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SALOMON, Marlon. O Gosto do Arquivo e os Ruídos da História. Revista ArtCultura, Uberlândia, v. 10,
n. 17, p. 237-243, jul.-dez. 2008.
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ib idem, “Como se sabe, Farge não é formada em história, mas sim em direito.” p. 240.
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A escolha da autora por escritos do Século XVIII, o século das luzes, é um tanto
paradoxal, visto que se preocupa exatamente “sobre a história da vida dos anônimos, dos
desclassificados sociais, das classes populares e da invenção de seus singulares modos de
vida no século XVIII...”3 Porque não investigar nos arquivos, sobre o estamento social
dominante? O povo, representado na sua imensidão por desconhecidos que para se tornarem
vistos, estiveram registrados nos processos judiciais, nos inquéritos policiais do século XVIII.
Ela Acaba de Chegar
Já chama a atenção a escolha do gênero pela autora. “Ela acaba de chegar;”(FARGE,
2009, p. 51). Farge procede a uma narrativa exaustiva e detalhista, em que submeter-se à
pesquisa no arquivo surge para “Além do manual de instruções, sempre ubuesco4, encontra-se
o arquivo” (FARGE, 2009, p. 55).
Esse aspecto de relações que ocorrem no ambiente do arquivo descreve a rotina
burocrática para o acesso aos textos objeto da pesquisa, bem como, superado o
procedimento, encontrar o melhor local (mesa) para desenvolver o ofício de pesquisadora. E a
partir desse instante surge o despontar das sensações e inquietações físicas do corpo. O texto
parte do aspecto narrativo para o literário quando assinala que:
“Nas salas de arquivos, os cochichos enrugam a superfície do silêncio, os olhos se
perdem e a história se decide. O conhecimento e a incerteza misturados se ordenam
em uma ritualização exigente onde a cor das fichas, a austeridade dos arquivistas e o
cheiro dos manuscritos servem de balizas para um mundo sempre iniciático. Além do
manual de instruções, sempre ubuesco, encontra-se o arquivo. A partir daí começa o
trabalho.”(FARGE, 2009, p. 55)
As idas e vindas da jovem ao responsável pelo arquivo, para ter acesso a um
manuscrito objeto de sua pesquisa, retrata que até um historiador tem surtos de impaciência
quando, “...ela martela de proposito o assoalho com seus saltos altos fora de moda, que se
engancham a todo instante entre dois tacos mal ajustados. ”( FARGE, 2009, p. 52).
Farge nessa passagem, como em outras, despersonifica os indivíduos do ensaio. Não
traz um referencial de primeira pessoa, nem os identifica. Apesar do discurso ambíguo, temos
a real impressão, que se tratam dos infortúnios passados pela própria pesquisadora-autora.
Os momentos de imersão no ambiente do arquivo, fechado, a concentração na
absorção dos conteúdos dos manuscritos são interrompidos, pois “Tudo se amplifica sem
medida, e sem razão, nesses espaços fechados, e o mesmo vizinho pode tanto se transmudar
em tanque da guerra de 1914 quanto em sorriso de Reims”. 5(FARGE, 2009, p. 54).
OS GESTOS DA COLETA
A relação apaixonada com o arquivo, narrando um momento pessoal, tenta integrar
práticas não mais usuais. Assim o “modo apaixonado de construir uma narrativa, de
estabelecer uma relação com o documento e com as pessoas que ela revela, pode aparecer
como o vestígio de exigências extintas no presente, que não correspondem mais a uma época
intelectual ao mesmo tempo mais tradicional – e até conservadora – e menos presa à descrição
do cotidiano.” (FARGE, 2009, p. 57).
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ib idem, p. 239.
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de caráter absurdo ou caricatural.
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famoso anjo denominado “sorridente”, se encontra na fachada da Catedral de Reims, a principal
cidade da região de Champagne. Obra de arte anônima que data provavelmente de 1240.
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Farge questiona sobre qual o atrativo do arquivo. Então retorno a fala de Ricoeur que
enuncia, “Ocorre então que o historiador não é aquele que faz falar os homens de outrora, mas
aquele que os deixa fala. Então, o documento remete ao rastro, e o rastro ao acontecimento”.
