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DEUS E UNIVERSO

PREFÁCIO .................................................................................................................................................................. 1

I. COMO FALA A VIDA ........................................................................................................................................... 4

II. “EU SOU” – ESQUEMA DO SER ....................................................................................................................... 6

III. O EGOCENTRISMO .......................................................................................................................................... 8

IV. A QUEDA DOS ANJOS ..................................................................................................................................... 11

V. ORIGEM E FIM DO MAL E DA DOR ............................................................................................................. 13

VI. DESMORONAMENTO E RECONSTRUCÃO DO UNIVERSO................................................................. 16

VII. A PERFEIÇÃO DO SISTEMA ....................................................................................................................... 19

VIII. SOLUÇÃO ÚLTIMA DO PROBLEMA DO SER ....................................................................................... 23

IX. CONFIRMAÇÕES EM NOSSO MUNDO ....................................................................................................... 29

X. A TEORIA DO DESMORONAMENTO E AS SUAS PROVAS .................................................................... 34

XI. A CAMINHO DA SUBLIMAÇÃO ................................................................................................................... 45

XII. OS TRÊS ASPECTOS DA SUBSTÂNCIA ..................................................................................................... 48

XIII. IN PRINCIPIO ERAT VERBUM .................................................................................................................. 51

XIV. A ESSÊNCIA DO CRISTO ............................................................................................................................ 54

XV. À PROCURA DE DEUS ................................................................................................................................... 57

XVI. A PRECE .......................................................................................................................................................... 61

XVII. IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA ........................................................................................................ 64

XVIII. O FENÔMENO INSPIRATIVO ................................................................................................................. 68

XIX. A ALMA E DEUS ............................................................................................................................................ 72

XX. VISÃO SÍNTESE .............................................................................................................................................. 75

Vida e Obra de Pietro Ubaldi (Sinopse)....................................................................................página de fundo


Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 1
e as edições em italiano se vão tornando cada vez mais lentas,
em face das dificuldades sempre crescentes do ambiente. Essas
DEUS E UNIVERSO dificuldades locais não mais conseguirão conter a divulgação
da Obra, que se desenvolve no mundo. O importante é que tudo
PREFÁCIO seja logo escrito e publicado, não importa onde. Outras gera-
ções, depois, após outras provas, virão e compreenderão.
Numa grande reviravolta da minha vida e da vida do mundo, Na sua última missiva, na primavera de 1951, Albert Eins-
nasceu este livro, subitamente, como uma explosão. Foi escrito tein assim me escrevia de Princeton–NJ, a propósito do oitavo
em vinte noites, pouco antes da Páscoa de 1951, aproveitando- volume da Obra, Problemas do Futuro, que mais dizia respeito
me de uma bronquite que me forçava ao repouso, furtando-me à sua especialidade: ―I have studied part of your book and have
ao trabalho diurno normal, necessário para a manutenção de mi- admired the force of the language and the vast extension of
nha família. Escrevi-o sob intensa febre, que facilitava a eleva- your interest...‖ (―Estudei parte do seu livro e admirei a força
ção do potencial nervoso, na solidão gelada de Gubbio. Como de expressão e a vasta extensão de seus objetivos...‖). O presen-
aqui está registrada, a visão me apareceu, em vinte etapas ou ca- te volume, no entanto, está construído em outro terreno, a que
pítulos, nos imensos silêncios daquelas longas noites hibernais. podemos chamar teológico, além da ciência atual. Por isso é
Qual explosão de pensamento e de paixão, este livro não mais vasto do que o primeiro livro, A Grande Síntese, que ele
poderia revelar-se a não ser à aproximação da Semana da encerra em si, como um seu momento, desenvolvendo-se em
Páscoa, após um longo e íntimo tormento preparatório. Sob a um campo que a visão de A Grande Síntese, encarando apenas
exposição fria e racional, que pretendeu, sobretudo, ser fiel às o nosso universo atual, não podia atingir. Com o presente vo-
visões, oculta-se e arde essa paixão, a ânsia do inexplorado, o lume, pode-se dizer que o ciclo dos grandes conceitos básicos
terror de debruçar-se sozinho sobre os abismos dos maiores está exaurido, atingindo-se a solução dos máximos problemas.
mistérios, a imensa festa da alma pelo conhecimento obtido. No Possivelmente, depois deste esforço de racionalismo cerrado, o
esforço aqui despendido para galgar os últimos cimos, como undécimo volume, por compensação, deverá assumir caracterís-
coroamento da Obra, há como que uma vertiginosa tica oposta, ou seja, de vitória da vida no espírito.
desesperação da alma, que se sente perdida e desfeita diante do ―Através da vida tenho caminhado, caindo e levantando.
lampejo de uma concepção que não é sua, que dardeja sobre ela, Através dos meus escritos tenho percorrido uma longa senda de
ofuscando-a e arrebatando-a para os vértices do pensamento, fadiga e de fé. Quantas etapas superei! O meu pensamento de-
onde tudo se faz uno, e para os vértices das sensações, onde senvolveu-se através de inúmeros conceitos, e a minha paixão
alegria e dor se unificam num imenso espasmo de êxtase. amadureceu de tanto sofrer. Ao fim de tanta ansiedade de alma
Este livro, que não é meu, apareceu assim como um re- e de coração, não restará mais que uma palavra, a última de tan-
lâmpago, para trazer a solução dos problemas últimos, em tas que foram ditas: Cristo. Sobre esta palavra, que é a síntese
meio a uma humanidade descontrolada, delirante com os so- suprema da conhecimento e do amor, eu me reclinarei satisfeito
fismas e os requintes da decadência, neste momento em que a e feliz, para morrer. Satisfeito como quem, superando todas as
história está procedendo à liquidação da velha civilização eu- ilusões humanas, reencontrou a verdade absoluta. Feliz como
ropeia. A hora é apocalíptica, porque é a hora da justiça, quem, vencendo todas as dores humanas, reencontrou a sua su-
quando todas as almas e os valores da humanidade devem ser prema alegria‖ (Do quarto volume, Ascese Mística – 1939).
joeirados, de uma forma implacável, a fim de que tudo o que Aventurar-se em um terreno teológico poderá parecer exces-
não seja vital se incinere. Estamos asfixiados por montanhas siva audácia. Mas eu não pude escolher o tema das visões, que
de falsidades, e a vida se rebela porque está faminta de verda- apenas registrei. Ademais, era necessário resolver tudo, também
de. E a verdade deve ser dita a qualquer custo, pois que o os problemas últimos, a fim de que o sistema se completasse.
mundo em breve será sacudido pelos alicerces. Ela deve ser Afinal, por que o teológico deve ser um terreno proibido? Por
dita antecipadamente, de uma forma clara, simples e una. Ur- que a indagação deve furtar-se aos cimos máximos e submeter-
ge lançar a semente da ideia que deverá reger o novo mundo se eternamente ao mistério? Por que relegar ao museu das coisas
do III Milênio, aquele que ressurgirá da destruição do atual. mortas certos problemas, apenas porque hoje se acredita na ci-
Este é o décimo volume desta Obra, que agora, depois de ha- ência, que sabe fazer descobertas úteis, mas não é capaz de for-
ver superado infinitos obstáculos, transborda pelo mundo e, de mular tais questões? Deveremos, então, cancelá-las de nossa
puro sistema de conceitos, está se transformando em vida. Predi- mente? A pesquisa da verdade, feita com sinceridade, com fé e
to com exatidão, ainda que proibido, torna-se realidade o mila- com respeito não tem sentido de culpa. Possuímos inteligência
gre, que consiste no fato de um homem sozinho, pobre, cruciado para usá-la, e esforçarmo-nos honestamente para compreender
de dores, votado à renúncia e esmagado sob o peso de um árduo até onde for possível tem mais valor do que a dormência passiva
trabalho, conseguir sobrepujar tudo isso e lançar uma ideia ao da crença. Além do mais, se o mundo e as religiões progrediram,
mundo. É que, em geral, onde existe o que, por ser humanamente isto se deve à paixão de conhecimento que almas sedentas e iso-
inexplicável, chama-se de milagre está Deus, e, onde Deus está, é ladas cultivaram com o próprio risco e grande tormento.
possível chegar-se até aos fundamentos. Há quarenta anos luto A este propósito, permitimo-nos citar algumas páginas de
com esta certeza, e os fatos de cada dia mais a confirmam. Em Giovanni Papini, Cartas do Papa Celestino VI aos Homens,
breve surgirão os volumes undécimo e duodécimo; aqui já estão páginas que ninguém taxou de heterodoxia:
lançadas as suas bases. Desta maneira, uma obra completar-se-á ―Por que é a divina teologia hoje tão pouco popular entre os
pela trabalho penoso e íntimo de um homem, a fim de que a fé homens? Por que a ciência suprema, a ciência de Deus, é hoje
seja demonstrada e a paz seja feita entre ideias e homens, permi- ignorada, mesmo pelos não ignorantes? Por que a vemos rele-
tindo que o mundo possa, afinal, enxergar claro todos os proble- gada, sobretudo em nossa Igreja, às classes dos seminários e
mas e, assim, ser levado, unicamente pela via da razão e do utili- aos estudantes dos mosteiros?
tarismo, a uma vida mais honesta e justa. ―Que aconteceu? Não aflige a vossa alma a dúvida que de
Quis, por isso, interrogar, por meio de recente contato dire- tão funesto desinteresse a máxima culpa vos cabe?
to, os povos mais jovens das Américas e encontrei-os melhor ―Interrogai a vossa consciência e respondei com franqueza
preparados para compreender as nossas ideias do futuro do que cristã. A responsabilidade desse abandono não é inteiramente
a velha Europa. Graças a isso, não devemos ficar preocupados vossa, mas é, antes de mais nada, vossa. As grandes coisas ja-
se, agora, a difusão destas ideias aqui se faz com mais lentidão mais são vencidas pelos adversários, mas pela fraqueza e infi-
2 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
delidade dos seus divulgadores. Que uso fizestes, de muitos sé- aos desígnios divinos e aos esforços humanos? Espero com fé
culos para cá, do patrimônio sobrenatural que vos foi confiado? uma outra idade de ouro da nossa ciência. Novas iluminações
Por que permitistes que outros (...) tenham tomado o seu lugar de santos, novas intuições de poetas, novas interpretações de
na atenção dos pensadores? doutores farão a teologia, como em tempos de antanho, a domi-
―A verdade, dolorosa verdade, é que a vida ardente e cria- nadora dos espíritos superiores (...).
dora do pensamento se afastou de vós. Depois de São Tomás. ―Mas é necessário que vos afasteis, teólogos, das batidas
(...) não fostes capazes de construir uma nova e poderosa sínte- estradas da repetição, da mecanicidade silogística, do
se teológica (...). pedantismo verbalístico e formalístico que tresanda demasiado
―De há muito tempo não aparece entre vós um gênio que sai- a ranço e mofo às narinas modernas (...).
ba, como os grandes escolásticos, conduzir à meta única por no- ―Saí algumas vezes ao ar livre (...), não desdenheis de
vos caminhos. Não soubestes acrescentar uma nova prova da aprender alguma coisa com os não-teólogos (...). Hoje, que es-
existência de Deus, depois das apresentadas por S. Anselmo e S. tais bocejando no mar morto da indiferença e da monotonia,
Tomás. Não soubestes oferecer uma ideia mais profunda da re- exorto-vos a ousar (...). Nas palavras da revelação pode-se en-
denção depois de Duns Scott, nem soubestes verter o vinho eter- contrar novos sentidos, possivelmente mais profundos do que
no da verdade em odres ardentes, em cálices de cristal mais puro. os que já se encontraram; aos dogmas, a esses dogmas pode-se
―A escolástica decaiu pelos excessos de sutilezas verbais e chegar por novas vias, ainda mais firmes do que as das velhas
pelo pedantismo sofístico dos occamistas1. Vós a depositastes estradas. (...) dos homens de estudo e de engenho depen-
decomposta no féretro lúgubre da repetição. Há séculos, vós, dem sempre, em última instância, as opiniões e os pendores das
teólogos, não sois mais que compiladores de sinopses, manipu- multidões. Se conseguirdes reconquistar as aristocracias do es-
ladores de manuais, registradores de lugares-comuns; não sois pírito, vereis, logo depois, que os povos as seguirão (...).
mais do que entediantes comentadores, glosadores, exumadores, ―Bastaria uma inspiração audaz e feliz para fazer convergir
postiladores, ruminadores de antigos textos venerados (...). Não de todos os lados os sequiosos. Muitos têm sede hoje (...)‖.
sabeis vós que os alimentos requentados em demasia despertam ◘◘◘
aversão até aos mais gulosos, e que as comidas cozidas e reme- Assim falou Papini. Transcrevemo-lhe as palavras apenas
xidas nas velhas panelas de barro, com os mesmos condimentos, porque, ditas por ele, catolicíssimo, encontram receptividade na
acabam saturando os mais pacientes paladares? Cada século Itália, enquanto, ditas por nós, seriam condenadas como heresia.
possui a sua linguagem, os seus apetites, os seus sonhos, os seus Embora este livro, por necessidades editoriais, deva vir a
problemas. Vós parastes o relógio da história no Século XlV e público primeiro em português, no Brasil, do que em italiano,
continuais a servir uma sempiterna sopa aos dóceis candidatos na Itália, foi ele, todavia, escrito na Itália, levando em consi-
ao sacerdócio, sem dar atenção aos cristãos que estão fora das deração as diretrizes do pensamento europeu, que não são
portas claustrais e que já agora estão habituados a acepipes mais idênticas às brasileiras. Levou-se, assim, em linha de conta,
apetitosos e saborosos (...). Essa inapetência obstinada, que já sobretudo o pensamento católico. Foram-lhe, todavia, acres-
dura alguns séculos, será devida somente ao gosto pervertido e centadas algumas páginas no Brasil, para que se colocasse
gasto dos leitores modernos ou também, se não mais, à vossa também, com imparcialidade e universalidade, diante do pen-
fastidiosa mediocridade de capciosos repetidores? Se entre vós samento espiritualista e espírita.
existisse uma estrela de primeira grandeza, bem elevada sobre o Com respeito a este último, podemos afirmar, a quem teme
horizonte, todos a veriam e a procurariam. Mas não passais de que este livro fuja ao seu ponto de vista estritamente ortodoxo,
círios mortiços, que, a grande custo, iluminam as trevas dos ora- que ele pode constituir uma das maiores provas da reencarnação.
tórios. Os antigos e majestosos ‗in fólios‘ dos teólogos dormem Realmente, o sistema aqui exposto admite e prova que houve uma
um poeirento sono entre almofadas de pergaminho e pele, nas criação única de espíritos. Estes, justamente em razão da queda
(primeiro, através da fase de descida – involução – e depois, no
estantes carcomidas das bibliotecas, onde, de raro em raro, os
decurso da fase de subida – evolução), sempre os mesmos filhos
leigos vão despertá-los. As obras dos teólogos modernos são
da criação única, devem infindas vezes reencarnar-se na matéria,
prontuários para uso interno dos clérigos, ou áridos tratados (...).
que é filha da queda, para espiritualizá-la novamente, através das
―Mas pode a ciência de Deus, se quer reconquistar o afeto
provas e da dor, para que tudo retorne e se reintegre em Deus.
dos desatentos e dos desviados, permanecer sempre sobre os
Uma grande vida eterna, qual foi na origem, agora fragmen-
fundamentos e nas portinholas do século XIII? Não poderá
tada na queda, em inúmeras vidas e mortes sucessivas na maté-
também a teologia, como todas as ciências, apresentar avanços
ria, é elemento necessário e fundamental do sistema, é a im-
e progressos? O próprio S. Tomás de Aquino não pareceu re-
prescindível condição do processo evolutivo.
volucionário em seu tempo, a ponto de suscitar oposições e
O sistema é todo sustentado pela ideia reencarnacionista,
provocar condenações? (...).
que tão firme se abriga no coração dos espíritas. Esta teoria
―Existem ainda, nas Escrituras, revelações maravilhosas,
encontra aqui, mesmo quando explicitamente nela não se fala,
que se poderiam mais amorosamente desvelar (...). Não é ver-
uma confirmação, uma prova, uma demonstração. Sem ela,
dade que tudo tenha sido dito e que tenhamos de ser porta-
cairia o sistema exposto neste volume, como cairia A Grande
vozes dos mortos. Cada século avança no caminho do espírito,
Síntese e também toda a Obra.
e possivelmente ver-se-á no futuro uma teologia de fulgor tão
E, se o leitor encontrar aqui conceitos que não são os habi-
brilhante, que a por nós herdada, não obstante a sua admirável
tualmente repetidos, recordará que, sobre o problema teológico
arquitetura, parecerá aos venturosos cristãos do futuro pouco
propriamente dito, a doutrina espírita ainda não se pronunciou
mais que um esboço, isto é, julgá-la-ão como os titãs da esco-
em definitivo, pois é uma doutrina em desenvolvimento, aberta
lástica julgaram os primeiros sistemas doutrinários dos pais da
sempre a novos aperfeiçoamentos, que a amadurecem e a fa-
Igreja. O gênero humano e o povo cristão foram educados por
zem evoluir sempre mais.
graduações, então quem ousará estabelecer confins de tempo
◘◘◘
1
Seguidores de Guilherme de Occam, filósofo inglês e franciscano
Na noite de 9 de maio de 1932, eu registrava, por via da ins-
de Oxford, para quem o saber verdadeiro é o sensível (empirismo). O piração, uma mensagem particular para Mussolini, que lhe foi
occanismo teve êxito nos séculos XIV e XV, declinando em seguida entregue na tarde de 5 de outubro do mesmo ano. Ele a leu e
e descambando para um formalismo lógico. Com ele termina a esco- agradeceu através de autoridades governamentais. Tudo está do-
lástica medieval. (N. do T.) cumentado, inclusive na imprensa. Eis algumas frases da mensa-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 3
gem: ―(...) trata-se de ajudar o nascimento da nova humanidade, deverá brevemente seguir nova orientação e necessita assim, ab-
que surgirá da convulsão do mundo (...). Evita, com todas as tuas solutamente, de novas e completas concepções, por meio das
forças, qualquer guerra. Não há razão humana que possa justifi- quais possa avançar. Para isto, é indispensável um sistema de
car hoje uma guerra que, com os hodiernos meios de destruição, conhecimentos que resolva e esgote todos os problemas até aos
significaria uma tal catástrofe, que poderia assinalar, através da fundamentos. Para que se possa ter uma orientação até à realida-
invasão asiática, o fim da civilização europeia e impeliria, enfim, de da vida, é necessário, portanto, resolver também os proble-
a civilização a emigrar, depois de tremendos cataclismos, para as mas últimos, reservados à teologia, hoje negligenciados como
Américas (...)‖. Outras mensagens, depois transmitidas, diziam, inúteis pelos espíritos adormecidos no materialismo.
entre outras coisas, o que se segue: ―(...) o momento histórico es- Na introdução do livro Problemas do Futuro, explicamos
tá maduro para grandes acontecimentos (...), o momento histórico que a terceira trilogia, da qual este volume, o décimo, constitui o
chegou, porque hoje fala a dor. O momento histórico é grave, segundo termo, é a trilogia da sublimação, enquanto a primeira
porque a dor falará ainda tremendamente, como jamais falou (...). trilogia foi a da explosão e a segunda, a da assimilação. Assim,
A civilização europeia, que é civilização cristã, ameaça ruir-se após o primeiro momento de simples espontaneidade inspirativa,
(...). A presente tranquilidade operante é a calma que precede as e superado o segundo, de introversão reflexa, agora assistimos
grandes tempestades (...). O mundo, hoje, joga tudo e por tudo‖. aqui ao desenvolvimento do terceiro momento, em que, por
Estava-se assim, em 1932, bem distante das condições meio de uma maturação cada vez maior, os motivos da primeira
mundiais que somente hoje começamos a ver claramente e que, trilogia são retomados, desenvolvidos e potencializados em uma
naquela ocasião, foram previstas com exatidão. Para quem tem sempre mais profunda compreensão, elaboração na qual eles se
olhos para enxergar, o plano de Deus é evidente. É vontade Sua completam e se consolidam definitivamente. É assim que o vo-
que, no ano dois mil, deva surgir uma nova civilização do espí- lume Problemas do Futuro retoma e aperfeiçoa a parte inicial,
rito, em que o Evangelho seja vivido seriamente, a fim de que filosófica-científica, de A Grande Síntese, enquanto o volume
Cristo não se tenha sacrificado em vão. E esta hora, já anuncia- seguinte, Ascensões Humanas, retoma e aperfeiçoa o problema
da há vinte anos, chegou, conforme foi mencionado aqui e em social, biológico e místico, desenvolvendo teses apenas acena-
outras mensagens já publicadas2. das em A Grande Síntese. Mas, a fim de que o plano do conhe-
Pode-se atingir esta meta por duas vias: corrigindo-se espon- cimento desenvolvido em toda a Obra pudesse ser executado,
taneamente, pela mudança para uma psicologia inteiramente in- urgia completar a concepção de A Grande Síntese, que encara o
tegrada no amor evangélico, ou então continuar a trajetória ini- universo em função do homem, enquadrando-a em uma concep-
ciada, com uma guerra que poderá destruir o Hemisfério Norte e ção ainda mais vasta, onde se encara o universo em função de
a sua civilização. Em qualquer caso, o plano de Deus se realiza. Deus. Se aquele livro nos dizia como é construído o universo,
No primeiro, pela rápida compreensão de seres inteligentes; no era necessário explicar por que ele é assim construído, e não de
segundo, por uma lenta compreensão dos seres involuídos, atra- outro modo. Era indispensável contemplá-lo não mais apenas
vés da dor, que sabe fazer-se compreender por todos. em relação ao homem, mas em relação aos fins supremos da
A humanidade padece a doença do materialismo e agora Criação. Impunha-se ultrapassar os confins de nosso universo,
caminha para a mesa cirúrgica. No ano dois mil, Deus terá para imergir no pensamento de Deus transcendente, que está
completado a operação. A bomba atômica será instrumento de além de toda a sua criação, por nós contemplada. Era imprescin-
liquidação da civilização materialista que a produziu. A des- dível alcançar a solução dos problemas últimos, diante do que a
truição bélica, se essa for a via que o mundo escolher, será a mente deve conter-se saciada, por haver ascendido até à fonte de
obra de Satanás, que terá a incumbência, assim como a traição tudo, às causas primeiras de que tudo deriva. Para tocar o extre-
de Judas preparou a redenção, de preparar a nova civilização do mo limite do conhecimento, era forçoso subir até ao plano teo-
espírito. Cristo afirmou que reconstruiria o Templo em três di- lógico, de modo que a visão de A Grande Síntese, assim, fosse
as. E a hora chegou, a fim de que a humanidade, com o III Mi- compreendida e colocada no seu justo lugar, na mais vasta visão
lênio, entre no seu terceiro dia, aquele em que Cristo ressusci- de Deus e Universo. O primeiro livro parte da Gênese para al-
tou. Assim, a velha civilização materialista deve ceder lugar cançar o homem; no segundo, contempla-se o pensamento e a
uma nova civilização, de tipo oposto. obra de Deus, mesmo antes da Gênese, e se atinge o solução úl-
Desta forma, se a humanidade não for suficientemente inteli- tima do problema do ser até aos confins do espaço e do tempo,
gente para compreender, será a própria guerra que, destruindo um onde a Criação terá atingido as suas metas.
pouco de tudo, lhe ensinará que ela não constitui o meio adequado Tudo isto confirma o caráter continuamente ascensional de
para resolver os problemas. Esta será a maior descoberta do sécu- toda a Obra, que agora supera as últimas etapas da sublimação.
lo. O tipo biológico condutor de exércitos, o ideal nietzscheano do O próprio método de recepção se faz mais completo e profundo,
homem da força, cada vez mais desacreditado hoje, já surge como e a intuição conceptual e inspirativa torna-se visão orgânica, que
um tipo falido, e uma nova guerra o sepultará definitivamente no resolve os últimos problemas do ser nos braços de Deus. Mas,
reino passado do involuído feroz. O novo homem de comando, nestas primeiras etapas da terceira trilogia, de sublimação, seja
assim como a classe dirigente, deverá ser cada vez menos guerrei- antes, no terreno científico, como depois, no teológico, a ascen-
ro e sempre mais inteligente, até à plena espiritualidade. são, assim retomada, mantém-se sempre no plano racional. Que
Neste momento histórico, nasce o presente volume, termina- forma tomará ela no terceiro volume, último desta terceira trilo-
do na Páscoa de 1951, logo após os dois volumes: Problemas do gia? A visão se lançará ainda freneticamente para frente, per-
Futuro e Ascensões Humanas, completados na Páscoa de 1950. dendo qualquer contato com a forma mental humana? Tratar-se-
Estamos nos dois primeiros anos da segunda metade do nosso á, então, não mais de sublimação racional, de intelecto, mas de
século, no qual se decidirá a sorte do mundo para o futuro milê- sublimação mística, num incêndio do sentimento? Será possível
nio. É neste momento que A Grande Síntese é ampliada e aper- levar ainda mais adiante tais assomos, surgidos nos atuais volu-
feiçoada no terreno teológico. E, após ter atingido, nos dois vo- mes? Não sabemos ainda se a maturação poderá alcançar novos
lumes acima mencionados, a solução de problemas parciais, cimos. Mas, sem ter atingido e transposto estes, como podere-
mais próximos a nós, aqui é oferecida a solução dos problemas mos chegar ao ultimo vértice: Cristo? Não podemos saber por-
máximos, de modo que se lance luz sobre tudo, já que o mundo que ainda não vivemos essas maturações. Mas é certo que as tra-
jetórias já estão traçadas, tanto na vida do indivíduo como na do
2
Referencia às primeiras das Grandes Mensagens (Messaggi Spiri- mundo, tudo devendo prosseguir e amadurecer. O tempo assina-
tuali), volume inicial da obra completa. (N. do T.) la, com o seu inexorável ritmo, o desenvolvimento dos destinos.
4 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Assim, esta grande tarefa encaminha-se para o seu término. I. COMO FALA A VIDA
Encontramo-nos nos últimos registros, sempre mais altos,
sempre mais distantes do inferno terrestre. Superando sozinho Escutemos a história de um homem que ouvia as vozes de
montanhas de obstáculos, consumiu-se uma vida, mas amadu- todos os seres e com eles conversava.
receu uma alma. Martírio de um homem, mas que se enxerta Um dia, o vento se enfurecia. E esse homem lhe falou:
no martírio da mundo, porque una é a lei para todos: se qui- ─ Cala-te, não vês que danificas a vida? Arrancas as árvo-
sermos redimir-nos, não resta senão a cruz de Cristo. E hoje, res, matas os animais, ameaças as pessoas. Modera a tua corri-
queira ou não, também a humanidade nela está pregada para a da! Ninguém te impede de andar e, com um pouco de calma,
sua redenção. Cristo fez a sua parte. Agora cabe a nós fazer- chegarás da mesma forma ao teu objetivo sem causar danos. Na
mos a nossa. Acima de todas as tempestades, impassível, Deus Terra, não existis somente tu e os demais elementos. Há tam-
observa e aguarda. A grande força do Evangelho está no fato bém a vida das plantas, dos animais, dos homens. Há lugar para
de que ele jamais é superado: pertence ao futuro e, por isso, todos, tanto para ti como para eles, porque todos devem viver.
não envelhece; está no fato de que ele constitui um ponto de Ah! O vento não podia ouvir a voz nem compreender os
chegada, e não de partida. conceitos, não sabia responder. Entretanto o vento não é coisa
Frequentemente, é necessária toda uma geração para com- morta. É energia, movimento, tem um corpo físico, embora ga-
preender um livro. A Grande Síntese só começará a ser com- soso, é vida. Há na profundeza de todas as coisas um pensa-
preendida pelo mundo depois de vinte anos. Somente uma no- mento oculto, que elas ignoram e que lhes guia a existência até
va geração compreenderá toda esta Obra. Entrementes, resta a nas formas mais simples das combinações químicas e movi-
quem a escreveu o ultimo encargo conclusivo de acompanhar mentos atômicos. À medida que o ser sobe na escala da evolu-
sua difusão no mundo. Depois, após a longa e exaustiva jor- ção, vai tomando pouco a pouco consciência desse pensamento.
nada, o repouso em Deus. Mas somente assim, vivendo para o Aquele homem sabia ouvir interiormente a voz desse
bem, vale a pena viver. pensamento, que, através do vento, como se ele falasse, lhe
Agora que o ciclo volve ao seu fim, podemos ver que tudo respondeu:
se desenvolveu com a calma das coisas pré-ordenadas por uma ―É fatal que eu assim aja, porque fui feito assim e porque
vontade superior, segundo um plano em que cada momento está fatal é a força que me impele e arrasta. Sou a expressão que
no seu lugar, na sua justa posição, ainda quando se defronta veste essa força e outra coisa não faço senão exprimi-la, porque
com obstáculos e quedas. Estas três trilogias se desenvolvem, ela é todo o meu eu. Quando ela quer e diminui o impulso, eu
assim, segundo o ritmo de um esquema muito mais vasto, pre- também paro, tornando-me carinhosa aragem para as plantas,
sente nos três dias após os quais Cristo ressurgiu e no desen- os animais, os homens e para tudo o que chamas vida e que
volvimento da Sua ideia nos milênios. desconheço. Sou surdo e cego no plano em que falas. Não sei o
que seja sentir. Para mim, somente o movimento é vida. Quan-
A primeira trilogia, explosiva, corresponde, pois, à primeira
do me falas das experiências desses seres, não sei o que estás
fase do cristianismo, que avança no ímpeto de fé dos mártires.
dizendo. Não compreendo o mal que tu lamentas que eu faça,
As próprias Mensagens Espirituais, com que se inicia a Obra,
como seja arrancar e matar‖.
surgem nos primeiros três anos que vão do Natal de 1931 à
O homem replicou:
Páscoa de 1933, e continuam com o XIX Centenário da Morte
− Mas por que não compreende?
de Cristo. Depois, assim como a Igreja se consolidou na Terra,
E a voz da vida respondeu:
após três séculos de perseguições, com o ato de Constantino e o
―O fato de não compreender é alguma coisa de que tens
decorrente reconhecimento oficial, A Grande Síntese, logo após
conhecimento para que fales dela, mas de que eu não tenho,
as Mensagens Espirituais, também lançou as bases cientificas
pelo menos para as coisas que dizes. Só conheço o que diz
do sistema, partindo da matéria. Tudo isso no princípio da pri-
respeito à minha existência; somente a ela, e não às outras. E
meira trilogia, como do I Milênio. tu, que aparentas compreender mais que eu, como não enten-
A segunda trilogia, de reflexão e assimilação, representa o des que não posso conhecer mais que a mim mesmo? Também
II Milênio, em que a ideia de Cristo é racionalmente desen- tu, conquanto mais adiantado do que eu, não podes conhecer
volvida pelos pensadores, assimilada em parte pelos povos, mais do que a ti mesmo.
incorporada aos hábitos e instituições. Mas Cristo ainda dor- ―Vê bem: só tenho uma alma elementar, mecânica, sem di-
me no sepulcro. reito de escolha, sem responsabilidade e sem outras coisas a que
A terceira trilogia é de sublimação e ressurreição no espírito. dás nomes que ignoro. Sou apenas um cálculo de forças, uma
Cristo ressurge. No terceiro dia, o templo é reconstruído. No III fórmula dinâmica, uma férrea concatenação de causa e efeito,
Milênio, o Evangelho, até agora à espera, começa sua atuação na como dirias. Cabe a ti, que tens o que não tenho – a inteligência
vida coletiva. Avizinha-se o pré-anunciado Reino de Deus. En- – como a denominas, estudar a minha realidade, que podes pe-
tramos na fase da luz e do triunfo. Assim, no III Milênio, o netrar em sua estrutura e significado, coisas minhas que certa-
mundo se unificará em um só rebanho, sob um só pastor: Cristo. mente existem e das quais eu nada sei, mas a que obedeço natu-
Não há dúvida de que é estranha esta impensada coincidên- ralmente. Ignoro quem o sabe por mim. Apenas obedeço. A ti
cia, seguramente não preparada, pela qual este ritmo de três cabe estudar e compreender-me, porque te sou inferior, não me
elementos se repete e retorna do período trienal das Mensagens cabendo penetrar-te, porque me és superior. Ignoro o que dizes
(fase preparatória) para estas três trilogias da Obra, seguindo o que eu faço. Para evitar o que chamas de males e, assim, salvar
ritmo da ressurreição e reconstrução do templo no terceiro dia e deles os seres de que me falas, compete a ti e a eles, que me sois
dos três milênios em que o cristianismo se afirma: o primeiro superiores, aprenderdes a defender-vos, não só porque sabeis
na matéria, o segundo na razão, o terceiro no espírito. Dante mais que eu, mas também porque interessa à vossa existência, e
também se fundiu neste ritmo, na Divina Comédia. E a terceira não à minha, usar os meios necessários de cautela. Cada um de-
trilogia nasce na Páscoa da Ressurreição de 1950, ano santo, ve aprender a sua lição, vivendo. Eu, a minha; vós, a vossa. E, já
centro do século, e se orienta para Cristo. Mas toda a Obra não que tendes à disposição mais recursos do que eu, deveis apren-
passa de um anúncio e de uma preparação, porque, na alvorada der coisas mais complexas e difíceis. Pareço estar na ociosida-
do III Milênio, Cristo romperá a pedra do sepulcro e ressurgirá de? Se me agito sempre, é porque também tenho o meu trabalho
triunfante. E a humanidade ressurgirá com Ele. a fazer, e estas forças, que são a minha alma, devem resolver
problemas e aprender soluções, transformações e equilíbrios que
Gubbio, Páscoa de 1951. ignorais e que têm a sua função na harmonia do Todo, em que
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 5
estais e de que tenho necessidade. Tenho a minha função, que rás modificar-nos, domesticando-nos. Todavia, permanecerás
cumpro na ordem das coisas. Não me podeis pedir mais‖. sempre distante, porque não podemos seguir-te‖.
Em seguida, o vento retomou a sua corrida, que era a sua Em seguida, o animal fugiu em perseguição da presa, se-
expressão de vida, e, sibilando, elevou-se aos espaços. guindo cegamente o seu instinto.
O homem voltou-se então para uma planta que, cheia de fo- O homem voltou-se, então, para um seu semelhante e lhe
lhas e de espinhos, havia invadido todo o espaço livre ao sol, disse:
sufocando as plantas vizinhas, e lhe disse: — Eis finalmente um igual a mim. Resumes todos os seres
— Por que és assim egoísta e malvada, prejudicando os teus com que tenho falado até agora. Tens as férreas leis físicas do
semelhantes vizinhos, para que tu sozinha possas viver? vento, a sabedoria vegetativa da planta, os sentidos e o instinto
―Malvada, egoísta?‖ – respondeu a planta e continuou: do animal, além de uma qualidade nova: a tua liberdade de es-
―Que significam estas palavras? É natural que eu cuide apenas colha no mundo moral, com as suas consequências. Tu, que
da minha vida, da mesma forma que os outros só cuidam das suas. dispões de tudo, por que não és perfeito, por que caís em culpa?
Não tenho que viver? Possuo o mesmo direito que os outros. Por E este lhe respondeu:
que deveria preocupar-me com eles, se não se preocupam comi- ―Caio porque não sou perfeito. Se peco, é exatamente por-
go? Por que evitar sufocá-los, se eles estão sempre prontos a fazer que possuo uma qualidade nova. Sou livre, tenho responsabili-
isso contra mim, em seu proveito? Se possuo os meus acúleos, é dade e o direito de escolher.
porque, por mim mesma, aprendi a formá-los, a fim de que os ―O animal é mecanicamente sincero na sua ferocidade e não
animais não me comam e mãos como as tuas não me arranquem peca, pois não dispõe de liberdade, não compreende e não pode
da terra. Como poderia agir de outra forma para defender-me e escolher. A sua visão não se eleva acima de sua lei, simples,
para vos fazer compreender o meu direito de viver, senão através quase mecânica. Eu a domino porque vejo de mais alto, mas ele
do vosso dano, único ponto em que sois sensíveis? Caso se queira está encerrado nela. Menos sujeito a errar, é um autômato mo-
viver, esta defesa é necessária. Por minha conta, tive de aprender vido por uma mais profunda sabedoria, que não é sua, mas que
que não me resta outro modo para viver. Tudo isto foi o que a vi- tudo sabe. Devo aprender a manejar uma potência diversa, dire-
da, com a sua dura escola, me constrangeu a aprender, e tu sabes tora, o que implica lutas que o animal ignora. Devo viver a lei
que todo ser deve aprender a sua lição‖. de Deus, não como cego instrumento constrangido por impul-
O homem acrescentou: sos íntimos, através dos quais a Lei se faz presente, mas devo
— Mas por que não procuras compreender, além da tua vi- vivê-la por livre escolha, para assim chegar a compreender a
da, também a vida dos teus semelhantes, para que haja lugar pa- lógica e a bondade dessa lei e, dessa maneira, tornar-me cons-
ra todos e todos possam viver? ciente dela. Esta é a minha experimentação e, se cada um tem a
E a voz da vida respondeu: ―Mas compreenderão, porventu- sua lição, esta é a lição que devo aprender. A Lei é única para
ra, os outros a minha? Somos inimigos, rivais. O lugar ao sol todos, mas é diverso, segundo os planos evolutivos, o conheci-
existe para os vencedores. A vida certamente se defende, mas mento que o ser atinge dela. Os elementos, a planta e os ani-
através do meu trabalho, pois devo aprender a vencer por mim mais aplicam-na em graus diversos, sem nada saber a seu res-
mesma. Essa é a lição que a vida me impõe. Não existem em peito. Só o homem consegue conhecê-la, para, depois de ter
meu mundo o que chamas piedade e bondade. Há somente a fér- tomado consciência dela, livremente segui-la e tornar-se seu
rea justiça do mais forte. Este é o melhor entre os de seu nível, instrumento, seu espontâneo executor, porque compreendeu
sendo justo que ele vença. Se me transportares para um ambien- que só nessa ordem está o seu bem e a felicidade.
te protegido, então eu me domesticarei e perderei os espinhos. ―A minha vida é dura e difícil, repleta de fadigas e esforços,
Mas, assim civilizada, eu me enfraqueço e, se me abandonares, de abismos que a mecânica do instinto ignora. O animal obede-
morrerei. Desta forma, vês que a minha rudeza é necessária e ce cegamente, até à brutalidade, às leis da fome e do amor e não
obrigatória, pelo menos enquanto eu estiver entregue a mim pode superá-las. O homem, mesmo sentindo-as intensamente,
mesma. Cabe a ti, que te encontras em nível superior e possuís como as sente o animal, tem, pela superior natureza humana, a
meios para melhor compreensão, e não a mim, fazer com que possibilidade que aquele não possui, de sobrepor-se-lhes e sub-
existam no mundo piedade e bondade. Executo honestamente a jugá-las; pode completar a catarse biológica ignorada pelo ani-
minha parte de trabalho no organismo universal, produzindo a mal, do herói, do gênio, do santo, do místico, que o conduz a
síntese química da vida do mundo inorgânico. O resto exorbita um plano de vida ainda mais elevado, no qual as conhecidas ca-
ao meu labor. Cumpro assim a minha função na ordem das coi- racterísticas da animalidade são subjugadas e vencidas. Se no
sas, evidentemente no meu nível. Não me podes pedir mais‖. homem ainda sobrevive a besta, já existe em germe o anjo. O
O homem se voltou, então, para um animal que avidamente homem sofre e luta justamente para desenvolver em si esse
espreitava a presa, dizendo-lhe: germe e tornar-se anjo. Essa é a fase evolutiva que me compete
− Por que este assalto contínuo? Vós, animais, sois superio- viver. Se, por isso, eu posso criar muito mais do que o animal,
res às plantas, tendes liberdade para correr e voar, possuís olhos porque sou livre também posso, sofrendo, aprender muito mais
e ouvidos, tato e olfato, muitos sentidos e possibilidades desco- do que ele, através de lições que de modo algum ele pode co-
nhecidas pelas plantas. Por que permaneceis sob a lei feroz des- nhecer. Enquanto a sabedoria do animal consiste em aguçar os
ta, que vos é tão inferior? sentidos e as possibilidades físicas, e nisto está toda a expressão
E a voz da vida replicou: de sua vida, eu aguço os sentidos, os meios morais e espirituais,
―Se nós somos superiores à planta e mais coisas podemos cuidando cada vez mais destes últimos. Quando o animal tiver
perceber, não temos, porém, liberdade para agir. A nossa vida conseguido ver e ouvir mais longe e farejar com maior delica-
acumula experiências sensórias, mas não temos, como tens, as deza, para assim vencer com meios cada vez mais perfeitos a
experiências que chamas de morais e espirituais. Não somos li- luta pela vida, então terá aprendido completamente a lição. Eu
vres para escolher, devendo seguir fatalmente a lei que nos im- terei aprendido a minha somente quando tiver conseguido ver e
pele sempre nesse caminho, fazendo-nos agir assim. Nós nos ouvir com maior bondade e justiça para todos, para vencer a lu-
alimentamos, procriamos e vivemos quase mecanicamente, ta pela vida, não destruindo o meu semelhante, mas com ele
como quer uma lei que desconhecemos. Esta é toda a nossa vi- coordenando-me e colaborando na ordem divina‖.
da, e outra não conhecemos. Que pretendes acrescentar? Esta é Então o homem que ouvia a voz da vida dirigiu-se a um an-
a nossa experimentação, é a lição que devemos aprender. Dessa jo e lhe disse:
forma, tudo vai bem para nós. Estando em plano mais elevado, — Ó tu, bem-aventurado que vives nos céus, distante do in-
podes viver assim. Se nos levares para vivermos contigo, pode- ferno terrestre, e que progrediste muito mais do que nós, por
6 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
que não nos ajudas? O animal se equilibra em sua ignorância, II. “EU SOU” – ESQUEMA DO SER
guiado apenas pelo instinto, parecendo estático. Mas o homem,
quanto mais sobe, tanto mais adquire consciência da Lei, para Caminhemos juntos à procura de Deus. Não certamente do
melhor ver que longa estrada ainda tem a palmilhar e quanto es- Deus absoluto – inconcebível para nós em Sua substância, não
tá atrasado no caminho para a meta final! suscetível de definição – o Deus transcendente, que ―é‖ além de
E o anjo explicou: toda a Sua expressão. Para nós, humanos, Ele é hoje o inacessí-
―Eu estou mais avançado do que tu, mas ainda muito dis- vel, o incognoscível, que a nossa mente não pode alcançar,
tante da perfeição infinita de Deus. Pareço bem-aventurado e além da Sua suprema afirmação no Todo, em que Ele nos apa-
o sou de fato, relativamente ao que representa a vida na Ter- rece e nos diz: ―Eu sou‖.
ra. Pareço-te bem-aventurado, despreocupado de fadigas e lu- Caminhemos, ao invés, à procura do Deus para nós conce-
tas, mas também nós as temos e grandes, embora elas só vi- bível, porque imanente, expresso na forma, que nos é acessível
sem ao bem. Justamente porque compreendo mais do que tu, porque sensorialmente vestido de uma expressão em nosso con-
meus deveres são maiores do que os teus. A fatal transforma- tingente. Eis um humilde arbusto solitário ao pé de uma mureta.
ção em que consiste a existência torna-se para nós, mais vizi- Que significa essa vida? Que pensa e deseja esse pequeno ser,
nhos de Deus, uma ascensão rápida. Vivemos mais direta- que pensamento contém? Deixemos de lado a botânica, a quí-
mente atingidos pelos raios divinos do amor, não podendo mica, a estrutura orgânica. Busquemos o mistério que das pro-
viver senão para os outros. Poderemos ser felizes, mas vimos fundezas anima essa vida. Esta pequena planta sabe muitas coi-
colher na Terra as vossas dores, que tornamos nossas, para o sas. Nós o deduzimos pelo fato dela saber fazê-las. Se não as
vosso bem, porque só assim podemos melhor sentir Deus. A sabe como consciência desperta e refletida, que as conheça
nossa não é uma beatitude ociosa. Esta é a nossa experiência conscientemente pela razão e pela análise, o fato de se compor-
e, se cada qual deve ter a sua lição, esta é a lição que deve- tar como se as conhecesse prova que deve saber de outra ma-
mos aprender. Quanto mais subimos, tanto mais nos torna- neira. Estranho modo este saber inconsciente, mas ele é habitu-
mos fortes operários, porque nos transformamos em mais po- al na vida! Entretanto, se possuímos os efeitos de uma sabedo-
derosos instrumentos de Deus na realização do Seu plano no ria, sinais evidentes que revelam a sua recôndita presença, e se
universo. O paraíso seria um inferno se abrigasse alegrias essa sabedoria não se encontra no consciente do ser, é necessá-
egoístas como as vossas. Sem um trabalho permanente, per- rio procurá-la algures. Onde? Essa consciência cobre apenas o
deremos as nossas qualidades e volveremos a formas inferio- campo da sua atividade, imprescindível aos fins da evolução.
res de vida. Aqui fervilha o trabalho do bem, como embaixo
Se, para o ser individualizado, o resto do universo é um oceano
se agita o do mal. Aqui se respira amor, como embaixo se
de mistério, sepultado no inconsciente, só o é relativamente a
respira ódio. E nós somos os canais do amor que recebemos
ele, e não em si mesmo, porque esse oceano de inconsciente é
de Deus, para fazê-lo descer até vós. Ele dirige a grande
formado de outros seres, cada um consciente do seu pequeno
harmonia da vida, a imensa sinfonia do universo, da qual nós
trabalho, com o Todo funcionando imerso em uma atmosfera
somos as notas mais altas, e vós, as mais baixas‖.
de pensamento que o guia e rege.
Então, o homem voltou-se para Deus e Lhe falou:
Quando, pois, cada ser nos demonstra que sabe resolver
— Senhor, agradeço-te me haveres dado, pelo Teu amor, o
todos os problemas inerentes às suas necessidades vitais, isto
supremo dom de existir. Tu me fizeste um ―eu sou‖, à Tua ima-
significa que por ele sabe e pensa o consciente universal, que
gem e semelhança, no seio do Teu infinito ―Eu Sou‖. Assim eu
existo em Ti, assim eu canto uma nota na grande orquestra do lhe transmite somente a conclusão do seu raciocínio, com um
Teu universo, sou um operário, embora ínfimo, da Tua obra – impulso, cuja análise o ser não sabe fazer, mas que lhe diz em
uma célula, ainda que diminuta, do Teu grande organismo. síntese: ―faça isto‖. Então ele, ignorante do funcionamento do
Enquanto assim orava, o homem volvia o olhar para todas Todo, passa a ser um instrumento inconsciente do consciente
as formas do ser e via as criaturas irmãs, hierarquicamente universal, que funciona por ele naquilo que não pode nem sa-
dispostas de acordo com os graus de evolução, cada qual em be atingir. Não se nega, com isto, que o instinto seja formado
seu lugar no grande edifício da criação, cada uma com a sua pela experimentação da vida, com a técnica dos automatis-
função na ordem universal, cada elemento útil no grande or- mos, como já dissemos em A Grande Síntese. Não falamos
ganismo do Todo. aqui dessa pequena inteligência a posteriori, e sim da superior
E, a cada uma, segundo a respectiva posição, a voz da vida inteligência a priori, que tudo guia, inclusive a formação do
lhe havia falado, conforme à lei dominante no plano em que instinto, imprimindo-lhe a direção necessária, de acordo com
cada ser se coloca, revelando limites e deveres proporcionais. o plano geral da evolução.
Mas, contra a fatalidade de permanecer encerrado, o esforço Os impulsos fundamentais de nossa vida, tanto os do desti-
próprio de trabalho e dor abre as portas, possibilitando ao ser no individual quanto os do destino coletivo, que se desenvolve
subir cada vez mais para a suprema glória do divino. Esta é a na história, não constituem um produto racional e consciente,
grande experimentação de toda vida, esta é a lição que cada sendo insuficiente para explicar-lhes a gênese somente um ins-
qual deve aprender. O divino freme nas profundezas de todo tinto puro formado pelas experiências do passado, pois derivam
ser. O espírito adormecido deve despertar para chegar até Deus. do consciente universal, que trabalha por nós onde ignoramos.
Em todos os níveis, dos mais baixos aos mais elevados, revela- Aquela pobre e ignorante plantazinha sabe, pois, viver por
se o animador e íntimo pensamento de Deus. si mesma; conhece os meios adequados para isso, proporcio-
Então, o homem sentiu que havia compreendido o universo nados ao seu escopo e ao ambiente; sabe escolhê-los e coorde-
e abriu os braços a todos os seres, cuja voz ouvia e disse: ná-los. Ela quer viver. Ela quer crescer e sabe crescer. Ela quer
— Aperto-vos todos no amor de Deus. Fundidos todos no reproduzir-se e sabe como fazê-lo. E, assim, cuidando não
mesmo amplexo. Subi comigo, subamos unidos para Ele. Vós mais da aparência sensória, e sim penetrando por intuição a
de cima, prodigalizando amor; nós, inclinando-nos para os infe- forma que ultrapassa essa aparência, nós vemos um pensamen-
riores e ensinando-os a subir; e os inferiores, aceitando o dom to sábio, que está além do consciente do ser, pensamento que
de sacrifício e amor dos superiores, que procuram ajudá-los a enfrenta e resolve problemas, opõe uma vontade decidida con-
conquistar com justiça a própria felicidade. Só assim, unidos tra qualquer obstáculo, transpondo-os a seu modo. É que den-
em um amplexo, nós, criaturas dispersas no infinito pulverizado tro desse humilde ser existe uma alma, embora sem o grau es-
da forma, poderemos encontrar-nos e, refundidos – através do piritual que atingiu no homem e ainda que não passe de um
amor – em um só organismo, reconstituir-nos no Uno-DEUS. esmaecido reflexo do consciente universal ou alma do Todo,
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 7
cuja manifestação se estende à periferia na individualização Tornamos a encontrar aqui o conceito já desenvolvido nos vo-
particular, imersa no inconsciente. lumes precedentes, do princípio central único que, no universo,
Esta forma é um transformismo contínuo. Efetivamente, pulveriza-se no particular periférico das formas – sua manifes-
não a encontraremos jamais idêntica a si mesma. Periodica- tação. Mas permanece o esquema único da constituição do uni-
mente, a vemos morrer e reproduzir-se e assim, através da verso por individualizações.
morte e do renascimento, por meio de uma renovação contí- Assim se explica como cada ser assume uma forma típica,
nua, sobreviver sempre. Se a forma não pode existir senão as- definida, com os seus limites de desenvolvimento no tempo e
sim, continuamente renovando-se, então deve haver atrás dela no espaço. Se tudo isto já não estivesse estabelecido num es-
o imutável, um outro seu aspecto, que permanece constante, quema e não fosse conhecido, ainda que por um processo não
aquele sem o qual não se explica uma vida regida por um obje- consciente, pelo ―eu‖ profundo, que sabe, quer e permanece
tivo perene, caminhando através da incessante mutação de sua idêntico através da contínua mutação de forma, não haveria
existência. E, diante da forma material, qual pode ser esse ou- nenhuma garantia de ordem funcional e de desenvolvimento
tro aspecto do dualismo, inverso e complementar, como o regular. Assim tudo é típico. O universo é um edifício compos-
imóvel é diante do móvel, senão a sua imaterial ideia animado- to de infinitos ―eus‖, que, de um ―Eu‖ central do Todo, pulve-
ra, o pensamento, que sabe tantas coisas e que, imutável, se riza-se hierarquicamente, descendo para ―eus‖ sempre meno-
exprime revestindo-se de forma mutável? res. Isto desde o infinito galáctico ao nuclear, um ―eu‖ astro-
Penetremos ainda mais profundamente no íntimo dessa pe- nômico, geológico, físico, químico, espiritual, humano, ani-
quena planta e veremos, então, que o seu ponto central, assim mal, vegetal. Este ―eu‖ é sempre uma sabedoria e uma vontade
como o de todos os seres, ponto no qual tudo converge em sín- constante, inteligentemente dirigida para um dado fim, que ir-
tese para depois se irradiar analiticamente, pelo qual passa e se resistivelmente tende à sua exteriorização. Todos esses ―eus‖
manifesta o saber do consciente universal na vontade de viver e se reagrupam por unidades coletivas, dos menores aos maiores,
que permanece constante no transformismo, é o eu. O próprio alcançando das mínimas unidades atômico-nucleares às máxi-
homem – que foi ontem criança, é hoje adulto e será velho mas organizações galácticas, do simples psiquismo orientador
amanhã – sabe que tudo muda nele e em seu derredor, mas sabe das moléculas dos cristais ao homem e ao gênio. Todos esses
também que a única coisa que nele jamais muda é a existência ―eus‖ mantêm um sistema orgânico que é próprio a cada um,
desse centro pelo qual ele se chama e se sente sempre ―eu‖. En- evoluindo e funcionando sempre em cooperação com todos os
quanto no ser tudo nasce e morre, somente esse eu não morre outros ―eus‖. Esse principio, pois, não apenas conhece, quer,
jamais. O fato dele permanecer através de tão grandes trans- permanece constante e sabe reger o funcionamento individual,
formações, como são as que de um lactante fazem um homem e mas também sabe guiar-lhes a evolução e coordená-los com o
depois um velho, faz com que o ser, intuitivamente, sinta a ló- funcionamento de todos os outros ―eus‖.
gica de uma idêntica continuação da vida do ―eu‖ também atra- Tudo isto nos mostra que o universo é um todo que, ainda
vés desta outra mutação constituída pela morte do corpo, que, quando pulverizado em infinitas formas ou expressões de um
em toda a sua vida, jamais foi idêntico a si mesmo e não fez mesmo princípio central único, permanece organicamente com-
mais do que continuamente morrer e renascer. Por que, pois, só pacto, porque é construído segundo um esquema único, conso-
essa outra transformação deveria ter a força de destruir esse ante um idêntico modelo, que se repete ao infinito em cada uni-
―eu‖ que se revelou tão invulnerável a toda mutação exterior? dade menor, onde a maior se ramifica e se diferencia até à ex-
Se toda forma pode existir sem se desfazer no contínuo trema pulverização. O que torna compacto o universo é ser ele
transformismo que a constitui, resistindo compacta ao turbi- um ―eu‖, é o mesmo princípio unitário que mantém compacta
lhão das suas mutações, é porque no íntimo de todo ser existe toda forma, sendo esta, à semelhança da máxima, uma unidade
esse ―eu‖, firme centro na tempestade transformista. Todo ser coletiva resultante da coordenação orgânica de menores unida-
existe no tempo enquanto disser: ―eu‖. Di-lo o átomo, a molé- des de ―eus‖. Assim, tudo permanece unido porque coligado
cula, a célula, o mineral, a planta, o animal, o homem, a famí- por uma contínua atração de parte a parte, por uma confraterni-
lia, o Estado, a humanidade, a Terra, o sistema solar, os siste- zação dos ―eu‖ menores nas unidades maiores.
mas galácticos, o cosmo. No universo, tudo está sujeito a essa A observação da estrutura das formas no plano de nosso
necessidade de individualização. Ele é composto de seres di- contingente nos levou à verificação desse princípio universal
versamente diferenciados, mas todos dizem igualmente: ―eu‖. do ―eu sou‖, inserto em cada forma. Agora é a observação da
De um polo ao outro do ser, tudo é construído segundo esse estrutura de nosso particular que nos indica a estrutura do uni-
princípio, que é lei fundamental. É assim que toda força no versal. Assim como cada individualização particular do ser não
universo é individualizada segundo suas qualidades particula- pode existir senão enquanto diz: ―eu sou‖, isto é, em função
res, o que explica a instintiva tendência dos povos primitivos dele e como sua manifestação, também a individualização má-
para personificar as forças da natureza, atribuindo-lhes caracte- xima do ser, isto é, o universo, não pode existir senão enquanto
rísticas humanas. É também sob este aspecto que podemos ver diz ―eu sou'', ou seja, em função deste e como sua manifesta-
as forças do mal personificadas em Satanás e seus demônios, ção. Isto à semelhança do que constatamos em todo ser, inclu-
que, de resto, nós realmente vemos existir em nosso mundo, sive o homem, fato que cada um pode observar em si mesmo.
nas manifestações dos seres maus. Esta característica de indi- Se o ―eu sou‖ de cada individualização é o seu íntimo princí-
vidualização, que, em qualquer forma, é sempre indispensável pio animador e se o ―eu sou‖ do homem é a sua alma, o que
à existência de um ser; este princípio comum a todos, ideia- poderá ser o ―eu sou‖ do universo, o princípio animador da
mãe do universo e esquema fundamental do sistema; este prin- forma máxima, senão Deus?
cípio universal do ―eu‖, centro de todo o ser, é a única coisa Assim tornam-se compreensíveis para nós as relações entre
que pode manter-lhe constante a identidade em uma forma Deus e o universo, porquanto podemos observá-las refletidas
que, de outra maneira, não poderia encontrar-se a si mesma e em nós mesmos. Deus é o ―Eu sou‖ do universo. Este, no seu
se perderia no seu contínuo transformismo. aspecto dinâmico e físico, é a forma pela qual Deus exprime o
É este seu íntimo ―eu‖ que define toda a forma nas suas ca- pensamento, é como que um Seu corpo, onde podemos ver de
racterísticas particulares, forma pela qual ele concretamente re- Deus, mesmo na forma, também um semblante que pode espe-
aliza a sua expressão. Se todas as formas são diferentes, é por- lhar na fisionomia e expressão o seu íntimo pensamento anima-
que todo ―eu‖ é diferente, embora conserve, cada qual na sua dor. Assim como nós procuramos num rosto humano uma alma
diversidade, a característica universal comum de ser um ―eu‖. e assim como, em toda forma, procuramos o princípio inteli-
8 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
gente que nela se exprime, também podemos ver na criação a sim, pelo contrário, para vantagem dos elementos componentes,
fisionomia de Deus. E, quanto mais a nossa vista se torna pene- com a conservação de um organismo global, que é necessário e
trante pela intuição, tanto mais cada forma se fará transparente útil a todos. O Estado, como um chefe de família, pode ser util-
e lhe revelará sua íntima substância espiritual. Torna-se cada mente egocêntrico sem ser egoísta. Se todo ser, para existir, de-
vez mais patente, então, que o criado é a expressão de um seu ve dizer: ―eu‖ – o egocentrismo é uma necessidade de existência
íntimo pensamento nele imanente, no qual a transcendência de e, por isso, não pode haver culpa em se repetir os princípios do
Deus desceu e permanece sempre presente. Se, no seu aspecto ser, expressos no sistema do universo. É segundo a Lei, também,
transcendente, Deus permanece na Sua essência como um ―Eu que cada fragmento conserve interiormente a natureza do es-
sou‖, incognoscível para o homem, Ele, no seu aspecto imanen- quema consoante o qual o Todo-Uno é construído.
te, transferindo-se ao nosso relativo com a criação, fica, através Então, por que egoísmo é culpa? Procuremos compreender.
da forma que assumiu para os nossos sentidos, acessível ao co- Egoísmo e altruísmo são termos relativos ao grau de extensão
nhecimento humano. E em que consiste a progressiva indaga- que o ―eu‖ cobre com o próprio amor e compreensão. Enquan-
ção da ciência, que avança de descoberta em descoberta, senão to o egoísmo é o amor exclusivo com relação ao próprio ―eu‖ e
em contínuas e crescentes sondagens na profundeza do pensa- a nenhum outro, um altruísmo absoluto que renuncia a tudo,
mento divino? Ele está escrito no funcionamento orgânico do inclusive a si mesmo, sem vantagem nenhuma para um dado
universo, e quem o indaga procura ler o livro onde estão escri- ser ou grupo de seres, é loucura, é suicídio. Ambos os extre-
tas as leis do ser e busca compreender a ideia diretriz do Todo, mos constituem culpa. A virtude consiste no altruísmo razoá-
sua alma. O místico, por sua vez, é um sensitivo que, ainda vel, no sacrifício em favor de alguém, na dilatação do egoís-
quando não se dê conta consciente e racionalmente, move-se mo, isto é, na ampliação do princípio do egocentrismo, e não
atrás da mesma indagação por vias mais diretas, porfiando, na sua supressão. A virtude será tanto maior quanto mais ex-
através das suas visões e sensações místicas, alcançar a mesma tenso for o campo dominado pelo amor, que é a substância da
compreensão do pensamento de Deus. Lei. Efetivamente, o egocentrismo máximo do sistema em
Se nós, certamente, não podemos atingir o conhecimento de Deus não é senão um egoísmo que cobre todo o universo, dila-
Deus transcendente absoluto, podemos aproximar-nos muito de tado assim infinitamente no amor capaz de abraçar e defender
Deus imanente, vivo e presente nas formas que O exprimem, todas as criaturas até considerá-las como partes integrantes de
em virtude justamente desse esquema unitário do ―eu sou‖, se- si mesmo, sacrificando-se por elas.
gundo o qual todo o universo, até os casos infinitesimais, é Eis como se opera a progressão da abertura da concha do
construído à imagem e semelhança do caso máximo, analogi- egoísmo no altruísmo, finalidade da evolução. Esta consiste
camente. Podemos imaginar o nosso universo atual como um exatamente na confraternização, que, unificando os fragmentos
todo-uno que, qual um espelho, se tenha fragmentado em mirí- do Uno, reconduz os seres à unidade no centro – Deus. O ego-
ades de partículas. Cada uma destas, embora um fragmento em ísmo poderia então denominar-se egocentrismo involuído, fe-
relação ao Todo, conserva-lhe em particular as qualidades, de chado e limitado em si mesmo, enquanto o altruísmo seria ego-
modo que pode nos traduzir e mostrar a natureza do Todo, não centrismo evoluído, aberto e expandido no Todo. Efetivamente,
obstante haver perdido a unidade global com a fragmentação. o primeiro é separatista, desagregador, centrífugo; o segundo é
Desta forma, cada parte reproduz o universal esquema do ser, unificador, agregador, centrípeto. O primeiro se afasta de Deus,
isto é, cada criatura repete reduzidamente o divino princípio e o segundo se avizinha de Deus.
unitário, alma do Todo. Em outros termos, cada ―eu‖, com a O egoísmo se explica historicamente. Resultado da frag-
sua forma, é um caso menor, que repete em miniatura o motivo mentação do Uno em tantos outros ―eu‖ menores, separados e
cósmico, no-lo narra e no-lo explica. Sendo em si um pequeno separatistas, como veremos, é qualidade do ser involuído, ne-
universo, fala-nos do universo máximo. cessária à sua existência, pois que, no nível em que se encontra,
Ignoramos se tudo isto corresponde aos princípios mais necessita revestir esta forma de personalidade separada egoisti-
aceitos em teologia, filosofia, psicologia etc. Sabemos apenas camente, em guerra com todos, na ignorância da superior fase
que cada ser fala verdadeiramente de Deus e que o universo é orgânica que poderá irmaná-lo aos semelhantes em unidades
construído segundo esta realidade. maiores. Esse egocentrismo, biologicamente justificável, só o é,
todavia, para o passado, mas, se tentar prolongar-se no futuro,
III. O EGOCENTRISMO tornar-se-á cada vez mais condenável como egoísmo separatis-
ta, porque a evolução leva a humanidade a um mais vasto ego-
A esta altura, surgem muitas questões. Procuraremos res- centrismo coletivo. É assim que o egocentrismo separatista,
pondê-las aqui, para resolver, sempre procedendo em profundi- sendo uma forma de utilidade biologicamente superada, não
dade, o problema do conhecimento das últimas coisas. poderá reaparecer senão sob um aspecto cada vez mais retró-
Se o universo diz em Deus o seu: ―eu sou‖, como o diz toda grado e antivital. Tendo cada vez menos razão de existir na sua
criatura e, por conseguinte, todo homem, será possível então forma exclusivista e agressiva, cada vez menos também será
encontrarmos, no termo máximo, o principio de egoísmo que justificado, pois que deixou de ter função biológica.
existe nos seres inferiores e que é tão condenável no homem? Em Deus, o egocentrismo representa um egoísmo tão am-
É isto possível? Mas por que então o egoísmo humano é uma plo, que abraça todas as criaturas, tudo o que existe, de modo a
culpa? Por que ele existe, o que significa e quer? Em Deus, coincidir com o máximo altruísmo. E, quanto mais o ser evolve,
princípio centralizador unitário do universo, encontraremos en- tanto mais o egocentrismo tende a se aproximar ao de Deus,
tão o egoísmo máximo? que é o egocentrismo que todo ser sente com respeito aos ele-
É um fato que, sem egocentrismo, desde os sistemas planetá- mentos componentes do próprio organismo, constituindo uma
rios aos organismos celulares e sociais, não se mantém compac- necessidade para mantê-los todos compactos em unidades em
ta nenhuma unidade. Ele é, pois, necessário a todo ser. Egocen- torno ao ''eu‖ central, alma do Sistema. O egocentrismo de
trismo não é exatamente egoísmo. Este possui um sentido mais Deus é, pois, um egocentrismo perfeito, isto é, não constituído
de centralização com vantagem individual, de pendor separatista de um egoísmo separatista e exclusivista, como o dos seres in-
e exclusivista, de usurpação em detrimento de outros ou necessi- feriores, mas sim feito de amor, que reforça essa fundamental
tados ou com direito. O egocentrismo possui, ao invés, apenas lei do ser, porque Deus é centro, não para sujeitar, mas para
um sentido de centralização, destituído de senso separatista e atrair; não para absorver, mas para irradiar; não para tomar, mas
exclusivista, não com o objetivo de usurpar nada a outrem, mas para dar. Se, por sua vez, os ―eu‖ menores têm necessidade do
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 9
seu menor egocentrismo para manter o seu menor sistema, na- a agir contra o Todo, então os impulsos do conjunto orgânico se
quele egocentrismo também eles encontram o limite do próprio encontram contra ele, para expulsá-lo do Sistema. Veremos,
ser. Em tal limite, eles estão fechados, pois que ele forma o ho- dentro em pouco, como pode surgir essa atitude rebelde das cri-
rizonte da sua existência e compreensão, e só pela evolução po- aturas e quais as suas consequências.
dem sair dele, ampliando-o em outro mais vasto. Compreende-se, dessa forma, como o mundo de hoje, base-
Assim é a íntima estrutura do sistema do universo. O grande ando-se no egoísmo, esteja completamente fora da rota. Os mé-
modelo é Deus, que todos os seres, inclusive o homem, devem todos mais seguidos para a conquista da riqueza representam,
seguir. Esse Deus se encontra no núcleo do Sistema, tudo cen- mesmo do ponto de vista utilitário, um grosseiro erro psicológi-
tralizando em si, para tudo irradiar de si, e as criaturas devem co. Acumular com exclusivismo egoísta significa caminhar
existir à Sua imagem e semelhança, isto é, como outros tantos contra a maior corrente da vida, agir com prejuízo, significa
núcleos menores que irradiam para sistemas menores. E, assim, pôr-se em posição invertida, não obter senão resultados negati-
hierarquicamente, cada um, segundo o grau de evolução atingi- vos. E, quanto mais porfiadamente o homem lutar nessa dire-
do, cobre uma extensão maior ou menor do sistema relativo ao ção, buscando vencer por ela, tanto mais se afastará das fontes
seu raio de ação. Tal o modelo central, tal a lei do Sistema. Cer- do ser, para perder-se no deserto em que o isolarão as forças da
tamente, a criatura é livre e pode, pois, agir de modo contrário. vida, que dele se arredarão como de um pestilento. Deus é amor
Mas pode estar bem certa de que é lei também que todo o sis- e sempre dá. A divina corrente do Todo está baseada no princí-
tema se volte contra ela, para esmagá-la, como a um inimigo. A pio do dar. Agindo ao contrário, o homem pretenderia opor-lhe,
grande corrente da vida vai contra quem pretende inverter a rota como uma muralha, o oposto sistema do tomar! Então, a mura-
do ser, prejudicando-o. Ela o coloca frente ao dilema de rear- lha não susta a corrente, mas a corrente destrói a muralha. A
monizar-se com a Lei, enquadrando-se de novo nela, ou ser nossa economia, porventura, não está baseada no princípio ―do
eliminado. E os salutares golpes da dor, ainda que atenuados ut des‖3? Se a balança da justiça assim se apresenta, isto signi-
pelos impulsos de amor, não serão sustados enquanto não se ti- fica egoísmo, pelo que eu não darei se tu não deres. Se não tive-
ver conseguido a correção ou a destruição. O ser é livre para res para dar, morrerás, o que a mim não importa. E, se não de-
violar, mas somente em seu dano, e não tem nenhum poder para res, eu não darei. Este princípio de compensação, que são as
dobrar ou anular as leis da vida. bases reconhecidas da economia vigente, constitui a mais lídi-
Eis as razões remotas que explicam e impõem o ―ama o teu ma manifestação do egoísmo. Se tal é a atitude da alma, que
próximo‖ do Evangelho. Hierarquicamente, a unidade do Sis- salvação podem realizar os sistemas econômicos que se erguem
tema, por esquemas únicos, repetidos em todos os níveis, impõe sobre essas bases? Uma economia desse tipo, em face das mais
que o mais sábio e poderoso, porque em níveis mais elevados, profundas leis da vida, éticas e espirituais, das quais é ilusório
deve irradiar para os inferiores, de nível mais baixo, pois que os querer furtar-se em qualquer procedimento nosso, resulta tam-
níveis elevados recebem dos que se encontram em níveis mais bém utilitariamente negativa, isto é, contraproducente. Efeti-
elevados ainda do que eles, próximos a Deus. Obtém-se, assim, vamente, o mundo econômico-financeiro não passa de uma sé-
através da desigualdade, a justiça. Receberá dos irmãos maiores rie de crises em cadeia, que formam uma única perene crise in-
quem der aos seus irmãos menores. Quem mais possui, mais sanável, porque ela não se origina de um particular momento ou
deve dar. Quem menos tem, mais deve receber. Eis a perfeita posição, mas de todo o sistema.
justiça alcançada pelo amor, respeitando diferenças e desigual- Por que, então, o homem se comporta assim e não sai dessa
dades necessárias, que exprimem a posição atingida, cada qual posição falsa? Simplesmente porque a grande massa humana é
com sua fadiga e vontade de subir. Uma justiça perfeita, atingi- involuída e não compreende esses erros psicológicos, além do
da sem nivelamentos forçados, que podem constituir mutilações que, quando já se tomou uma direção, é muito difícil inverter a
para os mais evoluídos e apropriação indébitas para os inferio- rota. E aqui se trata precisamente da evangélica inversão dos
res. Eis a função da Divina Providência, já alhures estudada. valores, isto é, de pôr no cimo da escala destes os espirituais e
Assim se compreende o Evangelho, quando diz que não ganha no fundo os materiais. Mas hoje se verifica o inverso, colocan-
a própria vida quem a conserva egoisticamente para si, mas do-se em cima estes últimos em virtude do tipo biológico do-
somente quem a dá aos outros. Recordemo-nos que somos célu- minante na Terra não se encontrar ainda, por evolução, sensibi-
las de um grande organismo e que nenhuma célula pode crescer lizado a ponto de percebê-los e apreciá-los. Ele corre atrás dos
e viver isolada, pensando exclusivamente em si mesma e em valores fictícios do mundo sensório e corporal, ao invés de bus-
seu próprio benefício, mas somente pode fazê-lo em relação às car os mais consistentes do mundo espiritual e da alma. O tipo
outras, em favor do organismo inteiro. Uma célula absoluta- dominante não consegue ainda compreender esse novo hedo-
mente egoísta representa em qualquer organismo um germe re- nismo e apoderar-se dele em seu benefício. A nova vida é do
volucionário, uma revolta à lei do Todo, uma atividade perigosa bem, que opera honestamente, sem enganar, pedindo antes o
que é logo sufocada no interesse geral, um cidadão rebelde que trabalho e depois a recompensa. O homem ignorante prefere as
urge ser expulso da sociedade. vias do mal, que age desonestamente, enganando, prometendo
Tal é a grande parte da moderna humanidade materialista, dar muito e chegando mesmo a dar logo alguma coisa sem nada
para quem o egocentrismo é egoísmo separatista e exclusivista pedir, para mais tarde retomar o que deu e não dar o que pro-
de cada um contra o próprio semelhante. E, efetivamente, as meteu. O caminho feito de mentira é mais atraente para quem
leis da vida procuram isolar esse tipo biológico, como um can- crê ser bastante bravo para burlar as leis da vida, o que leva a
cro ou tumor, para destruí-lo. Com o próprio egoísmo, ele dese- cair facilmente numa armadilha. Cada qual atrai segundo a pró-
jaria sustar o livre fluxo da vida, como quer a divina lei de pria psicologia e obtém o que merece.
amor, e a vida o põe na encruzilhada: seguir a rota da Lei ou ser O homem comum, imerso em um mar de mistérios, não sa-
esmagado por ela. O homem moderno não conhece esses prin- be se orientar, detendo-se nos efeitos imediatos. No altruísmo,
cípios, age como uma célula que quisesse viver exclusivamente ele vê um sacrifício tangível, próximo, real. Vê nele um perigo
para si, isolando-se da corrente de todo o funcionamento orgâ- para si e para os seus, de modo que tem como um dever arre-
nico de que é parte. Para quem compreendeu a vida, isto é sim- banhar o mais que pode para si e para os seus. Em face do al-
plesmente a louca pretensão de um ignorante de tudo. Mas o truísmo ele recua exclamando: ―E quem me garante a vida?‖.
Sistema tem como centro Deus, e não o homem, e ninguém po- O assalto permanente que sofre da parte do próximo, que ele
de alterar a realidade dessa estrutura do universo. E, assim,
3
quando um centro menor, fazendo mau uso da liberdade, tende ―Dou para que dês‖. (N. do T.)
10 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
deveria amar como a si mesmo, justifica em parte essa sua ati- já se encontra em nosso poder. Desta forma, escondemo-nos
tude e exigiria heroísmo ter que invertê-la no oposto. Para em uma prisão. Bastaria saber abrir-lhe a porta, para que nos
chegar a isto, teria que não apenas dar o seu sacrifício imedia- evadíssemos. A porta, para que se abra, exige que recuemos
to, mas também, para manter-se, lutar sozinho contra toda uma um pouco, mas o homem prisioneiro, na ânsia de fugir, ao in-
corrente inversa, formada pela sociedade humana. Todavia, pa- vés de recuar um pouco para trás, avança sofregamente, bus-
ra o homem altruísta, há uma grande força em sua defesa – cando o exterior e, pensando em tudo, menos no que deve fa-
coisa que, na Terra, bem raramente se tem em conta – pois ele, zer para se libertar, mais e mais impele a porta do lado em que
não sendo egoísta, é espoliado de tudo, porque tal é o resultado ela se fecha, tornando, com o seu esforço, mais e mais difícil a
de uma guerra de egoísmos para quem não ataca nem se de- libertação. Ele é um louco. Para desfazer certas miragens e
fende, e isto atrai as forças da vida, que acorrem, a fim de sal- destruir outras tantas ilusões psicológicas, é necessário ao ho-
vá-lo. Estas forças não constituem utopia. Elas regem o mundo mem a dolorosa elaboração de milênios.
e acorrem esse homem porque ele personifica a vontade o O raciocínio do homem atual parece verdadeiro, porque o é
maior interesse da vida, que é a evolução. Mas, para compre- apenas em parte, pelo menos onde ele alcança com seu conhe-
ender isto, é necessária uma sensibilização moral e psíquica cimento, isto é, no seu mundo concreto, que representa a perife-
que não existe na maioria, uma orientação conceitual precisa, ria do Sistema e que ele, ignorante do resto, supõe que seja tudo.
através da qual se tenha compreendido o funcionamento orgâ- Desfazer em altruísmo o próprio egoísmo é efetivamente uma
nico do universo; é indispensável, enfim, a prova resultante do perda, mas somente periférica e apenas em uma primeira fase.
controle experimental de toda uma vida. Porque, realmente, não é perda, mas sim ganho, quando em um
Na realidade, funcionam inúmeras forças que a maioria ig- segundo tempo o ser vem a pôr-se em contato com outras forças
nora. Deus, ao sensibilizado por evolução, é uma realidade não periféricas. Efetivamente, o altruísmo não é vantajoso neste
sensível. O caminho para se aproximar Dele, suprema alegria, mundo, quando outros seres estão dispostos a arrebatar-nos tudo
consiste na progressiva dilatação do próprio egocentrismo, que e valer-se de nosso sacrifício em proveito próprio, embora com
denominamos altruísmo, isto é, o fraterno amor evangélico. evidente perda para si. E esta é definitiva para o involuído, que,
Este constitui o método de ascensão para a felicidade, encur- em remotas conexões com o centro Deus, só é escassamente ir-
