do Valongo. É o alvará de 28 de julho Sua Alteza Real, [?] jul 1810)

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354 LATIN AMERICAN ANTIQUITY [Vol. 31, No. 2, 2020

Ao relatarem as suas queixas, os próprios referida com distintas denominações, é apontada


comerciantes de escravos afirmam que são obri- nas fontes primárias como o ponto de descarga
gados a ‘desembarcar’ “as armações inteiras na de todos os africanos que foram vendidos como
Gamboa a título de Lazareto” (Figura 2), ou escravos no Mercado do Valongo ou que perece-
seja, a descarregar os cativos de cada navio na ram e foram enterrados no Cemitério dos Pretos
área localizada detrás do trapiche da Saúde. Novos (Figura 2), também conhecido como
Esse documento confirma que a determinação cemitério do Valongo, localizado em um dos
do intendente de polícia de 1808 e o alvará flancos do morro da Saúde.
com força de lei do próprio D. João de 1810 esta- No nosso entendimento, a atribuição da des-
vam sendo cumpridos. É importante salientar que carga de milhares de africanos em um cais loca-
o documento original foi assinado por trinta e nove lizado na enseada do Valongo passa por questões
negociantes e traficantes de escravos, e que todos de toponímia, a saber, uma compreensão equivo-
afirmam que são obrigados a fazer a descarga cada do topônimo Valongo. O Morro da Saúde
das armações de escravos novos na Gamboa. estava localizado no interior de uma área geogra-
Até o momento, portanto, temos três docu- ficamente circunscrita, distante do centro da
mentos oficiais: o primeiro redigido pelo Inten- cidade, conhecida como Valongo. Laudos de
dente Geral de Polícia e dois alvarás com força vistoria realizados no Cemitério dos Pretos
de lei do próprio Príncipe regente D. João. Novos, localizado junto ao morro, também o
Temos também uma declaração de 39 (trinta e localizavam no bairro do Valongo (Figura 4).
nove) comerciantes e mercadores de escravos, Aparentemente, toda essa região onde foi
afirmando que o local de “desembarque” de implantado o complexo escravista era generica-
todos os africanos, doentes ou sãos, era reali- mente conhecida como Valongo. Assim, seria
zado nas fraudas do Morro da Saúde (região natural no século dezenove dar essa denomina-
da Gamboa), mesmo antes da construção do ção à área de descarga das arqueações de cativos
lazareto. sem com isso referir-se a qualquer cais cons-
O último documento que levantamos é o já truído ao final da Rua do Valongo, mas sim ao
conhecido relato de um médico francês do ano litoral da Saúde.
de 1829 (Sigaus 1844), período final do tráfico O nome Valongo é na verdade uma corruptela
legal de escravos, citado na obra de Rodrigues da junção de duas palavras: vale + longo. É, por-
(2005). Nesse relato é observado o “desembar- tanto, o nome de um acidente geográfico, ou seja,
que” de africanos doentes de escorbuto na praia é o longo vale que se forma entre o atual Morro
do Morro da Saúde. da Providência (antigo Morro do Livramento) e
o Morro da Saúde (Figura Suplementar 1). Se
J’ai vu débarquer, em 1829, un chargement
olharmos a evolução da cidade através dos
de négres scorbutiques, à La plage de
mapas e a documentação histórica, observamos
Morro-da-Saúde; à mesure qu’on s’ efforçait
que o acidente geográfico se torna um lugarejo,
de lês mainenir debbut, une lypothimie
vai crescendo, até por fim se tornar um bairro.
subite survenait, et dans peu de minutes les
Com a abertura da via marítima sobre a praia
négres expiraient sans covulsions [Sigaud
do Valongo (Figura 5), conhecida como Rua da
1844].
Praia do Valongo, mais tarde como Rua da
(Já vi um desembarque, em 1829, um
Saúde e por último como Rua Sacadura Cabral,
carregamento de negros escorbuticos na
toda a região entre o Morro do Valongo (Morro
praia do Morro da Saúde; à medida que se
do Livramento) e o Morro da Saúde vai ser con-
esforçavam para ficar de pé, uma lipotímia
hecida como Valongo.
subitamente os acometia, e em poucos minu-
Outro acidente geográfico, o Valonguinho
tos os negros espiravam sem convulsões; tra-
(Figura Suplementar 2), praticamente deixa de
dução nossa.)
existir quando as duas pedras que formavam a
Morro da Saúde, praia do Morro da Saúde, sua enseada são destruídas: a Pedra da Prainha
por detrás do Trapiche da Saúde, adiante do (posteriormente “pedra do sal”) e a pedreira da
sítio da Saúde. Essa localidade da Gamboa, praia do Valongo, ficando como testemunho

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Tavares et al.] DA ALFÂNDEGA AO VALONGO 355

