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A vingança dos Romanov

Rubi A. Elhalyn
A vingança dos Romanov |2

Sumário
Introdução ................................................................................................................................................................................... 3
Prólogo ........................................................................................................................................................................................ 4
Festa da vitória ............................................................................................................................................................................ 5
Demônios disfarçados ................................................................................................................................................................. 7
Quem merece morrer?.............................................................................................................................................................. 10
Valsa dos gritos ......................................................................................................................................................................... 14
Um olhar gelado ........................................................................................................................................................................ 19
Em sua mente ............................................................................................................................................................................ 23
Questões ................................................................................................................................................................................... 28
Onde está sua lealdade? ........................................................................................................................................................... 33
Pressentimento ácido................................................................................................................................................................ 38
Castigo de vida .......................................................................................................................................................................... 43
Caças e caçadores – Parte I....................................................................................................................................................... 49
Caças e caçadores – Parte II ..................................................................................................................................................... 55
Anotações .................................................................................................................................................................................. 57
Encontre a autora ...................................................................................................................................................................... 59
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Introdução
Todos, ou pelo menos a grande maioria da população mundial, já ouviu falar no trágico fim da família
Romanov, os governantes daquele país por 300 anos. Nem todos conhecem com riqueza de detalhes o fato, ou
apenas conhecem versões mais 'leves' da história. Não importa. Mas e se a família pudesse se vingar pelo que lhe
foi feito? E se todas as mortes tivessem consequências... sinistras?
Neste mundo cheio de mistérios e forças desconhecidas, nada é impossível.
Nenhuma força poderia parar uma vingança como esta. Nenhuma força seria maior que a força que se ergueu
depois da fatídica noite de 17 de julho de 1918.
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Prólogo
Início do século XX. Um período conturbado repleto de caos e mudanças como costuma ser todo início de
século, por alguma razão misteriosa. A Rússia vivia seu terceiro século sob o governo dos Romanov, a família
mais rica do mundo, suas joias e palácios tão fantásticos que nenhuma família real jamais superaria tal riqueza. O
czar Nicolau II governava sem muita força de vontade ou sabedoria. Não era um homem mau, de fato, mas não
tinha pulso firme ou vontade própria, sendo facilmente manipulado por seus ministros em direção a atitudes
erradas que levaram à sua abdicação em março de 1917. Nicolau se sentiu aliviado por tirar o peso do governo
que nunca desejara exercer, mas também culpado por acabar com 300 anos de governo da sua família.
Nicolau ainda não sabia, mas essa não seria sua única culpa. Durante os meses seguintes à abdicação, o
governo socialista assumira o comando e causou a morte de vários membros da família Romanov na Rússia. O
irmão de Nicolau, Mikhail foi o primeiro a ser assassinado a sangue frio pelos inimigos, junto com um amigo
britânico. Seus corpos nunca foram encontrados. Muitos outros membros da família foram assassinados junto
com servos e amigos.
Por fim, Nicolau, sua esposa Alexandra, seus cinco filhos, o médico da família e mais uma serva foram levados
para o porão do local onde eram mantidos como prisioneiros, conhecido como Casa Ypatiev, pouco depois da
meia-noite, com a justificativa de protegê-los de um ataque e mostrar em uma foto que eles estavam bem e com
vida. Nicolau ficou de frente para sua família, procurando acalmá-los com o olhar. Logo o oficial informou que o
governo havia decidido executá-los, pegando Nicolau de surpresa que apenas conseguiu virar a cabeça e gritar
“O que? O que?” antes de ser atingido por um tiro e morrendo imediatamente. Sortudo. Sua família não teve a
mesma sorte. As mulheres tinham diamantes e joias costuradas ocultas em suas roupas que as protegeram
parcialmente dos tiros, a serva Anna foi protegida pelo travesseiro que carregava com joias ocultas. O caos se
instaurou. Tiros e mais tiros foram disparados, a fumaça das armas se erguendo no quarto a tal ponto que foi
preciso abrir as portas para não sufocar os atiradores. Ao perceber que os tiros não haviam matado a todos, os
assassinos usaram baionetas e tiros mais próximos. Alexei, o caçula, agonizava quando levou dois tiros na cabeça
à queima roupa; a serva, Anna, foi esfaqueada pelas costas até a morte; Maria e Anastásia se agacharam no chão
segurando a cabeça em pânico quando foram esfaqueadas pela baioneta; as outras filhas, Olga e Tatiana,
mortalmente feridas e inconscientes, foram esfaqueadas; Alexandra, a czarina, já estava morta quando um golpe
de baioneta foi desferido nela e em seu marido morto com tamanha força que quebrou suas costelas; o médico
que os acompanhava também foi morto.
Seus corpos foram levados para a floresta para serem descartados queimados e posteriormente lançados em
ácido sulfúrico. Maria, que estava viva, mas em pânico e ferida, acordou e começou a gritar, sendo morta em
seguida. Temendo que fossem vistos por populares ou algum caçador na região, os assassinos jogaram os corpos
num poço e cobriram com cal. O responsável por sumir com seus corpos, Voikov, estava bêbado para
comemorar o ato, e disse com felicidade que o mundo nunca iria saber o que foi feito com aquela família. Era o
fim da família real russa. Ninguém nunca mais os veria. Pelo menos, era isso que se acreditava naquela época.
Ah se eles soubessem...
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Festa da vitória
Um ano se passara depois execução da família real russa. Os 10 homens responsáveis pelo tiroteio e descarte
dos corpos tiveram a brilhante ideia de comemorar sua vitória sobre as forças monárquicas acampando e
caçando nas florestas de Ecaterimburgo, onde os corpos da família real estavam enterrados em duas covas
separadas e sem identificação ou qualquer rito. O líder do grupo, Yukov Yurovsky não se incomodara com a
sugestão do local de comemoração feita por Voikov, o homem responsável por descartar os corpos naquela
noite trágica. Para Yurovsky não fazia diferença onde seria comemorado, ele era um homem cético e prático, não
ligava nem um pouco para crendices tolas. Ele mesmo atirara na cabeça do czar que olhava diretamente para ele
e não sentira nenhum remorso com isso. Era só um inimigo a menos. Seu braço direito era o sanguinário sádico
Ermakov que planejara junto com seus homens violentar as mulheres da família antes de matá-las e sempre
reclamava por não ter conseguido isso por, no momento da raiva no tiroteio, ter inclusive quebrado as costelas
do czar e da imperatriz mesmo depois de mortos. Nikulin era um dos atiradores e acreditava ter feito um
benefício para a natureza exterminando a família. Kudrin era um religioso fanático que acreditava que a família
real era possuída por demônios e praticamente se implorou para participar do pelotão de fuzilamento. Seu irmão
Medvedev não tinha essa crença ferrenha, mas nunca discordava de seu irmão desde criança porque acreditava
que ele era um homem sábio e poderoso. Vaganov, Kabanov, Tselms e Netrebin eram revolucionários, mas
foram os mais difíceis de convencer a participar da festa naquele ano. Eles, como muitos russos, morriam de
medo de fantasmas, mas acabaram indo para a festa com a ideia de tentar convencer Yurovsky de que eles
mereciam postos mais altos e bonificações, fazer amizade mesmo com o poderoso homem.
Assim, na manhã de 16 de julho de 1919 Yurovsky, Ermakov, Voikov, Nikulin, Kudrin e seu irmão Medvedev,
Vaganov, Kabanov, Tselms e Netrebin terminavam de montar seu acampamento numa clareira a poucos metros
dos túmulos ocultos da família malfadada. Tselms levou crucifixos para todos com nomes de cada membro do
grupo entalhado e implorou para que todos usassem como um presente que ele fizera. A maioria,
principalmente Ermakov riu dele o chamando de “dama assustada”, brincando com o apelido que ele dera à
imperatriz desde o dia da morte dela, quando Tselms atirou nela antes que a mulher terminasse de fazer o sinal
da cruz ao saber que ia morrer. Tselms ficou pálido como a neve ao seu redor, temendo que aquilo fosse
despertar a fúria das almas dos Romanov, mas nada aconteceu. Nem um vento súbito e gelado, nenhum calafrio,
nenhum som assustador, nada. O dia, apesar de frio como era comum naquela época, estava bonito, com um
céu azul e um vento frio, mas suave na pele. O dia parecia perfeito. Kabanov foi o primeiro a colocar o crucifixo
no pescoço porque, no fundo, ele estava morrendo de medo dos fantasmas, mas disse apenas que usaria para
que Tselms ficasse tranquilo. Yurovsky ordenou que todos usassem o crucifixo para acalmar Tselms. Não faria
diferença mesmo se ele ia usar ou não porque espíritos não existiam, mas não fazia sentido deixar um colega
desconfortável numa festa sem motivo.
Todos obedeceram a ordem do superior hierárquico sem contestar. Netrebin, o mais calado de todos, sempre
usando o relógio de bolso que roubara do czar na noite de sua morte, foi o único que sentiu um frio na nuca
naquele momento. Ao colocar seu crucifixo, ele podia jurar que ouvira o risinho travesso de Anastásia, a caçula
dentre as meninas do czar, atrás dele, como se viesse de cima da árvore pouco atrás dele. Ele não teve coragem
de se virar para olhar. Não tinha porque fazer isso. Afinal... Não ia ter nada lá. Ele repetiu isso pra si mesmo e se
afastou mais ainda da árvore. Nunca se sabe ne.
Os homens preparavam suas armas para a caçada, mas estavam mais dispostos à beber naquele dia. Então
pegaram seus mantimentos, fizeram uma fogueira, colocaram um punhado de carne que levaram e muita vodka
e conhaques roubados da adega pessoal do czar em São Petesburgo. O dia todo Nikulin tocava em sua viola, às
vezes revezando com Vaganov ou Yurovsky, e todos cantavam de braços dados, equilibrando garrafas de vodka
nas mãos, cantando músicas que fariam até a maior prostituta francesa corar de vergonha. A caçada ficaria para
o dia seguinte. Ou não. Em dado momento, já noite, um veado gordo saiu da floresta se encaminhando
calmamente para a clareira onde os homens estavam. Ele nem mesmo parecia incomodado com o barulho dos
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homens cantando e dançando bêbados. O animal parecia estar praticamente implorando para ser morto e virar
churrasco. Os homens provocavam o animal gritando com ele e o xingando, mas sem se aproximar. O cervo
continuava lá tranquilo como se os homens nem estivessem ali. Kabanov imaginando o quão suculento seria a
carne daquele animal, pegou sua arma e mirou. Todos se calaram apenas observando com expectativa, torcendo
mentalmente por Kabanov. Por qualquer razão inexplicável, Kabanov se lembrou do momento em que
esfaqueara a pequena Maria Romanov no crânio com tanta força que sua lâmina quebrou. A menina acordara
pouco antes de ser enterrada, quando ele e Voikov achavam que todos estavam mortos. Ele se lembrou de ter
jogado Maria e o irmão Alexei numa cova separada.
Sua memória vagou por essa cena em uma velocidade enlouquecedora enquanto seus olhos miravam no
animal à sua frente. Seu pescoço coberto por grossas camadas de tecido se arrepiou como se ele estivesse nu
naquele local frio. E então a arma disparou. Mas ele não puxara o gatilho. Foi o último pensamento coerente que
teve antes de sentir a dor lancinante em sua cabeça. A bala saíra pela culatra e acertara sua cabeça, na lateral do
olho, passando de raspão. Não era um ferimento que o mataria rápido, mas sangrava muito e o mataria em
algumas horas. Seus companheiros o seguraram enquanto ele caía gritando de dor. Foi Tselms que levantou a
cabeça primeiro e começou a se benzer sucessivamente com olhos tão arregalados que pareciam saltar das
órbitas. O cervo encarava o grupo de frente para eles no mesmo lugar onde estivera sob a mira de Kabanov. Mas
o olhar do animal era...estranho. Era quase como se ele admirasse a cena de dor do homem. Ele não se movia,
não piscava e seus olhos pareciam... vermelhos.
- Afastem esse animal daqui! – Yurovsky gritou. Mas ninguém precisou fazer isso. O cervo se virou para a
floresta ao lado, andou calmamente e sumiu na floresta. Todos olharam a cena incrédulos até que os gritos de
Kabanov chamaram a atenção de todos.
- A mão dele. – Nerebin chamou a atenção. A mão direita de Kabanov, a mesma que ele usara pra esfaquear
Maria, estava solta. Sim. Solta. Uma fratura exposta circundava o braço, no meio entre o pulso e o cotovelo,
ficando presa apenas por um conjunto frágil de veias e nervos.
Como aquele ferimento surgira? Yurovsky empurrou essa questão para o fim de sua lista de prioridades e deu
ordens para levar Kabanov para dentro da tenda do homem. Seria preciso amputar a mão e parte do braço e
estancar o sangue antes que o homem morresse. Depois seria preciso buscar ajuda médica ou carregar o homem
até o povoado mais próximo. Naquele clima e àquela distância, seria uma missão árdua. Muito, muito árdua.
Mas a noite estava apenas começando...
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Demônios disfarçados
- AAAAAAAAAAAAAAAAAH! – Kabanov gritava enquanto os colegas o seguravam no chão para Vaganov, mais
hábil nessas coisas, cortar o braço pendurado do homem.
- Façam ele morder alguma coisa ou não vai aguentar a dor! – Yurovsky ordenou.
- AAAAAAAAAAAAAAAH! TIREM ELA DAQUI! SAI! – Kabanov gritava alucinando... Ou não. Ele via uma garota
nitidamente à su frente, parada ao lado de Yurovsky que estava perto de sua cabeça, mas superior hierárquico
parecia não vê-la. Ninguém parecia ver a menina. Uma bonita jovem de pijama branco semelhante a um vestido,
típico do época, cabelos castanhos desgrenhados, sangue negro escorrendo de sua cabeça e formando uma poça
fétida no chão. Um sorriso doce e, ao mesmo tempo, sinistro emoldurava o rosto da menina que olhava para ele
como se achasse graça no sofrimento dele. Ele não precisava que ela lhe dissesse seu nome. Ele conhecia aquele
rosto. Porra! Qualquer um na Rússia que tivesse um pouco de conhecimento saberia quem era aquela menina.
Maria, a terceira filha do czar Nicolau II, a menina que gritara antes de ser enterrada, a mesma que ele matara.
- De quem ele está falando? – Tselms perguntou com sucessivos tremores involuntários.
- Ele está alucinando de dor, estúpido! Não está vendo? – Ermakov bradou.
- ELA VAI MATAR TODOS NÓS! ELES VÃO MATAR TODOS! NÓS VAMOS MORRER! O DIABO! É O DIABO! –
Kabanov gritava em pânico vendo o sorriso cada vez mais cruel e divertido da menina. Círculos vermelho escuro
começaram a surgir na roupa da moça, logo se transformando em fluxos como sangue escorrendo de dentro
para fora da roupa. - AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH! – O homem gritou com todas as forças, mas o som
saiu apenas em sua mente. Ele não tinha voz. Sua boca nem mesmo se movia como ele queria, ficando aberta
em formato de “o” com o último som que ele conseguiu dizer.
A menina olhou para a própria roupa sem nenhum interesse aparente, apenas como se visse uma formiga no
chão. Seu olhar escuro como a noite sem lua se voltou para Kabanov que ainda tentava desesperadamente
gritar, sem sucesso. Vaganov cortava seu braço e ele podia sentir cada centímetro de dor. Alguém colocou um
graveto sujo em sua boca e forçou-a a se fechar um pouco firmando seus dentes do objeto. Maria, pálida, com
lábios negros, sangue escuro brotando de sua cabeça e suas roupas, andou lentamente por trás dos homens que
cercavam e seguravam Kabanov, em direção à seus pés, sempre olhando pra ele com um sorriso maldoso. Não
diminuindo o ritmo em momento nenhum, ela deu a volta por todo seu corpo, atrás de seus colegas, até parar
acima da cabeça dele, parte de seu corpo passando por dentro de Nikulin que segurava a cabeça do colega com
ambas as mãos. Ela se inclinou sobre o homem ferido, seu tronco atravessando Nikulin pela barriga como se ele
fosse só uma cortina leve de pano, seus cabelos estavam molhados de sangue, caindo dos lados do rosto de
Kabanov. Ele tentou gritar com mais desespero ainda, mas sua voz não saía. Sua boca nem se movia, ainda
segurando o galho com os dentes. Ela pairou com olhos na altura dos olhos dele, o odor de carne podre
invadindo as narinas do homem, um terror fora do comum abalando seus nervos e sua mente. Os olhos da
menina eram tão negros que por si só já aterrorizavam, mas aquele sorriso... Aquele sorriso era... Perturbador.
Vaganov já tinha amputado seu braço e conseguira finalmente estancar o sangue na cabeça do homem por
algo que ele só pôde pensar em chamar de milagre. Nikulin se afastara do homem assim que o trabalho foi feito.
Ele estava sentindo um frio no estômago que não sabia explicar, mas era apavorante. Maria não se moveu
quando Nikulin saiu. Era como se ele não fosse nada, como se ela não o tivesse atravessado.
NÃO! NÃO! ME DEIXE! – Kabanov gritou em sua mente.
A menina segurou o queixo dele, forçando sua boca lentamente a se abrir e o galho escorregar na lateral de
sua cabeça. Os colegas estavam um pouco mais afastados, de cabeça baixa, tentando recuperar o fôlego.
- Você não me deixou viver. Nós também não deixaremos vocês viverem. – Ela disse claramente com um voz
que transbordava raiva, mas que só Kabanov ouviu.
- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH! – Kabanov finalmente gritou a plenos
pulmões fazendo seus colegas darem um pulo de susto.
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- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH! – Maria gritou também. O mesmo grito que


dera quando acordara em meio aos cadáveres de sua família em caminhão como se fosse um pedaço de carne,
ferida, com dor, em pânico e vira um homem se aproximar fazendo-a finalmente ter esperança de viver.
Esperança arrancada segundos depois quando ele a golpeou na cabeça e tudo ficou escuro e frio. Com o grito ela
firmou sua mão na garganta do homem. Um terror subiu em sua mente. Nada mais lhe era familiar. Ninguém ali
era conhecido dele. Mas uma coisa ele sabia com certeza: todos ali eram demônios que queriam matá-lo.
Ele se levantou num salto tão ágil que ninguém depois de perder tanto sangue deveria conseguir. Agarrando
uma arma próxima, um mosquete com uma baioneta na ponta do cano, ele apontou para todos aqueles
estranhos ao seu redor.
- SAIAM DEMÔNIOS! VOCÊS NÃO VÃO ME LEVAR! – Kabanov gritou, suas pupilas tão dilatadas que mal se via
a íris castanha do homem.
- Camarada Kabanov, respire, homem! – Yurovsky falou tentando acalmar o colega, com as mãos para frente
pedindo calma. – Você não está pensando claramente.
- Camarada, se acalme. Somos nós, seus camaradas. Não estamos aqui para te fazer nenhum mal. – Netrebin
falou um pouco atrás de Yurovsky.
- NÃO SOU SEU CAMARADA, DEMÔNIO DOS INFERNOS! NÃO ADIANTA TENTAR ME ENGANAR! – Kabanov
segurava a arma com a mão esquerda e com muita precisão. O que era muito esquisito, afinal era um mosquete
que precisava de ambas as mãos para ser manuseado corretamente e, bem, Kabanov era destro.
Tselms se benzia rapidamente sem parar desde que o homem gritara. Os outros estavam chocados demais
para sequer pensar em agir. Apenas Ermakov conseguiu dar alguns passos assim que Kabanov pegou a arma.
Lentamente, Ermakov se movia pela lateral de Kabanov até ir parar atrás dele. Yurovsky percebendo a ideia de
seu antigo homem de confiança na missão Ipatiev, como fora chamada a prisão e execução dos Romanov,
tentava distrair Kabanov pra que ele não olhasse para trás. Mas o medo dá aguçada perspicácia e Kabanov
percebeu um olhar furtivo de Tselms para Ermakov, já atrás dele.
- EU SABIA! DEMÔNIO TRAIÇOEIRO! – Ele gritou se virando bem a tempo de ver Ermakov a poucos passos
dele. Deu um chute em seus joelhos e o derrubou, mas foi agarrado por Yurovsky e Nikulin.
- Calma, camarada. Não vamos te fazer mal. Somos nós. Não nos reconhece? – Nikulin perguntou.
O outros o seguraram, Ermakov tentava ficar de pé, mas foi logo derrubado por dois de seus colegas que
praticamente voaram em cima dele quando Kabanov jogou todos à distância como se fossem bonecos de pano.
Desde quando ele ficara tão forte? Ele pegou o mosquete de novo, Nikulin tentou se aproximar falando dos
filhos de Kabanov e de sua família pra tentar trazer o homem à realidade de novo. Mas essa foi sua pior ideia.
Kabanov nem o ouvia direito, apenas via rostos demoníacos ao seu redor, rosnando pra ele, babando sangue
negro e gritando obscenidades e ameaças de morte. Ele até podia ouvir tiros ecoando perto dele, embora não
visse nenhum. Quando Nikulin se aproximou um pouco, tudo que ele viu foi mais um demônio de rosto pálido,
olhos vermelhos e babando sangue perto dele. Ele agarrou seu mosquete e golpeou o Nikulin na coxa tão fundo
que a baioneta ficou presa na coxa do homem e o cano do mosquete voltou do golpe sem a arma pontuda que
havia ali antes.
- MEU DEUS! ISSO DÓI! – Nikulin gritou caindo com o sangue caindo ao redor da baioneta presa em sua perna.
- FILHO DE UMA RAMEIRA! – Ermakov gritou puxando os cabelos de Kabanov, fazendo sua cabeça tombar
para trás. Uma adaga apareceu na sua cintura, uma que ele não lembrava de ter ali, mas na raiva isso não
importou. Ele pegou essa adaga e enfiou na frente da garganta exposta do homem sem um braço, rasgando a
garganta na vertical, de cima para baixo.
Kabanov caiu no chão e então tudo veio à tona. Os demônios não estava ali, mas sim seus colegas, os mesmos
que ele ameaçara e ferira. E, na frente dele, Maria, a garota sorridente que esperava sua alma para levá-la
embora. Ele tentara pedir desculpas a seus colegas, mas sua garganta não podia mais emitir nenhum som e
apenas seus lábios se moveram. Mas ninguém viu. Todos estavam ocupados socorrendo Nikulin caído um pouco
à frente com sangue escorrendo no chão se misturando com a terra.

- Você não devia ter matado ele. Ele era nosso camarada. – Tselms disse trêmulo.
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- Preferia que eu deixasse ele matar a todos nós? – Ermakov disse quase cuspindo as palavras com o ódio que
brotava delas.
- Kabanov feriu Nikulin e pretendia matar todos nós, Tselms. Não havia como conversar com ele. – Voikov
disse limpando o sangue de suas mãos. Ele ajudar a socorrer Nikulin minutos atrás.
- Mas... – Tselms começou a dizer.
- O camarada Ermakov fez bem. Kabanov enlouqueceu e não poderíamos confiar em um louco entre nós no
meio da floresta. Não seja sentimental, camarada Tselms. – Yurovsky disse e todos ficaram mais eretos em
respeito ao superior hierárquico que se aproximara.
- Como ele está, senhor? – Voikov perguntou.
- Vai viver, por enquanto. – Yurovsky respondeu aceitando uma garrafa de vodka oferecida por Ermakov. –
Precisamos decidir o que fazer agora. Mas, antes de tudo... Muito bem, camarada Ermakov. – Ele ergueu a
garrafa como se fizesse um brinde. – Você prestou um serviço ao nosso grupo esta noite e não esquecerei disso
quando voltarmos para São Petesburgo.
Ermakov agradeceu polidamente ao chefe e seguiu para dentro de sua tenda. Ele precisava de descanso. Sua
barriga estava esquisita.
- Deve ser só vodka demais e depois essa merda toda. Vou dormir e vai melhorar amanhã. – Ermakov disse a si
mesmo.
Do lado de fora da tenda Tselms e Kudrin conversavam e ambos acreditavam que algum demônio possuíra
Kabanov. Kudrin dizia que devia ter sido o mesmo demônio que possuía os membros da família Romanov que ele
sempre acreditara terem sido enviados pelo capeta para dominar a Rússia.
- Você viu aquilo? – Tselms perguntou olhando para uma das muitas árvores ao redor.
- Vi o que? – Kudrin perguntou olhando intrigado para a direção que o colega olhava, mas só viu um monte de
árvores escuras na noite fria.
- Uma coisa branca se mexendo na árvore. Ali. – Tselms sinalizou para um ponto, mas não havia mais nada. –
Juro que vi uma coisa branca parada ali.
- Acho que precisamos dormir, camarada. Foi uma noite longa. – Kudrin disse se levantando.
Tselms concordou e seguiu pra sua tenda tentando se convencer que fora só o cansaço lhe pregando uma
peça. Tentando e falhando miseravelmente.
- Esta vai ser uma longa noite. – Tselms disse a si mesmo enquanto tentava relaxar para dormir.
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Quem merece morrer?


Rússia czarista, 1914.
- Nastya! Desça daí, agora! – Alexandra, a czarina esposa de Nicolau II, tentava pela milionésima vez tentar
tirar Anastásia de cima de uma árvore. A garota era a caçula entre as filhas do casal real, e era a mais difícil de
controlar, sempre aprontando. Quando subia nas árvores então, era quase impossível tirar a pestinha de lá de
cima. Só uma alma viva conseguia essa proeza.
- Deixa comigo, querida. – Nicolau disse se aproximando risonho. Sempre que a menina decidia que queria
brincar como se fosse um passarinho empoleirado numa árvore ele se divertia intimamente com as peripécias da
menina. – Nastya, desça. – Nicolau disse num tom calmo, sem nenhum tom de advertência ou ordem. A menina
desceu alegremente sem contestar. Era um tipo de jogo entre eles, Anastásia gostava do sorriso gentil e calmo
do pai e ele gostava da energia da menina que o lembrava de seu pai, o falecido czar Alexandre III. Anastásia
desceu, pulou no colo do pai sem aviso, que a segurou rindo. – Você precisa parar com isso, querida. Não é
correto uma grã-duquesa pulando em árvores. Você pode acabar se machucando. – Ele disse tentando, e
fracassando, parecer sério. –
- Não tenho medo, papa. Você me protege. – Anastásia disse puxando a barba negra do pai.
- Minha pequena diabinha, vá com sua aia. Tem doces na cozinha. – Ele disse colocando a menina no chão que
correu à frente da aia, fazendo a serva quase correr pra acompanha-la.
- Doces? – Alexandra disse olhando feio pro marido. – Você estraga essa menina. Se não castigá-la por seus
erros ela será insuportável quando crescer.
Nicolau apenas deu o braço para a mulher e sorriu. Ele adorava estragar os filhos com mimos.

Floresta de Ipatiev, Ecaterimburgo, 1919.