tando as distâncias entre o homem e Deus, porque, assim, a radiado e, por conseguinte, empobrecido e privado de novos su-
criatura, seguindo o exemplo divino, volta-se para trás a fim de primentos. E, dado que nos encontramos na periferia do Sistema
orientar as criaturas irmãs. Quando o ser se decide dessa forma e que a maioria é, por involução, pouco irradiada, a posição de
a funcionar segundo a lei do Todo e se dispõe a despojar-se do prisioneiro da pobreza e da dor, sem capacidade de evasão, é ló-
que possui em favor do necessitado, põe em movimento os im- gica e compreensível. Não há remédio imediato. Nada resta se-
pulsos do Sistema e faz com que este funcione em seu favor, não deixá-lo na posição que lhe cabe, segundo o seu grau de
de modo a ser de alguma forma provido e largamente compen- evolução, à espera de que os golpes da vida o elaborem até que
sado do que perdeu, dando voluntariamente. Em outros termos, ele compreenda o mecanismo do Sistema e consiga assim fazê-
ativa-se o princípio segundo o qual quem beneficia é benefici- lo funcionar em seu proveito. É inútil querer explicá-lo antes
ado e tanto mais beneficiado quanto mais beneficiou. Inicial- que ele amadureça, porque permanece incompreensível, pois
mente, punge o sacrifício de pôr em movimento essas forças, que não se aceita aquilo que não se mereça conhecer, por não se
mas o Sistema, pode-se dizer, é de uma tal precisão mecânica, ter feito ainda o esforço de conquistá-lo.
que, uma vez posto em ação por quem compreende e sabe, ma- Tudo será muito diverso para o evoluído. Desfazer em altru-
tematicamente dará resultado. ísmo o próprio egoísmo, também para ele, significa um prejuí-
Certamente, é necessário ter compreendido a estrutura cole- zo. Mas ele pode enfrentar com segurança esse sacrifício, por-
tiva do organismo universal; a universal imanência de Deus, que conhece a estrutura do Sistema e sabe, por isso, o que se
pela qual tudo ―é‖; a natureza orgânica do Todo, do qual cada seguirá a esse sofrimento. Espiritualmente ligado ao centro
indivíduo é parte que vive em relação e das relações com as Deus, não vive apenas de limitada vida periférica. Pelo contrá-
outras partes, célula que morre quando se isola. É necessário rio, é justamente este seu sacrifício de dar irradiando a força
evoluir para sensibilizar-se ao ponto de perceber essa irradia- decisiva que abrirá janelas que o inundarão de sol. É este o difí-
ção do centro, Deus, que rege inteiramente o Sistema, até à sua cil passo para trás, o único que lhe pode permitir abrir as portas
periferia, onde nós, menos evoluídos, nos encontramos. É ne- da prisão. Esta negação de si próprio em altruísmo, na periferia,
cessário compenetrar-se de que não existe pobreza na infinita é uma afirmação para o centro Deus, isto é, uma mobilização
riqueza de Deus e de que os bens são ilimitados e constante- das forças de irradiação que esperavam essa sua atitude para
mente irradiados, sempre prontos a saciar qualquer possível poder inundá-lo. Porque é o ser livre que deve encontrar a cha-
necessidade. Deste oceano, o ser, no entanto, não poderá cap- ve e com ela abrir o mistério da evolução. E, assim, em um se-
tar para si mais do que lhe permite a sua capacidade receptiva, gundo tempo, ele será largamente recompensado e enriquecido
que é dada pela sua evolução, pela sua aderência ao Sistema, pelo seu empobrecimento, que, na realidade, se reduz a perdas
ou seja, pela aderência à Lei ou vontade de Deus. É, pois, ne- diminutas na zona periférica do sistema universal, na zona da
cessário que ele funcione de acordo com a Lei, agir com amor, matéria e das ilusões. Defrontamo-nos assim, em verdade, com
sabendo irradiar, dispondo-se a dar e aplicando assim a norma um sábio cálculo utilitário, que, diferentemente do outro, con-
evangélica do ―ama o teu próximo‖. duzirá à plena satisfação com segurança de êxito.
O problema está em saber acionar os impulsos do Sistema, Eis o raciocínio desse tipo de homem. Dirige-se a Deus, di-
de modo a pôr em movimento essa irradiação. Se soubermos zendo: ―Senhor, eu dou, empobreço-me materialmente, mas,
abrir as janelas de nossa alma, seremos inundados por essa ir- com isto, eu me torno instrumento que adere à tua lei, vivo se-
radiação. Mas, para economizar o esforço de abri-las, fazemos gundo as linhas de força do teu sistema. Para o triunfo do teu
prudentemente, quando não confiamos, os nossos cálculos uti- amor eu sacrifico o meu pequeno eu. Tu sabes que agir assim
litários, para nada arriscar, encolhendo-nos em um canto, e as- na periferia, onde me encontro imerso na matéria, significa
sim permanecemos no quarto escuro e frio de nós mesmos, a empobrecer até à morte. Mas eu não existo mais para mim,
disputar com o vizinho, embora lá fora tudo exista num exube- isolado, mas na vida universal, em que Tu ―és‖. Eu não quero
rante jorrar de vida, o pouco de luz ou de calor que, mesmo as- mais a mim mesmo, mas somente a ti, em Quem eu vivo. Que-
sim, coa-se para o interior. Mas tal é o nosso mundo, onde as ro a tua lei. Faço parte do teu organismo. Sou uma célula dele,
maiores guerras se fazem para disputar o que já possuímos de uma tua célula. Tu és o meu eu maior, em que agora existo.
uma riqueza que é infinita, conseguindo apenas destruir o que Então a minha morte não é mais possível. Compete a ti e à tua
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 11
lei impedi-la, para que a vida me seja dada, pois que ao meu IV. A QUEDA DOS ANJOS
fraco poder de defesa eu renunciei para seguir a tua lei de
amor. Não é possível que, para seguir-te, eu deva perder a vi- Concluída a precedente ordem de conceitos, abre-se dian-
da. Sei que esta tem fins eternos a alcançar e que eles devem te de nós uma outra visão, numa ordem de conceitos afins e
ser alcançados. Ela não pode perder-se ao acaso, dependendo consequentes, que o leitor encontrará em germe, primeira-
apenas da minha pobre defesa do momento. Seguindo-te, eu mente em A Nova Civilização do Terceiro Milênio, Cap. X –
ganho a vida. E se também morrer, não perderei senão a minha ―O Problema do Mal‖, e Cap. XIII – ―Problemas Últimos‖, e
vida menor, porque ressurgirei na tua vida maior‖. depois, no volume Problemas do Futuro, Cap. XV e XVI –
Assim se compreende o Evangelho de São João (Capítulo ―Deus e Universo‖.
XII: 24-25), quando diz: No capítulo anterior, havíamos explorado, sem desenvol-
―Na verdade, na verdade, vos digo que, se o grão de tri- vê-lo, este tema: ―A criatura é livre, podendo, pois, agir contra
go, caindo na terra, não morrer, fica só; mas se morrer, dá o Sistema‖. Aprofundemos aqui, como antes não pudemos fa-
muito fruto‖. zê-lo, essa tese, desenvolvendo-a e analisando-lhe todas as
―Quem ama a sua vida perdê-la-á, e quem neste mundo consequências.
aborrece a sua vida, guardá-la-á para a vida eterna‖. Como ocorreu essa monstruosa revolta de algumas células
A luta entre o evoluído altruísta e o mundo egoísta, que não do grande organismo-universo, as quais, ao invés de funcionar
se preocupa senão de espoliá-lo e explorá-lo, é terrível. A situa- harmoniosamente nele, puseram-se contra ele, rebelando-se?
ção é tal que se procura, por todos os meios, eliminar o benfei- Onde se encontra a primeira raiz dessa anarquia na ordem? Im-
tor, e isto exatamente por parte daqueles a quem ele desejaria portante questão que se vincula ao problema da gênese do mal,
fazer o bem. Poderosa é a resistência que o involuído opõe a da sua presença no mundo e da sua solução final.
quem procura fazê-lo evolver para a felicidade, e trágica é na Para compreender, observemos a estrutura do Sistema. Ela
Terra a posição dos benfeitores da humanidade: posição de se baseia em alguns princípios fundamentais como o egocen-
martírio! É como querer abraçar por amor um tigre: fica-se trismo e a liberdade. A criatura, parte integrante do Sistema, foi
despedaçado. Porém a vida é terrena só em parte e não se exau- constituída como um esquema menor do esquema maior, cujo
re senão do ponto de vista humano. O trabalho desses homens é centro é Deus, de acordo com o princípio já mencionado dos
missão e interessa também ao céu. Dado que à vida, se pouco esquemas de tipo único. Porém, essa dádiva de Deus, por quem
interessa o indivíduo, muito interessa a função que ele personi- a criatura fora feita à Sua imagem e semelhança, constituía um
fica, sobretudo a evolutiva, que torna esse indivíduo sagrado, poder muito perigoso se não fosse bem usado, pois continha em
quando então forças superiores intervém para protegê-lo no sa- germe a possibilidade de um transviamento, possibilidade que o
crifício, até que a missão seja cumprida e se dê o milagre. ser, exatamente pelos princípios do Sistema, deveria enfrentar
Então, aciona-se o movimento da irradiação, porque o ser com as suas forças. E as consequências, quaisquer que fossem,
não mais a mantém fechada em si, mas lhe faculta o fluxo, tor- deviam ser suas, pois significa responsabilidade em um sistema
nando-se-lhe um canal que permite fluir no universo, de criatu- de ordem e justiça, a consequência do princípio de liberdade.
ra em criatura, a divina linfa vital. E a irradiação está pronta a A quem objetar que um sistema perfeito não deve conter a
lançar-se onde a passagem é livre, mas a desviar-se de onde há possibilidade de erro, deve-se contestar que essa possibilidade,
obstrução. Assim, os homens altruístas se tornam sempre mais que não é absolutamente necessidade, está implícita nos princí-
instrumentos da Lei, que nutre cada vez mais esses seus canais pios supracitados, como sua consequência necessária, de modo
e os exalta, enquanto funcionam segundo a direção do seu sis- que, para suprimi-la, seria imperioso suprimir os princípios que
tema de forças. Tudo isto significa dar cada vez mais ampla- dão causa, cujo valor não se discute. É natural que, onde exista
mente, um despojamento crescente, que aterrorizaria o involuí- um ―eu‖ livre, seja também possível o mau uso da liberdade. E
do, mas, ao mesmo tempo, significa um nutrimento sempre nem por isso o valor desta decresce. De outra forma, não nos
mais vigoroso de forças. Ser irradiado significa sentar-se a uma encontraríamos em um sistema de liberdade, mas de determi-
lauta mesa de recursos ilimitados. E o Sistema é tal que, quanto nismo, no qual as criaturas não passariam de autômatos. Ora,
mais aumenta o sacrifício em dar, mais cresce o dom que se re- Deus não criou seres dessa espécie, mas sim criaturas partícipes
cebe, porque, com isto, sobe-se na hierarquia dos operários do das suas próprias qualidades. Dada a estrutura do Sistema, gera-
Senhor, com a conquista de poder e sabedoria crescentes. se uma cadeia de férrea lógica, que conduz dos princípios a es-
Eis a estupenda realidade que está além das trevas que ocul- sas consequências. A criatura deveria, pois, necessariamente
tam ao homem comum a verdadeira estrutura do Sistema. O encontrar-se ante a encruzilhada da escolha.
Evangelho concorda com tudo isto, concluindo pela norma do O ser, portanto, dada a sua estrutura e a do sistema em que
―ama o teu próximo‖, sem dela dar explicações racionais. Essa existia, deveria achar-se diante da possibilidade do erro. Em ou-
conclusão tem sua grande confirmação no mundo atual, que, tros termos, o ser passava por uma prova, por um exame, de cujo
não podendo compreendê-la, a considera uma utopia. Estas resultado dependeria a sua futura posição, por ele livremente es-
concepções aqui expostas pelo autor, obtidas por visão com o colhida. Ora, que o Sistema contivesse a possibilidade de um erro
método intuitivo, foram submetidas a controle durante quarenta não significa absolutamente que ele tivesse sido construído erra-
anos, usando o método experimental, sem que elas, nos fatos do ou fosse defeituoso. Tanto é verdade, que ele, como veremos,
por ele vividos, jamais encontrassem um desmentido. Se isto ti- de fato não se arruinou pelo erro cometido; pelo contrário, por ser
vesse ocorrido, teria sido gravíssimo, porque os fatos, ainda que perfeito, tinha capacidade de autorregeneração. O Sistema estava
apenas um, teriam desmentido o Evangelho. Muito se deve acima do erro nele possível e fora constituído para permanecer
pensar agora, quando o Evangelho, que parece utopia, torna, se íntegro, inabalável, para qualquer acontecimento. Por isso podia
realmente vivido, tangível a verdade, que não falha. permitir em seu seio uma possível violação e desordem, sobretu-
Horizontes novos e ilimitados, inexplorados continentes do do porque essa possibilidade tinha a função de aprovar o ser,
espírito, repletos de riquezas ignoradas, vastidões abismais de dando-lhe, segundo o princípio de justiça, caso superasse a pro-
infinito sobre os quais a alma se debruça em vertigem! O ho- va, o pleno direito de aquisição da sua posição de filho de Deus
mem ignorante não suspeita qual o futuro que o espera ali. somente depois de havê-lo merecido. O Criador exigia da criatu-
Além do infinito astronômico, existe o maior infinito espiritual. ra uma livre aceitação do Sistema, um espontâneo reconhecimen-
E, nesta Terra, grão de areia cósmica, por um pouco de espaço to das recíprocas posições nele, para então poder conceder ao ser
e de bens, o homem, centelha divina, com que ferocidade e es- uma livre coparticipação em Sua obra, como o Sistema requer, o
tupidez mata, sem saber quem é e no que poderá tornar-se! que seria impossível com uma criatura escrava ou um autômato.
12 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
A prova da livre escolha não foi, pois, um capricho, um aca- momento, em que a criatura é quase chamada, com seu consen-
so ou um erro do Construtor, mas fez parte integrante da lógica timento, a colaborar. Parece enorme, absurda, tanta bondade.
do Sistema, como necessária consequência dos princípios que o Mas essa é a estrutura do Sistema; assim quer o amor de Deus.
constituem. A estrutura do edifício de conceitos e forças do Sis- Eis o ser diante de Deus. Apenas criado, ele ainda não falou.
tema, a natureza do Criador e a da criatura, os fins a atingir além Deve dizer agora a sua primeira palavra, que Deus lhe pede em
da prova, tudo isto conduzia à necessidade de que a criatura de- resposta ao Seu ato criador, a palavra decisiva. Deus lhe fala
vesse encontrar-se só e livre na encruzilhada da escolha. A pos- primeiramente: ―Olha, ó criatura, o que há diante de ti. Eu sou o
sibilidade de erro estava implícita no Sistema, não como uma Pai que te criou. Quis fazer-te da minha própria substância, um
imperfeição, prelúdio de fracasso, mas como um elemento defi- ‗eu sou‘, centro, livre como ‗Eu Sou‘. Fiz-te grande com a minha
nido e desejado para determinados fins, como sua força, e não grandeza, poderoso com o meu poder, sábio com a minha sabe-
como sua fraqueza. Veremos, efetivamente, que esses fins são doria. Fiz assim, espontaneamente, por um ato de amor para con-
igualmente atingidos também por outra via e que a obra da cria- tigo, minha criatura. A este meu ato falta somente um último re-
ção permanece igualmente como um triunfo no plano de Deus. toque para ser perfeito, e ele deve partir de ti. Espero-o de ti, que
Os dois princípios acima aludidos, egocentrismo e liberda- o farás com plena liberdade. Ofereço-te a existência como um
de, comuns também às criaturas, faziam delas tantos menores grande pacto de amizade. Ele é baseado no amor com que te criei
―eu sou‖, semelhantes a Deus, como tantos deuses menores em e a que deves o teu ser. Podes aceitar ou não este meu amor. To-
função de Deus. Deus quis a criatura assim, feita à Sua imagem do pacto é bilateral, toda aceitação de amor deve ser espontânea.
e semelhança. Nem o ser Dele saído poderia ser de natureza di- É absurda uma imposta correspondência de amor. Escolhe. Vê o
versa da Sua. Em um sistema de esquema de tipo único, a cria- que Eu já fiz por ti. Eu te precedi com o exemplo. Tu me vês.
tura não podia deixar de ser um ―eu sou‖, centro autônomo e li- Olha e decide. Qualquer pressão minha fará de ti uma criatura
vre, como é o Criador. Então, estando não só a estrutura do Sis- escrava, e Eu te quis livre, porque deves assemelhar-te a mim.
tema mas também a natureza da criatura baseadas no princípio Para que Eu pudesse amar-te como quero, devias ser semelhante
da liberdade, tudo quanto dissesse respeito à criatura não podia a mim. Não se pode pedir amor a um escravo, mas somente obe-
ter curso sem o seu consenso. diência imposta, o que está fora do meu sistema e seria a sua in-
Ademais, existia um terceiro princípio: o amor, fundamento versão. Vem pois, a mim, corresponde ao meu amor, que te cha-
do universo espiritual, mercê do qual Deus não é egocêntrico ma e te atrai. Confirma a minha obra com a tua aceitação. Por tua
senão para irradiar em amor. Assim sendo, o sistema de Deus livre escolha, consente, entra e coordena-te no meu sistema, do
não pode basear-se na coação, assim como, em virtude do prin- qual Eu sou centro. Subordina o teu ―eu sou‖ menor ao ―Eu
cípio de liberdade, não pode basear-se no determinismo, mas Sou‖, o Uno-Deus, supremo vértice que rege o todo. Reconhece
apenas na adesão espontânea. Deus, por ser amor, não pode que- a ordem da qual Eu sou o chefe. Promete obediência à Lei, que
rer a criatura forçadamente prisioneira do Seu amor. Ele limita- exprime o meu pensamento e vontade. Por amor te peço, pois
se a atraí-la. Eis uma nova característica do Sistema, que não que és meu filho, que me retribuas o amor com que te gerei‖.
pode admitir da parte da criatura senão uma correspondência de Após essas palavras, por um instante ficou suspensa a respi-
caráter espontâneo, sem a qual não há amor. Não é possível gra- ração do universo, enquanto as falanges dos espíritos criados
vitar-se forçadamente, em direção a Deus, por amor. Assim, to- oscilavam em cósmicas ondulações. O ser olha e pensa. Ele
do o Sistema, também por esse principio, impunha a livre esco- sente o poder que lhe vem do Pai, uma imensidade que o torna
lha, qual passagem obrigatória para valorização do ser, que de- semelhante a Deus. É livre, como um ―eu sou‖ autônomo, se-
via, antes de ser aceito, conquistar plenamente esse direito, de- nhor do seu sistema, das suas forças e equilíbrios interiores. A
monstrando livremente haver compreendido, aceitado e querido sua própria estrutura, permeada de divina grandeza, impele-o a
corresponder ao amor de Deus. Mesmo sob esse aspecto, a pro- repetir em sentido autônomo, separatista, o egocentrismo que
va corresponde à perfeita lógica, pois que o amor, para ser tal, ele continha do ―Eu Sou‖ máximo: Deus.
não pode deixar de ser espontâneo e recíproco. Estar o Sistema Mas do outro lado há uma força oposta, antiegocêntrica,
fundamentado no amor é outro fato a implicar que ele deve ba- tendente a neutralizar a primeira: o amor. Ele se manifesta co-
sear-se, também, na liberdade. Liberdade e amor são conexos. mo silenciosa atração que se impõe por bondade. Quem com-
Este pressupõe aquela. Um sistema que não se fundamentasse na preendeu esse apelo, verdadeiramente compreendeu Deus.
liberdade não o seria no amor. Os princípios que regem o uni- As duas forças, assim diversas, movem as falanges dos espí-
verso são estreitamente correlatos. Todos eles se podem reduzir ritos, que as examinam e pesam. Belo é o amor, mas acarreta
a um só, do qual todos estes derivam: o amor. Foi por amor que uma renúncia cheia de deveres, uma renúncia à plenitude total
Deus quis a criatura egocêntrica, feita à Sua imagem e seme- do ―eu sou‖; implica obediência, o reconhecimento de uma po-
lhança, partícipe das Suas próprias qualidades. Foi por amor que sição subordinada. Eis o perigo tentador: exagerar, em seu juí-
Deus quis a criatura livre, a fim de que ela livremente compre- zo, a própria semelhança com Deus e admitir uma pretensão de
endesse e retribuísse esse amor. identidade. Ao invés de seguir o caminho do amor, coordenan-
◘◘◘ do-se com obediência na ordem, tomar a via oposta. Desejar
Entendidas a necessidade, a lógica e a utilidade da prova, coordenar o próprio ―eu sou‖, reforçar sua autonomia, fazendo-
observemos como se comporta o ser neste momento supremo. se isoladamente centro do Sistema com sua própria lei. Imitar
Eis a criatura, substancialmente espírito, centelha de Deus, Deus somente para superá-Lo. Responder ao doce apelo de
apenas destacada do seio do Pai, que a gerou. Ela fita o Centro, amor com um desafio: ―Não Deus! Eu, criatura, sou maior do
do qual derivou por ato de amor, a que deve a sua existência. A que Tu. Eu sou Deus, não Tu!‖.
estrutura do Sistema impõe uma resposta sua a esse ato, a cor- Então, muitos ―deuses‖ menores, feitos de substância divi-
respondência de um recíproco ato com que essa criatura, por sua na, livremente decidiram tornar-se ―deuses‖ maiores, iguais a
livre aceitação, confirme ou renegue como queira, permaneça no Deus. A escolha foi feita por eles, e o universo, abalado até aos
Sistema ou dele se desligue, ponha-se dentro ou fora dele, agin- fundamentos, que estão no espírito, estremeceu, e parte dele
do livremente e definindo assim a sua posição. O Criador respei- desmoronou, involuindo na matéria. Mas não foi assim para to-
ta tanto a liberdade que Ele deu à criatura, fazendo-a à Sua ima- dos os seres. A balança em que foram colocados os dois impul-
gem e semelhança, que submete a Sua obra de Criador a essa sos, para uma outra multidão de espíritos se inclinou, ao invés,
criatura, como ocorre no consentimento necessário de duas par- para o lado amor, oposto ao da rebelião por orgulho.
tes num contrato bilateral. Somente quando a livre criatura tiver Eles reconheceram a superioridade de Deus e se fundiram
dito: ―Sim‖, a criação estará completa, aperfeiçoada até esse na Sua ordem, tornando-se Seus colaboradores, livremente
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 13
aceitando-a e compreendendo-a. Os primeiros não quiseram re- V. ORIGEM E FIM DO MAL E DA DOR
conhecer a Sua supremacia; destacaram-se da Sua ordem e se
transformaram em demolidores. Não quiseram aceitá-la e cor- Estes conceitos não estão fora de nosso mundo. O universo,
responder. Seu chefe foi Lúcifer. Precipitaram-se, assim, para repetimo-lo, é feito de esquemas de um único tipo, e, por isso,
fora do Sistema, em posição invertida, que lhes será a caracte- encontramos a cada momento e em todo ponto o esquema
rística de toda a existência. maior no menor, embora adaptado aos casos particulares. Tudo
É certo que a queda foi devida à falta de conhecimento das ecoa e se repete no universo. O eco desse primeiro ato do ser
consequências da revolta, mas também é certo que a criatura não se extinguiu. Ele revive nas formas da vida, que continua a
não poderia ser onisciente, igual a Deus. Porém, se ela igno- se desenvolver pela via então iniciada e traçada. O denomina-
rava, pode-se objetar, então, como lhe pode ser imputada a do pecado original, a ingestão do fruto proibido da árvore do
culpa de haver caído? Deus deveria tê-la dotado do conheci- bem e do mal, não simboliza o ato sexual, necessário à vida,
mento suficiente para compreender antecipadamente as con- mas a degradação do amor espiritual em amor carnal, do qual
sequências da desobediência, de modo a não incidir nela. A deriva apenas uma gênese falsa, destinada a acabar na morte.
tal objeção pode-se contrapor que a criatura assim teria segui- Esse pecado encobre um fato muito mais central e mais grave
do Deus unicamente no seu egoístico interesse, a fim de fur- – a revolta contra Deus. Ele foi efetivamente instigado por Sa-
tar-se a um dano, e não por amor. Ora, um ato de aceitação tanás, o anjo decaído 4 que pretendeu fortalecer-se com a con-
tão fundamental no Sistema, não poderia basear-se num inte- quista de novos prosélitos, ligando-os ao seu sistema de rebel-
resse nascido do egoísmo, isto é, em um princípio antípoda dia. Assim, o pecado de Adão não constitui mais do que uma
àquele que rege todo o Sistema, como é o amor. Ele deveria reprodução especial do processo de degradação já iniciado,
resultar de uma espontânea adesão por amor, ao compreender uma consequente queda do homem, arrastado por Satanás na
a bondade do Criador. Como é fundamental no Sistema o queda dos anjos, uma imitação que prolonga o fenômeno à
princípio do amor, prova-o o fato de o próprio Deus, no seu guisa de desintegração atômica em cadeia.
aspecto imanente, ter seguido o sistema desmoronado para re- Os motivos da grande queda sobrevivem a todo momento
construí-lo, jamais abandonando a criatura, por mais injusta e na Terra. Eles se inseriram na natureza do ser, que assim tor-
rebelde que fosse. E Deus não lhe pedia senão uma prova de nou-se corrompida e falaz. A gênese do mal e de nossas dores
amor! Os espíritos obedientes a deram, ainda que, em conhe- deve ser encontrada no desmoronamento tremendo que se se-
cimento, sendo iguais aos espíritos caídos. guiu à revolta, derrocada da qual agora devemos sair, tudo re-
Tiveram, então, início no ser decaído duas vias opostas, que construindo em nós e em nosso derredor, com as nossas mãos,
o distinguem. De um lado, o orgulho, o mal, a dor, as trevas, o empenhados no grande trabalho que se chama evolução. Assim,
caos e, consequentemente, a criação e vida na matéria. Do ou- pois, o fenômeno da queda dos anjos não é estranho à nossa vi-
tro, a obediência, o bem, a luz, a ordem e a vida perfeita do pu- da, nem está distante dela, mas é atual. O fundamental motivo
ro espírito. A queda é a involução, da qual se sobe redimido pe- psicológico de desordem continua vivo em nossa forma mental.
lo esforço da evolução, absorvendo o mal em dor, edificando-se Todos compreendemos o que representa a Lei e que seria lógi-
pelo sofrimento com a experiência da vida, assim desmateriali- co, justo e útil segui-la, quer no interesse coletivo, quer no in-
zando-se e espiritualizando-se na ascensão ao encontro de dividual. Apesar disso, sentimos a tentação de rebelar-nos, de
Deus, que não abandonou o ser decaído, mas apenas lhe disse: ludibriá-la, procurando atalhos que, por via mais breve, nos
―Destruíste o esplêndido edifício. Contudo continuas a ser meu conduzam aonde desejamos chegar. Mas ainda aqui, sem dúvi-
filho. Reconstruirás, porém, tudo com o teu esforço‖. da, obedecemos a uma lei da vida, a lei do mínimo esforço, que
◘◘◘ deve ser seguida com inteligência, levando em linha de conta a
Usamos neste capítulo a expressão ―queda dos anjos‖ porque estrutura do Sistema, em que todo ―eu sou‖ só se valoriza em
tradicional e de mais fácil compreensão. Todavia, é bom esclare- função do ―Eu sou‖ centro – Deus. E, assim como o primeiro
cer ser ela uma expressão antropomórfica, que reduz o fenômeno anjo rebelde, o homem hodierno, centralizador egoísta de todo
às dimensões inferiores da matéria. Ainda que acanhado, o an- o seu ―eu‖, preocupado somente com o triunfo próprio, separa-
tropomorfismo constitui uma necessidade, porque, embora con- damente realiza o mesmo processo de reviravolta do sistema,
tenha o defeito de desfigurar o real aspecto do fenômeno, tem o com a consequente inversão de si mesmo, terminando nas mor-
valor de aproximá-lo de nosso mundo, tão diferente. Cumpre- tes das guerras, na destruição e na dor.
nos, pois, aqui realçar que a expressão ―queda dos anjos‖ repre- Somos assim levados a nos valorizar como ―eus‖ indepen-
senta uma redução da realidade, na medida limitada da psicologia dentes, e não como ―eus‖ em função orgânica do Todo. É a
humana. Na verdade, o fenômeno ocorreu em planos de existên- exata repetição da primeira revolta.
cia tão elevados, que para nós se situam no superconcebível; di- A conduta dos eleitos é justamente a oposta, de completa
mensões onde as nossas representações de espaço e de tempo não adesão à vontade de Deus. Sua primeira característica é a obedi-
têm mais sentido. A imagem, pois, que tivemos de escolher re- ência à ordem. Este terrível instinto do ―eu‖, que se deveria con-
presenta uma mutilação, e não uma expressão da realidade. trolar pela obediência à lei de Deus, mas que, ao contrário, se
Se devêssemos explicar a um homem inculto um conceito deixa livremente explodir em revolta, não é também para o ho-
abstrato, um processo matemático, um desenvolvimento filosó- mem a causa principal de tantos males? E, assim como nas mãos
fico ou coisas semelhantes, seríamos constrangidos, se quisés- dos primeiros rebeldes se desmoronou a ordem no caos, nas
semos nos fazer entender, a apresentar tudo revestido de formas mãos do homem tudo continua a fragmentar-se, repetindo-se no
materiais, a usar expressões bem concretas, para nos adequar à tempo o mesmo processo originário, com o mesmo resultado de
psicologia desse homem, a ponto de os conceitos originais fica- destruição. Por isso, caso se pretenda novamente a elevação à
rem deformados, tornando-se quase irreconhecíveis. ordem, reconstruindo-se na unidade do Sistema, é imprescindí-
Mais verdadeiro é esse fato relativamente à ―queda dos an- vel saber dominar este ―eu‖ egoísta e prepotente, enquadrá-lo na
jos‖, em face da grande altura em que se deu o fenômeno e sua ordem, coordenando-lhe as funções no Todo; é necessário retifi-
distância de nós. Era, porém, necessário adaptá-lo à mente hu- car o seu inicial estado de revolta, mantendo-o na obediência ao
mana, caso se quisesse dar uma expressão ao fenômeno, deno- plano de Deus, porque só assim, em obediência à Sua ordem, la-
minando-o ―queda‖. Mais adiante será explicado o seu signifi- boriosamente, é possível unir de novo, uma a uma, as partes do
cado de desmoronamento de dimensões a partir de um ponto edifício desmoronado, reconstruindo-o na sua grandeza.
que, estando situado em planos altíssimos, na sua substância Este esforço exigido para a reconquista do paraíso perdido é
foge completamente à nossa compreensão. justamente a condenação da nossa humanidade. Justa condena-
14 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
ção, mas também salutar remédio, pois é a via de salvação para mo; daquela dor de que o próprio Deus quis participar, inte-
a criatura, a quem o amor de Deus, apesar da ingratidão dela, grando-se por amor às próprias criaturas. Foi assim que o Pai
oferece a possibilidade de redenção. enviou Cristo à Terra, para que, com o seu sacrifício, desse à
No fundo da natureza humana está a tragédia da queda, em humanidade o maior impulso à redenção. Primeiro, a revolta,
razão da qual a alma, centelha divina, desceu para a ilusão da origem do mal. Depois, a dor do mundo, seu meio de recupe-
matéria e dos sentidos, num ambiente ingrato, onde a conquis- ração; o auxílio do Alto neste árduo caminho; a redenção ob-
ta do progresso lhe custa esforço permanente; num corpo vul- tida pelo sacrifício, que Cristo nos ensinou. Estes conceitos,
nerável a tudo e com mente acanhada, com o que, aos poucos, unidos em cadeia, confirmam estas teorias.
terá de buscar o conhecimento que antes possuía do pensamen- A humanidade percorre atualmente o caminho de retorno.
to de Deus. Daí o tormento da insaciabilidade, que revela no Só assim se pode compreender o conceito de redenção e o sig-
instinto humano o anseio pelo grande bem perdido; daí o afã nificado da vinda e do sacrifício de Cristo na Terra, motivos tão
pela maceração evolutiva sob o contínuo martelar da dor, a ân- centrais na história da humanidade. Só assim se pode compre-
sia de criar sobre as areias movediças de um mundo em que ender como a dor salva e o sacrifício redime e por que era ne-
tudo caduca. Eis a razão de ser da ignorância a vencer com o cessário que Cristo sofresse. O Seu exemplo nos indica, à evi-
esforço do pensamento, com as descobertas científicas, com o dência, que a via de retorno não se pode percorrer senão dessa
sacrifício dos mártires e com o amor de Deus, que, manifes- forma. Com a sua paixão, Cristo quis, diante do Pai, tomar so-
tando-se pela revelação, vem ao nosso encontro inspirativa- bre os ombros o peso da correção do primeiro erro, a revolta.
mente, permitindo que levantemos os véus do mistério. Eis Por aqui vê-se quanto Deus continua a mostrar-se ativo e pre-
Cristo, o mais perfeito filho de Deus, fazendo-se homem em sente na história do mundo.
nossa dor para nos ensinar a via da redenção. A psicologia que enxerga, não raro, no mal e na dor, indí-
Assim tudo se explica: a luta pela seleção, as guerras, as en- cios de um sistema falido, um erro de que pode ser acusado o
fermidades, as desgraças, o ódio, a mentira, todas as traições de Criador, como único responsável, nasce justamente do ponto de
que se entretece a vida. O nosso mundo assumiu o aspecto que vista representado pelo ―eu sou‖, que, colocado em posição re-
revela a estrutura do sistema desmoronado. Cada individualiza- versa, só desta forma pode ver as coisas. É psicologia corrente,
ção reproduz a originária inversão, pela qual todo ―eu sou‖ está dominante na vida comum, mercê da qual cada um procura ati-
inquinado do princípio oposto, negativo, destruidor do ―eu não rar a culpa, a causa de qualquer mal, nos outros, mas jamais em
sou‖, que tudo corrompe. Com ele, o incorruptível fragmentou- si mesmo. O homem conserva o seu originário instinto irrefreá-
se no corruptível. O princípio originário permanece, mas false- vel para a alegria, mas o faz em um sistema invertido, que, as-
ado, porque não mais oferece correspondência com os antigos sim, só lhe pode oferecer a dor. Não compreende o porquê, mas
valores. Foi a revolta originária que semeou no ser esse germe sente o tormento desta negação. Desmembrado da causa remo-
maléfico que continua a viver da sua vida. E assim, em nosso ta, irrita-se inutilmente contra as causas próximas, incapaz de
mundo, a negação está infiltrada em toda afirmação, a vida se enxergar mais longe. Compreende apenas que a dor fere, e agi-
casou com a morte, a enfermidade aninha-se em todos os cor- ta-se confusamente nas trevas em que caiu. Procura e não en-
pos sãos, a destruição é o guia de toda construção, o mal ofende contra, ignorando completamente que a salvação está na ascen-
o bem e Satanás se introduz por toda a parte, procurando trair são. É constrangido a evoluir, tangido pelo destino em passa-
Deus. O motivo da queda dos anjos e do pecado original repete- gens obrigatórias, preso à dura experimentação da vida, cheia
se a todo instante entre nós, em nossa vida cotidiana. Não se de alegrias, a fim de atraí-lo para o Alto, e carregada de dores, a
trata, portanto, aqui de elucubrações filosóficas relativas a fatos fim de afugentá-lo das regiões inferiores. Ele desejaria adaptar-
distantes, que não nos dizem respeito. Só a evolução, a ascen- se a este inferno para repousar, mas não lhe concedem tréguas,
são da matéria ao espírito, pode cicatrizar a grande ferida, de- de um lado, o desejo insaciável de alegria e, de outro, os inces-
sembaraçar o ser do cerco maléfico que desejou. Mas isso só se santes golpes de dor. É imperioso evolver.
completará após um caminho longo e doloroso. Só desta manei- A sensação de falência do Sistema é dada não somente pela
ra se explica o motivo de nossas posições atuais, de que só po- visão às avessas, seguida de uma posição invertida, mas tam-
demos evadir-nos subindo, embora sofrendo. Eis as origens da bém pela real imersão em um mundo invertido, satânico, sensi-
dor e do mal. O semblante da criatura traz o estigma funesto. velmente mais próximo deste mundo material do que do outro,
Ela continua a sangrar da primeira colisão com as colunas do real, divino. Os esforços para subir, muito comumente, termi-
Sistema. O ser decaiu, mas as colunas da Lei não se abalaram. nam no retrocesso de alguns passos, em virtude do terreno in-
Permaneceu intacta, e a dor tornou-se o sinal da alma rebelde, forme, movediço, no qual o pé não encontra apoio e a vontade
continuando a recordar-lhe a grande tragédia, que desejaria es- se despedaça. É o esquema da primeira queda que retorna em
quecer, abandonando-se ao originário instinto de felicidade, cada decaída subsequente, tendendo a repetir-se ao infinito. E
ainda vivo. Mas, entre a felicidade e ele, jaz uma nuvem que só então se exclama: ―A redenção do mal é utopia, a dor é inútil,
poderá dissipar-se através de uma longa luta de reintegração. jamais galgaremos o monte da perfeição‖. E se conclui: ―É inú-
Desejaria repousar, mas a dor o aguilhoa e o chama à dura til tentar. O Sistema faliu definitivamente. A obra de Deus é
realidade, e então, só então, ele desperta e indaga – por quê? mal feita, porque continha um insanável erro de construção!‖.
Por que nascer, existir, sofrer? Quem goza está bem, nada Mas, se o homem soubesse ouvir a voz de Deus, teria a
pergunta, continuando adormecido na inconsciência. Assim, resposta: ―Sim, criatura, podes pecar e negar à vontade, pois
pois, após a sua gênese, a dor desempenha a função de ins- que és livre. De qualquer forma, entretanto, alcançarás o triun-
trumento de evolução. A própria culpa gerou o remédio; a en- fo do bem e do meu amor, isto é, a realização do meu plano.
fermidade deu nascimento à sua medicina. A dor, oriunda da Poderias ter preferido, como o fizeram tantos espíritos, a via
revolta, esmaga e humilha, induzindo à obediência à Lei e, as- curta da livre aceitação, encontrando-te agora na minha ale-
sim, curando o ser. Dor implacável, mas salutar, que os invo- gria. Preferiste o caminho mais longo. Não importa. Desejaste,
luídos amaldiçoam, porque não lhe compreendem a função assim, a gênese do mal e da dor, fazendo delas a tua triste he-
criadora, e que os santos abraçam, não por insano masoquis- rança. Mas a mim chegarás da mesma forma. O resultado final
mo, mas porque sabem que ela significa a escada pela qual se não se altera por isso. Continuo o centro do Todo, e tu não te
sobe. É salutar o imperativo que impele ao trabalho benéfico evadiste do Sistema, porque nenhuma evasão é possível. Tu te
pela reconquista do paraíso perdido. Falamos também da dor inverteste, e não o Sistema. Todavia permaneces meu filho e
de todo universo, e não apenas da Terra; da dor cósmica, de endireitar-te é o que procuro, estimulando a livre criatura com
que a humana dor terrena não passa de um átomo em um áti- o uso de dois meios: a dor e o amor.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 15
―Nada está perdido. Podes reconquistar a antiga posição. o que nos mostra o esquema universal do fenômeno. A morte se
Mas deves sofrer, o que não é apenas justo, mas igualmente be- manifestaria pela anulação do indivíduo que quisesse permane-
néfico, porque, sofrendo, compreenderás. A dor te abrirá os cer sempre rebelde, isto é, pela sua expulsão do Sistema, ou se-
olhos, uma longa e dura experimentação te constrangerá, através ja, para o nada, posto que o Sistema é o todo. A cura é repre-
de muitas provas, a te reconstruíres qual eras antes que te demo- sentada pela reentrada do ser no Sistema (conversão ao bem).
lisses na queda do teu ser. Minha bondade te oferece, na evolu- Uma das mais fortes razões pelas quais o mal e a dor, por
ção, uma via de redenção do mal desejado e de evasão da dor. fim, têm de se anular é dada pelo fato de que eles nasceram jus-
Será duro, e não terás outro caminho, se quiseres sair do teu es- tamente de uma exagerada superestimativa, por parte dos espíri-
tado. Voltarás a percorrer em ascensão o que percorreste na des- tos rebeldes, do princípio divino do ―Eu sou‖. Foi exatamente
cida. Bem mereceste, ao te rebelares, este açoite em tuas carnes, esse exagero que, pela lei de equilíbrio, inerente ao Sistema,
e Eu o permito para que o teu espírito ensombrado desperte. produziu como reação uma contração desse princípio no oposto
―É para o teu bem, porque te amo e te quero ver feliz ama- do ―eu não sou‖, isto é, uma limitação na negação, ou inversão
nhã. Primeiro entenderás a lição da dor, para poder fugir dela. do bem em mal, da alegria em dor. Ora, insistir em tal via de ru-
Quanto mais tardares em compreendê-la, tanto maior será a sua ína significa marchar cada vez mais contra o princípio vital que
duração. A tua rebelião à minha ordem aumentará em propor- rege o próprio eu, isto é, caminhar contra si mesmo; significa o
ção à intensidade da pena. Continuas no Sistema, do qual Eu suicídio completo do ser. Será possível que ele pretenda avançar
sou o centro e no qual represento a alegria suprema do ser. Na sempre em tal caminho de autodestruição, negando a si próprio e
minha ordem está implícito que rebelião significa dor, e esta a própria vida, que representa o seu interesse máximo? Será pos-
tanto será maior quanto mais de mim te afastares. sível que um ser, baseado no princípio do ―eu sou‖, queira retro-
―Meu outro meio é o amor. Com ele te atraio sem cessar, ceder até renegar-se no não-ser? Poderá resistir uma lógica que
incitando-te a refazer o caminho para chegares a meus braços, se anula avançando para o absurdo? A existência é dada pela
neles repousares e te alegrares. É por esse motivo que te ofere- própria natureza do princípio do ―eu sou‖, que não pode vir se-
ço todos os auxílios possíveis para instruir-te por meio de espí- não do princípio positivo: Deus. Então, chegaríamos à completa
ritos superiores, meus operários no Sistema, que, com a palavra inversão também da lógica em extremo absurdo, em que a má-
e o exemplo, te indicam as vias da redenção. Compelido pelo xima realização de Satanás e, com ele, do mal e da dor, consiste
impulso negativo, tangido pela dor e atraído pelo impulso posi- em sua anulação. Uma vez que a vida só existe em Deus, quem
tivo, onde há alegria, não podes resistir à convergência destas é contra Ele, se quiser sobreviver, deve retornar a Ele.
duas forças. Como, de outro modo, induzir uma criatura livre, Mal e dor não podem ser eternos por uma outra razão tam-
mas cega, a reencontrar o próprio bem?. bém. Entre as ideias de mal e de eternidade há uma contradição
―Quis, assim, tornar quase fatal a tua salvação, sem jamais que não lhes permite a coexistência. A eternidade é alguma coi-
violar a tua liberdade. Mas, ainda que tu, no caso extremo, sa qualitativamente diversa do tempo, situada nos antípodas. Ela
quisesse, contra o teu interesse, o absurdo do teu prejuízo; não é um prolongamento de um tempo que, embora avançando,
ainda que, com inflexível revolta, quisesses a tua dor eterna; sempre está sujeito à duração. É um tempo imóvel, que não anda
mesmo diante da tamanha loucura de assim desejares para e jamais passa. É um não tempo. E o que é o tempo, senão um
sempre, também neste caso o Sistema perdura intacto e o meu produto do desmoronamento, um fracionamento do Uno, o imó-
amor triunfa. O edifício erigido pela rebelião contra mim será vel em fuga no transformismo? Com a queda, a eternidade, uni-
anulado até o último fragmento. E tu, criatura ingrata, se qui- dade indivisa, se faz tempo e o espaço, fração do infinito. O
seres persistir absolutamente na negação, caminhando de dor tempo existe somente como medida do transformismo (involuti-
em dor crescente, procederás com as tuas próprias mãos à tua vo–evolutivo), cessando quando este termina. Então, a fração
autodestruição, desaparecendo assim em tua negação final, cindida reconstitui-se em unidade no eterno, o finito no infinito;
como quiseste, no ―não ser‖. Anular-te é o meu último ato de a eternidade, despedaçada no tempo, se refaz no Uno, imóvel,
bondade e piedade para contigo, é o que tu chamas a minha integro, indiviso, e nele a corrida do transformismo, lançada em
vingança com o inferno eterno‖. busca da perfeição, se detém diante da perfeição atingida. O
Assim poderia falar a voz de Deus a quem soubesse ouvi-la, tempo, assim, volta a ser imóvel, sem mais transformismo, e se
pois, no final dos tempos, tudo se realizará plenamente, como faz eternidade. Com a evolução, ao passar da matéria à energia e
Deus quis. A revolta dos espíritos das trevas não terá passado desta ao espírito, vai-se tornando cada vez mais evidente o avi-
de um episódio impotente a perturbar a integridade do sistema zinhamento desta fusão final, paralelamente a uma progressiva
perfeito. E, como Deus o quis no princípio, Ele resplandecerá libertação do domínio do tempo fracionado até aos fenômenos
no fim, no triunfo do bem. O dualismo bem-mal em que hoje do pensamento, que são quase independentes dele. Pode-se dizer
está dividido o universo, como desvio transitório, e não como que ele existe antes e além do tempo, tanto que lhe escapa. E,
estrutura do Sistema, será no fim reabsorvido no monismo ori- como o tempo é relativo ao fenômeno particular, quanto mais
ginário, que a cada momento permanece só relativamente des- evoluído é este, tanto mais se liberta dele.
pedaçado, e o Uno triunfará. O mal e a dor, filhos da revolta De tudo isto se conclui que o tempo faz parte do sistema
contra Deus, por orgulho, não têm poder para fazer desmoronar desmoronado, do qual também fazem parte o mal e a dor. De-
o Sistema, mas significam apenas uma doença curável, que o vemos, pois, enfileirar de um lado as características do sistema
próprio Sistema sabe sanar. Doença somente do aspecto ima- perfeito, como a eternidade, o bem, a alegria; e de outro lado as
nente do Uno e que Ele, do seu polo oposto, observa e cura. propriedades e produtos do desmoronamento, como o tempo, o
Tudo permanece absolutamente perfeito, ainda quando não mal, a dor, aferíveis somente no sistema de estado imperfeito.
possamos observar senão a imperfeição em que estamos imer- Eis por que, entre mal, dor e eternidade, nada pode haver em
sos. Permanece perfeito, como o exigem a lógica e a razão. comum, porquanto existe entre os dois primeiros e o último uma
É evidente que, em um sistema gerado pelo amor e baseado inversão de posição que os mantém inexoravelmente separados,
neste seu princípio central, construído de bem e para a alegria, situando-os nos antípodas, em dois sistemas opostos. Cada coisa
o mal e a dor não possam ser eternos. Uma sua afirmação defi- devendo permanecer no seu sistema, o mal e a dor não podem
nitiva, ainda que em ínfimas proporções, significaria a falência entrar em conexão a não ser com o tempo, que passa, com o re-
do sistema de Deus. Mal e dor não constituem senão o seu as- lativo, com o limitado, características do Anti-Sistema. E o bem
pecto patológico, que não se pode tornar eternamente crônico, e a alegria não podem ligar-se a não ser com a eternidade, o ab-
sem resolver-se ou com a morte do enfermo ou com a sua cura. soluto, o infinito. Por isso mal e dor não podem ser eternos. Eles
O que acontece, em escala menor, em nossa saúde física, repete só se podem ligar com o tempo, sendo, como este, produtos do
16 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
desmoronamento, isto é, uma contração no limite do que, no es- po. É trágica a nossa posição a meio caminho. Sentimo-nos su-
tado perfeito, foi bem, alegria, eternidade. focar pela estreiteza da prisão de nosso egoísmo, mas rompê-la
Como se vê, tudo se enquadra em perfeita logicidade. É as- nos parece a morte do ―eu‖, e desejamos, portanto, reforçá-la.
sim que o mal se apresenta encerrado nos limites do tempo, Mas a vida só pode estar no retorno à circulação do Todo. Esse
acuado pelo transformismo, que tende a corrigi-lo, transfor- egoísmo nos mata. Assim, para podermos desfrutar a vida e nos
mando-o em bem. Por isto, o mal, dada a sua tendência em expandir, é imperioso que nos evadamos, que despedacemos a
conservar-se como é, tem pressa, pois sente a sua instabilidade, prisão em que sufocamos. É imprescindível, pois, encarar o sa-
a sua posição de desequilíbrio, de exceção, ao passo que a re- crifício do ―eu‖, e, para alcançar a alegria de uma vida maior,
gra do sistema incorrupto é uma posição de equilíbrio, de esta- importa enfrentar a dor, que quebra o egoísmo protetor do ―eu‖.
bilidade: o bem. Este, ao contrário, não tem pressa, não joga Para viver, é necessário, em parte, morrer, ou seja, é necessário
com efeitos imediatos como faz o mal; prefere na maioria das destruir-se como cidadão do Anti-Sistema, para ressuscitar ci-
vezes aguardar para realizar-se, concedendo ao mal a primeira dadão do Sistema. Eis por que Cristo disse que conservará a vi-
vitória, porque sabe que é, ao contrário deste, senhor do tempo. da pela eternidade, não quem a ama, mas quem a odeia neste
Assim, também as estratégias das duas forças, bem e mal, co- mundo. O nosso egoísmo tende a manter o estado de contração
mo é natural, são opostas. A estratégia do último é contraída, em que o Sistema ruiu. Do lado oposto, o amor vota-se a des-
curta, imediata, complicada, concreta. Já a do bem é ampla, a truir este separatismo negativo, para lançar-se no universal flu-
longo prazo, lenta, linear, de finalidades elevadas, por isso as xo do Todo e novamente nos colocar no originário estado orgâ-
suas energias são mais poderosas, movem-se mais calmas, po- nico, em que tudo era Uno. E a alegria que acompanha todo ato
rém, dirigidas com sabedoria superior, sabem erigir constru- de amor, desde a entrega desinteressada do próprio corpo, na
ções maiores e, sobretudo, mais sólidas. Por todas estas razões, geração física, aos mais elevados altruísmos pela humanidade,
na luta contra o bem, o mal se encontra em posição de inferio- nos indica que esse é o caminho da reconstrução e do retorno
ridade e vencido de saída. Sua inteligência é apenas de super- ao estado de origem, de amor, que somente gera bem e alegria.
fície, estupidez em profundidade, lógica consequência da per-
da de sua primeira inteligência, motivo principal que induz o VI. DESMORONAMENTO E
mal a engajar uma luta, sem probabilidade de vitória verdadei- RECONSTRUCÃO DO UNIVERSO
ra, contra o bem, mais forte e sábio.
Eis o quadro do fim do mal e da dor. Além deste aspecto Sinto encontrar-me diante da mais vasta e profunda dentre
negativo de sua eliminação e restabelecimento como elementos as visões até aqui observadas. Nos volumes precedentes havia
patológicos mais débeis, há ainda o aspecto positivo, isto é, há aparecido certo motivo fundamental, cujos delineamentos se
o impulso incessante do princípio básico da criação, do ele- vão agora precisando e dilatando em vastidão cósmica. Estamos
mento mais forte e sadio – o amor (cfr. Cap. IV – ―Queda dos diante da visão dos últimos problemas, diante das conclusões
Anjos‖, e Cap. XX – ―Visão-Síntese‖). Este princípio, do qual sobre o sistema do universo, diante do pensamento de Deus. A
tudo nasceu, deve finalmente triunfar, firmando-se como se- primeira obra de 12 volumes atinge aqui um vértice e se preci-
nhor absoluto, o que significa que o bem e a alegria, de que o pita para a sua conclusão. Conturbado pela potência apocalípti-
amor é feito, devem triunfar sobre o mal e a dor. E vemos o ca da cena que se me apresenta, não mais consigo existir qual
amor sempre em ação. Ele significa também unidade, consti- ―eu‖ isolado e nela penetro. Tenho uma sensação de vertigem,
tuindo a força que compele o universo à reunificação no Uno suspenso assim sobre as profundezas abismais do infinito.
originário. E, todas as vezes que o ser retorna para o Todo, ten- E este fala! Chegam a mim conceitos em um oceano de on-
tando uma reunificação parcial, encontrará a alegria, que lhe das, quais montanhas, e, como avalanche, me investem e agi-
exprime o consenso da vida. Assim deve ser, ainda que de tam. É ofuscante olhar no infinito pensamento de Deus, é ater-
forma para nós misteriosa, até aos mais recônditos recessos da rorizante senti-lo na sua potência. Mas é impossível parar
matéria, onde tantas forças atômicas se unem nas combinações quando se é arrastado pelo turbilhão. O pensamento não é ape-
químicas, como também sucede no congresso sexual dos cor- nas esmagador pela sua imensa massa, mas também ardente pe-
pos e, mais ainda, no espiritual das almas. la sua alta tensão. Elevada a semelhante potencial, a minha vida
Ao amor, impulso criador primordial, está confiada, pois, física vacila como se estivesse prestes a ser fulminada. Torna-
a função de reconstruir o universo. Pelo princípio dos esque- se impossível ao organismo humano resistir a descargas tão gi-
mas múltiplos e de tipo único, repetido em todos os níveis gantescas, que fulguram e estrondam como o relâmpago. E de-
evolutivos, o fato de o amor ser, também em nosso nível, ato vo saber funcionar como transformador que regule essas des-
de criação e de alegria, que ele repete e imita, prova que o cargas em uma luz moderada e igual. Moderada para que não
primeiro ato de amor originário de Deus foi de criação para a cegue, proporcionando-a à receptividade normal. Igual, diluin-
felicidade. Se, igualmente entre nós, tudo que nasce do amor é do a potência concentrada extratemporalmente e reduzindo o
alegria, também a primeira criação deve ter sido fruto alegre lampejo sintético da intuição à exposição sucessiva em termos
do amor. Indicam-no os fatos que nós continuaremos a repetir, racionais. É preciso, por isso, ter forças suficientes para impedir
ainda que com formas e resultados imperfeitos, mas sem po- que escape o indomável dinamismo do fenômeno e para regulá-
der esquecer o motivo de origem, mantido como esquema lo de modo a conduzi-lo ao plano normal, traduzindo conceitos
fundamental do ser. O nosso amor, havendo decaído, inverteu e sensações na linguagem comum, a fim de que também os ou-
parte da sua alegria em dor e, agora, só pode criar parcialmen- tros possam desfrutar o devido rendimento espiritual. É neces-
te, com sacrifício. Apesar disso, ainda que dolorosa, a criação, sário, ademais, tornar tudo acessível e compreensível. Na maio-
desde a física do animal, até à espiritual do gênio e do santo, ria das vezes, os místicos renunciam a tal empreendimento,
constitui sempre a maior alegria da vida. confessando que não existe na linguagem humana imagens e
O nosso é um universo contraído, da infinita liberdade e palavras adaptáveis a esse fim. É-nos necessário encontrá-las.
vastidão do amor de Deus, na prisão do nosso egoísmo separa- Impõe-se-nos exprimir o inexprimível.
tista, que lembra o acanhado campo cinético das trajetórias fe- É necessário saber fazer tudo isto sem interromper o traba-
chadas do mundo atômico da matéria (energia congelada). Ora, lho para viver, o que é dever de todos, significando saber man-
toda vez que o ser consegue completar o esforço para evadir-se ter exteriormente a conduta, frequentemente tão banal. Signifi-
da sua prisão, dilatando-se da contração da queda, ele percorre ca continuar provendo as necessidades do corpo, dominando
um segmento de ascensão e de libertação, desfrutando, assim, a muitas exigências que quereriam tudo para si, sem deixar tem-
originária alegria do amor. Deve gozar e sofrer ao mesmo tem- po nem lugar para o resto na alma. E preciso escrever à noite,
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 17
porque de dia não sobra tempo e muitas coisas e pessoas exis- gia) e àquela ainda mais involuída  (matéria). Mas pode-se
tem, inúteis geralmente, que só sabem fazer-nos perdê-lo. E, partir e chegar, quer no processo de ida, quer no de volta, de
enquanto as infinitas mazelas do contingente continuam a nos fases superiores e inferiores a essas. Evitamo-lo porque, ainda
acabrunhar sem cessar, as cataratas do céu permanecem abertas, que possível como abstração filosófico-matemático, implicaria
pois se esgarçaram as névoas e, através dos dilacerados véus do conceitos além do nosso concebível, que não abarca senão as
mistério, o tremendo infinito continua a nos olhar. O pensamen- três fases , , , constitutivas de nosso universo.
to de Deus está presente, acumula-se e faz pressão. A mente en- O desmoronamento é para nós imaginável como a passagem
tumece e deve descarregar, exaurindo nos escritos os conceitos, de uma fase espírito a uma de energia e, depois, a uma de maté-
se não quiser explodir. Eles ardem, e não se pode contê-los por ria, com suas dimensões relativas: consciência, tempo e volu-
longo tempo na alma. São irrequietos, de um indomável dina- me, enquanto temos sob observação a evolução das dimensões
mismo, turbilhonam, esmagam, aturdem a mente, querendo ex- (A Grande Síntese, Cap. XXXV e seguintes) em sentido inver-
plodir e manifestar-se, e não dão paz enquanto não se fundirem so. Por outras palavras, vemos a matéria, completa na dimensão
no registro da palavra escrita. A voz interior troveja. Como fa- volume, evolver para energia (que se poderia denominar uma
zê-la calar? Todo o ser arde. Como parar? espiritualização em relação à matéria) situada na dimensão
Esta breve pausa é para que o leitor sinta em que atmosfera tempo, e a energia evolver para a fase vida, que culmina no
de incêndio nascem estes escritos. Podemos agora retomar o psiquismo humano, situado na dimensão consciência.
curso de nossa observação. Mas um desmoronamento a partir de dimensões superiores a
Quem tiver seguido todos os volumes da obra até aqui, po- estas e uma reascensão a partir de dimensões inferiores escapa
derá ter notado a crescente limpidez das visões e a precisão dos aos nossos meios conceptuais de representação. Evitamos, desta
seus delineamentos. Que extraordinário esforço de elaboração forma, recorrer a elas para não penetrarmos no inconcebível.
íntima foi necessário para chegar até aqui! De tudo quanto dis- É, todavia, necessário insistir que, na realidade, o desmo-
semos, pode-se concluir que nós, seres pensantes, enquanto ronamento não é apenas dado por , mas por +–,
corporalmente constituídos, situamo-nos no universo físico, que e, inversamente, a reconstrução (evolução atual) não é repre-
é o resultado do processo involutivo e, na criação, denomina-se sentada somente por , mas por –  +. A figura 2
matéria. Estamos situados naquela parte do Todo que represen- de A Grande Síntese examina apenas o curso ascensional do
ta o desmoronamento do Sistema, mas já dirigidos para o cami- fenômeno: –+, isto é, um pormenor que aqui não interes-
nho oposto, o evolutivo, de sua reconstrução. Como espíritos, sa mais seguir, pois que já foi estudado em A Grande Síntese.
somos filhos de Deus, centelha Sua sempre, e, ainda que almas O processo destrutivo e reconstrutivo do Todo, como aqui o
em expiação regeneradora, destinadas à redenção final, não estudamos, dilata os seus limites bem além daquele que ali, re-
permaneceremos indefinidamente em um universo desmorona- ferindo-se ao nosso universo, foi examinado em particular, isto
do para sempre. Ao contrário, essa centelha, que no fundo de é, ele é mais do que = (A Grande Síntese,
nosso espírito trabalha para voltarmos a Ele, tem função sanea- Cap. IX – ―A Grande Equação da Substância‖), em que  re-
dora. E em que consiste esse saneamento? Se a doença é repre- presenta o nosso universo. Ele é dado por =+–+,
sentada pelo processo 4, a cura representa o processo em que  exprime o Todo, organismo de universos. Conside-
inverso isto é, , a espiritualização, cuja fase evolutiva rando  em A Grande Síntese, observa-se apenas o progresso
culminante – a mística sublimação – estudamos aqui. evolutivo atual de nosso universo, isto é, –+. Somente no
A esta altura é necessário clarear a mente do leitor, no sen- presente volume – Deus e Universo – ser-nos-ia possível enca-
tido de que, se na queda dos anjos e desmoronamento do uni- rar todo o fenômeno completo no seu ciclo, que, partindo de
verso só levamos em conta o processo , foi somente +, completa-se pelo retorno a +.
para simplificar, tornando assim mais fácil a compreensão. Se Prossigamos. A queda do ser não significa somente desmo-
assim não fosse, poderiam surgir dúvidas em face da figura 2 ronamento de dimensões, mas também de todas as suas quali-
do Cap. XXII de A Grande Síntese, na qual, além das fases , dades na posição inversa. É, pois, natural que a primeira delas,
, , foram tomadas em consideração as fases superiores como a liberdade, se transforme em escravidão. Agora verificamos
+x, +y etc., assim como as inferiores –x, –y etc. Falando no precisamente isto: a característica da matéria, situada na dimen-
presente volume apenas de , , , fizemo-lo para que, com são inferior, volume, em que o espírito se despenha (forma es-
brevidade, tomássemos a grande equação somente na sua for- pacial), é justamente o determinismo; e a característica do espí-
ma mais simples (A Grande Síntese, Cap. IX). Desta forma, rito situado na dimensão superior, consciência, é exatamente a
ilustramos a fórmula do ciclo fechado, e não a mais complexa liberdade. Esta condição de determinismo na matéria represen-
do ciclo aberto (A Grande Síntese, Cap. XXIII), que nos per- ta, pois, a posição dos espíritos decaídos. Assim estes, de sua
mitiu, no gráfico da figura 3, a curvatura do sistema com a de- natural liberdade, são precipitados na prisão da forma, na con-
rivação da espiral pela linha quebrada. Todavia, havermos nós denação de não poder viver senão em um corpo. Evolver, espi-
limitado o campo de observação somente por comodidade de ritualizando-se, significa inverter a posição, isto é, aprender a
compreensão não impede que, saindo do ponto de vista espiri- viver sem ele, a dele desprender-se sem mais considerá-lo co-
tual para entrar no filosófico-matemático, possamos considerar mo a própria vida, mas apenas como uma negação desta. Se
a queda dos anjos a partir de fases superiores, como +x, +y, +z atentarmos para como esta é concebida em nosso mundo e que
etc., e a reconstrução, subindo de fases inferiores, como –z, –y, apego se tem neste pelo corpo e seus bens, compreender-se-á
–x. O fenômeno da queda e ascensão permanece idêntico qual- então quão longe ainda estamos de nos libertarmos do mal e da
quer seja a relação que se opere em suas oscilações interiores, dor. Para um espírito elevado, sujeitar-se a uma vida física hu-
pois que procede de + para – e ao contrário (como na refe- mana representa a maior pena, mas, mesmo assim, grandes es-
rida fig. 2), e isto se verifica entre o infinito positivo e o nega- píritos a aceitaram para nos ajudar a subir e redimir-nos. Ser
tivo, entre os quais podemos seccionar e assim isolar uma par- condenado a viver a vida eterna fragmentada em uma infinida-
te qualquer do fenômeno. Qualquer seja a amplitude que qui- de de pequenos ciclos, com a morte ao fim de cada um, é real-
sermos dar-lhe, ele se reduz sempre a um desmoronamento de mente a dor merecida para quem tentou despedaçar o Todo, ne-
dimensões e a uma reconstrução das mesmas. A queda dos an- gando a Deus e, por isso, a própria vida maior. Desta forma, ele
jos significa, em verdade, desfazimento do potencial da subs- se despedaça, sujeitando-se a despedaçar-se em cada morte.
tância da fase  (espírito) para a fase mais involuída  (ener- O desmoronamento do Sistema com a queda dos anjos
apresenta-se-nos como um processo pelo qual as criaturas são
4
 (alfa),  (beta),  (gama),  (vai para). (N. da E.) projetadas do centro à periferia, distanciando-se de Deus. E vi-
18 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
ver na periferia do Sistema quer dizer perda e inversão das pró- como fatal é a reconstrução do sistema desmoronado. Quanto
prias e melhores qualidades. Em tudo isto domina uma lógica mais involuído for o ser, havendo perdido no desmoronamento
tão sólida, que parece mecânica. Se o Sistema representa liber- a própria liberdade, tanto mais está sujeito ao determinismo da
dade no centro, mais determinístico se torna quando caminha- Lei, que quer a evolução, isto é, tanto mais é compelido pelas
mos para a periferia. Se no centro está a vida, na periferia en- forças da Lei a evolver, em face da sua ignorância. Quanto
contramos a morte; se no centro está a verdade, na periferia há mais evoluído for o ser, tanto mais terá retornado à liberdade,
erro e mentira; se no centro há paz, na periferia há guerra. Estas tendo adquirido consciência da Lei, seguindo-a espontanea-
afirmações se evidenciam na realidade de nosso mundo. Efeti- mente, sem mais constrições, porque compreendeu que nela
vamente, quanto mais periférico for o ser, isto é, mais involuído estão seu interesse e felicidade.
e primitivo, tanto mais precária lhe será a existência. A vida su- Deus, que respeita o princípio de liberdade, jamais obriga
pre essa precariedade com maior fecundidade, que redunda em alguém a aceitar a Sua lei; entretanto, nos graus mais involuí-
mais rápido ritmo vida-morte individual, isto é, em um fracio- dos, após a liberdade haver desaparecido pelo desmoronamen-
namento mais acentuado da única vida eterna. A existência tor- to, Ele prossegue impulsionando.
na-se, então, menos segura e garantida, com o ser mais sujeito à Mal, porém, ela começa a reconstruir-se e a criatura pode
dor da morte. Mas tal é o seu reino. A única via de evasão é re- compreender, Deus faz com que, através da própria experiên-
troceder para o centro, pelo caminho evolutivo, ao longo do cia, ela conclua que na Sua lei residem o interesse e a felici-
qual a natureza corrompida reconstrói as suas qualidades origi- dade e que fora dela existe apenas a dor. Assim, pois, qual-
nárias. E, quanto mais o indivíduo evolve, quanto mais se alça quer seja a posição em que o ser se encontre, quer de involuí-
aos planos superiores da vida, tanto mais esta tende a ser longa do, quer de evoluído, da pedra ao santo, uma impulsão existe
e segura, menos sujeita à dor e ao despedaçamento pela morte. sempre, que atua constantemente no sentido de sua evolução.
Mas esta não é a única aflição que constringe o ser. A fe- O sistema desmoronado tende sempre automaticamente a re-
roz lei da luta pela seleção, dominante no mundo animal e constituir-se automaticamente, porque a presença de Deus é
vegetal, a que não se furta também o homem, não passa de imanente no Sistema.
uma consequência da posição periférica. Só assim se com- Eis os maravilhosos resultados da evolução: espiritualizar-
preende o porquê da sua existência e de que modo se pode se, desmaterializar-se, sensibilizar-se, transferir o próprio cen-
superá-la. A observação nos mostra que ela é mais feroz tro de vida consciente cada vez mais para a profundeza do ―eu‖,
quando se desce nas posições involuídas ou periféricas, onde onde está a centelha divina, que é a causa da existência.
é maior o separatismo, a cisão, o antagonismo, a agressivida- Que ensinam todas as religiões senão um afastamento
de, consequências da fragmentação do Sistema com o afas- permanente do mundo periférico, para que nos avizinhemos
tamento do princípio Uno: Centro-Deus. do centro? É necessário compreendermos o que isto significa
Matar ou ser morto é a única razão possível, seja para o e qual a utilidade da virtude para que devamos segui-la. Trata-
animal, seja para o homem involuído. Lógica terrível, porque se de nos afastarmos das ruínas de um universo desmoronado,
ao ser não resta outra forma de vida, senão na matéria. Um in- no qual nos encontramos imersos corporalmente, de nos des-
falível índice das qualidades involuídas de um indivíduo está tacarmos de sua forma de vida animal, para aprendermos a vi-
no seu espírito de agressividade. O litigante, ainda que goste ver uma vida diversa, a vida do espírito, que contém a parte
apenas de polemizar, é sempre um primitivo. O evoluído, ao íntegra do ser, tanto menos corrupta quanto mais nos aprofun-
contrário, sabe compreender o inimigo, sabe perdoá-lo, procu- darmos ativamente, em plena consciência, no interior do ―eu‖,
ra fraternizar com ele e foge de disputas. Ele julga e busca os até encontrarmos aí Deus. Despertar até esse ponto, eis o pro-
pontos de contato para unir-se. O involuído agride antes de blema. E nada mais há de melhor que a dor para despertar a
compreender, porque a sua lógica é unicamente a luta, não sa- alma que, na realidade, deseja esquivar-se às provas, furtar-se
be pensar senão com o assalto para conseguir compreender. O ao esforço e aguardar no ócio.
sistema de Cristo é evidentemente o do evoluído, o Evangelho Quanto mais se descer na via involutiva, tanto mais profun-
ensina-nos o caminho de retorno ao centro-Deus, reconstruin- damente Deus se oculta na intimidade do ser. De fato, quanto
do-nos e libertando- nos. mais se involve, tanto mais desaparecem as qualidades de
Assim, também a ciência analítica e o sistema racional são Deus: liberdade, sabedoria, amor, que reaparecem com a evolu-
mais periféricos que a síntese e o método intuitivo, que concebe ção. Subindo do mineral à planta, verificamos o aparecimento
por visão. É evidente o processo de unificação conceptual que se de uma vida vegetativa mais ampla; com o animal, surge a vida
obtém subindo da primeira forma mental, mais separatista e fra- sensória e o movimento mais livre; com o homem desponta a
gmentária, à segunda, essencialmente unificadora. Somente esta vida psíquica, que alcança um conhecimento maior, e assim por
orienta cada problema no seu conjunto, desde o início. E um diante. Torna-se evidente o processo de libertação do espírito,
problema bem orientado e enquadrado já está meio resolvido. que volta a encontrar as suas qualidades originárias, reconquis-
Em suma, o homem periférico está mais deterministica- tadas pouco a pouco. O férreo determinismo da matéria atenua-
mente sujeito à Lei, dado que a ignora e a ela se sujeita sem se e, paralelamente, cresce o livre arbítrio, com um campo de
conhecê-la. É, assim, menos livre, menos provido de livre arbí- ação cada vez mais vasto. A matéria é um ciclo fechado de
trio, qualidade do evoluído. Enquanto este é autônomo, as energia, nela coagulada e aprisionada. Com a evolução da ma-
massas humanas, contrariamente, são como rebanhos impeli- téria para a energia, esse ciclo se abre. É a libertação do férreo
dos pelos instintos, fios através dos quais a Lei as dirige. determinismo das trajetórias atômicas. O processo  é
Quanto mais evoluído for o indivíduo, tanto mais sabe manejar um processo de liberação e espiritualização, é a retificação da
estes fios que movimentam os instintos e paixões, dos quais é inversão e a reconstrução do edifício desmoronado. A ascensão
senhor. Desta maneira, torna-se independente da submissão e, culmina no estado , em que o edifício se reconstitui em unida-
se obedece à Lei, o faz porque a compreendeu e preferiu segui- de, como era no estado originário, o ponto de partida.
la. A sua harmonização na ordem é consciente e espontânea. Em todo esse processo, não nos esqueçamos de que Deus,
Obedece porque compreendeu. Torna-se ele, assim, um súdito que estava em todas as Suas criaturas, não cessou de existir ne-
de grau superior, que colabora conscientemente, não o fazendo las, mesmo na profundeza de sua decadência. Apenas Ele é
por força ou pelo temor de punição. Trata-se de uma posição mais ou menos latente nelas, está mais ou menos imerso no seu
inteiramente diferente na hierarquia dos seres, muito mais vi- íntimo, tanto mais distanciado de sua consciência ativa quanto
zinha do centro, resultando daí que todas as qualidades da cria- mais baixo elas se encontram, isto é, involuídas, mergulhadas e
tura se traduzem em bem e alegria. Esta transformação é fatal, presas em uma forma de matéria. A trajetória atômica fechada
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 19
exprime esse aprisionamento da liberdade de movimentos, que no multíplice, reconstitui-se pelo princípio das unidades cole-
é mínima aí, abre-se na energia e é máxima no espírito. É nes- tivas, refazendo-se com todos os fragmentos do multíplice no
sas trajetórias fechadas que a liberdade ilimitada do espírito Uno. Este processo é possível porque os fragmentos permane-
caiu e está aprisionada. A matéria, de fato, é o reino de Satanás, cem intimamente ligados por um fio, que é a imanência de
que aspira à Terra, e jamais ao céu, tendo-o Dante colocado no Deus. O segundo universo, o material, corrompido, não ficou
fundo, com seu inferno, no centro do planeta. Tudo isso tem um só, não foi abandonado por Deus transcendente, Que continua
significado, pois que para esse ponto convergem e nele se en- a considerá-lo o Seu universo e a trabalhar no seu íntimo para
contram todas as negações das qualidades de Deus e dos espíri- restabelecê-lo. O quadro é completo, o Sistema é perfeito.
tos eleitos, como sejam: escravidão, ignorância, ódio, trevas Somente com este quadro completo, colocado diante de
etc. O reino de Satanás está no relativo, no tempo, isto é, na nossa mente, podemos compreender tantos fatos, de outra
eternidade despedaçada. O reino de Deus está no absoluto, no forma inexplicáveis. Essa é indiscutivelmente a estrutura atual
eterno, fora do tempo que divide. do universo em que vivemos, são essas as razões que logica-
O desmoronamento do universo é, pois, a queda do espírito mente nos confirmam a gênese desse estado de fato. O dua-
na matéria, ou seja, a formação desse invólucro que aprisiona o lismo universal é a primeira consequência tangível que, assim,
espírito rebelde. A luta entre corpo e alma é, para o homem, a verificamos generalizada, cuja origem não se pode explicar a
luta evolutiva da sua liberação. Mais abaixo ainda existem seres não ser com os conceitos acima expostos. Desde a cisão má-
prisioneiros de formas bem mais densas, em que a escravidão é xima – Deus e Satanás, ordem e caos, amor e ódio, bem e mal,
cada vez mais pronunciada. Aí se encontram os animais, depois alegria e dor – até às mínimas coisas, cada unidade resulta
as plantas, depois as pedras. O homem está a meio caminho. composta de duas metades inversas e complementares. Já o
Outras criaturas, das quais os santos nos dão uma ideia, encon- havíamos afirmado, mas só agora podemos explicar a sua ra-
tram-se mais acima. Mas, em toda parte, mesmo no âmago do zão e a sua origem. É um fato que não se pode ter unidade se-
espírito de Satanás, Deus está presente e, com a Sua presença, não reunindo os dois contrários que a constituem, isto justa-
Ele impele todos os seres a retornar a Ele, estimulando-os, mente porque, pelo princípio dos esquemas de tipo único, o
atraindo-os, chamando-os. É esta Sua universal imanência que motivo fundamental da cisão se repete do caso máximo ao
torna possível o ser palmilhar de volta o caminho da evolução, menor caso, de modo que o motivo da queda retorna em tudo
para reconquistar o paraíso perdido. Toda a virtude do Sistema o que existe. Desta forma, o princípio fundamental do univer-
está em saber restabelecer-se. No íntimo da criatura, por mais so pode ser observado em qualquer parte, onde quer que
involuída, corrompida e entenebrecida que seja, por mais sepul- olhemos. E o fato de cada unidade, em todos os casos, só po-