Figura 4. Desenho mostrando a região do Morro da Saúde no antigo bairro do Valongo, baseada em cartografia de
época (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Planta da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro - 1808, Imprensa
Régia, cartografia 233504, 1812).

somente o pequeno vale entre os morros da Con- O Valongo tem que ser entendido através da
ceição e do Livramento, conhecido naquele tre- visão de quem vem do mar [. . .]. Não pode-
cho, à época, como morro do Valongo. mos esquecer que antes mesmo de ter voca-
ção portuária, era local de pescadores e de
pequenos construtores navais, que batizaram
O Valongo a partir da experiência náutica
o litoral através de uma visão típica do
Segundo o arqueólogo Nelson Mendonça Junior homem do mar, que é muito diferente da
(2017): visão do terráqueo.

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356 LATIN AMERICAN ANTIQUITY [Vol. 31, No. 2, 2020

A afirmativa de Mendonça Jr. passou a fazer enseada do Valongo e a enseada do


sentido em nossa pesquisa no momento em que Valonguinho.
elaboramos a maquete do relevo de toda a região Acreditamos que a análise crítica das fontes
do Valongo. De fato, o acidente geográfico só primarias acima apresentadas, em conexão com
pôde ser visto em toda a sua plenitude quando os preceitos teórico-metodológicos da arqueolo-
simulamos a visão de quem avistava o litoral gia da paisagem e com o auxílio da técnica de
através do mar, tal como os tripulantes que trans- modelagem 3D, tenham configurado elementos
portavam as arqueações de cativos. Da terra, o suficientes e robustos para entendermos que a
ângulo de visão que se forma a partir da linha dinâmica de abastecimento do mercado de escra-
costeira não permite visualizar plenamente a vos do Valongo não passava pelo primeiro cais
imponência do vale na paisagem (Figuras Suple- do Valongo, mandado construir pelo Intendente
mentares 1, 2 e 3). de Polícia em 1810.
Com o avanço das análises de documentos e
plantas cadastrais, fica evidente que o Valongo Morro da Saúde: Região de apoio para a
não denominava somente o cais do intendente quarentena e descarga de arqueações de
de polícia, ou o mercado de escravos, mas sim escravos
toda uma localidade circunscrita geografica-
mente que surge ao longo de uma enseada e de De acordo com a cartografia de época, o ponto
uma praia, marcadas pela visão marítima de um central do mercado de escravos (Figura 5) estava
grande vale existente entre os Morros do Livra- situado no entroncamento entre a antiga Rua do
mento e da Saúde (Figura Suplementar 3). Valonguinho (atual Rua Camerino) e a Rua da
Para uma visualização da região do Valongo e Praia do Valongo (atual Rua Sacadura Cabral).
Valonguinho no período anterior às obras de Continuação natural do caminho que ligava o
abertura da via marítima (Rua da Praia do centro da cidade até a região do Valongo, era dia-
Valongo), e antes do início do processo de aterra- riamente frequentada por senhores e senhoras em
mento, recorremos à Planta de 1808 levantada busca de novos cativos. Além do comércio
por ordem do Príncipe Regente D. João (futuro negreiro, uma série de outros negócios relaciona-
Rei D. João VI) no momento da chegada da dos ao cotidiano em terra firme e no mar tornava
Família Real portuguesa ao Rio de Janeiro. a área bastante movimentada.
Nela, a Rua do Valongo, atual Rua Camerino, Mais afastada dessa área central do mercado, a
foi chamada de Rua do Valonguinho, ocorrendo região do morro da Saúde (Figura 4) acabou por
uma confusão natural entre a nomenclatura de atuar como um ponto de apoio na logística que
ambas. Valonguinho foi o nome dado à parte envolvia o processo de importação dos africanos
final da Rua do Valongo, localizada na enseada cativos. Como discutido anteriormente, na
entre a Pedra da Prainha e a Pedreira do Valongo. enseada da Gamboa e no entorno do Morro da
O nome Rua do Valongo foi a denominação dada Saúde (Figura 2) eram realizadas as descargas
ao acesso à região do Valongo, da mesma forma de escravos sãos e doentes; na enseada da Gam-
que a Rua da Saúde, a Rua do Livramento, e a boa também foi construído o Lazareto para lavar
Rua da Gamboa também davam acesso a esses e vestir os cativos, assim como para tratar e man-
logradouros homônimos. A abrangência do ter em quarentena os doentes; o sopé do morro da
logradouro era, portanto, normalmente mais Saúde também foi o destino final daqueles que
amplo do que a rua que o citava. A Rua da morriam antes de serem vendidos no mercado.
Saúde (antiga Rua da Praia do Valongo) não A idéia, naturalmente, era exibir no mercado
começava no Morro da Saúde, mas na Pedra da cativos que possuíssem atrativos para compra.
Prainha, se estendendo até o Trapiche da Assim, era importante que apresentassem boa
Saúde, esse sim, no sopé do Morro da Saúde. saúde e que estivessem minimamente vestidos
A Figura Suplementar 2, baseada na Planta de e limpos. Em alguns casos passava-se óleo em
1808, resume a geografia e a localização dos seus corpos para disfarçar imperfeições ou lace-
principais pontos aqui discutidos, a saber, o rações na pele, ou ainda para destacar caracterís-
Cais do Valongo, o mercado do Valongo, a ticas físicas.