Ninguém conseguia dormir no acampamento depois do surto e morte de Kabanov, e o ferimento de Nikulin. O
clima era pesado até para os mais céticos do grupo. Apesar de Yurovsky ter ordenado que um grupo dormisse e
outro vigiasse Nikulin, para depois revezarem, ninguém conseguiu ficar na cama por muito tempo. Todos se
sentiam agitados e nem mesmo a bebedeira de horas antes estava ajudando a descansar. Um a um, todos se
levantaram e sentaram ao redor da fogueira que ardia no meio do acampamento. Ninguém conseguia falar nada
por um tempo, ainda acalmando os pensamentos.
- Porque estão aqui? Mandei vocês descansarem. – Yurovsky disse saindo da tenda onde Nikulin estava
dormindo com febre.
Todos olharam para ele, ainda sem saber o que dizer.
- Senhor, estive pensando em... O que estão fazendo fora das tendas, camaradas? – Voikov disse saindo da
mesma tenda que Yurovsky tinha acabado de sair.
- Nós não conseguimos descansar com... tudo o que aconteceu. – Medvedev disse, olhando de canto pro
irmão como se pedisse permissão para falar, como ele sempre fizera desde criança. Kudrin estava de cabeça
baixa, nem mesmo direcionando um olhar para o irmão. Kudrin quase podia jurar que alguém os estava
observando, mas não queria comentar nada ainda. Ou não podia. Ele sentia um peso estranho no peito, como se
uma angústia quisesse começar a se fazer presente em seu coração, mesmo sem nenhum motivo.
- Na hora da troca de turno não vou aceitar isso como desculpa. – Yurovsky disse.
Um vento gélido chacoalhou as árvores ao redor, quase zumbindo. Não. Zumbindo não. Gritando. Isso. As
folhas das árvores emitiram um som que parecia um conjunto de gritos femininos. Até mesmo Yurovsky, tão
cético quando qualquer comunista que se preze, sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Todo mundo, dentro e
fora da tenda, se sentiu congelando no lugar, mas não de frio. De medo. Um medo que ia além de qualquer
outro medo experimentado por eles mesmo em combate.
A v i n g a n ç a d o s R o m a n o v | 11

De repente as árvores começaram a balançar, chacoalhar e um som estranho, gutural, emergiu de dentro da
floresta. As árvores se mexiam de uma forma que demonstrava o movimento de um animal enorme na floresta,
vindo em direção à eles. E vindo bem rápido. Não dava para ver ainda o que era, oculto pela floresta densa, mas
ninguém queria esperar para ver.
- Saiam da tenda! Peguem suas armas e os mantimentos que conseguirem. RÁPIDO! – Yurovsky ordenou. Os
que estavam fora da tenda saíram rapidamente pegando suas mochilas e armas que estavam próximas de suas
camas em suas tendas. Dentro da tenda onde Nikulin estava desacordado, Vaganov estava ao lado dele jogando
as tiras de pano ensaguentadas num canto.
- O que está acontecendo? – Vaganov perguntou.
- O curativo está seguro? – Yurovsky perguntou pegando mochilas e armas próximas, juntando tudo e
ordenando aos outros que fizessem o mesmo.
- Sim. A tala está firme e...
- Acorde ele. De qualquer jeito. – Yurovsky ordenou e aquele som gutural na floresta ficou ainda mais alto. A
coisa, fosse o que fosse, estava mai perto. – Tem algo enorme na floresta vindo até nós.
Ermakov jogou água fria no rosto de Nikulin para fazer o homem acordar. Ele acordou, mas estava tão febril
que praticamente não conseguia se mover sem tremer com dor e tontura. Voikov entrou pegando Nikulin por
um braço, enquanto Vaganov sustentava pelo outro braço. Netrebin ajudou Yurovsky a pegar o que pôde às
pressas e jogar dentro das mochilas.
- Senhor! Está perto! – Kudrin gritou do lado de fora.
- Corram para a floresta, na direção oposta. Corram e não parem por nada. Medvedev, apague a fogueira
rápido! Não quero um incêndio aqui. – Yurovsky gritou as ordens correndo à frente de todos para guiar o
caminho. Ermakov ficara para trás para proteger a retaguarda e atirar em qualquer coisa que saísse da floresta,
dando tempo para Medvedev os acompanhar depois. Medvedev era rápido como o diabo quando precisava
correr. Kudrin sempre dissera que esse era o poder que Deus dera ao seu irmão.
- Rápido, Medvedev! – Ermakov gritou vendo as árvores mais próximas da clareira chacoalharem. O rugido de
um animal que ele não sabia dizer o que era, mas devia ter pelo menos uns 4 metros de altura, dado o estrago
que fazia nas árvores ao se movimentar, soou muito mais alto fazendo os homens correrem ainda mais.
Medvedev estava gelado da cabeça aos pés, apesar dos pesados agasalhos e do álcool no sangue. Ele não
conseguia apagar a fogueira. Caramba! Ele fizera isso inúmeras vezes desde pequeno. Não era difícil. Por que não
apagava? Toda vez que as chamas começavam a se apagar, do nada se erguiam altas de novo como se jogassem
barris de álcool nela. Quando o rugido soou mais próximo, Medvedev olhou para Ermakov e entendeu o
pensamento do colega. A fogueira que se ferrasse! Ele ia correr para acompanhar seus colegas. Ia. Mas não foi.
Quando deu o primeiro passo para frente, ainda olhando para Ermakov, com medo do que poderia ver se
olhasse para trás, algo agarrou seu tornozelo e o derrubou de cara no chão. Quando se virou um pouco para ver
o que o segurara, percebera que era um galho rasteiro gigante e grosso que saía do meio da floresta onde o som
perturbador soava e árvores chacoalhavam. Outro galho semelhante emergiu da floresta como se tivesse vida
própria emergiu da floresta e prendeu seu outro tornozelo. Medvedev olhou aterrorizado para Ermakov que
estava congelado no lugar, confuso, sem saber no que atirar para salvar o colega. O que ele faria? Atiraria num
galho?
- Se solte, homem! – Ermakov gritou ainda mirando na floresta onde imaginava que um animal gigante
surgiria a qualquer segundo. Foi com um misto de confusão e medo que Ermakov viu Medvedev ser arrastado
para dentro da floresta, gritando, olhos arregalados em terror, tentando se segurar no solo gelado, se debatendo
até desaparecer dentro da floresta.
Ermakov não pensou duas vezes, virou as costas e correu em direção ao caminho que seus colegas seguiram.
Quando os viu à distância, um grito ecoou de dentro da floresta como se viesse de todas as direções ao mesmo
tempo. Todos conheciam a voz naquele grito. Era Medvedev. Quando os homens pararam, cansados,
principalmente os dois que praticamente arrastavam Nikulin que gritava com dores na perna ferida, todos se
voltaram para Ermakov que estava pálido, sem sangue nos lábios, olhos desfocados e balbuciando coisas sem
sentido.
- Onde está Medvedev? – Yurovsky se aproximou sendo seguido de perto por Kudrin.
A v i n g a n ç a d o s R o m a n o v | 12

- Meu irmão... O que aconteceu com meu irmão? – Kudrin perguntou não tendo certeza se queria ouvir a
resposta.
- Ele apagou... Eu vi.... Ele apagou... Mas não apagou... Depois a árvore... A árvore...Ela levou ele.... Ele apagou
o fogo... Seis vezes...Eu vi... – Ermakov balbuciava tentando entender o que vira. Fantasmas não existiam. Ele
tinha certeza disso. Mas então... O que ele vira? Como explicar o que era tão....confuso?
- Camarada Ermakov! Recomponha-se, homem! O que aconteceu com Medvedev? – Yurovsky repetiu a
pergunta em tom de ordem.
- A menina... na árvore. Ela mandou buscar ele. – Nikulin disse em meio a alucinações de febre.

~o~
Medvedev fora arrastado pelo chão gelado, tentando se agarrar à qualquer coisa sem sucesso. Ermakov o
olhava como se não pudesse acreditar em seus próprios olhos. Tudo que ele conseguia pensar era em seu irmão
que sempre o aconselhara, o guiara. Fora seu irmão que lhe dissera um ano atrás que se ele matasse a pequena
Anastásia ele teria um lugar garantido no paraíso por sua boa ação. Ele vira a menina agarrada num canto com
sua irmã, Maria, gritando e, por um segundo ele exitou. Ela era quase uma criança ainda. Será que era certo?
Quando seu irmão se aproximou por trás dele o aconselhando, ele aceitou a sabedoria do irmão e atirou na
menina.
Ela é o diabo disfarçado de menina para enganar os filhos de Deus. Ela merece morrer. Kudrin dissera naquele
dia, atrás dele que ainda tinha os olhos focados em Anastásia que implorava com o olhar para não morrer. Ela
era tão bonita. Todas as filhas de Nicolau eram. Seu irmão sempre dissera que isso era porque o demônio se
disfarçava em belas mulheres para atrair mais admiração do povo inocente. Ele não sabia porque isso vinha em
sua mente agora, nesse momento de terror. Em segundos esse pensamento atravessou sua mente aterrorizada,
enquanto seu corpo era arrastado sobre pedras, gelo e terra e ele gritava pedindo por socorro. Ele não
acreditava plenamente nessa história de demônios, mas não desobedecia seu irmão. Ele via Kudrin como o mais
sábio dos homens e sempre o seguira cegamente. Agora, pela primeira vez em sua vida, ele se perguntou se isso
era o correto.
Os galhos pararam de arrastar seu corpo ferido pelo chão e o ergueram em uma árvore muito alta. Seu corpo
passou por galhos grossos da árvore, alguns se quebrando com o impacto violento, até que ele parou preso de
ponta cabeça, mal enxergando o solo oculto pelas folhas da árvore. Os galhos o prenderam em um galho grosso
e ele tentou se mover para sair daquela posição incômoda e talvez se soltar. Sua mochila havia se perdido no
caminho e ele nem sabia onde. Tinha uma faca ainda presa ao seu cinto, então ele só precisava se erguer no
galho.
- Onde você pensa que vai? – Uma voz doce de menina disse. Ela vestia branco, uma camisola parecendo um
vestido, perfurações de bala a atravessavam de tal forma que se podia ver a árvore atrás de seu corpo. Sangue
escorria de seu peito, cabeça e manchavam sua roupa. Cabelos castanhos e longos emolduravam um rosto jovem
que ele reconheceria em qualquer lugar. Olhos azuis alertas, expertos, um sorriso travesso que ele nunca
esqueceria, eram a marca registrada da menina de 17 anos, a travessa Anastásia.
- Anastásia? – Medvedev disse com o corpo todo dolorido, ferido e a cabeça doendo muito pelas pancadas e a
posição incômoda em que estava. – Você está morta. Não pode estar aqui. Não é possível.
- Para o seu azar, bolchevique sujo, é muito possível. – Anastásia disse.
- Não sei como você escapou da morte. Atirei na sua cabeça. Mas não vou errar de novo! – Medvedev disse,
propositalmente ignorando os buracos no corpo da menina que a atravessavam. Ele pegou a faca em seu cinto,
usada para destrinchar animais, e enfiou na garganta da menina que nem mesmo se moveu. Ele empurrou a faca
ainda mais fundo até metade do cabo, fazendo a ponta da faca aparecer do outro lado do pescoço da moça, que
continuou sem se mover ou esboçar qualquer dor. Ela o olhava da mesma forma divertida e calma. Ele soltou a
faca que ficou no pescoço de Anastásia e a olhou em pânico. Ela estava mesmo ali e não estava viva. Ninguém
vivo aguentaria aquele ferimento... Ninguém. – Por favor, não me mate. – Ele disse quase chorando em pânico. –
Eu fiz o que meu irmão mandou. Eu não fiz por mal. Por favor.
- Você não fez por mal? AHAHAHAHA! Você é divertido, Medvedev. – Anastásia disse com malícia.
A v i n g a n ç a d o s R o m a n o v | 13

- Como... Como sabe meu nome? – Medvedev perguntou. Ele e seu irmão não eram parte da guarda que ficou
responsável por cuidar dos Romanov em Ipatiev durante o período que estiveram presos. Eles nunca disseram
seus nomes naquele dia fatídico.
Anastásia sorriu e respondeu: - Vantagens da morte. – Ela tirou lentamente a faca de seu pescoço causando
calafrios no homem pendurado de cabeça para baixo que implorava mentalmente para não morrer ali como um
porco. – Ah sim. Esse olhar. Eu me lembro que implorei com meus olhos para não morrer também. Como seu
irmão disse antes de você obedecer feito um cachorrinho adestrado de donzela? Ah sim. “Ela é o diabo
disfarçado de menina para enganar os filhos de Deus. Ela merece morrer”. Só que eu nunca matei ninguém. Eu
não merecia morrer.
- Não. Não merecia. Me desculpe. – Medvedev podia sentir as lágrimas caindo em sua testa.
- Bem, você matou. Você merece morrer. Você sim é o diabo disfarçado aqui. – Com essas palavras, Anastásia
se aproximou como um sopro gélido e veloz. Num segundo ela estava à frente dele, flutuando no ar, seus
cabelos de repente estavam molhados e terrosos, seu rosto e corpo estavam queimados, desfigurados com ácido
e manchas brancas de cal. Cantarolando uma canção que Nicolau cantara para ela muitas vezes, ela enfiou a faca
de Medvedev abaixo de seu umbigo, enfiando a lâmina toda. O homem gritou de dor, sabendo que morreria
logo. Ou não. Ainda cantarolando como se estivesse em seu quarto com suas irmãs se divertindo, Anastásia
passou a descer a lâmina da faca enfiada no corpo do homem lenta e firmemente. O grito de Medvedev já semi
morto ecoou por toda a floresta como se fosse carregado pelas folhas passando de árvore em árvore
velozmente. A menina só parou quando a faca atravessou o queixo do homem, sua força sobrenatural cortando
até mesmo o osso da mandíbula. Um corte vertical seguia de baixo do umbigo, passando pela barriga, tórax,
garganta e queixo. Por castigo ou o que quer que fosse, Medvedev estava vivo ainda, mas agonizante, sem voz,
sentindo cada centímetro de dor, mas consciente. Anastásia se virou de ponta cabeça, flutuando no ar, agora
cara a cara com o homem agonizante cujo sangue escorria profusamente. Lágrimas ainda brotavam de seus
olhos como cachoeiras. Ela secou uma lágrima da testa do homem.
- Não chore, bolchevique. – Ela pronunciou a palavra com desdém. - Eu não sou cruel. Não vou te deixar
sozinho por muito tempo. Não se preocupe. – Ela sorriu e seu sorriso conseguiu ser mais aterrorizante do que
toda aquela situação macabra.
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Valsa dos gritos


- Eu disse que aquela família era formada por enviados do demônio! – Kudrin gritou depois que Ermakov
contou o que tinha acontecido com o máximo de frieza que pôde, tentando ser racional e controlar o medo
irracional que começava a tomar conta dele.
Yurovsky ouviu calmamente tentando racionalizar pra entender o que havia acontecido. Seria possível que o
Exército Branco, inimigos da Revolução, os tivessem seguido até ali e estivessem os aterrorizando? Os brancos
eram apoiadores do czarismo e vinham dando muita dor de cabeça ao Exército Vermelho desde o início da
Revolução, mas seriam tolos o bastante para invadir um território controlado pelos bolcheviques? Tselms por sua
vez segurava seu crucifixo com muita força como se ele pudesse entrar na pele de sua mão e ficar ali pra sempre
o protegendo.
- Serão os Romanov’s? O diabo os mandou de volta para Terra? Devíamos ter feito alguma prece no túmulo
pra que Deus os impedisse de voltar... – Tselms dizia aterrorizado. Ele não sabia como, mas tinha uma certeza
inquebrável de que tudo que havia acontecido ali era causado pelos espíritos dos Romanov’s.
- Não seja tolo, homem! Espíritos não existem! – Voikov disse.
- Você é que está sendo tolo! Não ouviu o que Nikulin disse? Não se lembra que uma das crias do Nicolau
Sangrento subia em árvores e ficava lá por horas como uma macaca? Não pensou que ela podia ser uma bruxa
das árvores e por isso nunca se feriu nelas? – Kudrin estava gritando quase partindo pra cima de Voikov.
- Se você não parar com essa merda de demônios e bruxas, vou quebrar sua cara! – Voikov já estava partindo
pra cima de Kudrin também.
- Parem já com isso! – Yurovsky disse com autoridade. – Não tem espírito nenhum, camarada Kudrin. Pense
com clareza, camarada. É evidente que, de alguma forma, os brancos estão por trás disso tudo. Eles podem ter
drogado Kabanov com alguma substância na bebida dele, talvez até nas nossas, isso explicaria as coisas que
temos visto. Pode apenas ser uma forma exagerada de ver as coisas, causada por algum tóxico.
- Tenho certeza de que foi isso. – Ermakov disse, ávido por alguma explicação lógica para o que vira.
- Vocês não querem enxergar a verdade que está bem na frente de suas caras! São os demônios Romanov’s! –
Kudrin disse.
- Talvez não sejam demônios. – Netrebin disse, sentado encostado em uma árvore secando o suor febril do
incosciente Nikulin à sua frente. Todos olharam para ele. – Minha babushka1 sempre dizia que mortos que não
eram enterrados com os ritos ensinados por Nosso Senhor ou que morriam violentamente, voltavam para
assombrar os vivos.
- Que idiotice! Se fosse assim o mundo todo seria assombrado por todos os mortos em guerras! – Ermakov
disse com desdém, mas, intimamente aquele medo irracional crescia, por mais que ele tentasse ignorar.
- Hmmm... – Nikulin começou a gemer.
- O que faremos? Ele está com muita febre e o ferimento está sangrando muito pelo esforço. – Vaganov
perguntou.
- Precisamos buscar socorro. Nossa base mais próxima fica a alguns metros a leste. Três de nós irão até lá
buscar ajuda e informar sobre a possível presença dos brancos na floresta. – Yurovsky disse. – Se aquele
movimentos nas árvores são um indicativo, podemos ter um grande grupo na floresta e não temos armas
suficientes para um confronto nesse nível.
- Eu vou. – Ermakov disse, louco para sair daquela floresta infernal.
- Tselms e Netrebin vão com ele. – Yurovsky disse. – Eu e Voikov manteremos o perímetro seguro nos
revezando em turnos de vigilância. Vaganov e Kudrin se revezem cuidando de Nikulin. Vamos tentar manter o

1
‘Vovó’ em russo.
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pobre homem vivo até a ajuda chegar. Trabalharemos em turnos de dois. Dois dormem enquanto dois trabalham
em seus postos.
- Sim, senhor. – Todos concordaram.
Yurovsky sabia que não era sábio manter Kudrin perto de Ermakov naquele momento. Ambos eram instáveis a
seu modo. Kudrin era um fanático, apesar de ser leal à revolução justamente por isso, e Ermakov, bem, ele era
raivoso, cético, sádico, explosivo e um atirador exímio, ou seja, um soldado perfeito. Ambos juntos num
momento de crise envolvendo crenças como aquela seria conflito na certa. Voikov era maluco e muito parecido
com Ermakov em muita coisa, mas era mais controlado e Yurovsky confiava nas habilidades militares dele tanto
quanto nas de Ermakov. Tselms e Kudrin juntos também não seria uma boa ideia, mas pelo motivo oposto.
Ambos tinham crenças parecidas e isso podia resultar em problemas naquele momento. Nikulin não podia andar.
O homem mal conseguia se manter acordado entre as convulsões febris e alucinações. O ferimento, por mais
que Vaganov tentasse estancar, só piorava inexplicavelmente.
O trio que partiria em busca de ajuda estava terminando os preparativos para a partida quando Vaganov e
Kudrin gritaram atraindo a atenção de todos.
- Mas que diabos... – Ermakov disse e foi derrubado por um homem correndo tão rápido que nem parecia
estar com uma perna ferida e sangrando a horas. – Nikulin? Como ele conseguiu levantar e correr desse jeito.
- Volte aqui, camarada! Não é seguro! – Kudrin gritou já correndo atrás de Nikulin que parecia ter rodas nos
pés de tão rápido que ia.
- Kudrin! Espere! – Tselms gritou.
- Vou atrás deles. – Voikov se prontificou louco para mostrar serviço e, quem sabe, tomar o lugar de Ermakov
como braço direito do chefe.
- Não! – Yurovsky ordenou. – Ninguém mais vai se afastar do grupo. Vamos todos juntos atrás desses idiotas.
Se esbarrarmos com o inimigo teremos mais chances se estivermos juntos. Ermakov, atrás de mim. Voikov, você
e Netrebin cuidam da retaguarda. Olhos e ouvidos alertas, homens. Vamos.
O grupo seguiu procurando os Kudrin e Nikulin pela floresta escura e fria, rastreando as gotas de sangue no
chão, os galhos quebrados e as pegadas. Mas, depois de algum tempo, as pegadas ficaram confusas. Ao invés de
duas duplas de pegadas, várias se sobrepondo confusas surgiram. Tarde demais eles perceberam que aquelas, de
alguma forma insana, eram suas pegadas. Estavam andando em círculos.