tada que esteja na matéria, existe sempre a centelha originária der constituir-se pela união de dois opostos indica-nos justa-
de Deus – destacada do Pai, que a gerou – que constitui a razão mente que a unidade do universo, ou seja, o Uno, atualmente
de ser da existência. A antiga nobreza de origem pode estar re- cindido em matéria e espírito, não nos poderá ser dado a não
coberta de todas as imperfeições e de todas as culpas, mas per- ser pela união desses seus dois polos opostos.
manece indestrutível, porque é divina. Também o fato da ação humana assumir sempre a forma de
Tais são as criaturas! Eis o que é o homem! Por este moti- luta, que está presente em toda parte, tanto que parece ser este o
vo, todos os seres são irmãos, ainda quando o despedaçamen- único modo de afirmação, depende do conflito entre os dois
to do Uno no desmoronamento os tenha tornado inimigos. Ir- princípios contrários do universo. Assim, a percepção não é
mãos, pois tudo o que existe deriva de Deus e, gravitando em possível sem o contraste entre dois contrários. Tudo que é pací-
torno Dele, o centro, procura a Ele retornar. Deus, no Seu fico é estático, como coisa morta. E a gênese é luta, e esta é cri-
amor, não abandonou o universo – desmoronado por culpa da ativa, porque é exatamente no contraste que os dois universos
criatura – e continua a ser amor, apesar de tanta ingratidão. devem chegar a fundir-se, retornando ao Uno, centro genético.
Ao homem, ignaro, ávido apenas de gozo, desmemoriado da Sem dúvida, é de grande ajuda para a compreensão do sis-
revolta de que nasceu o mal e a dor, isto pode parecer vingan- tema do universo essa sua estrutura de repetição de esquemas,
ça e erro, ou injustiça de Deus. Porém a característica da invo- de modo que podemos reconstruir o máximo a partir dos meno-
lução é justamente a ignorância e a rebeldia. Ele desconhece res, feitos à sua imagem e semelhança e colocados sob nossos
como Deus está presente para defender-lhe a vida, para dosar- olhos. Podemos, assim, avizinhar-nos da compreensão do Todo,
lhe as dores de modo que o eduquem sem destruí-lo, para que, de outra forma, constitui para nós um sistema inacessível.
atraí-lo a Si, na felicidade eterna! Essa possibilidade, que aqui utilizamos largamente, seja para a
indagação, seja para a confirmação, nos mostra um outro aspec-
VII. A PERFEIÇÃO DO SISTEMA to do universo: a sua organicidade. Há no Todo uma grande
harmonia e correspondência de partes, que o mantém unitário e
Observemos, sob outros pontos de vista e sob outros as- compacto, não obstante a infinita multiplicidade das suas for-
pectos, a estrutura do sistema do universo, para melhor com- mas. Essa compactação deriva do fato de que a sua diferencia-
preender-lhe a perfeição. Esta representa o estado primeiro da ção, a que a vida tende, é uma ramificação que se inicia sempre
criação: o Verbo, isto é, o estado , um sistema espiritual na mesma raiz, onde está o tipo modelo da gênese, que, embora
pronto a transformar-se em ação,  (energia), e depois na se diversifique em particulares, permanece sempre aderente aos
forma concreta,  (matéria). Este é o estado em que nos en- princípios fundamentais que regem tudo. Assim, o pensamento
contramos hoje, depois da queda, isto é, em um universo ma- de Deus, que deu o primeiro impulso, ecoa no universo, chega e
terial. E nos identificamos tão profundamente com ele, que se repete em todos os seus recantos, por mais remotos que se-
supomos ser esta sua outra parte corrompida todo o verdadei- jam. Quanto mais periférico for o ser, quanto mais se distanciar
ro universo. Há, portanto, dois universos: o verdadeiro, de na- do centro, tanto mais o eco será amortecido e fragmentado em
tureza espiritual, perfeito; e uma contrafação sua, imperfeita, esquemas menores, mais relativos e mais particulares. Mas esse
de natureza material, em evolução para a perfeição. O primei- pensamento chegará sempre uno, na infinita multiplicidade, tu-
ro é absoluto, imóvel; o segundo é relativo, a caminho. Este do atraindo a si, e, assim, tudo, por mais pulverizado que esteja,
tanto ascenderá que, no final dos tempos, sobrepor-se-á ao mantém-se ligado à unidade.
primeiro e com ele coincidirá. Os dois universos existem para Quando um fenômeno, por evolução, chegou a se produzir
se fundirem, porque são um só que se despedaçou com o des- uma vez, esta nova posição se fixa na manifestação e o fenô-
moronamento e que agora volta à união. O Uno, fragmentado meno, quase que por lei de inércia (misoneísmo), tende a con-
20 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
tinuar reproduzindo-se (a ontogênese recapitula a filogênese) o mais poderoso, tanto que acaba vencendo. Este é o índice do
com um ritmo constante, isto enquanto a elaboração evolutiva, valor do Sistema, pois, apesar de tanto mal, o bem vence. Pode-
devido ao impulso divino interior, que compele à ascensão, rá parecer o contrário a quem vive imerso no momento de um
não o modificar através de pressão e martelamento constantes, caso particular. Mas assim não é nas grandes linhas.
vencendo, assim, o misoneísmo, que quereria persistir na linha O escopo, efetivamente, era levar o ser a Deus e, em ambos
de idêntica repetição. Assistimos, desta forma, a um ecoar fe- os casos, é atingido. No primeiro caso, isso acontece por via di-
nomênico, rítmico, musical que, mesmo nos contrastes, man- reta. A criatura reconhece o Pai, ama-O, segue-O e se harmoniza
tém uma harmonia maravilhosa, alcançando características es- com o Sistema. Temos o seu triunfo espontaneamente, em plena
téticas de suprema beleza. O dinamismo do universo assume, liberdade. No segundo caso, o fim é o mesmo, mas por via indi-
assim, formas que tendem a girar sobre si mesmas, em repeti- reta. A criatura rebela-se, separa-se, cai no caos, fora do Siste-
ção. E isto se dá por outra razão também: o retorno é o único ma. Por esse motivo ela sofre, aprende, expia, volve a subir e, se
meio pelo qual o absoluto pode continuar a existir no sistema não deseja morrer, deve retornar ao Sistema, isto é, coordenar-se
fragmentado do relativo, como um eterno retorno do espaço na sua ordem. Dessa forma, ela alcança igualmente a meta, ten-
sobre si mesmo, como espaço curvo – é a única forma pela do, todavia, de percorrer um caminho mais longo. O Sistema
qual o infinito pode vir a existir no finito. triunfa ao final. No primeiro caso, temos o ser que permanece
Assim, conjugando os pequenos esquemas do nosso contin- inocentemente perfeito. No segundo, teremos um ser igualmente
gente aos maiores esquemas do ser, podemos explicar a razão perfeito, mas que, chegando à perfeição através de uma via lon-
profunda de tantas coisas que todos fazemos sem saber e sem ga e dolorosa, conheceu o bem e o mal e se refez pelo sofrimen-
discutir, tomando-as por axiomáticas. Mesmo nós, em nosso to. No segundo caso, a evolução produzirá um anjo que, através
dinamismo moderno, agimos por repetição, rodando apenas de todos os erros e dores, chegará a ser conscientemente perfei-
mais velozmente do que no passado, em torno dos mesmos to, com uma sabedoria mais profunda do que a que possuiriam,
pontos. Toda a nossa vida percorre e volta a percorrer sempre se não se tivessem rebelado e Adão não houvesse comido o fruto
os mesmos círculos, repetindo vertiginosamente as mesmas proibido da árvore do bem e do mal. Sem tão dura experiência, a
coisas. Apenas turbilhonamos mais rapidamente, porém não criatura também seria perfeita, mercê de um conhecimento di-
nos deslocamos em substância, senão lentamente. Se atentar- verso, mas, com ela, o anjo decaído e redimido se torna detentor
mos para a imprensa, para o rádio, para o ciclo de nossa vida da prova do lado oposto do ser, do negativo. O Sistema é, pois,
individual cotidiana e para o das grandes cidades, assim como tão perfeito que, suceda o que suceder, o erro se transforma em
para o da agricultura nos campos e para os ciclos históricos, ve- conquista, a destruição em elemento criador, e o mal se trans-
rificamos que tudo é repetição, que nos movimentamos em der- muda em bem. Ele cria sempre o bem, mesmo no mal, na dor,
redor de certos pontos, para ficar ali. Parece que, ao lado da mesmo através de Satanás. Tudo o que nele pode aparecer de
curvatura do espaço, existe também uma curvatura do tempo, negativo, devora-se a si mesmo, destrói-se por si e gera o bem.
pela qual o que uma vez foi feito tende a ser refeito (tradição), Assim, o Sistema termina sempre na perfeição desejada. A pri-
ciclicamente voltando para si mesmo. meira, dada por um conhecimento intuitivo, sem a prova da dor;
Mas o aumento de velocidade de rotação não é estéril, por- a segunda, por um conhecimento experimental através do longo
que produz um mais rápido deslocamento dos pontos de refe- e estafante caminho da evolução. A primeira, permanecendo in-
rência, o que significa produzir a elaboração evolutiva, que antes tacta, imune à corrupção; a segunda, degenerando-se, para de-
era mais lenta. Se tudo tende hoje a repetir-se sobre o decalque pois curar-se. Não importa se o caminho é mais ou menos longo.
de velhos esquemas, o faz, no entanto, a maior velocidade, com Esta outra estrada conduz igualmente à meta.
o resultado de elaborá-los e determinar uma mais rápida matura- A própria queda dos anjos só pode ser atribuída à perfeição
ção de sua transformação. Isto porque, encontrando-nos no rela- Sistema, e não a uma sua imperfeição. Nas páginas preceden-
tivo, não é possível mudar um instinto, uma ideia de nosso ―eu‖, tes, assinalamos as seguintes palavras de Deus à criatura: ―Ofe-
ou seja, mudar o seu esquema, senão com este processo rotatório reço-te a existência como um grande pacto de amizade‖ (Cap.
em seu derredor, através de longa repetição, que nos transforma IV – ―A queda das anjos‖). O dom da liberdade, concedido por
por meio da aquisição de automatismos novos em lugar dos ve- Deus à criatura, para que ela se Lhe assemelhasse, era comple-
lhos. Hoje, corremos, pois, não por correr, o que de nada ser- to. Ela poderia aceitá-lo, grata, como poderia ter dito: ―Não!
viria, mas sim para aprendermos e maturar-nos mais rapidamen- não aceito‖. A revolta foi o primeiro passo no sentido desta re-
te, através de um acelerado ritmo de sensações e reações. cusa, visto que a tentativa de existência autônoma era, manten-
Voltemos, agora, a observar a estrutura do Sistema do-se negativa, uma primeira tentativa de não-ser. A insistência
sob o aspecto mais importante, que é o da sua grande perfei- definitiva na revolta significava o desejo de anular-se, ou seja, a
ção. Faremos isto em dois momentos, nos quais esta é posta recusa em aceitar o pacto da existência. É lógico que ficasse fo-
à prova e, por conseguinte, ressalta com mais evidência: ra do Sistema quem não aceitasse o pacto, no qual se anula a
primeiro no desfazimento da queda e, depois, na mecânica existência de quem não o aceita, retornando ao estado anterior à
da sua autorreconstrução. gênese, do não-existir. O existir significa a afirmação na ale-
No primeiro caso, a perfeição nos aparece na invulnerabili- gria, e o não-existir significa apenas uma negação crescente da
dade do plano, que, não obstante o erro, realiza-se da mesma alegria na dor. Pode o ser, mesmo livre, preferir a segunda via?
forma, persistindo intacto. O dano foi reservado somente à par- Tudo, pois, no Sistema, concorre para o seu bom êxito, pa-
te dos seres que o desejaram, prejuízo que, depois, em face da ra o triunfo do bem, mesmo o mal e o erro. Um sistema ex-
bondade inerente ao Sistema, reduziu-se a escola instrutiva aos pressão de um Deus perfeito não podia deixar de ser perfeito.
fins da reconstrução, em favor de quem praticou o mal. A per- A lógica impõe, de modo absoluto, a presença dessa perfeição.
feição do Sistema revela-se exatamente nesta retomada e auto- De outra forma, tudo se desmorona e nada mais se explica e
correção, neste sua arte de saber transformar um mal em bem. justifica. E, no fundo do universo atual, mesmo quando em
Isto demonstra que todo o Sistema é feito de bem, tanto que es- parte continue ele caótico, vemos uma sabedoria profunda, que
te é sempre seu resultado final, pois, ainda que o mal possa ter- rege a ordem e nela enquadra até mesmo esse caos, regulando-
se originado em seu interior, ele sabe reabsorvê-lo por comple- o. É a verificação dessa perfeição que nos impõe confiança,
to e reconduzi-lo ao bem. Justamente nesta luta entre o princí- porque nos diz que tudo quanto a criatura faça é por Deus uti-
pio negativo do mal, em que o Sistema se corrompeu, e o prin- lizado e guiado para o bem.
cípio positivo do bem, é que se vê ser este último o dominante, ◘◘◘
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 21
Verificada a perfeição do Sistema no desmoronamento da Estão em luta as duas forças, bem e mal, mas não perfeita-
queda, observemos agora a sua perfeição na mecânica da sua mente iguais. Pelo fato de que o bem é o centro, há uma superi-
autorreconstrução. oridade, posição da qual a revolta não o pode despojar. O atrito
O sistema de Deus é o sistema do ser, do ―eu sou‖, do qual desgasta os dois elementos, arrebatando do ―eu-centro‖ frag-
Ele é o centro. Dado este esquema do grande organismo, o po- mentos da sua parte periférica, detritos de substância espiritual,
sitivo, vemos que a rebelião tentou instaurar em seu seio, para dinâmica ou física, segundo o plano em que se observa o fenô-
submetê-lo, um sistema de esquema oposto, do não-ser, o nega- meno. Isto porque o modelo de cada elemento é feito de centro
tivo, que, sendo contrário, não podia representar senão a sua re- e periferia, repetindo-se, assim, no caso menor, o esquema do
viravolta, segundo o esquema do ―eu não sou‖. Então, deu-se a elemento máximo centro-Deus. Desta forma, quanto mais fortes
fratura. De um lado, o sistema do esquema ―eu sou‖, em Deus; o choque e o atrito, tanto mais acentuado o desgaste, o que re-
do outro, um contra-sistema do esquema do ―eu não sou‖, em dunda em pôr sempre mais a descoberto a natureza do centro do
Satanás. ―Eu sou o espírito que sempre nega‖, diz Satanás no sistema de cada elemento, ou ―eu‖, que assim, quando se trata
―Fausto‖ de Goethe. É a sua verdadeira natureza, isto é, a estru- de uma massa branca, faz-se sempre mais branco e, quando se
tura segundo o esquema do ―eu não sou‖, o princípio inverso, trata de uma negra, torna-se cada vez mais negro. O resultado
segundo o qual Satanás é construído, que lhe inquina o orga- do atrito desta luta é, pois, intensificar e fazer aflorar as caracte-
nismo até às raízes e que o mina sem cessar, impelindo-o à anu- rísticas, a verdadeira natureza de cada um. Assim, na luta, o an-
lação. Observemos a mecânica desse processo. jo se torna sempre mais anjo e o demônio sempre mais demô-
Este sistema rebelde é formado de muitos menores ―eu nio; o santo se aperfeiçoa e ascende, o mau piora e desce.
sou‖, que, ao invés de coordenarem-se hierarquicamente no Esse atrito é dor para ambas as partes. Mas a natureza ínti-
sistema de Deus, quiseram isolar-se, formando uma hierarquia ma, tão diversa para os dois tipos, faz com que as seus efeitos
oposta, de centros autônomos. Podemos imaginar o sistema sejam opostos, como opostos são esses tipos. Podemos ver o
positivo como um processo giratório dextrogiro. Ora, esses processo repetir-se na Terra, entre os seres que, tendo já per-
elementos rebeldes, constituintes do contra-sistema, podem ser corrido um certo trecho do caminho da ascensão, acham-se
imaginados como tantos outros centros menores que, em vez mais próximos dos elementos brancos. Sua dor, que decresce
de continuar rodando nesse mesmo sentido dextrogiro, como com a subida, é bendita e confortada por Deus, repleta de espe-
impunha o Sistema, harmonizando-se com o seu movimento e rança e sempre mais viva. Ela integra um sistema positivo, em
alimentando-o com o próprio impulso concordante, puseram-se que a dor está desaparecendo, enquanto o problema da felici-
a girar em sentido oposto, sinistrogiro, contra a corrente, dade se encontra em vias de solução, porque a vida está cami-
opondo-se ao seu movimento, na tentativa de gerar, assim, um nhando para Deus. Mais acima, os anjos não decaídos se apre-
movimento contrário, através do qual pudessem dominar o sentam imunes à dor, que adeja em torno de seus espíritos, in-
primeiro, para impor o próprio. Puseram-se, dessa forma, a capaz de excitar neles as dolorosas ressonâncias para as quais a
agir como freio, e não como impulso, intentando inverter a rota nossa natureza corrompida não pode fechar as portas. Contra-
das trajetórias, iniciou-se a desordem, a revolução, tendente a riamente, a dor dos espíritos inferiores, que permanecem na
transformar a ordem em caos, fenômeno que, daí por diante, revolta, é maldita, sem conforto, de esperança cada vez menor,
passou a repetir-se de acordo com o mesmo esquema, ainda dor que aumenta em cada queda do ser. Ela faz parte de um
que em escala menor, estando sob nossos olhos e reproduzindo sistema negativo, em que a dor se potencia e a felicidade se
o mesmo princípio, tanto no campo espiritual como no campo afasta, porque a vida está caminhando para Satanás. Duas do-
material, pois que ele continua o mesmo, agora como então. res opostas, em sentidos contrários. A do santo é sacrifício útil,
Os dois campos são conexos. E, como a criação física procede construtivo, de que se colhem frutos. A do mau é amarga con-
do pensamento, também o caos espiritual pôde logo transfor- sequência da destruição, que a carrega de mais ruínas. A dor
mar-se em caos físico, do qual nasce e continuamos a ver nas- do santo bendiz e cria; a do mau é feroz e destrói.
cer o nosso universo astronômico. Podemos agora imaginar essas correntes sinistrogiras do
A pretensão era inverter o Sistema. Mas esses elementos não mal navegando às avessas no Sistema, no sentido contrário às
eram o centro. Eram planetas, e não o sol. E, por mais que se dextrogiras do bem. Qual delas vencerá? Indubitavelmente a
coalizassem em um contra-sistema, não passavam do que eram, branca, porque é mais forte. A revolta padeceu de um erro fun-
isto é, centros menores, elementos periféricos. Por mais que pre- damental de estratégia: haver confundido semelhança com
tendessem ser sois, eram apenas planetas. Era, pois, impossível identidade. Deus, na Sua bondade para com a criatura e por
que o contra-sistema pudesse vencer o Sistema. Não lhes resta- amá-la, fizera-a semelhante a Ele, mas não idêntica, isto é, da
va, então, outra possibilidade senão funcionar como resistência, mesma natureza, mas não da mesma potência. A própria estru-
quais massas negras em um sistema de massas brancas. tura do Sistema implicava que Deus permanecesse centro, posi-
Continuemos. Resultou daí um atrito que representa perma- ção que nem mesmo Ele poderia ter cedido, ainda quando o Seu
nentemente a luta entre o bem e o mal. São estas as duas forças amor a tivesse desejado, porque então o sistema inteiro se teria
sempre em ação. O único sistema originário, positivo, transfor- alterado. O erro dos rebeldes estava justamente inserido em sua
mou-se então, reequilibrando-se em um duplo sistema, isto é, no natureza egocêntrica de ―eu sou‖, como uma consequência sua,
conhecido dualismo universal, que vai do plano espiritual ao fí- direta, pois consistiu na dilatação exagerada desta, a ponto de
sico, sistema que podemos conceber como uma quantidade de iludir a criatura, fazendo-a crer que semelhança pudesse vir a
massas negras navegando em um organismo dinâmico de mas- ser identidade. Efetivamente, a ela nada faltava como qualida-
sas brancas. Mas estas são mais fortes, porque o centro é branco. de, faltava porém como quantidade. Foi essa quantidade que o
É, porém, negro o anticentro, em torno do qual gravita o Anti- orgulho admitiu que pudesse criar por meio da potência do pró-
Sistema. Mas esse, pela própria natureza, só pode ser um centro prio ―eu sou‖, retirando-a desse ―eu‖ já tão divinamente pode-
negativo, isto é, periférico, uma paródia de princípio, um absur- roso. Porém enganou-se. Era absurdo o que pretendia. Mas a
do geométrico, que exprime exatamente, também no plano físi- identidade estava ali, a meio passo, tão vizinha da semelhança,
co, a ideia negativa do ―eu não sou‖. Este é Satanás! que o ―eu sou‖ da criatura se deixou arrastar pelo instinto inato
Agora que, com esta representação, uniformizando-nos de dilatar-se. Quis nivelar-se a Deus e, ao invés de engrandecer,
com uma lei de analogia, pudemos transportar para um terreno estourou. Eis o grande erro, causa da ruína. Tudo é lógico e
mais concreto o conceito abstrato da revolta dos anjos, veja- compreensível, especialmente a nós, criaturas, hoje numa situa-
mos o que sucedeu. ção que é oriunda desse erro, pelo qual, com tanta frequência,
22 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
somos ainda levados a repeti-lo, iludidos pela mesma ilusão do sistema, que fazem dele um ser enfermado de rebelião. Será
psicológica e colhendo os mesmos frutos dela. possível, então, que o ser possa resistir a todas as infinitas oca-
Isto esclarecido, podemos indagar que técnica é esta atra- siões que se lhe oferecerem, a todas as amorosas solicitações e
vés da qual o Sistema é tão bem capaz de reconstruir-se? A amparos, através dos quais os espíritos bons e eleitos se pres-
resposta, para ser dada, exige que, prosseguindo o exame inici- tam a sacrificar-se por amor à redenção daqueles seres que se
ado, perguntemos ainda aonde vai findar e a que ponto do Sis- transviarem? Será possível chegar a tamanho absurdo?
tema se dirige aquela parte de substância que, no atrito e na lu- Se isto se der, então o ser, que assim o quis, ficará no infer-
ta, se destaca da periferia dos ―eus‖ componentes? Ela assumi- no eterno da negação da existência, em que o ―eu‖ desaparecerá
rá naturalmente o sentido dextrogiro, que é a mais forte no Sis- consumido em pó e será refundido no sistema do bem. E, então,
tema, em virtude de ser a única alimentada pela irradiação di- assim como havíamos concluído que, na realidade, não existem
nâmica positiva do centro – Deus – que está pronta a atrair e dois sistemas contrários, mas um só – Deus – podemos concluir
arrastar em sua órbita tudo quanto ainda não se mantenha uni- também que o inferno eterno existe como possibilidade, mas
do à corrente oposta, visto que o contra-sistema também possui que, como disse um santo, não podemos estar certos de que ne-
o seu anticentro, antagônico, de ação inversa, cuja irradiação é le possa haver alguém. Ele existe, pois, como uma possibilida-
negativa, obscura, destruidora, atração invertida, que repele. de teórica do sistema, sem que estejamos em grau de saber se
Tal é Satanás. A substância, assim repelida pela atração nega- esta pode transformar-se em realidade (este assunto será melhor
tiva do anticentro, inverte a sua direção, tornando-se positiva, a desenvolvido no Cap. X – ―A teoria do desmoronamento e as
favor do sistema positivo (o primeiro germe destes conceitos suas provas‖). Sabemos, com certeza, apenas que Deus é a ab-
encontra-se no Cap. X – ―O Problema do Mal‖, no volume A soluta potência do bem. Devemos daí deduzir ser impossível
Nova Civilização do Terceiro Milênio). Sucede, então, que es- que, ao fim, o bem não sobrepuje todo o mal, tornando-se se-
sa poeira de substância que se destaca é atraída para Deus e in- nhor absoluto. Se do mal restasse um átomo que fosse, o plano
serida no circuito positivo do Sistema. O resultado final, assim, de Deus não teria vencido. Sabemos com segurança que Deus é
é que o contraste entre os elementos dos dois sistemas opostos bondade e que a criação é um ato do Seu amor, portanto, se um
só pode operar no sentido de um desgaste e empobrecimento só átomo lhe escapasse, Seu plano teria falido. Sabemos, assim,
crescente de substância do sistema negativo em favor do sis- ser impossível que, no fim, o Seu amor não vença a tudo e a to-
tema positivo, que cada vez mais ganha em substância. Isto dos, envolvendo no Seu amplexo todo o criado.
conduz o processo a propender fatalmente para o aniquilamen- ◘◘◘
to do sistema negativo e domínio absoluto do sistema positivo. A esta altura pode surgir uma objeção. É verdade que o
Como se vê, esta realidade é inerente à natureza do sistema po- universo está destinado à reconstrução e se reconstruirá. To-
sitivo, o primeiro a existir e o último a triunfar. O princípio e o davia, se o Sistema é perfeito, que garantia nos oferece ele
fim vêm, assim, a coincidir no imóvel absoluto do Deus trans- que a queda não se repetirá? Observemos. A parte caída está,
cendente, que está fora da forma e do tempo, independente da por enquanto, ligada ao processo evolutivo. Quem quisesse
Sua manifestação no universo criado. Em conclusão, podemos involuir, ao invés de evoluir, expor-se-ia ao aniquilamento
afirmar que não há dois sistemas iguais e contrários, mas, no como individualidade própria. Estaria, pois, eliminado. Mas
fundo, apenas um único sistema: Deus. temos visto (e ainda melhor o veremos no Cap. X) como o
Eis a maravilhosa técnica do processo de autorreconstrução egocentrismo de cada ―eu‖ deva terminar com a compreensão
do universo. Tudo desmoronou na caos, mas o caos sabe recons- de que este caminho é contraproducente e desvantajoso, já
truir-se na ordem. Que melhor prova existe para a imanência de que o ser está destinado à salvação.
Deus? O princípio positivo não abandonou o anti-sistema nega- Depois, há também a parte dos espíritos não decaídos, que,
tivo. De que outra forma poderia este, feito de substância nega- se permaneceram puros por obediência, aplicando em seu be-
tiva, somente capaz de destruição, reconstruir-se, isto é, agir in- nefício a sabedoria de Deus, que os guiava, estão agora assis-
teira e contrariamente à sua natureza? Assim, se o processo evo- tindo o calvário do ser decaído. Eles estão vendo as conse-
lutivo realmente funciona e determina o bem, o mal deve ser de- quências do desmoronamento e têm, diante de tal exemplo,
crescente. Este, vivendo, desgasta-se e tende a morrer. O bem, uma experiência própria adquirida indiretamente. Após essas
ao contrário, com a vida, revigora-se e tende à gênese. O mal duras verificações, é impossível que possam pensar em repetir,
pode parecer em crescimento num determinado ponto do univer- com seu prejuízo, uma tão terrível prova, sob a qual estão caí-
so, como a Terra, em consequência da ascensão e chegada de dos os espíritos seus semelhantes.
elementos inferiores. Mas, no todo, o mal, com a existência, de- Ao termo do processo reconstrutivo da evolução, a parte dos
vora a si mesmo, em razão da própria natureza e estrutura, e só espíritos caídos, agora redimidos, volta ao estado anterior atra-
mediante esta condição pode existir. O mal, assim como o bem, vés da experiência do bem e do mal, que serviu como exemplo
tanto no universo como na Terra, não está uniformemente distri- para todos, inclusive aos espíritos não caídos.
buído, e o aparecimento local do fenômeno pode iludir-nos Todos, pois, acabam adquirindo a mesma experiência. Ora,
quanto ao seu destino real, que está fatalmente traçado. a parte redimida não se cuidará de novas desobediências, por-
Então, surge naturalmente em nós uma última pergunta: que provou as suas consequências. Ela conserva um conheci-
qual a sorte final dos espíritos maus? O seu sistema os conduz mento direto. A outra parte – os não caídos – tem um conheci-
automaticamente ao aniquilamento, que representa o seu triun- mento indireto, reflexo. Não é possível que haja novas quedas,
fo, a morte da alma, verdadeiro inferno eterno, porque, para o embora todos permaneçam inteiramente livres. Chega-se, as-
ser, a pena máxima está no não-ser. E a criatura que renega a sim, a um determinismo superior, de um ser convicto, a quem o
Deus não pode ter outra sorte. Mas será possível que um ser li- conhecimento ensina que só há um caminho, também livre, a
vre queira, em seu prejuízo, fazer da liberdade um desastroso ser trilhado, que é a adesão à Lei.
uso? Será possível que ele queira agir tão loucamente, que pos- Podemos compreender tudo isto, reduzindo o fenômeno,
sa resistir à tortura crescente da dor máxima, que é a agonia es- que se situa para nós em planos inconcebíveis, às dimensões
piritual, sem mudar de rumo? exíguas da razão humana. Da maravilhosa perfeição do Sistema
O universo é um organismo em que, como no corpo huma- aparece-nos, então, um novo aspecto, onde o mal causado pela
no, uma solidariedade de todos os elementos componentes revolta se transforma em bem, o que constitui uma experiência
compele as células sãs e mais evoluídas a tentarem todos os vital também para os não decaídos, destruindo-se definitiva-
meios de conseguir a cura ou salvação das células patológicas mente ―para todos‖ qualquer possibilidade de novas quedas.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 23
VIII. SOLUÇÃO ÚLTIMA DO PROBLEMA DO SER ta-se de colocar, como no quadro de um grande mosaico, cada
peça no seu justo lugar, para obter a imagem perfeita.
Pouco a pouco, a nossa descrição progride, a visão se faz Por estas observações, o leitor poderá compreender como a
mais completa também no intelecto do leitor, a quem estamos exposição aqui realizada é uma tradução da visão em uma outra
aqui fazendo uma exposição racional. Não quisemos conferir a linguagem, adequada à forma mental racional. Poderá, ao mes-
esta uma forma sistemática, como sói acontecer quando se mo tempo, compreender que a psicologia de absolutismos axi-
apresenta um processo psicológico de quem escreve, cristaliza- omáticos, com que algumas afirmações são aqui feitas, não é
do nos seus resultados finais, sem demonstrar o seu desenvol- uma inconsistente pretensão de verdade, mas sim deriva da sen-
vimento genético. Preferimos aqui começar a descrever a visão sação do absoluto verdadeiro que se passa com todo aquele que
à medida que a observamos, de modo que o leitor pudesse se- contemple qualquer fato por percepção direta. Ora, quem aqui
guir o desenvolvimento segundo o qual ela, embora instantânea escreve não pode fazer sentir ao leitor esta sua sensação. Não
em sua natureza, apareceu progressivamente em nossa mente. lhe resta, então, outro recurso senão o raciocínio e a demonstra-
Assim procedemos não só para facilitar a compreensão, mas ção indireta, como quem tivesse de explicar a um cego um pa-
também para facilitar ao leitor acompanhar igualmente o fenô- norama que tenha diante dos olhos. O leitor poderá, assim,
meno psicológico do registro da visão, como ela ocorreu na rea- compreender quão estranho deve parecer, a quem se encontra
lidade. Tudo isto porque não significa que, por não ser sistemá- imerso em uma visão, ter de apresentá-la como hipótese de tra-
tica, a exposição não possua um encadeamento lógico, pois to- balho. Entretanto, ele deve saber exprimir-se também nessa
da a visão é substancialmente um processo lógico. forma, se quiser ser compreendido.
Certamente, a psicologia racional, que é a forma da menta- ◘◘◘
lidade hodierna e, por conseguinte, da maioria dos leitores, está Chegando a este ponto, podemos dizer que temos sob os
muito distanciada da forma mental intuitiva, por meio da qual olhos um quadro suficientemente completo da criação, para po-
as visões são percebidas. Por isso mesmo procuramos sempre der contemplá-lo no seu conjunto. Também A Grande Síntese
reduzir tudo aos termos da psicologia racional, a fim de nos co- nos apresenta esse quadro, mas dentro de limites mais restritos.
locarmos no plano mental do leitor. Na verdade, o crítico ex- Ela não vai além dos confins de nosso universo, não lhe aprofun-
tremado poderia objetar que os dois princípios fundamentais – da as origens. Comprovando a existência de uma lei cujo funcio-
amor e liberdade – sobre os quais se eleva o edifício conceptual namento e desenvolvimento estuda, não explica as razões pelas
atrás exposto, são absolutamente incontroláveis. Eles, aqui, são quais ele tenha tomado a sua forma atual. E, de A Grande Sínte-
aceitos como axiomas não demonstrados, consequência do mé- se, o volume Ascese Mística só aprofundou e desenvolveu o es-
todo intuitivo. Não é preciso demonstrar, a quem vê, que a luz tudo particular de uma fase da evolução: o superconsciente intui-
existe. Mas nós queremos aqui colocar-nos de acordo com a tivo, especialmente no misticismo. No presente volume, a visão
psicologia corrente. Limitamo-nos, pois, a aceitar a intuição se dilata para além da criação atual, da qual se veem os preceden-
apenas como hipótese de trabalho. Apresentar o pensamento tes, as causas e o significado, em um sistema mais vasto, qual é o
sob esta forma significa torná-lo mais compreensível e aceitá- sistema do absoluto, o sistema do Todo, o sistema de Deus.
vel em nosso tempo. Podemos, assim, encarar toda a visão co- Voltemos a contemplar a visão no seu conjunto, nos lampe-
mo uma hipótese de trabalho, onde o mais importante, indepen- jos da síntese. O homem racional, positivo, poderá tomá-la co-
dente da forma, é conseguir a exposição de um quadro comple- mo hipótese de trabalho, para fazer o seu controle nos pontos
to e pormenorizado, que resolva todos os problemas do ser. acessíveis ao homem, já que se trata de uma projeção análoga
Continuando a proceder com esta psicologia, poderemos di- do esquema universal em nosso plano de existência.
zer que só aceitaremos a hipótese como verdadeira quando os Fora do tempo, antes que qualquer coisa, nascida depois,
fatos a confirmarem. Teremos, assim, assumido a atitude que tivesse princípio, existia Deus, que foi, é e será sempre o Todo,
coincide com a psicologia hodierna, e o leitor poderá, então, ler ao qual nada se pode tirar nem acrescentar, mesmo em sua cri-
estes capítulos com esta mentalidade, sem que nada se altere. ação, que não pode estar acima ou além, mas sempre como Sua
Permaneceremos, desta maneira, obedientes aos requisitos cien- emanação. Sua característica fundamental é o amor, princípio
tíficos da pesquisa. O leitor que ama e escolhe esta forma mental pelo qual se exprime a natureza de Deus, de onde derivam to-
deverá, porém, admitir que, se tal via fosse seguida pelo escritor, das as outras qualidades: primeiramente a liberdade do ser e,
ele nada teria visto, chegando talvez a umas poucas conclusões depois, as demais, como o bem, a bondade, a harmonia, o po-
particulares, e quem sabe depois de quanto tempo! Se ele che- der, o conhecimento, a beleza, a felicidade etc., que exprimem
gou logo à visão completa do quadro resolutivo e das conclu- tudo o que de mais belo e melhor o ser possa imaginar. São
sões, é necessário aceitar que isto só se deu em virtude do méto- princípios que o homem encontra instintivamente em si mes-
do da intuição, através de concepções sintético-intuitivas, e não mo, aceita como axiomas e segue sem discutir, com ardente
analítico-racionais. A resultados tão amplos quanto estes não se anelo. Ninguém necessita de demonstração para obedecer a
chega nunca com a observação e a experimentação, através da tais impulsos, que são inerentes à natureza humana. Afinal, tu-
hipótese e da razão. É necessário admitir que, conquanto a solu- do isto faz parte do absoluto, que está além da razão e do qual,
ção dos últimos problemas deva aqui ser apresentada em forma com esta, só nos é dado controlar as consequências em nosso
racional, ela só poderia ser obtida por via intuitiva. relativo, que no-lo confirma. Admitido o princípio de amor,
Pode-se objetar, contudo, que a intuição também está sujeita tudo o mais procede logicamente. À razão não se pede mais do
a enganos, necessitando ser controlada e, por esse motivo, ela que admitir esse princípio, o que, aliás, é instintivo. É o quanto
não pode ser erigida em método de uso corrente. Mas também é basta para o desenvolvimento lógico ulterior.
verdade que o uso corrente bem pouco descobre de novo, limi- Deus, causa primeira sem causa, não tem princípio nem fim
tando-se frequentemente a demonstrar e a aperfeiçoar o que foi e tudo gera sem ter sido gerado. Deus simplesmente ―é‖, e tudo
apanhado pela intuição. Assim, só nos resta aceitar a intuição Ele ―é‖, não estando encerrado no limite de nenhuma dimensão.
quando o indivíduo sabe alcançá-la, submetendo-a depois ao As várias dimensões nascerão depois, entre as quais o tempo e
controle, para verificar se os seus resultados coincidem com a o espaço, apenas como limites do ser, enquanto Deus é o ser
realidade. Os exemplos que aqui aduzimos, retirados do mundo sem limites. Eis, então, que Deus transcendente, que ―é‖ acima
dos fatos, estão sempre a favor da visão. O leitor poderá buscar e independente de qualquer criação Sua, acima da atual, como
outros, contanto que antes cuide de compreendê-los bem, para de qualquer outra possível, eis que Deus realiza, com respeito à
enquadrá-los no sistema e verificar se há correspondência. Tra- atual, a Sua primeira criação, feita de espíritos perfeitos. Ele
24 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
destacou do Seu seio, por amor, seres feitos à Sua imagem e vel compreender ambas as metades da unidade e depois reuni-
semelhança, para amá-los, incluindo-os na Sua própria felicida- las. Compreender de Deus um só aspecto, qualquer seja ele,
de. Isto ocorreu segundo um sistema cujos princípios funda- significa atingir uma concepção falha e unilateral. Admitindo
mentais eram aqueles mesmos que observamos na natureza do Deus apenas como transcendência, o ser se defrontaria com
Pai, que os gerara. Neste sistema, tudo era feito à Sua imagem e uma abstração de tal forma destituída de expressão, que ela se
semelhança. Ele era único e tudo encerrava, nada havendo fora confundiria no nada. O universo lhe pareceria, então, um autô-
e além Dele e dos Seus princípios e perfeição. mato vazio de alma, um sistema estático, incapaz de reconstru-
Ora, dada a liberdade do ser, inata no Sistema, por ser da ir-se e reerguer-se até Deus. Admitindo Deus apenas como
natureza de Deus, de que ele proviera, essa primeira criação imanência, chegaremos a um universo preso num caminho sem
perfeita degenerou em consequência da revolta, examinada nos fim, não tendo ponto de partida nem de chegada, uma unidade
capítulos precedentes. Parte dos seres permaneceu íntegra, in- despedaçada, sem possibilidade de reconstruir-se.
corrupta, e assim se conservou sempre, mantendo-se no sistema É necessário compreender essa descida do Deus transcen-
perfeito originário, por haver aderido livremente ao Deus trans- dente na imanência, em seguida ao desmoronamento do Siste-
cendente; outra parte rebelou-se e, por isso, corrompeu-se, dan- ma. Quando este, por culpa da criatura, se cindiu em dois, Deus
do origem a um segundo sistema, derivado e imperfeito, inver- não quis abandonar o sistema invertido, conservando-se presen-
tido, de oposição a Deus, tendo o centro em ponto antípoda, em te nele (imanência), para poder realizar assim a sua salvação,
polo oposto, no anti-Deus, em Satanás. O sistema único cindiu- em um trabalho constante de reconstrução (criação contínua),
se então em dois – Sistema e Anti-Sistema – nascendo o dua- pelo processo que denominamos de evolução. Deus, em perfei-
lismo de dois sistemas opostos, um perfeito e o outro imperfei- ta coerência com o princípio fundamental do amor, acompa-
to, não mais segundo um esquema de unidade íntegra, como an- nhou o edifício desmoronado que permaneceu Ele mesmo, em-
tes, mas segundo um esquema de unidade cindida, que não po- bora em posição invertida, um Deus em negativo, como se Ele
de existir senão constituída de duas partes inversas e comple- mesmo se tivesse invertido. Desta maneira, Deus se faz, por
mentares, opostas e fundidas conjuntamente. De então por dian- amor, imanente e, neste Seu segundo aspecto, desce às formas,
te, a unidade não poderá mais ser obtida a não ser através da lu- à criação, que assim se tornam em Sua manifestação ou expres-
ta entre as duas partes contrárias, princípio universal, que en- são. Eis de que modo o universo é regido pelo pensamento de
contramos por todos os lados. Essa é gênese do principio da Deus (a Lei). No fundo do Anti-Sistema está sempre o Sistema,
unidade e dualidade, sumariamente exposto em A Grande Sín- no fundo dos espíritos decaídos está sempre a originária cente-
tese. Por esta razão o nosso universo é construído de acordo lha divina. Não pode existir no universo nada que não seja
com esse esquema, desde o caso máximo até ao caso mínimo. Deus. Será um Deus invertido, mas será sempre Deus.
Agora podemos compreender por que Deus transcendente, e Aproximamo-nos agora de nosso mundo fenomênico, mais
não somente pessoal, visto ser Ele um ―eu sou‖, assim como controlável pela observação. O desmoronamento do Sistema é
todas as criaturas feitas a Sua imagem e semelhança, mas que representado pelo processo involutivo, que procede de
também pode ser considerado acima e independente de qual- , isto é, do espírito à energia e desta à matéria. Assim
quer criação Sua, além do bem e do mal, isto é, fora do esque- nasce a matéria. Eis a criação de nosso universo dinâmico e fí-
ma dualístico em que está baseado o universo atual. O dualismo sico. Compreende-se, pois, como esta não foi a criação originá-
nasceu com o referido desmoronamento do Sistema em seu An- ria, perfeita, operada por Deus, mas apenas uma inversão e uma
ti-Sistema e está destinado a ser sanado, representando, portan- corrupção dela, operada pela criatura, em razão da sua liberda-
to, apenas um momento na Divindade. Deus ―é‖ sempre, antes de, e não por Deus. Porém Deus não abandona o ser aberrante,
do desmoronamento e depois da reconstrução, além deste perí- mas abre-lhe de novo os braços, apontando-lhe uma via de re-
odo dualístico. No absoluto, Deus ―é‖ simplesmente uno, acima cuperação e redenção. Desta forma, Deus o aguarda no ápice do
desta cisão, que concluirá na junção das duas partes e, por isso, caminho oposto, dado pela evolução, que se processa de
constitui apenas um episódio no divino e eterno existir. , o caminho de nosso universo no planos físico, dinâ-
Foi, então, justamente com o desmoronamento do Sistema mico e, para os seres mais evoluídos como o homem, espiritual
no Anti-Sistema que se formou a contraposição: transcendência (). Eis por que o nosso é um universo em evolução e o motivo
e imanência. Esta cisão do único aspecto, o absoluto, de Deus por que a lei de ascensão é a lei fundamental de nossa existên-
em Deus transcendente e Deus imanente representa justamente cia. Não basta, contudo, ter verificado o fato, como nos volu-
a cisão do Uno, que, como Uno absoluto, reúne em si os dois mes anteriores. Precisamos compreender por que este fato exis-
aspectos. Ele é ambos ao mesmo tempo, estando acima da ci- te nessa forma. Por isso a dor é herança da criatura, sendo a re-
são, sem poder ser um só deles, ou seja, não é exclusivamente denção através das provas da vida o seu necessário e fundamen-
transcendente nem exclusivamente imanente. Desta forma, tal trabalho. É por esta razão que Cristo desceu à Terra e consti-
compreenderemos que a visão dualística, do Uno bipartido, é tui a figura central na história da humanidade.
relativa à posição do ser no universo atual e no período da ci- Podemos agora compreender o nosso universo. Ele é uma
são, não possuindo valor absoluto. Em outros termos, se enca- criação negativa, não a originária, mas uma segunda, derivada e
rado do seio de nosso universo, Deus pode parecer à criatura corrompida, consequência da primeira. Aqui, o primeiro siste-
como imanente ou como transcendente, isto é, pode ser conce- ma se inverteu, e o vemos revirado. Aqui, o espírito eterno e
bido sob dois aspectos diversos; porém, desde que saiamos do perfeito se precipitou na matéria caduca e imperfeita. O amor
relativo para o absoluto, devemos admitir a existência de Deus tornou-se físico, de corpos prontos a entrar em decomposição.
em um Seu só e único aspecto, que está além de qualquer dua- Aqui, a existência eterna se despedaçou no ciclo, em que gravi-
lismo e criação, ao qual denominaremos Deus absoluto. tam como duas metades os dois opostos vida-morte, encerrados
O ser vive, presentemente, imerso na cisão. Se concebe a no tempo. A felicidade naufragou na dor, o espírito infinito se
transcendência, é porque se coloca no aspecto imanência e, se enclausurou no limite do finito. A medida originária, incorrup-
concebe a imanência, é porque se põe no ponto de vista da ta, do ser não é o tempo, mas a eternidade; não é o finito, mas o
transcendência. Uma presume a outra, e ambas são complemen- infinito; não é o relativo, mas o absoluto; e assim para cada
tares, como duas metades do Uno indiviso. O ser é incapaz de qualidade humana, das quais só restaram ruínas. Explica-se
conceber fora de relações. Desaparecida a contraposição dos desta forma por que o instinto mais forte e a maior alegria do
contrários, a sua percepção e concepção se anulam. Para com- ser sejam a superação do limite. É que eles significam a reapro-
preender, pois, o Todo Divino, o Deus absoluto, é imprescindí- ximação do centro e o reencontro com o originário infinito.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 25
O universo que a ciência estuda é exatamente este inverti- Vejamos, pois, o processo de desagregação do Sistema – a
do, em que o Uno está pulverizado na infinita multiplicidade involução – que, mais tarde, retificar-se-á no processo oposto, o
fenomênica do relativo. evolutivo. Movemo-nos, agora, apenas dentro dos limites de
Pretender, com essa poeira conceptual, reconstruir o princí- nosso universo, isto é, no interior dos dois sistemas dimensio-
pio unitário e o esquema universal, a síntese máxima, tomando nais trifásicos acima mencionados.
contato com o mundo fenomênico através da observação e da Eis que os espíritos puros rebeldes, isto é, colocados em
experimentação, é simplesmente uma louca pretensão. É isto o posição sinistrogira, no sistema dextrogiro, provocam uma
que deseja fazer a ciência. Já em outra ocasião o dissemos, mas contração ou curvatura cinética na substância, que estamos ob-
só agora podemos saber as razões de semelhante absurdo. servando sob o seu aspecto de movimento. Inicia-se, então, o
Uma das vantagens, e mesmo novidade, da presente con- desmoronamento do ser ao longo da escala das dimensões. A
cepção está em ser uma síntese que pode fundir em um só sis- intuição sintética (visão direta da Lei – pensamento de Deus)
tema unitário o mundo físico e dinâmico ao espiritual, até contrai-se na simples racionalidade analítica e sucessiva, à gui-
agora inteiramente distintos, isolados, senão inimigos (ciência sa de volume que se dissipa em uma superfície. Então esta di-
e fé) entre si, sendo o espiritual negado definitivamente pela mensão (consciência) contrai-se ainda na dimensão tempo,
ciência. Mas somente com estas concepções é possível com- como uma superfície que se desfizesse em uma linha. Tais são
preender de que maneira o desmoronamento moral possa ter- as primeiras três etapas da descida: a superconsciência (espíri-
se tornado físico; de que forma, de uma cinética de conceitos to) transmuda-se em consciência (vida), e esta em tempo
(revolta dos espíritos) tenha podido nascer uma cinética invo- (energia). Mais para cima existirão outras fases e sistemas di-
luída da energia, que, por sua vez, congelou-se na matéria. O mensionais, dos quais e através de que o espírito pode ter sido
desmoronamento é moral enquanto permanecermos na dimen- precipitado, mas que não nos é dado conhecer. Assim, o siste-
são , consciência. Ele torna-se dinâmico quando o Sistema ma mais elevado, o II Sistema Dimensional, é demolido, e a
involve na dimensão inferior (mais afastado de Deus) da consciência, reduzida à linha no tempo, precipita-se ainda para
energia. E, finalmente, transforma-se em físico quando o Sis- os confins do sistema dimensional inferior, o I Sistema Dimen-
tema involve na dimensão matéria. sional, e mergulha então no volume, que para ela significa uma
Eis como surgem e se resolvem múltiplos problemas, tanto não-dimensão, isto é, anulação como consciência. O espírito
espirituais como físico-matemáticos, tendo todos a mesma raiz deixa, então, de existir como espírito, isto é, perde a consciên-
comum, o mesmo tronco unitário, que os coliga à mesma sínte- cia, anula-se como tal. Isto não significa a sua destruição, mas
se e a um idêntico princípio. apenas a sua anulação como vida e consciência na sua atual
Observemos agora as particularidades desse desmoronamen- forma de existência, passando a um estado de latência, no qual
to, que vai do espírito à matéria por uma linha contínua. Desta permanece sepultado. Assim, chegamos à matéria.
forma, obteremos igualmente as características da fase atual, evo- Começa, agora, um segundo período de demolição. O vo-
lutiva, inversa da precedente, involutiva, apenas com a reviravol- lume se contrai na superfície e esta na linha, que se anula no
ta de posição. Para compreender o desmoronamento e o caminho ponto. Assim o sistema dimensional inferior é também destru-
por ele percorrido em descida, na demolição do Sistema, é neces- ído. Com isto anula-se o ser, não somente como consciência e
sário que nos reportemos aos capítulos que tratam da evolução vida, como foi atrás descrito, mas também como forma inferi-
das dimensões, exposta em A Grande Síntese (Cap. XXXVI – or de existência, único meio que lhe restava, no fim do des-
―Gênese do espaço e do tempo‖, e Cap. XXXVII – ―Consciência moronamento do sistema superior, para continuar a existir
e Superconsciência. Sucessão dos sistemas tridimensionais‖). Em ainda que em condições inferiores à da forma de vida. A ma-
nosso universo, o nosso poder de concepção não abrange mais do téria era o túmulo em que o espírito se sepultava como morto,
que dois sistemas dimensionais trifásicos que, escalonados em di- em letargia. Agora, o túmulo também se anulou, porque o sis-
reção ascensional (para Deus) ou evolutiva, são: tema espacial foi anulado no ponto.
I Sistema Dimensional Trifásico: Procuremos compreender esse processo, repleto de ensina-
(Início: Ponto – não dimensão, o nada espacial) mentos em qualquer campo. Os capítulos acima mencionados
1a dimensão – linha; (XXXVI e XXXVII) de A Grande Síntese nos explicam como
2a dimensão – superfície; se constroem evolutivamente as dimensões mais elevadas, er-
3a dimensão – volume. guendo-se das inferiores. Este é o caminho inverso ao que foi
II Sistema Dimensional Trifásico: acima examinado; é o caminho de retorno. Abordemo-lo, para
(Início:Volume – não dimensão, consciência nula) percorrer assim o processo em todas as direções. O ponto é a
1a dimensão – tempo (percepção = linha) dimensão espacial nula. O universo espacial, nesta fase, encon-
2a dimensão – consciência (razão, análise = superfície) tra-se no vazio. A 1a dimensão, a linha, obtém-se elevando-se
3a dimensão – superconsciência (intuição, síntese = volume) uma perpendicular sobre o ponto. Que queremos significar com
tal afirmativa, além de qualquer representação geométrica?
Dimensão 1a 2a 3a Queremos dizer que, quando o centro do Sistema, no seu aspec-
Sistema Dimensão Dimensão Dimensão to cinético em que é aqui considerado, isto é, como movimento,
Sistema Dimensional irradia um pouco de si mesmo até ao ser, transfunde neste parte
Linha Superfície Volume de sua natureza e atributo. Então o ponto se move, e desse mo-
Trifásico – I
vimento nasce a linha. É princípio geral que se passa da dimen-
Sistema Dimensional Super- são inferior à superior, em qualquer nível, através sempre deste
Tempo Consciência mesmo processo, que, geometricamente, representamos como
Trifásico – II consciência
uma elevação da perpendicular sobre a dimensão inferior, pelo
Além destes dois sistemas está o inimaginável para a mente que esta é abandonada. Isto significa tão-somente um desloca-
humana. Embora, como dissemos no início do Cap. VI – ―Des- mento, por imissão cinética, da dimensão inferior em uma nova
moronamento e reconstrução do universo‖, o desmoronamento direção fora dela, que a leva além dos limites que a constituem.
provenha de dimensões superiores ao superconsciente, não po- Basta mesmo um pequeno deslocamento, contanto que se pro-
demos lhe traçar a análise, porque, ainda que se possa em parte cesse neste sentido, para que sejam superados os limites da di-
atingir a abstração físico-matemática, o fenômeno nos escapa, mensão inferior e alcançada a dimensão superior. Este é o sig-
porquanto dele nos foge qualquer possibilidade de representação. nificado que emprestamos aqui à expressão geométrica empre-
26 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
gada – elevação da perpendicular – expressão que adotamos rizar-se, congelar-se; e as mencionadas perpendiculares se
porque é concisa e de mais fácil representação. abaixam, em vez de se elevarem. Tudo se inverte no negativo.
Eis que a 1a dimensão, linear, atinge a 2a, superfície, através Enquanto antes passava-se para uma nova dimensão superior
do mesmo processo – perpendicular elevada sobre a linha ou, por imissão, por irradiação, provinda do centro, de novas quali-
também, deslocamento da linha em uma nova direção, fora da dades cinéticas e, portanto, com um movimento em novas dire-
precedente e, por conseguinte, do seu limite linear, e isto sem- ções, agora, na fase involutiva, de desmoronamento do Sistema,
pre por imissão cinética, por irradiação do centro do Sistema, ocorre o contrário. Passa-se para uma nova dimensão inferior,
DEUS, motor universal. É facilmente imaginável, tanto no sen- não pela interrupção da irradiação central, pois que Deus é
tido físico como no moral, uma semelhante emanação dinami- sempre benéfico, para onde quer que irradie, mas sim por des-
zante que, alcançando o ser, seja qual for o plano em que este gaste do Anti-Sistema, em virtude justamente do atrito por ele
se situe, possa imprimir-lhe um novo movimento, que o eleva à sofrido nessa irradiação benéfica, de modo que o bem, para ele,
dimensão superior. Da mesma forma, é fácil imaginar que, agora, em posição retrovertida, transmuda-se em mal e a potên-
quando, ao contrário, o ser é posto à margem de semelhante ir- cia construtora torna-se destruidora.
radiação (veremos depois como), desenrola-se o processo in- Sob esse impulso dinamizante, assim invertido, em assalto
verso, dado pelo abaixamento da perpendicular, isto é, contra- destruidor para os anti-sistemas (cuja culpa só lhes cabe, por se
ção de dimensão, processo em que o ser cada vez mais se con- terem posto contra a corrente), eles, para continuar a existir, re-
fina nos limites do próprio plano, dos quais antes se estava li- sistem, conseguindo-o através da contração crescente em torno
bertando. Nasce, assim, a superfície. do seu centro, ―eu‖ do sistema. A universal substância anima-
Atinge-se a 3a dimensão espacial, volume, pelo mesmo pro- dora do Todo, que agora observamos na sua natureza cinética,
cesso. Eis o volume, estando completo o primeiro sistema. fica assim isolada nestes antissistemas, fechados em si mesmos
Da mesma forma, pelo princípio de analogia e dos esque- e arredados da universal fonte do ser: o centro – Deus. Não po-
mas de tipo único, segue o processo da construção do sistema dendo ela mais alimentar-se do exterior, porque o Anti-Sistema
trifásico superior. No volume ou matéria, dimensão espacial está fechado e isolado, a substância cinética busca alimento e
completa, a 1a dimensão conceptual superior é nula. Mas, ele- vida restringindo cada vez mais em derredor do único centro do
vando-se uma perpendicular sobre o volume, através da imissão qual possa recebê-lo e que representa tudo o que lhe restou da
de novo potencial cinético pelo centro radiante, o volume se divina potência de que se destacou. Mas ele não é Deus, e sim
move. Nasce a energia na sua dimensão tempo, a 1 a do novo um centro menor, que se exaure. Abaixam-se, por isso, progres-
sistema trifásico, correspondente à reta. Os esquemas se repe- sivamente, todas as perpendiculares, cuja elevação, sob a irra-
tem analogicamente nas fases correspondentes do sistema infe- diação divina, permitirá ao ser subir para Deus. O movimento
rior ao superior, seguindo os mesmos princípios. Chegamos, as- se retrai, involvendo; a substância tende a perder a sua originá-
sim, à consciência linear, que ainda não pode expandir-se além ria e divina natureza cinética, para congelar-se em uma imobili-
da linha do seu transformismo e só conhece o seu isolado pro- dade crescente. Os anti-sistemas ficam assim sujeitos a um pro-
gredir no tempo. Com o mesmo processo, que chamamos ele- cesso de contração progressiva. E que significa contração? Sig-
vação de perpendicular, isto é, por imissão cinética, atinge-se a nifica sempre maior curvatura cinética, isto é, curvatura das tra-
consciência (vida), correspondente à 2a dimensão do sistema jetórias constitutivas do sistema cinético de que se compõem
espacial: a superfície. Fase subumana e humana, em que a todos os seres, desde o plano físico ao espiritual. Eis a razão pe-
consciência linear se deslocou em novas direções laterais e pô- la qual o espaço é e deve ser curvo, posto que ele não represen-
de percorrer, além da própria, também o transformismo de ou- ta senão uma fase do ser, sujeito a esses processos. Eis por que
tros fenômenos; sabe distinguir-se deles, aprende a dizer ―eu‖, a ciência pode falar de espaço em expansão ou contração. Eis
projeta-se no exterior, observa e julga. Estamos na fase racional por que também o tempo deve ser curvo e retornar inteiramente
analítica. Movendo-nos ainda em novas direções, por meio do ao ponto de partida. Os retornos cíclicos e periódicos que se ve-
que chamamos elevação de perpendicular, isto é, imissão ciné- rificam por toda parte confirmam esse fato.
tica e novo movimento, entramos na 3a dimensão do sistema Agora podemos melhor compreender a técnica observada
conceptual, que corresponde ao volume. Atingimos o campo do no fim do capítulo precedente, pela qual se dá a destruição dos
espírito, da intuição sintética, da visão direta da Lei, do pensa- espíritos maus, nos quais se personifica o mal. Eles são anti-
mento de Deus. Por tudo isso, compreende-se como seja a ação sistemas que se isolam e se imobilizam cada vez mais, por
dessa irradiação do centro do Sistema, isto é, a imanência de progressiva curvatura, até se anularem. Há uma descida de di-
Deus nele, que opera a evolução, a reconstrução do universo, a mensão em dimensão, da fase superconsciência à nossa cons-
sua redenção. Vemos, assim, como a originária lei do amor ciência racional, à fase de consciência linear (tempo). Deste
atinge toda a sua plenitude e como o ponto de partida, Deus, modo, o espírito, reduzido de uma estrutura volumétrica à de
tudo reconduz ao ponto de chegada, Deus. superfície e, enfim, à linear, está definitivamente sepultado
O exame desse processo nos exprime claramente o desen- como consciência, anulado na matéria, sua última forma de vi-
volvimento do fenômeno. Podemos agora, invertendo o cami- da, sem consciência. Ele pode continuar a existir assim, nega-
nho, compreender melhor o processo oposto, do desmorona- tivamente, ou então, desde que o deseje, inverter a rota para
mento, do qual pretendemos ocupar-nos em detalhes, observan- subir e evolver. A fase humana do mal não é a dos níveis mais
do-o mais de perto. O Sistema é um edifício regido pela radia- baixos. Em qualquer deles, porém, o ser está sempre diante de
ção dinamizante que emana do centro. Quando, na ordem uni- uma alternativa: retroagir, voltando a subir para o bem e para o
versal dextrogira, os elementos se isolaram pela revolta, eles centro-Deus, ou então continuar a descer até ao aniquilamento.
então se tornaram sinistrogiros, arvoraram-se em centro, com a Neste último caso, por meio do habitual processo, abaixar-se-á
pretensão de irradiar, mas só conseguiram fazê-lo no exíguo a perpendicular, cuja elevação erguera da superfície ao volu-
círculo dos seus satélites ou elementos sequazes. A grande me, conduzindo de novo este, como por achatamento, à super-
emissão cinética dinamizante, emanada do verdadeiro e máxi- fície. Depois se abaixará a perpendicular que elevou a linha à
mo centro, Deus, não pode agir para eles como impulso dina- superfície, e esta, como que se achatasse, reduzir-se-á à linha.
mizante, pelo contrário, como eles se tornaram de sinal oposto, Finalmente se abaixará a perpendicular que elevou o ponto à
ela só pôde atuar como atrito, resistência, impulso frenador, isto linha, e esta, como que achatando-se, reduzir-se-á ao ponto.
é, como força não construtora, mas demolidora do Sistema. Estamos no final do processo. A contração se completou, o
Começou, então, ele a demolir-se automaticamente, plano por Sistema se anulou, todo o edifício se reduziu a um ponto, a
plano. Ao invés de expandir-se, contrair-se; em lugar de vapo- uma não-dimensão. O núcleo, último reduto do Anti-Sistema,
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 27
continuará ainda como rebelde sinistrogiro, girando sobre si fenômeno expresso em termos geométricos espaciais. Mas, na
mesmo. Mas, por fim, mesmo essa reserva cinética será destru- realidade, a substância do fenômeno é abstrata; é um pensamen-
ída pelo atrito contra as radiações dextrogiras dominantes, e to reduzível a cinética, que pode involver no dinamismo linear
esta última substância componente também será retomada na da energia e aprisionar-se no dinamismo fechado da matéria.
corrente positiva do ―eu sou‖. É desta maneira que os anti- Então, o que se contrai nas demolições do espaço não é o volu-
sistemas que quiserem persistir como tais são submetidos a um me ou a matéria, mas sim a construção criada por esta ideia abs-
processo progressivo de achatamento até à sua destruição, en- trata e nela projetada. O que se contrai não é apenas o movimen-
quanto a substância que os compõe, sendo indestrutível, vem a to constitutivo da forma, mas o seu princípio abstrato diretivo, o
ser utilizada em favor do sistema Uno-Deus, pois que a des- pensamento que a isso preside. Como se vê, caímos em uma
truição é da individualidade (eu), e não da substância. terminologia que soa demasiado estranho à nossa mente habitu-
Essa é a técnica que garante a destruição do mal e a vitória ada a outras medidas e a outros conceitos. Estamos frente ao
final e absoluta do bem. inimaginável e inexprimível, isto é, à progressiva demolição do
◘◘◘ espaço por demolição do conceito diretivo do fenômeno espaço,
Para tornar compreensível um fenômeno substancialmente como se a fórmula matemática que o rege fosse gradativamente
abstrato, que abrange todas as formas do ser, do puro espírito à perdendo os seus elementos constitutivos, simplificando-se cada
matéria, recorremos a representações geométricas, que nos fa- vez mais, desprovida de seus componentes, até transformar-se
cultaram a possibilidade de formar uma imagem de tudo. Mas em ‗0‘. O zero seria o nada conceptual e matemático, o momen-
já é tempo de nos darmos conta de que elas não constituem a to final e conclusivo na anulação do desmoronamento do siste-
realidade, não passando de uma representação nossa. Cabe, en- ma sinistrogiro. Uma representação mais concreta do fenômeno
tão, indagar qual é a verdadeira fisionomia do fenômeno da é impossível. Esta é, talvez, uma prova em favor da tese aqui
destruição do edifício do ser, assim como a do fenômeno in- sustentada, pois nos diz que estamos absolutamente fora do an-
verso, de sua reconstrução. Será essa abstração facultada ao tropomorfismo, a que tudo tendemos reduzir para nossa como-
homem, de modo a fazê-lo apreciar o fenômeno em sua subs- didade de concepção. Na realidade, é lógico que as visões do
tância? Que haverá de verdadeiramente real por trás da repre- universo serão tanto mais verídicas quanto menos sejam antro-
sentação que dele demos? pomorficamente imagináveis. Assim deve ser para a demolição
Para sermos mais compreensíveis, tivemos de encarar o do espaço, visto que ela não ocorre na fase em que vive o nosso
Todo no seu aspecto cinético. Deste ponto de vista, o impulso universo e, como realidade inimaginável, está fora do alcance da
() representa um dinamismo livre em todas direções possí- experimentação e observação. Das coisas não podemos conceber
veis; a energia () representa um dinamismo encarcerado na a realidade absoluta, mas só em relação a nós mesmos.
transmissão linear por ondas; a matéria () representa um di- Concluamos. Embora por intermédio de representações de
namismo completamente fechado em trajetórias que retornam valor relativo, podemos formar uma ideia da real estrutura ín-
sobre si mesmas. Na realidade, então, também notamos um tima, funcionamento e transformismo de nosso universo e de
processo de curvatura do Sistema. Nas grandes dimensões, a nossa posição nele. Nós, seres humanos, estamos a meio cami-
energia segue linhas curvas até ao fim, e estas retornam ao nho, suspensos entre o abismo do aniquilamento e o cume da
ponto de partida. Assim, o espaço é curvo, como o é também a perfeição. Sendo livres, vamos para onde quisermos. Natural-
estrutura atômica e planetária. Portanto tudo é curvo, porém mente, vemos o universo consoante a posição que nele ocupa-
não com uma curvatura estática e constante, mas sim em ex- mos. Damos importância ao universo físico porque nele se
pansão e contração, por trajetória espiralóide. Eis a trajetória apoiam nossos pés, mas pouco discernimos o universo espiritu-
típica dos movimentos fenomênicos (vide A Grande Síntese, al, que, se quisermos evolver, representa a nossa vida de ama-
fig. 4, Cap. XXV). Tudo, pois, tende a expandir-se ou a contra- nhã. Mas, agora, em virtude do que dissemos, estamos aptos a
ir-se: esta é a respiração do universo, em dois tempos opostos. ter desta visão o panorama completo do Todo. Vejamo-lo.
E tudo isto confirma e explica a nossa precedente representa- Transpondo os limites da estreita visão focada somente no
ção geométrica. Mas o fenômeno, na sua substância, deve po- universo físico e dinâmico, veremos o Todo como um sistema
der assumir infinitas formas e ser susceptível de infinitas re- bipolar que – repetindo, como tudo o que existe, o esquema má-
presentações. Uma delas, porém, que tenhamos escolhido é su- ximo – pode deslocar-se para um ou outro dos seus polos e só
ficiente para nos fazer compreender o seu andamento e a sua existe realmente enquanto oscila entre os seus dois extremos
fisionomia. Qualquer seja o ponto de vista, trata-se sempre de opostos. O sistema do Todo possui, portanto, dois polos para os
uma inversão para o negativo, que pode manifestar-se como quais tende: um, para atingir a plena existência; outro, para atin-
congelamento ou solidificação cinética, como contração ou gir o aniquilamento. Esses polos podem chamar-se positivo e
curvatura do Sistema, como um aprofundar-se do espírito na negativo: do ser, em Deus; do não-ser, em Satanás. Ao primeiro
matéria, uma destruição da consciência, e assim por diante. se sobe evolutivamente, por . O sistema negativo não é
Certo é, no entanto, que pudemos aqui fundir em unidade to- senão a contraparte do positivo, com o qual forma uma unidade.
dos os fenômenos, desde o moral da queda dos anjos até à pro- Ele é, por sua natureza, destinado à anulação em favor do se-
gressiva demolição do espaço a um ponto; desde o da involução, gundo, que, por sua natureza, está fadado à afirmação e ao triun-
ou criação, até ao da evolução. Ora, o denominador comum en- fo final. O ser poderá oscilar, mas, no fim, deve tomar uma dire-
tre fenômenos para nós tão distantes um do outro, não pode dei- ção e sofrer as consequências da sua livre escolha. Os dois polos
xar de ser um conceito que, para ter valor universal, deve ser de são dois extremos a que tudo deve chegar. Quem sobe segue
natureza extremamente abstrata, além do concebível humano. uma curva que se abre, em expansão, dilatando-se a tal ponto,
Eis realmente o que existe por trás da representação que demos que atinge o infinito em Deus. Quem desce, segue uma curva
ao fenômeno: uma abstração que, para o homem atual, se perde que se fecha em contração e que, restringindo-se sempre, acaba
no superconcebível. A ciência se encontra em condições idênti- no vazio, em Satanás. Quer no positivo, quer no negativo, o Sis-
cas ao definir a substancial e última estrutura do átomo, só nos tema obedece ao mesmo princípio da curvatura cinética. Embora
podendo dar uma equação matemática. a representação geométrica não nos dê a substância do fenôme-
Deste modo, limitando-nos apenas à demolição do espaço no, ela, contudo, no-lo torna tão claramente imaginável, que po-
(volume) até ao ponto, o conceito de progressivo achatamento demos dele fazer um esquema gráfico. Devemos ao princípio
de dimensões é puramente representativo. Certamente é mais fá- das analogias e ao dos esquemas em tipo único a possibilidade
cil de imaginar, com a nossa psicologia concreta e sensória, um de reproduzir em nosso plano, ou seja, em nosso imaginável,
28 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
uma estrutura universal que, de outra forma, estando fora desta Como já foi dito em A Grande Síntese e pouco acima, em
idealização, na zona do inconcebível, seria para nós inacessível. nosso universo () e em nossa fase, que é a evolutiva (vai de
Temos, portanto, uma cinética, de um lado, em abertura e, – a +), os três estados sucessivos da substância S são: ma-
de outro, em convergência sobre si mesma, fechando-se. De um téria=, energia=, espírito=; que, com o simbolismo aqui
lado, o ser se dinamiza, potencia-se e se liberta. Eis o progres- adotado, serão respectivamente:
so, superação de dimensões (a técnica que progressivamente S0, S1, S2.
supera o limite espaço e tempo). Isto está no instinto e constitui
a alegria e o triunfo da vida. De outro lado, esta se contrai, con- O conjunto dos universos 1, 2, 3 etc. forma , que em
gela-se e imobiliza-se. Eis por que os anti-sistemas sinistrogiros símbolo será: =. Naturalmente, tudo isto não diz respeito à
se enfraquecem, por não poder, como negativos que são, usu- parte do Sistema que permaneceu íntegra, a que não desmoro-
fruir da divina irradiação positiva. Eles ficam, então, isolados nou pela revolta e queda dos anjos. Essa parte continuou na sua
no Sistema e imobilizados pela sua curvatura cinética progres- perfeição, sem tomar o caminho do vir-a-ser (transformismo
siva, acabando afinal desgastados pelo atrito contra a corrente, involutivo – evolutivo).
anulados e reduzidos ao ponto, não-dimensão. Assim consoli- Ora, pelo princípio de liberdade já admitido, que aqui é de
da-se a fratura e se dá a reabsorção do dualismo do Uno – triun- liberdade de movimento no transformismo em um instante
fo final do Sistema sobre o Anti-Sistema. Eis a visão completa genérico, encontraremos em  todos os estados possíveis des-
do universo uno, regido por um princípio único, que se inverteu de S– até S+. Mas entre eles haverá a seguinte diferença: na
em consequência da revolta da criatura, mas apenas para endi- 1a fase, descida involutiva, os estados da substância se trans-
reitar-se de novo; que se despedaçou, mas somente para reuni- formam segundo a lei supradita de S+ para S–; na 2a fase, de
ficar-se ou, onde o ser não quiser a existência, anular-se. ascensão evolutiva, os estados da substância se transformam
Desta forma, foi enquadrada e ampliada a concepção de A de S– para S+.
Grande Síntese, ficando completa a visão do Todo. Vimos que, em termos de dinâmica, a revolta consistiu em
◘◘◘ introduzir no sistema de forças originário dextrogiro (positivo)
Vamos agora retomar em síntese os conceitos até aqui ex- um vórtice de forças sinistrogiras (negativas), funcionando
postos, exprimindo-nos não com símbolos, mas com fórmulas como Anti-Sistema, menor no Sistema. Então, na 1 a metade do
matemáticas. Podemos, assim, contemplar de uma só vez toda a ciclo (fase involutiva, de desmoronamento) atua e domina o
visão da existência, do princípio ao fim. elemento negativo, tendente ao estado – (caos, plena realiza-
Todo o processo involutivo-evolutivo poderia ser represen- ção do Anti-Sistema), o que quer dizer que é este Anti-
tado por um círculo, cuja metade direita exprime o período ou Sistema, constituído de vórtices sinistrogiros, que desgasta em
fase de ida em descida ou desmoronamento do Sistema, e cuja seu favor o sistema dextrogiro de forças, enriquecendo-se com
metade esquerda exprime o período ou fase de retorno em as- esse desgaste. Atingido no ciclo, porém, o ponto crítico de sa-
censão ou reconstrução do Sistema. Neste, que é o ciclo do turação no negativo, o processo inverte-se. Na segunda meta-
transformismo, o ponto de partida e o de chegada coincidem. de, é ativo e domina o elemento positivo, oposto, tendente ao
Esse é o polo positivo do Sistema, do qual se parte e ao qual se estado + (ordem, realização plena do Sistema), o que signifi-
retorna, atravessando os seus antípodas no polo negativo. ca que é o sistema dextrogiro que desgasta em seu proveito o
Nas gravuras 1, 2, 3 etc. de A Grande Síntese, só foi anali- anti-sistema sinistrogiro, enriquecendo com o desgaste deste. E
sada particularmente a segunda metade do ciclo, a evolutiva, assim, após haver atingido no ciclo o ponto crítico de satura-
que vai de – para +, aquela que agora estamos vivendo, ten- ção no negativo, agora se alcança o correspondente no positi-
do sido deixado de parte o estudo da sua primeira metade, a in- vo, ponto que, como vimos, coincide com o de partida, mercê
volutiva, que vai de + para –. Mas o semiciclo evolutivo é do que, o sistema desmoronado acaba, finalmente, por encon-
composto de várias criações ou universos 1, 2, 3 etc., ex- trar-se em um estado em que tudo está perfeitamente refeito e
primindo-se por  o seu conjunto ordenado ou organismo de reconstruído. É natural que as duas fases de desgaste e pro-
universos (cfr. Cap. XXIII de A Grande Síntese e suas figuras). gressão devam ser inversas e complementares, como as duas
Tendo presentes as referidas figuras e conceitos, procuremos metades que se equilibram e compensam em um sistema único,
desenvolvê-los com formulação matemática. Indicando por S a dividido em dois períodos equivalentes, um de ida e outro de
substância e com o índice numérico colocado abaixo o estado retorno. Isto corresponde também a uma necessidade lógica e,