(RICOEUR, 2008, p. 192). Assim aceito o argumento de Farge, “O atrativo, supõe-se,
permanece”, “(...) ele é tecido por uma convicção: o espaço ocupado pela conservação dos
arquivos judiciários é um local de falas captadas”. (FARGE, 2009, pp. 57-58).
Na passagem “As frases copiadas pelo escrivão criam a ilusão de poder conhecer tudo,
e é um erro; a profusão delas não é sinônimo de conhecimento” ( FARGE, 2009, p. 58). Farge
demonstra a contingência do arquivo, diante a certeza de exaurimento que invade a atividade
do escrivão, ao registrar uma ocorrência.
O desprendimento a procedimentos para traduzir o arquivo é o que o torna
contingente. Farge aponta isso quando trata “No século XVIII, o arquivo não falta, ele cria vazio
e falta que nenhum saber pode suprir. Utilizar o arquivo hoje é traduzir essa falta em questão,
é antes de mais nada despojá-lo.” ( FARGE, 2009, p. 58).
“Despojar”
O despojamento deve ser desenvolver sem pressa. Farge diz “(...) não será demais
dizer a que ponto o trabalho em arquivos é lento, e o quanto essa lentidão das mãos e do
espírito pode ser criativa.” (FARGE, 2009, p. 59).
“Paciência de leitura; em silêncio, o manuscrito é percorrido pelos olhos através de
numerosos obstáculos.”, (FARGE, 2009, p. 59). Farge acentua defeitos nos documentos,
sujeição a intempéries, depósito em porões úmidos. Cada um desses obstáculos dificulta o
trabalho do observador do arquivo. Retrata uma Paris do século XVIII, panfletária, onde a
guarda desses documentos garantiu à polícia a respectiva judicialização de seu autores. E aos
autores “esperanças políticas” (FARGE, 2009, p. 60).
Farge retrata um ambiente de denuncismo, com técnicas para a não identificação de
autoria dos escritos, “a maioria é manuscrita, grafada em letras maiúsculas formadas de
traços retos para que a letra não seja reconhecida.” (FARGE, 2009, p. 60).
E pela quantidade surgida, a qualidade é reduzida. Farge retrata “Escritas com uma
penas claudicante em papel ordinário, conservam, apesar do tempo, a pressa, o ódio e a
inabilidade, assim como uma improvável ortografia fonética”. (FARGE, 2009, p. 61).
A “Lembrança digital do arquivo”. (FARGE, 2009, p. 60). É retratada pelos usos à época
da cola utilizada para fixar os escritos nas paredes, bem como do material das paredes. Ficou
impregnado nos manuscritos. E o historiador tem nas mãos um dado irrefutável dos usos.
Farge destaca diferenças pertencentes às interpretações dos escritos do século XVIII
diante aos escritos do final do século XVI ou do início do século XVII. Essas diferenças surgem
em função estarem conservados e legíveis. Contudo, Farge trata do fato de sobrevir
“obstáculos imprevisíveis.”(FARGE, 2009, p. 61). De que a autora está tratando?
Um caso onde “Estamos em 1758, um ano após a execução de Damiens, regicida6 de
Luís XV: o fato tornou a morte do rei possível, e o imaginário social se encanta com essa parte
inaudível e recalcada do corpo social.” (FARGE, 2009, p. 61). Desse exemplo Farge evidencia
que “Um doméstico de uma casa média...”, revela um segredo, “foi-lhe ordenado que
assassinasse o rei, e, como prova dessa ordem monstruosa, ei-lo surdo e mudo.” (FARGE, 2009,
pp. 61-62). Na prisão, o doméstico, Thorin, escreve textos da seguinte forma:
“Ele escreve como fala; portanto não escreve, mas reproduz no papel os sons que
compõem as frases. Não os sons que compõem as palavras, seria simples demais,
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O que ou quem é responsável pela morte de um Rei. No relato, a morte de Luís XV.
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mas aqueles que compõem as frases ou pedaços de raciocínio. ” (FARGE, 2009, p.
62).
Impõe ao historiador o despojamento. “... para conseguir decifrar, é preciso pronunciar
à meia voz, murmurar esses fragmentos escritos.”(FARGE, 2009, p. 62). O sentido da visão, “os
olhos não servem para nada” (FARGE, 2009, p. 62). Outros sentidos são exigidos para decifrar
o sentido dos escritos.