~o~
Nikulin corria tanto que nem sentia as dores dos galhos batendo em seu rosto e braços. Ele não sabia pra
onde estava indo, mas sabia que tinha que fugir daquela floresta. Ele vira as garota, a caçula do czar. Ela estava
lá. Em cima das árvores. Ele viu. Ela queria levá-lo para o inferno. Mas ele não ia deixar. Ele ia escapar e ver sua
mulher, seus filhos e sua amante de novo. Ele ia. Nada ia impedir ele de aproveitar a vida. Nem aqueles malditos
Romanov’s mortos!
- Nikulin...
Alguém gritava atrás dele. Mas ele não ia olhar. Não era idiota. Ele ouvira seu pai dizer muitas vezes que
fantasmas não podia pegar quem não olhasse pra ele.
- Nunca, nunca, atenda quando te chamarem uma vez, garoto. Espere chamar três vezes. Se você atender na
primeira e for um fantasma ou um demônio você será morto. Você entendeu, Niku? – Seu pai o dissera muitas
vezes.
- Nikulin! Espere! – Kudrin o chamava correndo feito louco, mas Nikulin não reconhecia sua voz. Kudrin nem
sabia se o homem à sua frente o estava ouvindo. Ele temia se perder na floresta, seguindo seu camarada maluco
e, possivelmente, possuído já que corria mesmo com um ferimento que jorrava sangue. Mas tinha mais medo
ainda de parar e ficar sozinho, perdido, naquela floresta endemoniada.
De repente Nikulin parou e ficou em pé, olhando para frente, como uma estátua. Kudrin depois de mais um
pouco de corrida conseguiu alcançá-lo e então parou a poucos passos. Se aproximou devagar do homem, não
querendo assustá-lo. Kudrin sentia os efeitos dessa corrida louca com sua pancinha de muita carne e álcool,
respirando pesadamente, os pulmões queimando.
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- Por Deus, homem! Você ficou maluco de vez? Temos que voltar. Você precisa de cuidados. – Kudrin disse,
mas Nikulin continuava de costas para ele, imóvel como uma estátua.
- Kudrin. Você...você... – Nikulin estava aterrorizado, seu corpo congelado de medo.
- Sim, camarada. Sou eu. Vou te ajudar. Vamos. – Kudrin tocou gentilmente o braço do homem e, mesmo sob
as grossas camadas de roupa, pôde sentir o quão gelado Nikulin estava. – Ei. Vamos. – Kudrin se aproximou do
lado de Nikulin o suficiente para olhar nos olhos do homem. Seus olhos estavam vidrados, a íris azul quase
totalmente negra com as pupilas dilatadas, olhando fixamente para frente.
- Você está vendo também? – Nikulin perguntou com voz baixa, quase um sussurro.
- Vendo o que? – Kudrin perguntou olhando na direção que Nikulin olhava. De início ele só viu árvores e mais
árvores escuras contra as trevas da noite e a suave luz branco-azulada da neve no solo. Mas então suaves
sombras saindo de três árvores exatamente à frente. Mas não eram sombras. Eram três figuras pálidas, com
roupas escuras, como pijamas simples de serviçais masculinos e uma mulher com um pijama praticamente todo
sujo de lama negra. Os três tinham o rosto e o corpo quase todo corroídos no que parecia ser ferimentos
causados por ácido. Poucos se lembravam daqueles homens, mas Kudrin e Nikulin nunca se esqueceriam deles.
Eles estavam de guarda quando Yurovsky ofereceu, na frente de Nicolau, a liberdade para aqueles três e o
médico, em troca de abandonar a família presa em Ipatiev. Eles se recusaram terminantemente, mesmo após o
próprio Nicolau pedir para que eles fossem embora. Na noite do massacre eles estavam lá. Kudrin e Nikulin os
golpeara com os tiros. Apenas a mulher demorou para morrer. Anna era seu nome. Ela era camareira e ele
sempre a via pela casa servindo fielmente àquela família infernal. Os outros dois eram um servo e um cozinheiro.
Alguma coisa Trupp e Ivan Kharitonov, respectivamente. Ele não esquecia esses nomes porque sempre os achara
adoradores do demônio que comandava os Romanov, assim como Anna e o médico e ele obrigara suas famílias a
pagarem enormes penitências para livrá-las do diabo que comandara aqueles três. Seu primeiro instinto foi rezar
e correr na direção oposta, mas galhos se prenderam em seus tornozelos o derrubando no chão. Nikulin caiu
logo depois, o rosto virado na direção dele de modo que pudesse ver o terror nos olhos um do outro. Eles foram
arrastados por algum tempo, não muito, mas dados os ferimentos causados pelo impacto com pedras, neve,
galhos, formigas, etc, pareceu uma eternidade.
Quando pararam perceberam que estavam de volta à clareira onde haviam acampado. Os galhos se soltaram
de seus tornozelos como cobras se afastando em direção à floresta. Nikulin tremia visivelmente e Kudrin
percebeu que tremia da mesma forma. Um medo selvagem fazia suas entranhas se revirarem. Ambos estavam
deitados no chão, de bruços, tentando se levantar apoiando-se em suas mãos, mas caíam logo em seguida
tamanho era a força dos tremores. Erguendo um pouco a cabeça, viram suas tendas abandonadas exatamente
como deixaram, a fogueir ardia atrás deles e, pelo calor, podiam garantir que ela estava alta. Os dois finalmente
conseguiram se levantar, ainda tremendo muito, e se virar para ver a fogueira. Nunca no mundo haveria um
arrependimento maior do que o deles por terem se virado. Três estacas estavam fincadas no chão, atrás da
fogueira que ardia muito alta. Mas, pior de tudo, Medvedev estava amarrado em uma das estacas na ponta,
havia um corte profundo e vertical em seu corpo azulado. Ele estava vivo olhando para Kudrin através do calor
das chamas de forma aterrorizada, implorando silenciosamente para que o irmão fugisse. Se Kudrin pudesse ele
teria matado o irmão para acabar com o sofrimento dele, mas ele sabia que devia se preocupar mais com ele
mesmo porque, aquelas outras estacas não estavam ali para servir de enfeite, disso ele tinha certeza.
Kudrin se virou, segurando a mão de Nikulin, e tentou correr. Em vão. Pés chutaram no meio da lombar dos
dois homens que caíram de frente no chão. Kudrin quebrou o nariz na queda e Nikulin uivou com dor na perna e
no braço fraturado com a queda.
- Viu só, cachorrinho adestrado? Seu irmão nem tentou implorar por você ou matá-lo para livrá-lo da dor. –
Anastásia disse enquanto os fantasmas de Trupp, o criado, e Ivan, o copeiro, erguiam bruscamente Kudrin e
Nikulin, virando-os de frente para ela e os colocando de joelho com um golpe na parte de trás dos joelhos de
ambos. Anna estava ao lado de Anastásia com um olhar de choro e lágrimas negras caíam de seus pequenos
olhos. – Isso. É assim que ralés como vocês devem ficar perante uma grã-duquesa e seus nobres servos: de
joelhos.
Kudrin movia os lábios em uma prece silenciosa sem desviar os olhos das figuras fantasmagóricas à frente,
Nikulin rezava o Pai Nosso mentalmente, não tendo forças nem para mover os lábios.
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- Rezar agora não vai adiantar nada. – Anna disse se aproximando tão rápido que pareceu se teletransportar
para frente muito perto deles. – Eu rezei para não morrer. Pelo menos tentei. Mas vocês não nos deram tempo
nem para isso.
- Não pudemos nem mesmo nos preparar para encontrar Nosso Senhor no céu. – Trupp disse entre a raiva e a
dor.
- E você nem mesmo rezou em nossos túmulos para nos dar algum descanso. E você se considera um homem
de Deus? – Ivan disse para Kudrin enquanto um líquido negro saía de sua boca escorrando como uma baba
fétida.
- Perdão! Nós achamos que era o certo. Perdão. – Nikulin disse aos prantos quando sua voz finalmente saiu
deformada pelo medo.
- Perdão? – Anastásia disse com uma risadinha delicada. – E perdoar você vai me trazer a vida de novo? Ou a
qualquer um de nós? Nós nem mesmo podemos descansar e você acha que vocês poderão? Vocês me roubaram
o direito de viver, todas as possibilidades que todos nós tínhamos, as coisas que podíamos ter feito. Mas vou lhes
dar uma chance. Como papai diz, temos que governar para o bem do povo. Então, se meus amigos aqui, as
pessoas com quem divido esse tormento, perdoar vocês, eu os polparei e lhes levarei em segurança para fora da
floresta.
Kudrin e Nikulin olharam esperançosos para Anastásia. Ao lado dela mais espíritos surgiram. Os outros
membros da família Romanov e o médico, Eugene Botkin. Se antes os dois homens já rezavam, agora eles
rezavam com mais vigor ainda. Os dois se entreolharam e, numa compreensão mútua, ambos se inclinaram mais,
pousando suas testas no solo, entre suas mãos, e imploraram pelo perdão daquelas almas. Mas talvez mortos
possam ler mentes ou ver suas almas. Quem sabe ne? O fato é que Kudrin e até Nikulin agora tinham plena
certeza de que os Romanov’s eram demônios e um pensamento rápido e furtivo, que não durou mais que um
segundo, passou por suas mentes. Quando saíssem dali, destruiriam os túmulos de todo Romanov que já existiu
na Rússia. Eles levantaram um pouco a cabeça apenas o suficiente para olhar seus algozes e Nikulin viu
rapidamente o semblante do fantasma de Nicolau que tinha um olhar de tristeza muito grande, quase como se
lamentasse algo.
- Muito bem, levantem as mãos se a resposta for sim. Quem aqui perdoa esses homens? – Anástasia
perguntou sem nenhum dos fantasmas desviar o olhar de Nikulin e Kudrin. Ela tinha um sorriso no rosto como se
já soubesse o resultado. E sabia. Ninguém levantou a mão. Ninguém os perdoava.
Nikulin começou a gritar em pânico com palavras desconexas. Kudrin xingou todos os palavrões que conhecia
até soltar uma frase interessante: - Eu vou matar vocês todos!
- AHAHAHAHA! Você? Nos matar? E como, bolchevique dos infernos, você vai matar os mortos? – Alexandra
disse enquanto apenas observava a cena.
Anastásia abriu passagem para Anna que ordenou que o servo e o cozinheiro levassem os dois bolcheviques
para as estacas onde foram presos. Era incrível como aqueles espíritos sem nenhuma carne tinham força. O ódio,
pelo visto, podia fazer milagres até nos espíritos. Kudrin e Nikulin não facilitaram. Os dois se debatiam com
braços e pernas feito loucos, mas o aperto dos fantasmas só se intensificava. Eles podiam sentir mãos e dedos
gelados a tal ponto que deixavam marcas de queimadura negra causadas pelo frio. De fato Kudrin chegou a ver
de relance uma marca negra de mão em seu braço que atravessara os grosso tecido de sua roupa. Pedras
pontiagudas como lanças foram usadas para prendê-los nas estacas. As pedras eram tão fortes e grandes que
ultrapassaram seus braços e a madeira da estaca. De onde aquilo saíra? Eles não tiveram tempo para pensar.
Anastásia cortou a barriga de Kudrin num cor horizontal e suas vísceras caíram de seu corpo enquanto ele olhava
horrorizado. Nikulin teve mais sorte, se é que se pode chamar assim. Seus pulsos foram cortados na vertical de
forma que, mesmo na remotíssima possibilidade de escapar dali, era um ferimento que não podias ser suturado.
Ele morreria de qualquer forma, mas sofreria menos. Já perdera muito sangue e com aqueles cortes ele logo
ficaria tonto e iria apagar. Morreriam ali por esses ferimentos. Ou não.
Da direita para esquerda, Medvedev, Kudrin ao centro, e Nikulin na outra ponta olhavam os fantasmas abaixo
os encarando em frente à foqueira. No centro, Anna, Ivan e Trupp, e o resto dos fantasmas em linha reta nas
laterais. Os três servos ao centro se viraram para a fogueira, pegaram uma tocha improvisada com o fogo na
ponta e se viraram os encarando.
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- Vocês nos chamaram de bruxos, seguidores do diabo. – Anna disse. – Mas eu ia à igreja duas vezes na
semana, sempre segui os mandamentos de Nosso Senhor e nunca fiz nada de que pudesse me envergonhar.
- A coisa mais terrível que já fiz foi abater aves para servir nos meus pratos. – Ivan disse.
- E eu tive algumas amantes e me arrependo muito disso hoje. Mas nunca matei ninguém ou serví ao diabo. –
Trupp disse.
- Vocês mataram cruelmente muitas pessoas. Nikulin estuprou muitas moças indefesas e as vendeu para
bordéis. Kudrin abusou de muitos garotos de rua e matou alguns que ameaçaram contar o que ele fez. Vocês sim
são servos do diabo. E sabem qual a forma mais tradicional de matar servos do diabo? – Anna completou e, sob o
olhar aterrorizado de Nikulin, de ódio de Kudrin e de decepção de Medvedev, os três servos incendiaram as
estacas. Os gritos de agonia dos homens ecoaram pela floresta enquanto os fantasmas no chão dançavam em
duplas como se estivessem ouvindo uma bela valsa de Tchaikovski num baile. E talvez estivessem mesmo, afinal,
os gritos de dor dos inimigos são músicas para os ouvidos de quem se vinga.
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Um olhar gelado
- Como conseguimos nos perder? – Voikov dizia cansado.
O grupo andava a horas e não havia rastro de Kabanov, Nikulin, nem de nada. A natureza parecia
estranhamente quieta. Não havia nem sinal dos animais que deviam estar caçando durante a noite. As árvores
parecia paradas no tempo sem nenhuma brisa soprando em suas folhas. Todos estavam cansados, mas o que
preocupava mesmo era aquela densidade no ar, aquele frio que, claro, poderia ser apenas porque a região era
fria mesmo, mas não era isso. Não era um frio que se sente na pele. Era um frio por dentro, como se todos os
seus órgãos recebecessem ocasionalmente lufadas de ar frio. Todos sentiam, mas ninguém queria parecer
ridículo comentando isso. Mesmo Netrebin, sempre tão calado, puxava assunto de tempos em tempos tentando
desviar a atenção daquela sensação incômoda e inexplicável. Ele não era um homem muito religioso, só um
pouco mesmo, mas naquele momento ele desejou se lembrar de qualquer oração que ouvira desde pequeno.
Em vão. Sua mente parecia nublada com os acontecimentos da noite e aquela sensação esquisita. Sua mãe era
uma inglesa que se casara com seu pai a anos em circunstâncias nada felizes. Seu pai fora obrigado por seu avô
materno, sob a mira de uma arma, a se casar com sua mãe que havia sido seduzida e desonrada por ele. Ele
casou e a levou para a Rússia onde tinha trabalho nas construções, mas sua mãe era claramente infeliz com as
humilhações, o alcoolismo e as ofensas do pai. Netrebin temia o pai mais do que amava. Era um homem instável
e perigoso até para sua família. Sua mãe era uma mulher silenciosa e discreta refletindo a educação inglesa que
tinha e ele herdou isso dela, além do conhecimento fluente em inglês que ela o ensinara desde pequeno. Sua
mãe o obrigava a falar os dois idiomas, inglês e russo, dentro de casa para, segundo ela, ‘ter mais chances na
vida’. Funcionou. Na juventude sua fluência em ambos os idiomas serviu para que ele fosse recrutado por grupos
rebeldes que compravam armas de gangues inglesas, servindo como interpréte e subindo de cargo rapidamente.
Sua eficiência permitiu que ele se tornasse famoso no submundo e acabasse entrando para o grupo
revolucionário que agora governava a Rússia.
- Não se preocupe, Voikov. Daqui a pouco o Sol nascerá e poderemos nos orientar e aquecer melhor. –
Yurovsky disse atraindo a atenção de Netrebin.
- O Sol já não deveria ter nascido? – Netrebin perguntou o que com certeza todos ali já tinham pensado a pelo
menos meia-hora atrás.
- Talvez tenha nascido, mas esteja escondido atrás de alguma das montanhas próximas ou não tenhamos visto
ainda porque não se ergueu completamente e essas árvores densas não estão ajudando. – Yurovsky disse, mas
nem ele mesmo acreditava.
- É. Talvez. – Tselms murmurou.
- Só se o Sol nasceu pelo avesso. – Ermakov disse de péssimo humor. Mas ele tinha razão. Estava muito escuro
para acreditar que estivesse sequer no crepúsculo matinal. E isso entrava para a lista de coisas estranhas naquela
floresta nas últimas 24 horas porque àquela hora o Sol já deveria ter nascido. Não fazia sentido. Nada fazia.
- Pensando no garoto, camarada? – Vakanov disse divertido com a referência à Alexei que Ermakov fez sem
perceber.
- O que? – Ermakov perguntou confuso.
- O que você disse sobre o Sol nascer pelo avesso. O garoto Romanov dizia muito isso quando amanhecia mais
frio do que a noite anterior. Não se lembra? – Voikov disse em tom de deboche.
- Eu disse? Nem percebi. Nunca perderia meu tempo pensando naquele garoto mimado e fracote. – Ermakov
respondeu.
- Mimado até concordo, mas fracote não. O garoto tinha fibra, mais do que o pai. – Tselms disse torcendo
para que os espíritos o ouvissem elogiando Alexei e o polpassem de sua fúria.
- É melhor não falarmos dos mortos por enquanto. – Netrebin disse todo arrepiado. Ele odiava lembrar
daquela noite. Ainda tinha pesadelos com o olhar do garoto quando o matou. Ele já tinha matado muitas vezes
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antes e cada morte acrescentava um peso em sua mente. Matar era sempre um fardo. Mas aquela noite, aquelas
mortes, foram mais difíceis de suportar. Ele nunca havia matado mulheres ou crianças antes e nunca sem um
ataque prévio à ele, obrigando-o a matar para se defender ou matar em guerras.
- Com medo, Natrebin? Ficou frouxo como Kudrin agora? – Ermakov disse com aquela raiva tão comum em
seu interior.
- Pare com isso. – Yurovsky disse parando. Todos pararam para ouví-lo. – Vamos descansar um pouco. Todos
precisamos. Tselms, você pega o primeiro turno de vigia. Qualquer sinal dos brancos ou de qualquer merda, me
avise.
- Sim. – Tselms dissera se afastando um pouco do grupo para ficar numa posição melhor de vigia.
Todos se deitaram no chão arrumando-se o melhor possível para tentar dormir. O cansaço superou a falta de
conforto rapidamente e todos apagaram. Algum tempo depois um uivo ecoou tão alto e sinisto que acordou a
todos. Ou quase todos. Tselms e Netrebin tinham desaparecido. Talvez estivessem na mata fazendo suas
necessidades ou pegando alguma coisa para comer, não que houvesse muitas frutas nas árvores naquela época.
Quanto tempo dormiram? Horas? Minutos? Ninguém saberia dizer. Yurovsky chamou os dois desaparecidos o
mais discreto que pôde temendo que os inimigos estivessem por perto, mas não houve resposta. Ermakov,
Voikov e Vakanov já de pé ajudaram a procurar pelos companheiros de tragédia, mas foi em vão. Eles não
poderiam ter ido longe. As mochilas de ambos ainda estavam no mesmo lugar onde haviam deixado quando o
grupo foi dormir. Onde eles estavam? Os brancos os levaram? Mas porque só eles dois? Porque não pegar o
grupo todo logo? Porque Tselms não gritou ou atirou quando os viu? O homem era supersticioso e medroso, ou
seja, não ficaria em silêncio vendo qualquer coisa que pudesse ferí-lo. A mente de Yurovsky girava entre tantas
dúvidas.

Algum tempo depois dos roncos baixos dos homens terem começado, Tselms mantinha-se alerta em seu
posto. Yurovsky fizera bem em lhe dar o primeiro turno porque ele não conseguiria dormir com todo aquele
medo. Seus olhos constantemente arregalados viram com a visão periférica quando Netrebin se levantou. Não
foi ele se levantar o problema, foi como ele levantou. Se usar as mãos, os braços ou mesmo parecer usar as
pernas. Ele simplesmente levantou como se uma corda o erguesse pela cabeça o fazendo ficar de pé. Seus olhos
estavam abertos, mas ele não parecia ter consciência de nada. Tselms tentou se inspirar em seu líder e ser
racional. Imaginou que Netrebin podia estar tendo uma crise de sonambulismo pelo excesso de álcool no sangue
e o cansaço, ignorando deliberadamente a maneira estranha como ele levantara. Tselms ouviu muitas histórias
sobre acordar sonâmbulos e não quis arriscar. Netrebin começou andar em direção à floresta e, respirando
fundo, Tselms foi atrás dele. Foram só cinco ou seis passos, disso ele tinha certeza. Mas quando ele alcançou o
braço do colega, um calafrio o atingiu seguido por um leve murmúrio de folhas vindos de trás dele. Ele olhou
para trás e, no susto, soltou o braço de Netrebin. Atrás de Tselms onde deveria haver uma pequena clareira com
seus camaradas dormindo ao redor de uma pequenina fogueira havia uma floresta densa, gélida e fria, sem
pegadas ou qualquer traço de que ele havia passado por ali. Pior foi quando se voltou para Netrebin. Ou tentou
porque Netrebin parecia ter evaporado no ar, sem rastros, som de passos se afastando. Nada. Era como se a
floresta tivesse brotado do nada em segundos e Netrebin tivesse virado uma folha em uma das muitas árvores.
Nunca em toda sua vida Tselms se agarrou tanto a um crucifixo e à sua arma. Seu pavor era tanto que ele tinha
certeza que ia enlouquecer.

Netrebin se viu de pé em frente a um pequeno lago com gelo fino o cobrindo. Como chegara ali? Nunca
andara durante o sono. Ainda confuso, tentando se localizar, torcendo para não ter se afastado muito de seu
grupo, ele olhou para um lado vendo um cachorro grande e bonito brincando de pegar gravetos com um rapaz
de costas.
- Ei garoto! Como veio parar aqui? – Ele perguntou com a vã esperança de ser um rapaz perdido precisando de
ajuda como ele. Estar naquele inferno sozinho era tudo que ele não queria.
- Me separaram da minha família. – O garoto disse ainda de gostas pegando o graveto que o cachorro lhe
trouxera e se preparando para jogar de novo. – Eu era bom com navios.
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- Sei. Mas onde está sua família? – Netrebin perguntou tentando afastar aquela sensação ruim que fazia seu
estômago se contorcer.
- Por aí. Você fala inglês? – O garoto perguntou.
- Sim. Minha mãe é inglesa. – Netrebin disse.
- Era. – O garoto respondeu. – Ela morreu hoje cedo.
- O que? Não, garoto. Ela está bem. Não tem graça brincar com a morte dos outros. – Netrebin disse ficando
um pouco irritado, dando alguns passos decidido a olhar na cara no rapaz e dar uma bronca nele.
- Tirar a vida dos outros tem graça, então? – O garoto perguntou. – Ou você só não se importa? Odiava
quando minha mãe tentava me fazer falar inglês. Eu gosto do som do russo. Gosto de me vestir como russo.
Netrebin congelou no lugar, a um braço de distância do rapaz. Ele conhecera alguém que também odiava
quando sua mãe o obrigava a falar inglês. Alguém com aquela mesma altura. Mesmo porte físico. Ele sentia que
não ia gostar da resposta, mas perguntou mesmo assim. – E quem é sua mãe?
O garoto se abaixou para pegar o graveto que o cachorro o entregou, mas não jogou de volta. Ele abaixou os
braços e virou calmamente. Netrebin gritaria se seus pulmões não parecessem pesar uma tonelada agora. Aqules
olhos fundos, as marcas de perfuração na roupa, o sangue manchando aqui e ali, os cabelos negros, as
queimaduras nojentas causadas por ácido ainda grudentas, os dentes parcialmente quebrados, e o olhar. Aquele
olhar que o atormentara em pesadelos por noites e mais noites.
- Alexandra Feodorovna. – O fantasma de Alexei disse com um olhar acusatório, frio e perigoso. – Você devia
saber. Roubou as joias dela depois que a mataram e quebraram seus ossos com facadas. Pega!
O cachorro, antes tão calmo e fofo, ficou com olhos amarelos brilhantes, seus dentes à mostra pareciam ter o
dobro dos dentes de um cachorro normal, até seu tamanho mudou o tornando quase do mesmo tamanho de
Alexei. O cão rosnava furiosamente e babava de pura raiva. Ele que não ia esperar. Virou-se e correu como se sua
vida dependesse disso. E, bom, dependia mesmo. Mas o animal era grande e suas chances eram poucas. Onde
diabos estava Tselms? Porque não o ajudara quando o vira se levantando? Será que o filho da mãe tinha dormido
em seu posto e não o vira se levantar? Sua mente girava com muitas dúvidas, pânico, raiva, enquanto ele corria
pela floresta ouvindo o cachorro correr furiosamente atrás dele. Em certo momento ele ouviu à distância o ronco
de Ermakov um pouco mais alto que dos outros. Ele gritou várias vezes, mas ninguém pareceu ouvi-lo. Ele tinha
que chegar até o grupo, pegar sua arma, descarregar naquele animal e torcer para isso matar aquela coisa ou
atrasá-la. Depois ele mijaria no túmulo do garoto Romanov por fazê-lo passar por isso. Quando viu a luz fraca da
fogueira entre algumas árvores, seu ânimo aumentou e ele correu mais rápido.
- AAAAH! – Ele gritou quando uma garota de pendurada de ponta cabeça num galho acima dele desceu do
nada ficando cara a cara com ele.
- Vai a algum lugar? – Anastásia perguntou ironicamente.
Netrebrin desviou da alma penada virando um pouco para a esquerda, ainda vendo a luz da fogueira. Passou
por uma árvore, só uma árvore, perdendo momentaneamente a visão da fogueira. Só o tempo de passar por
uma maldita árvore. Quando passou por ela esperando ver a fogueira deu de cara com o lago congelado onde
Alexei aguardava de braços cruzados, batendo um pé impacientemente no chão.
- O que? Impossível! – Netrebin murmurou para si mesmo. Ele esfregou os olhos não acreditando em seus
olhos. Quando os abriu de novo Alexei não estava lá. Ufa.
- Vamos nadar? – A voz de Alexei atrás dele fez todos os pêlos de seu corpo se eriçarem. Braços fortes, fortes
demais para um garoto de 13 anos, o agarraram pelos ombros e empurraram para frente. Netrebin tentava parar
o movimento com auxílio de seus pés como freios, mas era como se fosse empurrado por um trem. – Me solta,
demônio! Eu não vou com você pra lugar nenhum!
- Só um mergulho. Não vai doer. – Alexei disse e sua voz soava como se ele sorrisse. E sorria. – Mentira. Vai
doer muito.
Netrebin sentiu as mãos saírem de seus ombros que ardiam onde elas tocaram por cima das roupas. Ele
estava na beira do lago, bem na beirada mesmo. Quando respirou aliviado, foi o último alívio que sentiu. O cão
veio correndo e o golpeou com a cabeça em sua coluna o jogando à uma boa distância. Ele derrapou no gelo
fino, parando no meio do lago. O gelo foi trincando para todos e Netrebin ficou de quatro sobre o gelo com
medo de mover qualquer músculo e acabar afundando naquela água gélida. Alexei flutuou sobre o gelo e pairou
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à frente do homem com uma expressão de raiva que faria o mais corajoso dos homens pedir o colo da mamãe.
Ele pegou o graveto de seu bolso, estendeu o braço e olhou para Netrebin.
- Não. Por favor. – Netrebin disse num sussurro implorando por sua vida.
Alexei soltou o graveto que caiu no gelo o fazendo se quebrar, levando Netrebin para baixo nas águas negras
e geladas do lago. Ele afundou com aquela sensação sufocante, o gelo o aingindo como mil facas em cada um de
seus póros e o pânico piorando tudo. Ele não queria morrer. Não podia morrer assim. Ele tinha planos de ser um
grande herói, um homem importante. Ele não ia morrer. Ele se recusava a morrer.
Netrebin usou sua famosa força de vontade, seu instinto de sobrevivência, e nadou para cima. A esperança
cresceu em seu intimo conforme via a fraca luminosidade onde o gelo se quebrara. Ele subiu. Subiu. Subiu.
Quando estava quase saindo da água, sua mão quase tocando a linha que separava água e ar, o rosto de Alexei
apareceu na abertura e ele soprou simplesmente. Com seu sopro o gelo se formou em segundos fechando a
abertura e se tornando mais grosso. A esperança de Netrebin se despedaçou em mil pedaços dando lugar ao
desespero. Ele estava quase sem fôlego, tentou bater no gelo, mas era inútil. Ele não teria forças mais nem para
quebrar o gelo fino, quanto mais aquele que parecia um pouco mais forte. Mas ele tentou algumas vezes mesmo
assim. Quando começou a perder a consciência sentiu braços o puxarem para baixo e se virou vendo os olhos
pequenos, fundos e furiosos que tanto o atormentaram em seus pesadelos a um ano. O fantasma de Alexei o
puxou para baixo devagar fazendo as dores da pressão da água se tornarem muito piores do que já eram. O
ouvidos do homem zumbiram, doeram, sangraram. Seus membros ficaram pesados e dolorosos. Seus pulmões
arderam. Em segundos, que lhe pareceram 100 anos, Netrebin morreu com olhos aterrorizados focados nos
olhos furiosos de Alexei. O fantasma do menino apareceu ao lado do cachorro fora do lago momentos depois,
olhando para o lago congelado, enquanto o animal soltava um uivo assustador.
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Em sua mente
Rússia Czarista, 1915.
- Papa... isso...isso não é justo. – Olga dizia entre lágrimas, seu coração como se fosse se despedaçar.
- Porque fez isso, Olga? Você sempre foi tão responsável... – Nicolau disse e soltou um suspiro cansado. Aquilo
não podia vazar. Seria um escândalo. Já foi tão difícil acabar com os boatos sobre o interesse da filha mais velha
pelo simples oficial. Agora... Agora seria um desastre! Ele não poderia permitir que essa história vazasse. Nunca.
Sua imagem já não era das melhores e temia que a família imperial perdesse muito mais poder se algo assim
chegasse aos ouvidos do povo e de seus inimigos.
- Eu... Me desculpe, papa! Mas eu...amo Pavel. Não pude evitar. Eu sei que ele também me ama... – Olga
estava vermelha de tanto chorar.
- Ele ama sua posição social, Olga. Apenas isso. Ele é casado com a dama de companhia de sua mãe, você
esqueceu isso?
- Ele casou porque vocês obrigaram ele com a ameaça de mandá-lo para longe! Foi nossa única chance de
ficarmos próximos para...
- Para fazer bobagem! – Nicolau gritou e Olga deu um pulo de susto na poltrona. Nicolau era muito paciente
com ela, nunca o vira tão furioso. Ele passou a mão pelos cabelos, num gesto nervoso, tentando respirar fundo.
Não adiantava nada brigar agora. Ele precisava ser prático. – Só temos duas opções, Olga. E acho que sabe quais
são elas.
- Eu não posso me desfazer...
- Você terá que se desfazer, cedo ou tarde. A questão é exatamente essa: morte ou doação. Você sabe que
não há outra opção. Não podemos arriscar o prestígio de nossa família com um escândalo desses. – Nicolau disse
já sabendo qual seria a resposta de Olga e criando um plano para essa situação toda.
- Eu... Eu... não vou matá-lo. Prefiro entregar a alguém que o ame e que eu possa estar próxima vendo seu
crescimento, pelo menos de vez em quando. – Olga respondeu decidida, mas com uma dor no peito.
- Você ficará algum tempo ainda na Cruz Vermelha auxiliando os soldados feridos, mas, quando estiver perto
de ser notada essa sua...desobediência... iremos forjar um mal-estar, uma fraqueza emocional – Nicolau disse
aproveitando o estado de espírito da moça que sempre fora muito emotiva e que era em parte a causa de todo
esse problema – então a afastaremos e daremos isso como desculpa para sua ausência pelos meses que
faltarem.
- Mas... E quanto a quem ficará com meu... – Olga disse e se calou com o olhar feio de seu pai.
- Nunca diga essa palavra em voz alta! Não quero nem que pense nela! Se alguém descobrir... Quem ficará
com ele será o próprio pai com a esposa dele. – Nicolau enfatizou a palavra ‘esposa’ para que sua filha se
lembrasse de seu duplo erro. – Eles aceitarão em troca de uma grande soma em dinheiro que lhes darei e a
ordem para que se afastem daqui por enquanto para não levantar suspeitas. Depois pensaremos numa forma de
você se manter próxima. – Ele começou a sair enquanto Alexandra entrava no quarto para acalmar e aconselhar
Olga, mas parou no caminho. – Olga.
- Sim, papa. – Ela disse de cabeça baixa, seu corpo tremendo com as lágrimas mal contidas.
- Eu sinto muito, mas você sabe que é o melhor para sua família e para essa criança. – Nicolau disse e saiu com
o coração pesado. Ele odiava ter que tomar decisões difíceis assim.
Meses mais tarde, Olga fingiu um mal-estar onde trabalhava na Cruz Vermelha atendendo os soldados feridos
na Primeira Guerra. Não foi difícil. Ela realmente sofria com aqueles ferimentos terríveis e a dor e o desespero
estampados nos rostos dos homens. A família imperial informou ao povo que Olga tivera problemas dos nervos e
uma tristeza profunda por causa dos horrores que vira e estava sendo tratada pelo médico da Corte, Eugene
Botkin. Bem, estava mesmo, mas não no castelo e não de tristeza. Olga dera a luz a um menino, filho dela com
seu amor da juventude, o oficial Pavel Varonov. A criança ficou poucos dias com Olga e logo foi levada por Pavel
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e sua esposa para ser criado como filho primogênito deles. Quando Nicolau abdicou do trono 2 anos depois,
enviou um mensageiro às presas para Pavel e o ordenou que fugisse para Inglaterra com uma carta de
recomendação o indicando para seu primo, atual rei inglês, para que o protegesse. Nunca soube se o mensageiro
chegara a tempo e passou o resto de seus dias rezando para que o anonimato tivesse protegido seu único neto.

Floresta de Ipatiev, Ecaterimburgo, 1919.