em que ela se encontra, substituamos os símbolos usados em A além de tudo resolver, satisfaz a razão.
Grande Síntese pelos seguintes: Todo o processo se reduz a uma elaboração íntima de , que
do estado de + transforma-se, pelo desmoronamento, até che-
–y=S-2 ; –x=S-1 ; =S0 ; =S1 ; =S2 ; +x=S3 ; +y=S4 ; etc. gar ao estado de – e supera este, autorreconstruindo-se, até re-
Então o processo involutivo no tempo (tempo que já defini- tornar ao estado originário +. E sabemos que + significa o
mos como ritmo do vir-a-ser ou do transformismo fenomêni- estado orgânico de perfeição, de ordem, da criação originária,
co), para um elemento isolado, poderá ser representado assim em que Deus, o bem a felicidade e o amor triunfam; como tam-
(deve-se ler a expressão da direita para a esquerda, apresentada bém sabemos que – expressa o estado de desorganização, de
desta forma para melhor compará-la com as semelhantes das imperfeição máxima, de caos do universo desmoronado, em que
linhas seguintes): Satanás, o mal, a dor e o ódio triunfam. Assim como a criação
de origem foi uma construção orgânica feita por Deus em Seu
S–  ...  S–2  S–1  S0  S–1  S0  S1  S0  S1  S2 seio (o Todo no Todo), também essa elaboração do desmorona-
 S1  S2  S3  S2  S3  S4  ... S+ mento e reconstrução, indo da ordem ao caos e do caos à ordem,
Esta expressão significa que o elemento substância se trans- ocorre sempre no seio de Deus (o Todo no Todo), ou seja, está
forma do estado de máxima evolução (S+) no de máxima invo- compreendida no âmbito da circunferência que fecha o ciclo de
lução (S- ). ida e volta. Em outros termos, é sempre a mesma substância do
De outro lado, o processo evolutivo poderá ser representado Todo-Deus que assume, nos vários estados de , nosso univer-
assim: so, as formas de , , , aparecendo-nos em cada um deles essa
substância segundo o seu estado de transformismo.
S–  ...  S–2  S–1  S0  S–1  S0  S1  S0  S1  S2
É assim, pois, que todo o processo se executa, aumentan-
 S1  S2  S3  S2  S3  S4  ... S+
do sempre no semiciclo involutivo a transformação de S+
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 29
para S– e, no semiciclo evolutivo, a transformação de S – IX. CONFIRMAÇÕES EM NOSSO MUNDO
para S+. Deste modo, ao término do semiciclo involutivo, a
substância de  terá assumido totalmente o estado S –; e, ao ―Portae inferi non preavalebunt‖ 5. Justo. Mas por que? Só
término do semiciclo evolutivo, a substância de  terá assu- agora podemos compreender as razões. A concepção dualística
mido totalmente o estado de S+ (ordem). acima exposta nos revela que, ao lado das forças boas do Sis-
Analisando então  nos instantes extremos (máximo e mí- tema, existem as satânicas do Anti-Sistema, que procuram in-
nimo) do ciclo e em um instante genérico situado tanto no se- verter todo o Sistema, para arrastá-lo igualmente na própria fa-
miciclo da sua involução como também no semiciclo da sua tal destruição. Mas em vão! A estrutura do Todo nos diz que o
evolução, que são representados com os símbolos: mal está irremediavelmente condenado em virtude da própria
(tp) = instante inicial (princípio) do ciclo de delta; posição por ele assumida no Sistema e pela própria natureza
(tgi) = instante genérico do semiciclo involutivo de delta; deste. O seu reino é periférico, está na forma. Ele pode encar-
(t max i) = instante máximo final do semiciclo involutivo niçar-se contra os efeitos, mas as causas primeiras estão além
e inicial do semiciclo evolutivo de delta; do seu assalto. Não ele, mas somente Deus detém o timão da
(tge) = instante genérico do semiciclo evolutivo de delta; grande nave do universo.
(t max e) = instante máximo final do semiciclo evolutivo e Na estratosfera do pensamento está, pois, a grande paz das
final também de todo o ciclo delta, instante em que tudo re- coisas eternas. Ali, Satanás não chega, e tanto mais lhe fugire-
torna ao estado inicial de perfeição; mos quanto mais subirmos. Mesmo no reino da matéria, a sua
vitória está encerrada no tempo. A eternidade supera e vence o
teremos os estados da substância de  nos vários instantes da- tempo. Mas, por ora, a Terra é um dos seus reinos. O nosso
dos por: mundo faz parte do universo desmoronado, e, por este motivo,
(tp) = S+; isto é, toda a substância se encontra no estado a vida se desenvolve aqui em uma atmosfera de revolta, de mal
S+; e dor. Aqui, as forças satânicas podem manifestar-se, isto é,
(tgi) = S+ ... S4  S3  S2  S3  S2  S1  S2  agir em sentido sinistrogiro, e, por isso, as vemos exprimirem-
S1  S0  S1  S0  S–1  S–2 ...S–; isto é, em um ins- se na pulverização de tudo no relativo. Dividir a unidade, fraci-
tante genérico de involução da substância, encontramos oná-la cada vez mais, até à sua destruição, este é o impulso de
contemporaneamente todos os seus estados, que se trans- Satanás, com objetivo de demolir o sistema dextrogiro, unifica-
formam em S-; dor, retificador, tendente à plenitude da vida. Eis porque na
(t max i) = S–; isto é, toda a substância do sistema des- Terra se eleva a barreira do limite a cada passo, sufocando a
moronado encontra-se no estado S–; alma anelante de infinito, de que nasceu e de que é feita. Eis o
(tge) = S– ... S–2  S–1  S0  S–1  S0  S1  S0 espaço dividido, que nos torna rivais. E o espaço em si mesmo
 S1  S2  S1  S2  S3  S2  S3  S4 ...S+; ou se- não tem limites! Eis o tempo seccionador, reduzido a medida de
ja, em um instante genérico de evolução da substância, en- esforço e de ganho (―tempo é dinheiro!‖) e o temor de que nos
contramos contemporaneamente todos os seus estados, que falte tudo. E o nosso espírito é feito para a eternidade! Eis a luta
se transformam em S+; pela riqueza e o anseio infinito da alma ligada às efêmeras ale-
 (t max e) = S+; isto é, toda a substância do sistema des- grias de um corpo caduco, quando riqueza e alegria são infini-
moronado exauriu o seu ciclo, atingindo o estado final S+, tas em Deus! Eis a um passo, ao alcance da mão, uma abundân-
para refundir-se, porque se tornou idêntica à parte do Sis- cia sem par, mas ser dela separado pela incapacidade de con-
tema que, não se tendo revoltado, não desmoronou. Em ou- quistá-la! Deus aí está e nos aguarda, no entanto não sabemos
tros termos, a conclusão de todo o processo, o resultado fi- alcançá-Lo por preguiça, ignorância e incapacidade de compre-
nal, é que toda a substância que se corrompera se restabele- ender! Que barreira tremenda é a nossa involução!
ceu, do estado S- para o estado S+. Isto significa o triunfo Estamos no reino da subversão dos valores. Tudo de calmo,
final do bem sobre o mal, de Deus sobre Satanás, com a eterno e estável faz-se agitado, fracionado, incerto. Tudo se torna
anulação do aspecto negativo e a afirmação absoluta do as- calculado, pensado, pesado, medido, disputado. Assim nascem a
pecto positivo da substância. miséria e a dor. Aí está o império do contingente, o afã de subdi-
Em termos matemáticos, todo o processo pode ser represen- vidir a atenção em particularidades, na análise sem fim do relati-
tado pelas duas expressões limites: vo. Eis o vórtice da civilização moderna, que, com espírito satâ-
nico, porfia por triturar o espírito entre as engrenagens de suas
máquinas; que, com a miragem de umas tantas vantagens materi-
Lim  = S– ais, destrói a maior riqueza da alma, que é a bondade. Vive-se,
assim, sob o terror de que falte tudo, quando tudo é infinito.
t  max i
Se fôssemos capazes de compreender que somos criaturas
de Deus, isto é, filhos do Pai Supremo, que o universo é cons-
truído para a nossa vida, primeira necessidade, e que esta é, por
consequência, sumamente protegida por nosso Criador, que nos
Lim  = S+ ama, não haveria razão para tantas e inúteis aflições.
t  max e É o Uno íntegro que aterroriza Satanás, que, não conseguin-
do destruí-lo, procura demoli-lo, subdividindo-o o mais que
pode. Percebe-se nisto uma íntima vontade de pulverização, pa-
A primeira nos representa o universo no polo Satanás, po- ra chegar à destruição. Fragmentar, triturar, dividir e atirar um
dendo ser chamada a fórmula do desmoronamento, que o pro- 5
cesso apenas atravessa. A segunda nos representa o universo no A frase foi extraída da VULGATA: ―Portae inferi non preavalebunt
polo Deus, podendo ser chamada a fórmula resolutiva do uni- adversus eam‖; ―As portas inferiores (do Inferno, do Hades) não preva-
lecerão contra ela‖, isto é, as forças inferiores, infernais não vencerão as
verso, momento em que o processo, que teve um início, terá um do bem. Ela faz parte do contexto evangélico de Mateus, 15:20, quando
fim, reintegrando-se tudo no estado perfeito de origem. Assim, Jesus Cristo se dirigiu a Simão Pedro, em misteriosa e solene revelação,
o princípio e o fim se reúnem em um ciclo que se fecha sobre si dando-lhe ciência de sua futura missão na terra. Aqui, Pietro Ubaldi atu-
mesmo, e o Todo, o infinito, Deus, permanece o que sempre foi aliza o conteúdo dessa remota revelação, reafirmando que as forças do
e será, e simplesmente ―é‖. bem jamais serão vencidas pelo mal. (N. do T.)
30 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
contra o outro, a dissensão, a contradição, a ânsia, o tormento, a pelo mal e a perfeição está no caos. A grande luta em nossa fa-
guerra, tal é o ideal subvertido de Satanás. se se trava entre os dois princípios e hierarquias, pela recons-
Se descermos das grandes visões sintéticas para a realidade trução do estado originário orgânico, partindo do estado inor-
quotidiana de nosso mundo, veremos que elas também são verí- gânico caótico, em que caímos e do qual evolvemos.
dicas aí, onde as teorias acima expostas encontrarão contínuas Por este motivo, as nossas hierarquias humanas são falsas e
confirmações. Nem mesmo se pode mesmo explicar e compre- fictícias, não correspondendo aos valores intrínsecos, pois, ge-
ender a nossa realidade a não ser em função delas. Por que, por ralmente, elas expressam mais a anti-hierarquia do Anti-
exemplo, o homem é tanto mais destruidor quanto mais involuí- Sistema do que a hierarquia do Sistema.
do? De onde deriva o instinto vandálico dos primitivos? É que Mas, também em outros campos, a evolução procede do ca-
quanto mais involuído o indivíduo, tanto mais próximo está do os à ordem. No plano social, o legislador humano repete o gesto
pólo negativo do ser e tanto mais afastado do positivo. Quanto de Deus, que enquadra a Sua criação na Lei. Legislador a prin-
mais for involuído, tanto mais na periferia do Sistema se encon- cipio armado de sanções ferozes e do terror das penas, para de-
tra o ser, tanto mais distante do centro genético de Deus, tanto pois apoiar-se, cada vez mais, na convicção, na consciência da
mais invertido no sistema oposto, de destruição. Assim pode-se utilidade de seguir a lei. Assim avança-se para a livre e espon-
compreender como era fatal que Cristo encontrasse o martírio na tânea observância, que substitui a coação. Quanto mais o indi-
Terra. Que mais pode encontrar aí quem, provindo do centro, se víduo é capaz de compreender, tanto menos severa se torna a
lança para a periferia, reino do Anti-Sistema? Aqui, a manifesta- disciplina, transformando-se sempre o legislador mais em ami-
ção do ser é a agressão e a destruição. Elas tiveram de defrontar- go que ajuda do que em um opressor. Assim também a ideia de
se com o amor de Cristo, que, com o amor, deveria vencê-las. Deus legislador abranda-se nesse sentido, com o progresso da
Que o princípio da destruição seja próprio da periferia do consciência dos povos. Desta forma compreende-se como o ter-
Sistema e o princípio genético seja próprio do centro, prova-o ror de um inferno feroz e eterno – ainda que, em Deus, essa
também o fato de que as formas da vida, para sobreviver, têm ideia ofenda o princípio fundamental do amor – tenha sido e se-
que, continuamente, travar luta, resistir a assaltos, suportar um ja uma necessidade psicológica para disciplinar o involuído.
ambiente hostil, em que se faz sentir uma ação destruidora em A visão do Sistema acima exposta explica-nos também um
seu exterior, enquanto, de seu interior, onde reside o princípio outro fato, ao qual já acenamos no Cap. III – ―Egocentrismo‖.
genético, que todo ser possui no íntimo, elas recebem continu- Por que o método do mal é oferecer primeiro a alegria e depois
amente recurso de reconstrução (defesas orgânicas, reparação afogá-la na traição da dor, enquanto o do bem, ao contrário, é
de tecidos etc.). A vida se manifesta, efetivamente, do interior exigir primeiro o esforço, para em seguida dar a justa e propor-
para o exterior: esta é a direção do fenômeno. Este se nos apre- cional recompensa? Tudo agora se torna lógico, pois se trata de
senta como uma floração contínua, por obra de um influxo posições opostas, nos dois polos contrários do Sistema. Os mé-
emanado de um imponderável no íntimo do ser, que faz pressão todos, efetivamente, são de oposição entre si. O primeiro con-
para manifestar-se no plano físico. Uma vez neste, fica sujeito a siste em sacar o gozo a crédito, sem a intenção de pagar; méto-
contínuos atritos e assaltos (sistema sinistrogiro), num desgaste do desequilibrado, desonesto, irresponsável, adaptado à consci-
lento até à morte, mas, sustentado por um íntimo impulso vital ência do involuído, que, em sua ignorância, é levado a fraudar,
(sistema dextrogiro), luta pela sobrevivência e prepara ao mes- pois crê ser isto possível e útil. O segundo antepõe o esforço à
mo tempo, com a reprodução, a imortalidade. alegria, a fim de que tudo seja merecido; método equilibrado,
Por tudo isso, a fadiga e a luta de viver são necessárias, por- honesto, de quem se sente responsável; método consentâneo
que da experiência nasce a evolução, que leva o ser a nível su- com a consciência do evoluído, levado, por haver compreendi-
perior. Encontramo-nos no ponto de atrito (dor) entre os dois do, a proceder com justiça, certo de que só isto é útil e que o
sistemas, devendo ser nosso o trabalho de reconstrução com o contrário é nocivo. No primeiro caso, gera-se a confusão tanto
desgaste do sistema sinistrogiro (o mal) em favor do sistema para o indivíduo como para o Sistema; no segundo, a sincerida-
dextrogiro (o bem). Devemos restaurá-lo, porque nós o destru- de está em toda parte. Cada qual coloca-se em um dado ponto
ímos. E a justiça de nosso domínio sobre os seres inferiores se do Sistema, segundo a própria natureza. Se for involuído, per-
explica pelo fato de que, com o nosso esforço, mais temos manece na periferia, com um tratamento relativo ao seu nível;
avançado no caminho da reconstrução. se for evoluído, ascende ao centro, com resultados opostos. O
Este árduo trabalho não pode ser executado pelo espírito Sistema subverte-se tanto mais quanto mais periférico for o ser.
senão nas zonas periféricas da destruição, onde a matéria ofe- Avizinhando-nos do polo negativo do ser, a livre lei moral
rece mais resistência e o ambiente é mais hostil. Ele, aí, tem do evoluído involve de tal maneira, que se precipita no deter-
que se submeter ao sacrifício e à dor, para promover a evolu- minismo da matéria. Já no fim do Cap. V, dissemos que Dante
ção, isto é, aquela elaboração para a qual as zonas mais calmas colocou Satanás no fundo do inferno, no centro da Terra. Aqui,
do centro não poderiam oferecer nem a oportunidade nem o a condensação física é máxima, como o é a pressão gravífica,
material. Mas outra razão ainda existe para isso. A queda foi ao passo que o purgatório se eleva no sentido oposto, utilizan-
no estado de matéria, e o ser deve ressurgir dela, através dela, do, como na técnica reconstrutiva do Sistema, o material pro-
carregando-a consigo, como seu corpo. A carga só poderá ali- duzido pela ação do mal, para caminhar rumo ao céu, ao bem,
viar-se pela sua purificação e reespiritualização, operada pela espiritualizando-se, à medida que se distancia da matéria. As-
dor. Decaído na matéria, ele deve reerguer esta parte decaída sim, também na concepção de Dante, o abismamento de Lúci-
de si mesmo, reconduzindo-a, com o próprio esforço, ao primi- fer é um meio para a formação do purgatório, instrumento do
tivo estado de pureza e perfeição espiritual. Por este motivo, a bem, meio de expiação. Desta forma, o mal, em última análise,
evolução do ser se processa na matéria. Por mais afastada que torna-se um meio utilizado para a libertação do próprio mal.
seja, essa projeção na periferia tende e serve para elevar o ser Os produtos da ação do mal, que escavou o abismo na Terra,
até ao centro. O Sistema, contra todas as resistências do Anti- servem para a edificação de um monte fora dela, no qual se
Sistema, é sempre construtivo. prepara a realização dos fins do bem.
Essa evolução procede do caos para a ordem, em todos os Se soubéssemos ver em profundidade, poderíamos bem dar-
planos. A primeira criação de espíritos foi um estado orgânico nos conta deste fato, que se repete em tantos eventos de nossa
perfeito, onde reinava uma ordem hierárquica. O desmorona- vida, pelo qual o mal acaba por gerar o bem.
mento convulsionou essa ordem em uma hierarquia subvertida, Os nossos juízos sobre a ação divina se detém na superfície
uma anti-hierarquia do Anti-Sistema, contraposta à hierarquia e se limitam ao momento, mas ainda assim pretendemos com
do Sistema. Na anti-hierarquia, o deus é Satanás, o bem é dado eles concluir a respeito de problemas que desconhecemos. Fre-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 31
quentemente, não se pode conseguir algumas construções a não Que sucede, podemos agora indagar, quando um homem
ser por reação ao mal, que é o impulso a que o involuído mais pratica o mal? A técnica do Sistema, como acima foi observa-
obedece. Então, a força mobilizada não pode ser o bem, mas do, diz-nos que ele, na sua ignorância, crendo praticá-lo em
apenas o mal. Por isso, as guerras, que parecem tão inúteis e seu favor, na realidade opera em seu detrimento. Praticar o mal
homicidas, são muitas vezes úteis para determinar entre inimi- significa dispor-se a marchar contra a corrente do Sistema, in-
gos, que de outra forma se odiariam, a necessidade de coalizão troduzir-se na corrente inversa, isto é, enveredar pela via da
com o objetivo de defesa comum, levando-os à unificação, uma autodestruição. A vantagem imediata poderá dar-nos a ilusão
das grandes vias evolutivas que nos conduzem a Deus. de vitória, mas é necessário ver o que se paga por ela, o que ela
A sabedoria da Lei se revela com frequência ao excitar as nos vem custar em nossa ruína espiritual, isto é, em demolição
nossas possibilidades latentes, para que o bem, que está dentro de nosso ―eu‖. Isto significa inverter todos os valores da vida,
de nós, possa aflorar pelo nosso esforço. Por isso os assaltos ex- significa ser expulso e isolado do Sistema e assumir nele, uma
teriores do mal e da dor agem sobre todos indiscriminadamente. vez que dele não se pode sair, porque ele é o Todo – nem
O efeito é que difere, dependendo sobretudo da reação que a na- mesmo Satanás o conseguiu – uma posição inversa, em que a
tureza de cada qual estabelece. Se o indivíduo for um involuído, riqueza se transmuda em miséria, o conhecimento em ignorân-
tudo para ele pode tornar-se instrumento de perdição; ao contrá- cia, a liberdade em escravidão, a alegria em dor etc. E, efeti-
rio, se for evoluído, tudo se lhe transforma em meio de elevação. vamente, os triunfos do mal são efêmeros, ainda que as apa-
O primeiro, vendo-se acuado pelo mal, reage com o mal, des- rências momentâneas nos iludam. Não nos estagnamos no pre-
cendo mais ainda. O segundo reage com o bem, elevando-se. A sente. A vida eterna é longa, e em sua extensão tudo se paga.
mesma força pode, assim, produzir dois efeitos opostos, con- Quem entra na corrente sinistrogira, por mais que seja o seu
forme o ser com que colide, mas, em qualquer caso, põe a des- poder como centro autônomo, está sempre em uma corrente
coberto a natureza do indivíduo. Isto significa tendência a refor- que tem contra si todo o universo. Nem mesmo Satanás, o má-
çar-lhe as qualidades, sejam quais forem elas, para assim resol- ximo rebelde, pode vencer Deus.
ver o dualismo da existência, quer para o bem, volvendo a Deus, Vitórias encerradas no tempo, maculadas de traição e pres-
quer para o mal, onde o ser se anula longe de Deus. Isto nos evi- tes a ruir, porque fazem parte do sistema da revolta e do desmo-
dencia que a fratura dualista do Sistema tende verdadeiramente a ronamento. ―Portae inferi non preavalebunt‖. Quem pratica o
consolidar-se, fundindo-se no Uno originário, que se reconstitui mal isola-se no Todo e é envolvido pelo Sistema para corrigir-
integralmente na sua primeira unidade. É verdade que o Sistema
se ou combatido para ser anulado, qual tumor patológico. Qual-
fracionou-se, mas em seu seio permanece a imanência da causa
quer que seja a vantagem aparentemente obtida, a posição que
primeira que o gerou, que representa um impulso permanente-
dela resulta é um grande malefício para o ser que a escolhe. Eis
mente ativo na sua reconstituição integral.
como o mundo moderno, por não haver compreendido nada da
É assim que tudo, inclusive as forças negativas, é compelido
estrutura do universo, está laborando em próprio dano. E terá
pelo Sistema a cooperar na reconstrução positiva. Qual maior
de pagar por si mesmo, como é lógico no Sistema. Ainda não
prova do que esta apenas aparente corrupção do Sistema, esta
aprendemos a compreender que toda infração da Lei é uma
sua permanente integridade substancial? Se, em seu aspecto ex-
subversão parcial do Sistema, que toda culpa que se repete es-
terior, o nosso universo parece degradado, na sua estrutura ín-
tabelece a inversão das correntes das forças do bem nas do mal,
tima ele é, contudo, são e poderoso, equilibrado e sábio, incor-
em nosso prejuízo. Não conseguimos ainda entender que assim
rupto e perfeito, mesmo que os seus elementos negativos pare-
çam funcionar como resistência. Estes, em última análise, agem nos ligamos cada vez mais à dor, colocando-nos em uma posi-
como elementos positivos, colaborando à sua maneira, com sua ção revirada, de que não é possível sair senão endireitando-a
natureza invertida, efetivamente para o restabelecimento e com o próprio esforço. Explicam-se assim tantos destinos car-
triunfo do Sistema. Eis a que função criadora está votado um regados de impulsos negativos, que não podem parar de nos
erro que poderia se nos afigurar irreparável! A íntima e divina atormentar enquanto não forem completamente exauridos.
potência criadora não se extingue e tudo sabe criar de novo! O conhecimento da estrutura do Sistema e de nossa posição
Neste sentido, dizemos que, em nosso universo, a criação é nele, explica-nos o porquê da forma que assume em nosso
contínua, isto é, Deus, no Seu aspecto imanente, está permanen- mundo humano esse fator fundamental que é o amor. É natural
temente em atividade na obra da sua reconstrução. que, em um sistema corrompido, tudo ofereça o seu contraste
Que maior maravilha do que um sistema invertido no exte- em mal e dor. Do eterno e divino amor, ao qual se deve a gêne-
rior, na forma, mas que possui em seu âmago uma alma, repre- se de todas as coisas, só ficou, no grande naufrágio do ser, uma
sentada por Deus e por Suas criaturas obedientes, capaz de en- pobre caricatura dele aqui na periferia, onde nos encontramos.
direitá-lo e restabelecê-lo, fazendo de uma ordem decaída no O seu produto tornou-se caduco; a vida que ele gera não é a vi-
caos um caos que se reconstitui na ordem de um sistema orgâ- da eterna criada por Deus, mas uma vida fragmentada, sempre
nico? Haverá algo mais extraordinário do que, num universo ameaçada de precipitar-se na morte – a vida do corpo, a vida na
em que tudo está fragmentado e degradado, fazer dos escom- carne. Do amor humano, que é uma corrupção, uma derivação
bros um excelente material de construção e erguer das ruínas involuída do amor-divino, só pode emanar uma gênese imper-
um esplêndido edifício? O bem é tão central e forte no Sistema, feita, continuamente contrastada pelo mal e pela dor. Mas não
que será sempre o senhor. E o pobre mal rebelde, acreditando- nos esqueçamos de que no interior da forma remanesceu no ser
se vitorioso, é reduzido a banca de prova na oficina do bem. a originária centelha da gênese divina, o espírito ―que não nas-
Outra alternativa não lhe resta senão anular-se espontaneamen- ceu do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do
te, reconhecendo-se errado, para aderir ao bem, ou então con- homem, mas sim de Deus‖ (João: 1–13). O amor, quanto mais
sumir-se até a anulação, cedendo toda a substância de que se evolve da matéria e sabe subir da forma corruptível ao espírito,
constitui ao seu inimigo, o bem. A rivalidade só colima um ob- tanto mais se avizinha da incorruptibilidade originária. Somente
jetivo: a pacificação. É assim que o erro da criatura é honesta- os produtos do amor feitos mais de alma do que de corpo po-
mente guiado para a sua automática superação. A criação des- dem resistir à destruição que o ser encontra na periferia, por se-
moronou nas trevas, mas em sua profundeza permaneceu muita rem o resultado de um processo genético menos periférico, qual
luz. O espírito caiu no mal, mas em sua intimidade ficou o bem. a carne, e mais central, qual é o espírito, mais próximo de Deus.
Satanás desviou de Deus muitas almas, mas, no interior delas, Só o amor feito de alma pode sobreviver à morte do corpo.
Deus continua vivo, impulsionando-as para reconduzi-las a Ele. A própria forma que o amor assumiu na criatura nos fala de
◘◘◘ um universo desmoronado. Com a queda tudo se desmoronou,
32 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
inclusive o amor. O indivíduo é, assim, incompleto, uma meta- Nessa zona do ser, o amor também assumiu a cor dominan-
de. O ser completo forma-se de dois sexos, as duas metades que, te. Como se vê, há uma razão profunda pela qual o parto deva
reunindo-se, reconstituem a unidade cindida. Sozinho, o eu deve ser doloroso, mas não de ordem apenas fisiológica. É que a
sentir-se mutilado e perenemente à procura do termo oposto, gênese criadora não somente tem que dar ao ser uma vida fra-
somente com o qual pode completar-se, voltando a ser uno. Só gmentaria, mas também cumprir-se em posição negativa de
assim se pode chegar à recomposição da unidade partida, atin- dor, isto é, às avessas da originária em Deus, em que a gênese
gindo-se, através do amor, a gênese criadora. Quanto mais peri- é alegria. E o pouco de prazer que ficou no amor sexual não
férico o ser, tanto mais separatista e, portanto, mais egoísta no passa de uma ruína, de um fragmento, de uma antecipação da
amor, que assim é sempre menos amor. Quanto mais central for originária felicidade de criar em Deus. A alegria vem antes, e a
o ser, tanto mais é unificador e, portanto, mais altruísta no amor, dor depois, por isso mesmo que continua a repetir-se aqui o
que assim é sempre mais amor. O amor é o centro do universo! motivo originário da inversão, em que a divina alegria de criar
O amor evolve do egoísmo para o altruísmo, em vastidão, foi substituída pela dor da queda. A dor é ulterior, como uma
profundidade, potência e prazer. Ele deve tornar-se cada vez traição, tal qual se deu com a revolta, segundo já vimos ser a
mais semelhante ao amor de Deus e, quanto mais se lhe apro- regra na periferia, reino da ilusão, onde o mal nos embala pri-
xima, tanto maior o seu poder criador. O amor egoísta, pelo go- meiro com a miragem do prazer, para depois nos abandonar
zo próprio, que o caracteriza, é um amor separatista, é a contra- em um corpo que, apesar de mantido unicamente por este últi-
dição de si mesmo, é um amor degradado, encerrado em si pró- mo raio da divina emanação, corrompe-se e não resiste. O nos-
prio, em um mar de ódios, um amor que, distanciado de Deus, so mundo, tão ávido de prazeres, mas ignorante na arte de sa-
cresce em poder destruidor e involve para a autodestruição. ber buscá-los, não imagina absolutamente que o místico, em
Quanto mais a criatura inverter o modelo que deve imitar, tanto seus amores espirituais para com Deus e Suas criaturas, é o
mais ela se põe fora da Lei. Esta, então, se houve abuso do pra- mais sábio e o menos iludido entre os gozadores.
zer, contrai-se e nega o amor, que então fica fragmentado, tor- Eis a grande condenação do ser decaído: só poder partici-
nando-se o outro termo inacessível. Nascem, assim, em ambos par da divina alegria de criar através da dor. ―Crescei e multi-
os sexos, os invertidos, cuja personalidade tem os sinais opos- plicai-vos‖, porém não para gozar, como crê o mundo, mas sim
tos aos do seu corpo. Deste modo a Lei se revolta contra eles, para atravessar a dor e, assim, percorrer o duro caminho da as-
como eles se revoltaram contra a Lei. censão. Cresça e se desenvolva a vida! Esta foi a lei que ficou,
Qualquer violação, seja qual for o gênero, nos coloca em mas triturada na dor! Sede falanges, atados à roda da vida e da
posição inversa, condenados à carência correspondente ao morte, e que o ser aceite o prazer sexual, que o convida a su-
abuso. O ser se deforma, não a Lei. Ele permanece estropiado portar as agruras restantes! Deus bendiz a união dos sexos,
no patológico, portanto vulnerável. O mal fere aquele que o mas... existe o grande ―mas‖, para que o homem inconsciente
faz, não aqueles para os quais foi feito. Pretender gozar farta e não suponha que, ao casar-se, vai ao encontro de alegrias da
ilicitamente significa privação futura, consequente e proporci- vida, mas sim do sacrifício de evolver e fazer evolver. O ver-
onado sofrimento de recuperação. Impõe-se depois a recons- dadeiro conteúdo do matrimônio é levar o amor a evoluir da
trução na Lei, em que se deu a demolição, reconstrução com a sua forma egoísta, que pede prazer, à altruísta que, em dor e
própria dor, que outra coisa não é senão a originária alegria de tormento, dá por amor não a si, mas aos outros. É desta forma
existir, invertida pelo ser rebelde. A via da desobediência à que o amor se avizinha de Deus, elevando-se do plano animal
Lei é a autodestruição, pois que a Lei é a atmosfera de Deus, à função evolutiva de reconstrução espiritual do ser. Quem cria
sem a qual falta ao ser a respiração da vida. E o homem, por- apenas para o próprio prazer, mergulhará cada vez mais na dor,
que mais evoluído, portanto mais livre que o animal, pode pe- cada vez mais repelido para a periferia do Sistema. Quem usar
car muito mais e, por isso, sofrer mais, porque mais conhece e a inteligência, centelha divina, para fraudar a natureza, acredi-
mais ainda deve aprender a conhecer, tornando-se cada vez tando que espertamente lhe possa furtar prazer, inverter-se-á
mais ativo e responsável na Lei, cada vez mais investido na ainda mais dentro do Sistema, e agora sabemos o que isso sig-
função de piloto da própria nave. nifica. Eis como, do grande movimento da criação acima exa-
A morte e a dor são o tributo de todas as formas periféricas minado, chegamos aos casos da vida que mais de perto nos to-
de vida e, por conseguinte, também da vida terrena. Não existe cam. Vemos, assim, de que longínquas origens cósmicas pro-
outro meio de fugir dessas trajetórias extremas do Sistema, se- vém a lei moral que regula a nossa conduta de cada dia.
não restringindo-lhe as órbitas com o avizinhamento do centro, ◘◘◘
isto é, com a retomada da posição direita. Em nossa zona de vi- Repetimos nestes livros indefinidamente a utilidade da
da, a corrupção do Sistema não permite a afirmação do ―eu dor, único elemento de redenção. Ela é o nosso tributo, tam-
sou‖, que constitui a existência, a não ser pela negação intermi- bém no amor, que é, no entanto, a nossa maior alegria. O ins-
tente desta, que é a morte. Não se pode chegar ao ser senão per- tinto fundamental do ser é criar, eco longínquo do primeiro
correndo o não-ser em etapas inexoravelmente ligadas à própria impulso que Deus imprimiu a todos os seres e que é por eles
inversão, qual se desejou. Mas persiste o ser, que não pode repetido, revoluteando continuamente no mesmo ciclo e es-
morrer, porque é eterna centelha divina. Não pode morrer defi- quema fundamental do universo. Instinto que termina na dor
nitivamente como tal. Contudo, se deve viver, só pode fazê-lo e, no entanto, é irrefreável. Mais não se poderia dizer sobre
de maneira fragmentada, periodicamente submetido ao retorno este impulso que leva à alegria, mas fatalmente conduz ao so-
agoniante da morte e do nascimento. Eis a vida, originariamen- frimento, pois que este é o fundo da taça de todos os prazeres
te una e agora assim despedaçada. Essa precariedade, contudo, humanos. Uma força irresistível nos impele para a vida, com-
é a qualidade que lhe faculta a evolução, como único meio para pele-nos a gerar, mas lhe obedecemos apenas para alimentar a
que, a cada vez, ganhe em perfeição. O dano é assim, ao mes- morte. Não é este o último termo de toda a gênese humana?
mo tempo, remédio. Eis o doloroso ciclo incessante da vida e Esta é uma gênese que se exaure, que se cansa, porque está
da morte, das sucessivas reencarnações, de que só a evolução ruída a originária potência divina que lhe concedia indestruti-
espiritual nos poderá libertar. Na Terra, o princípio do ―eu sou‖ bilidade. Tudo na Terra se desgasta e exige contínua restaura-
(vida) mesclou-se ao do ―eu não sou‖ (morte). A Lei impõe que ção. Iludimo-nos pensando em reviver nos filhos e nos netos,
a unidade fragmentada se deva refazer laboriosamente, através mas o tempo se encarrega de tudo destruir, tanto nós indiví-
da dolorosa operosidade da existência: nascer e morrer, para re- duos como nossa progênie, e tudo se desfaz no pó de todas as
nascer e tornar a morrer. Esta é a lei atual. coisas, até à última recordação.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 33
O ser, aterrorizado em face do sacrifício de viver em uma nosso erro, que se chama culpa. A ideia do pecado nos leva à
existência despedaçada, em que o instinto originário é permanen- concepção de que ele implica uma punição, quase uma vingan-
temente traído, poderia furtar-se à vida. Mas também deste lado ça de um Deus que, com isto, egoisticamente defende a Sua or-
não é possível evasão. Estaria na condição de um faminto que, dem violada e a justiça por Ele representada, defendendo mais a
não podendo saciar-se na copiosa refeição que anseia, recusasse Si próprio do que a criatura. E assim, para nós, explica-se a dor.
uma côdea de pão e preferisse morrer de fome. Uma recusa à Isto, porém, não basta. Agora podemos compreender melhor
própria vida ou a gênese de outras significa distanciar-se ainda que se trata de um remédio que nos cura e de uma escola que
mais do centro e aproximar-se do anticentro negativo, pondo-se a nos instrui. A reação da Lei significa a salutar intervenção de
caminho do aniquilamento. É culposa, por conseguinte, uma cas- Deus imanente a infligir-nos uma dor proporcionada e adequa-
tidade egoísta, cujo escopo é conjurar encargos e enfados, mas é da ao fim, para que, através dela, o Sistema possa reconstruir-se
santa uma castidade física que sacrifica os prazeres do sexo, para precisamente no ponto violado e, assim, o ser possa reentrar no
dar-se à gênese espiritual, em que a criação passará dos corpos caminho da sua salvação. Todos os nossos males não passam,
para a alma, elevando-a para o centro – Deus. Somente nesta pois, de expedientes corretivos para retificar posições erradas,
condição é lícito retirar-se da vida, porque realmente a ela se re- assumidas por nós, e para nos ensinar a viver na ordem divina,
torna em escala ainda maior. Assim um ser pode ter milhares de onde só pode haver felicidade. Assim, em qualquer campo, este
filhos, pois que a renúncia alcançará então uma proliferação cuja impulso divino interior e restaurador nos acompanha para nos
intensidade a natureza desconhece. Desta forma, entramos em curar. A própria moléstia é uma sua reação para curar o nosso
uma trajetória mais vizinha do centro, onde as posições inverti- corpo. E, quando o dano ultrapassou os limites permitidos e, as-
das começam a endireitar-se. Nela, o sacrifício vem antes da ale- sim, a ordem (saúde) não pode mais ser rapidamente restabele-
gria e a gênese produz frutos que não temem a morte, porque eles cida, essa mesma força, que denominamos natureza, resolve
mesmos continuam a gerar indefinidamente no tempo. O homem igualmente o mal, de maneira mais radical, por meio da morte,
que lança uma ideia para o bem do mundo é um pai espiritual de que permite recomeçar a vida sadia de novo.
uma capacidade genética desconhecida no plano material. Desta forma, no campo moral, todo excesso é compensado
Estas são as leis da vida. Violá-las só pode acarretar dano ao por uma proporcionada e específica carência. Mas não basta
violador. A vida é irrefreável impulso divino. O suicida é o mai- dizer que isto é justiça e reconstrução da ordem. É necessário
or negador de Deus, pois quem atenta contra a Lei é assassino dizer também o que mais nos interessa, ou seja, a razão pela
também da própria alma. A vida quer expandir-se para voltar a qual a dor nos flagela, e essa reside na operação do reestabe-
ser o que era – infinita. A vida quer retornar à unidade. A união lecimento de nós mesmos, para nos fazer voltar à ordem, so-
dos sexos tem o seu rito próprio e celebra, ainda que em forma mente onde podemos ser felizes. Com o erro não violamos
profundamente reduzida, a conjunção final na unidade dos dois apenas uma lei que pertence a Deus, mas demolimos a ordem
semicírculos do grande ciclo do ser: o involutivo e o evolutivo, em nós, a ordem que é a nossa felicidade. E Deus não pensa
o momento supremo da reconstrução, o triunfo final da gênese egoisticamente na reconstrução da Sua ordem violada, mas
divina. É assim que os seres, por instinto de unidade, se atraem. sim em nosso bem estar, obrigando-nos, pela dor, a reconstru-
A solidão é terrível. Por isto a vida procura a vida, as multidões ir a ordem e a felicidade.
atraem multidões. A segregação do convívio humano, como no Há uma consequência prática importante de tudo isto. É ve-
cárcere, é punição e dor. Quanto mais involuído for o ser, por- rídico que devemos nascer e viver, como já dissemos, quase
tanto mais fracionado, tanto mais se sente só e mais procura uma sempre para sofrer, porque esta é a escola da necessária recons-
companhia. Quanto mais espiritualizado for ele, por conseguinte trução que nos incumbe. É certo, também, que esta dor não é
mais evoluído, tanto mais sente a vida universal por toda a parte uma vingança, mas sim uma lição, desejada por um Deus bom,
e menos se sente só em qualquer solidão aparente. visando não o Seu interesse, mas sim o nosso bem. De tudo isto
◘◘◘ se depreende que ela deve ser dosada, isto é, diminuir quando
Ao concluir este capítulo, procuremos compreender o superiores às nossas forças, pois a vida, que é sagrada, jamais
grande alcance das consequências práticas a que nos conduz a deve ser ameaçada. Isto porque a dor não é reação cega, puni-
concepção deste volume. Tudo nos demonstra a verdade do ção que esfacela, mas constrição ao esforço que educa e endi-
quanto acima dissemos, isto é, que, apesar do Sistema ter des- reita. Em nossas dores, devemos ter sempre presente que não
moronado, permaneceu no fundo dele a imanência da causa estamos tratando com forças inimigas e inconscientes, mas com
primeira que o gerou e que está em nós sempre presente e ati- forças boas, justas e sábias. A dor, pelo contrário, se bem com-
va, para reconstruí-lo. preendida, deve fazer-nos sentir mais próxima a presença ativa
No piano físico, efetivamente, o que é, em última análise, a e salvadora de Deus imanente, à qual mais nos devemos unir.
―vis sanatrix naturae‖6, senão a expressão de Deus imanente? Que maravilha para o intelecto e que conforto para o coração
Ele está em nosso interior sempre atento à restauração da for- chegar a compreender que a dor é um ato de amor com que
ma, que é protegida, porque é manifestação de vida no plano Deus nos agracia, para nos induzir a retomar o caminho certo
em que devemos elaborar-nos, para reerguer-nos. No fim do de nossa felicidade, que havíamos abandonado!
Cap. XV – ―À procura de Deus‖, concluiremos descobrindo o Então, o intelecto compreenderá, efetivamente, por que as
divino na profundeza do nosso ―eu‖. Sabemos que não é pos- provas jamais podem superar as nossas forças e como elas se
sível existir em nosso universo a não ser como um vir-a-ser. A desvanecem tão logo se tenha realmente aprendido a lição.
criação não é um fenômeno estático, mas de incessante forma- Compreenderá por que a Providência costuma tardar tanto,
ção, que não se pode reger nem se explicar sem esta permanen- salvando-nos somente no último momento, ao cairmos sob o
te e operosa presença de Deus no Seu aspecto imanente. Quem peso da cruz, pois é necessário esgotar antes todos os recursos
mais poderia assim tudo reconstruir? É verdade que a morte na aprendizagem da lição. Uma Providência que no poupasse
ameaça continuamente a vida, mas é verdade também que a tal esforço trairia o nosso restabelecimento e prejudicaria a
vida acaba vencendo, reduzindo a morte a um meio de renova- nossa evolução. Enfim, o coração encontrará em meio à dor o
ção, sendo justamente isto o que determina a evolução, que imenso conforto do amor, sentindo Deus a seu lado; Deus, que,
avança para a superação da morte. no Seu aspecto de Filho, em Cristo, ampara a nossa cruz e a ar-
Esta presença de Deus patenteia-se não só no campo físico, rasta conosco, compartilhando de nossa dor. Pois que Deus
mas também no moral. Fala-se de impulsos reativos da Lei ao imanente desceu a sofrer na forma, no íntimo do ―eu‖ da cria-
tura decaída, para reerguer-se nela ao Seu aspecto originário e
6
―A força curadora da natureza‖. (N. do T.) perfeito de Deus transcendente.
34 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
X. A TEORIA DO DESMORONAMENTO E princípio destruidor que se aninha em seu seio! Certamente o
AS SUAS PROVAS Sistema, concebido desta forma, deve parecer bem pobre e mal
feito! No entanto ele é pleno de obras que revelam uma sabedo-
Procuremos neste capítulo responder, por nós mesmos, a al- ria tão grande, que nem podemos compreendê-la no seu todo.
gumas possíveis objeções ao sistema acima exposto. Este é um Repugna, de maneira absoluta, a um instinto fundamen-
controle racional a que submetemos os produtos da intuição ou talmente peculiar a todo ser de mente sã, admitir em Deus a
da visão. Por um momento, proponhamo-nos rejeitar esta teo- criação do mal. Este só pode ter surgido depois, por outras ra-
ria, que podemos denominar simplesmente teoria do desmoro- zões. Não se podendo conceber duas criações e, assim, tendo
namento, como explicação de nosso universo. que aceitar um única, como explicar que não encontremos tu-
Devendo axiomaticamente admitir que Deus não pode ser do em perfeição e bem ou, então, em imperfeição e mal, mas
imperfeito e mau, mas sempre perfeito e bom, e que, por con- sim perfeição e bem misturados com imperfeição e mal? É
seguinte, criou por amor, e não por ódio, como se pode explicar evidente essa duplicidade de princípios exatamente opostos.
a presença do mal e da dor em nosso universo? E, uma vez que Isto não se pode explicar a não ser como a inversão de uma
não se pode atribuir, em absoluto, ao Deus-Criador estas reali- parte do Sistema. E como, no fundo da imperfeição, encon-
dades, impõe-se procurar-lhes uma outra causa que não pode tramos a perfeição, isto é, uma sabedoria que possui a força de
ser Deus. Mas aqui o dilema é fatal: ou essas tristes verdades salvar a imperfeição da autodestruição e de purificá-la, recon-
são devidas à criatura, sendo forçoso admitir a teoria da queda, duzindo-a ao estado de perfeição?
ou, se Deus-Criador foi causa de tudo, Ele é imperfeito e mau. Evidentemente, deve ter ocorrido que Deus haja criado os
Uma bem triste cadeia de males pesa sobre o mundo. Este espíritos puros, tirando-os de Si (a técnica da criação será pro-
fato é indiscutível. Queremos buscar-lhe a causa, o responsável. gressivamente exposta neste volume e, depois, definitivamente
Podemos até chegar à monstruosidade de nos tornarmos acusa- precisada no início do Cap. XX – ―Visão-Síntese‖). Este era o
dores de Deus, como causa de todos os nossos males, e nos sen- sistema perfeito. Mas uma parte, como vimos, rebelou-se, for-
tirmos autorizados a amaldiçoá-Lo, como inconsciente e mau. mando o anti-sistema do dualismo. Ora, a parte incorrupta fi-
Mas isto só poderá fazer quem segue Satanás, imerso no polo cou a mais forte, porque com ela permaneceu Deus, a Quem
negativo, na ignorância e no mal. Jamais o fará uma mente ilu- ela ficou aderente. A outra parte não tem Deus consigo, no
minada, que sentiu a sabedoria, a perfeição e a bondade que sentido de que a sua transcendência não pode funcionar, já que
reinam no funcionamento orgânico do universo. o ser o renegou. Por isto o mal não pode vencer. A vitória fi-
Mas, ainda que a teoria do desmoronamento fosse errada, nal, é lógico, não pode deixar de caber ao único senhor do Sis-
que significação possui a lenda, tão difundida no mundo, da tema: Deus. Não importa que no Todo se agitem forças opos-
queda dos anjos? Poderá ter ela nascido do nada? E, com a Sua tas! O Sistema tornou-se inquinado de culpa, sofre para resta-
paixão, que poderia redimir Cristo, se a culpa era mais de Deus belecer-se, mas continua Sistema. Ele não desmoronou no seu
do que do homem? Por essa paixão a humanidade se redimiu, conjunto. Apenas uma parte dele, em seu seio, decaiu.
então, mais da falha de Deus do que das suas próprias. Isto sim Mas pode-se, então, objetar por que Deus, se é sempre o
nos parece verdadeiramente um esboroamento do bom senso, mais forte, o Senhor do Sistema, não sana de vez o mal, anu-
ao ter que admitir que a humanidade deva sofrer tanto, em vir- lando-o? Não basta uma coisa ser cômoda para se tornar lógi-
tude da insciência ou maldade de um Criador irresponsável ou ca e justa. Há necessidade de que seja compreendida por
perverso. Este seria o mais escandaloso triunfo da injustiça. quem a criou. Nenhuma força pode ser destruída, mas apenas
Mas, desta forma, colocamos um conceito negativo no centro corrigida. Subsiste a lei de equilíbrio e justiça, na qual se ba-
do sistema positivo do ser; dessa maneira tudo se subverte: a seia o Sistema, que exige a sua reconstrução. Não é com a
vinda de Cristo à Terra carece de qualquer sentido, e, onde tudo psicologia da própria vantagem imediata, relativa e utilitária,
é ordem, estabelecemos o caos de um universo em delírio. En- que se pode resolver tais problemas. Recordemos que nós não
tão, o primeiro pecado original teria sido de Deus, e não do somos punidos pelas nossas culpas por um Deus vingativo,
homem, e a rebelião contra um Deus imperfeito, injusto e mal- mas sim, automaticamente, por essas mesmas culpas, isto é,
vado seria mérito, e não culpa. E a redenção, que é a retificação pelas forças por nós movidas e pelas posições que quisermos
de uma posição invertida, que teria retificado? Talvez a justa assumir no Sistema. O mal não se pode extinguir por um ato
revolta de Adão contra um Deus criador do mal e da dor? Co- arbitrário, pois que a onipotência divina não é jamais arbitrá-
mo se vê, cai-se em um redemoinho de absurdos, em que tudo ria, mas sempre segundo a Sua própria lei. O mal só se pode
se subverte em uma horrenda concepção satânica. extinguir por reabsorção, isto é, por retificação, pela recons-
Devemos axiomaticamente admitir em Deus também a uni- trução daquilo que ruiu. Só assim se explica como a dor pode
dade. Ora, o universo é inegavelmente dualístico. Como se po- redimir. Trata-se de um processo de cura. Eis por que a luta
de explicar essa estrutura dualística em um universo cuja base contra o mal é virtude, ou seja, é qualidade reconstrutora de
deve ser unitária, se não com a teoria do desmoronamento? bem. Se o nosso universo fosse, no estado atual, consequência
Quem despedaçou o uno, como e por quê? É absurdo um uni- pura do primeiro ato criador de Deus, ele deveria ser perfeito.
verso dualístico desde a sua primeira essência, em seu centro. Não o é porque a criatura introduziu nele outras forças. É da
Se assim fosse, pelo menos os dois termos do dualismo – bem e lógica, justiça e equilíbrio do Sistema que a correção seja ope-
mal – deveriam ser iguais. Como se explica que, ao contrário, o rada nas próprias criaturas que representam tais forças. Assim
bem é mais forte e acaba vencendo e que o Senhor é um só – como delas foi a revolta à ordem, é justo que o labor da re-
Deus? Também aqui, se excluirmos a queda, tudo se confunde construção lhes caiba. Somente assim elas poderão verdadei-
no caos. Então Deus se transforma em artífice de uma obra dia- ramente aprender a conhecer a Lei, cuja compreensão já reve-
bólica, e confunde-se Satanás com Deus. laram não ter desejado. Como se vê, tudo se desenvolve com
Abolindo a teoria do desmoronamento, não se sabe mais cabal lógica. Muitos desejariam Deus como seu servo e se la-
justificar a origem e a presença de Satanás. Quem é ele então? mentam porque Ele não lhes poupa o incômodo de trabalhar,
Que significa no sistema do todo? De que nasceu, para o que lutar e sofrer, por isso O acusam. Mas é fácil compreender
tende e como acabará? Em um sistema lógico, como pode man- quanto é absurdo colocar as nossas pobres comodidades como
ter-se esse anti-Deus? Em uma construção equilibrada, que sig- centro do Sistema. Não é com tais medidas que se pode medir,
nifica a hostilidade desse contínuo atrito demolidor? E que im- nem com semelhante psicologia que se pode compreender.
perfeito universo seria este, sempre sujeito aos assaltos de um ◘◘◘
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 35
Prossigamos no controle racional, que nós mesmos estamos senão continuamente se despedaçando, por efeito da queda. Bas-
fazendo, dos produtos da intuição ou visão. taria apenas isto para provar a reencarnação. Mas, no fundo da
Alguma vez perguntamos a nós mesmos por que o estado morte (Satanás), está sempre Deus, que é a vida, o princípio pelo
primordial do universo é o caos? Se tivesse sido obra de Deus, qual ela jamais se extingue. Assim como o imutável absoluto
deveria ser obra perfeita, e não caos. E, pela evolução, esse ca- desmoronou no mutável contingente – que justamente por isso
os é o ponto de partida de um longo caminho que avança para a faz presumir a existência do primeiro – a existência eterna tam-
ordem. Somente com a teoria do desmoronamento, tudo isto se bém se corrompeu na existência no tempo, que a mede e a pulve-
torna compreensível. Satanás está nos antípodas de Deus, assim riza em um ritmo interrompido por pausas opostas.
como o caos está nos antípodas da ordem. O universo atual vai Eis, porém, que Deus, a força restauradora presente na evo-
do primeiro ao segundo, os dois polos do ser. Só com a prece- lução, tende para a correção do desmoronamento. A vida, evol-
dência de um desmoronamento, isto é, com a existência da ou- vendo, transfere-se cada vez mais do plano físico para o espiri-
tra metade do ciclo, inverso e complementar, pode-se compre- tual. Desta forma, há também cada vez mais tendência ao desa-
ender tudo. Isto implica que apenas uma parte ruiu, e não todo parecimento do seu lado negativo – morte – e igualmente do
o Sistema, e que, no fundo do caos, Deus – a única força capaz mal e da dor, com o retorno a Deus, na reconstituída unidade
de reconduzir a desordem novamente à ordem – continua a es- íntegra da vida, que não tem mais morte.
tar presente. A reconstrução, ainda que seja operada de fato pe- Mas tudo rui por terra. Cada alegria ameaça inverter-se em
la dor purificadora da criatura, é dirigida por Deus, o que é pro- dor, parecendo ter nascido envenenada pela recordação do pri-
vado pela descida de Cristo à Terra. Unicamente assim se ex- meiro desmoronamento. Para continuar, a vida deve refazer-se
plica o porquê da evolução e sua direção, bem como a grande desde o começo, na semente, no filho. Tudo nos dá ideia de al-
equação da substância (A Grande Síntese, Cap. IX). guém que, subindo uma encosta em terreno resvaladiço a cada
Agora podemos compreender melhor a fig. 4 de A Grande três passos para diante, dá dois passos para trás. Recua, mas ga-
Síntese, que indica o desenvolvimento da trajetória típica dos nha sempre um passo, e assim a evolução avança, avizinhando-
movimentos fenomênicos. Esse diagrama sintetiza também o se cada vez mais, ainda que lenta e fadigosamente, da libertação.
atual caminho da evolução, para reconquistar, entre dores e É longa e dolorosa a elaboração evolutiva. Mas é verdade tam-
provas, o paraíso perdido. Este é o diagrama da ascensão. O bém que o elemento negativo está submetido a um atrito contí-
desmoronamento ocorreu de +–. A reconstrução aqui nuo, em face da resistência que opõe à força de Deus, mais po-
sintetizada é de –+, ainda que, para o nosso concebível, derosa, motora da ascensão. O elemento negativo, assim, des-
ela agora seja limitada ao trajeto γ. Na fig. 4, o des- gasta-se, autodestruindo-se e cedendo, como já vimos, da sua
moronamento das dimensões reduziu o Todo ao nada, ao substância à parte positiva. A sensação desse atrito de forças
ponto, sem dimensão. É este – (infinito negativo), o ponto opostas chama-se dor. Mas, por isto, ela redime, mata o mal,
de partida da evolução, a segunda metade do ciclo, que vi- ilumina as trevas, reconduz à alegria, à unidade, findando o dua-
vemos atualmente. O ponto de chegada é + (infinito positi- lismo, retificando o negativo em positivo. É este atrito que se
vo), sendo todo o processo dado pela dilatação do ponto, não chama dor, que reconstrói o lado desmoronado do Sistema e, por
dimensão, na dimensão máxima, o infinito. Eis o mais pro- isso, constitui a base da evolução, ascensão para a felicidade.
fundo significado da abertura da espiral. ◘◘◘
Mas a maneira como se processa o seu desenvolvimento nos Tudo isto evidencia a necessidade de aceitar a teoria do
diz algo mais. Na sua tendência periódica para volver sobre si desmoronamento. Só ela pode explicar o dualismo dá árvore do
mesma em direção ao centro (v. a mencionada fig. 4 – A Grande bem e do mal; o pecado original, continuação da revolta dos an-
Síntese), expressa também na fig. 2 pela descida da linha que- jos e consequente queda; o pecado cometido por Caim contra
brada, vemos um rítmico, ainda que parcial, retorno ao desmo- Abel, primeira personificação da cisão e da luta. Só assim po-
ronamento, como que uma recordação sua ou tendência a repe- demos compreender Cristo e a Sua obra de redenção, destinada
tir-se, que no-lo revela em ação, imiscuído no funcionamento do a sanar este dualismo, e entender a inversão operada pelo
universo, desde a primeira revolta e desmoronamento. Essa ca- Evangelho, que é uma retificação dos valores. Só assim é pos-
racterística, impressa indelevelmente, nos fala como uma teste- sível explicar por que a Terra é o reino em que o mal triunfa e
munha. Todavia o movimento retoma sua direção e, no conjun- os bons sofrem; por que a seleção é nela operada pelo critério
to, consegue subir, sempre contrastado e em luta com a descida. selvagem do mais forte. Sem a teoria do desmoronamento nada
A subida prossegue, isto é, a evolução vence, ganhando terreno se explica, tudo é caos e mistério.
em cada ciclo, ainda que, em todos os ciclos, o primeiro desmo- Todavia, ainda pode-se levantar uma objeção. Pretendemos
ronamento volte a se fazer sentir como um assalto do mal, que é, complementar aqui os conceitos expostos no fim do Cap. VII –
porém, depois vencido e superado. Assim é porque o Sistema, ―A perfeição do Sistema‖.
no seu conjunto, não é o sistema de Satanás, mas sim o sistema Admitida a liberdade individual e a revolta, deve-se admitir
de Deus. Deus, como vimos, permaneceu centro de tudo, en- também que um espírito possa conservar-se eternamente rebel-
quanto o sistema de Satanás tem por centro o –, o nada, o pon- de. Ele teria, então, o poder de macular definitivamente o Sis-
to não dimensão, razão por que, para ele, a existência só pode tema, frustrando-lhe o restabelecimento e toda a obra de salva-
significar anulação. O sistema positivo de Deus, embora conten- ção de Deus e dos redentores por Ele enviados. A obra de Deus
do o sistema negativo de Satanás, é mais forte do que ele. O ou- não seria, então, sanável e, em última análise, estaria falida.
tro sistema está contido e é mais fraco, irremediavelmente mi- Tudo isso é lógico. Bastaria que se verificasse o caso para uma
nado pelo seu negativismo. Por isso se pode dizer que o bem de- só criatura, e o mal, em definitivo aninhado no sistema de
ve vencer e: ―Portae inferi non prevalebunt‖. Deus, não seria vencido, tornando-se parcialmente vencedor.
◘◘◘ Conclusão absurda. A solução do dualismo deve, pois, ser
O motivo do desmoronamento imprimiu-se, assim, tão pro- completa e, por conseguinte, para que todo o Sistema seja re-
fundamente no Sistema, que o vemos ressurgir em todo lugar, a construído e tudo retorne ao Uno, impõe-se a destruição final
cada momento. Um estigma dualístico inquina e fragmenta toda a do mal. A anulação é a única expulsão possível de um sistema
nossa vida. A vida una íntegra, esboroou-se no ritmo alternado de que é o Todo e, fora do qual, nada pode existir.
vida-morte; ao dia se contrapõe a noite; à luz, as trevas; a cada Agora, surge a objeção da impossibilidade de admitir-se a
afirmação, a sua negação. A vida não se pode prolongar no tem- destruição ou anulação do espírito rebelde. A isto respondemos
po senão continuamente invertendo-se no negativo, que a mata; que, como já vimos (Cap. VII), a mecânica dessa destruição se
36 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
realiza por um processo de choques e atritos de forças, em que Considerando tudo isto, o leitor poderá agora responder por
perece não a substância divina, indestrutível, que forma o espí- si à questão acima proposta. Mas é evidente que a solução cabal
rito, mas apenas a sua forma de individualização como ―eu‖ de qualquer problema não pode ser obtida encarando-o isola-
distinto, e isto em favor do sistema do bem, que se enriquece damente, mas somente quando ele tenha sido enquadrado em
dessa substância. O que se anula é a individualização, a perso- todo um sistema de que venha a fazer parte e em que todos os
nalidade rebelde, o tipo de forma revestida pela substância, e outros problemas do ser sejam harmonicamente resolvidos.
não propriamente a substância que a constitui. Trata-se, pois, Procuremos, todavia, precisar os elementos do problema.
apenas de uma destruição relativa ao indivíduo, e não em senti- Assim como, em um espelho partido, cada fragmento re-
do absoluto. Destruição como sua individualização, e não como produz a natureza do espelho inteiro, trazendo também em si
substância. Isto torna possível a anulação no caso extremo de os indícios do estilhaçamento, cada unidade individual, no sis-
uma revolta indefinidamente prolongada. tema desmoronado, também carrega consigo os sinais do di-
A esta altura, podemos perguntar qual poderá ser a sorte de vino princípio do bem e dos satânicos princípios do mal. Bas-
Satanás e seus demônios. Após haver tratado do problema do taria este fato – que é possível verificar a todo instante em nós
fim do mal no Cap. X do volume A Nova Civilização do Ter- mesmos, visto se encontrar profundamente impresso em nossa
ceiro Milênio, lançando ali a semente dos primeiros conceitos, natureza – para demonstrar que, nas raízes deste nosso estado
desenvolvidos melhor no presente volume; e após haver preci- e como explicação desta nossa estrutura, não pode deixar de
sado a técnica da destruição do mal em geral no Cap. VII – ―A existir uma queda original, da qual se gerou este modelo de
perfeição do Sistema‖, deste volume, podemos propor-nos ago- tipo dualístico, que se repete em todas as individualizações
ra o problema específico da sorte de Satanás, a propósito da menores. É assim que o princípio da queda se conservou pre-
anulação dos espíritos rebeldes. sente em todo ser decaído. E é lógico e justo que cada ser, já
No Cap. II do presente tomo – ― ‗O eu sou‘, esquema do que é um momento do sistema desmoronado, carregue consi-
ser‖, acenamos para Satanás como personificação das forças do go os estigmas do desmoronamento e a estrutura do sistema
mal. Mas será ele apenas uma individualização fenomênica desmoronado. É por isso, justamente, que toda personalidade
qualquer em tudo que é personalizado, ou Satanás é uma verda- está dividida em duas partes opostas, ativadas por um dina-
deira personalidade? Como personalidade queremos significar o mismo inverso, um divino e outro satânico, em contraste no
que ela expressa para o ser humano. O leitor que compreendeu campo do ―eu‖. Foi assim que a indivisível personalidade do
os elementos constitutivos de nosso sistema, de onde a lógica ―eu sou‖ originário cindiu-se no seu íntimo dualismo, e é exa-
não nos permite sair, pode responder por si. Nós simplesmente tamente aí que Satanás se aninha.
lhe propomos o problema. A única e verdadeira criação foi a dos Analisemos tudo isto para melhor poder compreender o que
espíritos puros, que Deus realizou em Seu seio, distinguindo-se deveremos realmente entender por personalidade de Satanás.
interiormente em muitos ―eu sou‖, feitos à Sua imagem e seme- Ele é personificado no sentido de que existe em todo ser como
lhança. O nosso universo físico não foi uma criação, mas sim princípio negativo, equilibrando em contraste o princípio posi-
um desmoronamento da criação. Os espíritos puros eram outros tivo, com o qual está sempre em luta, para dele se desvincular e
tantos ―eu sou‖, semelhantes ao tipo originário – Deus – isto é, se libertar. Esta luta é a base da evolução. A personalidade de
individualizações pessoais, como é o próprio homem. Todos os Satanás está presente em todos os seres como princípio de tre-
espíritos eram assim, e não há razão para que fossem diferentes vas, enquanto Deus está presente neles como princípio de luz.
os que depois decaíram com a revolta. O próprio homem atual Treva significa inconsciência, matéria, prisão na forma, estado
estava entre eles e, tendo uma personalidade própria, distinta, involuído. Luz significa consciência, espírito, libertação, estado
mostra-nos o que significa personalidade. O tipo fundamental do evoluído. Em outros termos, em nosso universo não se encontra
ser, como ―eu sou‖, não podia mudar apenas pela queda, como apenas a presença de Deus imanente, nele descido de Sua trans-
de fato não mudou para o homem, que é justamente um espírito cendência para salvá-lo, mas existe também o princípio oposto,
decaído e, algumas vezes, chegou até ao grau de demônio. O filho da queda, isto é, a presença do mal ou Satanás imanente,
desmoronamento do Sistema podia alterar a disposição e posi- sempre operante para tudo destruir e perder.
ção dos elementos do edifício, mas não o material, que perma- Em todo ser defrontam-se, em permanente contraste, o divi-
neceu o mesmo, pois, se assim não fosse, o edifício não poderia no princípio do bem, fazendo evolver e subir, e o satânico prin-
ser reconstruído; podia ofuscar, mas não alterar a essência indi- cípio do mal, insistindo no desmoronamento e na descida. O úl-
vidual do ser, porque isto teria significado destruir o tipo mode- timo serve, assim, de resistência à evolução. É esta resistência
lo, fato fundamental da criação. Não é concebível que a queda que procura demolir todas as nossas conquistas e que nós temos
possa ter produzido uma despersonalização, pois isto significaria de vencer com o nosso esforço, intentando espontaneamente re-
uma anulação da personalidade, isto é, da individualização ―eu fazer em ascensão o mesmo caminho que livremente percorre-
sou‖, o que só pode ser o último resultado para um rebelde inde- mos em queda. Somente com a queda é possível explicar como
finidamente em estado de revolta, com sua liquidação final. Não o princípio do mal se aninhou no âmago do ser e lá permaneça
se pode antecipar a sua destruição, sem comprometer todo o vigilante para impedir a ascensão. Este princípio, onipresente
processo de reconstrução e redenção. É absurdo, exceto no caso em nosso universo e personificado como o lado de trevas em
de tal liquidação final, a dissolução desse núcleo ―eu sou‖, desse qualquer personalidade, é o que entendemos por personificação
centro em torno do qual se desenvolve todo o processo do des- de Satanás, princípio que pode revestir-se de uma forma qual-
moronamento e da reconstrução. Somente um ―eu‖ pessoal, de- quer, assumindo consistência real. Não se trata de uma vaga
finido nos seus atributos, pode involuir e depois evoluir; pode abstração, mas de algo concreto, presente como força individu-
reconstruir-se, se quiser, ou então ser reabsorvido no Sistema, alizada no ser, que, pelo menos na Terra, sempre apresenta uma
pelo seu progressivo desgaste no atrito do Anti-Sistema com o certa dose dele, maior ou menor. A percentualidade é que varia,
Sistema, consoante expusemos no citado Cap. VII deste volume. sendo santo aquele em que ela for mínima ou nula, e demônio
Unicamente um ―eu‖ pessoal pode ser objeto de salvação ou ins- aquele em que ela se aproximar da inteireza. No caso máximo
trumento da necessária anulação do mal, sem o que Deus seria deste último tipo, quem sabe em alguma forma cósmica de vi-
vencido; sem um centro pessoal, um ―eu‖, não pode haver méri- da, teremos a personificação concreta e real de Satanás.
to ou demérito, culpa, responsabilidade, experiência, evolução e Efetivamente, pode-se idealizar dele um tipo biológico
retorno a Deus, ou, no caso contrário, anulação. Sem um ―eu‖, mesmo na Terra. E isto realmente foi feito pelo homem, repre-
tudo se dissolve no vago e nebuloso. sentando o demônio com as características dos animais dano-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 37
sos, mais inimigos e involuídos, agressivos, com chavelhos, ideia continua a avançar na direção em que foi lançada, enquan-
garras ou bicos, traiçoeiros como as serpentes venenosas, escu- to não encontrar uma força que a desvie ou um atrito que a freie
ros e peludos como o urso, com dentes de lobo, olhos ferozes e – Deus, assim como Satanás, continuam, em nós, a gritar ―eu‖.
cauda, lançando chamas e enxofre, na representação de um É assim que cada um de nós, mais ou menos, pode personificar
mais antigo e elementar adversário, qual o fogo vulcânico da um ou outro, segundo o grau de evolução. E, quando o homem
Terra. Tudo isto é lógico e se justifica, porque Satanás simbo- desce até ao delito, nele encontramos uma sempre maior perso-
liza a involução, isto é, a animalidade, que é o nosso passado, nificação de Satanás. É fácil assim imaginar uma hierarquia na
ou seja, a matéria e o caos num reino subterrâneo, onde ele gradação dos valores invertidos em negativo, no mal, da mesma
sempre se aprofunda, como nas representações que fazemos forma que há uma hierarquia dos valores positivos, no bem.
dele. Inimigo da evolução, que é progresso em direção a Deus Poderemos, desta maneira, idealizar, no ápice da pirâmide in-
e à felicidade, também é um inimigo da vida, representando vertida, um Lúcifer, qual sublimação do mal elevado à máxima
tudo o que é agressivo e mau. potência, assim como no ápice da pirâmide positiva está Deus,
Onde está este inimigo? Está em toda parte, como Deus; sublimação infinita das potências do bem. É como se pode ex-
junto de Deus, como Sua negação, assim como junto da luz es- plicar racionalmente a ideia tão difundida do anti-Cristo.
tá a sombra, sem o que não sabemos o que é luz. Satanás é a Parecendo-nos, por ora, bastante clara esta argumentação
treva que se aninha em cada ângulo, onde se ocultam o mal e a sobre a personalidade de Satanás e seus demônios, concluímo-
dor, para nos golpearem traiçoeiramente. Satanás é o veneno la com a verificação de estarmos assim diante de uma nova ma-
depositado no fundo de toda taça, a dor sempre pronta para ravilha do Sistema. Nele, de fato, o princípio do mal e da dor,
macular as nossas alegrias. É a moléstia que assalta a saúde, é que se faz sentir em tudo, é utilizado como uma dificuldade a
a morte que espreita a passagem da vida. É a traição que está superar, como uma escola para aprender e ascender. A realida-
no fundo da amizade. É o ódio em que está prestes a transfor- de é que, embora Satanás e seu poder pareçam espantosos, o
mar-se o amor. É o princípio de destruição que secretamente nosso universo está inteiramente impregnado da presença de
mina todas as construções humanas. É o princípio do mal que Deus imanente, de modo que a vitória está garantida e as portas
sempre busca manchar a obra do bem. É um princípio que to- infernais não prevalecerão. Todo o grande assalto de Satanás se
ma forma concreta em atos e pessoas. reduz a um exame das forças do bem, a um sangrento banho de
Durante as trevas da Idade Média, houve o domínio, inclu- purificação, do qual o espírito sairá triunfante. Desta forma, en-
sive no terreno religioso (inquisição, guerras santas, bruxarias) contramos não somente uma justificação para o mal e a dor,
desse princípio de negação, em que Satanás prevaleceu. Por mas também o segredo para demoli-los, transformando uma in-
dois milênios ele tem reinado com o terror do inferno, constru- felicidade em um meio para conquistar a felicidade. Assim, o
ção sua. Tudo isto está escrito na hora histórica, para todos, e tremendo princípio do anti-bem e do anti-Deus se pulveriza em
teve a tolerância da Igreja. E, até hoje, mesmo no que respeita a nossas mãos, e, se formos sábios, dele nada resta em meio a
Cristo, atentou-se principalmente para o lado negativo e destru- tanta ruína, senão um instrumento de salvação.
tivo da criatura humana na crucificação, que foi um triste espe- A esta altura, nós nos perguntamos se será possível uma re-
táculo de carnificina, em vez de se olhar para o lado positivo e volta eterna e definitiva? Agora podemos compreender o que
construtivo da ressurreição, eterna vida do espírito. Isto de- significa essa indagação, isto é, a possibilidade da personalida-
monstra como Satanás está vivo entre nós, personificado em de macular-se até que o percentual dos elementos componentes
correntes, ações e pessoas. Satanás, embora como força inverti- positivos seja reduzido a zero e o percentual dos elementos
da e negativa, está presente entre nós, como o está Deus, e eles componentes negativos seja elevado a cem. Quando o ―eu‖ fica
se defrontam e se batem em nós, seu campo de batalha. Ainda assim reduzido, em sentido negativo, ele se anula (=0), isto é,
que Deus, pela própria natureza do Sistema, venha a ser o ven- se autodestrói. Quando, ao contrário, o ―eu‖ se refez todo em
cedor, esta batalha existe e a vivemos em nós, sem sabermos sentido positivo, ele atingiu a salvação. No primeiro caso, ocor-
que ela é a maior batalha do universo, que repercute em nós. reu a morte total pela completa negação de Deus; no segundo
Em cada ato nosso, através da escolha que soubermos fa- caso, foi alcançada a vida total em Deus.
zer, amadurece o nosso ser e avança a grande marcha da evo- De tudo isso encontramos um paralelo na vida de nosso or-
lução. Em virtude dos atos e da livre escolha de todos os ho- ganismo, o que é lógico num universo dirigido por um princípio
mens, opera-se o resgate e assim a salvação. É graças a essa in- unitário. Antes de tudo, a difusa presença do espírito satânico
tensa elaboração em que se empenham todos os seres, que se do mal não nos deve espantar mais do que a presença dos mi-
dá a regressão, a estagnação ou a redenção do universo. Sata- cróbios patogênicos em nosso organismo. Quando ele está são,
nás exige que lhe paguemos em moeda sonante de dor o tributo os micróbios não perturbam, mas quando as portas estão aber-
de nosso resgate, porque quisemos cair e, com a queda, nós o tas, eles penetram o organismo no seu ponto vulnerável, porque
abrigamos em nosso interior. débil. Também Satanás só pode entrar quando encontra uma
Satanás está em toda parte do sistema desmoronado, é a do- porta aberta no espírito, isto é, um ponto vulnerável, porque dé-
ença do Sistema, que o acomete e faz todos sofrerem. Também bil. Se formos sãos e fortes no campo orgânico e no moral, po-
a parte incorrupta não se pode furtar a esta dor e, como fez demos mover-nos sem perigo entre os micróbios patogênicos e
Cristo, ajuda igualmente com o seu sacrifício. Mas é a parte di- as forças do mal. Em qualquer setor, a vida nos quer sãos e for-
vina, a originária centelha de Deus, não extinta de todo e ainda tes, para que a evolução prossiga, seguindo a Lei, que quer o
presente em nós, que deve lutar para restaurar a parte enferma ser caminhando para a perfeição e a felicidade. Quem deve, pa-
ou satânica, da mesma forma que no organismo a parte sã luta, ga, sendo o ser colocado pela dor no caminho reto, o de sua
com os recursos vitais provenientes de Deus, para recuperar a salvação. Tanto no terreno orgânico como no espiritual, a Lei
saúde e reconstituir o equilíbrio. Quando em nós se defrontam acorre para salvar, impelindo com as suas reações dolorosas o
em ação duas motivações opostas de bem e de mal, em que se indivíduo a salvar-se. A Lei se vale, indiretamente, de todas as
pesam a vantagem, em forma de alegria, e o dano, em forma de constrições compatíveis com o respeito à liberdade individual.
sacrifício, estamos diante do maior drama do universo, que con- Mas quando, apesar de tudo, o doente, seja do corpo ou do espí-
figurou o nosso tipo de existência e que retorna, repetindo no rito, não quer de forma alguma salvar-se – desejando assim fi-
caso menor a apocalíptica luta do universo entre o bem e o mal. xar em sua personalidade uma permanente violação da Lei, que
Por uma lei de inércia, que é verdadeira também no campo é inviolável – então ele é por ela eliminado. Em outros termos,
moral – segundo a qual, de modo semelhante a uma massa, uma a vida mata os que se voltam contra ela.
38 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Se assim acontece, então nos perguntamos: que probabilida- em Deus a sua causa que, por conseguinte, só pode estar na cri-
de existe no Sistema para que possa verificar-se, não para o Sis- atura. Sem a teoria do desmoronamento, teria sido Deus quem