A especificidade o texto escrito por Thorin, Farge acentua que “elas desvendam uma
cultura sonora como poucos arquivos podem proporcionar.” (FARGE, 2009, p. 63).
A leitura a partir dos gestos surge como um facilitador, diante as “anotações da polícia,
são obscuras ou se estendem amplamente em digressões pantanosas. O essencial nunca surge
de imediato... ”. (FARGE, 2009, p. 64).
Farge segmenta o trabalho planejado do trabalho possível. “A partir dessa leitura
obstinada, organiza-se o trabalho. Não se trata de dizer aqui como se deve fazê-lo, mas
simplesmente como acontece de se fazer.” (FARGE, 2009, p. 64).
A partir de então, Farge cria uma forma de investigar o arquivo. “Isso se faz
insensivelmente, justapondo toda uma série de gestos, tratando o material empregando jogos
simultâneos de oposição e de construção”. (FARGE, 2009, p. 64). E a depender da forma
escolhida, “A cada jogo corresponde uma escolha, prevista, ou que sobrevém sub-
repticiamente7, quase imposta pelo conteúdo do arquivo” (FARGE, 2009, p. 64).
Recolher
O uso em selecionar o mesmo e o diferente nos textos é que “sobrevém as surpresas: o
arquivo inesperado, fora do campo que se estipulou, vem chacoalhar a monotonia da coleção.”
(FARGE, 2009, p. 66).
Farge traz um exemplo em que o tratamento de denúncias, que se repetiam num
incremento de violências recolhidas. Essas se repetiam exaustivamente, enchendo fichas,
enfileirando uma rotina cansativa para o historiador. Quando “Entre duas denúncias, em uma
manhã de prostração, o papel pareceu diferente ao toque. Lembrança tátil do arquivo.”
(FARGE, 2009, p. 67).
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fraudulenta.
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Mantem-se a paciência, Farge diz “Não há nenhuma pressa ainda e pouco importa hoje
para que servirá o arquivo; o urgente é coletar essa fala viva, não datada, suspensa entre casos
policiais muito sérios.”(FARGE, 2009, p. 68).
O arquivo retrata o caráter do personagem marquês de Sade, a partir de um evento
envolvendo um cocheiro e seu cabriolé, em que houve uma atuação enérgica do marques.
Farge retrata “Eis o marquês apreendido no que fez sua reputação: violência gratuita, a ponta
da espada enfiada no ventre de um cavalo que mal se aguentava em pé. ” (FARGE, 2009, p.
69).
Esses desvios de rota delimitadas dos despojamentos é que, por acaso, surgem para
levar “... ali onde não se tinha decidido ir e nem mesmo compreender.” (FARGE, 2009, p. 69)
Armadilhas e Tentações
Farge assegura que “... a predileção pelo arquivo pode adquirir uma dimensão tal que
não se desconfia, não se percebe nem as armadilhas que ele lança nem os riscos que se corre
ao não lhe impor certa distância.”(FARGE, 2009, p. 70).
A leitura da totalidade dos arquivos do Século XVIII demonstra a insuficiência de vida
para a superação de seus escritos. Entretanto, Farge, assegura que o que torna intransponível
é exatamente o que estimula à consulta aos textos. Porém, “A armadilha limita-se
simplesmente a isso: estar absorvido pelo arquivo a ponto de nem saber mais como interroga-
lo.”(FARGE, 2009, p. 71)
A decisão entre “o essencial e o inútil, o necessário e o supérfluo, o texto significativo e
um outro que se julgará repetitivo”(FARGE, 2009, p. 71).
Identificação “significa esse modo insensível, mas real, que tem o historiador de ser
atraído apenas por aquilo que pode reforçar suas hipóteses de trabalho decididas
previamente.”
“... só se descobre o que se busca” (FARGE, 2009, p. 72).
Para o historiador, identificar escolhas traz alivio. Farge acentua que “Confortável,
porque identificar-se, de qualquer maneira que seja, traz alívio.” (FARGE, 2009, p. 72).