Yurovsky agora tinha plena certeza que seus subordinados estavam sendo caçados um a um pelos brancos, os
inimigos da revolução, apoiadores da família real, em algum tipo de jogo sádico vingador. Mas como eles
estavam fazendo isso sem deixar rastros ainda era um mistério. Cansados, confusos e sem nenhuma ideia da
direção que Tselms e Netrebin tinham seguido, Yurovsky achou melhou continuarem ali e tentar descansar ao
máximo, mas sem dormir, até o dia clarear. Não adiantava nada correr por aquela maldita floresta sem um plano
e cansados como estavam. Ele tinha esperança de que o efeito das drogas que ele tinha certeza que foram
colocadas em suas bebidas passasse com o tempo ou os inimigos se revelassem para um ataque frontal. Mesmo
se suas chances fossem pequenas, lutar contra o que podiam ver era melhor do que aquela loucura.
- Os covardes desgraçados! Quando eu colocar minhas mãos neles... – Voikov bradava.
- Vai fazer o que? Fazer cara feia pra eles? Você late, mas não morde. – Ermakov provocou como sempre fazia
pra mostrar ao outro homem que, por mais que ele tentasse, não tinha chances de tomar seu lugar.
Aquela conversa já estava deixando Yurovsky cansado. Ele era auto controlado, disciplinado como um bom
militar, mas o cansaço e o clima tenso o estavam deixando impaciente. Vaganov por outro lado estava muito
quieto num canto. Muito, muito, muito quieto. Ele era um revolucionário que se juntou à causa depois de ouvir
um discurso inflamado de Kudrin e crer naquele caminho, não na ideia de que a família real era possuída por
demônios, mas na ideia de que o czarismo não trazia nada de bom para o povo. No início ele realmente
acreditava que estava fazendo um bem enorme para seu país, que era um herói, mas a guerra cobra um preço
alto que nem sempre estamos dispostos ou aptos a pagar. Alguns anos servindo à causa, causando ataques
sorrateiros e matando qualquer um que tentasse impedir o avanço da revolução, tornaram Vaganov cada vez
mais silencioso, instável com as pessoas mais próximas, solitário por causa disso, e constantemente vigilante a
ponto de ser quase paranoico. Quase. Mas esse ‘quase’ estava desaparecendo naquela floresta com tantas coisas
estranhas. A paranoia estava dominando sua mente e ele sabia disso, por isso estava mais quieto num canto
tentando se controlar.
Seu pai fora um médico e aprendera muitos truques de medicina e primeiros socorros com ele. Quase se
tornara médico, mas os anos antes da revolução tomaram todo seu tempo e empenho. Entretanto era um auto
didata e seus companheiros reconheciam o conhecimento e talento natural do homem que sempre ajudara os
feridos da melhor forma possível nas condições precárias antes da revolução. Os superiores até lhes forneciam
medicamentos e todo material disponível para que ele atendesse os companheiros. Isso abriu portas para uma
prática que Vaganov não se orgulhava. Para aguentar os horrores que vira e que fizera passou a utilizar algumas
substâncias dos medicamentos que o acalmassem. Resultado: a dependência física dessas substâncias se instalou
em seu organismo. Sem elas ele não conseguia controlar a sensação crescente de ser perseguido e, uma vez,
matara um mendigo na rua em meio a uma crise de abstinência e só percebera o que fizera quando o homem já
estava morto, com ele em cima da criatura de rosto completamente desfigurado, uma pedra enorme em ambas
as mãos, vermelhas com o sangue, bem como toda sua roupa. Ele nunca comentara isso com ninguém, mas o
fato se repetiu mais duas vezes em crises de abstinência quando ele achou que era forte o bastante para se livrar
das substâncias sozinho, mas acabou matando uma mulher que jogou depois no rio com os bolsos dela cheios de
pedras para não flutuar, e, meses depois, um jovem que nunca soubera a idade e nem queria. Era melhor não
saber mesmo. Infelizmente, seus ‘remédios’ ficaram na tenda quando fugira de um animal qualquer com seus
companheiros e ele não tinha muito nos bolsos. Se eles não saíssem daquela floresta até o fim do dia que estava
começando, ele teria uma crise com certeza.
- Parece uma maldição. – Vaganov disse e só então percebeu que falara em voz alta.
- O que parece uma maldição? – Yurovsky que estava mais alerta ouviu, mas Ermakov e Voikov estavam
ocupados demais provocando um ao outro como dois galos disputando um galinheiro. Querendo se afastar deles
para não enfiar uma bala na cabeça dos dois, se aproximou e sentou ao lado de Vaganov.
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- Bobagem. Só uma coisa que me passou pela cabeça agora. – Vaganov disse.
- Fale. – Yurovsky disse com aquele tom meio desconfiado, que ainda seria típico dos bolcheviques mesmo dali
a décadas. Tudo para eles era motivo de desconfiança.
- Lembra-se de uma brincadeira que os guardas fizeram desenhando um pênis na parede da casa Ipatiev para
ofender os olhos virginais das filhas do czar? – Vaganov se lembrou.
- Sim. Idiota, mas engraçado. O que tem isso? – Yurovsky perguntou.
- Eu estava ao lado daquela Olga de nariz arrebitado. Ela ficou furiosa. Lembro-me que disse à ela para se
acalmar que ela não era mais a grã-duquesa e ali os revolucionários podiam fazer o que quisessem. Ela se virou e
falou que nós nunca governaríamos a Rússia por muito tempo porque éramos perdidos na floresta que era nossa
própria ambição. – Vaganov riu da menina na época, mas agora, naquela floresta, perdidos, com a discussão de
Ermakov e Voikov que sempre pareciam competir pra ser o braço direito do chefe, e a lembrança da bala que
enfiara na cabeça de Olga enquanto ela se benzia, o fez se arrepiar sentindo o próprio crucifixo que Tselms lhe
dera horas antes.
- A garota Romanov ficou vermelhinha de vergonha, mas ficou uma gracinha assim. Queria muito ter
aproveitado aquele corpinho aristocrata. – Ermakov disse ouvindo um trecho da conversa e deixando Voikov
irritado e humilhado. – Ia mostrar pra ela como é um pinto de verdade. – Ele acrescentou com um sorriso
nojento na cara.
- Ela com certeza já sabia como um homem é. – Yurovsky disse acendendo um cigarro dos que tinha no bolso
e soltando a fumaça.
- Como assim? A chorona tinha se divertido já? – Voikov se aproximou. Ele detestava Olga porque ela era
muito emotiva, fresca ao seu ver, e nunca aceitara o fato de que fora Vaganov quem acabara com a vida dela e
tão rápido com uma bala na cabeça. Ele queria ter aproveitado as mulheres da família vivas.
- Bom, ela precisaria já que tivera uma cria bastarda. – Yurovsky disse sem olhar para as caras espantadas de
seus colegas, focado em soprar a fumaça do cigarro.
- Os Romanov tiveram descendência? – Vaganov quase engasgou com a própria saliva.
- Um moleque de 2 anos, no máximo, na época. Filho daquele oficial júnior que a grã-duquesa ficara
enrabichada em 1913. A vagabunda não respeitou nem o casamento dele com a dama de companhia da mãe
dela. Nicolau Sangrento descobriu e orquestrou um plano para que a cria nascesse e depois fosse dada para
adoção. – Yurovsky disse sem nenhuma emoção na voz.
- Rameirazinha! – Ermakov disse gargalhando.
- Quer dizer que a família poderosa se misturou com a ralé? AHAHAHAHA! – Voikov ria tante que ele e
Ermakov até se apoiaram um no outro para gargalhar como hienas enlouquecidas.
Yurovsky estava focado em seu cigarro. Ninguém notou que Vaganov tremia visivelmente. O homem sentia
como se seus órgãos chacoalhassem dentro dele. Ele olhou para uma das mãos e elas tremiam tanto que ele
tinha dificuldade para enxergar as linhas das juntas dos dedos. A mão começava a parecer um borrão. Ele
colocou as mãos nos bolsos do grosso casaco e se levantou. Pior erro possível. Tudo começou a rodar e uma
música muito alta tocou em sua cabeça como se toda uma orquestra tocasse dentro de seu crânio. Ele colocou
ambas as mãos na cabeça e tomou de joelhos no chão, o corpo curvado para frente. Ele não podia nem mesmo
gritar porque sua garganta não obedecia, seus lábios tremiam tanto que seus dentes batiam um no outro sem
parar. Ele até mesmo ouvira um ‘crack’ na mandíbula e viu quando pedaços de seus dentes caíram no chão à sua
frente.
Yurovsky foi o primeiro a perceber quando Vaganov se levantou e começou a cair de joelhos. O superior
chamou a atenção dos risonhos companheiros e se aproximaram de Vaganov perguntando o que estava
acontecendo.
- A donzela está com enxaqueca? Parece a czarina. – Voikov brincou relembrando como Alexandra sempre
reclamava de enxaquecas e virara piada entre o povo russo.
- Pare com isso, camarada! Isso parece sério. – Yurovsky disse tentando se aproximar de Vaganov, mas ele
tremia tanto que os contornos de seu corpo estavam embaçados. Quando conseguiu tocá-lo na bochecha, tirou
sua mão rápido. O homem estava tão gelado que era como tocar em um iceberg.
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Vaganov sentiu arranhões dentro dele, como se tivesse engolido mini-ursos vivos e agora eles estivessem
tentando sair de seu corpo. Os tremores pioraram. Sentiu algo quente tocar sua bochecha e logo sumir, mas não
sabia o que era. A música em sua cabeça estava cada vez mais alta em um nível quase insuportável, seus ouvidos
latejavam. A dor em sua barriga piorou, com aqueles arranhões cada vez mais fortes. Ele se sentia rasgando de
dentro pra fora. Colocou os braços na barriga e tentou gritar. Em vão. Tudo acontecia ao mesmo tempo. A
música estridente em seu crânio, os arranhões internos, os tremores, seus dentes se quebrando com o impacto
dos tremores, seus ouvidos latejando como se fossem explodir. Tudo estava num nível insuportável quando um
vulto branco passou por ele, circundando-o como se dançasse ao redor dele tranquilamente ao ritmo da música
estridente em sua cabeça. O vulto se tornou mais visível conforme as dores e tremores dele pioravam. Ouviu
risos femininos e de uma criança no meio daquela barulheira toda. O vulto então parou na frente dele, se
balançando suavemente de uma lado pro outro, o encarando com um olho azul claro e o outro inexistente,
sendo substituído por uma queimadura nojenta, suja de terra e um pó branco. A moça tinha um olhar triste e
lágrimas escuras como lodo escorria do único olho bom. No meio de sua testa havia um furo que jorrava um
sangue grosso que fedia demais.
Olga? Vaganov se perguntou e, assombrosamente, mesmo não tendo dito em voz alta, a mulher parecia ter
ouvido porque ela sorriu para ele. Não era um sorriso maldoso, era um sorriso tranquilo e educado. Mas
Vaganov ficou mais assustado quando ela chegou um pouco mais perto e puxou o cabelo dele para trás, fazendo
seu corpo se erguer um pouco com a cabeça tombada para trás, piorando muito suas dores e tremores. Ele já
nem sentia seus dentes e tinha quase certeza que estavam todos quebrados. Ela colocou a unha em sua testa, no
mesmo lugar onde ela tinha um furo, e apertou. A unha de Olga parecia uma faca e lentamente foi entrando no
crânio dele até que seu dedo entrou completamente no buraco, fazendo Vaganov gritar mentalmente e se
desesperar mais ainda porque nenhum som saía e não sabia como nada daquilo era possível, como sair disso, o
que fazer.
A moça soltou sua cabeça a jogando para frente e só então Vaganov notou que a menina não tinha um dedo.
O dedo que ela literalmente enfiara em seu crânio. O dedo que ele roubara secretamente de seu cadáver e
quardara em um frasco de formol em sua casa como um troféu. Ela sorriu, cruelmente desta vez, percebendo
que ele tinha entendido. Ela voltou a dançar ao redor dele e ele vomitou um líquido claro, depois amarelado, os
tremores tão intensos que mal se enxergava os contornos do homem e aquela músicas estridente que só tocava
em seu crânio. O vômito não parava, na verdade só piorava com os arranhões que sentia. Quando não tinha mais
nem bile para vomitar ele vomitou sangue, mais sangue e então, com uma dor avassaladora, vomitou sangue
com seu próprio estômago. Isso fez até Yurovsky virar a cabeça enojado.
Mas não diminiu. Vaganov até então ajoelhado, caiu encolhido, com os braços na frente da barriga, se
contorcendo sobre o próprio vômito sangrento, tremendo. De repente ele gritou e colocou as mãos na própria
cabeça, seus ouvidos sangravam, seus tímpanos estavam em frangalhos, mas ainda sim a música tocava mais alta
em sua mente e o fantasma dançava ao seu redor. Não. Não era um fantasma. Eram vários. A família morta e
mais alguns. Os servos? Ele não tinha certeza. Estava enlouquecido de dor, desespero e medo. Mas aquilo não
aprava. Não diminuía. Só piorava. Tudo só piorava. Foi quando ele começou a bater a própria cabeça no chão
repetidas vezes, sem parar, nem mesmo se importando com a dor. Ele estava completamente louco. Em dado
momento os companheiros saíram do choque perante aquela cena grotesca e tentaram fazer o homem parar,
mas ele se soltou com a agilidade de um gato e correu até uma árvore próxima batendo sua cabeça no tronco
até perder a noção de tudo, sem forças pra mais nada. Ele caiu fraco, quase morto, desfigurado, imóvel. Ermakov
se aproximava lentamente pra verificar se o louco estava morto, mas parou quando do nada, por algum milagre,
Vaganov levantou, de costas para ele.
- Como ele está vivo? O miserável nem rosto não tem mais. – Voikov dizia abismado.
Eles não viam que Olga o influenciou para que seu corpo semi-morto levantasse e então ela o empurrou para
frente, fazendo parecer que ele corria alguns passos até se chocar uma última vez com uma árvore muito grossa
que parecia ter centenas de anos. Agora sim, ele estava morto e Olga dançava ao redor dele tranquila. De
repente ela parou, virou-se e seu olhar pousou em Yurovsky. Aquele olhar era muito mais terrível do que o olhar
que Vaganov vira. Não era tristeza. Era ódio. Yurovsky não podia vê-la, mas sentiu um mal estar repentino
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seguido por uma sensação gelada que percorreu sua coluna, fazendo suas pernas ficarem repentinamente
geladas.
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Questões
- Pai Nosso que estais no céu... – Era a décima oitava vez seguida que Tselms repetia o Pai Nosso segurando
seu crucifixo no pescoço com uma mão e carregando a arma com a outra, os nós dos dedos já brancos com a
força usada.
Ele estava andando sozinho a tanto tempo que tinha perdido a noção da hora ou de onde estava. Todas as
árvores pareciam iguais. Seu treinamento de sobrevivência parecia inútil. Nenhuma das referências que poderia
usar estavam normais. As estrelas estavam encobertas pela densidade anormal de árvores, ele não tinha
coragem de subir nelas porque sentia que algo o observava daquelas árvores, o Sol que já devia ter se erguido a
horas não dava nem o mínimo sinal, e o frio estava cada vez pior, anormalmente pior. Uma tempestade de neve
estava se aproximando? Por isso o Sol ainda estava oculto? Não, não fazia sentido. Nenhuma tempestade
apagaria completamente os vestígios do Sol daquele jeito como se fosse meia-noite o tempo todo. Mas e aquelas
árvores todas? A floresta não era tão densa assim. Ele conhecia a região porque patrulhara aquela floresta
muitas vezes durante o tempo que servira na honrada missão de manter a família imperial presa. E aquela
sensação de estar sendo observado que nunca passava...
- Ridículo! Isso é ridículo, Tselms! – Ele disse a si mesmo imaginando o que Yurovsky ou Ermakov lhe diriam.
Ele devia estar mesmo muito mais apavorado do que imaginava. Estava começando a desejar a companhia até
mesmo de Ermakov! – Santificado seja Vosso Nome... – Ele focou na sua oração em voz alta como um conforto.
Como a maioria dos filhos únicos, ele odiava ficar sozinho.
As folhas das árvores não balançavam. Tselms tinha percebido isso a algum tempo e esse pensamento estava
o deixando inquieto porque, pra variar, não fazia sentido. Ele sentia o vento frio e seco da região passando por
ele, mais frio de seus joelhos para baixo. E não era um vento leve, ou uma brisa. Era o vento mediano e
constante, típico da noite ali. Estava tão escuro que nem ele sabia bem como ainda conseguia andar sem sofrer
algum acidente. Em determinados pontos ele usava a arma como uma espécie de bengala para sentir o caminho.
Parara algumas vezes para descansar, mas não demorara muito porque sentia como se a floresta o cercasse a
ponto de sufocá-lo. A fadiga estava cobrando seu preço, mas ele não queria parar. Na verdade, ele queria, mas
sabia no íntimo de seu ser que não devia. Andava a passos lentos e inseguros, mas andava. Mesmo assim, estava
respirando com dificuldade, suas pernas ameaçavam falhar a qualquer minuto e sua cabeça doía. Por quê? Nem
ele sabia. Tinha certeza que não havia batido a cabeça em lugar nenhum. Talvez fosse só cansaço, ou o sono, ou
o medo, ou tudo isso junto.
Ele não se considerava um homem ruim. Até achava que era um homem bom, temente à Deus e seguidor
ferrenho da Santa Igreja Ortodoxa. Criava seus filhos no rigor de sua crença. Muitas vezes era tido como fraco e
supersticioso pelos colegas revolucionários, mas era respeitado por sua lealdade e capacidade militar de cumprir
ordens. Tinha medo da família imperial os achava infiéis e, como bom ortodoxo, tinha plenas convicções sobre o
que governantes infiéis podiam fazer: atrair a ira divina. Como a maioria dos russos da época, não achava Nicolau
uma má pessoa, mas alguém que se deixou levar pela maior arma do diabo: uma mulher. Seu casamento com
Alice de Hesse e Reno, uma infiel alemã, fora seu pior erro, seu pacto com o diabo e nem mesmo a conversão
dela à ortodoxia, assumindo o nome de Alexandra, apagaria isso. Para ele, só pioraria tudo. Ele acreditava que
ela não se convertera verdadeiramente, que era apenas um truque diabólico para destruir a Rússia. A prova disso
para ele foi o nascimento de quatro filhas mulheres consecutivas, quatro que nunca poderiam governar a Rússia
que, por lei, não podia ser regida por mulheres desde Catarina A Grande. A maior prova de todas fora o
nascimento de Alexei fraco que depois se descobrira ser doente. Aquilo era a prova final do descontentamento
de Deus com os Romanov. Ele temia mais a segunda filha do casal, Tatiana. Uma mulher que tinha mais perfil de
czar do que o próprio czar, uma verdadeira blasfêmia! Era sensata, firme em suas decisões, tinha um bom
conhecimento de estratégias, era equilibrada, até chefiou o comitê da Cruz Vermelha na Primeira Guerra. Se
continuasse naquele ritmo, Alexei morreria pela sua doença que era um castigo divino, Olga era fraca e emotiva
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demais para assumir o trono e, possivelmente, o czar e aquela mulher demoníaca dele poderiam ter a estúpida
ideia de revogar a lei que proibia que mulheres governassem a Rússia. Se isso acontecesse o castigo divino seria
implacável com certeza.
Crack!
- AAAAAAH! SANTO DEUS! – Tselms gritou com o susto. Devia ser só um animal selvagem andando pela
floresta. Embora, estranhamente, durante toda a noite ele e seus companheiros não tivessem visto nenhum
animal na floresta, só aquela movimentação sinistra nas árvores perto do acampamento e que ele podia jurar
que era um demônio.
Crack!....Crack!...
- Que..quem está aí? – Ele perguntou trêmulo segurando a arma e apontando para todas as direções no
escuro. O som parecia vir de trás dele, mas, o pânico o fazia apontar a arma para todos os lados.
Silêncio.
- Ermakov, seu filho de uma rameira com um lobo! É..é você, não é? Isso nã..não tem graça! – Ele disse ainda
tremendo tanto que a arma balançava ridiculamente à frente.
Silêncio.
Crack!... Crack!.... Crack!....
Pareciam passos no chão repleto de galhos e neve rasa.
- Revele-se ou irei atirar! – Tselms disse com toda coragem que conseguiu reunir.
Crack!...Crack!...
- Bem. Eu avisei. – Ele disse e puxou o gatilho.
Click. Click. Click. A arma falhou todas as vezes para seu desespero total. Silêncio.
Crack, crack... O som de passos recomeçou lento. E então acelerou como uma corrida em direção à Tselms.
CRACK! CRACK! CRACK! CRACK!
Você esperaria para ver o que vinha em sua direção? Não? Imagine Tselms então. O homem correu como o
diabo da cruz, tão ágil que nem bala o pegaria, mesmo com seu corpo tão cansado. Incrível o que o medo e a
vontade de sobreviver faz com o corpo humano. A adrenalina era alimentada pelo constante e ininterrupto
“crack!” atrás dele. Galhos batiam em seu rosto e corpo deixando arranhões e até cortes em sua roupa grossa.
Mas a verdade é que depois de correr por uns 15 minutos sem descanso seu corpo deu sinais de estafa. Seus
pulmões queimavam como o inferno, sua garganta estava seca, seus lábios sangravam com os ferimentos
provocados pelos galhos, sua cabeça latejava como se seu coração tivesse se mudado para dentro de seu crânio,
suas pernas vacilavam. Num momento ele caiu de cara no chão com neve, pedras, galhos e fezes de algum
animal. O “crack” dos passos pararam e, apesar da completa escuridão, ele viu duas bolas vermelhas como olhos
o encarando, esperando ele se levantar. Com fezes ainda na cara e um medo selvagem com aquela visão ele se
levantou e começou a correr de novo, o som de “crack” recomeçando também. Mais alguns metros e ele caiu de
novo. Tentou se levantar mas seu joelho doía com a queda. Ele recomeçou a correr curvado e mancando, quase
arrastando a perna direita, não ouvindo mais o som de “crack” atrás dele, mas com medo demais para parar e
olhar para trás. Quando não aguentou ele parou se jogando no chão deitado de barriga para cima, ofegante,
lutando por um pouco de ar. Só então ele então a dor no joelho que estava deslocado de forma grotesca, com a
rótula na lateral externa da perna, ao invés de na frente. Aquilo doía como o inferno agora que a adrenalina da
corrida estava passando. Ele se ergueu um pouco, quase sentando, para ver melhor o dano, forçando a visão
naquela escuridão toda. Mas, assim que se ergueu um pouco algo soltou um ar gélido e fedorento em sua nuca.
Forte como de um grande animal. Ele sentiu sua coluna gelar, pensou em sua arma e só então se tocou. Ela não
estava com ele. Como a perdera? Era possível perdê-la? Ela estava presa ao seu corpo pela bandoleira e ele não
tirara desde que ouvira o primeiro “crack”. Seus pensamentos foram interrompidos quando uma boca fedida
abocanhou seus cabelos espessos e o arrastou a um ritmo nem lento, nem rápido, mas constante. O que quer
que fosse, não parava por nada, não ligava para as dores lancinantes dele. Sua cabeça parecia ter milhões de
bombas explodindo ao mesmo tempo. Seu joelho deslocado batia no chão conforme ele tentava se soltar,
piorando a dor de uma forma enlouquecedora. O bicho rosnava como um cão demoníaco a cada vez que ele
tentava se soltar em vão. Fechou os olhos para amenizar a dor e começou a implorar aos gritos para morrer de
uma vez e para que Deus o perdoasse por isso.
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E então o animal parou. Sentiu a baforada gélida e fedorenta do bicho na sua cara, mas não teve coragem de
abrir os olhos, apenas começou a rezar o Pai Nosso de novo e aguardar pela morte.
- Você mata uma família inteira e seus leais servos, mas tem medo de um amável cachorrinho e acha que
Deus terá pena de você? – A voz feminina firme fez Tselms ter mais medo ainda de abrir os olhos.
Não queria ver. Não queria abrir os olhos e comprovar o que sua audição lhe dizia. Não. Se não olhasse
poderia fingir que ela não estava ali e ela iria embora. Claro. Era só ignorar. Era isso que ele ia fazer e nada nem
ninguém no mundo o faria abrir os olhos. Não. Nem pensar.
- Abra os olhos, covarde! – Tatiana disse com autoridade, mesmo sem erguer a voz.
Tselms não sabia por que, se fora o medo de morrer de uma forma terrível, a autoridade na voz da mulher,
mas abrira os olhos imediatamente. Estava, para sua surpresa, atrás da tenda usada por Yurovsky, no
acampamento. A fogueira devia estar acessa ainda, embora estivesse do outro lado da tenda na parte fronta,
mas o cheiro de carne assada indicava seu uso. Seus companheiros estariam ali? Teriam conseguido voltar para o
acampamento em segurança e se preparavam para comer? Seria possível que a moça o tivesse levado até ali
para salvar sua vida, o guiado à segurança do acampamento? Com uma onda de esperança, virou a cabeça para
olhar na direção da voz que o chamara. Havia uma mulher vestida como se tivesse acabado de sair da cama com
seu robe branco semelhante à um vestido simples, de costas para ele com um ferimento do tamanho de uma
laranja atrás da cabeça, gosmento, mas não sangrando. Ela se virou de frente para ele sem mover os pés, como
se tivesse rodas sob eles.
Santo Deus! Como ela é linda! É possível alguém ficar mais bonito depois de morto? Tselms se perguntou
momentaneamente embasbacado com a beleza ainda maior da criatura fantasmagórica do que quando estava
viva.
- Você deveria estar lá com eles, mas não achei justo. Você me parecia um bom homem antes de... De tudo
acontecer naquela noite. Então, - Tatiana disse se aproximando lentamente de Tselms ainda daquele jeito como
se tivesse rodas invisíveis sob seus pés – fiquei me perguntando... Por quê?
Ela estava bem perto de Tselms agora com aquele olhar firme, mas, estranhamente, sem nenhum traço de
dor, raiva ou tristeza. Ela parecia não ter perdido nada daquela essência prática e equilibrada que sempre tivera
em vida. Tselms não sabia se isso o acalmava ou lhe despertava aquela sensação de culpa que por um ano ele
tentou fingir que não existia, sempre repetindo para si mesmo que o que fizera fora um mal necessário. Ela não
precisava explicar, ele sabia bem o que ela estava lhe perguntando.
- Seus pais pecaram contra tudo que Deus nos ensina quando sua mãe se tornou imperatriz. Ela não era digna.
E... E... E os filhos pagam os pecados dos pais. – Tselms disse inseguro entre a dor e aquele olhar firme, mas sem
emoção que o encarava.
- E qual foi o pecado de minha mãe? Nascer em outro país? Ser criada sob uma doutrina diferente? Ou meu
pai pecou por amá-la a ponto de enfrentar as rejeições iniciais à essa união? – Tatiana perguntou ainda com
aquele semblante imperturbável. – Não. Eu entenderia melhor se você acusasse a falta de pulso firme de meu
pai para o governo, sua incapacidade de tomar decisões por si próprio quando estas eram difíceis. Mas não é a
isso que me refiro.
Ele a olhou confuso. Tentou se levantar, mas um peso inexplicável e invisível estava sobre seu peito tão firme
que ele não conseguia nem mesmo respirar sem algum desconforto. – Eu...Eu não entendo... O que você quer de
mim?
- Você participou de um extermínio que jamais será esquecido pela história e tornará minha família santos na
igreja que você mesmo segue. – Tatiana disse, se agachando e ficando próxima ao rosto do homem. Tselms
estremeceu levemente porque isso significava que ou ele havia errado enormemente em seu julgamento ou a
família diabólica iludiria a própria igreja. – Mas, éramos a família imperial e, em caso de um golpe de Estado,
eliminar os governantes e sua descendência para impedí-los de tomar o poder com a legitimidade do sangue é
algo prático. Mas... Eliminar pessoas sem essa legitimidade de sangue? Pessoas de uma classe social que você e
seu grupo pregavam estar defendendo? Servos cujo único crime, a seu ver, é claro, foi ser leal e servir seus
senhores até no exílio... Porque eles? Porque não poupá-los do massacre? Bastaria não convocá-los para
aquele...extermínio disfarçado de “pose para a foto”. – Ela terminou citando com um leve tom de ironia a
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desculpa usada pelos bolcheviques para tirar a família de suas camas e levá-los ao local onde dariam seu último
suspiro... e gritos.
- Eles... Nós pensamos... Eles não... Talvez... Talvez estivessem infectados e servissem aos propósitos obscuros
do czar e... e... – Tselms de repente não tinha mais tanta convicção sobre suas crenças. Na verdade ele se
surpreendera quando a porta se abriu para que atirassem na família e lá estavam os três servos e o médico. Ele
achava que mataria apenas os próprios Romanovs, mas ele não era homem de contestar ordens. Se os
superiores decidiram que aqueles servos tolos deviam ser mortos é porque os superiores sabiam o que era
melhor para a Revolução e para Rússia. – Discutir as ordens não era minha responsabilidade...
- Ai é que você se engana. Você se esconde por trás dessa máscara de bom homem seguidor das leis de Deus,
mas perfurou 23 vezes o corpo de uma pobre serva pelas costas, apenas porque você não quis discutir as ordens
que lhe foram dadas.
Tselms imediatamente lembrou dos soldados da revolução que se recusaram a participar do massacre e,
depois de alguns dias, pediram dispensa do exército revolucionário e partiram para algum outro país
desconhecido. Sim, fora dada uma opção para os soldados. Ninguém participou daquele massacre forçado. Mas
ele escolhera exterminar os Romanov, não seus servos. – Ela...ela não morria. Estava com aquele travesseiro
cheio de diamantes na frente do corpo... Eu...Eu apunhalei a Anna, mas foi no calor do momento... Não pensei
direito...
- Não pensou direito? Vinte e três facadas pelas costas em uma mulher implorando pela vida e você está me
dizendo que foi no calor do momento? Ela só morreu na vigésima terceira facada porque você ‘não pensou
direito’? – Tatiana levantou, com a graça de um cisne, balançando a cabeça negativamente. – É. Parece que
nenhum de vocês tem salvação mesmo. Anna era não apenas uma serva para mim e minhas irmãs. Ela era nossa
amiga. Imploramos para que ela partisse, mas ela não foi. Essa era uma de suas maiores qualidades: ela era leal.
Ela me ouvia sempre que eu estava sobrecarregada... Às vezes ela era como uma segunda mãe para nós. Foi por
isso que ela escolheu vir para o exílio conosco. – Nesse momento Tatiana parecia realmente furiosa.
Seu semblante calmo e contido deu lugar a um olhar feroz e um rosto avermelhado. Seus olhos azuis
escureceram com visível ódio. Pedaços de pele se desprendiam de seus dedos e rosto com uma aparência de
queimadura. Sob a gola fechada da camisola, uma mancha vermelha apareceu jorrando sangue profusamente. A
poça de sangue aumentava de uma forma insana, começando a se parecer mais com um lago do que crescia
mais e mais a cada segundo. Quando ela inclinou a cabeça bruscamente para o lado, Tselms sentiu seu corpo ser
jogado na direção apontada por ela como alguém o agarrasse e jogasse lá, mas não sentiu nada tocá-lo, só seu
corpo se movendo sozinho e voando, literalmente, até bater no tronco de uma árvore, de costas para Tatiana. Os
gritos de Anna quando ele a prensou contra a parede e desferiu os golpes com a baioneta soaram ao seu redor
como se ele estivesse de novo naquela situação. Mas não estava. Para seu desespero, percebeu que era ele
quem gritava as mesmas palavras e com a mesma voz de Anna. Era involuntário, quase como se fosse um
ventríloquo. Seu corpo estava grudado de frente na árvore, a alguns metros do chão como se alguma cola
poderosa o segurasse ali, o rosto voltado para um lado.
- Um covarde vive como covarde, mata como covarde e deve morrer com golpes covardes. – Tatiana
sussurrou no ouvido de Tselms e, sem avisou, uma baioneta o perfurou no braço direito. Depos outra atrás do
joelho esquerdo. Outra em uma orelha, a arrancando. Outra no cotovelo. E mais outra, e mais outra, mas outra...
Cada uma perfurando a pele de tal forma que chegava a fincar a ponta no tronco da árvore. Vinte e três
perfurações depois, o que quer que segurasse o homem no tronco da árvore se desfez em menos de um segundo
e ele caiu batendo em dois galhos no caminho. Já no chão, milagrosamente ainda vivo, ele ergueu levemente a
cabeça apenas para ver um cachorro negro bonito, mas estranho de alguma forma, e, de cada lado do animal,
Tatiana e Anna, a serva. Anna tinha tanta raiva em seus olhos que era assustador apenas olhar para ela. Mas,
nesse momento, temia mais aquela aparente calma e serenidade de Tatiana. Foi quando ele pensou mais uma
vez naquela noite que se salvaria. Ele já sofrera seu castigo e estava vivo, ferido gravemente, mas vivo e, quem
sabe, seus amigos o tivessem escutado e o salvassem.
Anna olhou com algum traço de gratidão para Tatiana e, com um sorriso, olhou para Tselms apontando com
uma mão para baixo. Ele então percebeu que estava encharcado, não de seu sangue, não de água, mas num
verdadeiro lago de sangue que emanava da garganta perfurada de Tatiana suavemente. Como se seu corpo
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apenas esperasse essa percepção, ele afundou metros e metros. Não era possível aquele sangue ter tanta
profundidade. Mas tinha. Era um sangue que fazia a pele arder como se queimasse sem fogo, fedia como se
estivesse misturado à inúmeras imundícies do solo. Ele conseguiu emergir de volta por alguns instantes apenas
para ver suas esperanças ruírem de vez. Tatiana com seu lago sangrento tinha saído de trás da tenda de Yurovsky
e agora ele, carregado junto com o lago, pôde ver de onde vinha o cheiro de queimado. Três cadáveres quase
totalmente queimados estava presos à três estacas com resquícios de chamas. Pior. Esses cadáveres se mexiam
como se suas almas estivessem presas àquele tormento. Ele não sabia como tinha esse conhecimento, mas,
talvez por estar tão perto da morte, soube de imediato quem eram aqueles três. Aqueles eram os cadáveres
amaldiçoados de Nikulin, Kudrin e seu irmão Medvedev. Em total desespero e loucura, Tselms afundou no
sangue de novo gritando um grito sufocado pelo sangue, em pânico demais para tentar qualquer coisa que o
salvasse. O sangue penetrou em seus pulmões enquanto ele tentava gritar, aumentando seu desespero até que
não sobrou mais nem esperança, nem sanidade, nem vida em seu corpo.
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Onde está sua lealdade?