tema, que é invulnerável, mas para o indivíduo, um desastre, determinou o semiciclo involutivo, isto é, a inversão do espírito
qual seja a sua anulação pela revolta definitiva? Prontamente na matéria, da liberdade na escravidão, da luz nas trevas, da fe-
respondemos que, embora a destruição de um espírito seja pos- licidade na dor etc. Como poderia o próprio Deus chegar a esta
sível, a probabilidade de semelhante destruição, na prática, é absurda contradição de querer subverter o sistema que Ele
apenas teórica. É verdade que o sistema é construído de maneira mesmo criou? O universo é também um conjunto lógico, no
que possa chegar até aí, mas não está na lógica das coisas que qual não há lugar para absurdos.
um espírito se deixe arrastar até esse extremo. E há razões para Do ponto de vista da criatura, não teria sido injusto e mal-
isso. Ser destruído é contra o interesse e a felicidade do ser, é doso (duas qualidades que Deus não pode ter) condená-la ao
agir contra o princípio do ―eu sou‖, que o mantém em vida. É sacrifício da ascensão sem que ao menos fosse justificado o
verdade que o rebelde, tendo-se colocado no negativo, automati- seu erro inicial? As mentalidades que se rebelam à ideia de
camente propende para essa anulação. Mas a arma da revolta ele uma reação da Lei pela queda na dor, em virtude do erro de
crava na própria carne e, quanto mais ele a utiliza, tanto mais in- origem, perguntamos se não se revoltariam mais ainda contra o
tensifica a própria dor. Ele tem de suportar um esforço cada vez conceito de um Deus que haja querido uma criação imperfeita
maior, uma luta sempre mais feroz, para insistir nessa via dolo- e progressiva, impondo ao ser inocente o tremendo esforço de
rosa, para contradizer o seu próprio instinto de felicidade, para construir a sua felicidade através da dor, por um preço tão du-
afastar-se do que constitui o centro para todos e também para ele ro, quando sabemos que o princípio de Deus, ao criar, é o
– Deus. Poderão impeli-lo por essa via de perdição o seu origi- amor, isto é, doação por ato de bondade. Nós podemos variar
nário orgulho, o espírito de revolta, a força da inércia lançada de hipóteses, repelir escandalizados uma e outra, mas há fatos
como massa em ricochete, o mal e o ódio do que ele está feito. positivos que não se podem discutir ou abolir, tais como o mal
Mas o fenômeno deverá também atingir um ponto de saturação ao lado do bem, a dor ao lado da alegria, a imperfeição junto à
em que o interesse egoístico deverá prevalecer, porque a dor, in- perfeição, ou seja, a existência de um lado desgastado e enfer-
tensificando-se sempre, superará o limite individual de tolerân- mo, de algo de corrupto, que repugna atribuir-se a Deus, pois,
cia, e uma existência de ódio e de mal cada vez mais distante de de forma alguma, podemos conceber seja Ele incapaz ou mau.
Deus, o centro de felicidade, acabará por tornar-se impossível. É absurdo colocar no bem a causa primeira do mal; na felici-
Este será o momento crítico da inversão de rumo, da direção in- dade, a da dor; na perfeição de Deus, da imperfeição. A causa
volutiva para a evolutiva. Então o ser por-se-á no caminho da deve estar na própria natureza do efeito. Dos dois termos com
reconstrução, no qual, à medida que é percorrido neste sentido, a que nos defrontamos, a um dos quais deve caber a responsabi-
dor irá diminuindo, e não aumentando como na direção oposta. lidade, somente a criatura pode errar, jamais o Criador. Poderá
Além disso, temos ainda que levar em conta a presença de desgostar-nos a ideia de sermos culpados, mas outra hipótese
Deus, que está, como dissemos, no seio da parte desmoronada não existe para explicarmos as causas.
do Sistema. Esta presença é uma força em ação, que envia ape- Na equação cuja incógnita procuramos muitos termos são
los, auxílios e esclarecimentos. Em imensos períodos de tempo, tomados como pontos fixos, inamovíveis, tais como a bondade
pela convergência de tantos impulsos, é impossível o ser não e a sabedoria de Deus, porquanto Ele não poderia deixar de
compreender o absurdo de laborar apenas em seu próprio dano, querer e das Suas mãos não poderia ter saído senão uma obra
que ninguém, por pior que seja, pode desejar. perfeita. Por outro lado, temos a existência da dor e do mal, o
Existe, afinal, um outro fato. A unidade entre os involuí- contrastante dualismo de princípios opostos e, enfim, a atual
dos, na zona corrompida do Sistema, quanto mais se desce, fase de evolução, que, em um sistema de equilíbrio, implica a
tanto mais pelo negativo é obtida, isto é, não mais como amor lógica necessidade de uma complementar, inversa e precedente
que unifica, mas como ódio que desagrega, como luta recípro- fase involutiva. A única solução que concilia e resolve tudo é a
ca e cisão, ao invés de como paz e fusão. Enquanto o sistema teoria da queda. Se a eliminarmos, acaba-se em um mar de
de Deus é centrípeto, o anti-sistema de Satanás é centrífugo. contradições e nada se resolve. É evidente que à incógnita da
Este, pois, em vez de centralizador, é autodispersivo. Tudo isto equação não se pode emprestar outro valor a não ser o de que a
constitui uma fraqueza que mina cada vez mais o indivíduo, causa está na revolta e que o nosso é um universo desmorona-
isolando-o, e acelera a chegada fatal àquele limite, em que se do. O leitor que deseja eliminar a teoria da queda procure outra
impõe a inversão de rota. que igualmente resolva tudo sem dúvidas. Parece-nos lógico
De todo o exposto, podemos concluir que, na realidade, to- que tenhamos preferência por uma teoria que resolve tudo –
dos deverão, mais cedo ou mais tarde, salvar-se. Os mais rebel- aceita por força dos fatos, e não por influência de uma escola
des sofrerão mais e também alcançarão os braços salvadores de ou religião – e deixemos de lado as que não resolvem.
Deus, porque, se um só não chegasse, a obra de Deus teria sido A primeira vez que começamos a encarar essas questões
imperfeita e seus fins de amor seriam frustrados. em nossos escritos foi nos capítulos XV e XVI do volume
◘◘◘ Problemas do Futuro. Ali, começamos a tatear o terreno, ou-
Retomemos mais uma vez em exame a teoria do desmoro- vindo as teorias contrárias, porém nos limitando mais a fazer
namento, para discuti-la ainda sob o fogo de todas as possíveis interrogações do que cuidar de dar respostas. Os problemas
objeções, com o objetivo de esclarecer os seus mais recônditos foram, então, apenas esboçados e orientados sob um aspecto
significados. Observemo-la dos mais variados pontos de vista geral, como germens de conceitos que seriam posteriormente
e focalizemos todas as suas particularidades. Só assim pode- desenvolvidos no presente livro, para o qual estes dois capítu-
remos chegar à mais clara visão dessa teoria e à sincera con- los referidos podem servir de introdução. Neles, começamos a
vicção da sua veracidade. assentar e agitar o problema na forma psicológica, como mui-
Se, para alguns, a teoria da revolta e da queda repugna, ex- tos o propõem, e dizíamos que o mal parece uma força negati-
perimentemos eliminá-la. Que resta, então? O semiciclo involu- va, que atenta contra Deus, uma imperfeição devida a um erro
tivo necessariamente tem de permanecer, pois sem ele faltará o Seu e que Ele, em dado momento, encontra no Sistema, apres-
indispensável e lógico complemento do inverso semiciclo evo- sando-se a remediá-lo. Se há um outro Deus que limita o pri-
lutivo, que nós vivemos atualmente. O mal e a dor são realida- meiro, então cai o conceito de um Deus absoluto e perfeito,
des indiscutíveis e características do ser decaído em planos in- restando para o homem a dor, punição de um Deus vingativo.
feriores de vida. É uma necessidade lógica que não possa estar Essa dor deriva da culpa do primeiro rebelde, que certamente
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 39
não podia ter consciência completa do bem e do mal, pois, se ada por Deus, então Ele, se não é capaz de extingui-la, não é
a tivesse, não teria se prejudicado com a revolta e mergulhado onipotente. Se Ele a criou, foi criada uma obra muito imperfei-
na dor. E como pode um inconsciente ser responsável e puní- ta, logo Deus não pode ser perfeito (na realidade o mal não foi
vel, se, ao procurar o próprio bem, erra, sem o saber? E em criado por Deus, Que o vencerá).
nome de que justiça, Deus, que tudo sabe, que de tudo tinha No fundo, tudo se reduz a compreender a psicologia desse
presciência, mesmo desse erro, pode condenar um ser que er- erro. Será a nossa psicologia humana capaz de compreender
rou por ignorância a pagar com a dor? Quando uma criança uma psicologia tão distante de nós? Podemos admiti-lo, não só
inexperiente cai, a culpa é dos pais, que, sabendo de antemão, porque os homens se incluem entre os espíritos que fizeram a
deveriam prever a queda; é dos pais, que têm o dever de edu- revolta (não sendo deles inocentes descendentes) mas também
car antes de punir e, ainda assim, apenas proporcionalmente à pelo fato do universo ser regido por princípios únicos, repetidos
experiência adquirida pelo filho. Quando este não tem conhe- em todos os níveis. Ora, então é possível que as posições dos
cimento, os pais não podem punir. E, então, que deveremos primeiros espíritos pudessem não ter sido apenas as expressas
pensar de um Deus que, contrariamente aos seus princípios de no dilema. Pode-se dizer que algo é branco ou preto, porém po-
amor, bondade, lógica e justiça, comporta-se dessa maneira de também ser verde, isto é, nem branco nem preto. Assim as
para com a criatura? causas também podem ter sido bem diversas das acima expos-
Assim falávamos naqueles dois capítulos. Esta é uma primei- tas. Podemos bem entender o conhecimento dos primeiros espí-
ra e elementar forma de plantar a questão. Mas já ali se viam ritos como limitado, em face do ilimitado de Deus. De fato, os
como eram absurdas as conclusões, visto que se voltavam contra espíritos, nascidos de Deus, como uma divisão orgânica em Seu
Deus. Isto é um assalto à lógica, que o evoluído não pode acei- seio, não podiam possuir o conhecimento do Todo, que só Deus
tar. Mas a maioria dos homens é presa de ilusões de ótica psí- possuía, porque só Ele era o Todo, enquanto eles eram apenas
quica e de perspectiva mental, porque neles, mais do que a lógi- momentos da Todo. Eles eram, certamente, perfeitos, mas den-
ca e o raciocínio, impera o instinto de auto defesa na luta pela tro do limite dado pelo fato de serem uma parte, e não o Todo.
vida. Ora, na procura do responsável pelo mal, pela causa da Somente a totalidade que eles formavam, isto é, o conjunto or-
dor, repugna a este tipo biológico admitir e confessar a própria gânico do Todo, de que eles eram parte no Sistema, podia coin-
culpa, porque sua vida gira integralmente em torno da seleção cidir, também no conhecimento, com o Todo – Deus. É assim
animal do mais forte, que é aquele que sabe vencer, não impor- que cada um deles não podia ser onisciente, porque a parte po-
tando os meios. Então confessar-se culpável é perder; defender- de ter um conhecimento perfeito, nos limites do próprio ser,
se é necessidade, ainda que, em plano mais elevado, semelhante mas não pode alcançar o conhecimento do Todo. É óbvio, pois,
modo de proceder se reduza a absurdo. Assim, para não acusar a que, para seres assim perfeitos, mas limitados em face de Deus,
si próprio, chega-se até mesmo a acusar a Deus. É somente a fal- Que, como é lógico, devia ser mais do que eles, pudesse existir
ta de capacidade de raciocínio que permite imaginar um absurdo uma zona que o seu conhecimento não podia atingir. Essa zona
tão incrível, como o erro e a culpabilidade de Deus. do ignoto foi o campo da queda.
É aqui o caso de se perguntar se esta atitude mental não Essa zona desconhecida não somente faz parte da lógica e
constitui uma prova da queda, se ela não deriva da natureza do da estrutura do Sistema, mas também desempenhou um papel
rebelde e da persistência do originário espírito de revolta. Tudo específico em relação à liberdade do ser. A sua função foi servir
isto revela e confirma a perpetuação de uma corrente, de uma como meio de prova da amorosa obediência a Deus e da espon-
força que continua a manifestar-se na sua direção inicial. Ima- tânea e livre adesão à ordem da Lei, como era dever da criatura
ginar a possibilidade de culpa divina é prosseguir rebelando-se demonstrar para com o seu Criador. É lógico que a célula – fa-
em favor do próprio ―eu‖ e contra Deus, o que é culpa de ori- zendo parte de um grande organismo, nele e dele vivendo, co-
gem, o ponto de partida que torna e retorna na normal psicolo- mo sucedia aos espíritos puros no seio de Deus – deva aceitar e
gia humana de abuso. exercer as leis do organismo, mesmo quando, sendo limitada,
Diz-se também: ―Sim, o homem errou, mas a culpa é de não as pode conhecer e compreender. E, de fato, as células de
Deus, que o criou assim. Ele deveria criar um ser que não pode- nosso organismo humano, mesmo possuindo uma vida autôno-
ria errar‖. Como se vê, persistimos sempre na atitude de quem ma, obedecem à lei do conjunto orgânico – lei superior à delas,
pretende fazer uma escola para Deus, a fim de ensinar-Lhe a de simples células isoladas – e nelas se coordenam em obediên-
operar, sobretudo segundo as nossas próprias conveniências, cia. Obediência necessária, porque sem ela teremos uma anar-
que se cifram em gozar sem sofrer. Esta é uma concepção an- quia, o que faria ruir todo o Sistema. A coordenação na ordem é
tropomórfica, para uso e consumo exclusivo do homem. Encon- sempre indispensável em qualquer todo orgânico.
tramo-nos aqui nas últimas raízes da dor, nas suas causas mais Este confronto que fazemos aqui não é por acaso, porque a
profundas. Azorragado pela dor, o homem não quer compreen- estrutura de nosso corpo físico repete realmente o tipo de mo-
dê-la e, para livrar-se dela, sem nada haver compreendido, pro- delo originário, dado pela primeira criação, cuja estrutura nos
cura arredá-la de si e atirá-la nos outros, até mesmo em Deus, revela, ao mesmo tempo que nos explica, por que todos os or-
culpando-O. Como é raro encontrar o homem que reconhece ganismos, justamente por serem derivados do primeiro modelo,
em si as causas do próprio infortúnio, não as procurando nos são construídos segundo o mesmo esquema e correspondem ao
demais! A razão pela qual a tantos repugna a teoria da queda é mesmo princípio. É ele o princípio universal das unidades cole-
que ela humilha e nos induz a reconhecer os nossos erros. tivas, que já examinamos em A Grande Síntese. Este motivo
À medida que deixamos as causas acessórias e subimos pa- originário ou tipo construtivo fundamental da criação vai sendo
ra as mais remotas, o problema se concentra, por inteiro, no repetido, como um eco, em todos os níveis evolutivos, até nas
momento psicológico da revolta. Da forma como o homem menores criações, que são consequência da primeira, à guisa de
propõe comumente a questão, parece que não podemos fugir desintegração atômica em cadeia. É assim que as unidades
ao seguinte dilema: ou os espíritos eram sábios e, portanto, não maiores são formadas de agrupamentos de unidades menores, o
podiam cair, porque sabiam as consequências, ou eram igno- que explica o instinto de viver em sociedade, o espírito gregário
rantes e, então, não podiam ser culpados da queda nem respon- tanto entre os homens como entre os animais, para vencer na
sabilizados por ela; em outras palavras: ou Deus criou um espí- luta pela vida. É assim que, nas unidades maiores, as menores
rito que sabia e que, por isso, não podia cair, ou o criou insci- possuem funções menores, em que elas se especializam.
ente e, então, não o podia punir. Diz-se, igualmente, que o mal Foi assim, pois, que existiu para os espíritos puros uma zona
existe de fato, como força inimiga de Deus. Se ela não foi cri- situada além do seu conhecimento, zona reservada a Deus, na
40 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
qual eles não deviam nem podiam entrar, sem formar um estado mo para Deus, visto que assim Ele não cai no absurdo e na con-
de anarquia, que teria atentado contra o próprio Sistema. Era tradição, respeita a Sua lógica e, por conseguinte, a Si próprio.
essa uma zona em que se devia somente acreditar, obedecendo. Não sendo, então, possível, sem violar a ordem do Todo,
Ela possuía, desta forma, a função de propiciar um tipo de conceder um conhecimento direto e total, abrangendo também a
exame; um consentimento pedido e feito por amor, livremente; zona do desconhecido, Deus comunicara aos espíritos um co-
uma arguição em que o Criador interrogava a criatura, para que nhecimento indireto, isto é, advertira a respeito do que poderia
ela declarasse a sua aceitação, sem coação, permutando amor suceder. Por que os rebeldes não obedeceram? Por que não
com amor. Eis a zona em que podia nascer e nasceu o erro. acreditaram na palavra de Deus? Eis a culpa. Ademais, um co-
Alguns espíritos responderam com obediência, aceitando por nhecimento completo teria anulado a possibilidade de escolha,
amor e por fé, permanecendo fiéis a Deus, em Sua ordem. Ou- a prova, a aprovação, a aceitação por ato de obediência, en-
tros, todavia, sempre livres, desejaram ultrapassar o limite prefi- quanto a lógica do Sistema exigia uma aceitação livre, espontâ-
xado e, usurpando poderes, entraram no domínio proibido, re- nea, por obediência e por amor, porque era justamente sobre es-
servado somente a Deus. Eles quiseram usar a liberdade, o pode- ses alicerces que se erguia todo o Sistema e essas eram as con-
rio e a sabedoria recebidos de Deus para ainda ampliar o princí- dições necessárias para que se mantivesse. O ser era livre e sa-
pio do ―eu sou‖, que Deus havia colocado como base dos seres, bia, pois fora advertido. Ele, deliberadamente, não quis crer e
à Sua imagem e semelhança; quiseram ainda crescer, ao invés de obedecer. A escolha não estava vinculada a nenhuma força,
coordenar-se em obediência na ordem do Sistema; pretenderam porque Deus quis, acima de tudo, a liberdade do ser, para que
crescer além do limites da natureza de seu ser, que Deus lhes as- ele não fosse um autômato ou escravo. Nem era possível que do
sinalara. E o que sucederia se uma célula do corpo humano qui- Seu seio saísse uma criatura que Lhe fosse semelhante, se não
sesse equiparar-se ao nosso ―eu‖ e usurpar os poderes centrais, fosse livre. Com a revolta, faltaram ao edifício as bases da obe-
assumindo a direção de todo o funcionamento orgânico? Certa- diência, do amor e da ordem, e, onde eles faltaram, o edifício
mente, onde existisse desordem o Sistema desmoronaria. desmoronou. Então a zona de conhecimento que, sendo direta-
Não restou como um instinto fundamental da vida o impul- mente inacessível, fora indiretamente comunicada sob a forma
so de crescer além dos limites, invadindo, usurpando e impon- de advertência, para ser aceita por fé – zona que os espíritos
do-se? Assim ele se explica. E não sucede sempre a mesma coi- obedientes conquistaram por crer e obedecer – os espíritos re-
sa, isto é, que a Lei – o instrumento que exprime o pensamento beldes foram condenados a conquistar pela dor, através da dura
e a vontade de Deus – mantém todos os seres dentro dos devi- fadiga da reascensão pela evolução. Assim, o erro é reabsorvido
dos limites? Todos desejariam crescer ao infinito, como se pre- na dor, o mal é sanado, o edifício desmoronado é reconstruído.
tendessem escalar Deus, mas a Lei lhes serve de freio e os re- Por que é difícil a compreensão desse ato de revolta, se con-
põe em seus limites, disciplina-lhes o desenvolvimento, guia- tinuamente violamos a Lei, embora sabendo que devemos pa-
lhes a ação através dos instintos e os mantém no posto que lhes gar? Sabemos e, entretanto, nos iludimos, porque somos venci-
fora designado na estrutura orgânica do Sistema. E a realidade dos pelo instinto dominador e expansionista do ―eu‖. Como da
quotidiana da vida não repete aos nossos olhos as mesmas coi- primeira vez, o mesmo ato repercute e retorna em nossa experi-
sas? Nós também dizemos às crianças, ávidas de romper o freio ência cotidiana. E, por ventura, não comprovamos em nossas
do limite, para não fazer isto ou aquilo, a fim de evitar-lhes da- vidas que do erro nasce a necessidade de remediá-lo, nasce uma
no e, frequentemente, eles não obedecem e depois pagam com a dor pela qual expiamos e, expiando, aprendemos a não mais
dor, que é, quando erramos, a salutar lição para nos reconduzir cometê-lo? Não vivemos nós comprimidos nas malhas de uma
à ordem. Assim também, automaticamente, devem recair nos lei onde qualquer violação é erro, o qual pagamos com dolorosa
espaços vitais que lhes cabem todos quantos tentam evadir-se, experiência? Mas, apesar de tudo, continuamos a violar, sendo
violando a Lei. Quem espera vencer sem esforço, isto é, fora da a dor um tributo nosso. A Lei é perfeita, e quem a cumpre não
Lei, perde e paga. O prazer fora da ordem, no vício, acarreta so- pode deixar de ser feliz. Se a dor é um fato real, inserido em
frimento e obriga a pagamento. nossa vida como elemento inseparável e fundamental, isto só
Ora, os espíritos sabiam os seus limites e não deviam ultra- pode ser explicado como um erro proporcional à fundamental
passá-los; sabiam ser parte de um sistema a ser respeitado, com violação inicial da ordem divina.
cuja lei deviam harmonizar-se; sabiam que era dever não ir A dor é um fato inegável e tremendo, que, cedo ou tarde,
além dos limites assinalados nem invadir a zona reservada a atinge a todos, porque é inevitável. Sem a queda, a dor seria
Deus. Tudo isso sabiam bem. Não foi por ignorância que erra- uma condenação imerecida, o belo presente dado por um Deus
ram. O seu ato foi uma revolta consciente, feita, portanto, com que cria por amor! Seria, porém, um presente de ódio, ainda
plena responsabilidade. Os espíritos podiam ver escrita no pen- que nos servisse para pagarmos uma futura felicidade. A evo-
samento de Deus a norma que lhes era pedido – como seres lução é o necessário sacrifício da subida, se não quisermos
sempre livres, mas responsáveis – aceitar espontaneamente. agravar a nossa situação, descendo. Somente nesse sacrifício
Eles não a aceitaram. Ouviram a palavra de Deus e não quise- de ascensão está a salvação. Sem a queda, porque esse sacrifí-
ram acreditar. E nesse ponto deviam acreditar, pois não conhe- cio? Talvez para pagar a Deus o dom da vida? E onde está a li-
ciam todo o Sistema, já que o conhecimento total só cabia a berdade e o amor, quando se é constrangido pela força a pagar
Deus. Eles conheciam o Seu comando, a norma a seguir, mas tão caro essa vida, que o espírito não pediu a Deus? Mas que
uma coisa ignoravam, pelo menos por experiência própria dire- Deus seria esse que não saberia gerar senão na dor, não reser-
ta: a desobediência faria os rebeldes decaírem, gerando a dor, vando à criatura mais do que a dor?
que eles ainda desconheciam. Como se vê, se recusamos a teoria da queda, entramos nu-
Pode-se objetar: ―Mas Deus deveria ter dado esse conheci- ma insolúvel trama de contradições e absurdos, de que nasce
mento‖. Há, todavia, uma imprescindível necessidade lógica, uma triste ideia da divindade. O homem pode bem justificar-
que impede tenha o absurdo lugar no Sistema. Deus não podia se, fazendo do erro da criatura um erro de Deus, mas não há
tirar do Seu seio tantos deuses iguais a Si mesmo, pois, como quem não veja nisso um absurdo. Na vida, temos que nos re-
tais, seriam senhores de todo o conhecimento. Ele não podia de portar ao erro para explicar a dor, porque ele é essencialmente
Si mesmo, que era o Todo, tirar senão momentos menores que um estado de desarmonia na ordem da lei de Deus. Ora, pode-
o Todo, dotados, pois, de conhecimento menor e parcial, em fa- mos nós admitir um erro em Deus? Não, é absurdo. Então, on-
ce do Seu, o único que podia ser total. Tudo isto está implícito de poderá ele ter existido, senão na criatura? É inútil procurar
na lógica do Sistema e constitui, assim, uma necessidade, mes- mais, pois não há escapatória.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 41
Que resta, então, do dilema já proposto: ―Ou os espíritos existe justamente uma realidade para torná-las possíveis. E esta
eram sábios e, por conseguinte, não podiam cair, ou eram ig- realidade está em que o homem é realmente feito à imagem e
norantes e, nessas condições, não podiam ser culpáveis?‖. Que semelhança de Deus, porque é Seu filho, de origem divina e,
resta do outro dilema, pelo qual Deus não podia ser nem oni- ainda que filho degenerado, é sempre filho, semelhante ao Pai.
potente nem perfeito? Deus que nos salve dos dilemas, que pa- Ora, tudo o que houve na revolta e queda é igualmente pro-
recem uma tenaz de aço, mas que nada comprimem, porque, vado pelo fato de que, como também é lógico, tudo isso conti-
no fim, descobre-se que um dos seus braços era fictício. In- nua a ocorrer todo dia em nossa própria vida, em uma série de
cumbe-nos mostrar a lógica dos fatos. Os espíritos sabiam que maneiras de agir, verificada por motivos de um dado tipo, que,
a zona do ignoto era destinada à obediência. Eles sabiam, não de outra forma, ficariam sem ter explicação. Por que teria a con-
eram ignorantes, sendo, por conseguinte, responsáveis e culpa- duta humana assumido esta direção? Por que corresponde ela a
dos. Sabiam o quanto bastava para obedecer e não quiseram, tal ordem de princípios conhecidos, como o bem e o mal, a dor,
porque não acreditaram. Tudo foi merecido, segundo a divina o progresso, a ideia de Deus etc.? De onde surgiu este sistema,
justiça. Só assim poderia permanecer intacta a liberdade. E o que também é lógico para a humanidade inteira? Como explicar
amor de Deus persistiu, porque, no Seu aspecto imanente, Ele a gênese e o profundo significado de tudo isto? O hábito nos faz
desceu com a criatura, para ajudá-la a subir. Só assim se com- esquecer estas questões, por isso os simples não as propõem,
preende e justifica o sacrifício da evolução. Somente assim a achando tudo natural apenas porque sempre viram tudo assim.
dor nos revela a sua lógica gênese. Unicamente desta maneira Mas isto não basta para satisfazer a quem pensa. Somente este
se confere um valor lógico a todos os termos da equação, tor- conjunto de remotíssimos precedentes pode ter marcado a via e
nando possível coordená-los em um princípio unitário dentro a direção para um movimento ou desenvolvimento particular de
de um sistema orgânico. Caem assim apenas os rebeldes. Ex- fenômenos que, atualmente, por inércia, continuam a se desen-
plica-se então a gênese do universo físico, a evolução das di- volver justamente segundo o tipo com que nasceram. Somente
mensões, o espaço curvo em expansão, o processo evolutivo. assim podemos explicar porque continuamos a errar e sofrer ce-
Desta forma explica-se tudo; de outro modo, nada. O grande gamente, quando a felicidade está pronta na adesão à Lei. Con-
desmoronamento é um desastre, mas o Sistema é tão perfeito, tinuamos, porque somos filhos do erro.
que pode restabelecer-se. Tudo se reduz a uma lição instrutiva, Erro e dor são conexos em uma lógica de ferro. A dor é um
para que se aprenda a não mais errar. Compreende-se então o fato real. Há, pois, uma necessidade absoluta de admitir o seu
significado da dor, amarga medicina que cura o enfermo e eli- termo paralelo e complementar: o erro, sem o qual a dor não se
mina o mal, que restaura o ser no ponto em que se feriu ao er- explica e, num universo lógico, cairíamos num flagrante e in-
rar e o robustece nos lugares em que se revelou fraco e ignaro. concebível absurdo, um absurdo de tal ordem, que faria ruir a
Não é este o processo corretivo de todo erro nosso em cada re- lógica de todo o sistema, provocando o seu desmoronamento e
encarnação? Nada de vingança punição ou condenação, mas chegando mesmo a macular de maldade e incoerência o sem-
escola para a reconstrução da felicidade! blante de Deus. É tão grande a contradição, que nenhum ser ra-
Quisemos acrescentar tudo isto, mesmo repisando alguns cional poderá introduzi-la nas próprias conclusões. Entretanto
conceitos, a fim de que tudo seja exaustivamente controlado pe- se chega a ela, o que quer dizer que os termos em que foi colo-
la lógica e claramente demonstrado para todos. cado e desenvolvido o problema estão errados. A lógica tem
◘◘◘ suas exigências matemáticas, das quais o nosso pensamento não
Tudo que dissemos tem sua lógica. Logo, que as coisas se- pode fugir, porque ele se move num universo regido pelas ne-
jam assim, não padece dúvida. O nosso problema, aqui, reside cessidades matemáticas de tal lógica.
em fazer a psicologia moderna compreender que é realmente Compreende-se, todavia, que alguns se rebelem contra essa
assim, em termos que ela possa aceitar, dada a sua formação. teoria da queda e do desmoronamento. Para impressioná-los
Não há razão que nos leve a crer que o universo seja uma obra menos, poder-se-iam criar termos novos, mas seria trabalhosa
ilógica e que o pensamento de Deus, que tudo guia e sem o qual para o leitor uma terminologia nova. Contudo o conceito não
nada se explica, não deva ser um processo lógico. A mais avan- se alterará. Rebelam-se com razão, porque essa teoria foi até
çada ciência materialista, ela própria, já admite isto, que tam- hoje apresentada apenas como enunciado de revelação, e não
bém ressalta na presente obra. ―Mas que lógica?‖, poderemos explicada e demonstrada através de uma análise racional e ló-
indagar. A lógica de Deus não poderia ser um outro sistema de gica. Ela permaneceu, assim, como um ato de fé, como uma
lógica? O fato é que, em nosso universo, comprovamos um só lenda envolta no mistério.
tipo de lógica, que é também a humana, e é este fato que nos O problema, para sua explicação, foi enfrentado com as já
torna o universo compreensível. Se este correspondesse a um expostas objeções e dúvidas, que deixam tudo sem solução, qual
outro tipo de lógica, não lhe seriam aplicáveis os nossos siste- indagação feita pela metade na fase de interrogação, sem com-
mas matemáticos, aos quais, pelo contrário, ele corresponde plementar-se jamais na fase de resposta. É natural que, dessa
perfeitamente. Não existe, pois, razão alguma para crer que a forma, a teoria da queda permaneça como um esboço incomple-
lógica do pensamento de Deus deva obedecer a leis diferentes to, do qual se arredam entediadas as mentalidades racionais. É
daquelas a que obedece a lógica humana. Entre o pensamento cabível, então, que a elas repugne aceitar uma teoria que se
do homem, como função primeira do espírito (que vimos não apresenta vaga, incontrolável e contraditória. Responde-se: é
poder ter sido originado senão de Deus – espírito), e o pensa- mistério. Mas o fato é que a mentalidade racional moderna
mento de Deus deve existir um denominador comum, por mais abandona no vazio do incerto tudo o que ainda permanece inso-
remoto e profundo que seja, dado pela mesma substância que os lúvel, aceitando e tomando para exame apenas o que é positiva-
constituem. Há ideias axiomáticas, não demonstradas, com as mente compreensível, porque é racional. E aqui temos de falar
quais instintivamente toda a humanidade concorda. São concei- esta linguagem se quisermos despertar a mente moderna. É o
tos metafísicos, que não constituem resultado da experimenta- nebuloso, o desgaste pelo ilógico, que faz nascer nela fastígio e
ção biológica. O fato é que, no fundo do pensamento do ho- rebelião, quando ouve falar em queda dos anjos. É reportando-se
mem, quanto mais reto, evoluído e inteligente for ele, tanto aos velhos conceitos tradicionais que muitos ficam chocados.
mais fala o pensamento de Deus com a sua lógica. Na verdade, Mas aqui se trata de outra coisa. Nós não repetimos ideias
o homem tem de Deus uma representação à sua imagem e se- de nenhuma religião ou escola. Com o método da intuição, en-
melhança, criando-O dessa forma. Mas aqui se trata de uma das caramos os fatos – transcendentais, mas sempre fatos. Sem tê-
aproximações sucessivas, que só são possíveis quando sob elas los procurado, concordamos com os enunciados sumários da
42 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
revelação, o que é uma prova em favor, e não contra. Já que não da liberdade, pois que a criatura não podia ser um autômato, ain-
é possível dar ao leitor a sensação desta visão, procuramos des- da que perfeito. A prova era um exame lógico e necessário.
crevê-la com os únicos meios que temos à disposição: a lógica Pode-se objetar que Deus, por saber com antecipação que
e os argumentos, como só se pode fazer para explicar a luz a muitos falhariam na prova, devia impedi-la. Mas não se pode-
um cego. Acreditamos tê-lo conseguido. Mas se assim não foi, ria evitá-la, senão violentando a liberdade do ser, tornando-o
repetimos ainda: fatos são fatos. um autômato, incapaz de compreender e dirigir-se consciente-
Dizíamos que a Lei reage. Mas aquilo a que chamamos dor, mente. Significaria alterar todo o Sistema, abalando-o pela ba-
que crucia, é atribuído a Deus, a causa de tudo, culpando-O se. O raciocínio do homem preocupa-se, sobretudo, em como
também dela. Revoltam-se porque acreditam ver em tudo isto se poderia ter evitado a dor, que tanto o vergasta, mas não leva
uma punição, uma vingança divina. No entanto a queda não foi em consideração muitos outros elementos necessários. Como
vingança, nem punição. Deus é sempre amor. Deus jamais pu- podia Deus, logicamente, impedir pela coação semelhante ex-
ne. A punição é infligida pelo ser a si mesmo. Dada a estrutura periência? A prova consistia exatamente em uma livre adesão
do Sistema, ele, através da rebelião, lacerou as carnes com as por fé e obediência, na reciprocidade por amor. Se não entrava
próprias mãos. Quem compreendeu a estrutura do Sistema não na lógica do Sistema a possibilidade de tal constrição, Deus,
pode falar de vingança. Esta é uma concepção antropomórfica, que sabia da queda de muitos espíritos, não os deveria ter cria-
é como querer explicar o trovão como ira dos deuses. Se per- do então? Mas o Sistema é um organismo compacto, de férrea
demos o equilíbrio e quebramos a cabeça, não é porque as leis lógica, e nela não podia caber essa possibilidade, que teria sido
do equilíbrio e a gravidade nos tenham querido punir e vingar- um ato de flagrante injustiça. Por que tolher aos candidatos à
se. No campo moral é a mesma coisa. O universo é regido por queda o dom máximo da existência e a possibilidade de redi-
uma ordem, por uma lei. Quem a viola não violenta ou altera a mir-se, alcançando a felicidade eterna, ainda que através da
intangível ordem divina, mas gera apenas uma desordem em si dor? Que punição e que injustiça não teriam sido essas, pois
próprio; não subverte a Lei, mas inverte-se a si mesmo no seio que seria condenação antecipada de inocentes, antes de have-
da Lei. É necessário compreender que a criatura é livre, mas rem cometido qualquer erro! É lógico que Deus deixasse a es-
dentro de limites; livre para alterar-se a si mesma, mas não a ses espíritos a liberdade e a vida, que constituem sempre ato de
ordem universal. A criatura deverá, pois, sofrer as consequên- bondade e de amor, porque a escolha continuava entre a via
cias dessa alteração, que diz respeito só a ela, e sofrerá pela sua curta da felicidade pela obediência à ordem da Lei e a via lon-
desarmonia, que ela desejou, até reintegrar-se através do sacri- ga da redenção pela dor, após o erro da revolta.
fício na zona por ela violada, na ordem por ela alterada. Deus permitiu o erro justamente porque sabia. E sabia tam-
Dizíamos que a Lei reage. Mas aquilo a que chamamos rea- bém que esse não era um mal irreparável, mas apenas uma via
ção é uma sua resistência à deformação, uma resistência elásti- mais longa para alcançar a felicidade eterna. Vimos que o mal
ca que se pode comparar à da borracha, que cede, mas resiste, e ou se converte em bem, ou está destinado, pela férrea lógica do
que, quanto mais cede, tanto mais se retesa, para reconduzir tu- Sistema, à autodestruição. Deus sabia que a Sua criatura, qual-
do ao estado normal anterior. Assim a Lei, como norma, é invi- quer que fosse a via que tivesse escolhido para percorrer, alcan-
olável, determinística vontade absoluta de Deus. Mas essa Lei é çaria a felicidade. Eis que o amor, a bondade, a justiça, a lógica
dotada de uma certa elasticidade, no quanto basta para conter de Deus ressaltam sempre mais evidentes em cada caso. Fala-se
um dado âmbito no arbítrio e amplitude de movimento, que re- de vingança por cegueira, e não se vê que o amor de Deus foi
presentam a liberdade humana, isto é, a possibilidade de esco- tanto, que, como Filho, desceu ao nosso mundo para sofrer co-
lha e, por conseguinte, de erro, necessários para experimentar e, nosco e redimir-nos, ensinando-nos a subir! Foi tamanho esse
no caso de erro, para aprender. Compreende-se que a perfeição amor, que Ele quis descer dos céus, da transcendência à ima-
não pode deixar de ser determinística, no sentido de que só o nência, para permanecer em nosso contingente. Assim, o médi-
melhor absoluto pode ocorrer. Tal é o sistema incorrupto dos co vela e ajuda o enfermo de perto, até que ele se tenha restabe-
espíritos que não erraram e não caíram. Pode, pois, deste ponto lecido. Que mais se poderia pedir a este Deus, que muitos pre-
de vista, parecer mesmo que o arbítrio humano, além de ser um tendem acusar de injustas punições? Ao contrário, quanta sabe-
resíduo da liberdade originária, seja um produto da queda, visto doria, quanto amor, quanta bondade! Só mesmo uma grande ig-
que a escolha significa uma incerteza e uma procura do melhor norância pode concluir de maneira diversa.
absoluto, que se perdeu e ainda não foi reconquistado. Os ter- É o antropomorfismo que leva o homem a aplicar a Deus
mos do nosso estado de decaídos escalonam-se nesta ordem de os princípios do seu plano biológico. Repitamos: Deus jamais
sucessão: incerteza, escolha, experiência, erro, dor, prova, esco- pune. O que nos parece punição não é resultado de uma ativi-
la, conhecimento. Estes são os termos do desmoronamento e dade positiva de Deus contra a criatura – conceito absurdo –
reconstrução de consciência, termos que não podem existir no mas sim a automática consequência da ausência de Deus,
estado de perfeição e que a própria evolução, isto é, nosso re- quando Ele é repelido pela criatura. A causa determinante é a
torno a Deus, vai realmente reabsorvendo e eliminando com a recusa voluntária da criatura. Deus não inflige punições, mas,
progressiva conquista de consciência. No estado de perfeição quando a criatura O nega e repele, Ele respeita a liberdade que
dos espíritos que aderiram à Lei, só há uma liberdade possível: lhe deu e, assim, pela própria vontade, a criatura se afasta de
a absoluta adesão à Lei, que é a vontade divina; adesão livre e Deus, como se Ele se tivesse retraído. Ora, uma vez que Deus
espontânea, querida e consciente. Por este motivo os espíritos é vida, a maior punição é esse afastamento, porque significa
rebeldes deveriam ter obedecido e, como desobedeceram, caí- privação de vida. E, com a revolta, a criatura se privou da pró-
ram. Nessas alturas não podem subsistir os nossos conceitos an- pria vida, que é dada pelo espírito, tornando-se matéria, mas
tropomórficos de liberdade, arbítrio ou capricho. com possibilidade de ressuscitar da sua sepultura.
Mas esclareçamos ainda melhor. Quando Deus criou o ser Tudo isto demonstra como se fosse lógica e fatal a queda
puro espírito, deixou apenas um ponto incompleto na Sua obra, a após a revolta, porque esta significava um afastamento de
fim de que ela fosse completada pela livre adesão do ser. Este Deus, ou seja, da vida; significava, portanto, um suicídio, a
deveria, com a aceitação, harmonizar-se com o Sistema e, nele morte, ainda que a bondade de Deus lhe deixasse a possibili-
fixando-se em seu posto, dar prova de que sabia fazer bom uso dade de ressurgir para a vida, corrigindo o erro com a dor. Tu-
da liberdade e inteligência que Deus lhe dera, compreendendo do isto poderá agora nos permitir melhor compreender também
qual era o seu lugar na ordem da criação. Elevar o ser ao grau de aquilo a que já nos referimos precedentemente, no presente ca-
colaborador da obra de Deus foi ato de amor, ato paralelo ao dom pítulo, com respeito à anulação dos espíritos rebeldes, que in-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 43
sistem em permanecer na rebeldia. O espírito que recalcitra na orgânica, que a revolta não lhe afetou a perfeição, permitindo
revolta é anulado (ainda que o seja somente como individuali- que todos se salvem. Finalmente, desaparecerá qualquer traço
zação, e não como substância, porque esta, sendo de Deus, é de erro com suas consequências, sendo o mal e a dor elimina-
indestrutível), em virtude de que todo o afastamento de Deus dos do Sistema. A cruz que Cristo tomou sobre os ombros ino-
significa morte, porque Deus é vida. Negar Deus é o mesmo centes era o efeito do desmoronamento. Ele a carregou para
que negar a existência, porque só Deus é, e fora de Deus nada que todos, com Ele, reabsorvessem na dor a consequência do
mais pode ser. Deus é o Todo, e sair do Todo é cair no nada. erro. Que maior amor poderia revelar pela sua criatura um
Fora de Deus, que é o Todo, não pode existir senão o nada. É a Deus Que, após lhe haver dado a vida, desce a sofrer com ela
natureza de Deus e a própria estrutura do Sistema que, automa- para devolver-lha, quando ela já a havia perdido?
ticamente, sem nenhum ato ou intervenção de Deus, implicam É bom, é lógico, é satisfatório reconhecer no amor o centro
a morte de quem se afasta Dele. Somente em Deus é possível do Sistema. É este princípio de amor o princípio de coesão que
existir, no seu seio e na sua lei, e a Ele retornando, se a criatura mantém una a Divindade, ainda que, para criar, ela se cindisse
se afastou. Quem não estiver com Deus, afastando-se Dele e no seu íntimo (dizemos íntimo, porque nada se pode acrescen-
não mais retornando a Ele, perde a existência. tar ao Todo, e Deus é o Todo). É este princípio de amor que
A essência da queda não é, portanto, um ato de punição, também mantém unido o edifício desmoronado e o reconduz à
mas o afastamento de Deus, desejado pela criatura, que tem fa- salvação, mesmo que seja através da dor. Quanto mais se desce
tal necessidade de subir novamente a Ele, se quiser reencontrar nos planos da queda, tanto mais áspera é a dor e tanto mais
a vida. Como o edifício criado por Deus se poderá manter sem amarga de ódio. Quanto mais se sobe na evolução, tanto mais
Deus, seu princípio animador? Não será lógico o desmorona- dulcificada pelo amor ela será. Assim, a dor de Cristo na reden-
mento para os seres que se afastaram desse princípio? A revol- ção está baseada no amor, enquanto a dor de Satanás não tem
ta contra Deus significava revolta contra a própria vida do ser, esperança de ascensão e é baseada no ódio. Amor invencível,
contra a sua própria existência. O que poderia resultar desse que resiste à revolta da criatura. Amor que conserva, mesmo no
comportamento, senão a morte, um não-ser, como é para a universo decaído, o divino princípio positivo da reconstrução!
consciência (qualidade do espírito) a inconsciência (qualidade Amor que luta contra o satânico princípio negativo da destrui-
da matéria)? Assim a queda foi um desmoronamento de di- ção, e o vence. Amor que permanece, ainda que a revolta tenha
mensões em planos de vida inferiores, involuídos, em que to- sido a resposta da criatura com a sua negação! Amor que conti-
dos os dons de Deus se contraíram em um estado potencial, de nua a cimentar as partes do edifício desmoronado, fazendo dele,
latência, do qual só o sacrifício de ascensão do ser poderá reti- mesmo assim, um sistema orgânico como é o nosso universo!
rá-los, despertando-os para a atualidade. Ora, o ser, para curar- A criatura rebelde pretendeu atentar contra o Sistema para
se da desobediência, deve compensar a ordem com equivalente lhe alterar os planos hierárquicos, e ele, baseado em uma férrea
obediência à Lei, para que o equilíbrio seja restabelecido. Não lógica de amor, resistiu e a está salvando. E a pena para a re-
se pode em tal sistema restabelecer a harmonia de outra forma. volta é uma lição de amor, porque, se é dor, também é impulso
O homem deve, assim, provar o aspecto duro da Lei, mas esta e pressão para a reconquista da felicidade. O ser deverá sofrer
permanece sempre lógica, boa e justa. No fundo da descida es- até aprender a grande lição de amor, até saber como deveria
tá o inferno; no ápice da subida, o paraíso. De fato, quanto ter, no início, espontaneamente retribuído a Deus o amor que
mais se desce, mais aumenta o egoísmo separatista, a desar- de Deus recebeu. Sem o amor, o Sistema não se mantém, como
monia, a luta e a agressividade entre os seres, sempre dispostos efetivamente se verificou no desmoronamento, onde ele faltou.
a entredevorarem-se. Quanto mais se sobe, tanto mais a vida se Sem o amor, a criação teria sido uma cisão de Deus em partes,
harmoniza em paz e amor. e o Todo não poderia conservar-se, em Deus, um organismo
Eis, pois, tudo esclarecido até às origens. Assim se explicam uno. Daqui a necessidade absoluta da existência no Sistema da
as razões e as causas deste processo evolutivo, do qual, em A livre correspondência de amor, que era o conteúdo da prova
Grande Síntese, só se fez um exame objetivo, uma comprova- em que os espíritos rebeldes falharam. Tudo isto, repetimos,
ção do fato. A muitos poderá desagradar este destino de tão la- porque, sem amor, o Sistema não se mantém. Eis o que está
boriosa ascensão pela conquista da felicidade. Mas não está tu- em seu centro e lhe constitui a essência.
do agora lógico? A nossa miséria atual não é um defeito de cri- Temos observado o problema sob todos os pontos de vista e
ação, uma culpa de Deus. É uma mácula, uma chaga nossa, que sob o fogo de todas as objeções. Agora, o desígnio da obra di-
Deus está curando. A dor permanece, mas com uma interpreta- vina está claro. Dele, como a nossa mente exige, foi eliminado
ção tão otimista, que adquire um grande significado positivo e tudo que é negativo e absurdo, como erro, imperfeição, desor-
um poder construtivo em nossa vida. E a criação, que verifica- dem, injustiça, maldade, que não podem ser atributos de Deus.
mos ser contínua, é assim, na sua essência, uma obra de resta- Não restou senão o que é positivo e lógico, como perfeição, or-
belecimento contínuo, com a qual Deus auxilia o homem a re- dem, justiça, bondade, amor. Um sentido instintivo nos diz que
construir o edifício desmoronado. Assim, tudo se explica em é assim e não pode deixar de ser. Somente dessa forma o nosso
perfeita lógica de bondade. Se, nessa lógica do Sistema, colo- espírito se sente satisfeito, saciado e receptivo. Ele exige que a
carmos os conceitos fora do respectivo lugar, é natural que re- ideia de Deus se salve e se conserve. O resto não é explicação;
sultem quadros horríveis, monstruosos, como em um mosaico é blasfêmia! O princípio do amor está no vértice da criação, foi
em que as diferentes pedrinhas fossem assentadas ao acaso. o seu motor, é a força que rege. Deste vértice, o amor tudo
Mas respeitemos a lógica (o Sistema está saturado dela), e entre anima e sustém. Se em Deus existe o aspecto justiça, sabedoria,
nós aparecerá a maravilhosa beleza e perfeição do plano divino. bondade, lógica, ordem, poder etc., a última síntese do pensa-
Que maior maravilha do que o surgimento do aspecto ima- mento e vontade de Deus é dada pelo amor.
nência da Divindade, que assim permanece presente no univer- ◘◘◘
so desmoronado, nele descendo para animá-lo, curá-lo e salvá- Poderíamos, após o exposto, considerar exaurida a argu-
lo? Que perfeição no Sistema, fazendo com que um erro – a mentação e nada mais acrescentar. Queremos, todavia, ainda
revolta – ao invés de constituir um desastre irreparável, trans- esclarecer melhor qualquer dúvida, especialmente no que se
mude-se em um processo de restabelecimento semelhante ao refere à teoria, em que muitos creem, pela qual se admite, ao
que o poder curativo da natureza (imanência de Deus) exerce invés da queda dos anjos, uma criação progressiva, evolucio-
num organismo enfermo! Não. Não houve nenhum defeito de nista, no sentido de um universo criado imperfeito e a caminho
origem. Ao contrário, o Sistema é tão perfeito na sua estrutura de um aperfeiçoamento contínuo.
44 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Após ter submetido semelhante teoria a uma séria análise, sobre a criatura? O que se pode pretender de bom e o que pode
despidos de preconceitos, fomos obrigados a recusá-la, porque exigir o Evangelho de um ser criado em condições tão más,
ela nos levaria a cair numa série de absurdos, que nos permiti- quando a vida é uma condenação e a criação, um delito?
mos aqui sujeitar a exame. Não! Se verificamos que efetivamente a criatura sofre e pa-
Deus, sendo perfeito, não pode deixar de criar senão perfei- ga algo através de sua dor, devemos, por um senso de lógica e
tamente, mas teria feito uma criação imperfeita. Deus, Que é de justiça, admitir que ela deve pagar algo que lhe compete, um
Espírito e ordem, teria tirado diretamente da Sua essência a ma- erro ou uma culpa que seria absurdo atribuir à perfeição de
téria e o caos, que são o ponto de partida da evolução. Deus, Deus. Olhamos o efeito, e a sua natureza nos indica a causa que
que é tudo e representa toda a existência, pois fora Dele nada o produziu. Se tivesse sido o Criador a causa, Ele e ninguém
pode existir, faria derivar tudo do nada (a Sua negação, porque mais deveria expiar na dor. E como pode o Onisciente ter ne-
Deus é o ser), e a Sua grande obra criadora não passaria de uma cessidade da escola da dor para aprender?
inversão, restabelecimento ou reconstrução do Seu contrário. Como se vê, quanto mais se medita na teoria da criação
Isto presume um antagonismo, uma cisão e luta de dois princí- progressiva, mais se torna esmagador o acúmulo dos absurdos.
pios opostos na própria essência de Deus, independentemente e Se a alguém, por preconceito de grupo, pode desagradar a teo-
também anteriormente à criação. O ponto de partida desta esta- ria da queda dos anjos, apenas porque ela é admitida pela teo-
ria não em Deus, mas nos antípodas de Deus; não no absoluto, logia católica, incumbe-nos afirmar que nos preocupamos so-
no imóvel, no espírito, na perfeição – qualidades de Deus – mas mente em conhecer a verdade e que a aceitamos onde quer que
no relativo, no transformismo, na matéria, na imperfeição, que ela se encontre, desde que convença e satisfaça, independen-
são o oposto de Deus. É evidente que tudo isto não pode ser temente de qualquer preconceito de religião, escola filosófica
obra de Deus, pois Ele não pode errar, e sim obra de uma cria- ou grupo humano.
tura que podia e livremente quis errar. Tudo isto não podia nas- É oportuno indagar agora como pode ter surgido essa teoria
cer diretamente de Deus, mas somente em um segundo tempo, da criação progressiva, evolucionista, de um universo criado
posterior à primeira criação, por obra de um outro ―eu‖ e em imperfeito e em via de contínuo aperfeiçoamento.
consequência de uma outra causa. E, como tenha ocorrido isto, Essa teoria nasceu em virtude de corresponder à realidade do
procuramos logicamente demonstrar neste volume, de acordo que se observa, fornecendo-nos uma primeira explicação, embo-
com uma outra teoria, a da queda dos anjos, a única para nos ra superficial, do fato indiscutível da evolução, que realmente
salvar de tal cadeia de absurdos. leva o universo de um estado de imperfeição, caos, matéria, ao
Prossigamos no exame. Segundo a teoria da queda, Deus de perfeição, ordem, espírito. O fato existe. O erro está em sua
desce ao nosso universo por amor, para salvá-lo. De acordo interpretação. Ninguém ousará discutir o fato, porque é uma rea-
com a teoria da criação progressiva, Deus, Que é perfeito, põe- lidade. Se não quisermos, porém, cair nos absurdos menciona-
se – Ele, que é tudo – através de Suas criaturas, em um estado dos, impõe-se explicá-la não como consequência da obra de
de desmoronamento do ser, isto é, um estado em que a consci- Deus, mas como consequência do desmoronamento do Sistema,
ência, primeira qualidade de Deus, se anula na matéria. O ponto decorrente da queda por obra da criatura. O fenômeno da evolu-
de partida da criação progressiva seria um estado em que Deus ção não pode ser um absurdo e incompreensível caminho em
se autodestruiu nas Suas qualidades primaciais, estabelecendo a uma só direção, um semiciclo desprovido do seu semiciclo in-
própria negação na inconsciência, na dor e no mal, para iniciar verso e complementar, sem o que não se forma o ciclo completo
um penoso sacrifício de ascensão, cotidianamente imposto à e o fenômeno não se verifica nem se explica no equilíbrio divi-
criatura, certamente inocente de tudo isto. Os elementos fun- no. O fenômeno da evolução existe e é aceito, mas só se pode
damentais do Sistema, isto é, amor, bondade divina, liberdade compreendê-lo e admiti-lo como contraparte de um inverso pro-
da criatura, falhariam completamente desta maneira. E não se cesso involutivo, causado pela criatura. Esta devia necessaria-
poderia imaginar mais absurda violação da justiça no seio de mente ser livre, mas como não podia ser igual a Deus, era passí-
Deus, que não pode deixar de ser essencialmente justo. vel de erro e, por isso, embora advertida do perigo, quis por de-
O mal e a dor teriam sido, pois, obra direta de Deus e, por sobediência errar. É certo também que a criação é progressiva,
conseguinte, de Sua natureza malvada. Deste modo, a obra da mas não no sentido de uma nova criação, porque tudo já estava e
criação tornar-se-ia uma maldição para a criatura, uma conde- está em Deus sempre, e a Deus nada se pode acrescentar, assim
nação de que o ser inocente deve redimir-se à custa de um ili- como Nele nada se pode criar ou destruir. A criação é verdadei-
mitado tormento. Dever-se-ia dizer então não como escreveu ramente progressiva, mas no sentido de reconstrução de um edi-
São João: ―No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com fício desmoronado, do qual estão sendo juntadas as partes desa-
Deus‖, mas sim: ―No princípio era o mal e a dor, e eles estavam gregadas e reedificados os planos afundados.
com Deus‖. A grande obra divina teria sido a criação de um in- Em nosso universo, é absurdo um fenômeno unilateral, de-
ferno, e à criatura só restaria o penoso encargo de redimir-se sequilibrado pela falta do seu complemento compensador; um
dele com a própria dor. E tudo sem liberdade de escolha, sem fenômeno que avance em uma só direção, isto é, apenas um
culpa alguma, como uma fatalidade sem apelo. Para condenar a semiciclo, um semicircuito, significando um semifenômeno.
criatura, Deus não lhe teria pedido permissão, nem lhe teria da- Todo fenômeno tem de volver sobre si mesmo para completar-
do a faculdade de escolher. Desta maneira, ela já se encontra no se, permanecendo sempre a mesma substância, ainda que mude
inferno ao nascer, sem saber por que, automaticamente. Se qui- a forma, porque ele é apenas um estado de vibração interior
ser e souber subir através de seu sacrifício, para lhe fugir, con- com finalidade de elaboração evolutiva, e não um deslocamen-
segui-lo-á; de outra forma, nele permanecerá para sempre. to real. A mobilidade é, assim, só aparente, situada no relativo
Mas eis que, um dia, desperto de tão horrível obra, exclusi- de um vaivém cíclico, enquanto, no absoluto, tudo permanece
vamente Sua, Deus se arrepende e, para remediar o mal, verifi- imóvel. Sabemos que o transformismo é filho da queda, pois
cando que o homem por si não consegue subir, envia Cristo, o em Deus não há mutação nem evolução, mas tudo simples-
filho dileto, também Ele inocente, para ser sacrificado por um mente é. Tudo, pois, no universo, deve completar-se no seu
Deus injusto e pagar um débito que ninguém contraiu, nem semiciclo e com ele volver ao ponto de partida, porém com um
Cristo nem a criatura, ambos inocentes. Como se pode então pequeno deslocamento, que constitui a evolução. Todos os fe-
negar razão ao homem que blasfema contra semelhante Deus, nômenos caminham em duas fases inversas e complementares,
quando Ele lhe é apresentado revestido de tais absurdos? Se o sem o que, no transformismo, não pode haver fenômeno. Efe-
mal e a dor foram criações diretas de Deus, como atirar a culpa tivamente, este pode ser definido como um momento particular
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 45
do transformismo evolutivo. Por esta razão o fenômeno não rá. O homem atual é analítico, vê as coisas da Terra e do plano
pode existir no absoluto. físico, que ele confunde com a realidade e acredita ser todo o
A própria teoria da reencarnação, realizando contínuas in- universo. Por ser periférico, vê o Sistema de uma posição peri-
versões entre vida e morte, entre erros e expiações, prova-nos o férica. De tal ponto de vista, tudo deve evidentemente parecer
princípio fundamental do ciclo completo, composto de dois se- invertido. Hoje, de fato, a superação é frequentemente tida por
miciclos: queda e ressurreição. Há absoluta incompatibilidade patológica. Tudo depende do ponto de referência, que, neste
entre a teoria da criação progressiva e a teoria da reencarnação. caso, é representado pelo tipo biológico corrente, ou seja, pelo
Uma exclui a outra. Se admitimos a reencarnação, temos que involuído. É natural, então, que a catarse biológica, que é supe-
abandonar o conceito de criação unicamente progressiva e acei- ração e sublimação, vista assim de baixo, de uma posição in-
tar a teoria da queda. Se aceitamos a criação apenas progressi- vertida, possa parecer deformação e regressão, quando é for-
va, é necessário abandonar o conceito de reencarnação. Isto mação e progresso de vida. Este problema já foi por nós exa-
porque, segundo o princípio de criação progressiva, que se de- minado no Cap. XXVI – ―Sexualidade e Misticismo‖, do vo-
senvolve apenas no sentido evolucionista, sem o precedente lume precedente, Ascensões Humanas.
semiciclo involucionista, o criado deve mover-se em uma única Para aprofundar o fenômeno da sublimação espiritual, co-
direção, devendo ser desconhecido no sistema, jamais apare- meçamos aqui a orientá-lo, enquadrando-o no esquema do uni-
cendo, o princípio do ciclo. Se este princípio surge em um caso verso atrás exposto, que aqui resumimos em relação ao fenô-
particular, num universo que sabemos construído num tipo úni- meno, submetendo-o ao habitual método da intuição.
co de sistema, depois repetido em todos os níveis e dimensões, Por criação entendemos aqui o processo , isto é, a
isto significa que o referido princípio do ciclo está também no transmutação da substância única divina, eterna, incriada e in-
caso geral do tipo-base do sistema. Se o fragmento que reco- destrutível, do seu estado de puro pensamento, no de energia e, a
lhemos reflete, verificamos claramente que a unidade de que seguir, no de matéria. Já examinamos esse fenômeno, através do
esse fragmento deriva era um espelho. qual Deus vem a manifestar-se na forma; o pensamento, na ma-
Concluindo, procuramos neste capítulo prever todas as ob- téria; o imutável no vir-a-ser; o uno, no multíplice, fenômeno a
jeções possíveis. Mas, na realidade, elas podem ser tantas quan- que se deve a existência de nosso universo. Assistimos a um
tas são as formas mentais humanas, o que é um número prati- movimento centrífugo que, do centro, projeta-se para a periferia,
camente infinito. Para as que não puderam aqui ser imaginadas, na matéria, invertendo todas qualidades do espírito. São muitos
asseguramos ao leitor que as coisas ocorrem como realmente os aspectos do processo, mas todos redutíveis ao conceito de in-
estão expostas neste livro e que, sobre estas bases, qualquer di- versão do positivo em negativo, ou de subversão de valores,
ficuldade pode ser logicamente resolvida. O leitor inteligente, conceito que se pode resumir em uma só palavra: involução. Es-
que se apossou da chave do sistema, poderá fazê-lo racional- ta pode apresentar-se a nós como um desmoronamento do uni-
mente, desde que pense sem preconceitos e sem pontos fixos verso perfeito, originado da primeira e verdadeira criação perfei-
inamovíveis. No entanto, já que uma das primeiras condições ta, e isto como resultado da revolta e queda, de que já falamos.
para a aceitação de uma teoria é a sua clareza de exposição e Deste modo, o universo perde e inverte a sua qualidade de ori-
facilidade de compreensão, procuramos aqui traduzir, na forma gem na atual. Podemos, assim, compreendê-lo melhor agora.
mais transparente e evidente possível, o pensamento recebido Tudo isso sucedeu em uma primeira fase, de ida. O universo
por intuição, que, provindo de outros planos, dificilmente se atual, em que existimos, encontra-se na fase oposta, de retorno,
traduz em palavras humanas. isto é, não involutiva, mas evolutiva, de forma que a verdadeira
criação que Deus, nela imanente, está processando agora, lenta-
XI. A CAMINHO DA SUBLIMAÇÃO mente, através da evolução, tendo todos os seres como operá-
rios, é a atual, e não a precedente e inversa fase de desfazimento,
Nos capítulos precedentes, fizemos algumas observações que, se observada de nossa posição periférica, onde a existência
sobre o nosso mundo, para comprovar a sua posição periférica, é material, pode parecer criação. Tudo depende do ponto de vis-
consoante o plano do universo. Os poucos fatos escolhidos não ta. O mesmo processo , se visto de , pode parecer des-
passam de uma exemplificação particular. Muitos outros pode- truição; mas, visto de , pode ser tomado como criação. E, real-
riam ter sido aduzidos para confirmar a concepção de que par- mente, o nosso universo, construído assim na forma física, pode
timos e que apresentamos aos racionalistas apenas como hipó- ser definido como uma criação, mas no sentido físico. É certo,
tese de trabalho. Procuremos agora, uma vez observado o Sis- porém, que, se considerado do ponto de vista central do Sistema,
tema na sua posição periférica, percorrê-lo em direção ascensi- é uma demolição como espírito, cuja inversão representa. É bom
onal. Isto é importante, porque ela representa a única via de esclarecer tudo isto, a fim de evitar mal-entendidos. O nosso ha-
correção do Anti-Sistema e de evasão das suas dolorosas con- bitual conceito humano de criação é, como todos os nossos con-
sequências. Avizinhamo-nos, desta forma, do problema central ceitos, relativo a nós. A primeira, única e verdadeira criação foi,
da presente terceira trilogia – o da sublimação (v. Introdução do não uma criação do nada, mas uma emanação do seio de Deus,
volume Problemas do Futuro). de puros espíritos, em que Deus, o ―Eu Sou‖ Uno, Criador, quis
Para poder enfrentá-lo e resolvê-lo, é necessário antes en- refletir a Si mesmo, nela amando uma Sua diversa individuali-
quadrá-lo em nosso atual e mais amplo esquema do universo, zação em miríades de ―eu sou‖, Suas criaturas.
como, aliás, seria necessário fazer para qualquer problema, O que depois nós passamos a chamar criação foi o desmo-
sem o que ele se torna de difícil compreensão e solução. E o ronamento na forma-matéria de uma parte, que se rebelou, des-
fenômeno da sublimação espiritual é agora, aqui, de um en- tes ―eu sou‖ criaturas. E o que chamamos de evolução seria a
quadramento lógico em um sistema completo, harmonicamente verdadeira criação, no sentido de reconstrução da originária in-
proporcionado em todas as partes componentes e aceitável pa- tegridade espiritual, que foi, por sua vez, emanação, mais do
ra qualquer pessoa de bom senso. O fenômeno pode agora es- que criação do nada. Tudo isto está além das nossas habituais
tar situado logicamente no conjunto de um edifício conceitual, concepções, todas em função de nosso relativo. Assim é que,
do qual faz parte e que o sustém e demonstra. Isto não impede aqui, chamamos frequentemente o nosso universo de manifes-
que ele seja pouco consentâneo com a psicologia hoje domi- tação de Deus, o que pode ser verdadeiro para os nossos senti-
nante, porque esta constitui uma forma mental sediada em uma dos, relativamente à nossa posição periférica na forma-matéria,
fase particular destruidora de fim de um ciclo, ao passo que, que, ―para nós, é o que significa existir. Mas, para quem se en-
aqui, antecipamos a fase reconstrutiva que fatalmente se segui- contra no polo oposto, na posição central de puro espírito no
46 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Sistema, o nosso universo não é manifestação, e sim ocultação, mas somente lhe é oferecido um pão traidor, que não pode sa-
porque nele o espírito se aprofunda e é sepultado. Se este se ex- tisfazê-lo. E o pobre ser fragmentado tenta em vão, no amor fí-
terioriza nisto que chamamos de manifestação, parecendo, pois, sico dos dois sexos, a conjunção de ambos os semiciclos, em
tornar-se real, apenas o faz para os nossos sentidos, enquanto, que a unidade se cindiu. Ao contrário, o místico, que não teve
por si mesmo, o espírito entra na grande maya7 ou ilusão da vi- medo de atravessar a porta da dor, pelo menos através da re-
da corpórea. Aquilo que é verdade para quem é exterior, é men- núncia, pode celebrar bem mais no alto as suas núpcias de amor
tira para quem é interior. Tudo é relativo. O que para nós é vi- com Deus, isto é, a fusão bem mais perfeita das duas semicir-
da, para o espírito é prisão ou limite. Para ele, o nosso tempo é cunferências do círculo. Com isto, chegando ele, através da dor,
o fracionamento do eterno; o espaço, do infinito; o relativo, do a aproximar-se mais do centro, também alcança uma alegria
absoluto; o multíplice, do uno. A instabilidade do transformis- bem maior. Os pobres seres periféricos, apegados à forma, por-
mo, que deve sempre aperfeiçoar-se, envolvendo, é o desmoro- que não sabem sentir uma vida mais profunda, apegados assim
namento da originária e perfeita existência imutável. a uma existência de penas, alimento sobremodo escasso para
Esclarecidos, assim, estes conceitos, retomemos o nosso uma alma faminta de felicidade (alimento que entre si disputam
caminho. Se, na primeira metade do ciclo, temos o desmoro- encarniçadamente) – esses pobres seres fogem da sublimação e
namento na matéria, na segunda metade, em que ele se fecha a condenam, porque da sua posição periférica, situados na ma-
pelo retorno a Deus, ponto de partida, temos o processo inver- téria, a sublimação lhes parece anulação da vida, e não retorno
so, isto é, , ou seja, não de materialização, mas espiri- a ela. É natural que, para o ser subvertido, tudo pareça inverti-
tualização. Estamos na fase de reabsorção da forma em Deus, do, uma miragem traidora. Para enxergar a verdade, é necessá-
da matéria no pensamento, do mutável no eterno, do multíplice rio subir, atravessando a porta da dor!
no uno. Assistimos ao movimento centrípeto, que se projeta da Eis, pois, a posição agora do ser no universo atual: ele jaz
periferia para o centro, no espírito, invertendo todas as quali- entre as ruínas de si próprio, mas, em seu âmago, a originária
dades da matéria. Aqui, os valores subvertidos devem retificar- centelha de Deus – a alma – não está extinta e se conserva no es-
se segundo a Lei, de que o Evangelho é o código. Os aspectos tado de um anseio instintivo e irrefreável, com todas as caracte-
do processo são muitos, mas todos redutíveis à inversão do ne- rísticas originárias. Entre esse anseio, porém, e a sua realização,
gativo em positivo, conceito que se pode resumir em uma úni- existe a barreira da dor, interposta pela distância do centro à pe-
ca palavra: evolução. O transformismo tende à reconstrução, riferia, onde veio a cair o ser. A irresistível ânsia se bate conti-
de conformidade com o princípio das unidades coletivas (A nuamente contra essa barreira para evadir-se, no entanto é exa-
Grande Síntese, Cap. XXVII). Retornam à unidade todos os tamente através da barreira, isto é, através da dor, que se pode
fragmentos em que o Uno se havia pulverizado. O estado de evadir. Eis o grande drama do ser, vivido por todos em cada dia.
matéria transmuda-se no de energia, e este no de pensamento, Então Deus, que não nos abandona, vem ao nosso encontro
para retornar ao ponto de partida. para nos ajudar, enviando-nos em forma concreta, para que
Logicamente, é no plano desse segundo percurso, vivido possamos tocá-lo com as mãos, o exemplo vivo do método a
agora pelo ser, que ocorre o fenômeno da sublimação espiritual, usar para a evasão. É inútil debater-se. Não há outra via que
ou catarse biológica. O espírito não está morto. Ele é tão- não a do calvário para se atingir a redenção, e cada qual tem
somente prisioneiro. Deseja reconquistar consciência para re- que percorrê-la por si. Quem vencerá? As seduções do mal e o
tornar ao estado de origem. Por um instinto fundamental da vi- horror ao sofrimento, ou o grande anseio da alma, com seu ins-
da, ele odeia a prisão e quer a liberdade. Com esse impulso e tinto de ascensão e de vida, e o poderoso auxílio de Deus, que
para esse fim ele foi gerado: a liberdade foi a sua primeira qua- quer a salvação final? O caminho é longo. A criatura está retida
lidade. Tudo quer crescer, expandir-se, e toda a nossa vida so- entre as engrenagens de duas imensas rodas, triturada pelo atri-
mente triunfa com esse impulso. Este instinto fundamental do to dos seus dois movimentos contrários. Todavia as forças que
ser se debate contra todos os obstáculos que lhe opõe a sua po- as movimentam não são iguais, seus pesos não são idênticos. A
sição negativa em um sistema invertido. Mas eis que o amor, roda de Deus é a mais forte e tanto girará na eternidade, que
proveniente do centro positivo, vem em auxílio do ser no seu desgastará inteiramente a de Satanás, que terminará em pó.
esforço de redenção. Deus, do centro, estende-lhe os braços, di- A sublimação espiritual é o fenômeno pelo qual a evolução,
zendo-lhe: ―Sus, coragem, sobe, sobe! Eu te espero!‖. E os es- da fase biológica humana, através da catarse de todo o ser, con-
píritos não rebeldes e incorruptos descem com sacrifício, como duz a vida à fase super-humana. Já vimos que este é um mo-
Seus mensageiros, irmanando-se aos seres inferiores, sepulta- mento do grande processo de toda a ascensão, que vai de
dos na dor, abraçando-a juntamente com eles por amor. É assim . Isto é o que significa voltar a subir. São estas as
que a reconstrução do edifício desmoronado constitui um pro- grandes etapas, os degraus da escada que leva ao trono. Voltar a
cesso criador, através do sacrifício, de reabsorção do mal e do subir significa, pois, transformar-se da matéria em energia e
caos nascidos do desmoronamento. O amor permanece, porém desta em espírito, ou seja, um processo de espiritualização. Eis
invertido no sacrifício, que é amor na dor. Eis por que a reden- a que se reduz substancialmente todo o progresso. Esta é a fase
ção não pôde ser operada por Cristo senão através da paixão, e que a humanidade está vivendo. É verdade, sem dúvida, que ela
por que nenhuma redenção poderá ser operada de outra forma. ainda está imersa em noite profunda, mas nos encontramos em
Há, portanto, uma grande porta para a evasão de todos os so- uma grande volta da história, que anuncia iminente uma nova
frimentos do Anti-Sistema. Porta grande, mas pela qual nin- aurora. O homem hoje, pela primeira vez, sabe transformar a
guém quer passar, porque é feita de dor e esta afugenta. Afu- matéria em energia. Com isto, ele intervém nos processos cria-
genta justamente porque ela é o inverso da felicidade, para a dores de uma forma que se poderia chamar espiritualização da
qual o ser nasceu e para a qual se sente irresistivelmente atraí- matéria, que se volatiliza em energia. Processo que implica o
do. Mas o nosso não é um sistema pervertido? Portanto é natu- inverso da criação da matéria com a energia. Paralelamente, a
ral que, nele, a felicidade se tenha transformado em dor. Então, superação dos limites do espaço e tempo significa uma ascen-
o homem se atira ao encontro das derradeiras cintilações de são de vida em dimensões mais evoluídas. Ademais, o tipo bio-
alegria e de amor que o sistema desmoronado ainda contém, lógico se dinamiza, e a sua luta, de física, torna-se nervosa e
psíquica; as leis do ser passam a ser compreendidas; os misté-
7
Maya (maia) – vocábulo técnico sânscrito (a antiga língua Índia), rios se aclaram; aumenta o domínio sobre as forças naturais e
com a significação filosófica de ilusão, engano, aparência irreal da na- sobre a matéria; o indivíduo funde-se no conjunto de grandes
tureza ou envoltório fenomenal do Absoluto. (N. do T.) unidades coletivas. O homem, pois, embora recalcitrante, está
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 47
engolfado no tormento de novas criações e empenhado, no Reino dos Céus não é vã promessa que deva permanecer no
momento crítico, em uma catarse biológica. campo da utopia. Ele jaz no fundo das consciências e se realiza-
A luta pela vida sempre foi, mesmo na feroz fase animales- rá quando estas despertarem, quando nós pudermos compreen-
ca da seleção do mais forte, uma luta por subir. Ainda agora é der de que maravilhoso universo somos cidadãos.
assim. É a grande batalha da libertação da involução para o re- Trata-se de movimentos de grandes massas. Hoje, na Terra,
torno a Deus. Se, nos mais baixos níveis biológicos, essa bata- não existe mais uma classe social, uma aristocracia que se mo-
lha pela ascensão é imposta pela necessidade de viver em um vimenta para a conquista do domínio sobre camadas sociais
mundo em que vigora o lema ―comer ou ser comido‖, nos mais inertes e passivas. Hoje, a fermentação evolutiva investe toda a
elevados níveis da Lei, onde o ser se faz mais consciente, ela massa humana. Poder-se-ia dizer que ecoa no sentido  , is-
pode suavizar-se e, assim, realizar-se pelas vias da compreen- to é, da vida para o espírito ou para a espiritualização da vida,
são. É a evolução que nos liberta de tão duras necessidades e desde o plano , com a desintegração atômica. Parece que
sanções. Nós vivemos explorando todas as vias da libertação, ambos os fenômenos moveram-se paralelamente, obedecendo