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Tavares et al.] DA ALFÂNDEGA AO VALONGO 357

Figura 5. Desenho representando as praias e as enseadas do Valonguinho e Valongo, o Cais do Valongo e o mercado do
Valongo, localizados no antigo bairro do Valongo, baseado em cartografia de época (Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, iconografia 393054. 1820 ca.). Desenho de Reinaldo Bernardes Tavares.

Não seria, portanto, uma boa estratégia fugas e rebeliões; todos esses contratempos
comercial “desembarcar” africanos recém chega- seriam, assim, minimizados.
dos da África no Cais do Valongo, ponto central
do mercado. Normalmente encontravam-se em Considerações finais
condições deploráveis, doentes (muitas vezes
com doenças infecto-contagiosas), alguns extre- A análise e a interpretação de fontes escritas pri-
mamente debilitados, imundos, e semi-nus ou márias, em sua maioria inéditas, nos permitiram
mesmo nus. A circulação dessa carga em meio discutir a entrada, o desembarque e a descarga de
a centenas de pessoas, além de representar um navios negreiros no Rio de Janeiro a partir de
grave problema de saúde pública, naturalmente uma nova perspectiva histórica. Como resultado,
não favoreceria as vendas. observamos que a teoria que reconhece o prota-
Considerando-se que tanto o Lazareto quanto gonismo do Cais do Valongo nesse processo,
o cemitério (Figura 2), lugares obrigatórios para até então apontado como local de “desembar-
a recepção dos escravos novos, estavam localiza- que” obrigatório das arqueações negreiras, não
dos nas faldas do morro da Saúde, o desembar- encontra respaldo nos documentos e demais fon-
que nesse litoral resultaria em uma logística tes históricas acima apresentadas. A partir da
muito mais eficiente. A necessidade de escolta nossa análise propomos o desdobramento do
de centenas de cativos até o Lazareto, do lado processo de entrada dos cativos no Rio de Janeiro
oposto do morro da Saúde; o carregamento de em duas etapas, bem como o deslocamento da
doentes, moribundos e mortos; os riscos de operação de descarga final para outra área no

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358 LATIN AMERICAN ANTIQUITY [Vol. 31, No. 2, 2020