16 de Julho de 1918, Rússia Czarista, quase meia-noite.
Em seu quarto simples, Eugene Botkin, amigo de Nicolau II e médico da família imperial, tinha, mais uma vez,
dificuldades para dormir. Ele estava a dias angustiado, temia por sua família que estava em Tobolsk e tinha
certeza, não sabendo bem como, de que sua família estava morta. Ele dedicara-se tanto à seu dever de médico e
à amizade que tinha pela família imperial que seu casamento findara quando sua esposa tivera um caso com o
tutor de seus filhos e pediu o divórcio que ele concedeu. Não seria agora, num momento de dificuldades, que
deixaria seus amigos e seu dever de lado. Mas a saudade e essa certeza interna de que seus filhos estavam
mortos, essa sensação constante de que sua vida também não duraria muito, tudo estava pesando sobre ele
naqueles últimos dias. O próprio Nicolau tentara acalmá-lo dizendo que logo tudo aquilo seria resolvido e todos
iriam para a Inglaterra sob a proteção do primo do ex-czar, o rei da Inglaterra. Nicolau era um tolo sonhador, ele
tinha que admitir, mas não iria destruir as esperanças de seu amigo. Quando Nicolau praticamente implorou
para que ele e os servos que ainda seguiam a família fossem embora, voltassem para seus familiares, ele recusou
terminantemente. Ele era leal à seu amigo, seu dever com o país e como médico. Ele não seria covarde agora.
Mas a noite é uma companheira cruel. Ela traz os piores medos à tona, as dores da alma se sobrepõem à razão.
Religioso como era, Botkin rezou, mas isso não estava o acalmando. Aquela sensação ruim, o sentimento de algo
muito ruim se aproximando, era quase sufocante. Então, pela quarta vez naquela semana, ele resolveu escrever
uma carta. Não tinha para quem enviar e, mesmo se tivesse, duvidava que os bolcheviques entregariam, mas
escrever o ajudava e desabafar, então ele sentou-se e começou a escrever:

“Estou fazendo uma última tentativa de escrever uma carta verdadeira - pelo menos a partir daqui - ainda que
esta qualificação, creio eu, é absolutamente supérflua. Não acho que eu poderia a qualquer momento escrever a
qualquer pessoa de qualquer lugar. Meu confinamento voluntário aqui é restrito a menos por tempo do que pela
minha existência terrena. Em essência, eu estou morto - morto para meus filhos - morto para o meu trabalho... Eu
estou morto, mas ainda não enterrado, ou estou enterrado vivo - o que, nestas consequências são quase
idênticos... Anteontem, quando eu estava lendo com calma... eu tive uma visão reduzida do meu filho, o rosto de
Yuri, mas morto, na posição horizontal, com os olhos fechados. Ontem, durante a mesma leitura, de repente eu
ouvi uma palavra que soou como Papulya. Eu quase explodi em soluços. Mais uma vez - isso não é uma
alucinação porque a palavra foi pronunciada, a voz era semelhante, e eu não duvido nem por um instante que
minha filha, que supostamente estaria em Tobolsk, estava falando comigo... Eu provavelmente nunca vou ouvir
aquela voz tão querida ou sentir aquele toque tão caro com o qual meus filhos pequenos me mimaram... Se a fé
sem obras é morta, logo as ações podem viver sem fé... Isto justifica minha última decisão... quando eu, sem
hesitar, órfão de meus próprios filhos, a fim de realizar meu dever como médico até o fim, como Abraão não
hesitou na procura de Deus para sacrificar seu único filho,...”

Uma batida forte e imperiosa na porta o interrompeu. O médico levantou-se e abriu a porta, dando de cara
com o comandante bolchevique Yakov Yurovsky, chefe do comando da Casa Ipatiev onde se encontravam presos,
e Ermakov, o homem de confiança de Yurovsky que fazia Botkin querer vomitar ao vê-lo. Ermakov, a seu ver, era
o homem mais repugnante que já conhecera, com graves problemas de comportamento que facilmente seriam
motivo para jogá-lo em um hospício. Ermakov olhava para as mulheres da família como se fossem uma rameira
dos becos de São Petesburgo, e sabia que isso incomodava os servos e o médico. O médico, sempre tão calmo, a
alguns dias perdera a paciência com as provocações de Ermakov e lhe dera um soco, resultando num corte no
lábio inferior. O homem cuspira o sangue no sapato do médico e, para sua supresa, não revidou, apenas olhou
para ele como um louco enquanto Yurovsky o puxava para conversar mais afastado.
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- Boa noite. – Botkin disse educadamente, evitando dar atenção àquela sensação irracional de “é o fim” que
gritava dentro dele.
- Doutor, boa noite. Chame os Romanov e os servos e mande-os se vestir. Há uma comoção e tiros em
Ecaterimburgo e teremos que transferí-los para um local mais seguro. – Yurovsky ordenou.
Botkin assentiu, um gosto ruim na boca que ele não sabia de onde vinha. Yurovsky se virou e parou de
repente, olhando de solsaio para o médico, como se quisesse dizer algo, mas apenas suspirou e saiu com
Ermakov assoviando alegremente atrás. Botkin acordou a família, os servos e seguiu Yurovsky, Ermakov e alguns
guardas que os guiavam, como sempre, de forma brusca, sem nenhum respeito ou consideração. O médico
permitiu que a família e os servos entrassem no quarto indicado, ficando por último com aquele gosto amargo na
boca. Quando fez menção de entrar, Ermakov o parou com uma mão no tórax do médico, sorriu como um
doente mental e sussurrou: - Minha boca vai curar, quero ver se você vai se curar.
Ermakov o empurrou para dentro do quarto e Botkin ficou ao lado da família. Horas depois seu cadáver era
jogado em uma vala com ácido e cal em cima.

Floresta de Ipatiev, Ecaterimburgo, 1919.


- Ninguém mais se afasta! – Yurovsky estava impaciente já com tantos sumiços. – Se os brancos acham que
vou facilitar pra eles, estão muito enganados.
- O que faremos com ele? – Voikov perguntou se referindo ao cadáver nojento e desfigurado de Vaganov que
tinha deitado no chão um pouco mais distante.
- Vamos enterrá-lo. – Yurovsky disse. – Depois que sairmos daqui, avisaremos aos camaradas onde está o
corpo para que possam desenterrar e levar para ser sepultado em um local mais adequado.
- Mas... – Ermakov não queria mais pegar naquele cadáver nojento e se sujar mais ainda com aquilo.
- O que? Prefere que o deixemos aqui para os animais devorarem nosso camarada? – Voikov perguntou mais
querendo desafiar Ermakov do que realmente preocupado com o cadáver.
- Tudo bem, não se preocupe, Voikov, não vou deixar seu namoradinho sem túmulo. – Sinceramente Ermakov
não estava nem ai para o que aconteceria com o cadáver. Já estava morto e inútil mesmo. O que importava? Mas
achou melhor não ir contra o chefe quando Voikov obviamente estava tentando tomar seu lugar de novo.
- Seu filho da... – Voikov estava louco para bater em Ermakov pela insinuação sobre a relação dele com
Vaganov, mas foi impedido por Yurovsky.
- Parem com essa besteira! Vamos! Procurem algo para cavar o solo e colocar nosso camarada. – Yurovsky
ordenou já cansado daquela rixa interminável entre os dois homens. Então, percebendo que o que falara podia
ser interpretado erroneamente, acrescentou enquanto os dois homens se afastavam um pouco em direções
opostas: - Mas não vão longe! Não se afastem!
Eles tinham acabado de entrar na floresta, sumindo da vista por não mais que um segundo, e Yurovsky
imediatamente ouviu o som dos galhos sendo quebrados sob passos que voltavam para onde ele estava. Mas só
vinham de uma direção.
- Sim, senhor. – Voikov disse saindo rapidamente da floresta.
- Que diabos! – Yurovsky praguejou. – Ermakov, volte aqui! É uma ordem!
Mas ninguém respondeu. Ele não podia ter ido longe. Pelo amor de Deus o homem tinha sumido das vistas
por um segundo! Voikov e Yurovsky gritaram chamando Ermakov que com certeza estaria ouvindo já que estava
tão perto. Com certeza... Mas não estava.

~o~
Ermakov entrou na floresta para procurar alguma pedra idiota pontuda pra cavar a porcaria de uma cova que
ele obviamente não se importava para alguém que ele não dava a mínima, não agora que não era mais útil.
Quando achasse a pedra pontuda talvez ele acidentalmente usasse para cortar um braço de Voikov, o direito,
assim ele não poderia mais atirar e sairia de seu caminho. Ou, pelo menos para fazer ele sentir muita dor.
Ermakov sorriu com o pensamento. Dera alguns passos em direção à floresta, perdido em seus doentios
pensamentos, quando se lembrou do que Yurovsky disse sobre não se afastar, e voltou para a clareira.
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Mas... Onde estavam todos? Yurovsvky e o idiota do Voikov não estavam mais lá. Nem o cadáver inútil não
estava. Ridículo! Ele não tinha se afastado por tanto tempo! Deviam estar se escondendo atrás de alguma árvore
para assustá-lo. Talvez até tivessem carregado o cadáver junto. Essa ideia patética devia ser de Voikov. Será que
ele já estava convencendo seu chefe a esse ponto? Isso não seria bom para ele.
- Já entendi. Nada de ficar longe. Já podem parar com a brincadeira. – Ermakov disse planejando
secretamente uma forma de prender Voikov na floresta, cortar tirinhas e mais tirinhas da pele dele como fizera
com algumas de suas vítimas secretas para se divertir, e depois o deixar ali pra ser devorado por feras ou morto
pelos brancos. Ninguém respondeu. – Vamos, camaradas, temos que enterrar Vaganov e nos preparar para
enfrentar os brancos. Não temos tempo para brincadeiras tolas.
Ele sabia que não devia falar assim com seu superior, mas se Yurovsky estava se rebaixando ao ponto de fazer
uma brincadeira idiota com aquele imbecil do Voikov, então talvez o homem precisasse de um choque de
realidade ou, quem sabe, ele poderia matar Yurovsky também. Seria divertido ver o chefe implorando pela vida...
ou para morrer logo, como muitas de suas vítimas fizeram no passado. Ele estava louco para sair logo daquela
floresta e voltar para casa. Tinha deixado sua vítima mais recente em seu porão secreto, cheia de cortes, sem
comida nem água, no meio da sujeira, dos ratos, sem a língua, com pouco agasalho porque ele estava se
sentindo bondoso naquele dia, e quase cega pelos tapas que dera. Era um moleque de uns 15 anos que ele
encontrara morando nas ruas e atraíra com a promessa de dar comida e abrigo numa madrugada
particularmente fria. Quando voltasse tinha certeza que o garoto estaria quase morto e ele poderia relaxar
terminando de matá-lo sem pressa. Depois bastaria desmembrar o corpo como uma caça abatida, colocar em
embrulhos com pedras e jogar em qualquer rio, ou só enterrar a uma grande profundidade. Mas antes precisava
encontrar os dois idiotas ali e dar um fim dos brancos. Por mais que Yurovsky achasse que eram muitos, ele tinha
certeza que poderia acabar com todos facilmente porque ele era um guerreiro muito bom.
Ermakov chamou mais algumas vezes, perdendo a calma e a forma respeitosa de falar com o chefe
gradativamente. Sua paciência estava no limite, ele já estava frustrado com aquela brincadeira idiota e, verdade
seja dita, desde criança Ermakov nunca soube lidar muito bem com frustração. A raiva estava subindo à cabeça
quando ele ergueu sua Nagant M1895, um revólver que sempre carregava desde que lutara na Primeira Guerra,
e gritou para que Voikov e Yurovsky saíssem com as mãos para cima ou iria caçá-los e matá-los.
- Mataria seu chefe e seu companheiro de guerra a sangue frio? Onde está sua lealdade? – Uma voz grossa
disse, vinda de trás.
Ermakov se virou rapidamente com a arma ainda em punho, pronto para atirar no inimigo que, tinha certeza,
ser um soldado de Exército Branco. Mas, ao dar de cara com aquela figura, sentada numa pedra a dois metros de
distância, ficou paralisado e confuso.
- Mas que inferno! – Ermakov disse entre a confusão e a raiva. – Botkin? Filho da mãe! Como você
sobreviveu?
Botkin olhou pra ele imperturbável e repetiu a pergunta: - Onde está sua lealdade?
- Olha, doutor, - Ermakov cuspiu a palavra com ironia – não sei como você sobreviveu, lembro que dei dois
tiros, um perto do seu saco e outro nas suas costas quando você virou tremendo de medo como um maricas.
Depois Yurovsky atirou nesse testão que você... – Ele parou de falar quando um círculo escuro, um furo, que ele
não tinha notado ainda. Embora não tivesse como não notar aquela coisa naquele testão.
- Onde está sua lealdade, Ermakov? – Botkin continuava imperturbável. Sua pele clara, mais clara que o
normal para o fenótipo russo, parecia azulada. Estava sentado na pedra com as pernas lado a lado, como se
estivesse numa cadeira, mas, em sua roupa verde escura, podia-se ver rasgos. Não, não rasgos. Eram mais
parecidas com queimaduras, como se ele tivesse acabado de sair de um incêndio que destruíra sua roupa em
pedaços circulares. Como se algo quente, algum líquido, talvez, tivesse sido jogado, respingado na roupa.
Ermakov, vendo tudo isso, ainda acreditava, ou queria acreditar, que, de alguma forma o médico sobrevivera e
estava ali agora tentando assustá-lo. Mas não seria tão fácil.
- Voikov, aquele traidor! Não sei como você saiu com vida daquela casa, mas tenho certeza que foi aquela
cobra que descobriu que você estava vivo e tirou você do amontoado de cadáveres, não foi! – Ermakov ainda
apontava a arma para o médico à sua frente. – Não importa! Yurovsky, aquele incompetente, pode não ter
acertado sua cabeça direito, mas eu vou te matar!
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Furioso, Ermakov apertou o gatilho. Descarregou os setes tiros da arma no médico, bem na testa, sem errar
nenhum. Ele era bom com armas, isso era um fato incontestável. Os tiros passaram pela cabeça do médico, ainda
sentado imperturbavelmente olhando para Ermakov sem nenhum traço de emoção, mas não causaram nenhum
ferimento. Passaram pela cabeça do médico como se fosse feita de fumaça e acertaram a árvore atrás dele.
Ermakov sentiu um arrepio, um alerta no mais profundo de seu ser avisando do perigo, mas ele ignorou. Não ia
ficar com medo de um médico idiota que deviar estar eunuco e aleijado com o tiro que recebera dele a um ano.
Além do mais, todo mundo sabia que Botkin era um fracote, metido a bonzinho, corno e que não conseguia
comer nem carne porque ficava com frescura lembrando dos ferimentos da Primeira Guerra. Não era homem o
suficiente pra enfrentar Ermakov.
Esse pensamento meio que enfraqueceu quando Botkin acenou para a direita com a cabeça e a arma na mão
de Ermakov voou sozinha da mão dele até uma árvore a metros de distância, ficando presa com o cano
encravado no tronco. Ermakov olhou estupefato para a arma cravada e sentiu um vento gelado que começou em
suas canelas e subiu tomando o corpo todo em um segundo, e virou a cabeça de volta para frente. Deu de cara
com Botkin de pé, a centímetros do rosto dele, o encarando com uma mão alisando a espessa barba, olhos
escuros, cercados por pequenas queimaduras e um pó esbranquiçado: cal. Ele não respirava, Ermakov percebeu
que o ar frio não saía das narinas ou da boca do médico, mas parecia emanar do corpo dele como um vento
gelado antes da tempestade.
- Onde está sua lealdade? – A voz de Botkin dessa vez soou mais grossa e ecoou ao redor da clareira como se
todas as pedras e árvores dessem força à suas palavras.
Havia uma fogueira na clareira, acessa há algum tempo por Yurovsky suficiente para não congelá-los e
pequena para não atrair o inimigo. Ermakov estava a poucos centímetros dela, mas parecia que ela nem estava
ali tamanho era o frio que seu corpo sentia.
A arma... Voou? Não. Impossível. Ela não voou. Como ele está de pé? Um tiro na testa... Os tiros que dei a um
anos... Como ele está de pé? Ermakov se perguntava em silêncio, sem conseguir desviar o olhar que parecia
preso aos olhos de Botkin. Não importava. Ele ia matar o médico na porrada se fosse preciso. Passou a socar o
médico no rosto, no peito, mas os socos atravessavam o corpo do médico como se ele não fosse de carne e osso.
Fantasma. Sua mente gritava, mas ele se recusava a aceitar. Fantasmas não existem. Ele repetia pra si mesmo
enquanto socava cada vez mais furioso pelos golpes não funcionarem e pela calma imperturbável do médico.
Quando a fúria de Ermakov tinha tomado conta dela completamente, ele socou de novo o peito de Botkin, na
direção do coração, mas dessa vez sua mão não saiu. Ela ficou presa como se o corpo do médico de repente
fosse sólido, como se fosse uma rocha gélida ao redor de seu braço direito, preso até quase a altura do cotovelo,
dentro do corpo estranho do médico.
- Me solta, seu monstro! Seu cão dos infernos! Eu vou matar você! DESGRAÇADO! – Ermakov gritou, o ódio
assumindo sua mente de tal forma que ele não pensava direito.
- Onde está sua lealdade? – Botkin perguntou, ainda imperturbável, com o braço do inimigo dentro de seu
corpo.
- O QUE TE INTERESSA, IMBECIL?! Minha lealdade é a mim mesmo, e SÓ a mim! Não sou um imbecil lambedor
de botas de ninguém! Você foi leal e olha pra você! Um bosta ferido! – Ermakov ainda não queria admitir que
Botkin fosse um fantasma, mas se fosse mesmo, então ele daria um jeito de matar até a alma fantasmagórica
dele.
Quando ele disse isso, ficou satisfeito ao ter provocado alguma reação no médico o tirando daquela calma
imperturbável. Os olhos do médico ficaram ainda mais escuros, pupilas muito dilatadas, uma carranca de raiva e
nojo se formou em sua face, o frio que ele emanava aumentou consideravelmente e o médico pareceu ficar mais
alto, sinistramente mais alto.
- Você não tem lealdade nem à sua causa, e isso é deplorável. – Botkin disse e sua voz parecia um trovão
retumbando na clareira e dentro da mente de Ermakov. – Eu havia diagnosticado isso a muito tempo... Você é
um doente da mente, Ermakov. E deve ser tratado como os doentes são.
Enquanto Botkin cresceu alguns centímetros naquela figura sinistra, o braço de Ermakov continuava preso,
sendo puxado para cima e erguendo Ermakov do chão que praguejava todos os palavrões que conseguia se
lembrar. Um metro mais alto, Botkin tinha Ermakov pendurado a pouca distância do chão, até que os ossos do
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braço e da mão do bolchevique foram esmagados todos ao mesmo tempo dentro do corpo do médico, como se
fosse prensado entre duas rochas gélidas. O braço mole e sem utilidade foi finalmente libertado fazendo
Ermakov cair aos gritos no chão.
- EU VOU TE MATAR! SEU DESGRAÇADO! VOCÊ VAI MORRER! EU. VOU. TE. MATAAAAR! – Ele gritava
babando, literalmente, de raiva e se sentando no chão, meio inclinado pra frente com dor.
Botkin sumiu no ar e então reapareceu atrás de Ermakov com a mão no pescoço dele e a outra segurando um
graveto fino e pontudo. Se inclinou e falou no ouvido de Ermakov: - Você já me matou. Agora vou devolver o
favor.
Num movimento rápido demais para os olhos humanos captarem, Botkin derrubou Ermakov de frente no
chão. Ele uivou de dor com o golpe no braço dilacerado, xingando o médico. O doutor chutou as costelas do
homem o virando de barriga para cima. Raizes brotaram do chão feito mágica e seguraram Ermakov firmemente
em sua testa, pernas, braços e cintura com tanta força que podiam facilmente quebrar seus ossos. Podiam, mas
não iriam. Botkin se aproximou da cabeça do homem no chão, se abaixou e disse numa voz carregada de ódio e
sarcasmo, algo que nunca se ouvira naquela voz em vida: - A mais de vinte anos, um colega alemão fez uma
descoberta interessante no trato de alguns cães ferozes. Uma pequena retirada de massa cerebral e os animais
ficam mais calmos, menos propensos à violência e mais obedientes. Creio que o mesmo possa ser aplicado aos
humanos, mas nunca pude testar. Até agora.
- Você não me assusta, seu merda! Essa conversa de doutor metido, seu comedor de livros, não vai te salvar
quando eu sair daqui. Eu mato você mil vezes se for preciso! – Ermakov gritava e os galhos o apertavam ainda
mais.
- Bem, bem... Vamos ver se minha teoria está certa. – Botkin começou a assoviar uma canção que Ermakov
logo reconheceu como a mesma que ele próprio cantarolava quando ele e Yurovsky falaram com o médico na
noite das mortes, minutos antes de acabar com aquelas vidas.
O médico usou o galho fino, e mais forte do que um galho normal seria, para enfiar sem cerimônia no canal
lacrimal do olho de Ermakov que gritou mais ainda. Um grito de dor que beirava à loucura com certeza. Usando o
punho da outra mão, o médico deu um golpe mais forte do que o necessário pra bater na outra extremidade do
galho. A ponta dentro de Ermakov acertou seu cérebro e Botkin girou o objeto devagar, muito devagar, para
destruir uma região do órgão. Em algum ponto Ermakov gritava coisas desconexas, babava muito e revirava os
olhos de forma grotesca. Botkin, sempre assoviando aquela canção, puxou rapidamente o galhou que saiu sujo
de sangue e o jogou longe. Com um sinal de Botkin, os galhos soltaram o homem e entraram no solo lentamente,
sumindo sem deixar vestígios. Ermakov, por sua vez, continuava deitado, babando, olhos vidrados e sem nenhum
sinal de racionalidade, balbuciando apenas uma sucessão de ”eeeee” sem sentido.
- Não se preocupe, rapaz. Vou lhe dar o golpe de misericórdia que você não me deu. – Botkin disse virando de
costas e, se Ermakov não estivesse tão surtado teria visto a o ferimento gigante, a mancha de sangue escuro nas
costas do médico e na virilha. – Mas antes...
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Pressentimento ácido
Rússia comunista, 1918.
Era tarde, mas Alexandra não conseguia dormir. Suas dores de cabeça que sempre a incomodaram hoje era
ininterrupta o dia inteiro. Não era intensa, mas era incomodativa. Botkin, médico e amigo leal da família, havia
lhe aconselhado a tentar acalmar seus nervos, evitar preocupações que iria ficar tudo bem. Por seu olhar ela
soube que nem ele acreditava nisso, mas acenou com um sorriso, pegando a única dose diária do remédio para
suas dores de cabeça que os bolcheviques permitiam. Nicolau estava deitado atrás dela, com um braço ao redor
de sua cintura. Sabia que ele não estava dormindo. Ele quase não dormia e sempre se atormentava se
perguntando se havia sido um bom czar. Ela tentava acalmá-lo, ele era um bom homem, de bom coração, talvez
fosse esse exatamente o problema, a razão pela qual ele perdeu o trono russo. Mas jamais o acusaria de nada.
Ela o amava e não importava o que acontecesse, sempre o apoiaria. Aquela noite, entretanto, o ar parecia mais
denso. Não. O dia pareceu mais denso. Era quase como um sentimento ruim de antecipação de algo que
ninguém sabia o que era, mas que todos sentiam no ar. Desde a abdicação do marido a mais de um ano, uma
coisa nunca saíra de sua cabeça.
Quase dois anos antes, seu amigo, amigo de toda a família, o homem mais grosseiro e fedido que já
conhecera, e, ainda assim, um amigo leal, fora morto por um membro menor da família Romanov. Rasputin que
a tratava como uma mulher sagrada, tocada pela Virgem Maria, entrou em suas vidas como um furacão
abalando tudo ao seu redor. Salvara a vida de seu tão precioso filho mais vezes do que ela podia contar e ganhou
o respeito e a gratidão de toda família, até mesmo do desconfiado Botkin, por isso. Mas era um homem sem
nenhuma classe, distinção ou mesmo educação, isso ela tinha que admitir. Isso e seus atos pouco ortodoxos
atraíram o rancor e a inveja de muitos membros da nobreza e serviu para que os inimigos do czar sujassem a
imagem dela. Prevendo sua morte, Rasputin escreveu uma carta endereçada à ela com uma previsão aterradora
que ela jamais esquecera:

“tenho o pressentimento de que morrerei antes de 1º de janeiro (1917). Se eu for assassinado por gente
comum, especialmente por meus irmãos os camponeses russos, então o czar da Rússia não deve se preocupar por
seus filhos, que reinarão na Rússia outros cem anos, mas se eu for assassinado pelos boyardos e nobres (suas
relações) digo que ninguém da sua família, nenhum de seus filhos, viverão mais de dois anos. Eles serão
assassinados pelo povo russo…”

Cerca de três meses depois, Nicolau abdicara. Dois meses depois Alexandra tivera um daqueles sonhos que
sempre a avisavam sobre algo, mas desta vez o sonho fora com Rasputin. Em seu sonho ele fizera uma
reverência para ela e apontava para trás dela. Quando se virou viu uma casa cercada por um muro alto e a voz de
Rasputin atrás dela lhe dizia tristemente: “Aqui suas vidas serão roubadas. Eu lamento.” Ela acordou suada e
tremendo com Nicolau preocupado ao seu lado. Contara à ele e ele, como sempre, tentara tranquiliza-la, mas ela
sempre sentiu calafrios com a lembrança constante desse sonho. Por semanas aquele sonho se repetiu e então,
do nada, parou. Em 30 de abril, a exatos dois meses e desessete dias, seus temores se intensificaram quando
chegaram à sua nova residência imposta pelos inimigos, a chamada Casa Ipatiev. Alexandra, acompanhada de
sua filha Maria, quase caiu de costas quando viu que a tal casa era exatamente idêntica à casa que Rasputin
mostraram em seu sonho. Desde então ela tentava em vão afastar a sensação de morte iminente para não
preocupar Nicolau e assustar seus filhos, rezava sempre que podia e tentava não associar as provocações,
indecências e grosserias dos guardas, tão diferentes de Tobolsk onde a família ficara antes. Sentia medo quase o
tempo todo desde o primeiro dia ali quando Nicolau tentara defende-la de uma grosseria dos guardas que
interromperam grosseiramente alertando que, caso eles não seguissem as regras (todas elas sem reclamar),
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Nicolau seria separado de sua família, uma segunda contestação e ele seria enviado à trabalhos forçado, e uma
terceira resultaria em pena de morte.
- Alix. – Nicolau falou atrás dela, tirando-a de seus pensamentos conturbados.
- Sim. – Ela respondeu o mais docemente possível para tranquilizá-lo.
- Você precisa descansar, querida. – Ele disse.
- Você também. – Ela respondeu.
- Não consigo dormir. Algo me incomoda, embora não saiba o que. Mas você precisa descansar para suas
dores... – Nicolau foi interrompido por batidas calmas, mas firmes em sua porta.
...Ninguém da sua família, nenhum de seus filhos, viverão mais de dois anos... Aqui suas vidas serão roubadas.
Eu lamento. A lembrança surgiu como um soco no estômago de Alexandra quando seu marido se levantou, abriu
a porta e a voz de Botkin soou com um simples ‘boa noite’. Com um semblante calmo, forçando-se a agir com
dignade e frieza como fora ensinada, ela seguiu seu marido no percurso que sentia ser o último de sua vida.
Horas mais tarde, seu corpo era coberto com os corpos da maior parte de seus filhos, seu marido, médico e
servos leais, sob um lamaçal de ácido sulfúrico, terra e sangue.
- O mundo nunca saberá o que fizemos com eles. – Voikov disse à Yurovsky que fazia um inventário das jóias
reitiradas dos corpos.