que, na sublimação mística, escancaram-se para o céu. A luta é ao mesmo impulso de Deus imanente, que, fazendo pressão de
um meio de despertar a consciência. O ser, submetido a uma dentro para fora, impõe à velha forma que ceda passagem a
vida de permanente ameaça, aguça a inteligência. As provas e uma nova, capaz de exprimir novos estados interiores, que con-
os insucessos o adestram, preparando-o para maiores conquis- tínua pressão interior matura em milênios de silenciosa ativida-
tas, aquelas que nascem da experiência e se fixam no espírito. de. Tudo deriva do princípio da vida inerente aos seres. Hoje,
Quer embaixo ou quer no alto, a existência é sempre uma ela- este princípio se lança em novas rotas.
boração evolutiva, seja revestindo formas mais ou menos fero- Basta-nos aqui, por ora, antes de prosseguir além, haver en-
zes, seja assumindo aspectos mais ou menos espiritualizados. quadrado o fenômeno da sublimação neste processo de espiri-
Elaboração evolutiva é o trabalho da matéria, desfeita no caos e tualização universal , que é o processo evolutivo. A
integrada nos fenômenos cósmicos, como é também, no extre- sublimação mística não passa da fase mais elevada da espiritua-
mo oposto, a atividade espiritual do gênio e do místico, que, lização em nosso planeta. Este é um fenômeno, como vimos,
desvinculando-se dos instintos da carne, transforma-lhes a po- universal na vida. É por ele que o mineral se eleva a vegetal, es-
tencialidade em manifestações espirituais. Todo o universo está te ao animal, o animal ao homem, e este ao super-homem. Tra-
empenhado neste esforço penoso da própria maturação evoluti- ta-se de um processo de sensibilização, que, nos graus superio-
va, que o deve reconduzir a Deus. res, chama-se consciência, processo que vai desde a existência
Hoje, a vida tenta na Terra novas formas de expressão, com destituída de sentidos e encerrada em si mesma, como é a da
um tipo mais evoluído – o homem. A luta humana não está atu- matéria, a uma existência que se expande cada vez mais, em
almente confinada no tradicional plano animal-humano, como uma vida a princípio vegetativa, depois sensitiva, a seguir raci-
até ontem, mas se agita para sair dele. Ela não se resume mais onal e finalmente intuitiva. Trata-se de uma gradual floração do
na vitória de um grupo humano sobre um outro, permanecendo espírito, que volta a encontrar a si próprio, expandindo-se sob a
sempre no mesmo nível e sistema de vida, mas colima a vitória irradiação do centro-Deus. Agora pode-se compreender que,
de um princípio sobre o outro, para fugir ao atual plano e siste- tendo a involução consistido na formação de invólucros cada
ma de vida. Em outros termos, encontramo-nos não em período vez mais densos em torno à centelha do espírito, que neles
de estagnação, mas de transformação. Todo o esforço da vida permaneceu sepultada, a evolução consiste, contrariamente, na
concentra-se hodiernamente, não na sistematização e consoli- progressiva destruição desses invólucros, que se tornam cada
dação de suas posições, mas na tentativa de novas. É por isso vez mais tênues, até à completa libertação. O ―eu‖ eterno, com
que o seu dinamismo é febril e tudo parece esboroar-se. Mas é o desmoronamento do Sistema, não foi destruído, mas apenas
justamente porque a vida está possuída de uma ânsia de cons- envolvido no princípio oposto, em que se invertem todas as di-
truir que ela se apressa em libertar-se, por toda parte, das aca- vinas qualidades de origem. A evolução é um processo de ma-
nhadas fórmulas do passado, das quais, assim ampliada, extra- ceração que consome os casulos, é uma chama lenta em que se
vasa de todo lado. Tudo tende no presente à superação; por to- evola a sua materialidade, facultando a evasão da sua prisão.
dos os cantos se anda à procura de novas fórmulas, que possam Eis o que entendemos por espiritualização.
dar expressão a uma vida que já não encontra espaço nas ve- Mas o fenômeno pode ser observado também de outros pon-
lhas. Jamais ela fervilhou tanto em criações. Quem quer que tos de vista. Se concebemos o Centro no seu fundamental as-
possua olhos de ver e ouvidos de ouvir, sente que o mundo está pecto cinético, poderemos dizer que involução é progressiva
vertiginosamente lançado em direção a um transformismo evo- imobilização no limite e que evolução é desvinculação do limi-
lutivo de uma intensidade e rapidez sem precedentes. E a vida, te. O aspecto de estado cinético pode significar, sobretudo, es-
num crescendo, absorve as etapas para concluir, porque tem tado vibratório, e a este é possível reduzir aquele estado do es-
pressa de resolver o problema que a agita e atormenta. pírito que se chama consciência. O estado oposto, de imobili-
Vemos, pois, nesta hora histórica, a realização não só do dade, de congelamento da vibração, significa então o estado do
transformismo , com a desintegração atômica e a gênese espírito que se denomina inconsciência. Que mais significa pre-
da energia da matéria, mas também um transformismo paralelo, cipitar-se nas trevas, senão decair da sensibilidade até à ceguei-
, em que a vida, embora ainda primariamente, tende a tor- ra? Assim, o desmoronamento do ser consiste na inversão do
nar-se cada vez mais nervosa e psíquica, isto é, tende a espiritu- estado cinético vibratório, ou de consciência e conhecimento,
alizar-se. Assistimos a um universal processo de espiritualiza- máximo no centro – Deus, em um estado oposto, de inércia, ou
ção no sentido lato. A plena realização está ainda distante, mas inconsciência ou cegueira. Na periferia embotam-se as qualida-
o germe já está lançado. Muitos são incapazes de ver uma árvo- des dinamizantes e vivificantes, máximas no Centro. Não foi a
re na semente, não conseguindo aperceber-se da sua existência, matéria definida como energia congelada? A energia é também
a não ser quando plenamente desenvolvida. Não importa! Eles pensamento congelado. Lúcifer, como dissemos, é por Dante
chegarão a compreender mais tarde, mas chegarão. Toda se- colocado no centro da Terra, imerso nas trevas, encerrado na
mente é um explosivo da vida, no qual ela se concentrou, imensa prisão da matéria, imobilizado no gelo, negação da mo-
aguardando o momento para explodir, e explodirá por força de bilidade e do calor, elementos de vida. Para voltar a subir, o es-
lei. E, no fundo, o ser humano está à espera de despertar aquele pírito tem de tornar à ordem, a fim de fundir esse gelo, quei-
divino eu sou, que vem de Deus. Os novos e maiores continen- mando no fogo da própria dor as escórias da forma que o en-
tes do espírito aguardam os pioneiros que os conquistem, ex- carcera. Tem que, como elemento primeiro de vida, reacender
plorem e colonizem para a própria e nova grandeza. O esperado por si a chama que se extinguiu.
48 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Temos até agora observado o grande desmoronamento do São João iniciou o seu Evangelho com palavras estranhas,
universo, para encontrar a gênese e a explicação do universo refertas de profunda significação e geralmente incompreendi-
atual. Mas isto não basta. Dado que este é um estado bem dolo- das. Ciência e filosofia, não conseguindo alcançá-las, negli-
roso, o que mais interessa ao ser humano é, sobretudo, saber genciam-nas e as resolvem ignorando-lhes a existência. Entre-
como sair dele. Eis por que é importante, no seio do universal tanto elas contêm a chave do universo. João, ao certo, ilumi-
processo da espiritualização, conhecer o processo humano da nado por Cristo, as havia compreendido. Procuremos compre-
sublimação, porque ele representa para o homem a única solu- endê-las nós também.
ção do problema da dor. Que significa Verbo? Encontramo-nos em alturas vertigino-
Desperta, ó homem, no espírito, porque neste, em teu âma- sas. Tentaremos uma resposta no próximo capítulo. Para alcan-
go, está o infinito. Sepulto em todas as coisas está o pensamen- çá-la, necessitamos passar antes por alguns degraus. Partire-
to divino que as rege. Mas em nada, como em ti, ó homem, esse mos, pois, de nosso concebível, com respeito a nós mesmos.
pensamento se potencializou tanto na ascensão, desejando hoje Pelo princípio da unidade do Todo e dos esquemas de tipo
dar mais um passo avante. Em , o processo evolutivo é único, segundo os quais o universo é construído, principio já
uma reconquista e reconstrução do estado cinético vibratório, alhures esclarecido, não é absurdo ver, também em nosso mi-
ou de consciência e conhecimento, que se perdera. Jamais, co- núsculo contingente, os grandes esquemas do ser refletidos
mo atualmente, a batalha entre matéria e espírito foi tão encar- escalonadamente, até ao máximo de Deus. Observemos então
niçada. Mas o espírito é o princípio do movimento e da força. o homem, feito à imagem e semelhança de Deus, e, de como
Ele, no ser, está apenas adormentado. Abençoemos as grandes ele age, poderemos formar uma ideia aproximada de como
dores dos nossos tempos, que o despertam. também Deus deve agir. Tudo isto nos é repetido pela inscri-
ção encontrada no frontispício do templo de Delfos: ―Conhe-
XII. OS TRÊS ASPECTOS DA SUBSTÂNCIA ce-te a ti mesmo e conhecerás o universo‖. Afinal, a corres-
pondência entre microcosmo e macrocosmo é conceito que
Orientemo-nos, antes de passar adiante. Iniciamos o estudo vigora desde a mais remota Antiguidade.
do conceito central do esquema do ser – o ―eu sou‖. Isto nos Como age o homem, através de que processo, quando, à
conduziu a observar o fenômeno do egocentrismo, cuja signifi- imagem e semelhança de Deus, constrói alguma coisa? Qualquer
cação quisemos esclarecer. Por esta via, chegamos às portas do realização humana é retirada do íntimo de quem deseja criá-la.
grande drama da queda dos anjos, devida justamente à rebeldia Ele a tira de si, do pensamento, da sua alma. Cada qual pode ob-
do ―eu‖, por excessivo egocentrismo desvirtuado. Detivemo- servar em si próprio o fenômeno. Há sempre uma primeira fase
nos, então, a contemplar as suas consequências, estudando as no processo criador – mesmo nas mais ínfimas realizações hu-
origens do mal e da dor. Mas isto nos colocou defronte ao pro- manas – que consiste na formulação mental da ideia abstrata, que
blema inverso, de seu término. Entramos, assim, na visão do depois encontrará a sua concretização na forma. Todos nós sa-
grande ciclo constituído pelo desmoronamento e reconstrução bemos que nada se cria e nada se destrói, mas isto apenas no que
se refere à substância eterna, e não quanto à forma em que a ideia
do universo, ciclo que se reconstrói em unidade pela junção das
abstrata venha a se manifestar. Quando a eterna e indestrutível
suas duas fases inversas e complementares: involução e evolu-
substância é plasmada pelo pensamento de um ―eu sou‖ em uma
ção. Adentramos, desta forma, a visão da estrutura do Sistema e
dada forma, então temos uma criação que, no sentido relativo,
dos processos íntimos de seu transformismo, admirando-lhe a
como tudo o é neste mundo, é criação do nada. Isto em relação ao
perfeição. Pudemos seguir esse transformismo universal até às
seu estado anterior, de não existência nessa dada forma, que ain-
suas últimas conclusões, que sintetizamos em duas expressões
da não nascera como tal. Neste sentido, o nosso universo foi cri-
limites, uma das quais resolutivas do sistema positivo, e a outra
ado do nada, como anunciou a revelação.
resolutiva do sistema negativo, com o triunfo final do bem so-
Faz-se aqui necessária uma observação para prevenir dúvi-
bre o mal e a reconstituição do sistema desmoronado. Pudemos,
das que podem surgir do confronto entre o que acabamos de ex-
desta maneira, encontrar a solução final do problema do ser. por e o que se encontra no Capítulo XI, ―A caminho da sublima-
Descemos depois ao nosso mundo, para nele encontrar confir- ção‖. Ali se esclareceu o valor, sempre com respeito a nós, que
mações e demonstrações e, afinal, aplicações na sublimação. pode ter o conceito de criação do nada, qual foi a verdadeira cri-
Com esta, como conclusão moral das visões precedentes, é ação, de como ocorreu o seu ulterior desmoronamento, que pas-
apontada ao ser humano a via das ascensões espirituais, da re- samos a chamar criação, e de como a verdadeira reconstrução é
construção do universo desmoronado, a única que o pode guiar representada pela atual fase evolutiva. Isto foi dito para que se
na reconquista da felicidade perdida. pudesse compreender como realmente se passaram as coisas.
Este foi o caminho que percorremos até aqui. Mas aqui, neste capítulo, voltamos a nos colocar sob o normal
Havendo chegado a esta altura e completado a precedente ponto de vista humano, o bíblico, do nosso relativo, apenas com
ordem de visões e de conceitos, vemos desenrolar-se diante de o intuito de facilitar a compreensão. Chamamos de criação, no
nós uma perspectiva diversa dos mesmos fenômenos, pela qual sentido corrente, o que, ao contrário, foi um desmoronamento,
observaremos o Todo já não mais em relação à sorte da criação denominando-se manifestação o que, inversamente, foi uma
e das criaturas, mas em relação a Deus e à Sua obra. Sintetiza- ocultação. O leitor está apto agora a compreender o verdadeiro
mos atrás a última conclusão da precedente ordem de conceitos, significado dessas expressões de uso comum. Podemos, portan-
em duas expressões resolutivas do transformismo universal. to, retornar à psicologia normal, como esta se expressa na con-
Uma significando a destruição do ser, 0=0, o inferno eterno; a cepção bíblica. A presença de Deus criador nesta criação dada
pena máxima para quem assim a quis, renegando a existência; pelo desmoronamento explica-se em virtude de Ele ter-se man-
destruição do ―eu‖ como individualização espiritual; morte da tido sempre como senhor do Sistema, de não tê-lo abandonado
alma, que, negando Deus, nega a si própria até anular-se. A ou- na queda e de ter continuado a regê-lo e guiá-lo através de Sua
tra, no polo oposto, significando a plenitude do ser, =, a fe- imanência nele. Ainda que o seja como espíritos decaídos, a as-
licidade eterna, a alegria máxima, o triunfo da vida, a afirmação sim chamada criação está sujeita a Deus, que nela está presente
do ―eu‖ em Deus. Iluminados por estas precedentes visões, em toda parte, como seu criador. Ocupando-nos aqui de enfocar
busquemos agora penetrar ainda mais no íntimo do fenômeno principalmente o processo criador, passando por alto sobre a re-
universo, contemplando-o, mais do que em seu transformismo, belião e a queda, após haver explicado alhures a gênese do mal e
na sua real essência, na sua mais profunda substância. da dor, observamos agora o processo diretamente em relação
◘◘◘ àquela que permanece como a sua primeira fonte: Deus.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 49
Procuremos agora avizinhar-nos da compreensão da natu- vez lançados pelo primeiro motor, vemos transmitir-se em nos-
reza íntima do chamado processo criador, até ao seu caso má- so mundo, com dinamismo segundo os princípios. Ajudar-nos-á
ximo em Deus, cuja ação, embora a incomensurável distância, a compreender o grande fenômeno da criação observar o que se
o homem busca imitar no seio do mesmo Sistema, seguindo o passa em nossa mente, quando ela desenvolve impulsos seme-
mesmo esquema. A matéria prima da criação, como já expli- lhantes na sua manifestação, imprimindo-os no mundo exterior,
camos em outra parte e esclarecemos nas páginas seguintes, é pois que ela, da substância pensante do Todo, não é mais do
uma eterna e indestrutível substância de natureza pensante, is- que um momento que se isolou em um sistema menor, em um
to é, que possui como atributos fundamentais a inteligência e ―eu sou‖ subordinado ao máximo ―eu sou‖: Deus. Antes de
o conhecimento. Este é o estado originário de que derivou o agir, todos pensam na ação a executar, e este é o primeiro mo-
universo: a mente de Deus, como qualquer obra humana deri- mento, a fase da construção do esquema diretor, com que se
va da mente do homem. imprimem às formas novos estados cinéticos.
Qual é o estado do Todo antes da criação? Por Todo de- Cada forma do ser se reduz a um estado cinético diferente.
vemos entender Deus, porque nada pode existir além Dele. Deus criou, pois, pela transformação da substância prima pen-
Talvez fosse melhor criar uma outra palavra, de um significa- sante, o espírito (), em energia (), que representa a fase ci-
do mais preciso, e não como essa – Deus – ligada a significa- nética da ação e é expressa por nós com os verbos, fase de
dos tradicionais. Mas, com isto, correríamos o risco de nos querer e pôr-se em movimento, para depois chegar enfim à
tornarmos ainda menos compreensíveis. O Todo estava, pois, terceira fase do processo, a matéria (), a forma, a criação, a
num estado de quietude, o estado em que o homem se encon- obra completada. Neste sentido, podemos dizer que o criado
tra antes de empreender qualquer realização. Este é o estado contém e exprime o pensamento de Deus, como podemos di-
contemplativo, da concepção, sem forma ou expressão ainda; zer que toda obra humana contém e exprime o pensamento do
um estado abstrato, feito de puro pensamento. Nele, apenas se homem que a realizou.
desenha a ideia-mãe, o esquema ou modelo da forma, no qual Assim, Deus, através do dinamismo , por Ele mesmo de-
esta poderá depois configurar-se, refletindo-se, a partir do senvolvido, pôde retirar da fase conceito (), a terceira fase
primeiro impulso conceptual, em uma infinidade de exempla- conclusiva do processo, a forma na matéria (). Nesta, o livre
res. Esta é a primeira fase da gênese, a conceptual, que se de- estado cinético da fase energia concentrou-se nas trajetórias
nomina de concepção. Nesta fase, a criação ainda não nasceu; fechadas dos seus átomos constitutivos, e o primeiro pensa-
está somente concebida. mento pôde assim encontrar a sua expressão. Semelhantemente
Como nascerá ela? Passamos agora para a segunda fase, age o homem quando, por uma ação menos interior, mais su-
para o segundo momento do processo criador. Até este ponto, perficial e secundária, modela as coisas apenas na sua estrutura
a eterna substância pensante do Todo permanece ainda no es- exterior, e não na sua íntima substância constitutiva. Medeia
tado de quietude, imóvel, sem nada ter retirado de si, isto é, naturalmente imensa distância, mas o tipo do esquema criador
sem haver manifestado as suas possibilidades cinéticas, nela é o mesmo. Para operar de qualquer maneira, o homem, uma
jacentes em estado de latência. Entre as qualidades fundamen- vez concebido o plano, põe-se em condições de executá-lo, di-
tais inerentes à natureza da eterna substância pensante que namiza-o na ação, passando assim de , o estado espiritual da
constitui o Todo, está a capacidade de transformar, passando concepção, para , o estado cinético criador. Deste deriva, fi-
com isto ao estado atual, as qualidades antes adormentadas, la- nalmente, a última fase do processo, o ato completo, resultante
tentes no estado de quietude. Este puro pensamento, não exis- dos dois primeiros momentos, a obra concreta, que, na forma,
tente no momento do princípio, mas sim antes dele, represen- exprime a ideia originária. O nosso universo, a criação, repre-
tava o caso máximo do princípio da semente ou germe, esque- senta esta terceira fase. De tudo isto ele conserva traços, sendo
ma segundo o qual continuou, continua e continuará a gerar-se guiado pelo pensamento, movido pela energia, constituído pela
o universo após a primeira gênese criadora. Sabemos que este matéria. Assim também se dá com o nosso próprio organismo,
é um sistema ecoante, com repetições de ações e de esquemas. feito de espírito (funções diretivas), depois de um metabolismo
Neste estado de pensamento puro existia, pois, em germe, a e movimento (dinamismo da vida) e, finalmente, de um orga-
possibilidade latente de todos os futuros desenvolvimentos, nismo físico (baseado na matéria) 8. E assim como o universo
quais existiram, existem e existirão. se desenvolveu da sua causa primeira: Deus, também o feto, o
Inicia-se, então, a segunda fase do processo criador. A subs- corpo e todo o homem desenvolveram-se da causa primeira,
tância pensante do Todo desenvolve no íntimo as suas qualida- motor primeiro de tudo: o espírito.
des cinéticas, retirando-as do estado latente para o atual. Em ◘◘◘
outros termos, após a fase de concepção abstrata, de formulação Esta concepção da estrutura do Todo e do processo criador
espiritual dos esquemas que deverão depois guiar a ação, esta encontra confirmação não só na constituição de nosso univer-
se inicia. Com isto, a ideia, a princípio apenas abstrata, começa so, na natureza do homem e dos seus processos criadores, mas
a realizar-se, configurando-se na forma, que é filha do movi- também em algumas das mais recentes teorias científicas, co-
mento. Neste ponto, poder-se-á melhor compreender a signifi- mo a do espaço-dinâmico, em que se concebe o espaço não
cação de tantas referências que fizemos nos precedentes volu- como uma extensão geométrica, mas substanciado de uma
mes ao estado cinético do Todo. Que outra coisa exprime o densidade própria e dotado de uma mobilidade, como um flui-
verbo em nossa psicologia corrente, senão uma ideia abstrata do. O homem atribuiu ao espaço, de forma inteiramente arbi-
que se põe em movimento, rumo à sua atuação? Quando dize- trária, os atributos de vacuidade e imobilidade, sem saber se
mos verbo, falamos de agir, que é a segunda fase, de ação, que eles efetivamente correspondem à realidade física. Há, entre-
presume a primeira, de idealização. Quando falamos: ―eu olho, tanto, uma única realidade constitutiva do universo físico: o
eu falo, eu vou, eu trabalho‖, executamos a transformação que espaço fluido e móvel e o seu movimento. Os movimentos cir-
vai da primeira à segunda fase, passando do estado imóvel da culares desta substância conformam os sistemas atômicos e as-
concepção ao cinético da ação. Este último está ligado ao pri- tronômicos, de que resulta a matéria. Os seus movimentos on-
meiro como uma sua consequência. Ele é o mesmo ato em um dulatórios constituem a energia. Assim todos os fenômenos se
segundo aspecto. Representa um segundo modo de ser, uma reduzem a uma mecânica universal, dada pelo movimento do
transformação em que desenvolve aquilo que antes estava la- espaço, derivando deste fenômeno fundamental único e básico
tente, em quietação, pondo-se em movimento. A substância
8
pensante do Todo continha já em si estes impulsos, que, uma Para maior esclarecimento veja cap. XI de A Grande Síntese. (N. do T.)
50 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
de que tudo emana no universo: o estado cinético do ser, em matéria – em oposição apenas porque situados nos dois polos do
que vimos sempre a gênese de todas as coisas. mesmo sistema. A necessidade de contrapô-los com finalidade
Eis, pois, um espaço-substância que não é vazio nem inerte, evolutiva, na luta pela nossa ascensão, não deve violar a con-
mas é, por sua natureza, genético da matéria, isto é, possui as cepção unitária do Todo e precipitar-se no dualismo de um uni-
qualidades aptas à formação, no seu seio, das condensações ou verso despedaçado, feito de fragmentos. Isto seria satânico.
concentrações de substância que se denominam matéria. Ora, Assim, a Substância pensante pode transformar-se em espa-
uma das conclusões a que chegamos no fim do volume Pro- ço fluidodinâmico, quando, para manifestar-se, a ideia entra no
blemas do Futuro, é que a própria ciência, penetrando nos mais estado cinético da ação, involuindo da dimensão superconsci-
íntimos recessos da matéria, verificou que ela se dissolve em ência e consciência () na de tempo () e, finalmente, na de es-
energia, perdendo-se, por fim, no campo abstrato do pensamen- paço (). Este último deriva da Substância pensante, que assu-
to puro. Efetivamente, o elétron, último elemento a que se che- miu a posição cinética, a fim de que depois, no seio do espaço
gou até hoje na decomposição da matéria, segundo as mais re- fluidodinâmico assim formado, surja a matéria. E não só esta,
centes indagações físico-matemáticas, não possui mais nenhum mas todos os fenômenos que derivam do movimento deste es-
conteúdo físico, representando apenas um feixe de ondas. O úl- paço, isto é, deste fundamental estado cinético da Substância.
timo termo da realidade não passa, pois, de uma concentração Todos eles podem ser, desta maneira, reconduzidos a um fenô-
de energia ondulatória, tanto mais fácil e exatamente localizá- meno único, enveredando para o monismo universal de A
vel quanto mais diferem entre si as frequências componentes do Grande Síntese, para reencontrar finalmente, não só nas infini-
diminuto feixe de ondas. Eis, pois, que o extremo corpuscular tas modalidades do contingente mas também na própria ciência,
da matéria, o elétron, se desfaz em ondas. A substância funda- a fundamental unidade do Todo. Pode-se, pois, coligar em um
mental, material de construção do edifício das coisas, é um pu- único princípio tanto os fenômenos físicos como os biológicos
ro campo eletromagnético, desaparecendo toda ideia de substra- e psíquicos, porque tudo nasce desse espaço-cinético, que não é
to material. Cai, assim, qualquer significado físico real, restan- mais do que o estado cinético da originária Substância-
do apenas o recurso lógico de representar a probabilidade ma- pensamento, que, com a criação, foi posta em movimento na
temática de que o elétron se encontre, em dado instante, em um incessante marcha universal do transformismo, essência de todo
determinado ponto do espaço. E, se o próprio elétron é hoje o fenômeno e de toda existência.
concebido como uma concentração de energia, no que então se É possível, deste modo, formar uma representação mental
torna a matéria que dele resulta, se a própria energia se concebe da técnica da criação. Podemos compreender como no espaço-
atualmente como uma abstração matemática: ―a constante de dinâmico, fase em que a Substância se pôs em estado cinético,
integração de uma equação diferencial‖? pode originar-se qualquer fenômeno, seja como energia ou seja
Tudo isto para demonstrar como a própria ciência tende a como matéria, apenas pela diversa aceleração desse espaço. É
reconduzir o material constitutivo do universo físico à sua úl- sempre o estado cinético que constitui a gênese de qualquer
tima realidade, que é a de ser uma substância pensante. O uni- forma na matéria. Assim, os sistemas galácticos, planetários ou
verso, com efeito, não é explicável senão quando reconduzido atômicos vêm a ser constituídos por campos de espaço flui-
ao seu termo extremo, termo este entendido como um puro dodinâmico, girando em torno de um centro, isto é, por vórtices
conceito, único capaz de nos exprimir a essência das coisas. de energia cuja rotação é determinada pelo estado cinético, se-
Assim a indagação científica percorreu o caminho inverso ao gundo o esquema universal, segundo o qual tudo, em qualquer
que Deus seguiu para, com a criação, chegar à manifestação nível do ser, tanto no espiritual como no dinâmico, roda em
do Seu pensamento. Desta maneira, a ciência da matéria re- torno ao centro: Deus. O núcleo do átomo repete no plano  o
tornou a Deus e, no fundo desta, encontrou o Seu pensamento esquema universal do ―eu sou‖, mas modificando, de caso para
animador, isto é, a presença de Deus imanente. Tudo isso cor- caso, o sistema único, fato de que depende a diversidade estru-
robora o processo acima exposto da criação e, ademais, nos tural dos diversos átomos. E todo o sistema material, do atômi-
auxilia a compreender, confirmando-a, a concepção de um es- co ao planetário e deste ao galáctico, é gerado como campo
paço-substância, por si mesma geradora da matéria, concep- centro-giratório, repetindo assim o esquema da gênese do uni-
ção que assim se enquadra em um sistema cósmico. verso, que se pode conceber como máximo centro-giratório,
Eis, pois, como, pelo físico-dínamo-psiquismo, concepção porquanto tem por centro Deus. Se, para o universo, no seu as-
fundamental de A Grande Síntese, podem ser orientadas, em pecto espiritual, Deus é o sol do sistema, que tudo gerou e tudo
um plano mais vasto, acessível apenas pela intuição, as últimas irradia – como o Sol em nosso sistema planetário – a esfera
conclusões parciais da ciência moderna, que da dispersão analí- central do espaço centro-giratório, na formação da matéria,
tica são reconduzidas à unidade, em estreito monismo. Pode- forma o núcleo central que gera e rege todo o sistema.
mos, assim, logicamente chegar ao conceito de espaço- Eis, pois, como , por sua exteriorização cinética, pondo-se
substância, derivando-o do conceito de energia-substância, e es- em ação, pode gerar , ou seja, o espaço fluidodinâmico, conten-
te do pensamento-substância. Temos, pois, uma eterna e indes- do em si os elementos para determinar em seu seio os vórtices de
trutível substância, que pode passar do estado de puro pensa- que nasceu a matéria (A Grande Síntese, Cap. LIII – ―Gênese dos
mento (espírito, ) ao de energia () e deste, finalmente, ao de movimentos vorticosos‖). Só neste sentido é possível dizer que o
matéria () involutivamente, e no sentido inverso, evolutiva- nosso universo nasceu do nada. Ele, embora existisse no Todo,
mente, permanecendo ela sempre a substância do Todo, o últi- como Substância em Deus, não existia na forma de matéria, por-
mo irredutível elemento da realidade, que só pode ser Deus, que a Substância estava no estado de pura ideia, de quietação,
centro do ser, princípio e fim de todas as suas transformações. não cinético, não fenômeno, não forma, não ser, não como nós o
Podemos, assim, compreender como a Substância, que agora concebemos de nosso relativo feito de matéria. Para o homem, o
escrevemos com S maiúsculo, de sua fase ou aspecto de puro que não é perceptível sob a forma de qualquer sensação ou regis-
pensamento, conceito abstrato, , pode mudar-se na sua segunda tro não existe. A criação do plano físico a partir do nada ocorreu
fase ou aspecto de energia, , e como desta transformação resul- quando a ideia, dinamizando-se, gerou centro-movimentos de po-
ta o espaço-cinético (a Substância-pensamento que se põe em tência variada, ou seja, vórtices ou condensações físicas de várias
movimento, encaminhando-se para a ação), de que deriva o es- densidades, segundo a grandeza dos impulsos transmitidos.
paço-matéria, fase conclusiva do processo criador. Só assim po- Eis no que consiste o processo criador. As suas três fases
demos abranger tudo o que existe em um só princípio unitário, são conexas por filiação, são três momentos de um mesmo fe-
máxima aspiração instintiva da alma. Somente assim podemos nômeno, três aspectos de um único princípio, indissolúveis,
conjugar em um e único ciclo os dois antagonistas – espírito e sem sentido se isolados; três modos de ser do Todo-Uno, que
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 51
não se podem cindir sem destruir todo o ser, como também não XIII. IN PRINCIPIO ERAT VERBUM
se pode separar no homem o pensamento idealizador da ativi-
dade operante e da obra executada. Cada momento está no ou- ―In principio erat Verbum, et Verbum erat apud Deum, et
tro e é o outro. Os três momentos são iguais e distintos. Cada Deus erat Verbum. Hoc erat in principio apud Deum. Omnia per
um é o Todo, e o Todo está em cada um. Um descende do outro ipsum facta sunt; et sine ipso factum est nihil quod factum est‖9.
por gênese, como o filho do pai. Procuremos agora responder à pergunta proposta no início
Chegamos assim, talvez, à solução do problema máximo do do capítulo precedente: Que significa Verbo?
conhecimento, isto é, à compreensão do mistério da Trindade. Somente agora, após as preliminares desenvolvidas neste ca-
Buscaremos confirmação desta visão nas palavras de São João, pítulo, nos é possível começar a compreender. Vejamos se as
com as quais ele, no início do seu Evangelho, revela ter alcan- palavras de João realmente confirmam a visão precedente, se es-
çado a mesma solução. ta que vimos é a chave para explicar o misterioso sentido daque-
Ignoramos se tudo isto corresponde às concepções teológi- las expressões. Isto nos dirá se o pensamento de João, no seu
cas e filosóficas aceitas. É certo, porém, que a mente não pode Evangelho, coincide com a nossa própria orientação. A verdade
deixar de satisfazer-se com o conteúdo lógico de todo o proces- é que, como logo veremos, se partirmos desta nossa concepção,
so, como também com a concordância destas concepções com a obscuridade daquela incompreensível linguagem subitamente
os mais recentes rumos da ciência. Também não pode deixar de se ilumina e adquire um significado evidente. Então, se ambas
persuadir-se pelo evidente paralelismo entre elas e o exemplo as visões se sobrepõem e coincidem, clareando-se e confirman-
de nossa atividade criadora humana, que nos diz respeito de tão do-se reciprocamente, segundo as linhas de um mesmo sistema,
próximo e, por isso, tão compreensível a nós. Quem houver aí está a prova de que elas se originam de uma mesma fonte de
compreendido a estrutura unitária e hierarquicamente escalona- pensamento, de modo que ou se aceitam as duas ou se rejeitam
da do universo, achará lógicos estes paralelismos. Tudo isto ambas. E, se a concepção de João exprime a realidade, então a
constitui uma confirmação e convence, mesmo porque sacia o nossa visão deverá concordemente corresponder a ela, a menos
desejo instintivo de unificação. De fato, por instinto, o homem que se queira negar a revelação do Evangelho.
sente uma misteriosa potência nas grandes concepções unitá- Vimos que, para o homem, verbo significa conceito que se
rias, porque elas nos dão o senso de Deus-Uno, elevando-nos a torna ação, isto é, significa a ideia abstrata, o esquema feito de
Ele. Poder-se-á objetar que é presunção e profanação buscar le- puro pensamento, que se dinamiza e assim transforma-se em
vantar os véus do mistério. Mas o mistério é treva, e o homem é ato, dirigido no sentido da forma, pela qual ele se manifesta e
feito para a luz e para a compreensão. Deus nos concedeu a in- que o exprime na realidade sensível e concreta. Qualquer coisa
teligência para que a usemos e possamos nos avizinhar Dele, e feita pelo homem existe, num primeiro momento, em estado de
não para ignorá-Lo. A ignorância é devida à obnubilação na es- esquema abstrato, que é dela o modelo ideal, a concepção que
curidão. O ser decaído é feito para evolver, emergindo de novo antecede à gênese, a ideia-mãe. Mesmo sem ter nascido ainda,
no conhecimento. O progresso é lei, e o homem não pode per- tudo já existe em germe no pensamento do homem que cria.
manecer em eterna ignorância, mesmo das coisas transcenden- Num segundo momento, a ideia começa a surgir, tomando for-
tais, das quais depende a sua vida e a sua conduta. Diz-se tam- ma através do processo construtivo da sua gênese, em razão de
bém que investigar deve significar orgulho. Pode-se indagar um estado cinético assumido pelo ―eu‖ pensante, que passou à
com humildade e pode-se compreender com respeito, até mes- ação. Quando, com esse processo construtivo, o estado cinético
mo ganhando em veneração, não com espírito de revolta, mas se mescla inteiramente à ideia-mãe, o modelo ideal adquire a
para alcançar, ao contrário, uma evidência mais patente e uma sua completa expressão na forma, seu terceiro momento, que
obediência consciente. É neste estado de alma que contempla- contém os dois primeiros, como também está neles contido.
mos estas visões, o que por si mesmo expressa uma respeitosa Já vimos que este é o mesmo esquema que encontramos no
percepção conceptual, que é justamente o oposto de uma vaido- caso limite máximo em Deus, na criação do universo. O Verbo,
sa e egocêntrica indagação racional. Aqui a alma não desafia os pois, de que fala João é o segundo momento do processo cria-
mistérios de Deus, mas, diante deles, ajoelha-se, ora em agra- dor, a fase da gênese, onde o conceito se torna ação, fase em
decimento pelo dom da compreensão concedido. que o esquema abstrato formulado na mente de Deus dinamiza-
Na grande curva histórica da atualidade, o involuído está pa- se e se transforma em ato. Que João se refere à gênese está pro-
ra tornar-se evoluído. Ele deve entrar no conhecimento da Lei, vado pela primeira frase: ―In principio‖, logo repetida. Ela vale,
que é o código do Reino de Deus, conhecê-lo por completo, assim, como ponto de referência, o que é necessário ao se in-
porque daqui por diante impõe-se dar-lhe cumprimento, pois que gressar no relativo, onde tudo só existe desta forma, em relação
também na Terra ele deve realizar-se. É por este motivo que ela a outros pontos, e não é concebível senão assim. Então, com
se tornou compreensível. Todos os seres racionais devem cum- efeito, entram no tempo todas estas coisas existentes no primei-
pri-la por necessidade. A fase do terror está superada. A obedi- ro momento da concepção abstrata, precedente ao da gênese,
ência à Lei não se pode mais conseguir com tais meios, apropri- momento situado no absoluto e na eternidade. E João, logo a
ados apenas ao involuído e irracional. Aquele que desperta no
seguir, particulariza: ―Omnia per ipsum facta sunt; et sine ipso
espírito, como o iminente novo tipo biológico humano, só sabe
factum est nihil quod factum est‖10. Este ―factum‖, repetido três
obedecer por compreensão e convicção. Ao involuído não era
vezes, nos projeta de imediato na obra completa, que, se, em
possível desvendar o mistério, não só porque ele seria incapaz
um primeiro momento, estava apenas no estado de conceito na
de compreendê-lo, mas também porque está sempre pronto a fa-
dimensão consciência e, em um segundo momento, encontrava-
zer mau uso de tudo. No entanto o evoluído, quanto mais sou-
se no estado cinético de atividade construtora, atinge agora, na
ber, mais se sentirá pequeno e humilde no grande universo,
dimensão tempo, o terceiro momento do processo, em que ela
comparado ao infinito poder de Deus. Quanto mais se progride
se realiza, assumindo a forma concreta na dimensão espaço,
conscientemente na Lei, tanto mais se é tomado de sacro temor.
com a gênese da matéria. Eis o que significa ―factum‖.
À medida que avançamos no conhecimento, menos nos sentire-
mos sábios, menos acreditaremos possuir a verdade, menos nos 9
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era
apresentaremos diante de Deus com o orgulho do fariseu, que Deus. Ele estava no princípio com Deus. Tudo foi feito por Ele; e nada
crê poder julgar a si mesmo e à Lei. Não. A verdade não é uma do que tem sido feito, foi feito Sem Ele – João, 1: 1-3. (N. do T.)
cômoda paralisação em posições estabilizadas, mas é o próprio, 10
Tudo foi feito por Ele; e nada do que tem sido feito, foi feito Sem Ele
exaustivo e incessante caminhar ascensional para Deus. – João, 1: 1-3. (N. do T.)
52 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
João sabe que está falando ao homem. Preocupa-se, pois, palavra Verbo por dinamismo, ou ação; a palavra Todo por
principalmente com o universo em que ele vive e que, por isso, expressão, obra executada, ou criação – então o processo a
mais lhe diz respeito. Para tornar-se compreensível, estabelece que se deve a criação, dado pela íntima distinção do Uno,
logo na sua oração este ponto de referência. E, porque deseja Deus, nos Seus três momentos, torna-se compreensível, por-
permanecer compreendido, João diz em seguida: ―in principio‖ quanto o processo se repete diariamente no homem que age e
e ―factum‖. Mal, porém, sobe às causas, eis que é constrangido cria. Assim, tudo quanto existe encontra cabal explicação na
a referir-se ao conceito que as expressões aludidas implicam e sua gênese. Deus permanece sempre Deus, em cada um dos
somente do qual elas podem derivar: o Verbo. Este representa o Seus momentos. É Deus no Seu primeiro momento de con-
segundo momento, o da ação criadora, a que se deve a gênese cepção abstrata, como ideia. É Deus em Seu segundo momen-
mencionada aqui. Ele, como autor desta criação, é o sujeito na- to de ação, a gênese, como Verbo. É Deus no Seu terceiro
tural da oração. Temos, portanto, aqui três conceitos logica- momento de obra realizada, como o Todo criado.
mente conexos: ―Verbum, principium, factum‖ 11. Por isto os Eis como encontramos em João a confirmação da verdade
encontramos aqui reunidos na lógica de uma mesma oração. do princípio fundamental da trindade da substância, afirmado
João, entretanto, não pode deixar de fazer algumas rápidas em A Grande Síntese. O mistério é, assim, explicado da mes-
referências a origens mais remotas, enquadrando o ato criador ma forma que a gênese de nosso universo, reportada até às su-
do Verbo no esquema máximo, que abrange os três momentos as primeiras origens, e isto não só de acordo com a lógica de
mencionados. Assim, enquanto nos diz que no início de nosso nossa mente e consoante os princípios desenvolvidos em nosso
universo, para nós início do ser, existia o Verbo, ação criadora, modo de agir, mas também com as conclusões da ciência.
e tudo era feito por Ele, diz-nos também que o Verbo estava Além da confirmação de João, que representa a Revelação, o
junto de Deus: ―et Verbum erat apud Deum, et Deus erat Ver- sistema se apresenta racionalmente completo e persuasivo.
bum Hoc erat in principio apud Deum‖ 12. Eis os três momentos: Não remanescem resíduos, e a criação física não é excluída,
1) A formação conceptual do modelo: a ideia; isolada fora do Sistema, o que significaria desequilíbrio e de-
2) O processo construtivo da gênese: a ação; sarmonia inadmissíveis. A criação situa-se no Sistema como
3) A expressão da ideia na obra executada: a criação. seu último momento, da mesma forma que o corpo, no sistema
do ser humano – também ele composto, uno e trino, à imagem
O Verbo representa o segundo momento, o da ação ou gê- de Deus – é formado dos mesmos três momentos: 1) alma,
nese. O terceiro momento é dado pela criação, que vemos ex- ideia: 2) vida, a energia criadora; 3) corpo físico, a última ex-
pressa em: ―Omnia per ipsum facta sunt‖ 13. As palavras de São pressão concreta, o momento final do processo, derivado dos
João mencionadas no parágrafo anterior referem-se ao primeiro dois primeiros. Em todo o caminho percorrido até aqui, a com-
momento e não podem ser compreensíveis senão neste sentido. preensão da estrutura do universo, tão orgânica e harmônica,
E João explica, efetivamente, que tal como o terceiro mo- claramente nos indica que o princípio de analogia não é arbi-
mento deriva do segundo, assim também o segundo deriva do trário, pelo contrário, o seu concurso é probatório.
primeiro. É claro que a criação deriva do Verbo, a ação; mas o
Só assim se compreende como as religiões estão com a ver-
Verbo – ação – deriva da ideia, mãe da ação. O Verbo estava
dade quando dizem que o universo foi criado do nada. E, quando
de fato junto a Deus, isto é, a ação estava junto da ideia. O
a ciência afirma que nada se cria e nada se destrói, também ela
processo construtivo da gênese estava ainda latente no estado
diz uma verdade. As religiões viram o processo antropomorfi-
de formulação conceptual do modelo. E a ideia era a ação,
camente, referindo-se ao segundo momento, à ação criadora do
porque já a continha em si, em germe. E, no princípio, quando
Verbo, pela qual o universo físico tem princípio como tal, por-
a ideia se moveu em ato, tudo isto estava junto da ideia, que
que, neste sentido, ele antes era o nada. A ciência, ao contrário,
continha em si os três momentos em germe, como quotidiana-
teve que ouvir a voz da realidade, como lhe indicava a experiên-
mente sucede em nossa atividade humana. Se, pois, no princí-
cia, e essa voz lhe fala na indestrutibilidade da substância. A ci-
pio de nossa criação existia o Verbo (a ação), antes do princí-
ência, que não é intérprete antropomórfica da revelação divina,
pio existia Deus (a ideia), e junto a Ele estava o Verbo (a
mas aderente aos fatos, onde está impresso o pensamento de
ação). E a ideia era a ação. As expressões de João são, assim,
Deus, teve de enxergar mais a fundo. Desta diversidade de pon-
claramente compreensíveis. Aqui ele, em poucas linhas, planta
tos de vista derivam as dissensões. E, quanto mais a ciência
magistralmente o problema Deus-Universo. Em outros termos,
avança, desantropomorfizando-se progressivamente, tanto mais
estabelece seu ponto de partida, o conceito base da Trindade
profundamente deverá encontrar-se com este divino pensamen-
do Uno, nos seus três momentos constitutivos.
Nestas primeiras linhas de João, temos efetivamente três to. Ele é o Deus imanente, que é a alma das coisas e representa a
conceitos: 1 o) Deus, 2o) Verbo e 3o) o Todo feito por seu in- sobrevivência do primeiro momento até ao terceiro, isto é, a so-
termédio. Estas três unidades estão conectadas. O Verbo, que brevivência da ideia na obra completa, o criado, sua derivação.
estava junto de Deus, fez o Todo. Aqui há um conceito de de- Retirando-se de todas as coisas este seu íntimo pensamento ani-
rivação, de descendência, de filiação no seio do Uno, que se mador – o Deus imanente – elas cessarão de existir.
transmuda nestes seus três momentos. Ele permanece, assim, Pode-se agora compreender como a imanência de Deus no
invariavelmente Uno, mesmo vindo a existir em três aspectos criado é uma necessidade lógica de todo o Sistema, dada a sua
diferentes, que são sempre Seus e nos quais Ele continua idên- estrutura trino-unitária, uma vez que significa apenas a perma-
tico a Si mesmo. Exposto desta maneira e assim apresentado à nência do primeiro momento, a ideia, no terceiro momento, a
forma mental humana comum, certamente o princípio do Uno- forma. E não pode ser de outra maneira, pois trata-se de um
Trino permanece incompreensível e não pode deixar de ser processo único, cuja subdivisão em três aspectos não fragmenta
considerado um mistério. Mas se substituirmos aos três con- de modo nenhum a unidade do Sistema. Neles, a Substância,
ceitos acima expostos pelo seu valor equivalente, de acordo embora mude seu modo de ser, não deixa de ser sempre a mes-
com a nossa forma mental racional, então tudo se torna evi- ma Substância. É por isto que a ciência teve de comprovar,
dente. Substituindo a palavra Deus por concepção, ou ideia; a também em nosso mundo físico, a indestrutibilidade da Subs-
tância, que é uma característica do eterno e do absoluto.
11
Verbo, princípio, fato. (N. do T.) Até este ponto nos trouxe inexoravelmente a lógica, e não
12
―E o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus. Ele estava no podemos desmenti-la, a menos que queiramos renunciar a resol-
princípio com Deus‖ ver o problema e a compreender o mistério. Assim tudo está cla-
13
―Tudo foi feito por Ele‖. (N. do T.) ro. De outra forma, tudo se confunde nas trevas. Agora, é fácil
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 53
ver que estes conceitos até aqui expostos são os que se ocultam constituir-se, voltando a evoluir, isto é, reconstruindo-se em
sob as três palavras: 1) Espírito, 2) Pai e 3) Filho, usados nas re- unidade através deles. A paixão de Cristo não seria, então, mais
ligiões. O Espírito representa o primeiro momento da Trindade do que um momento dessa paixão muito maior.
do Uno, o puro pensamento, a ideia não em ação ainda. Dele de- Mas esclareçamos ainda melhor. Vimos acima que, sem a
riva o segundo momento, quando a ideia, dinamizando-se, en- imanência de Deus em tudo o que existe, nada poderia existir.
caminha-se para a atuação. Eis o Verbo gerador, o Pai, de que E mais adiante, no Cap. XV – ―À procura de Deus‖, chegare-
nasceram todas as coisas. Do Pai deriva o terceiro momento, a mos à confirmação e conclusão de que, na profundeza do pró-
obra completada, a forma concreta em que a ideia-mãe encontra prio ―eu‖, o ser possui o divino. Ora, a presença de Deus no
a sua expressão final, o Filho. Cada momento está no Todo, e o Seu aspecto imanente, como alma das coisas, representa a so-
Todo está em cada um. Eis as três Pessoas componentes do Uno, brevivência do primeiro momento, a ideia, até ao terceiro mo-
iguais e distintas, mas cada uma sendo também o Uno. mento, a forma. Sem a ideia que define, sem a energia que
Prossigamos então na leitura do Evangelho de João, para constrói, não pode haver forma. A existência não pode ser da-
nele encontrar novas confirmações. Para facilitar a sua compre- da nem pode ser mantida senão por esta íntima e última subs-
ensão, traduzimo-lo agora, repetindo as palavras já transcritas: tância, por este ―eu sou‖ menor, centelha do grande ―Eu sou‖,
―No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o ou seja, emanação de Deus!
Verbo era Deus. Ele no princípio estava com Deus. Tudo foi Ora, esta necessária imanência de Deus, esta permanência
feito por meio Dele. Sem Ele, nada do que foi feito seria feito. da Sua presença em tudo o que existe, sem a qual nada pode
Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. A luz res- ser, prova que Deus desceu com a criatura e na criatura, acom-
plandeceu nas trevas, e as trevas não a compreenderam‖ 14. panhando-a em sua queda. Ainda que se conservando invulne-
Deus, como Verbo, é, portanto, o princípio da vida, aquilo rável e intacto em Seu aspecto transcendente, Deus desmoronou
que a medicina, retalhando os corpos, procura em vão, acredi- com o ser decaído, fundindo-se com ele na imanência, que re-
tando ser efeito, quando é a sua causa. Mas o princípio da vida presenta quase que um Seu aspecto de desfazimento, devido ao
é o Espírito, origem do ser, de cuja natureza a alma humana, desfazimento da criatura, emanação Sua, pois, não obstante tu-
que é uma centelha sua, conservou as características: pensar e do, Ele continua a existir nela.
conceber. Do Espírito derivou o Verbo, isto é, o dinamismo vi- Tal é a íntima afinidade entre Quem gerou e quem foi gera-
tal, a irrefreável potência criadora das formas. do, e o desmoronamento pela revolta não podia romper esta
Encontramo-nos ainda no início da criação: ―(...) Tudo foi substancial ligação. O anjo rebelde é sempre filho; não ficou ór-
feito por meio Dele (...), Nele estava a vida‖. Mas eis que, ape- fão nem foi relegado ao abandono. Os vínculos entre filho e pai
nas determinado no seio de Deus este impulso dinâmico, como ofuscaram-se, velaram-se, mas não foram destruídos. Não podia
segundo momento do Seu ser, João fala em seguida de luz e de ser permitido à revolta, pelo arbítrio da criatura, alterar o princí-
trevas. Por que? Aqui está o ser, recém saído do regaço da con- pio fundamental do Sistema: o amor. E o amor quis que Deus
cepção materna. Ele começa a viver, isto é, a existir como indi- seguisse a criatura na sua queda, para ajudá-la a ressurgir dela.
vidualidade autônoma. E este viver expressa o seu ser e é a sua Só assim é possível compreender por que Cristo encarnou na
luz, visto que, com a gênese, o espírito, tornando-se distinto no Terra e por que a sua paixão para redimir-nos. Ele, espírito puro
seio de Deus (cada um distinguindo-se dos seus espíritos ir- que não conheceu o pecado, Filho de Deus como nós, mas não
mãos), qual ―eu-sou‖, isto é, como indivíduo em si, adquiriu rebelde, emanação de Deus como todo espírito, quis seguir a
uma consciência própria. Eis que, tão logo isto ocorreu, ao lado criatura em sua queda, para redimi-la e permitir-lhe subir a
desta luz, que mal se acendera, surgiu a sombra, o oposto, o ne- Deus. E Ele, o Cristo, quis dividir o pão para sintetizar neste ato
gativo, que se contrapõe ao positivo. ―A luz resplende, e as tre- o seu sacrifício de, como criatura perfeita, seguir a criatura caída
vas não a compreenderam‖. Nasce no Sistema o Anti-Sistema, na imperfeição, no caso particular de nosso planeta e humanida-
a cisão, a queda dos anjos já descrita, o dualismo que dará de si de. Mas quis dividir o pão para nos dar em síntese a chave de
o cunho fundamental a esta vida que nasceu. Mal o Verbo entra um mistério ainda maior, para nos indicar um sacrifício mais
em ação, o Sistema se fraciona no dualismo luz-treva, bem-mal, amplo, do qual o Seu era apenas um momento: o sacrifício cós-
verdade-erro etc., e surge o nosso universo corrompido. mico de toda a Divindade, que divide a sua unidade nos seus três
Eis aqui enquadrada em visão ainda mais vasta, expressa pe- momentos; que se precipita do trono da sua transcendência, da
las palavras de João, as precedentes visões da revolta e do des- perfeição no absoluto, na imanência, no transformismo do rela-
moronamento. As trevas são os espíritos rebeldes que não com- tivo (v. início do Cap. – ―Visão-Síntese‖), que desce do seu as-
preenderam a luz. A palavra ―compreender‖ nos transporta, sem pecto de puro espírito até à forma, porque só esta Sua imanência
mais delongas, ao primeiro momento, o do puro pensamento, o pode operar a redenção pela evolução. Santa e bendita imanên-
do Espírito, em que os seres eram puras centelhas de Deus no cia por tantos negada, fruto de infinito amor, sacrifício cósmico,
Seu primeiro aspecto: a ideia. Neste primeiro momento, antece- ao qual a criatura deve a salvação. Tudo nos indica, juntamente
dente do segundo, o do Verbo, ocorreu a inversão da compreen- com esse ato de dividir o pão pouco antes do sacrifício, uma
são em incompreensão. Então podemos agora alcançar o mais paixão em que, mais do que Cristo na Terra pela humanidade, é
íntimo significado do Cap. XVI – ―Deus e Universo‖ (2a parte), Deus que se crava numa cruz cósmica para redimir o universo
do volume Problemas do Futuro, em que a presente e mais pro- desmoronado. ―O universo inteiro é a imensa cruz na qual está
funda intuição se encontra apenas em forma embrionária. Ali re- pregado o Pai‖ (G. Papini – Cartas do Papa Celestino VI).
cordamos que a Eucaristia, instituída com o partir do pão na Úl- Esta ideia do desmoronamento, em que a criatura arrasta
tima Ceia, representa a gênese. Esta distinção do Uno em três consigo na queda a divina centelha que a anima, pode parecer
momentos, pela qual o Espírito – a ideia – desce à ação, e esta à que não seja logicamente conciliável com a ideia da criação ope-
forma, pode coligar-se à divisão do pão, em que Cristo, o Verbo rada por Deus. Impõe-se compreender, porém, que, pelo contrá-
feito forma, o Pai no aspecto de Filho, dá-se em sacrifício. E po- rio, tal desmoronamento, confirmado por tantos fatos, implica
de representar também o mais amplo sacrifício da Divindade, justamente a ideia de uma criação operada por Deus, no sentido
que, seguindo na queda os espíritos rebeldes, fica entre eles; en- de que ele não foi abandonado a si mesmo, mas sim guiado e di-
trelaça-se ao seu trabalho de redenção, amparando-os e se unin- rigido sempre por Deus com a Sua imanência. Nela subsiste a
do a eles; deixa-se desmoronar na forma (imanência), para re- obra de Deus, salvadora por amor. Deus permitiu o desmorona-
mento de acordo com uma lei, que é a Sua imanência, a sua pre-
14
João, 1: 1-5. (N. do T.) sença salvadora. É este fato que faculta ao ser decaído reascen-
54 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
der do caos à ordem, reconstruindo o edifício desmoronado. precursor, que não era a luz, mas somente enviado de Deus para
Sem esta imanência de Deus no criado, o caos continuaria sem- testemunhar, aparece em nosso mundo, para alcançar a criatura
pre caos, ignorando não só o princípio da evolução, representado até ao fundo de seu desmoronamento, para atingir o espírito
pela presença de Deus nele, mas também o princípio da reden- aprisionado na matéria, eis que aparece na Terra a luz verdadei-
ção no sacrifício, como nos foi ensinado por Cristo. ra: o Cristo. Veio ao mundo, que fora feito por meio Dele, na
Fato maravilhoso é saber que, no fundo desse caos, está la- forma, que é a casa do espírito, habitação que o exprime, e essa
tente o princípio de ordem com a presença da lei de Deus, sem luz não foi reconhecida nem acolhida. Mas a quantos o recebe-
a qual ninguém atingiria a salvação. ram foi dado o poder de se tornarem filhos de Deus, isto é, os
O desmoronamento não ocorreu ao acaso, nem a criatura fi- espíritos que não nascem do sangue nem da vontade da carne
cou só. Deus guiou o desmoronamento com infinita sabedoria, ou do homem, mas somente de Deus, puderam assim redimir-se
permanecendo junto à criatura para reerguê-la até Ele. e refazer-se de sua posição invertida, retornando do Anti-
E tudo isto é a obra de Deus, é a grande maravilha da Sua Sistema, em que haviam decaído, ao Sistema pela via das as-
criação. censões espirituais, traçada por Cristo. ―Et Verbum caro factum
est, et habitavit in nobis; et vidimus gloriam elus‖16.
XIV. A ESSÊNCIA DO CRISTO Chegamos, assim, ao ponto central de uma questão tremen-
da: quem era o Cristo? Todos nós mais ou menos conhecemos a
Eis que, neste longo caminho, chegamos a esta grande figu- Sua figura humana, historicamente retraçável. Mas que haveria
ra central na história do mundo! Sinto que nestas páginas a vi- por trás dela? Eis o grande problema. Certamente, estes quesi-
são se avizinha da concepção da essência do Cristo em uma tos não se podem nem ao menos formular para a forma mental
primeira aproximação, prelúdio de uma compreensão mais da ciência moderna, pois, com os seus métodos de conceber,
profunda, que amadurecerá no último volume, com o qual será eles não são solúveis. As religiões não dão explicações racio-
coroada toda a Obra. Os escritores comuns das muitas histórias nais cabais e são obrigadas a recorrer aos únicos meios pelos
da vida de Cristo, que se fixam nos fatos da Sua existência fí- quais tais problemas se podem apresentar ao involuído atual: o
sica, sem ocupar-se do drama cósmico que está por detrás dela mistério e a fé. Procuremos, então, compreender.
e do qual esta não passa de uma ligeira emersão em nosso sen- A luz verdadeira é ―aquela que ilumina todo homem que
sível, não podem imaginar que falar de Cristo somente como vem a este mundo‖. É o espírito, a centelha de Deus, que se
documentação histórica ou obra literária ou filosófica é perma- manifesta como consciência, o saber-se ―eu‖, a fundamental
necer na superfície de abismos oceânicos. Para conseguir qualidade e sensação do ser. A treva é a inconsciência, a igno-
compreender um pouco da significação íntima da figura e das rância, que se torna cada vez mais densa à medida que se pre-
vicissitudes terrenas do Cristo, foi-nos aqui imprescindível ob- cipita no Anti-Sistema, involuindo na matéria. De onde pro-
servar antes a estrutura do universo através de muitos volumes, vém a luz verdadeira? De Deus, centro do Sistema, e ela o
percorrer em síntese o conhecimento humano e resolver os anima por completo. Ela é sinônimo de consciência e de vida,
maiores problemas do ser. Foi, assim, necessário o esforço de é o espírito, é a substância do ser, que permanece Substância
uma vida inteira e o auxílio de estados especiais de intuição. E em cada um dos seus três aspectos ou momentos. Cristo é,
nos encontramos ainda no limiar, sendo necessário percorrer pois, a luz irradiada por Deus, está conexo com Deus e provém
ainda outros volumes antes de nos ser permitido entrar no tem- do centro do Sistema. De fato, Ele mesmo, repetidamente, se
plo. E já a alma trepida consternada ante a potência titânica do declara Filho de Deus.
argumento e se abate no temor de ser por ele esmagada. Há vi- Mas não basta estabelecer essa origem e descendência,
sões supremas capazes de fulminar o ser, contudo impõe-se pois que todos os espíritos têm a mesma origem e descendên-
aceitá-las na hora que Deus quiser. cia. O difícil é precisar quais eram as relações entre Deus e
Eis, pois, que o nosso processo lógico nos conduziu até Cristo. Mas João acrescenta: ―E o Verbo se fez carne e habi-
Cristo. Também João aí chegou. Ouçamos as suas confirma- tou entre nós‖. Porém todo espírito se faz carne e anima um
ções. Do absoluto descemos até ao plano humano: ―Houve um corpo, e este, sem aquele, não tem sensibilidade nem consci-
homem enviado por Deus, cujo nome era João. Ele veio como ência, tornando-se um cadáver. Além disso, todos os espíritos
testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que por meio são filhos de Deus, visto que foram por Ele gerados e Dele
dele todos cressem. Ele não era a luz, mas veio para dar teste- provieram. Então que diferença há entre a natureza de um es-
munho da luz. Havia a luz verdadeira, aquela que ilumina todo pírito comum e o espírito de Cristo?
homem que vem a este mundo. Ele estava no mundo, e o mun- João fala claro: ―E o Verbo se fez carne e habitou entre
do foi feito por meio dele, mas o mundo não o reconheceu. nós‖. O espírito de Cristo era, pois, o Verbo. Já vimos que este
Veio à sua casa, e os seus não o acolheram. Mas a quantos o re- é o segundo momento da Trindade, em que a ideia (espírito),
ceberam, ele deu o poder de se tornarem filhos de Deus; deu-o dinamizando-se, encaminha-se à ação, o momento da gênese,
àqueles que acreditaram no seu nome, que não nasceram do do Pai, de que nascem todas as coisas, isto é, de que deriva o
sangue nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, terceiro momento, a obra completa na forma. Mas o Cristo,
mas somente de Deus. E o Verbo se fez carne e habitou entre aquele que o homem viu na Terra, era o Verbo feito carne, isto
nós. E nós vimos a sua glória, glória como de unigênito do Pai, é, o Verbo não mais como o segundo momento, mas como ter-
cheio de graça e de verdade (...), ninguém jamais viu Deus; é o ceiro, ou seja, era o Pai imerso na Sua manifestação em nosso
mesmo unigênito que está no seio do Pai, que o revelou‖ 15. plano físico, não mais apenas dinamismo sem forma concreta,
Aqui entramos no terceiro momento, e os fatos se desenro- mas sim revestido de matéria. Ele é, pois, o Filho derivado do
lam no plano humano, concreto, sensorialmente perceptível, na Pai, o unigênito do Pai, como lhe chama João. Tudo isto cor-
forma, que todos veem, tocam e, pelo menos superficialmente, responde perfeitamente à estrutura do Sistema, como acima
podem compreender. Chegamos ao plano da execução material, descrito, e representa a sua fase mais periférica, mais distancia-
último momento, derivado dos precedentes e compreensível da do centro, Deus, aquela em que o espírito, provindo do cen-
apenas se visto nesta sua cósmica preparação no imponderável. tro, submerge nos antípodas, na matéria.
O Sistema já se dividiu no dualismo, e o espírito já desmoronou João acrescenta: ―Ninguém jamais viu Deus. O Filho uni-
na forma material. Em relação a tudo isto, e só em relação a isto gênito, que está no seio do Pai, foi quem o revelou‖. Trata-se,
compreensível, aparece a figura do Cristo. E eis que, depois do
16
"E o Verbo se fez carne e habitou entre nós; e vimos a sua glória" –
15
João, 1: 6-18. (N. do T.) João, 1:14. (N. do T.)
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 55
pois, de uma manifestação de Deus, do Seu primeiro aspecto, verso da mesma Substância. Tudo o que é forma, porém, cons-
do espírito que, através do seu segundo aspecto, o Pai, projeta- titui esse terceiro momento ou aspecto, é a expressão do pen-
se na forma, tornando-se sensível ao homem, que assim pôde samento de Deus, sem o que nada pode existir. Então a diferen-
ter uma imagem concreta do invisível Deus. Portanto, se Cris- ça entre o ser humano comum e Cristo, encarnado na mesma
to, visto do centro, pode representar uma imersão do espírito forma, só pode estar em que o primeiro representa a imperfeita
nas trevas e na imperfeição da forma física, Ele, visto da peri- expressão do pensamento de Deus, com um espírito que se
feria, onde está o homem, representa uma revelação de Deus. ofuscou pela queda, e corrompeu-se na sua posição periférica,
Trata-se, assim, do sacrifício do espírito, que vem encarcerar- que é o seu ambiente devido e merecido naturalmente, enquan-
se no relativo, agraciando o homem com o dom de uma porta to Cristo representa a expressão perfeita do pensamento de
aberta para o céu, como uma via de comunicação com Deus. A Deus, com um espírito perfeito, incorrupto, projetado apenas
descida de Cristo à Terra representa, por conseguinte, a pene- por amor e missão de bem à periferia, que está nos antípodas da
tração de um intensíssimo raio de luz nas trevas, que se dissi- sua posição natural. E dizer expressão perfeita de um espírito
pam ante o seu ofuscante lampejo. Efetivamente, quantos espí- perfeito é aproximar de tal maneira Cristo do Centro, Deus, que
ritos não se puseram depois a seguir as pegadas de Cristo, no indagar se Ele se identifica ou não com Deus constitui uma su-
caminho da ascensão para Deus! tileza superior ao nosso concebível, que não pode alcançar a es-
Quem tiver compreendido o processo acima descrito do sência de Deus. Baste-nos, pois, ver em Cristo o nosso Pai pro-
desmoronamento do Sistema no Anti-Sistema e sua reconstru- posto de nossa evolução. Para nós, Ele representa a aproxima-
ção, poderá dar-se conta da capital importância da intervenção ção máxima que as forças humanas intelectivas podem atingir
da Divindade na salvação da humanidade. Só assim podemos da infinita perfeição de Deus; representa para as nossas possibi-
compreender o significado da redenção. A história do mundo lidades o limite máximo concebível em altura de qualquer mo-
não é somente feita de guerras e de impérios, mas também de delo que possa ser proposto ao homem, além do qual a nossa
imponderáveis impulsos espirituais. Céu e terra se tocam. Mui- acuidade nada mais sabe indagar. E se quisermos indagar, per-
tos se preocupam em definir se Cristo é Deus ou apenas um pro- der-nos-emos no incomensurável dos céus, na vertigem do su-
feta. Trata-se possivelmente apenas de palavras, atrás das quais perconcebível. Cristo provém de um centro que é luz tão ofus-
se oculta unicamente a preocupação da supremacia absoluta do cante, que o olho humano nada pode distinguir.
próprio chefe espiritual sobre todas as outras hierarquias e reli- Um outro problema, contudo, nos aguilhoa. Por que desceu
giões. Preocupações humanas. Baste-nos por ora ter estabelecido Cristo à Terra e por que quis redimir-nos com a Sua paixão? É
o princípio da proveniência de Cristo. Estamos em regiões suti- evidente que Cristo, estando no Sistema, provém do Centro.
líssimas, onde não sabemos se os nossos pensamentos egocên- Por que então quis imergir no Anti-Sistema? Por que desejou
tricos de personalidade subsistirão ou se, em tais alturas, não se- descer ao reino da criatura decaída, onde o espírito está involu-
rá provável que de todos os nossos conceitos não reste mais do ído na matéria; por que projetar-se no relativo, no limite e na
que um princípio abstrato, irredutível às nossas formas mentais. dor? Quem compreendeu a estrutura do Sistema pode conceber
Com o progresso da ciência, que aponta a nossa Terra ape- a imensidão da distância percorrida. Por que então inverter-se
nas como um ínfimo grãozinho de poeira cósmica, torna-se ca- com os invertidos, deixar-se desmoronar no íntimo, até nós, fi-
da vez mais inadmissível o antropomorfismo, que pretendia fa- lhos desfeitos pela queda? Por que o Pai envia este Seu emissá-
zer dela o teatro dos maiores acontecimentos da criação. Não é rio, que tão intimamente O representa, mandando-O ao martí-
concebível que a vida possa estar toda aqui. E, se Deus enviou rio, com uma incumbência precisa, e por que Cristo tão piedosa
Cristo como seu representante, torna-se cada vez mais difícil e espontaneamente atende? Que representam estes movimentos
que Ele se tenha ocupado apenas de nossa humanidade, esse cósmicos espirituais na economia do Sistema e na obra de re-
Deus que deve sê-Lo não apenas para nós, mas para todo o in- construção do Anti-Sistema? Seriam eles necessários e úteis,
finito universo, que escapa a qualquer medida e compreensão segundo a estrutura lógica do Todo?
nossa. Por que devemos acreditar que Cristo tenha sido o único Há pouco relembramos o conceito da divisão do pão na Eu-
meio da intervenção de Deus para salvar o ser decaído, quem caristia. Lá, entrevimos uma paixão maior do que a de Cristo na
sabe em quantas e variadas formas? Por que admitir que Cristo Terra, que foi apenas pela humanidade terrena; entrevimos uma
tenha sido o único raio enviado pelo Centro para reanimar e re- paixão cósmica, pela qual a Divindade, seguindo no desmoro-
construir o universo desmoronado? Deve-se acreditar ter Cristo, namento todos os espíritos rebeldes, deixa-se arrastar com eles
eventualmente, desempenhado também em algum outro lugar a para salvá-los. No fundo, o próprio Deus era o Sistema e, com o
sua missão redentora ou, ainda que o campo por ele escolhido Sistema, de uma certa forma, Ele mesmo desmoronava, pois que
tenha se limitado à Terra, que se tenha valido de outros colabo- Ele estava em Sua obra. Mas isto não é suficiente para nos ex-
radores, com Ele enviados por Deus a todo o universo, que plicar uma tão tenaz aderência a ela. É que esta era algo mais do
igualmente deve ser repleto de vida. Como separar os fatos da que uma obra Sua. Na primeira criação espiritual, a verdadeira,
vida terrena dos acontecimentos da vida cósmica? Deus se havia dado a Si próprio e, assim, Ele mesmo permane-
No Evangelho de João (Cap. 17: 1-2,4) estão as palavras de cera no sistema corrompido, em sua profundidade, latente, se-
Cristo dirigidas ao Pai: pulto, mas sempre imanente, qual única centelha, sem a qual não
―(...) Para que o Filho Te glorifique a Ti, porque Lhe confe- há vida. Na obra, Deus se dera a Si mesmo, como o pai no filho,
riste poder sobre toda a humanidade‖ (...). mas o universo desmoronado continua a conter Deus, que é a
―Eu Te glorifiquei na Terra, consumando a obra que me sua vida. O Todo permanece vivo somente enquanto Deus está
confiaste para fazer‖. nele. É necessário compreender como Deus criou os espíritos,
O mesmo Evangelho de João se reporta às palavras de Cris- para depois poder entender o resto. Deus, sendo o Todo, não po-
to, dizendo: de criar senão tirando de Si mesmo. Os espíritos puros da pri-
―(...) Quem me vê, vê o Pai‖ (...) – Cap. 14:9. meira criação provieram do seio de Deus, derivaram Dele como
―(...) O Pai, que habita em mim faz estas obras. Crede-me filhos. Daí surge um fato de alta relevância: todo espírito é da
que estou no Pai e o Pai está em mim‖ (...) – Cap.14:10-11. mesma natureza de Deus, como o filho é da mesma natureza do
―(...) O Pai, que me enviou‖ – Cap. 14: 24. pai – natureza inalterável. Poderá ela ter-se desvirtuado, decaí-
―(...) Eu e meu Pai somos um‖ – Cap. 10: 30. do, ofuscado, aprisionado no limite e na dor, imergindo na igno-
De tudo isso se poderia deduzir que se trata de uma incum- rância e na inconsciência. Todavia a sua qualidade originária de
bência recebida do Pai com respeito à humanidade, e que a centelha de Deus, diante de um incêndio cósmico, qual é Deus, é
identidade com o Pai é dada por representar um momento di- indestrutível. E assim ela permaneceu.
56 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Ora, essa natureza divina do espírito não se destruiu quan- penas. A nossa inconsciência, treva do espírito, impede-nos de
do ele se rebelou, convulsionando o Sistema. Desta forma, o perceber esta realidade. Basta, porém, o despertar da alma para
desmoronamento do Sistema é, também em parte, o desmoro- se sentir invadido pela universal presença de Deus.
namento de Deus, evidentemente não na Sua absoluta trans- Somos, pois, pobres seres decaídos no mal e na dor. Triste
cendência, que é inviolável por estar acima de qualquer cria- tributo este, que é justo porque foi desejado. Mas Deus está jun-
ção Sua, mas no Seu aspecto de imanência. Se este significa a to de nós. Ele está junto de nossa humanidade no Seu aspecto
presença de Deus no universo desmoronado, isto pode de al- de Cristo, que conosco colabora na reconquista do paraíso per-
gum modo ser tomado como um desmoronamento de Deus, à dido. Na imensa obra de reconstrução, todo o universo está em-
semelhança do que pode suceder com o homem que, embora penhado, sob o comando de Deus, no curso desta longa estrada
sendo espírito acima das necessidades do corpo, se este adoe- traçada pela Lei: a evolução. Deus coloca-se ao lado do ser se-
ce, também sofre na alma. pultado na dor e, com ele, põe-se a subir. Na profundeza só
Levanta-se, então, uma questão ainda mais relevante: se existe uma dor, que Deus e a alma sofrem juntamente, numa
Deus tudo sabia, por que se expôs a tal perigo? Trata-se, assim união que adulçora qualquer sofrimento. Mas disso apenas os
parece, da falência de toda a Sua obra, naufragada na dor e no espíritos despertos têm consciência. No esforço da reconstru-
mal. Não! Tudo é lógico e perfeito. A equação parecerá insolú- ção, não estamos sós, mas colaboramos com Deus, que assume
vel enquanto não soubermos dar à incógnita X, chave do siste- o grande encargo desse difícil trabalho.
ma, o seu justo valor. E este valor é representado pela palavra No Sistema deve existir para o ser também uma grande for-
amor. Este foi o nosso ponto de partida no início destes capítu- ça de coesão, inserida nele desde o seu nascimento, que, em
los. Ele é agora o nosso ponto de chegada. Inicialmente, acei- qualquer caso e a qualquer custo, impede a sua desagregação,
tamos este conceito como um axioma não demonstrado. Agora força essa que liga o Criador à criatura, pela qual Deus vem a
ele está demonstrado completamente. Ele é o vértice para o colaborar diretamente na reconstrução e, no caso da Terra, en-
qual convergem todas as linhas do edifício. viar Cristo para encarnar-se na involuída forma humana, assu-
Deus sabia que a criatura poderia cair e que Ele, nela Se mindo-lhe todas as misérias. E o que poderia ser essa força, se-
havendo dado, deveria segui-la na queda, porque ela é subs- não o amor, do que nos fala o universo inteiro e a que nos re-
tância da Sua Substância. Sabia-o bem. Mas Deus amava a cri- conduz cada momento seu? Se é verdade que há tanto mal e
atura que tirara de Si e não poderia deixar de a querer livre tanta dor, é porque tais são as qualidades do Anti-Sistema. Mas
como Ele. Uma criação de espíritos que não aceitassem a exis- este, com a ajuda contínua de Deus, está reconstruindo-se no
tência pelo mesmo amor e não aderissem livremente a Deus Sistema. Esse mal e essa dor vão se reabsorvendo por obra do