bairro do Valongo. Em um primeiro momento, Figura Suplementar 3. Voo de Pássaro sobre o relevo do
os desembarques ocorreriam no pátio da alfân- Valongo – detalhe da fotografia de maquete do relevo da
região do Valongo. Confecção de R. B. Tavares.
dega do Rio de Janeiro, atual casa França-Brasil;
e em um segundo momento, a partir de 1808, a
descargas ocorreriam por detrás do morro da Referências citadas
Saúde (atual bairro da Gamboa). Cardoso, Elizabeth D., Lilian F. Vaz, Maria Paula Albernaz,
A identificação dessa área de descarga das Mario Aizen e Roberto M. Pechman
arqueações, na extremidade mais distante e remota 1987 História dos bairros: Saúde, Gamboa e Santo Cristo.
João Fortes Engenharia, Editora Index, Rio de Janeiro.
do bairro do Valongo, amplia em muito a área con- Soares, Luiz Carlos
hecida para o complexo escravista do Valongo, um 2007 O “Povo de Cam” na capital do Brasil: A escravi-
dos mais importantes do Brasil e talvez das Amé- dão urbana no Rio de Janeiro do Século XIX. Editora
7Letras, Rio de Janeiro.
ricas à epoca, servindo como relevante informação Diener, Pablo e Maria de Fátima Costa (editor)
para novas e futuras pesquisas. O conjunto arqui- 1979 Rugendas e o Brasil: Obra completa (1822–1825).
tetônico Cais do Valongo/Cais da Imperatriz, por Editora Capivara Ltda, Cuiabá, Brasil.
Eltis, David e David Richardson
sua vez, continua imbuído de seu valor simbólico, 2008 Voyages: The Trans-Atlantic Slave Trade Database.
uma vez que marca o ponto central do comércio Documento electrónico, http://www.slavevoyages.org,
negreiro no antigo complexo escravista. As pedras acessado em 20 de dezembro de 2019.
Florentino, Manolo
do cais, no entanto, foram tão somente protagonis- 1995 Em Costas Negras: Uma história do tráfico Atlân-
tas secundários dessa cruel história. Os principais tico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro
atores sociais foram as milhares de pessoas trazi- (séculos XVIII e XIX). Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
Fragoso, João Luis R.
das à força de sua terra natal para no Brasil servi- 1992 Homens de grossa aventura: Acumulação e hierar-
rem de escravos. quia na Praça Mercantil do Rio de Janeiro, 1790–1830.
Finalmente, enfatizamos que a pesquisa aqui Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
Góes, José Roberto
apresentada não pretendeu desqualificar os tra- 1993 O cativeiro imperfeito: Um estudo sobre a escravi-
balhos anteriormente realizados sobre o Cais dão no Rio de Janeiro da primeira metade do século
do Valongo, os quais certamente trouxeram inú- XIX. Lineart, Vitória, Brasil.
Honorato, Cláudio de Paula
meras contribuições para a arqueologia da diás- 2011 O mercado do Valongo e o comércio de escravos
pora africana e para a arqueologia urbana. africanos – RJ (1758–1831). Em Escravidão africana
Estamos todos caminhando no mesmo sentido, no Recôncavo da Guanabara, editado por Mariza de
Carvalho Soares e Nielson Rosa Bezerra, pp. 138–
afinal, reconhecer, respeitar e identificar locais 165. Editora da UFF, Rio de Janeiro.
entendidos como sagrados por afrodescendentes Karasch, Mary
e pela população em geral, por onde passaram os 2000 A vida dos dos escravos no Rio de Janeiro, 1808–
1850. Companhia das Letras, São Paulo, Brasil.
ancestrais de milhares de brasileiros, é sem Lima, Tania A.
dúvida um resgate histórico obrigatório e um 2013a Cais do Valongo e Cais da Imperatriz – séc
meio eficaz de preservação da memória nacional. XIX. Relatório de pesquisa. Museu Nacional, Rio de
Janeiro.
Agradecimentos. Agradecemos as sugestões dos revisores 2013b Arqueologia como ação sociopolítica: P caso do
Valongo, Rio de Janeiro, Século XIX. Vestígios –
anônimos.
Revista Latino-americana de Arqueologia histórica 7
(1):179–207.
Declaração de disponibilidade dos dados. As fontes primá- Lima, Tania A., Marcos André T. de Souza e Glacia M. Sene
rias citadas no texto foram pesquisadas no Arquivo Geral da 2016 Em busca do Cais do Valongo: Rio de Janeiro, séc
Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ), na Câmara dos Deputados XIX. Anais do Museu Paulista 24(1):299–391.
(CD) e na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Luna, Francisco V. e Herbert S. Klein
2010 Escravismo no Brasil. EDUSP, São Paulo, Brasil.
Material suplementar. Para acessar o material suplementar Mendonça, Nelson, Jr.
que acompanha esse artigo, visite: https://doi.org/10.1017/ 2017 O Valongo visto do Mar. Palestra proferida em
laq.2020.23. evento de divulgação científica realizado no Instituto
Figura Suplementar 1. Valongo observado do mar – de Pesquisa e Memória dos Pretos Novos, Gamboa /
RJ em 21 de junho de 2017.
Detalhe da fotografia de maquete do relevo da região do
Pereira, Júlio César da Silva
Valongo. Confecção de R. B. Tavares. 2007 À Flor da Terra: O cemitério dos pretos novos no
Figura Suplementar 2. Valonguinho observado do mar – Rio de Janeiro. Garamond, Rio de Janeiro.
Detalhe da fotografia de maquete do relevo da região do Rodrigues, Jaime
Valongo. Confecção de R. B. Tavares. 2000 O infame comércio: Propostas e experiências no

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Tavares et al.] DA ALFÂNDEGA AO VALONGO 359

final do tráfico de africanos para o Brasil (1800–1850). Soares, C. Eugênio Líbano


Editora da Unicamp, São Paulo, Brasil. 2017 O Cais do Valongo: Tráfico negreiro e transforma-
2005 De costa a costa: Escravos, marinheiros e interme- ção urbana em uma cidade escravista. Em Entre peda-
diários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro ções e camadas: Histórias e arqueologias do Rio de
(1780–1860). Companhia das Letras, São Paulo, Brasil. Janeiro (séculos XVIII e XXI), editado por Chevitarese
Rugendas, Johann Moritz Andre e Gomes Flavio. Editora 7 letras, Rio de Janeiro.
1979 Viagem Pitoresca Através do Brasil. 8ª edição.
EDUSP, São Paulo.
Sigaud, Joseph-François-Xavier
1844 Du climat et des maladies du Brésil ou statistique
mèdicale de cet empire. Chez Fortin, Masson et Cia Submitted July 22, 2019; Revised January 27, 2020;
Libraires, Paris. Accepted March 19, 2020

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