Floresta de Ipatiev, Ecaterimburgo, 1919.


- É impossível alguém sumir tão depressa assim. – Yurovsky resmungava consigo mesmo.
- Ermakov! – Voikov gritou vendo um homem agachado de costas, batendo a cabeça do no tronco de uma
árvore.
- Maria lutou....Maria gritou...Anasfássfia gemeu..... – Ermakov balbuciava babando ridiculamente e batendo a
testa na árvore com força.
Yurovsky e Voikov se aproximaram e entreolharam-se confusos.
- Pare com isso, Ermakov. Não tem graça! – Voikov disse, mas, assim como Yurovsky, não se aproximou mais.
-...O médico...tiro...tiros...a cabeça...o czar...morreu? – Ermakov parecia completamente alheio à seus colegas
atrás.
- Claro que morreu! Nós enterramos todos eles depois de deixar aqueles idiotas cheios de furos. – Voikov
queria crer que Ermakov estava brincando com a morte de suas vítimas como ele sempre fazia. Ele queria muito
acreditar nisso.
- Já chega disso. Vamos. Levante-se. – Yurovsky disse se aproximando e tocando o ombro de Ermakov. Pior
ideia.
- NÃO!! NÃO! NÃO! MÉDICO...O MÉDICO...ELA...NÃO! ELA...ELA VAI ME PEGAR!!! – Ermakov levantou
gritando como se tivesse levado o coice de um cavalo no rosto. Quando ele se virou, ainda aos gritos, seus
colegas congelaram no lugar. Ermakov estava com um olhar vítreo, selvagem, em pânico como um indefeso
coelho encurralado. Seu braço direito estava pendurado do lado do corpo, mole e flácido como se não tivesse
nenhum osso nele. Um olho de Ermakov, no canto interno, estava inchado, sua esclera vermelha como se um
lago de sangue cercasse a íris verdes do homem.
- Mas que inferno... – Yurovsky murmurou chocado demais com a cena. Não tinha como os brancos terem
levado Ermakov e causado tanto estrago nos dez minutos em que ele sumira. Não sem atrair a atenção deles
com os gritos. Além do mais, Ermakov era duro na queda. Não era o tipo de homem que se pode capturar,
subjulgar e causar tanto dano em pouco tempo. Mas Yurovsky não pôde mais ficar preso em seus pensamentos
confusos.
Ermakov olhou para Voikov tomado de uma raiva maior do que a habitual. Era quase como se Voikov tivesse
atirado na cara dele pra provocar aquela fúria selvagem nele. Seus olhos não eram mais verdes, eles estavam
azuis e algo neles lembrava outro olhar. Voikov percebeu isso também, preso sob Ermakov que, mesmo com
apenas uma mão estava dando trabalho. Aqueles olhos... Voikov tentou não associar a quem ele estava
associando, mas era impossível. Ermakov tentava mordê-lo como um animal selvagem, babando, rosnando como
um cão raivoso, e pingando sangue de sua testa tão ferida que estava deformada.
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Yurovsky mal pôde ver o salto que Ermakov deu tão inumanamente alto, passando por cima dele, derrubando
e caindo em cima de Voikov um pouco atrás. Ele se aproximou por trás para arrancar Ermakov de cima do outro
homem, mas nem conseguiu tocá-lo. Com a mão quase tocando Ermakov, Yurovsky sentiu um braço forte o
puxar pela cintura e jogar longe. Ele praticamente voou, caindo no tronco da mesma árvore que o outro homem,
minutos antes, batia a cabeça insanamente. Mesmo tonto pela pancada, com todo seu corpo doendo, Yurovsky
se levantou e olhou ao redor esperando ver quem o jogara longe, o instinto militar assumindo onde devia haver
o medo. Mas, não havia ninguém. Só Voikov lutando para evitar as mordidas de Ermakov. Ele se levantou alerta
ao seu redor para qualquer inimigo oculto nas árvores, e correu para ajudar Voikov. Tarde demais. Ermakov
conseguiu dar uma mordida enorme no rosto do outro homem arrancando um pedaço tão grande da bochecha
que a arcada dentada ficou exposta. Voikov foi tomado pela raiva e a dor. Ermakov pareceu satisfeito com isso
como se captasse apenas no ar que tinha causado esse efeito no outro. Então, inesperadamente, ele se levantou
e correu para a floresta, com Voikov se levantando em seguida, pingando sangue, e correndo atrás dele sem
pensar em mais nada. Yurovsky não teve outra opção e, mesmo se tivesse, teria escolhido seguir os dois homens
porque, bem, ele não queria ficar sozinho. Estava cada vez mais difícil explicar racionalmente o que estava
acontecendo.

~o~
Voikov mal conseguia falar com aquele ferimento, mas a adrenalina e a raiva acumulada de anos naquela luta
disfarçada pelo poder dentro do grupo com o homem que o ferira agora, o faziam correr sem medo atrás de
Ermakov floresta adentro. Alguém gritara algo atrás dele ao longe. Yurovksy? Kabanov? Seu pai o chamando de
fraco e imprestável como sempre? Ele não sabia dizer e não se importava. Ele queria apenas matar Ermakov que
corria a cerca de cinco metros à frente. Até a floresta parecia apoiar sua decisão porque ele não tropeçou em
nada, nenhum galho bateu nele, nada o atingiu, quase como se a floresta estivesse saindo do seu caminho. E
estava. Mas por outro motivo.
Quando Ermakov parou, se a raiva de Voikov não o estivesse dominando ele teria percebido onde estavam.
Mas ele estava ocupado demais focado em seu alvo parado à frente, de costas. Ele parara perto do
acampamento deles, do lado oposto, bem em cima de onde os cadáveres da maioria das vítimas do ano anterior
estavam sepultados. Um pouco distante, Voikov pôde ver a luz da fogueira parcialmente oculta pelas barracas,
mas sua mente nem processou a informação. Ele acelerou a corrida e, à dois metros de Ermakov, parou de
repente com um frio repentino em suas pernas, subindo pela coluna e, podia jurar, entrando em sua alma.
Ermakov virou lentamente como um marionete movido por mãos invisíveis. Ele jogou a cabeça pra trás num
movimento rápido e abriu a boca. Uma nuvem branca-azulada saiu de sua boca, se erguendo no ar
verticalmente, depois descendo ao lado de Ermakov e fomando uma figura cada vez mais humana, até se tornar
completamente reconhecível, quase sólida se não fosse por sua transparência que permitia ver o acampamento
através de seu corpo. Os olhos de Ermakov voltaram ao verde de sempre, mas ainda não se via nenhuma luz de
vida neles. Ele se agachou, balançando o corpo pra frente e pra trás, babando muito e murmurando uma
sucessão incoerente de “eeee”. Voikov estava congelado de medo no lugar e seu medo só piorou quando uma
figura surgiu do nada atrás de Ermakov, um homem que Voikov achou que nunca mais fosse ver: Botkin, o
médico e amigo da família. Os olhos de Alexandra estava focados em Voikov, uma raiva selvagem neles. A
mesma raiva, os mesmos olhos, que vira a poucos minutos em Ermakov. Ela flutou para frente dele tão rápido
que ele mal conseguiu ver o movimento. Ficando cara a cara com Voikov, seus rostos a poucos centímetros,
elepodia ver claramente os ferimentos de ácido, as manchas brancas de cal, as pedras e folhas presas eu seus
cabelos desgrenhados, o sangue duro e seco em sua pele e roupas.
Sua mão se transformou em uma espécie de faca que lembrava uma baioneta e ela ergueu na altura do rosto,
na lateral, para que ele visse. Com um semblante sério que lhe era característico e combinado com aquela fúria
selvagem em seus olhos azuis, ela abaixou a mão e enfiou nas costelas de Voikov. Uma, duas, três, quatro vezes
até que, no último golpe, em meio aos gritos de dor enquanto ele tentava segurar a faca sem sucesso, um crack
se ouviu. Sua costela quebrara e ele caíra de frente no chão. Ela parou os golpes, andou ao redor dele e parou à
frente de sua cabeça. Abaixou, agarrou sua espessa barba sem se importar com a dor do homem, e o arrastou
pelo chão até onde estava Ermakov. Enquanto era arrastado, seu corpo se bateu em pequenas pedras com força,
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o movimento fazendo mais costelas e alguns ossos do pé quebrarem com cracks que era tão aterrorizantes
quando dolorosos. Ela parou e soltou a barba dele bruscamente o fazendo cair de cara no chão, quebrando o
nariz.
- Não... Não me mate. Pelo amor de Deus. – Voikov implorou lembrando-se que Alexandra era muito religiosa
em vida.
- Porque não? – Ela perguntou se abaixando e segurando seu queixo para que ele olhasse para ela.
- Eu...eu tenho filhos. – Era verdade. Ele tinha. Embora nunca dera importância pra eles que só via como um
gasto a mais de seu suado dinheiro. Um atraso de vida.
- Eu também tinha. Você os matou. Lembra? – Ela respondeu entredentes.
- Por tudo que é mais santo, majestade. Eu não quero morrer. – Voikov estava realmente desesperado. O
medo da morte o consumia mais do que o medo de ficar inválido depois de tantos ferimentos.
- Majestade? Você não me chamou assim em todo o tempo que ficamos em Ipatiev! Você fez gestos nojentos
para mim e minhas filhas. Você se divertiu com nossas mortes. Você e seu amigo aqui – Ela apontou Ermakov
com o nojo transbordando na voz – quebraram nossos ossos depois de mortos apenas por diversão. Você,
literalmente, bebeu e dançou sobre nosso túmulo. Você não quer morrer... E eu queria? Meu filho doente
queria? Qualquer um de nós queria? Não tivemos nem ao menos chance de defesa. Não tivemos um funeral,
nem algumas palavras respeitosas sobre nossos túmulos para que pudéssemos descansar em paz... Agora você
apela ‘por tudo que é santo’?
- Nós fizemos apenas o nosso trabalho. Estávamos só cumprindo ordens. – Voikov disse não disfarçando o
medo em sua voz. Talvez assim ela tivesse pena dele.
- É a segunda pessoa que diz isso esta noite. Mas não estavam cumprindo ordens quando profanaram nossos
corpos. Não estavam cumprindo ordens naquele massacre. Você estava se divertindo e rindo muito com nossa
dor e nossos gritos. Eu nem mesmo pude terminar o sinal da cruz... – Ela acrescentou em um murmúrio
dolorosamente triste. Então o ódio voltou ao seu rosto. – Eu não polparia sua vida nem se a minha pudesse ser
trazida de volta. Meus filhos nunca crescerão e me darão netos. Os seus sim! Você não merece viver essa dádiva!
Ela se levantou e virou. Toda a parte de trás de seu corpo da cabeça aos pés estava corroída, gosmenta, com
pedaços de pele, músculos e ossos à mostra. Do lado direito de sua cabeça um ferimento à bala, com boa parte
do crânio exposto, estava banhado em sangue, pó branco e pequenos galhos e pedras. Seus movimentos eram
um misto de elegância e estranheza porque a parte superior e inferior pareciam quicar levemente uma na outra,
como se os ossos do tronco, das costelas talvez, estivessem quebrados. Ele não aguentou a cena repulsiva e
acabou vomitando, sem nem conseguir levantar a cabeça o suficiente já que seu corpo doía demais para fazer
qualquer movimento. Acabou caindo de cara no próprio vômito. Alexandra vendo a repulsa que causara no
homem pareceu ficar ainda mais furiosa. Seus olhos brilhavam de raiva, seu rosto se contorceu deixando à
mostra uma face deformada como se muitos ossos estivessem quebrados e o rosto queimado quase totalmente
pelo ácido. Ao mesmo tempo o chão tremeu e, à frente dela, uma rachadura se abriu e um cheiro forte emanou
do buraco.
Voikov conhecia bem aquele cheiro e o terror se aprofundou em seu íntimo só com a possibilidade do que
poderia significar. Botkin e Ermakov ainda estavam do mesmo jeito, pouco atrás de Alxandra. Ermakov agachado
daquele jeito insano e Botkin em pé atrás dele como um encosto maligno de semblante imperturbável que era
mais assustador do que se ele estivesse gritando. Alexandra olhou para Botkin e ele segurou Ermakov pelos
cabelos o arrastando para a beirada do buraco recém aberto no chão. Ermakov não tentou lutar, apenas tinha
um semblante cada vez mais aterrorizado como se alguma parte de sua mente ainda percebesse o que estava
acontecendo, mas seu corpo não pudesse reagir apropriadamente. Voikov tentou se apoiar nos braços para
levantar e correr, mas era inútil. Seu corpo estava pesado, o frio assustador parecia uma entidade que o prendia
ao solo tanto quanto a dor. Talvez até mais. Alexandra estava ao lado dele agora, embora ele não tivesse visto
ela se aproximar. Ela chutou suas costelas, seus pés fantasmagóricos fortes demais apesar de parecerem tão
frágeis naquele corpo translúcido. Os golpes quebraram mais ossos, a dor lancinante o levando à irracionalidade,
cada chute o arrastando para onde Ermakov estava. Quando ela parou, ambos os homens estavam na beira do
buraco e, com horror, Voikov confirmou suas suspeitas. O buraco inexplicavelmente estava cheio até a borda
com ácido sulfúrico como uma piscina mortal.
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Botkin se aproximou de Ermakov, agachou, ergueu o queixo babado no homem o fazendo olhar para ele, e
disse: - Você já fez o que mandei. Muito obediente. Parabéns. Por isso vou lhe dar uma escolha. Você pode ter
seu golpe de misericórdia que prometi ou posso deixá-lo viver assim.
- Botkin tem um bom coração. Eu tinha, mas perdi quando vi meu marido morrer e minhas filhas serem
atingidas sem piedade. – Alexandra quase rosnava de raiva falando de pé, altiva, na frente de Voikov. Ele
conseguira se levantar um pouco, talvez numa última onda de adrenalina causada pela sua vontade de viver,
com esperança ao ouvir a proposta de Botkin para Ermakov, ficando quase de joelhos de frente pra mulher
fantasmagórica.
- Eu posso mudar. Eu posso. Posso compensar. Posso contar para todos onde estão seus corpos e vocês serão
sepultados dignamente. Só preciso de uma chance. Só uma. – Voikov estava aos prantos agora.
- Como foi que você disse naquela noite mesmo? Diga, Voikov. – Ela disse o nome dele com mais nojo do que
se estivesse com meio quilo de vermes na boca.
- Eu disse... Bem... Eu, eu disse... O mundo nunca saberá o que fizemos com eles... – Voikov respondeu,
sentindo a urina descendo por suas calças tamanho era seu medo da morte.
- Você não tem ideia do quanto está errado. Seus nomes serão esquecidos, mas o nosso se tornará uma lenda
que irá perdurar por séculos. Talvez você possa mesmo mudar, talvez posso mesmo se arrepender... – Ela disse
causando uma onda de esperança em Voikov que quase imediatamente, num reflexo, pensou em formas de se
vingar daquela fantasma que o humilhara fazendo ele se mijar de medo. – Ou talvez não. – Alexandra disse o
empurrando com o pé em seu peito, fazendo Voikov cair na ‘piscina’ de ácido sulfúrico.
Os gritos de Voikov duraram pouco, seu corpo sendo rapidamente consumido pela substância poderosa, mas
assustariam até o mais corajoso dos homens. Sem dúvida assustaram Yurovsky que parou sua corrida no meio da
floresta, olhando para todos os lados, tentando encontrar os dois homens desaparecidos e a fonte daqueles
gritos de gelar a alma que ouvira. Ele se forçou a voltar a correr na direção dos gritos que torcia para não ser de
Voikov como pareciam.
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Castigo de vida
Rússia (1894 – 1918)...
Eu não consigo. Não estou pronto para ser o czar... Nicolau pensava atordoado olhando o corpo de seu pai, o
czar Alexandre III, no caixão aberto. Ele não queria ser o czar, nunca quis, mas uma série de eventos o levaram a
isso. Durante todos os anos seguintes ele tentara seguir os passos rígidos de seu pai no governo. Não por ter
necessariamente as mesmas crenças, mas por insegurança. Seu pai fora um czar admirado por seu povo e temido
por seus inimigos, então se ele seguisse exatamente os mesmos passos não teria como errar. Mas as táticas de
guerra e o jogo político definitivamente não eram seu forte. Sempre que uma decisão em uma dessas áreas
precisava ser tomada ele aceitava as sugestões de seus homens de confiança, principalmente seu tio, o
autoritário Sergei. Isso fora um erro desde o primeiro dia de seu reinado quando uma tragédia aconteceu na
festa para o povo em honra à coroação do novo czar e, ao invés de cancelar a participação nos bailes e prestar
seus respeitos às vítimas, Nicolau foi aos bailes normalmente por insistência de Sergei. Seus inimigos
aproveitaram esse acontecimento para dar à Nicolau o apelido de Nicolau Sangrento. Isso o afetou mais do que
qualquer coisa. Nicolau era um homem de bom coração, do tipo que atrai o carinho das pessoas com facilidade
por seu jeito amável, ele não estava acostumado à ser odiado e aquilo doía pra caramba.
Os anos foram passando e o foco das decisões do czar eram mais administrativas do que políticas e isso
custaria muito caro nos períodos de guerra que viriam. Muitas vezes seu coração bondoso aconselhava uma
decisão, mas ele ignorava para seguir as diretrizes de Sergei ou o que achava que seu pai faria. Nico sabia que
não era um santo, nunca tentara ser, mas se sentia mal com as decisões difíceis que precisava tomar e por elas
afetarem as pessoas de uma forma dura demais. Isso não era surpresa. Todos que conheceram Nicolau desde a
infância sabiam que ele era mais coração e menos razão. Muitos de seus conselheiros adoraram quando Nicolau
se tornou o herdeiro ao trono, pois sabiam que ele seria fácil de manipular. E foi. Quando Tatiana e Alexei iam
crescendo, muitos aliados temiam que esse poder de manipulação acabaria quando Alexei assumisse o trono ou,
num golpe de azar, a lei que impedia que uma mulher governasse fosse abolida e Tatiana ou Olga assumissem o
trono. Tatiana era astuta demais, forte, firme e seria uma governante habilidosa, ou a conselheira de Olga. O
assassinato de Sergei por uma bomba terrorista foi um golpe pesado no governo de Nicolau. Ele se sentiu mais
perdido ainda sem seu mais forte conselheiro, mesmo tendo outros. O governo de Nicolau passou a perder cada
vez mais força até acabar com sua abdicação.
Nos últimos meses de vida, Nico tentava se mostrar alegre e confiante para não deixar sua família
desesperada. Ele sempre perguntava a si mesmo se tinha sido um bom czar. Ele tentara ser, tentara muito,
mesmo nunca tendo desejado isso, ele se esforçara tanto... Mas será que fora um czar ruim? Ou será que ele
fora um bom czar e a queda do poder dos Romanov era inevitável, independente de quem fosse o czar? Fosse
como fosse, ele temia pela vida de sua família. A dele não era o que o deixava em pânico, mas a morte, a ideia de
que as pessoas que mais amavam poderiam morrer o assombravam. Ele nunca se perdoaria se algo de ruim
acontecesse com eles. Quando os rebeldes colocaram ele com sua família no exílio ele teve certeza de que os
bolcheviques eram boas pessoas que só queriam uma sociedade melhor, afinal, eles não o mataram como seria o
esperado, nem o enviaram para algum lugar distante. Eles o colocaram em um lugar com sua família, com algum
conforto e guardas que os tratavam com respeito. Tudo ficaria bem. Logo eles seriam enviados para outro país,
talvez para a Inglaterra onde seu primo George reinava e ele poderia viver uma vida livre do peso do governo em
seus ombros. Talvez até pudesse encontrar seu neto...
Yurovsky, comandante daquele novo local, era um homem que claramente odiava Nicolau e não disfarçava
com seus olhares e o tom de voz sempre autoritário com ele. Certa vez, incomodado por ser tão odiado pelo
homem que ele nem conhecia, Nico o perguntou o que não o agradava nele. Então o homem respondeu: - Você
é um governante fraco que tornou a Rússia fraca, corrupta e incapaz de evoluir econômica e militarmente. Por
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sua fraqueza, nosso poder no mundo não duraria mais nem 100 anos. Não odeio você, Nicolau Romanov. Eu
tenho um profundo desprezo por você.
Muitas vezes seus aliados planejaram uma fuga para ele, mas nunca envolviam Alexandra por ela ser alemã e
muitos aliados estarem em péssimas relações com os alemães. Ele nunca deixaria ela para trás. Eles sofreram
tanto para se casarem, nunca a abandonaria. Além do mais, em breve, se eles se comportassem bem, com
certeza aqueles rebeldes os enviariam para fora do país... Ele tinha certeza disso quanto mais o tempo passava.
Sua certeza desapareceu apenas na madrugada de 16 para 17 de julho de 1918, quando Yurovsky os acordou
e levou para um quarto onde seriam arrumados para uma foto e depois enviados para um novo local. A família
estava assustada, apesar de seus semblantes controlados e calmos como convinha à dignidade real, ele sentia no
ar aquela tensão. Se virou para olhar sua família movendo os lábios silenciosamente pedindo calma, que tudo ia
ficar bem. Finalmente vão nos enviar para fora do país. Nico pensava exultante. Sua família finalmente estaria a
salvo.
Yurovsky, sem mesmo esperar Nicolau se virar para olhar para ele, começou a citar em tom formal: - Nikolai
Alexandrovich, em vista do fato que seus parentes estão continuando seu ataque a Rússia Soviete, o Comitê
Executivo Ural decidiu executar você.
Um frio percorreu a espinha de Nicolau, ainda de costas para Yurovsky. Medo, incredulidade, frustração,
desespero... Foi como se uma barragem de sentimentos estourasse dentro dele e o preenchessem por completo
em um nanosegundo. Ainda congelado no lugar, de frente para sua família, ele virou a cabeça com olhos
esbugalhados, horrorizados. Ele sabia a resposta, mas queria perguntar mesmo assim o que aconteceria com sua
família se apegando à esperança de que eles dissessem que sua família e amigos seriam poupados. – O que? O
que... – ‘O que acontecerá com minha família?’ era o que ele ia dizer, mas não houve tempo. Apenas pôde ouvir
os gritos das mulheres e o cano da arma de Yurovsky apontada para ele. Ouviu o estrondo, viu a fumaça sair da
arma, os olhos cinzentos de Yurovsky, uma dor aguda na cabeça. Tudo ficou escuro. Seu corpo tombou no chão,
ouviu ao longe, como um sonho ruim, gritos e disparos e depois...nada.

Floresta de Ipatiev, Ecaterimburgo, 1919.