As consequências da postura tomada pela identificação das escolhas é que “Identificar-
se é anestesiar o documento e a compreensão que se pode ter dele.” (FARGE, 2009, p. 72).
A idéia de simpatia com o arquivo é combatida pela autora “Quando o arquivo, ao
contrário, parece dar acesso facilmente ao que se supõe nele, o trabalho é ainda mais exigente.
É preciso se livrar pacientemente da ‘simpatia’ natural que se sente por ele, e considera-lo
como um adversário a ser combatido, um pedaço de saber que não se anexa, mas que
perturba.” (FARGE, 2009, p. 73).
A denotação de importância da citação é um indicador de ajuda ao texto. “A citação
não pode jamais ser uma prova, e sabe-se bem que é quase sempre possível fornecer uma
citação contrária à que acaba de ser escolhida.” (FARGE, 2009, p. 73).
Farge define a citação com sendo “Quando se cita, confessa-se implicitamente não ser
capaz de encontrar palavras melhores ou ajustes de frase mais pertinentes do que aqueles
descobertos no arquivo.” (FARGE, 2009, p. 74).
Declina funções para a citação. Eficácia, surpresa e descanso.
“Ela é eficaz, por exemplo, quando põe em cena uma situação nova pela forma abrupta
de sua expressão”, “Pode também surgir como uma surpresa tendo como tarefa de
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surpreender , deslocar o olhar e romper evidências: é a citação-ruptura...”, “ ... a citação às
vezes dá um descanso, propõe uma pausa, uma praia talvez.” (FARGE, 2009, p. 69).
Assim, essa letargia que a citação pode causar ao arquivo, Farge diz “A história não é
jamais a repetição do arquivo, mas desinstalação em relação a ele, e inquietação suficiente
para interrogar incessantemente sobre o porquê e o como de seu fracasso no manuscrito.”
(FARGE, 2009, p. 75).
Farge assinala que a possibilidade de dar vida ao arquivo pode ser pela leitura de um
romancista. Entretanto assegura que esse argumento não se sustenta pelo fato de que não é
história. “Pode-se de fato animar, com talento ou não, homens e mulheres do século XVIII,
produzindo para o leitor a conivência e um grande prazer, mas não se trata de ‘fazer história’.”
(FARGE, 2009, p. 76).
A ficção diverge do intuito de se prestar contas com o passado, exatamente por tratar
de “ vidas esquecidas, esmagadas pelos sistemas políticos e judiciários, isso passa pela escrita
da história.” (FARGE, 2009, p. 76).
Farge denuncia as armadilhas do arquivo, decorrentes de uma leitura em romance ou
em narrativa, de um prisioneiro da Bastilha de modo que seja “capaz de restituí-lo como
sujeito da história, em uma sociedade que lhe emprestou palavras e frases.” (FARGE, 2009, p.
77).
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Quero terminar minha fala com uma frase de Isak Dinesen8 inscrita na obra de Hannah
Arendt, A Condição Humana, no capítulo V que trata do conceito de ação. Minha intenção é
retratar a importância do arquivo, do direito e da história: “Todas as mágoas são suportáveis
quando fazemos delas uma história ou contamos uma história a seu respeito.”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10.ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. Trad. Fatima Murad. São Paulo: Edusp, 2009.
GAMA, Mônica. Quebra de contrato - transparência e opacidade do discurso historiográfico.
In: Revista Criação&Crítica, n. 4, abr/2010, p. 249-256
JARDIM, José Maria. Sabores e saberes dos arquivos. Resenha. In: PontodeAcesso, Salvador, V.
5, n. 1, p. 109-111, abr 2011.
RICOEUR, Paul. A MEMÓRIA, A HISTORIA, O ESQUECIMENTO. editora unicamp.
SALOMON, Marlon. O Gosto do Arquivo e os Ruídos da História. Revista ArtCultura, Uberlândia,
v. 10, n. 17, p. 237-243, jul.-dez. 2008
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É o pseudônimo da escritora dinamarquesa Karen Christence, baronesa de Blixen-Finecke. Viveu no
Quênia entre 1914 e 1931. Após o retorno à Dinamarca, seu primeiro livro foi Sete contos góticos,
publicado em 1934 sob o pseudônimo de Isak Dinesen.