- Olá. – A voz calma e melodiosa disse ao lado de Yurovsky.
Com sua arma apontando para a direção da voz, pronta para atirar, Yurovksy se virou assustado, pois, mesmo
com sua atenção constante, não ouvira ninguém se aproximar, nem mesmo sentira a presença do seu lado, a
menos de um metro, antes daquele ‘olá’. – O que?
- Eu disse isso também. Duas vezes. – O homem disse fazendo um dois com os dedos.
Yurovsky estava muito perto, muito mesmo, do homem com quem falava. Não tinha como ele estar
imaginando aqui. Não tinha como... Mas aquele rosto era inconfundível. Aqueles olhos que pareciam a marca
registrada dos homens daquela família por gerações... Não. Ele estava morto.
- É de bom tom responder quando alguém nos cumprimenta. – Nicolau disse com um sorriso gentil.
- Você está morto. – Yurovksy, ainda apontando a arma pra testa de Nicolau, disse. – Espere! É claro! Agora
tudo faz sentido! Você está ajudando os brancos a vingarem sem primo e se aproveitou de sua famosa
semelhança com Nicolau para me assustar. Eu só não imaginava que o rei da Inglaterra fosse se rebaixar a um
papel desses.
- Seria bom se fosse isso. Sinto falta do vento na minha pele... – Nicolau disse com visível melancolia.
- Onde estão meus homens, rei George? – Yurovsky disse convencido de que aquilo era um truque muito bem
elaborado, mas ainda um truque.
- Não sou meu primo George. Seus homens estão mortos. Eu queria que tivesse outro jeito, mas não pude
evitar. Eu não tinha o direito de tirar essa satisfação deles. Eu já os devo muito... – Nicolau disse admirando uma
folha caindo e tentando tocá-la. Em vão. A folha passou por sua mão como se ela fosse....fantasmagórica.
- Que diabo de truque é esse? – Yurovsky viu a cena com olhos arregalados. – Você... Não! Fantasmas não
existem! Depois da morte nada existe! São contos infantis tolos!
- E ainda assim... – Nicolau disse abrindo os braços para mostrar que ele estava ali. Ele usava uma roupa
militar simples, verde, queimada em algumas partes, sangue tomava toda a frente da roupa como se ele tivesse
deitado de frente em uma poça de sangue, seu rosto tinha marcas de queimadura profundas, suas costelas
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faziam um barulho irritante de ossos quebrando em cada movimento que fazia, embora não parecesse afetá-lo
de alguma forma. Em contraste, sua postura estava perfeitamente ereta, seus cabelos bem penteados para trás.
– Eu esperei. Esperei com paciência. Seguimos suas ordens sem reclamar, sem questionar. Mesmo quando todos
nós, incluindo meu filho doente, fomos obrigados a nos alimentarmos com o mesmo alimento dos soldados,
mesmo quando nem mesmo manteiga ou café nos foram permitidos, mesmo com as piadas e os olhares
depravados de seus homens para as mulheres... Nós não respondemos, não reclamamos, não tivemos nenhuma
reação, nem mesmo um olhar. Eu sempre disse para eles que vocês estavam só nos testando, aproveitando os
últimos momentos conosco para nos fazer sofrer por qualquer dano que vocês acreditavam que causamos ao
povo. Que depois, se não reagíssemos, nós seriamos libertados em outro país, no exílio, é verdade, mas sem
nenhum dano. Porque? Porque nos matar se não demos nenhuma demonstração de rebeldia por suas regras? Se
queriam vingança por algo que meu governo não realizou, porque não matar a mim apenas? Eu era o czar, não
minhas filhas, ou minha mulher, ou meu médico e amigo, ou nossos servos tão leais! – O tom de Nicolau não era
de raiva, era apenas de tristeza, de dor.
- Eu recebi ordens. Não havia nada que eu pudesse fazer. Lenin nos ordenou que todos fossem mortos. –
Yurovsky, que havia abaixado a arma, disse e sabia que se aquilo fosse algum tipo de teste, logo ele mesmo
estaria morto por seus próprios aliados porque aquela informação nunca deveria ser pronunciada em voz alta.
Lenin fizera até o impossível para que a ordem fosse destruída, matando até mesmo o mensageiro, assim nunca
sendo possível provar sua ligação com o fato.
- Você poderia ter feito algo sim. Poderia ter salvo pelo menos as crianças. – Nicolau disse com uma tristeza
tão grande que até Yurovsky teve pena. O falecido czar alisou a barba que já estava ficando branca pela idade
quando ele morreu. – Você não os pouparia se pudesse. Não... Eles poderiam voltar para reinvindicar o trono um
dia.
Yurovsky não respondeu, mas sabia que era verdade. Os Romanov haviam dominado a Rússia por mais de três
séculos. Não era uma raça a ser subestimada. – Porque você está aqui agora?
- Eu? Eu estou sempre aqui a um ano, Yurovsky. E aqui permanecerei por mais algumas décadas. Foi você e
seus homens que vieram até nós. – Nicolau disse.
- Décadas? Vocês nunca sairão daqui. – Yurovsky disse.
- Tem certeza? – Nicolau disse com um sorriso genuíno e tão bondoso que era sua marca registrada.
- Você vai me matar? – Yurovsky decidiu perguntar. Se era para morrer, que fosse logo de uma vez.
- Não. – Nicolau disse olhando firmemente nos olhos do outro homem.
Yurovsky olhou para ele incrédulo, mas sabia que era verdade pelo olhar do fantasma. Mas isso era tolice. Se
todos os outros estavam mortos, porque ele, o comandante, seria poupado?
Como se lesse a mente de Yurovsky, Nico respondeu: - Você não entende, não é? Você acusou meu governo
de ser fraco. Você confia plenamente, acredita mesmo, no que essa revolução prega. Eu respeito isso. Um
homem que segue aquilo em que acredita. Talvez se eu tivesse seguido mais o que eu acreditava... Não importa.
Não mais. O maior castigo que posso lhe dar por esse massacre, Yakov, é a vida. Você viverá para ver a lenda que
minha família se tornará, a redenção que o povo nos dará, o ódio que eles terão aos líderes comunistas e ao
próprio comunismo, o ódio pela descoberta do que nos foi feito, as guerras que vocês mesmos criarão com
metade do mundo, a corrupção em seu amado sistema político, a perseguição que vocês criarão entre os seus,
os fracassos que entrarão para a história...
- Isso nunca irá acontecer! Isso é o que você gostaria que acontecesse, mas não vai. – Yurovsky disse irritado.
- Ah, mas vai acontecer. E você verá tudo isso. Mas o melhor, na minha opinião, será sua decepção quando
ver seu novo sistema político caindo, não durando nem mesmo um terço do que o governo de minha família
durou na Rússia.
Yurovsky não aguentava mais ouvir aquela baboseira. Com raiva, cansado, com fome e sede, mentalmente
esgotado, ele só queria enfiar uma bala na cabeça daquele czar fraco. Outra. Sem pena, ele ergueu a arma,
apontou para Nicolau e atirou até descarregá-la no coração e na cabeça. Onde as balas atingiram sangue fétido e
escuro escorreu. Nicolau olhou com pena para Yurovsky e isso o deixou mais furioso. Partindo para cima de
Nicolau, o homem tentou em vão desferir vários golpes que passavam pelo czar como se ele fosse feito de vento.
Nicolau segurou os dois pulsos de Yurovsky com uma força surpreendente. O homem olhou para aquelas mãos
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fantasmagóricas em seus pulsos confuso e com raiva. Como elas podiam segurá-lo, mas ele não podia acertar
aquele homem? Isso era injusto e cruel, ele pensou.
- Foi exatamente isso que pensei durante esse tempo preso aqui com minha família e amigos. – Nicolau disse
e mais uma vez Yurovsky imaginou se aquele ser podia ler sua mente. – Sabe como é estar morto e não poder
encontrar meus ancestrais e amigos? Sabe como é morrer e ficar preso neste mundo? É como se nossos espíritos
vivessem no frio e na escuridão. Podemos ver a luz do dia, mas não podemos sentí-la. Podemos ouvir os risos dos
caçadores, mas não podemos sentir alegria. Vemos a vida fluindo na natureza, mas nos sentimos sem vida, sem
paz, sem esperança. Não é um frio no corpo, nem mesmo neste corpo sem pele, é um frio no coração, nos
sentimentos. A única coisa forte o bastante que se pode sentir é dor, raiva. Eu sinto raiva por minha filha não ter
crescido, sinto raiva por saber que vocês caçaram meu neto que nada tinha a ver com o trono czarista, sinto raiva
por terem nos dado esperança de dias melhores que nunca vieram. Mas, como disse, não vou atentar contra sua
vida, nem mesmo vou perseguir sua alma, embora eu e minha família possamos sair daqui para isso. Não. Vou
deixar que a vida mesma cuide de você.
- Você é um fraco. Sempre soube disso e agora tenho mais uma prova. – Yurovsky devia ser louco para insultar
um fantasma que tinha todas as razões do mundo para odiá-lo, mas a verdade é que ele não era um homem de
meias palavras.
Nicolau sorriu e soltou seus pulsos. – Talvez eu seja mesmo. Mas não sou adepto da violência, apenas recorro
à ela quando extremamente necessário. Vá. Siga por aquele caminho e você encontrára a saída. – Ele indicou
uma trilha que surgira feito mágica do nada.
Yurovsky não precisava ouvir duas vezes. Começou a caminhar naquela direção, andando meio de lado
alternando entre olhar para o fantasma e para o caminho.
- Só mais uma coisa. – Nico disse e se virou para encarar o outro homem. Seus olhos azuis estavam mais
vívidos. – Eu não perseguirei você, você pode sair daqui e viver sua vida em paz, ver seus filhos e netos
crescerem, uma bênção que você não me deu. Mas isso tem um preço.
- Estou ouvindo. – Yurovsky disse trêmulo.
- Deixe-o em paz. Se atentar contra a vida dele uma única vez que seja eu o assombrarei pelo resto de seus
dias e o trarei para fazer companhia a seus...camaradas. – Nico disse sério.
Yurovsky acenou com a cabeça. Ele não precisava perguntar, sabia bem a quem Nico se referia. – Eu prometo
que nunca farei nada contra ele, direta ou indiretamente. – Virou-se e correu pela trilha.
- Acredita nele? – Botkin perguntou aparecendo sabe-se-lá de onde ao lado de Nicolau enquanto Yurovsky
corria pela trilha.
Nico olhou para o médico, seus servos e sua família que haviam surgido atrás dele e apenas sorriu.

~o~
Não demorou mais do que uns poucos minutos para Yurovsky dar de cara com seu acampamento e... Mortos.
Três estacas queimadas com cadáveres deploráveis, totalmente queimados, mas que, assustadoramente, ainda
se mexiam e emitiam sons terríveis. Gemidos, gritos e pedidos de socorro ainda emanavam de corpos que não
eram mais do que ossos e resquícios de pele queimada ainda presos nas estacas. Seu estômago deu um rebuliço
e ele se segurou para não vomitar. Correu para sua tenda pegou um pouco de comida que sobrara, colocou
numa sacola de tecido improvisada e correu. Mas não foi longe. Subindo uma pequena elevação atrás das
tendas, um cheiro horrível de ácido e sangue o atingiu. O ar parecia corrosivo ali. Mas o que o assustou mesmo
foi a dupla de cadáveres parcialmente destruídos, muito nojentos e melequentos que estavam na borda de um
buraco cheio de um líquido lamacento. Os dois corpos estavam parcialmente fora da piscina grotesca, da barriga
pra cima, braços esticados para frente, marcas de unha na terra, mandíbulas muito abertas, anormalmente
mesmo. Os músculos e ossos formavam um corpo tão nojento que era difícil até mesmo saber o que músculo
derretido e o que era o osso deteriorado. Um deles que milagrosamente ainda tinha um único olho bom, com
uma mancha escura no canto interno, abriu a boca mais ainda e soltou um grito estridente quase feminino.
Depois sua mandíbula se soltou fazendo a parte inferior cair e ir parar perto dos pés de Yurovsky. Foi demais.
Tudo que ele tinha no estômago (que também não era muito) foi colocado pra fora. Ele vomitou tanto que sentiu
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falta de ar, sem conseguir parar a crise. O outro corpo do nada se mexeu e o pavor fez Yurovsky correr feito
maluco, ainda vomitando um pouco.
Ele só queria sair daquele pesadelo. Lembrou-se de seguir a trilha que parecia ser a floresta se abrindo
conscientemente para ele passar. Loucura? Claro que parecia loucura, mas, caramba, ele tinha visto cadáveres
gritarem, fantasma de um morto a um ano, uma noite que parecia não ter fim apesar de ter certeza que o Sol já
devia estar no centro do céu. Uma floresta com vontade própria não parecia nem tanta loucura assim
comparando com isso tudo. Quando ele passou ao lado de um lago congelado, parou na beira do lago, colocou as
mãos nos joelhos, tentando respirar com mais calma. Estava bem perto do lago, sentindo a brisa fria em seu
rosto, acalmando seus batimentos quando abriu os olhos. Porque diabos ele abriu os olhos? Era algo que ele ia
se perguntar pelo resto da vida. Sob o gelo fino havia um corpo de olhos fechados, expressão de pura angústia,
branco-azulado. Netrebin. Yurovsky segurou a respiração reconhecendo o homem que, apesar de estar na água
na beira do lago, parecia ser muito profunda sob o gelo. Não fazia sentido. Mas nada naquela noite sem fim
fizera sentido. De repente o cadáver afogado arregalou os olhos e Yurovsky não conteve um grito assustado. O
susto diminuiu e ele, na esperança de salvar o homem, passou a esmurrar o gelo para libertá-lo. O gelo rachava
e, quando parecia que ia quebrar, as rachaduras desapareciam completamente. Três vezes, com vários socos, ele
rachou bastante o vidro e ele se reconstruiu sozinho. O gelo já tinha manchas de sangue dos punhos de Yurovsky
feridos com o esforço. Quando ele ia começar a quarta tentativa um bafo quente e fedorento à sua frente o fez
erguer a cabeça. Um cão negro enorme, babando furiosamente o encarava. Como aquele animal enorme estava
em cima do gelo fino sem quebrar? Quem sabe? O fato é que depois de alguns olhares ele reconheceu o animal.
Ele matara acidentalmente aquele cachorro durante a tentativa de destruir com ácido os corpos dos Romanov. O
cachorro pertencia à algum camponês e sempre aparecia nos muros da Casa Ipatiev. Os Romanov jogavam
comida para eles e os guardas deixavam porque não achavam que era algo com o que se preocupar. Em pouco
tempo o animal se sentia tão à vontade com os Romanov que a família até mesmo lhe deu um nome, Koshka, e o
animal atendia. Quando o caminhão saiu com os corpos, aparentemente o animal os seguiu inocentemente
achando que ganharia comida. Ninguém notou. Mas quando estavam jogando ácido nos corpos, o cachorro se
aproximou para defender os cadáveres e o frasco de ácido caiu em cima do bicho. Os homens viram aqueles
ferimentos mortais no animal e apenas o chutaram para a cova de Alexei e Maria, sem nem mesmo o matar, o
enterrando ainda vivo. Afinal, era só um animal.
Yurovsky correu tropeçando nos próprios pés para a trilha, com um uivo assustador atrás dele. Virou-se e viu
Um garoto ao lado do cachorro parados em cima do gelo olhando para ele. Alexei. Isso o fez correr mais ainda
como se o próprio capeta estivesse o perseguindo. Então, do nada, uma luz ofuscante apareceu, a floresta ficou
para trás e ele finalmente viu a luz do dia. Parando numa estrada ainda coberta de neve, ele caiu de joelhos no
chão chorando em meio à dor e ao alívio. O saco de comida que ainda carregava caiu no chão e no lugar da carne
e dos pedaços de pão haviam apenas vermes. Muitos, muitos, muitos vermes mesmo como se os alimentos
tivessem se transformado naquelas coisas nojentas. Ele caiu de bunda no chão e rastejou de costas para o meio
da estrada, para longe daquela nojeira. Um pequeno caminhão militar estava passando e quase não conseguiu
freiar e ele estava esgotado demais para se levantar. Os soldados que desceram reconheceram ele e o
chamaram, mas ele ouviu aquelas vozes muito ao longe, mal entendendo o que lhe era dito. Seus olhos
arregalados, o estado deplorável de suas roupas, o odor de bebida, pólvora e vômito, deixou os homens
preocupados. O apoiaram, praticamente o carregando, e colocaram ele sentado na traseira aberta do caminhão,
improvisando algum agasalho. Yurovsky parecia um cubo de gelo trêmulo e fedido. Um dos homens se sentou ao
lado dele para apoiá-lo e o outro pegou a direção. Quando o caminhão começou a se mover Yurovsky pôde ver
na margem da estrada, à frente das árvores, toda a família Romanov, o médico, os servos, o cachorro alinhados
lado a lado o encarando com olhar de puro ódio. Menos Nicolau que o olhava da mesma forma meio triste e
meio bondosa.
Fraco de merda. Yurovsky pensou tentando afastar o medo que sentia. Como se fosse uma resposta macabra
ao seu pensamento, atrás dos Romanov e seus aliados apareceram seus homens, todos eles, com expressões
apavoradas olhando para ele como se implorassem para que ele não os deixasse ali. Os homens eram figuras
translúcidas agora, mas nojentas, com peles, dentes, olhos, narizes, tudo caindo lentamente, um a um. Yurovsky
virou o rosto e fechou os olhos com muita força. Não queria e não iria mais ver aquilo.
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- Vocês serão vingados, camaradas. Nunca deixarei um Romanov vencer. Eu juro. - Yurovsky murmurou
sozinho no quarto de hospital onde fora colocado há algumas horas quando chegaram ao quartel, com punhos
fechados, nós dos dedos brancos tamanha era a força no gesto.
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Caças e caçadores – Parte I


Rússia, 1921.
Dois anos. Dois anos de um ‘afastamento’ que mais pareciam uma sentença para Yurovsky. Depois do estado
que ele fora encontrado, o sumiço de seus homens sem nenhum vestígio na floresta e da completa amnésia que
ele alegara ter, lembrando-se apenas de ter partido para o acampamento, mas nunca de ter chegado lá ou o que
houve depois, o governo comunista achou melhor afastar o homem de suas funções por um período para
investigar essa história mal contada. Um ano se passou até ser provado que Yurovsky era uma vítima do que
quer que tenha acontecido com seus homens e que ele sofrera algum tipo de lavagem cerebral resultando
naquela amnésia. Depois disso, há um ano, ele fora colocado em serviços administrativos, mas era sempre
observado por agentes do governo disfarçados de colegas de trabalho. Claro que Yurovsky sabia que era
observado. Caramba ele era um bolchevique e um ex-membro da polícia secreta, ser desconfiado era a essência
mais básica do seu grupo. Eram pessoas desconfiadas mesmo sem um motivo, imagine naquela situação então.
Mas ele andou na linha, não tinha porque não andar, ele era leal à causa, talvez o mais leal ali, afinal ele liderou o
ataque...não...o massacre do czar e sua família. Não tinha como provar mais a lealdade do que isso. Ele queria
voltar à ação, não ficar ali em meio a papéis com a bunda em uma cadeira, afinal ele era um agente da polícia
secreta bolchevique, não era um homem de ficar parado, arquivando relatórios e mais um monte de papeis
idiotas.
Paciência, Yakov, paciência. Ele repetia para si mesmo todos os dias naquele maldito escritório. Ele sabia
como ganharia 100% da confiança dos superiores, só precisava aguardar o momento certo. De bônus, se vingaria
daqueles fantasmas estúpidos.
Mas aquele dia trouxe a oportunidade tão aguardada. Um jantar em comemoração aos três anos da morte do
czar seria oferecido em um espaço luxuoso, com a presença do alto comando e, como único membro restante do
pelotão de fuzilamento além de comandante da operação, Yurovsky seria um convidado de honra. Era o
momento ideal para se aproximar novamente do líder da revolução e expor seu plano.
Naquela noite, depois de alguns discursos, brindes e toda essa baboseira, Yurovsky finalmente foi levado para
perto de Lênin, o líder da Revolução, e puderam conversar um pouco. Era estranho ver Lênin naquele lugar tão
chique porque ele não gostava de luxos, mas como um símbolo da liderança revolucionária era obrigação dele
aparecer nesses eventos, afinal ele era o elo que unia os bolcheviques e o Partido Comunista no governo
provisório. Era um homem intenso, oito ou oitenta, sempre falando com uma paixão quase religiosa pelos
conceitos marxistas, ateu e muito, muito carismático. Apenas Lênin e Yurovsky sabiam com certeza que o líder
revolucionário, que odiava abertamente as lideranças czaristas, havia ordenado o assassinato de todos os
Romanov e quem estivesse com ele. Não era surpresa então o quanto Lênin respeitava e talvez até confiasse em
Yurovsky. Com um sinal sutil enquanto conversavam, Yurovsky atraiu Lênin para um local mais reservado onde
ninguém poderia ouví-los.
- Camarada... É bom ver sua recuperação. Soube do incidente naquela maldita floresta. Quero que saiba que
não descansaremos até descobrirmos quem fez isso com você e onde estão seus homens. – Lênin disse com
aquele ar de paixão pelo que fazia.
- Agradeço, mas há outra coisa que quero conversar. – Yurovsky disse ainda meio desconfiado, buscando com
os olhos e ouvidos por qualquer sinal de algum espião na sala. – Acredito que tenho uma pista de onde está o
bastardo Romanov.
Os olhos de Lênin se arregalaram, logo desaparecendo naquela carranca habitual sempre que o nome
Romanov era mencionado. – Continue.
- Antes da minha viagem para a floresta a dois anos que terminou de forma tão...estranha...eu encontrei
alguns rastros sutis de Varonov, o pai do moleque de Olga. Não era nada concreto, apenas alguns detalhes que
não se encaixavam. Quando voltei, durante meu tempo de reclusão em minha casa, aproveitei para analisar os
documentos que encontrei. Muitos estavam parcialmente destruídos, mas consegui entender alguns detalhes. O
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fato é que haviam documentos de embarque pouco depois da abdicação do czar em navios vistoriados por nós
que pareciam limpos na época. Mas, em três deles um marinheiro, uma enfermeira com um filho, que não eram
parentes entre si, embarcaram a serviço do navio. Aquilo me pareceu suspeito, mas nada incomum realmente.
Podia ser uma coincidência. Só quando encontrei alguns documentos parcialmente queimados com o cadáver de
Miguel, o irmão do czar, e pude analisa-los com calma é que uma ideia me ocorreu.
Lênin ouvia com o cenho franzido e um olhar que se podia imaginar que saíriam raios daqueles olhos a
qualquer minuto. – Você acha que esse marinheiro sem família na verdade era casado com essa enfermeira e pai
desse filho bastardo dela?
- Sim. Mas não é só isso. Veja. – Yurovsky mostrou o papel parcialmente queimado, o brasão dos Romanov do
topo manchado de sangue, com um rabisco de lápis que acendeu um nome escrito provavelmente em outro
papel, em cima desse, causando uma marca. No papel estava escrito ‘Ivan Mikailov...’ – Esse é um papel usado
apenas para decisões judiciais na época do czar. Acontece que o nome do tal marinheiro é Ivan Mikailovich, a tal
enfermeira se chama Natasha Alexanovna.
- Alexanovna... Não era o nome de solteira da dama de companhia da imperatriz? A que se casou com Pavel
Voronov? – Lênin perguntou e Yurovsky mais uma vez admirou-se com a memória do homem.
- Sim. Creio que ninguém pensou que iríamos nos preocupar com mais uma enfermeira dentre muitas num
navio para nos importarmos com seu nome. Mas tenho certeza que esse tal Ivan Mikailovich é Pavel Voronov, e a
tal de Natasha e o moleque são sua esposa e o filho bastardo de Olga.
- Os indícios são consideráveis, camarada, mas não podemos ter certeza. – Lênin disse. Para fazer o que
precisava ser feito se aquele fosse mesmo o único descendente de Nicolau, eles precisavam ter certeza.
- Foi por isso que esperei tanto para informar minhas suspeitas. Enquanto estive trabalhando internamente,
procurei alguns contatos fora do país e, depois de muitas pistas falsas, o que prova que esse Ivan está se
escondendo propositalmente, uma informação concreta apareceu. Ele está vivendo na França, casou-se com a
tal enfermeira e assumiu o filho dela como se fosse seu. – Aquilo foi o bastante para ambos. Isso era
praticamente uma confissão da verdadeira identidade daquelas pessoas.
- Você reconheceria Pavel e sua esposa se o vissem? – Lênin perguntou.
- Sim. Sem dúvida. – Yurovsky respondeu.
- Não posso tirar você da Rússia ainda. Preciso de homens de confiança para o que pretendo fazer. Se estiver
disposto a me ajudar, prometo que lhe darei a honra de acabar com essa gente. – Lênin disse.
- Seja o que for, estou sempre ao lado da Revolução. – Yurovsky respondeu quase como um juramento.
Naquele mesmo ano, Lênin facilitou a nomeação de Yurovsky como chefe do Departamento de Ouro do
Tesouro do Estado Soviético, meio como um reconhecimento, meio como uma forma de manter contato de
forma mais pessoal entre eles sem levantar suspeitas.

~o~
No ano seguinte, em Outubro, com ajuda de Yurovsky e muitos apoiadores, Lênin derrubou o governo
provisório que regia a Rússia desde o fim do czarismo e criou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a
União Soviética ou simplesmente URSS. Nesse meio tempo, tão sigilosamente quanto possível, Lênin e Yurovsky
reuniram informações que não deixavam dúvidas sobre e a verdadeira identidade de Ivan, Natasha e o pequeno
Bóris Mikhailovich, então com quase sete anos de idade. Quando fotos do garoto, tiradas por espiões, chegaram
às mãos de Lênin não havia mais como duvidar. O pequeno Bóris tinha o mesmo olhar típico dos homens da
família Romanov e era quase uma cópia fiel do próprio Nicolau naquela idade. Ele convocou Yurovsky e lhe
mostrou as fotos. Maria, a dama de companhia loira que agora se chamava Natasha, estava um pouco diferente,
cabelos mais curtos e escuros; Pavel não tinha mais a barba espessa, nem mesmo um bigode, e estava mais
magro, mas Yurovsky reconheceria aqueles dois, que ele caçara por tanto tempo, até mesmo embaixo d’água. O
casal agora tinha uma filha também, uma menina de uns dois anos, loirinha como a mãe. A missão seria enviar
Yurovsky e homens de confiança escolhidos por ele e Lênin para a França e acabar com a família toda de uma vez
para não deixar testemunhas. Porém, com a nova ordem política havia muito a ser feito antes que qualquer
membro de confiança pudesse sair do país para fazer qualquer coisa. A missão então foi adiada para dali a três
anos. Isso daria uma falsa sensação de segurança à Pavel e o tornaria um alvo mais fácil. Para evitar qualquer
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chance de fuga, uma mulher fora enviada até o casal para se aproximar como uma amiga, uma vizinha bondosa,
alguém que conquistaria a confiança do casal aos poucos e sempre manteria Yurovsky informado através de
telegramas codificados. A mulher era perfeita para o cargo, pois era uma russa que crescera na França, com pai
russo e mãe francesa, sempre falando ambos os idiomas e era extremamente leal à Lênin por razões
desconhecidas à Yurovsky. Infelizmente, em 1924, Lênin morreu. Stálin, seu sucessor, não conhecia os planos
secretos para acabar com Pavel e sua família porque Lênin não confiava nele e Yurovsky não sabia se podia
confiar nele, pois, dentre outras coisas, suspeitava que Lênin havia sido assassinado por ordem de Stálin.
Assim, as mensagens de Marie, a espiã de Yurovsky, continuou chegando, ele continuou dando ordens, mas
nenhum plano efetivamente foi lançado porque a dúvida sobre o apoio de Stálin e dos seus homens de confiança
só aumentava. Yurovsky permanecia em seu posto no Departamento do Tesouro e, mais de uma centena de
vezes, descobriu desvios de verbas e diversos tipos de corrupção no médio e alto escalão soviéticos. Era
decepcionante. Ele lutara tanto contra o czarismo, todos os nobres corruptos naquele governo... Mas não se
deixara abater. Os anos foram passando... Natasha e Ivan agora tinha quatro filhos, primas e primos de Pavel
(Ivan) que viviam na Alemanha décadas antes da morte do czar se juntaram à ele na França. A casa em que
viviam era na verdade uma fazenda de lavanda, com muitos animais, a casa principal que era enorme, casas
menores com sua família, alguns já casados com franceses e francesas, alguns com filhos, todos trabalhando
juntos ali. Marie agora era quase como da família, disfarçada como uma jovem viúva que herdara o pequeno
rancho vizinho à fazenda de Ivan. Até mesmo cozinhava com a família e levava vinhos fabricados em seu rancho
de presente eles. Foi nesse momento que Stálin descobriu todo o esquema de espionagem à uma família russa
que vivia na França a anos e chamou Yurovsky para confrontá-lo.
Cansado de toda a corrupção que, mesmo com seus relatórios detalhados, Stálin deixava passar, cansado com
toda aquela demora para atacar o último Romanov, Yurovsky propôs uma troca. Stálin o ajudaria nessa missão
de extermínio e ele destruiria as provas contra membros do alto escalão e sua corrupção.

França, 1931.
Mais um dia de trabalho que deixava Bóris animado. Viver na fazenda era difícil, mas ele adorava e, afinal,
nunca conhecera outra vida. Brincar com seus primos, irmãos e amigos, correr, nadar e até mesmo cuidar dos
animais da fazenda era muito divertido. Com 16 anos, o rapaz tinha a beleza típica dos russos, mas com algo a
mais. Seu pai sempre insistira em treiná-lo no manejo de espadas, facas, armas de fogo e até técnicas de luta
corpo-a-corpo. Sua mãe o ensinara desde pequeno a falar três idiomas ao mesmo tempo: russo, francês e inglês.
Sempre que algum sotaque diferente aparecia quando ele falava naquele idioma sua mãe batia em sua mão com
uma colher de pau. Seus pais o amavam, disso ele nunca tivera dúvidas, mas não entendia porque todo esse
rigor. Pra que aprender tudo isso? Sempre que perguntava seus pais diziam que nunca se sabia quando o poder
do conhecimento salvaria vidas. Isso o deixava mais confuso. Porém, apesar de tudo isso, Bóris era muito
inteligente e tinha prazer em aprender coisas diversas, muitas vezes aprendendo sem ajuda de ninguém. Certa
vez falara um alemão fluente em casa e quando lhe perguntaram quem o ensinara, ele respondeu que aprendeu
observou seus tios (como chamava os primos de seu pai) falando e aprendera. Se alguém naquela época tivesse
medido o QI do garoto teriam percebido que ele era superdotado. Mas seus pais de alguma forma sabiam, não
com os números de um teste, mas observando o filho.
Os amigos do garoto o chamavam de “Lorde” por causa do jeito aristocrático de se comportar que o menino
aprendera observando a mãe e, sinceramente? Ele adorava. O que ele não adorava era a presença de Marie, a
vizinha viúva. Ela era linda e ele sentia coisas vendo ela, afinal ele já era um rapaz com os hormônios gritando nas
veias, bonita, jovem, nunca se casara de novo depois que seu jovem marido morreu na Primeira Guerra. Mas
algo nela sempre o incomodara. Algo na amizade dela parecia... errado. Mas ela sempre fora gentil com ele,
sempre educada... Devia ser só implicância infantil, era o que ele dizia a si mesmo, sempre procurando agir com
lógica e justiça, algo característico dele. Aquela noite seria a festa da colheita na fazenda. Seus pais sempre
faziam um enorme banquete e reuniam toda a família e a única amiga próxima deles, Marie. Seus pais eram tão
desconfiados que nunca tiveram amigos próximos ali além da família e, por algum milagre, a tal viúva. Era
comum em alguns países, inclusive na França que o vinho fosse ingerido também por crianças, embora fosse um
pouco diluído em água para elas. Bóris não tinha mais idade para beber vinho diluído em água desde o ano
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anterior e se sentia um homem viril poor causa disso. Mas, sua mãe era superprotetora com ele e, sem contar ao
garoto, diluía o vinho dele em água, mais do que para as crianças, desde sempre. Ela não queria que Bóris tivesse
um único momento de embriaguez, apesar de Ivan lhe garantir que não havia sinal dos comunistas os
perseguindo a anos. Ela amava aquele garoto perspicaz, justo e nobre de tal forma que raramente lembrava que
não era seu filho de sangue, apesar daquele rosto estranhamente igual ao do czar.
Mas Bóris que sempre gostava de se exibir bebendo o que achava ser vinho puro, como se exibisse sua
masculinidade completa, deu apenas um gole quando sua mãe lhe passou a taça. Quando percebeu que Marie o
observava sorrindo gentilmente, ele retribuiu o sorriso afinal ela era uma mulher bonita e ele já se sentia um
homem. Não confiar nela sem motivo, não significava que ele iria desperdiçar uma chance.
Marie compareceu ao jantar naquela noite com seu presente habitual: três galões de vinho tinto produzido
em seu rancho. Mas, minutos depois, foi para casa quando um trabalhador do rancho chegou avisando que
garotos haviam vandalisado sua porta com fezes de animais, foram pegos e ela precisava dizer o que fazer com
eles. Ivan se ofereceu para acompanhá-la e ajudar, mas Marie era um mulher independente que vivia cuidando
do rancho a anos e não se deixava intimidar por garotos desocupados. Com isso ela se foi. Bóris estava pronto
para beber mais do vinho ‘puro’ e pedir mais, porém algo o impediu. Não sabia o que era, mas podia jurar que
alguma coisa segurava sua mão impedindo que levasse a taça aos lábios. Ele foi até o quarto que dividia com seu
irmão caçula pra ficar um pouco sozinho e acalmar aquela sensação esquisita. Viu um desenho ridículo feito pelo
irmãozinho de seis anos representando todos os irmãos e o carinho que sentia por eles o fez sorrir. Ele sempre se
sentira responsável pelos irmãos e até pelos primos, sempre cuidando de todos, apartando as brigas, agindo
como o juiz, aconselhando até os primos maiores, e todos sempre o respeitaram como um líder natural do
grupo. O garoto estava a ponto de sair do quarto quando sentiu uma mão fria nitidamente tocar seu pescoço. Ele
se virou pronto para usar um dos golpes que seu pai o ensinara, mas não tinha nada lá.
- Não beba o vinho. – Uma voz masculina, grave e melodiosa disse, mas Bóris não sabia de onde vinha porque
não tinha ninguém ali.
- Quem está ai? Apareça ou vou fazer você se arrepender de invadir minha casa! – Bóris disse naquele tom
calmo, mas repleto de autoridade.
- Não beba o vinho, filho. – A voz de uma mulher soou quase como um eco. Aquela voz Bóris conhecia bem.
Era a voz da mulher bonita que aparecia com frequência em seus sonhos quando era criança. Quando ele contou
aos pais sobre aquela mulher, sua mãe se benzeu, correu e acendeu sete velas no altar da Virgem e dissera para
ele rezar por aquela mulher toda vez que fosse dormir. Ele fazia isso até hoje.
- Você...Você é a mulher do sonho... Porque? O que há com o vinho? Eu já sou um homem, posso beber o
vinho puro. – Bóris disse, mas ninguém respondeu. Do nada sentiu um perfume delicioso e desconhecido e então
alguém lhe deu um beijo na testa, alguém que ele não via, mas sentia que estava ali. O garoto ficou parado um
tempo olhando pro quarto, esperando que alguém aparecesse, mas nada mais aconteceu e ele pensou que era
loucura, talvez efeito do vinho puro que ainda não se acostumara. Rezara por aquela mulher, e pela voz de
homem que ouvira, e depois voltou para o banquete tentando não pensar mais naquilo.

~o~
O banquete seguiu por alguns minutos, todos acharam que Marie voltaria e até separaram comida e bebida
para ela que, caso não voltasse, receberia tudo em seu rancho pela manhã. Mas, em dado momento da noite, os
adultos passaram mal com fortes dores de cabeça, tontura, arritmia cardíaca, vômitos esbranquiçados e caíram
no chão e alguns simplesmente tombaram com a cabeça para frente na mesa, ainda em cima da comida no
prato. As crianças choravam em pânico total e, minutos depois também apresentaram os mesmos sintomas.
Todos então passaram a tremer convulsivamente, com mais daquela baba branca que parecia uma espuma na
boca, so batimentos cardíacos diminuindo progressivamente até parar completamente. Foi nesse momento que
Bóris começou a ter os sintomas. O garoto tremeu, o coração acelerou, sentiu um gosto amargo na boca e
percebeu que babava. Ele caiu no chão, em cima do corpo de sua irmã, e, em meio aos tremores, virou a cabeça
apenas para dar de cara com sua mãe, caída praticamente de joelhos, cabeça na cadeira, olhos arregalados e
sem vida, virados para ele, de mãos dadas com o marido que tombara de cara na mesa, ainda sentado em sua
cadeira. Talvez tenha sido o horror daquela cena, mais e mais corpos espalhados pela sala de jantar tão
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lindamente decorada, que causara o desmaio do garoto ainda em meio à convulsões. Sem abrir os olhos, apenas
ouviu ao longe vozes de homens e de uma mulher confirmando a morte da maioria, apenas algumas crianças
ainda respirando tão fraco que não acordariam mais com certeza.
Marie. Bóris pensou. E os passos e vozes se afastaram. Falavam algo do lado de fora da casa. Não. Não
falavam. Ordenavam. Ele tinha que acordar, tinha que se levantar, mas seu corpo não obedecia.
- Acorde, Bóris! – A voz daquele homem do quarto chamava. – Vamos, garoto, já houve muito sangue
Romanov derramado.
Romanov? Não era a família imperial lá da Rússia que todo mundo diz que morreu e ninguém sabe bem como?
Bóris pensou e se assustou quando a voz respondeu.
- Sim, querido. Nossa família. Agora levante. Abra os olhos, Bóris. – A mulher dos sonhos respondeu.
Ele forçou seus olhos nublados a se abrirem. E deu de cara com dois rostos. A mulher de seus sonhos e um
outro homem já de barba esbranquiçada e estranhamente parecido com ele. Os dois sorriram e o ajudaram a se
levantar e Bóris quase caiu de novo ao ver que tinham mais pessoas com eles. Mais um garoto que devia ter
quase a sua idade, cinco mulheres e mais três homens, todos parecendo gravemente feridos, mas de pé e, pior, o
garoto estava no meio de uma cadeira caída, passando pela madeira como se ela nem existisse.
- Vo..vo..você...cês.... sã..são... fan..tas..tasmas? – Bóris tremeu ainda mais, embora não soubesse se era pelo
efeito do claro envenamento ou pelo medo.
- Não vamos machucar você, meu filho. Mas você precisa fugir. Eles vão queimar este lugar para ter certeza
que ninguém sobreviverá. – Olga disse.
- Por...porque me chama...ma de fi..filho? – Bóris olhou para a mulher mais confuso. Claro que ele já tinha
matado a charada quando viu o rosto do tal homem, a forma como ele falava denotava um grau de aristocracia
enorme, eles mencionaram a tal família imperial, a semelhança com ele próprio e até com o garoto fantasma era
notória, as coisas que seus pais o obrigaram a aprender... Ele já sabia a resposta, mas queria ouvir dela.
- Você é inteligente, querido. Teria sido um grande governante. Eu sou Olga, este é meu pai, o czar Nicolau. E
você é meu filho. – Olga respondeu e era quase palpável o orgulho em sua voz.
- Não temos tempo pra isso. Pode explicar pra ele depois. – Nicolau disse.
- Os guardas cercaram e trancaram a casa toda. – Alexey disse como se pudesse sentir o que acontecia na
casa, mesmo sem ver.
- Então não tem como fugir... Eu vou morrer também... – Bóris estava mais triste por ver sua família ali morta,
sabia que não poderia nem mesmo sepultá-los, e tudo aquilo, provavelmente era sua culpa já que ele era um
Romanov e com certeza o alvo principal era ele.
Alexey e Anastásia se entreolharam com um sorriso arteiro.
- Vamos garoto bobo. – Anastásia disse e seguiu saltitando pelo corredor até a saída dos fundos da cozinha.
- Ei! Eu não sou um garoto! Eu sou um homem! – Bóris disse e seguiu a menina até ela parar na porta
trancada. Ele sussurrou: - Você ficou louca? Aquele menino disse que os guardas cercaram. Com certeza estão
armados prontos para atirar na cabeça de quem sair. Não tem como sair por aqui.
Anastásia balançou a cabeça negativamente e disse com um sorrisinho malandro: - Homem de pouca fé.
Naquele segundo um som horrível, mas baixo, de grunhidos e rosnados foi ouvido do lado de fora e então um
baque no chão. Anastásia atravessou a porta como se fosse...bem...um fantasma ne. Duh. E momentos depois a
porta se abriu. Bóris viu com horror um corpo de homem destroçado com marcas de dentes e um cão negro com
a boca suja de sangue, aberta, ofegante, com a língua sangrenta pra fora, recebendo um carinho de Anastásia e
Alexey.
- Bom garoto. Quem é o bom garoto? Você é o bom garoto. – Alexey dizia.
- Corra para a floresta, querido. Vamos ajudá-lo a sobreviver lá até você poder seguir para alguma cidade. –
Olga disse desaparecendo feito fumaça junto com todos os outros fantasmas em seguida.
O cachorro correu para floresta e parou olhando para Bóris. Ele não tinha certeza se era uma boa ideia seguir
um cão sanguinário, suas pernas e seu corpo todo também doíam, mas a indecisão sumiu rapidamente quando
ouviu vozes masculinas e passos se aproximando. Sem pensar mais em nada o garoto correu com tanta
velocidade que pareceria impossível para quem acabou de ingerir uma grande dose de cianureto. Já no meio da
floresta, sem saber quanto tempo correra, os efeitos do cianureto o fizeram passar mal, caindo de joelhos
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vomitando. Um dos homens fantasmas, um senhor careca e barbudo, surgiu do nada com uma planta, uns
raminhos com pequenas folhas e flores amarelas, nas mãos.
- Oi rapaz. Sou Botkin e sou médico..... Ou fui. Coma isso, sempre depois que vomitar. Mastique bem e engula.
Vai amenizar os efeitos e logo você estará como novo.
Bóris comeu apenas aquilo por dias. Nem mesmo a água do riacho que aparecia em uma casca de frutas pra
ele no caminho queria parar no estômago.
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Caças e caçadores – Parte II


França, 1930.
- Vamos. Tragam as tochas aqui. Vamos cercar logo isso tudo com fogo. – Yurovsky ordenou se aproximando
da porta dos fundos da cozinha, o único ponto que faltava incendiar. Ele parou no lugar quando viu aquilo. A
porta estava fechada, mas, no chão havia um cadáver completamente deformado, mordido e...comido já que
faltavam partes do corpo.
- Ele está morto. – Disse um dos homens que se aproximou pra verificar o cadáver.
- Não diga, senhor óbvio. – Marie disse.
- Parece que ele foi mordido por um animal selvagem, um bem grande. – O homem continuou depois de olhar
feio para Marie.
- Um animal como um...cachorro? – Yurovsky perguntou sentindo aquele frio na espinha que ele conhecia
bem. O mesmo que sentira na floresta mais de uma vez.
- Não. Teria que ser um cachorro enorme pra fazer isso. – O homem respondeu.
Yurovsky ficou pálido. Ele sempre tivera certeza que a ameaça do fantasma de Nicolau de o perseguir se
fizesse algum mal ao neto do czar era um blefe, afinal ele estava preso na floresta. Não estava? Seu estômago
revirou e ele só teve presença de espírito pra ordenar que o fogo fosse jogado ali e levassem os restos daquele
homem para sepultar. Ele verificou a porta e estava trancada. Ninguém saíra. Ótimo. Mas aquele homem
morto....Tinha que ser coisa daquele cachorro diabólico... Mas todos tinham que ficar presos na floresta... Eles
tinham que ficar... Ele devia olhar os cadáveres depois que o incêndio terminasse pra contar e ter certeza que
todos morreram mesmo, mas ele tinha verificado as portas, inclusive a dos fundos e ninguém saíra. Todos
estavam mortos. Ele não ia ficar ali nem mais um segundo.
Dias depois, já em sua casa na União Soviética, ele passara a se sentir constantemente observado. Muitas
vezes no meio da noite tinha a sensação de que alguém estava com a cara quase em cima da dele, mesmo
dormindo, de tal forma que ele acordava suando gelado. Seu sono ficou cada vez mais instável, dormia pouco e
muito mal, sempre esgotado, sempre sentindo como se alguém enchesse seu corpo de socos durante o sono e
acordava com o corpo todo dolorido. Desenvolveu um hábito que odiava em Botkin, o de não comer carne. Toda
vez que olhava pra um bife mal passado que adorava, imagens de seus camaradas feridos, enlouquecidos e
mortos na floresta vinham à sua mente e ele vomitava até quase sufocar. Ele não sentira isso nem nos dias após
ser resgatado na estrada, nunca sentira isso. Mal se lembrava de seus camaradas naqueles momentos nojentos,
mas desde que voltara da França a lembrança era constante. Para piorar a corrupção no governo só piorava.
Pessoas que discordavam do governo o mínimo que fosse, ou mesmo que fossem levemente suspeitas de
qualquer coisa, morriam ou desapareciam. Nove anos após sua viagem à França uma guerra sangrenta começou,
seu governo apoiou os alemães e, anos depois, traiu esse apoio e a guerra se tornou mais sangrenta ainda no
território soviético. A guerra foi uma das mais terríveis já vistas e isso só piorou o estado de Yurovksy que passou
a beber e usar algumas substâncias novas mais alucinógenas que o ópio para tentar amenizar todo aquele
inferno. Não amenizou. Ele até mesmo fizera algo que antes considerara impensável: deu uma surra em sua
mulher no meio da noite, enquanto ela ainda dormia, e nem sabia porque estava batendo nela. A mulher estava
com o rosto horrível na manhã seguinte, mas viva, e fugiu. Ele nunca mais ouviu falar nela o que foi um golpe
terrível porque ele amava a velha esposa.
Depois da guerra os crimes de guerra descobertos eram tão grotescos que ele se arrepiava só de ouvir os
relatos. Seus pesadelos estavam cada vez mais intensos, seus momentos de fuga da realidade com os
entorpecentes e a bebida tinham o efeito oposto ao desejado porque o levavam à lembrar mais nitidamente de
tudo que sentira e vira na floresta, até mesmo rostos queimados apareciam na sua frente. Rostos da família
morta na França. Ele corria para dentro de casa e se trancava no quarto, mas então a voz de Nicolau citando tudo
que aconteceria ecoava em sua cabeça. Não conseguia mais andar ereto, seus ombros estavam sempre pesados
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e inclinados para frente, sua mente lançava flashes com cenas dos Romanov e da família na França mortos toda
vez que ele fechava os olhos. As lendas que corriam entre o povo sobre a sobrevivência de Anastásia, até mesmo
algumas pessoas que falsamente alegavam serem a grã-duquesa o Alexey, eram como um soco na cara de
Yurovsky. Ninguém parecia se lembrar dos ‘heróis’ que exterminaram a família, mal se lembravam de seu feito
histórico comandando o cárcere e a morte daquela família que ele odiava cada vez mais.
Seu rendimento no trabalho piorou, sua sanidade passou a ser questionada e ele foi aposentado muito antes
da idade prevista como incapaz. Seus filhos não falavam com ele desde o episódio da surra que dera em sua
esposa. Recebera apenas uma foto pelo correio de um dos seus filhos, o caçula que sempre chamara de fraco
pelo jeito emotivo do rapaz. A foto mostrava o homem musculoso, com uma bela mulher do lado e um bebê, seu
neto. A essa altura, toda vez que andava pela casa, em cada canto de cada cômodo, estava um Romanov ou um
dos servos. Ele tremia ante aqueles olhares de pura fúria, até mesmo o olhar de Nicolau não tinha mais aquela
compreensão, a fraqueza, que vira na floresta. O czar emanava ódio em cada um de seus póros fantasmagóricos.
Nenhum deles o atacava, apenas ficavam quatro em cada um dos cantos dos cômodos onde ele ia, o olhando
com aquele misto de ódio e nojo, lhe dando calafrios. De noite, durante o sono, tinha pesadelos terríveis sempre
se sentindo no corpo de um dos Romanov ou dos servos durante o tiroteio, até mesmo vendo a si mesmo
atirando com aquela cara medonha, mas sentindo cada golpe, cada sentimento da vítima que ele tomava o lugar
durante o sono. Uma noite abrira os olhos e, acima dele, com o rosto a centímetros do seu, estava Nicolau com
um olhar furioso e um sorriso assustador nos lábios. Não disse nada, não fez nada, mas foi o suficiente para
Yurovsky gritar histericamente por horas até um vizinho invadir a casa.
O vizinho o encontrou em meio as próprias fezes e urina no box do banheiro, deitado em posição fetal
gritando histericamente. Foram levado praticamente amarrado para o hospital e internado. Um idoso naquela
idade não podia mais viver sozinho, era o que os médicos diziam. Tentaram contato com seu filho, mas o rapaz
não fora encontrado. Alguns anos depois, mantido em um hospital psiquiátrico de práticas duvidosas, Yurovksy
ainda era constantemente assombrado pelos Romanov e seus pesadelos eram piores já que, por causa dos
remédios, ele não conseguia acordar. Nesse meio tempo uma notícia no rádio anunciou a explosão do reator da
usina nuclear de Chernobyl. Aquilo não devia chegar aos ouvidos de um bando de loucos em um manicômio, mas
chegou porque ninguém estava dando atenção à eles naquele momento. Todos estavam na área de convivência
livremente quando a notícia foi ouvida e, lógico, muitos tiveram crises. Alguns partiram para a violência em si
mesmos e nos outros, outros se encolheram gritando e arrancando os cabelos, outros ficaram parados apáticos,
muitos, incluindo alguns médicos, foram assassinados por seus colegas em crise, outros foram pisoteados na
correria que se seguiu. Yurovsky que estava sentado em frente à uma mesa bem no centro da área de
convivência não se moveu. Não porque não podia, mas porque não queria. Morrer seria uma bênção para ele
naquele momento. Ele era um alvo fácil ali, bem no meio do caos. Mas, nada o atingia, ninguém nem mesmo
pareceu notar ele. Ele chegou a jogar um sapato em um dos loucos mais violentos para que o homem o notasse e
o matasse, mas o sapato desviou em um ângulo de 90 graus sozinho. Os Romanov não o deixariam escapar tão
facilmente. Ele estava fraco, era muito idoso, já não tinha forças pra entrar numa briga. Foi quando alguém
derrubou sua cadeira e ele caiu de bunda no chão fraturando o fêmur. Quando o caos acabou, os sobreviventes,
incluindo Yurovsky, foram levados para o hospital e depois para um asilo.

~o~
Eventualmente Bóris se recuperou e fugiu da França em um navio para a Inglaterra e depois sumiu no mundo,
mas sempre era visitado por uma família fantasmagórica que sempre o apoiava e dava dicas preciosas que o
fizeram enriquecer e se tornar um homem influente. Em 1970, Bóris conseguira convencer seu amigo e
geologista, Avdonin, a seguir para um determinado ponto na floresta de Ipatiev onde estavam os cadáveres de
sua família. Ok. Na verdade ele meio que manipulara as informações que chegavam à Avdonin para que o
homem achasse que a descoberta foi dele e não fizesse perguntas à Bóris. Afinal, o que ele ia dizer? Quem um
bando de fantasmas tinha contado onde os cadáveres mais procurados da história estavam escondidos? Assim o
geologista encontrou o local, mas apenas dezoito anos depois, se aproveitando da catástrofe de Chernobyl que
fragilizara ainda mais o governo soviético, conseguiu liberação para explorar adequadamente o local. Em poucos
anos todo o massacre veio à tona com detalhes grotescos, relatórios de Yurovsky expostos, uma onda de raiva
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pela tragédia e empatia para as vítimas tomando não apenas o povo russo, mas todas as pessoas do mundo que
conheciam os fatos. Bóris passou a vida ajudando a espalhar a ideia sobre o retorno da monarquia sutilmente
por cartas, mensagens criptografadas à grupos secretos na Rússia que queriam o czarismo, até mesmo conseguiu
apoiadores em outros países em que sempre vivera oculto sob a aparência de apenas mais um rico empresário.
Em seu leito de morte revelou sua ligação com a família Romanov para sua neta, filha de seu filho mais velho, e
ela se encarregou de continuar o trabalho do avô.
Em 1991, 74 anos após a Revolução que derrubou o czarismo, menos de 100 anos depois, menos de um terço
do tempo que os Romanov governaram, a União Soviética caiu. Dias depois, assistindo numa TV colorida e cheia
de chuviscos as informações sobre o fim da URSS, esquecido em um asilo, Yakov Yurovsky, então com 113 anos,
morreu de um infarto fulminante. A última coisa que seus olhos enevoados viram foi um rosto furioso, distorcido
pela raiva, olhos azuis cercados por uma esclera vermelha com o sangue, o rosto do falecido czar que o
assombrara desde 1930.
Os enfermeiros encontraram o cadáver de Yurovsky horas depois, em frente à TV, em sua cadeira de rodas,
com olhos e boca arregalados em completo terror. Sua alma fora levada para Ipatiev, no meio da floresta, junto
com seus camaradas mortos, sempre em pânico, sofrendo todos os dias as mesmas mortes que tiveram, sempre
se repetindo, enquanto Yurovsky tentava salvar seus homens, sempre fracassando e acabando correndo perdido
e aterrorizado na floresta, até a noite seguinte quando o ciclo recomeçava. Certa vez um grupo de caçadores
passava caminhando na estrada na beira da floresta de Ipatiev comentando sobre a canonização dos Romanov
que tinha acontecido no dia anterior. Os caçadores estavam felizes, xingavam Stálin, até mesmo Lênin, e ‘os
desconhecidos’ que eles não imaginavam quem eram e que tinham feito aquela atrocidade.
- O czar, a família toda e até os servos e o médico agora foram compensados pelo mal que foi feito com eles. –
Um dos caçadores disse.
- É isso aí, cara. Agora eles são santos e o lugar que mataram eles vai virar uma igreja pra eles!
Os amigos pararam no lugar congelados de susto com um grito assustador que ecoou da floresta. Uma figura
de barba e aterrorizada surgiu do meio das árvores correndo cheio de fúria pra cima daqueles homens
assustados. Mas quando o fantasma raivoso de Yurovsky colocou os pés na estrada ele sumiu feito fumaça e seu
grito pareceu ecoar ao longe na floresta. Os homens dispararam na carreira e só pararam quando chegaram à
cidade contando horrorizados o que viram.
Os Romanov, por sua vez, acabaram sendo libertados de seu tormento com a morte de Yurovsky, aparecendo
em sonhos para algumas pessoas, descendentes de pessoas que lhe foram queridas, avisando sobre algum
perigo para salvá-los. Mas ainda hoje há quem tenha medo de se aproximar da floresta em Ipatiev quando a
noite cai. Reza a lenda que pode-se ouvir gritos de homens, sons estranhos, frio repentino, falta de ar e um peso
no peito angustiante. Moradores até mesmo afirmam já terem visto o fantasma de Yurovsky correndo
desesperado pela floresta gritando por socorro ou corpos deformados, congelados, queimados se arrastando no
chão com gritos horripilantes.
Se é verdade ou não... Bem, só indo lá para saber.
Alguém aí se arrisca?

~o~

Anotações
A v i n g a n ç a d o s R o m a n o v | 58

Nicolau- Yurovsky,
Alexandra- Voikov,
Eugene Botkin (Medico)- Ermakov,
Tatiana (chefiou comitês da cruz vermelha na 1 guerra)- Tselms (tatiana era a equilibrada)
Olga (mais velha, n aguentou os horrores dos ferimentos de guerra e ficou no administrativo da criz
vermelha)- Vaganov (olga era a mais sensível) ferimento de bala na cabeça
Alexey- Netrebin
Anna Demidova (a camareira), Alexey Trupp (criado), Ivan Kharitonov (cozinheiro)- Nikulin e Kudrin
Maria- Kabanov
Anastasia- Kudrin e seu irmão Medvedev,

AMOR DE OLGA- 1913 por Pavel Voronov, oficial q casou meses dp com uma dama de companhia
Ivan (Pavel Voronov), Natasha e o pequeno Bóris Mikhailovich

No início dos anos 90, quando seus restos mortais foram examinados, Botkin tinha ferimentos de bala na
pélvis, vértebras e testa.

Yukov Yurovsky, G. P. Nikulin, M. A. Medvedev (Kudrin), Pyotr Ermakov, S. P. Vaganov, A. G. Kabanov, P. S.


Medvedev, V. N. Netrebin, e Y. M. Tselms
Petr Voikov foi dada a tarefa de providenciar o descarte dos restos mortais das vítimas, tendo obtido para isto
150 galões de gasolina e 400 libras de ácido sulfúrico, o último da farmácia de Ecaterimburgo. Após os
assassinatos, Volkov teria declarado que "O mundo nunca irá saber o que nós fizemos com eles."
Petr Voikov foi dada a tarefa de providenciar o descarte dos restos mortais das vítimas, tendo obtido para isto
150 galões de gasolina e 400 libras de ácido sulfúrico, o último da farmácia de Ecaterimburgo. Após os
assassinatos, Volkov teria declarado que "O mundo nunca irá saber o que nós fizemos com eles."
Eugene Botkin

Na imagem: Uma das últimas fotos de Nicolau, (Créditos: Global Look Press), em Tsarskoye Selo, uma das
residências da família, durante a prisão (1917); Nicolau II (de azul) e George V (de branco) em 1913.
A v i n g a n ç a d o s R o m a n o v | 59

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