pela compreensão espontânea, teria sido uma criação de inferi- amor, de que, não obstante tudo, o universo está saturado. É
ores, servos ou escravos, delito que só a nossa mente aprofun- verdade que Satanás se conserva rebelde, em luta. Mas ele está
dada no mal pode conceber. Que sucedeu então? Sucedeu que, na superfície, na periferia. E é verdade também que Deus é ain-
quando o ser rebelde se precipitou, o amor de Deus, jamais da mais ativo e está presente em toda parte.
desmentido, sempre coerente consigo mesmo, seguiu a criatura Cristo veio à Terra a fim de sacrificar-se por amor. A sua
decaída e com ela desceu na matéria, para com ela sofrer a sua paixão é toda um mistério de amor. A Eucaristia é feita de amor
redenção. Eis o amor, sempre o amor, levado até às suas últi- imperecível. As suas últimas palavras foram de amor: ―Isto vos
mas consequências. Amor que em Deus, pelo erro do ser, que mando: amai-vos uns aos outros‖ (João, 15:17).
devia ser livre, torna-se sacrifício. ―Assim como o Pai me amou, também Eu vos amei; perma-
A Eucaristia, dividindo o pão, nos fala claro da paixão de necei no meu amor‖ (idem, 15:9).
Cristo, do Seu sacrifício pela redenção da humanidade. Tudo is- ―O Pai vos ama, porque me tendes amado‖ (idem, 16:27).
to nos demonstra que Deus segue o ser decaído, põe-se a seu Este amor é o raio de Deus, que ilumina e vivifica o universo.
lado, sob o peso da cruz, na subida do monte das perfeições, de Por amor, Cristo desceu ao mundo, reino de Satanás, que fez
onde se precipitou. Só assim se compreende a paixão de Cristo, dele um tormento. Mas Cristo venceu em espírito.
enquadrando-a em uma paixão maior, que abrange todas as O fato de Cristo nos ter trazido amor demonstra que Ele pro-
humanidades do cosmo, paixão da qual a de Cristo na Terra não vém do Centro e que é um reconstrutor. O amor na periferia, em
é senão um caso particular. É verdade que o reino da criatura que nos encontramos, despedaçou-se em ódio, fragmentou-se nas
decaída é o do mal e da dor, onde impera Satanás. Estas são as rivalidades egoístas que Cristo nos ensinou a reconstituir em uni-
características naturais de um universo decaído. Mas há nele dade, amando-nos uns aos outros. Com este seu mandamento
também, como motivo fundamental, a divisão por amor, o sa- fundamental, Cristo quer fundir os fragmentos do Uno, desmoro-
crifício, a existência por toda parte da divina virtude reconstru- nado com a queda do ser. Com o Evangelho, a Boa-Nova anun-
tora, que se chama redenção. Nesta paixão maior de todo o uni- ciada aos homens de boa-vontade, Cristo representa para a hu-
verso, não é apenas Cristo que morre na cruz, mas qualquer es- manidade o toque de pôr mãos à obra, sob a Sua direção, na re-
pírito em que Deus viva e que, encarcerado nas dores de uma construção de um novo e mais elevado plano do edifício desmo-
existência inferior e pervertida, submete-se a uma crucificação ronado do Sistema. Fenômeno biológico, pois, que diz respeito a
cósmica, onde o grande Centro também sangra e padece. toda a vida, em marcha evolutiva! Cristo veio, assim, revelar-nos
Eis a que ponto chegou o amor de Deus! Eis até que ponto uma vida nova; veio manifestar-nos um mais profundo e, conse-
Deus quis respeitar no ser a liberdade! Deus atingiu o extremo quentemente, mais real aspecto de Deus – de amor – verdade an-
de querer intervir para salvar, pagando com o que era Seu, as- tes ignorada pelo homem, que não sabia conceber a não ser o fe-
sim como do que era Seu havia dado ao criar! Altruísmo máxi- roz, ainda que justo, Deus dos exércitos da Bíblia. Na época da
mo, coincidindo com o egocentrismo máximo, pois Deus é tudo vinda de Cristo, a humanidade começava a evoluir um pouco ou
o que existe. O ser, ainda que decaído nas profundezas espiritu- se preparava para tanto. Estava, assim, à altura de receber princí-
ais, não pode deixar de sujeitar-se a Deus, o Pai, sua origem. pios mais amplos, inacessíveis antes à sua inconsciência demasi-
Assim, tudo o que ele sente e vive deve estar sujeito a Deus. O ado involuída. Logo que o terreno ficou preparado, uma nova
Sistema implica conexão e relações entre centro e periferia. A semente foi lançada para fecundá-lo. Faz dois milênios que ela
criatura se comunica com Deus através da oração, transmitindo- jaz sepulta, dois grandes dias da história. E está próximo o des-
Lhe as suas aspirações – inclusive as suas alegrias e dores – pontar do terceiro dia, da ressurreição, em que a semente, matu-
sentidas e registradas na profundidade do espírito, onde Deus rada sob a terra, na elaboração das almas, deverá germinar e em
está. Deus, que se encontra em nosso íntimo, vive tão junto a que o Evangelho, apenas pregado, deverá ser vivido. E, assim, o
nós, que partilha conosco as nossas alegrias e sofre as nossas templo será realmente reconstruído em três dias.
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 57
Cristo, provindo do motor fundamental central, o amor, XV. À PROCURA DE DEUS
dinamiza o esforço do ser em nosso planeta, acompanha-lhe a
maceração, auxilia o homem a sair do seu grosseiro invólucro “Et multum laboravi quarens Te extra me, et Tu habitas in me”17.
material para a vida do espírito, repleta sempre de alegria. (S. Agostinho)
Assim, Cristo se entranha em nossa vida terrena, como o
mais poderoso fator de evolução, operando nos nossos mais Fundimos em um estreito monismo, em um só sistema, o
elevados planos biológicos. Ele nos dá a mão na exaustiva Todo, desde o seu polo espírito, até ao polo oposto, matéria.
subida para o centro, do ódio ao amor. Ele quis ensinar-nos Terra e céu assim se tocam e se fundem em um único universo,
alegrias maiores, mais reais, libertando-nos do truque ilusio- em que o espiritual e o material não passam de momentos ou
nista, próprio do Anti-Sistema, onde nos encontramos. Po- posições da mesma Substância. Podemos agora dizer ao homem
nhamo-nos ao lado do Reconstrutor, colaboremos! É do nos- imerso nas trevas: desperta e sentirás que Deus está a teu lado,
so interesse subir para a alegria e nos desfazermos da dor, está dentro de ti, é a tua vida, a vida de tudo. A grande desco-
apanágio natural das regiões inferiores. Este trabalho de re- berta que desloca o eixo do ser e que a ciência nem de leve sabe
construção do Sistema reverte inteiramente em nossa vanta- conceber é descobrir a própria imortalidade, o divino que está
gem, porque significa a evasão do Anti-Sistema e de todas as em nós, e com ele aprender a viver eternamente; é despertar a
suas aflições. O Sistema somos nós mesmos, e, reconstruin- própria consciência adormecida, para compreender que somos
do-o, reconstituímos o nosso poder, a nossa felicidade. A Lei filhos de Deus, imensamente amados por Ele; é entender que a
é a nossa vida. Conhecê-la e executá-la cada vez melhor re- causa de todos os nossos sofrimentos não reside numa defeitu-
dunda em viver mais intensamente sempre. Endireitemos a osa construção do Sistema, mas em nossa incompreensão da
nossa posição invertida, isto é, amoldemo-nos à vontade de perfeição de sua construção; é convencer-se de que o tremendo
Deus, em plena e espontânea adesão, invertendo assim a pri- destino de dor que nos aflige depende, sobretudo, de nossa ig-
meira rebelião do ser. Deus quer a nossa livre aceitação do norância e que ele somente pode transmudar-se em um destino
Seu amor, Ele a quer por compreensão, e não por força. Endi- de glória se soubermos superar os nossos baixos instintos e nos
reitemo-nos, rebelando-nos, ao contrário, contra a vontade de evadir de nossa natureza animal inferior; é entender que a vida
Satanás, que é a lei do Anti-Sistema.
não pode estagnar-se, deixando de avançar, e que a guerra não
Não nos esqueçamos de que Deus está conosco, por mais terá fim enquanto o homem não empreender formas de luta e
malvados que sejamos.
seleção mais evoluídas; é compreender que Satanás, a quem to-
Assim termina esta visão, primeiro germe de visões mais dos gostam de seguir, porque nos engoda, é antes inimigo de
vastas, da essência do Cristo. Ele nos aparece assim definido nossa felicidade, e que Deus, a quem relutamos em acompa-
em relação a Deus e ao homem, neste quadro cósmico. A Sua
nhar, porque primeiro exige de nós o justo trabalho, para depois
vinda à Terra significa a retificação do homem, que deve retor-
nos dar a alegria, é o nosso primeiro amigo e outra coisa não
nar à posição ereta, depois da queda pelo pecado original. Eis o
quer ou procura senão cumular-nos de felicidade.
conceito de redenção. Entretanto o pecado original não foi se-
Até aqui, temos procurado explicar, com o máximo de cla-
não uma consequência e continuação da queda dos anjos, foi o
reza, o fim do mal, sua autodestruição. As teorias não são nos-
caso particular de nosso planeta e de nossa humanidade. Então,
sas, mas as lemos no livro da vida, e o Evangelho (Lucas, 11:
assim como por trás do pecado original houve um desmorona-
mento muito maior, igualmente por trás da descida do Cristo à 17-18) no-las confirma, quando nos diz: ―Todo reino dividido
Terra, para retificar o homem caído, deve ter existido uma des- contra si mesmo será destruído, e as casas cairão umas sobre as
cida com uma redenção muito maior, para a salvação de todo o outras. Se, pois, Satanás está dividido contra si mesmo, como
universo. E, assim como o pecado original foi a consequência e subsistirá o seu reino?‖. O mal, portanto, como provém do An-
continuação da queda dos anjos, também a descida e a paixão ti-Sistema, é força negativa e está condenado ao aniquilamento
de Cristo, com a redenção da humanidade, foi a consequência pela sua própria natureza e qualidade. Pela mesma fatal lei das
da maior descida e paixão de Deus pela redenção de todo o coisas, o próprio espírito de separatismo que anima Satanás
universo desmoronado. Com essa obra imensa se coordena também o desagregará. E com Satanás se extinguirão a dor e a
Cristo. Eis o significado daquelas palavras, transcritas por João morte, resultando na vitória da vida, cujo centro se situa no es-
em seu Evangelho, dirigidas ao Pai: pírito, centelha pela qual Deus se manifesta em tudo o que exis-
―(...) para que o Filho te glorifique a Ti, porque Lhe confe- te. Não deve a compreensão de tudo isso encher-nos de alegria
riste poder sobre toda a humanidade, para que dê a vida eterna a e de fecundo otimismo em meio a qualquer dor? Esta é a psico-
todos os que Lhe deste. logia da superação, que vai além do miserável contingente,
―Eu Te glorifiquei na Terra, consumando a obra que me dando-nos a paz das coisas eternas e a segurança do amanhã.
confiaste para fazer‖. Tudo isto está amplamente exposto no Evangelho e foi por
Eis como do ponto de partida, o amor, tudo se desenvolve nós tentado, racional e cientificamente, ser demonstrado nos
necessariamente com lógica, até à descida de Deus, que per- esquemas expostos, a fim de conseguir tornar compreensível
manece imanente na forma – como seu espírito animador, por- esta boa nova, já proclamada por Cristo e aqui repetida por nós
que ela possui um pouco da luz originária – para que se possa identicamente, porque ela é a maior alegria da alma. Deus está
voltar a subir. No fundo do quadro da paixão de Cristo, há a conosco. Quando uma espiga de trigo se multiplica em centenas
cósmica paixão de Deus, que não abrange somente a Terra, de espigas e as messes aluem os campos para nos dar o pão,
mas todo o universo; há a crucificação de toda a divindade, Deus está conosco. Quando os rebanhos se multiplicam, os
que não abandona o ser caído, mas o segue no desastre, con- animais que nos fornecem alimento se desenvolvem e tudo na
serva-se em seu interior até no plano físico, em meio à treva e terra germina e cresce fecundamente, Deus está conosco.
à dor, porque Ela sabe que somente a sua íntima presença, que Quando nossos filhos se tornam grandes, Deus está conosco.
é vida, pode salvá-lo, redimindo-o e reconduzindo-o à vida. Só Deus é esse irrefreável impulso de vida, mesmo que ele possa
assim, de fato, será possível a reconstrução do Sistema pelo ser feroz nos graus inferiores, porque os seres não sabem ainda
Anti-Sistema. Somente desta forma o desmoronamento não se- aprender lições mais refinadas. Avançamos, contudo, no cami-
rá uma derrota, mas uma vitória. Por esse motivo é que Deus o nho ascensional. Já muitos homens têm terror desta vida inferi-
permitiu, por saber que, em qualquer caso, o Sistema seria o
17
vencedor. E a vitória final de Deus em todo o universo será ―E muito me fatiguei, procurando-Te fora de mim, quando Te en-
expressa pelo triunfo do seu princípio fundamental: o amor. contras em mim‖. (N. do T.)
58 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
or, em que muitos se sentem bem. É fatal que a evolução avan- va e solene pergunta: onde encontrar Deus? E se é verdade que
ce e produza um novo e mais civilizado tipo biológico humano. Deus está no íntimo do ser, então por que não buscá-Lo dentro
Ele talvez seja, como hoje, dado apenas por um em um milhão. de nós, e não fora? E como se pode alcançar Deus por essa via?
Amanhã estará na proporção de um por mil, depois será um em Tratemos agora de resolver o problema da procura de Deus, um
cem, e assim por diante, até que o homem novo seja maioria e dos mais árduos e importantes para o ser. Como podemos subir
se afirme. A natureza procede por graus e, antes de realizar o ao Pai que nos gerou e nos pormos em comunicação com Ele?
novo em grandes séries, experimenta-lhe os exemplares em Para bem compreender, reportemo-nos às primeiras origens,
poucos casos, explorando o terreno. conceito que depois desenvolveremos (Cap. XVII – ―Imanência
Quando os judeus quiseram lapidar Cristo – narra João e Transcendência‖).
(Cap. 10:33-34) – a acusação era de blasfêmia: ―(...) lapidamos- Deus, antes de realizar o ato criador, era o Uno-Todo, que
te por blasfêmia, porque sendo tu homem, fazes-te Deus. Jesus deveria ainda tudo tirar de si. Sobrevindo a criação dos espíri-
lhes replicou: Não está escrito na vossa lei: Eu disse: Vós sois tos, o Sistema desmorona, como já vimos, e com ele, de certa
Deuses?‖. Quando descobriremos a grandeza desta nossa natu- forma, desmorona também Deus, que, sendo o seu íntimo ani-
reza divina, que se filia a Deus? Quando os místicos falam de mador, não devia e, por amor, não podia separar-se dele, hou-
união, provam que a atingiram, ou pelo menos se avizinharam vesse o que houvesse. Por isso nasceu de Deus o aspecto de
dela. No íntimo de nosso ser, no espírito, há uma profundidade imanência, que o torna presente no Anti-Sistema ou sistema
de infinito, e é neste sentido que a evolução progressivamente desmoronado, como igualmente vimos. Mas, em Seu aspecto
nos desperta. É neste infinito que o nosso pequeno ―eu sou‖ transcendente, Ele está além de qualquer criação Sua e dos fa-
funde-se com: o ―Eu sou‖ do Todo. Quando descobriremos que tos a ela referentes. E a sua divisão nestes dois aspectos repre-
somos Deuses, que somos, mercê de nossa centelha originária, senta também a divisão do Todo no dualismo, que será depois a
hoje decaída nas trevas, formados da mesma Substância de que característica desse Todo, cindido daí por diante em Sistema e
Deus é formado? Como poderia deixar de sê-lo um filho do Anti-Sistema, entre Deus e Satanás, que nasceu então como an-
Pai? E que mais, além disto, poderia significar a imanência? tagonista. O ato de partir o pão na Eucaristia já vimos que signi-
O Evangelho é uma contínua luta para se fazer compreen- fica exatamente a divisão do Uno no dualismo, prelúdio da ima-
dido pelos seres inferiores. E os judeus pensavam, como tantos nência, pela qual o princípio fundamental e originário do amor
outros ainda hoje, em um Deus déspota, obedecido porque po- não pode subsistir a não ser como sacrifício. Eis a lógica conca-
de mais do que nós, fazendo-nos pagar a desobediência; um tenação que liga a divisão do pão à paixão de Cristo, cuja desci-
Deus de uma outra raça, que nos domina, nada tendo em co- da à Terra, em corpo humano, é um caso e prova fulgurante da
mum conosco. Há, contudo, um denominador comum, um imanência de Deus no Anti-Sistema, onde nos encontramos.
fundo comum, ainda que muitíssimo remoto, entre Deus Pai, Sem imanência, não poderia existir a paixão e a redenção maior,
Cristo e o homem: a natureza divina. A diferença apenas é que, que Deus realiza em todo o nosso universo, como já expusemos.
no ser humano, essa íntima Substância se aprofundou tanto na E a Eucaristia, para o caso particular de nossa humanidade e de
inconsciência, após a queda, que o ser dela nada mais sabe e Cristo, que a preside, representa justamente esta imanência. Isto
não consegue imaginar Deus, seu pai e amoroso amigo, senão quer dizer que Cristo não quis descer à Terra por uns poucos
antropomorficamente, como senhor feroz, qual ele seria se anos apenas, mas quis aí ficar permanentemente presente em es-
porventura viesse a tornar-se Deus. Para o ser, não é possível pírito, na Eucaristia, que expressa a imanência de Deus em nos-
formar de Deus uma imagem superior a que o grau de compre- sa humanidade, com finalidade regeneradora (redenção).
ensão atingido pela sua evolução pode permitir-lhe. Assim, es- E esta, que é a via da descida, representa também o canal
ta não é a psicologia dos judeus apenas, mas do tipo humano da subida, o fio de comunicação com a divindade. Que signifi-
involuído, que hoje impera. ca imanência, senão que Deus permaneceu no fundo de nosso
Quando imergimos o olhar na essência das coisas, vemos re- ser como espírito, para animá-lo e fazê-lo evolver, reconduzin-
velar-se-nos um mundo inteiramente diverso do que comumente do-o a Ele? O espírito, como já afirmamos, é o fundo comum
nos aparece na superfície, são esses novos continentes do espíri- entre Deus Pai, Cristo e o homem, e só através desse fundo
to que estamos descobrindo nestes volumes, traduzindo o que comum é possível a comunicação. Isto confirma ainda que
tão natural e evidente surge ao olho da intuição, em linguagem Deus realmente não pode ser alcançado senão quando desce-
racional e científica, reduzindo tudo à forma mental corrente, a mos conscientes à profundeza de nosso espírito. Veremos a se-
fim de nos tornarmos compreensíveis, mesmo por aqueles que guir o que significa ―conscientes‖.
não sabem enxergar senão com os olhos da razão. Encontramo- Ouçamos as confirmações que nos enviam as grandes almas
nos diante das mesmas dificuldades que na Terra encontrou o que souberam percorrer esse caminho de retorno. Diz-nos
Evangelho, na mesma luta por se fazer compreendido. O atual Agostinho: ―Est Deus superior summo, interior intimo meo 18‖.
homem comum está tão habituado a conceber qualquer manifes- E acrescenta, falando de Deus: ―Et multum laborav, quaerens
tação do ser somente na sua extrema forma exterior e sensória, Te extra me, et Tu habitas in me‖. Agostinho testemunha, por-
está tão convencido de que esta é a realidade e toda a realidade, tanto, que Deus está na intimidade do ser e que não deve ser
que quando deseja orar a Deus, projeta Dele uma imagem mate- procurado fora, mas sim dentro de nós. Paulo afirma a respeito
rial, a única que ele pode formar de Deus, e a adora. Ela não é de Deus: ―In ipso vivimus, movemur et sumus 19 (...)‖, S. Paulo
mentira consciente. É uma tradução da linguagem espiritual, que em Atenas – Atos, 17: 28.
lhe é incompreensível, em uma linguagem concreta, a ele aces- A Beata Ângela de Foligno ouviu Cristo lhe dizer: ―Eu sou
sível. Assim pode ver e tocar as imagens de Deus. Esta é uma mais íntimo de tua alma do que ela de ti mesma‖. Os místicos
ingênua necessidade de involuídos, que não conseguem pensar e cristãos, experimentados em semelhantes indagações, dizem
orar a não ser com o corpo, e com os sentidos. Mas, certamente, que: ―Deus é a nossa superessência‖, isto é, algo de tão íntimo
para quem sente Deus em Sua universal presença e potência, isto e profundo, a ponto de parecer a nossa própria sublimação.
pode parecer uma profanação, ainda quando, nos casos mais fe- Eis a palavra que nos traça a via de retorno: sublimação, isto
lizes, constitua um lampejo capaz de reavivar a centelha da arte. é, purificação e elevação de nossa personalidade. Esta é a estra-
◘◘◘ da que reconduz o ser ao ponto de partida, lá onde, após deter-
Assim foi que, da visão dos grandes problemas cósmicos,
chegamos à visão do problema espiritual do homem nas rela- 18
―Deus está nas supremas alturas e também no meu íntimo‖.
19
ções da sua alma com Deus. Agora podemos formular uma no- Nele vivemos, nos movemos e existimos. (N. do T.)
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 59
minados períodos, a ascensão atingirá a meta, que é o ponto de transmitida, qualquer coisa que pensa, quer e reage depois, por
chegada. Então, o Deus imanente, que por amor se mostra pra- meio de outros órgãos. Eis o espírito, que se une a Deus. Ele
zerosamente no sacrifício, lado a lado com a criatura, com ela põe-se em comunicação com o mundo exterior por intermédio
carregando a cruz, terá refeito todo o caminho da descida. E, dos órgãos do corpo, os quais lhe transmitem sinais que ele in-
assim, o ciclo será completado, e o aspecto imanente de Deus terpreta e que lhe permitem registrar uma limitada gama de vi-
terá alcançado o aspecto transcendente de Deus, o imperfeito brações (som, luz, calor), necessárias à sua vida terrena, além
ter-se-á tornado perfeito e poderá fundir-se nele, o Uno ter-se-á das quais ele nada percebe do mundo exterior. O resto do uni-
reconstituído e a cisão do dualismo estará sanada. verso terá também ele a sua sensibilidade, pois que é igual-
É evidente que, hoje, o Todo está dividido em duas partes: o mente animado de vida, isto é, de espírito, de Deus imanente.
perfeito, que ficou como recordação no fundo do ―eu‖, como Mas qual seja ela, não o sabemos. Não podemos saber se a ma-
seu anelo e instinto fundamental; e o imperfeito, que evolve pa- téria, quem sabe de que maneira, sente a sua estrutura atômica;
ra a sua perfeição. Ora, se o imperfeito avança sempre para o se um cristal percebe a sua vibração molecular; a célula, o seu
perfeito, na progressão para o infinito, ele deverá reduzir as dis- metabolismo; uma planta, o mundo exterior. Não podemos pe-
tâncias a quantidades cada vez mais infinitesimais, até sobre- netrar nessas formas do ser tão distanciadas de nós, mas ape-
por-se e coincidir com o perfeito. Isto porque, se Deus, de um nas nas biologicamente mais semelhantes e próximas a nós.
certo modo, desmoronou no Seu aspecto imanente, Ele perma- Ora, a evolução é uma espiritualização, isto é, um despertar
neceu perfeito, sem desmoronar, em seu aspecto transcendente. para a vida do espírito, que é interior; é um aguçamento, uma
Este é o ponto de chegada que aguarda o imperfeito. Este é o precisão, um aperfeiçoamento da sensibilização. Isto é cami-
eixo íntegro de todo o Sistema, aquele que deve salvá-lo, mes- nhar para a vida, sentindo que se vive cada vez mais intensa-
mo no seu momento negativo de Anti-Sistema. mente. Significa uma acentuação da vida, isto é, uma revelação
Como se vê, o problema da ascensão espiritual ou sublima- crescente do espírito. São qualidades que não podem nascer do
ção tem suas raízes no cosmo e não é solúvel a não ser em fun- nada, pois se constituem apenas em despertar no consciente o
ção do grande problema do ser. Há, pois, um grande fio condu- que estava adormentado no inconsciente, qualidades que repre-
tor para a ascensão, dado pela imanência de Deus, que deriva sentam um progressivo revelar-se de capacidade sensitiva, que
da Sua transcendência, o imperfeito que deriva do perfeito. Ora, forma a divina essência do espírito. Este, despertando, põe-se
este último termo do ciclo, no qual o dualismo é sanado e as em união com Deus. Certamente, entendemos aqui sensibiliza-
duas metades do Uno se reúnem, está no fundo de nós mesmos, ção no sentido lato, e não só sensório, dado que é possível re-
e é nesta direção que devemos caminhar, se quisermos atingi- ceber novas impressões não só do mundo exterior, mas também
lo. E como se deve proceder para caminhar em direção à pro- do espiritual e sobretudo do moral, que impõem normas de vida
fundeza de nós mesmos? Isto significa o que já havíamos dito cada vez mais aderentes à Lei de Deus.
antes, em outras palavras, ou seja, ―descer conscientes na pro- É por intermédio deste processo que conseguimos sentir em
fundeza de nosso espírito‖. Palavras igualmente enigmáticas, nós e nas coisas a presença de Deus. Compreendida de manei-
que não sabemos como traduzir no mundo da ilusão, que cha- ras extremamente diversas no contingente, esta é a essência e o
mamos realidade! Trata-se de passar de uma linguagem verda- último significado da evolução: despertar em nós o Deus ima-
deira, onde tudo se faz com o espírito – a única realidade – para nente, oculto na profundeza do espírito; tornar de novo consci-
uma linguagem falsa, onde tudo se faz com o corpo e com os ente e vívido aquilo que, tendo sido invertido pela queda, tor-
seus sentidos, que criam a ilusão. O leitor, todavia, vê como es- nou-se inconsciente e morto. Todo o trabalho da vida, o sucesso
tamos assediando e envolvendo a fortaleza em que o problema ou insucesso, a alegria ou a dor, através de infinitas provas, tu-
se entrincheira, até poder finalmente penetrar nela. Primeiro o do se reduz a isto. Chama-se catarse ou sublimação, sensibili-
encaramos do alto das posições máximas do ser. Abordamo-lo zação sensória, psíquica ou moral, maceração ou maturação
agora de baixo, partindo de nosso corpo físico. evolutiva, superação da treva ou da ignorância pela luz ou co-
A primeira qualidade do existir, que chamamos de vida, é o nhecimento. Trata-se sempre do mesmo fenômeno, de infinitas
sentir. A insensibilidade é característica da morte, ausência do formas. A hierarquia dos seres é dada pelo grau deste despertar,
espírito. A sensibilidade é atributo do espírito, que é o existir. pois é ele que marca o seu valor, representado pela capacidade
Espírito significa o que é. Onde falta o espírito, não há exis- conseguida de vibrar; é dada pelo grau de consciência alcança-
tência, porque Deus é espírito, isto é, a plenitude do ser. A do, que os avizinha mais ou menos de Deus.
sensibilidade, ou seja, a aptidão de perceber, como nós a pos- As almas vão, assim, lentamente despertando, compelidas
suímos, é qualidade exclusiva da alma. Uma vez que esta se pela Lei, que expressa a imanência de Deus entre nós. Os invo-
destaca do corpo, este não mais sente, ainda que os seus órgãos luídos não passam de pobres adormecidos. Entretanto Deus es-
estejam intactos. O místico, arrebatado em êxtase, não percebe tá tão próximo, que realmente é o ―interior intimo meo‖! Co-
mais através dos sentidos, porque a alma está ausente deles. mo fazer, então, isto ser compreendido por seres que O sen-
Quando estamos distraídos, a mensagem sensória chega regu- tem, ao invés, tão distante, que chegam mesmo ao ateísmo?
larmente à alma, mas esta não a registrou e, assim, vendo, não Em que consiste essa proximidade e distância? A verdade é
enxergamos e, escutando, não ouvimos. Sabemos que os nos- que esta sensação possui um sentido de interioridade espiritual,
sos vários órgãos sensoriais não são mais do que aparelhos de e não espacial. Não é em quilômetros, como na Terra, ou em
captação e transmissão de ondas, nada além. Isto implica que anos-luz, como para as estrelas, que se pode medir essas dis-
existe um ponto de chegada da transmissão, ao qual estão liga- tâncias. O espírito não vive na dimensão espaço, mesmo que
dos esses aparelhos. O sistema central (cerebral) para o qual venha a manifestar-se nele.
converge o periférico, é apenas um órgão de seleção e coorde- Para compreender é preciso reportar-se à natureza do espí-
nação, ainda situado na dimensão espacial, enquanto o ―eu‖ rito, que não é matéria espacial, mas um imponderável, só de-
possui a faculdade de juízo e de síntese, próprias de outras di- finível, portanto, com outras mensurações. A presença de Deus
mensões, a que não pertencem nem o sistema central nem o no universo é dada pelo estado cinético, que vimos ser a nova
periférico. Trata-se de um ―eu‖, princípio unitário de todo o posição que Deus assume do absoluto imóvel, projetando-se na
organismo, que, como tal, permanece inalterável, não obstante gênese. A vida do universo se manifesta como estado mais ou
o crescimento e envelhecimento deste, que está sujeito a um menos complexo e evoluído, mas sempre com esta íntima na-
contínuo transformismo. Nesse princípio está o abstrato, o su- tureza. A vida do espírito é representada, então, por um estado
persensório, algo de qualitativamente diverso da vibração vibratório. E a vibração, pois, mais ou menos complexa e evo-
60 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
luída, é também a medida que o define. Ora, a proximidade ou Assim, tudo o que existe, inclusive os homens, escalona-se
distância entre uma alma e Deus é dada pelo grau de afinidade por degraus ao longo da escala evolutiva, representando a re-
de vibração atingido por ela em relação a Ele. Em outros ter- construção dos vários planos do sistema desmoronado. A escala
mos, a vizinhança é uma sintonização, uma vibração do mes- do que conhecemos vai da matéria ao super-homem. E tudo es-
mo diapasão, que, para os místicos, termina na unificação. Ora, tá a caminho. O termo fixo de comparação, o absoluto que, na
o involuído não vibra de modo algum com a vibração do divi- relatividade do Todo, permite estabelecer as distâncias é Deus.
no, isto é, não está fundido na Lei com toda a alma e, se vibrar, No mineral, o divino está tão profundamente sepultado em es-
vibra ignorando Deus, frequentemente contra Ele. Eis no que tado de inconsciência, que não se pode, de maneira nenhuma,
consiste a imensa distância. falar de consciência e espírito, pois que eles jazem como que
Daí os místicos sentirem a sua personalidade desfazer-se em anulados. Sem liberdade de escolha, nem luz de compreensão,
Deus, onde se anulam como egocentrismo separado, porque o ser aí se movimenta no determinismo que a Lei, completa-
vêm a assumir, cada vez mais, a vibração do Centro. E, assim, mente ignorada, impõe. Todavia a individualidade atômica,
quanto maior o progresso neste sentido, tanto mais difícil se molecular, química, planetária ou galáctica tem as suas caracte-
torna distinguir a si como ―eu‖, mas, em compensação, o ―eu‖ rísticas inequívocas, que lhe conferem como que uma persona-
se sente viver mais como Deus, isto é, como vastidão, potência lidade. E esta exprime uma estrutura tão complexa, que o ho-
e unidade. Por isso Paulo pôde dizer: ―Não sou eu que vivo, mem ainda não a decifrou. Há, pois, aí também, um grande
mas é Cristo que vive em mim‖20. É assim que a divindade pode pensamento, que não pode deixar de ser o de Deus imanente,
despertar em nós. Eis os resultados da evolução. E, quanto mais ainda que, por certo, essa individualidade o ignore por comple-
ela avança, tanto mais o egocentrismo separatista do ―eu‖, filho to. Não podemos admitir que o átomo saiba calcular a sua velo-
da fragmentação do Uno, atenua-se, irmanando-se em unidades cidade interior e trajetória. Ele é ligado a uma lei de ferro, da
coletivas cada vez maiores, e tanto mais se reconstitui a grande qual não tem consciência. Estamos nos antípodas do centro-
harmonia unitária do Sistema, rompida na queda. Deus, onde existe a plenitude da liberdade e da consciência. O
Eis o que significa o despertar de Deus dentro de nós. A ser deve reconquistar essa plenitude, que, neste caso extremo,
vibração Dele, estado cinético da vida, mantém-se em inativi- inverteu-se em uma carência completa. Evolvendo, ele deve re-
dade no involuído. Neste, a verdadeira vida está apenas latente, construir-se. Assim, sobe-se gradativamente. Na progressiva
em estado de inércia, à espera de desenvolvimento, como um conquista de mobilidade e de sensibilidade há uma libertação.
instrumento musical cujas cordas estão mudas. A vida do invo- A consciência, qualidade divina, revela-se cada vez mais, por
luído é uma vida animal, inferior, que a cada passo é contida graus, até ao plano do homem e do super-homem. Contudo ve-
pela morte e pela dor. Não é a vida verdadeira. Trata-se aqui mos que a inteligência de Deus existe mesmo nos graus ínfimos
de um despertar de consciência, que é justamente o estado ci- do ser. A diferença é que as formas, quanto mais ascendem na
nético, qualidade do espírito; trata-se de entrar cada vez mais evolução, tanto mais vêm a se tornar partícipes dessa inteligên-
nesse estado cinético, o que significa desmaterializar-se (sair cia, enquanto, nos níveis inferiores, embora ela exista dentro
da inércia da matéria), para espiritualizar-se (entrar no dina- dele, o ser encontra-se excluído dela. E o que mais significa en-
mismo do espírito). E retornar ao espírito significa retornar ao contrar esta inteligência senão tornar-se consciente, isto é, des-
divino, nosso estado originário, volvendo a ser consciente, vi- pertar no ser o Deus que, com o desmoronamento, permaneceu
vo e vibrante até na profundeza, onde está Deus. Eis qual é a nele imanente, mas sepultado na inconsciência?
via para reencontrar Deus. Quando o homem tiver se tornado É grave e de transcendental importância a conclusão deste
consciente da presença de Deus em si, o caminho da evolução capítulo, especialmente para quem está em condições de senti-lo
estará completado, o edifício desmoronado estará reconstruído, inteiramente, porque atingiu por si mesmo, através da própria
a natureza rebelde terá volvido ao Criador. maturação, a visão desta consciência. Constitui uma descoberta
O homem comum está em poder do jogo das suas ilusórias revolucionária chegar a saber que, na profundidade do próprio
sensações de superfície, ignorando que maravilhosos tesouros ―eu‖, possui-se o divino e que Deus, ignorado pelo animal e ne-
repousam inexplorados na intimidade do seu ser. Mas aqui estão gado pelo ignorante, está tão junto de nós. É deveras emocio-
descritos de forma racional as profundas mutações ocorridas na nante saber-se eterno cidadão do universo! É uma conclusão de
alma, quando um homem se torna santo. Poucos as reparam, incomensurável alcance, mas, por isso mesmo, perigosa, se não
porque a maioria vive de sensações das quais escapam tais inte- for encarada sabiamente, motivo pelo qual não pode ser dita in-
rioridades. Estes não estão em nível de compreender e admitir, discriminadamente a todos e manuseada pelo involuído. Quem
em absoluto, uma distância qualitativa – evolutiva – de tal natu- não estiver preparado, não pode receber a luz da verdade, tão
reza de tipo de vibração, e permanecem a uma imensa distância excessivamente ofuscante. A verdade deve ser dada proporcio-
de algo que, no entanto, nos é tão intimo. É inútil, pois, falar de nalmente a quem a recebe. Tais conceitos, postos na mente do
uma incompreensível imanência de Deus em todas as coisas e, involuído, são transviados e podem ser entendidos às avessas em
sobretudo, na profundidade de nossa alma. Quem não possui relação à sua posição, de modo que, ao invés de estimularem
meios para registrar uma vibração acredita que ela seja inexis- uma anulação do próprio egocentrismo, na fusão com Deus, po-
tente e a nega. Essa incompreensão, porém, explica-se facilmen- dem levá-lo a exalçar-se, erigindo-se em anti-Deus. A primeira
te. Da periferia, onde se está situado em posição invertida, é di- rebelião está sempre pronta a explodir de novo no Anti-Sistema.
fícil mover-se à procura de Deus. A ciência, em última análise, O indivíduo pode, assim, ser levado a crer-se Deus. Esta inter-
nada mais faz do que tentar essa procura. Ela não o sabe, embe- pretação, embora satânica, inversa da conclusão verdadeira, será
vecida pelas habituais miragens, mas, na realidade, é esse o seu quase certa. É por esta razão que o conhecimento de um fato de
verdadeiro e substancial objetivo. Na periferia, todavia, em meio tal alcance, como é a presença do divino em nós, é vedado à
a um sistema fragmentado em uma infinita poeira fenomênica, maioria, enquanto não houver alcançado o grau de evolução ne-
ela se perde no particular, condenada ainda à ausência de uma cessário. Ai de quem entender em sentido inverso a presença de
síntese total. Para voltar a encontrar Deus, seria necessário re- Deus em nós, porque, então, tudo isto, ao invés de servir para a
constituir no Uno essa infinita pulverização do ser, o que é im- ascensão, contribuirá para uma descida ainda maior. O místico
possível. Não é, pois, à ciência que podemos pedir tais resulta- jamais se ensoberba com essa descoberta; pelo contrário, vê nela
dos. São necessárias outras vias para que isto se dê. um motivo a mais de obediência e humildade. É necessário fazer
Deus crescer em si, mas não pelo caminho oposto da exaltação
20
Gálatas, 2:20. (N. do T.) do ―eu‖. Deus está em nós como princípio de amor, para que fa-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 61
çamos Dele o nosso centro, e não para que façamos de nós um to o homem, evoluindo, não passar a uma forma de atividade
centro contra Ele. Caso contrário, Deus se negará cada vez mais, biologicamente construtiva e superior. A Lei nos dá sempre,
em lugar de dar-se, e o ser precipitar-se-á ao invés de subir. segundo o nosso grau de evolução, aquilo que merecemos. Ora,
Estamos na Terra, em um reino periférico do Anti-Sistema, o evoluído, biologicamente mais avançado, não pode manifes-
onde é comum subverter a verdade no erro. Assim é fácil, neste tar a sua vida espiritual da forma que a maioria criou para si. À
reino, conferir à nossa fé e intuição da imanência de Deus uma parte a má fé de pseudos super-homens que, presumindo-se
interpretação de panteísmo impessoal, confundindo-o com o iluminados, pretendem evadir-se das formas comuns, mas inca-
unilateral, que exclui de Deus o aspecto pessoal e transcenden- pazes de qualquer vida espiritual no seu íntimo, a discrepância
te. Esta foi efetivamente a interpretação que emprestaram aos acima referida pode nascer. Quanto mais se avança, porém, tan-
volumes precedentes, especialmente em A Grande Síntese, da to mais se penetra nas realidades espirituais e tanto mais perde
qual este e os demais tomos não são mais do que o desenvolvi- importância a forma e ganha a substancial essência. Quanto
mento e a explicação. Ora, Deus estar em nós, presente em to- mais se progride, tanto melhor se compreende, mais tolerantes
dos os seres, pois sem Ele nada pode existir, é uma certeza, nos tornamos para os irmãos menores, que são incapazes de
uma realidade que jamais poderá se negada por quem a atingir conceber. Por isso jamais há luta nestes casos, ainda que seja só
por intuição. Depois, se corretamente interpretada, ela não leva polêmica. Pelo contrário, surge, no pleno respeito às formas,
a uma soberba deificação do nosso eu ou da natureza, mas de- mesmo quando se sabe que estas só servem para os seres menos
termina a fusão de nossa alma e do criado com o Criador aí evoluídos, uma nova vida espiritual, que lhes dá como conteúdo
imanente, sem o que tudo estaria órfão. Os conceitos acima ex- uma nova substância, que as vivifica, enchendo aquele vazio
postos não levantam o ―eu‖ contra Deus, mas tendem a diminu- substancial que elas geralmente revelam na alma de quem não
ir o ―eu‖, para deixar que Deus desperte nele e viva nele em lu- sabe pensar, sentir e manifestar-se a não ser com os sentidos e
gar do ―eu‖ separado, filho do desmoronamento. Não é mais o com o corpo. Surge, em outras palavras, o culto interior, dirigi-
―eu‖ rebelde que agora predomina, mas o ―eu‖ em sacrifício, do também no rito ao espírito, fugindo às manifestações religi-
aos pés da Lei. ―Os últimos serão os primeiros‖, isto é, quem osas rumorosas e profanas, que mais atraem as multidões. O
quiser ser o primeiro no Sistema deve ser o último no Anti- culto interior é um estado de alma que pode subsistir em qual-
Sistema, ou seja, servo do próximo, não em soberba, mas em quer forma, mesmo nas comuns, mas que não se exaure em
obediência e em humildade. Desta maneira não se aumenta a manifestações físicas, vocais ou impressões sensoriais e tende a
cisão, mas a unificação; não se caminha para o triunfo do ―eu‖, atingir no fundo do espírito a sensação da presença de Deus.
mas de Deus. É evidente que a via acima traçada não leva a Sa- Ocorre então um estranho fato: caem os absolutismos, a in-
tanás, mas sim conduz a Deus. transigência, a convicção de que o próprio ponto de vista possa
É assim evidente também o que diz o Evangelho sobre a ser o único para avaliar o infinito. Assim, da verdade se obtém
necessidade de se decidir na escolha, porque não é possível um conceito novo, no qual ela é algo de não codificado nem
servir a dois senhores ao mesmo tempo, isto é, prosperar con- codificável, mas infinito, para cuja aproximação é imperioso
comitantemente no Sistema e no Anti-Sistema. Se quisermos trabalhar e sofrer em cada dia. Concebe-se, desta maneira, a
realmente vencer, é de nosso interesse seguir o primeiro, e não verdade não mais como um cômodo assento em que nos refes-
o segundo. É natural, pois, que Cristo e o mundo sejam inexo- telamos para repousar, como o fizeram os nossos ancestrais,
ravelmente inimigos, mas também que Cristo, Senhor do Sis- mas como uma íngreme ladeira que importa galgar com a pró-
tema, vença o Anti-Sistema. Cristo não sofreu porque fosse pria boa vontade. Mas não é só, pois, ganhando em substância,
fraco ou vencido, como acreditou a estupidez dos seus algozes, podemos melhor compreender o valor relativo e transitório das
mas em razão de livre e deliberado sacrifício de amor. A pai- formas e nelas enxergar cada vez menos uma razão para dissen-
xão de Cristo situa-se logicamente no plano de salvação do sões ou antagonismo, isto é, para aquela cisão que representa o
universo, no plano de reconstrução do Sistema com o Anti- desmoronamento do Sistema e que justamente vai sendo absor-
Sistema em que ele desmoronou. vida na unidade. O evoluído, de fato, é um ser que subiu mais
Senhor deste plano, desdenhando os pobres meios humanos em direção a Deus, que é unidade, uma ascensão que não pode,
de ataque e defesa, Cristo, o cordeiro pacífico e inerme, ven- pois, deixar de implicar unificação.
ceu o mundo. Essa ascensão inclui naturalmente também uma conquista
em liberdade. Está na lei do processo. É liberdade que ao invo-
XVI. A PRECE luído pode parecer anarquia espiritual, mas que, contrariamen-
te, acarreta uma disciplina mais severa, não mais exterior, e sim
É natural que, para quem chegou à grande descoberta do interior, onde ela é mais rígida e sentida. O homem comum po-
―Tu habitas in me‖21, a vida espiritual se transforme. Nos vo- de, assim, muito bem acreditar ter cumprido todos os deveres
lumes anteriores, temos contraposto, nos campos mais díspa- espirituais, seguindo algumas práticas e observando uns tantos
res, as manifestações do tipo biológico evoluído às do involuí- preceitos, após o que sente-se livre para retornar aos seus ins-
do. Observemos agora como se conduz este mais adiantado ser tintos mais ou menos animalescos. O evoluído, ao contrário,
humano, ao qual pertence o futuro, nas suas relações para com sente sempre a presença de Deus e deve viver noite e dia em fa-
Deus. O nosso mundo e a sua ciência não se ocupam, embora ce de tal presença, que ele sabe que significa viver em contínuo
seja ele o problema central do ser, da maneira como pôr-se em controle de si mesmo e no domínio da própria natureza animal
contato com a fonte suprema e atingir os mananciais da vida. inferior. Ele pode, pois, assumir liberdades formais, que não
Podemos agora indagar se as formas de manifestação espiritual devem ser concedidas ao tipo comum, porque este, não pos-
praticadas pelas grandes massas são adaptadas a quem sente suindo na própria consciência o sentido da Lei, faria mau uso
Deus como acima descrevemos. delas. Quem possui esse sentido conhece as tremendas conse-
É evidente que, ligando-se a vida espiritual ao infinito e quências decorrentes de qualquer erro, porque, se o pode velar
sendo, pois, susceptível de evolução, a grande maioria tenha aos homens, não é possível ocultá-lo de Deus; sabe que é inútil
feito dela um tipo de expressão que indica o seu nível de de- procurar enganá-Lo com ardis ou escapatórias; sabe que é livre,
senvolvimento e se lhe adapte. Assim é para todas as coisas. por isso responsável, e que é impossível furtar-se às justas san-
Por exemplo, a guerra, assassínio legalizado, subsistirá enquan- ções. Se é verdade que ao indivíduo mais evoluído podem ser
permitidas mais liberdades formais, assim é porque também
21
―Tu moras em mim‖. (N. do T.) menos liberdades substanciais ele se permite. Evidentemente, o
62 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
primitivo, que não sente as forças espirituais, deve ser enqua- evolução conduz a substanciar cada vez mais o culto exterior,
drado em normas materiais, sua única regra de vida, pois que as que é veste, com o culto interior, que é alma. Tal é o futuro do
puramente espirituais lhe superam as suas qualidades percepti- homem e, por conseguinte, também das suas religiões, até que,
vas. Na evolução da vida espiritual sobrevém a inversão que no indivíduo espiritualizado, preponderará o culto interior. A
comprovamos na ascensão da matéria para o espírito, ou seja, evolução leva cada vez mais a sentir Deus não apenas trans-
uma desmaterialização, mercê da qual, quanto mais se conquis- cendente mas também imanente, até que o indivíduo espiritua-
ta em substância, vale dizer, em verdadeira espiritualidade, tan- lizado sinta a presença Dele não somente em si, mas em torno
to mais perde importância a forma. Tanto mais se tem necessi- de si. Então se descobrirá que Deus está em toda parte, que o
dade da forma, quanto menos se conquistou e se possui de Seu templo é tanto o universo como a alma, e que o Seu altar
substância, isto é, de verdadeira espiritualidade. pode ser o coração do homem.
A razão pela qual as religiões não podem e não devem con- É certo que o tipo do futuro buscará e orará a Deus de outra
ceder liberdade, mas sim exigir observância de disciplina, ainda maneira, obedecendo-Lhe com mais amor e convicção. Quem
que formal, está no fato de que a maioria é involuída e, para tal sente o Deus imanente sabe que Ele está sempre presente em to-
tipo, a forma é tudo. Suprimida a expressão material, única ca- das as partes, e não só nos templos, por conseguinte sabe que
pacidade de manifestação, nada mais fica. Todo ato do involuí- não é possível evadir-se à Sua Lei. A vida, assim, entranhada do
do é físico, mesmo tendo um conteúdo moral, que, sem um re- divino em cada ato e momento, transforma-se em algo diferente.
vestimento concreto, é inconcebível para ele. Por isto são ne- Como guia, está sempre presente no íntimo e afasta os perigos
cessárias nas religiões as representações sensórias, até mesmo do livre exame. O porvir está na interioridade, no desenvolvi-
as mais bombásticas, introduzidas pelo rito. As massas exigem- mento do ―eu‖. Hoje é necessário que os conceitos sejam encap-
nas, porque realmente necessitam delas para compreender al- sulados no invólucro protetor da forma, porque, sendo por natu-
guma coisa e encontrar nelas uma forma de expressar o seu sen- reza evanescentes, eles assim ficarão de algum modo fixados em
timento religioso. O homem normal não está ainda maduro para nosso mundo. Muitas vezes, porém, nem isto basta, porque a
o culto interior, feito sem atos sensoriais e físicos, que, para ele, evanescente e animadora espiritualidade, somente pela qual se
poderia desembocar na anarquia do livre exame. Se, todavia, justifica a forma, evapora-se e se esvai. E quando não arde no
não é possível conceder tais liberdades, ninguém sofre por isso, íntimo essa chama que dá vida às coisas, a forma se torna um
já que o espírito é livre por natureza, pois ninguém pode inter- cadáver. Então, novas formas de espiritualidade devem baixar
ferir nas relações diretas entre a alma e Deus. Ninguém pode, do céu, porque as religiões se fizeram necrópoles.
portanto, impedir que o indivíduo, evolvendo, possa sentir e A potência da vida interior dos santos nos mostra que a es-
praticar, ao lado do culto exterior, também e sempre mais o cul- sência da religiosidade está no espírito, na vida interior.
to interior, dando assim uma mais potente substância à forma. Quando o homem, evolvendo, atingir e fizer sua essa essên-
Quem realmente sente Deus, O vê e encontra por toda parte, cia, então cairão todas as divergências que dividem, e todas as
mesmo no contingente cotidiano. Quem não sente Deus, se não diferenças de superfície encontrarão a unidade no profundo.
for enquadrado em normas estabelecidas, não sabe o que fazer, Neste, que é o esperado Reino dos Céus, Deus residirá nas
pois não encontrou nela, com o despertar da consciência, o sen- almas e se manifestará nas obras do homem, que cumprirá
tido da Lei. É difícil estabelecer a medida das concessões, e es- consciente e espontaneamente a Lei. Também as religiões
ta deveria ser diferente de alma para alma, porque dois são os evolvem, pois as relações entre a alma e Deus, que elas ex-
escolhos em que é fácil colidir: de um lado, o materialismo re- primem, aperfeiçoam-se. Se bem que a cristalização do farisa-
ligioso e, do outro, a anarquia do livre exame. No primeiro caso ísmo seja a última fase do seu ciclo vital, o hálito divino sem-
se cai no farisaísmo, formalismo e politeísmo, ou até mesmo no pre sopra da profundeza dos espíritos, onde ele está, para rea-
íntimo ateísmo. No segundo, cai-se na desordem espiritual, no cender a sagrada chama, sem a qual tudo é cadáver. Assim, se
orgulho e na revolta. A regra é que uma disciplina é necessária as religiões passam, a ―religião‖ jamais passará.
para tudo, mesmo para as atividades espirituais. Dado isto, não ◘◘◘
é lícito libertar-se de uma forma de disciplina, senão no caso de Que é a prece? Que significa orar? Em que se tornará este
se ter conseguido uma outra mais avançada e poderosa, como é ato para atingir a vida interior? Orar significa colocar-se nu-
a interior. O primitivo não pode ser deixado em liberdade, por- ma atitude íntima, em que a alma busca comunicar-se com
que ainda não sabe dirigir-se por si, sendo perigoso conceder- Deus. Então ela, dirigindo-se a Ele, como uma planta para o
lhe qualquer autonomia espiritual. Por liberdade ele não sabe sol, que lhe dá a vida, inclina-se da periferia para o Centro. A
entender senão a sujeição aos seus baixos instintos animais. Ele prece é, pois, a posição espiritual orientada neste sentido,
não sabe conceber senão um Deus tirano, a que deve obedecer aquela que o ―eu‖ humano assume quando procura pôr-se em
apenas pelo temor das sanções, um Deus dotado dos sentimen- contato com o ―Eu‖ do universo, com a infinita consciência
tos humanos de domínio e vingança. A repugnância de tantos cósmica do Todo. E vimos que ela não é exterior, mas íntima
espíritos em admitir a imanência de Deus e a tendência em con- às coisas e a nós. Depois de tudo quanto dissemos, podemos
cebê-Lo somente em Seu aspecto pessoal e transcendente, deri- compreender que a verdadeira prece não se dirige ao exterior,
va desta forma mental, em que a imanência representa uma mas ao nosso interior. Se ela se dirige para o exterior, o faz
pulverização ilimitada no nada, uma incompreensível presença por concessão à materialidade humana, que tem necessidade
onde os sentidos não veem nem tocam nada mais do que maté- desta via mais longa, mas, para a alma que evolui, vai se tor-
ria bruta. E tanto mais se assemelha a absurdo a imanência na nando irreal como ilusão psicológica.
Terra, onde não se encontram senão seres que são constituídos A prece é um anelo da alma, instintivamente ansiosa por re-
por uma individualidade pessoal. encontrar Deus. Corresponde a uma necessidade de evasão e de
Assim, por mais que as religiões ditem normas iguais para ascensão, é a ânsia de luz que o cego busca distendendo os bra-
todos e todos possam igualar-se na forma, as profundas e subs- ços, é o anseio pela felicidade e conhecimento perdidos. A prece
tanciais diferenças existentes de alma para alma não podem se faz grito de invocação no perigo e na dor, clamando pela sal-
impedir que cada qual sinta e intimamente viva a religião de vação; transmuda-se no abandono entre os braços pródigos da
maneira diversa, segundo sua natureza, que vai do carola ao Lei, que nos dá paz e repouso; explode no pranto de nossas cul-
santo. A igualdade exterior cobre variadíssimas gamas de mo- pas, que mais ainda nos arredam de Deus, ou modula-se no can-
dos de sentir. Quem tem os pulmões conformados para o meio to de gratidão pelo amor e alegria recebidos. Ela se plasma e se
material, não pode respirar na atmosfera rarefeita dos anjos. A configura em cada ato de nossa vida, em cada atitude de nosso
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 63
espírito. Então, cada qual a seu modo, nós confessamos todo o Então resta um só sentimento: amar. Perdidamente se ama
nosso ―eu‖ de pobres criaturas perdidas no abismo da queda, no a Deus, em si mesmo e em suas criaturas, que são sua expres-
turbilhão da vida infinita, aprisionados no mistério; confessamo- são. Esta pequena palavra, Deus, que tantos pronunciam com
nos quais somos, como podemos, com o que somos, ao único indiferença, mesclando-a a tudo, e que tantos chegam mesmo a
que tudo sabe e que pode, por conseguinte, tudo compreender. insultar e blasfemar, esta pequena palavra revela tão podero-
Os modos de orar são muitos e diversos, ainda que a forma samente o seu profundo significado às almas sensibilizadas pe-
que os reveste possa ser igual para todos, porque cada ser está la evolução, que as convulsiona, como fazem a tempestade e o
diante do Absoluto apenas como um pobre relativo, que não sa- turbilhão para a pobre árvore só e indefesa. E a alma está só e
be além do seu ―eu‖ particular e não sabe, pois, dizer a Deus o indefesa porque Deus é o mais forte. E, na luta entre o ―eu‖
que ele sente e é. A mente do pensador penetrará o infinito, a da egoísta, que desejaria defender-se na forma, isolando-se, e
pobre velhinha pedirá graça para sua casinhola e para o netinho. Deus, que quer trazer para si a criatura, vence o mais forte.
Apesar disso, não obstante a acentuada diferença de substância Forte de bondade infinita, que deseja apenas desfazer a onero-
espiritual, velada sob as mesmas fórmulas da regra, cada oração sa bainha isolante, a prisão do ―eu‖, para tomá-lo por comple-
possui sempre um fundo inconfundível, comum a todos: o to, permeá-lo e saturá-lo com a divina linfa vital do seu amor.
mesmo anelo para com o divino. Seja qual for a posição do in- É o bem que quer triunfar e que, para benefício da criatura, usa
divíduo em face de Deus, ela é sempre uma aspiração, débil e da violência, sacode-a e a convulsiona, a fim de que o divino,
indistinta ou poderosa e consciente, para o infinito. Ela repre- oculto nas suas profundezas, desperte nela sob a forma de
senta sempre um apelo à presença de Deus e um brado da pro- consciência, e assim a alma reencontre Deus.
fundeza para reconduzir o ―eu‖, além de todas as ilusões da A tão potentes contatos com Deus, a prece abre a porta para
forma, a esta grande realidade do espírito. as almas amadurecidas; uma prece que se torna qualquer coisa
Deus! que palavra incomensurável! Como é oceânica, como de estranho para o homem comum. Ele não sabe, de fato, con-
é íntima, como é viva! Ela tenta a síntese do inexprimível e nos ceber este ato nesta nova forma, que oferece mais do que pede;
deixa estupefatos e embevecidos. Como é pejada de mistério! E que ouve mais do que fala; que é um estado de abandono e de
no mistério há tudo; há o terror das sanções que seguem o mal recepção mais do que uma atitude de conquista de bens futu-
praticado; há a alegria do bem praticado, que nos dá paz ao co- ros; um estado de expansão e de desfazimento do ―eu‖ em
ração; há toda a nossa infinita ignorância, que não nos espanta Deus mais do que de egocentrismo que pretende tomar Deus
porque a ignoramos; há o enigma do nosso destino, quase sem- para si. Como se vê, trata-se de atitudes opostas, porque, ao se
pre mais pejado de dores do que de alegrias; e há a grande tor- passar para um plano superior de vida, tem-se uma verdadeira
rente de muitos destinos, todos em marcha para Deus. inversão de valores. Não se pode pretender que o homem co-
Ora-se de modos diversos e por muitas coisas diferentes. Há mum ore assim. No entanto esta é a verdadeira prece, a que
quem não saiba fazê-lo senão com os lábios, desfiando uma lon- nos põe em contato com Deus, a única em que se ouve a res-
ga mecânica de repetições, apenas para conseguir formular um posta e com que se pode estabelecer um colóquio. A comum é
pouco de pensamento; há quem não o consiga senão mascarando um monólogo, uma exposição de desejos, sem conhecimento
o vazio interior com o manual de preces formais; há quem assis- de confirmação. Ela nos deixa a sensação de estarmos sós, di-
ta ao profundo simbolismo do rito como a uma representação ante do mistério, que emudece. Deus permanece então um
cujo significado não apreende, mas do qual tem, contudo, neces- enigma, o inatingível transcendente, que não é imanente entre
sidade para concentrar a atenção e localizar o pensamento que nós. Assim se explica, como acima dissemos, a repugnância de
vagueia pelas imagens do templo; há quem só saiba orar por su- algumas almas em admitir a imanência.
as pequenas coisas: a família, os negócios, a saúde, rogando al- Dessa oração superior, feita com o espírito, e não com o
gumas alegrias e alívio de pequenos males. São insignificantes corpo, nos fala o Evangelho (Mateus, 6: 5-8): ―Quando orardes,
coisas terrenas, e nada além. Certamente, o olhar de Deus é bas- não sejais como os hipócritas, que gostam de orar de pé nas si-
tante poderoso para, em visão microscópica, tudo observar e nagogas e nos cantos das praças, para serem notados pelos ho-
prover. Mas também há quem não saiba, não consiga orar assim, mens. Digo-vos, em verdade, que já receberam a sua recom-
não podendo pronunciar a palavra Deus sem sentir-se invadido pensa. Mas tu, quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta
de uma sagrada perturbação. De quantos modos ela pode ser e ora a teu Pai em secreto, e o teu Pai, que vê em secreto, te da-
pronunciada! Mas há também os que a apoucam tanto, que po- rá a recompensa. Orando, não multipliques as palavras como
dem misturá-la em todas as minudências contingentes, de igual fazem os gentios, que deveras pensam extravasar virtudes pela
para igual, como se todas fossem da mesma grandeza. sua loquacidade. Não vos façais, portanto, semelhantes a eles,
À medida que a alma evolve, a ideia de Deus se amplia e se pois que o vosso Pai sabe o que vos é necessário, mesmo antes
potencia na multiplicação ao infinito de todos os grandes atribu- que lhos peçais‖. Palavras estas que nos apontam a prece interi-
tos concebíveis. Então, o despertar do divino, sepultado em nós or (em segredo), com poucas exteriorizações vocais e sem mui-
sob a forma latente, torna sempre mais pronunciada a sensação to rogar, porque Deus já sabe de que precisamos.
da presença de Deus, até que ela invade os horizontes do ser. As- Na prece, cada qual revela a própria natureza, isto é, de-
sim, para algumas almas, essa ideia se torna tão ofuscante como monstra neste seu ato para com Deus todas as qualidades do seu
o sol, poderosa como as massas cósmicas, tonitroante como o tipo biológico. O involuído não pode orar senão como involuí-
primeiro impulso da gênese, vertiginosa sobre todos os abismos do. Ele se faz centro de tudo. Para este ato, ele transportará,
do mistério, suspensa sobre a profundidade do inconcebível. A portanto, a sua normal psicologia de luta e de interesse, feita de
prece se transforma à medida que o ser evolui. Então, não poderá cálculo e desejosa de entesourar, mesmo no espírito. Para ele, é
mais ter importância a pequena graça a ser pedida, conexa a inte- inconcebível o absoluto desinteresse de lutar para arrebatar al-
resses terrenos aqui, na vida transitória de nosso pequeno ―eu‖. guma coisa. Ignora que a ascensão espiritual consiste exata-
Quando se superou o egocentrismo, anulando-se em Deus, essa mente no oposto dessa psicologia e que a alma evoluída se re-
psicologia não tem mais sentido. Não pode mais interessar nem conhece justamente por essa atitude diversa. O homem comum
ao menos o problema, tão inquietante para todos, da própria sal- ora encerrado na couraça do seu egocentrismo, que lhe parece
vação pessoal, do cálculo utilitário da recompensa ou da punição uma defesa, quando é uma prisão. O místico ora em um estado
e de tudo o que constitui apenas um egoístico interesse, ainda que de expansão, em que o ―eu‖ se afigura desfeito, mas somente
ultraterreno. Mal se sobe para Deus em espírito, essa psicologia, assim ele consegue atingir a sensação de Deus. O próprio inte-
inteiramente humana, se desfaz ao calor do incêndio divino. resse egoístico, que está em toda manifestação da vida da maio-
64 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
ria, perde aqui qualquer sentido, porque a conquista se cumpre a morte. Se ele não enveredar pelo caminho oposto, que se ori-
expandindo-se em Deus, que é um pai que sabe de todas as nos- enta em direção à vida, ao que o seu próprio interesse deverá
sas necessidades, é riquíssimo e não deseja mais do que nos tarde ou cedo induzi-lo, receberá cada vez menos dela, até que
prover. O entesouramento não tem mais razão de ser quando o não mais despertará e passará por completo ao polo oposto de
―eu‖, expandindo, perde-se no ―eu‖ cósmico, que é senhor de Deus, isto é, passará do ser ao não ser, pois que o vazio e o na-
tudo e conosco tudo compartilha. da são a plenitude do Anti-Sistema. A punição de Deus consis-
A prece alcança então vastidão cósmica e profundidade te na perda de Deus. A expulsão do sistema afirmativo para o
transcendental, torna-se um turbilhão que arrebata, sublimando invertido ao negativo, até à anulação, eis o inferno eterno, o
em alta tensão toda a potência da inteligência e do coração, até mais terrível, lógica conclusão de uma vontade tenaz que, de-
tornar-se êxtase. A oração passa a ser uma coisa imensa, que liberadamente, quisesse negar Deus através de uma infinita sé-
nenhuma das formas de religião consegue mais contê-la, trans- rie de vidas. Há, então, entre punição e culpa, a proporção que
formando-se em algo de tão universal, que abrange toda aspira- não existe entre uma sanção eterna e uma só breve vida, por
ção superior da alma, seja do crente, do artista que cria, do ci- mais malvada que seja. Inferno não antropomórfico, mas meta-
entista que indaga, do gênio que desvenda o mistério, do herói físico, o mais implacável, dado pela morte da alma, pela extin-
que triunfa, do mártir que se sacrifica, do santo que tem a visão ção do ser no não-ser, no nada. No extremo oposto do dualis-
de Deus! Neste nível, tudo se muda em prece. A alma se avizi- mo, o santo caminha para o paraíso eterno. Aproximando-se
nha de Deus, e a criatura olha o Criador e Lhe estende os bra- cada vez mais das fontes da vida em Deus, ele se expande gra-
ços, sequiosa por fundir-se Nele e dilatar-se do pequeno cons- dativamente na plenitude do ser, afirmando-se no sistema posi-
ciente individual no infinito consciente cósmico. tivo, até ao triunfo da felicidade eterna em Deus.
Se esta é a verdadeira e grande prece, que aproxima a alma
de Deus, e se pode também haver uma prece menor, em que as XVII. IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA
almas menos desenvolvidas fazem o que podem, que será dos
espíritos tão involuídos ou decaídos, que não conhecem ne- Levados por outros fios condutores, não foi possível, nos
nhuma oração? Que será daqueles que não oram mais ou jamais capítulos precedentes, abordar o problema da imanência e
oraram e que nem ao menos sabem conceber o que seja dirigir- transcendência, senão em relação com outros. Cuidamos agora
se a Deus? Que sorte aguarda esses ―eus‖ separatistas do ―Eu‖ de retomá-lo, para encará-lo diretamente, aclarando-o com mais
central, fonte da vida? Como poderá viver isoladamente, confi- exatidão. Antes, porém, de entrarmos em suas particularidades,
ado apenas em seus próprios recursos, esse fragmento rebelde, quisemos aplicar as concepções precedentes, orientando-as
expulso do Sistema? Como tal, ele é paupérrimo, logo extre- também como experiência, na vida espiritual de cada um.
mamente ávido. Somente quem está ligado ao Centro é rico. Ao Voltemos às primeiras origens, que já esfloramos no início
rebelde falta qualquer conhecimento da vida eterna, e a sua do Cap. XV – ―À Procura de Deus‖.
existência é somente a do corpo físico. E quem não possui se- Como já dissemos, antes de criar, Deus era o Uno-Todo,
não uma vida tão pobre, desesperadamente se apega a ela com que ainda tudo devia tirar de si. Não havendo ainda a criação,
feroz egoísmo, sendo capaz de qualquer delito para defendê-la. não nascera nem o Sistema nem o Anti-Sistema, isto é, não ha-
Pobre ser recluso no relativo e no tempo, sem esperança de in- via dualismo de aspectos, mas somente o Uno. Com a criação,
finito! Está sempre famélico, acuado pelo tempo, que foge e o Uno se distinguiu em Criador e criatura, então puramente es-
que lhe rouba a vida. O seu reino é a forma, a ilusão, o caduco. piritual, e nasceu o Sistema. Mas, com a queda, ele se dividiu
As suas construções esboroam-se sempre, e ele, porque tão dis- em dois: Sistema e Anti-Sistema, em que a criatura espiritual
tante do centro genético, tem que reconstruí-las continuamente. caiu na prisão da forma, ou corpo. Ora, acima de tudo isto,
Os tesouros desse reino não perduram como os situados no permanece o Uno no seu aspecto absoluto, que é, além de qual-
eterno. Ele se sente perdido, porque, destacado do Centro-Deus, quer criação ou manifestação. Este é o Deus no seu aspecto
fonte do ser, sua existência vai dissecando-se dia a dia. Na sua transcendente, sem dualismo e acima dele, invulnerável e per-
desesperação, ele se alheia a tudo, contanto que se conserve vi- feito. Deus, no seu aspecto imanente, não poderia existir a não
vo no corpo, único meio de alegria e de vida. ser em algo que não constituísse Ele mesmo, porque é óbvio ser
Mas a extinção o espreita. Ele está agora voltado para o polo imanente em Si mesmo. E Deus imanente se encontra na cria-
negativo do ser e, com isto, autocondenado. E sente que não há ção, quer no sistema conservado íntegro, onde Ele está em Sua
escapatória. Para salvar-se, ele teria não só que inverter a rota, perfeição, quer no sistema desmoronado, onde Ele, por amor,
mas também percorrer em subida todo o caminho feito em des- desceu à imperfeição, para reconduzi-la à perfeição originária.
cida e, então, após tanta faina, tentar comunicar-se de novo com Mais exatamente, a imanência e o dualismo transcendência-
a fonte da vida, para ser alimentado. Eis a oração. Mas o rebelde imanência nasceram no ato da criação. Somente se costuma
recusa-se justamente a curvar-se ante Deus; é exatamente essa chamar imanência à presença de Deus no nosso universo decaí-
harmonização com o Todo que ele não sabe e não quer fazer; é do, porque somente este percebemos, ao passo que a imanência
justamente essa sua posição de dependência do Centro-Deus que abrange também o universo feito de puros espíritos, conservado
ele não quer reconhecer. Deste modo, a descida precipita-se, e o perfeito. Em outras palavras, a imanência não é senão a perma-
pobre espírito, centelha de Deus, se não se resolve a inverter o nência do Criador na Sua criação, pelo que Deus permaneceu
caminho, então, de delito em delito e de desesperação em deses- presente tanto no Sistema como no Anti-Sistema.
peração, em agonia de alma, gradativamente tende a extinguir-se A coordenação destes conceitos, observando-os agora fron-
em nada, porque insistir no erro e, assim, confirmar a revolta de- talmente, e não, como nos capítulos anteriores, em perspecti-
fine a sua vontade de ser autodestruído. Que ele possa, depois, vas obliquas, em função de outras visualizações, aclarará me-
obstinar-se em persistir laborando inteiramente em seu dano, é lhor o nosso pensamento.
uma possibilidade teórica que já examinamos no Cap. X – ―A A transcendência é, pois, o princípio de natureza abstrata
teoria do desmoronamento e suas provas‖. que, no aspecto imanência, descerá às formas para animá-las,
O ateu, negando a Deus, nega a si próprio. Deus não pode mas que, como aspecto transcendência, permanece inalterado,
ser atingido pela negação do ateu. É golpeado apenas quem acima de qualquer criação. O fato de que, nesta criação, não
nega. Negando a fonte da vida em Deus, ele não saberá nem pode existir forma nem qualquer fenômeno, senão em conso-
conseguirá mais alcançá-la. Negando a vida depois da morte, nância com um princípio que lhe oriente o transformismo, de-
ele permanecerá inconsciente e não terá sensação de vida após monstra a existência de Deus transcendente. E o fato de que o
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 65
princípio transcendente não pode atuar a não ser assumindo pressão do Pai. Não que o nosso universo físico seja o Filho,
forma em qualquer ser ou processo fenomênico, revela a exis- mas, como forma material, ele é a expressão e a manifestação
tência de Deus imanente. É que o transcendente dirige o ima- da atividade genética do Pai aí imanente, que é um momento
nente. É o perfeito que guia o imperfeito, para levá-lo à perfei- derivado da Ideia, situada no Espírito. Eis o Todo coligado em
ção. Eis a razão e o íntimo significado do fato que verificamos estreito monismo, desde o Espírito, origem de todas as coisas,
em nosso universo, isto é, que ele está em evolução, ou seja, é a todas as coisas Dele originadas.
uma imperfeição que caminha para a perfeição. Assim se ex- Tais conceitos não podem ser entregues às mãos do invo-
plica como, em razão de sua estrutura, o universo se mantém e luído, que, julgando tudo sensorialmente, é capaz de dizer que
só pode manter-se devido à presença nele de um contínuo im- o Filho é a matéria. As mais recentes concepções da ciência,
pulso criador. Assim se explica também a individualização do que da última substância do mundo físico fizeram uma fórmu-
ser em infinitas formas, preestabelecidas segundo esquemas la abstrata, nos ajudam a compreender tudo isso. Foi assim
abstratos, que não existem no contingente, a não ser na última que, quando se quis ver a essência, a matéria foi reconduzida
fase da sua expressão material. Onde estarão elas antes de ma- ao Espírito. É necessário recordar que ela é uma pura ilusão
nifestar-se, senão no transcendente, que com elas se põe em dos nossos sentidos.
contato através do imanente? Quem estabelece no tempo os Por mais que possa parecer audaciosa semelhante concep-
ritmos de adolescência e velhice, a duração da vida de cada ti- ção, os fatos depõem em seu favor. A vida, expressão de Deus
po, o seu limite de desenvolvimento orgânico? imanente, tem um caráter inteiramente interior. Ela germina in-
Deus, pois, não apenas criou no princípio o seu universo de cessantemente, e só graças a essa imanência é que o ser pode
um estado de nada ―relativamente‖ ao novo estado, não deu viver, vencendo o desgaste imposto pelo ambiente. A medicina
somente o seu primeiro impulso de origem à gênese, mas per- não examina senão as manifestações desse Deus imanente, es-
maneceu depois nesse universo, não exteriormente, mas inti- tudando as formas construídas pela Sua inteligência. No cadá-
mamente, continuando incessantemente a criá-lo com a Sua ver, a medicina estuda os restos de uma vida que se retira de
presença. Esclarecemos, no fim do Cap. XIII – ―In principio sua manifestação. A vida lhe escapa, porque é de natureza espi-
erat Verbum‖, as razões e as origens dessa imanência. Ela é de- ritual, campo que ela ignora.
vida ao princípio fundamental da criação – o amor – pelo qual Toda forma provém do interior, de um germe, e se desen-
um verdadeiro Pai não abandona jamais o filho, faça ele o que volve em torno dele, por crescimento. Todo germe é filho de
fizer, e, justamente para salvá-lo, segue-o, livremente, em qual- outro germe e assim por diante. O ato originário da primeira
quer desventura em que ele tenha recaído, porque assim o exige gênese se repete no mesmo modelo, em continuação. O fato de
o amor. Essa imanência, ou presença de Deus, é o que se chama que tudo não pode existir a não ser por filiação, nos diz que o
vida, mas em senso latíssimo, pois é vida que anima igualmente nosso universo é regido pelo princípio do Filho. Todo esse pro-
a orientação das moléculas nos cristais, como o funcionamento cesso genético permanece, porém, um enigma indecifrável, se
atômico da matéria. Tirai de tudo o que existe essa vida, que não nos reportarmos ao primeiro ato genético, executado pelo
representa a imanência de Deus, e o universo recairá no nada, Pai. A vida é atributo da alma, que é interior ao ser. Aí está o
isto é, em um estado de não-ser ―relativamente‖ ao atual. Deus centro e a síntese de todas as sensações. Tudo caminha do am-
não criou, pois, como o faz o homem, mas de uma forma muito biente para o espírito e do espírito para o ambiente, e esta é a
mais profunda, isto é, não lavrou a Sua obra de fora, para de- base da experiência pela qual o ―eu‖ pode crescer e evolver. É
pois destacar-se dela, mas de dentro, para nela permanecer in- no interior da matéria que se encontram os velocíssimos circui-
destacavelmente. As obras do homem são, efetivamente, mortas tos atômicos que lhe emprestam a solidez. O crescimento por
e têm necessidade sempre de novas intervenções, que constitu- multiplicação celular, como a cicatrização das feridas por re-
em a manutenção. Somente as obras de Deus são vivas, e, se construção dos tecidos lacerados, provém do interior. A ―vis
parecem andar por si, é porque dentro delas está o Deus ima- sanatrix naturae‖22, que preside à conservação de nosso orga-
nente, que, como vida, age continuamente. Se deixarmos uma nismo, e todas as sábias diretivas de nosso funcionamento or-
casa, com tudo o que possui, entregue a si mesma, encontrare- gânico – tão automático, que o desconhecemos – tudo provém
mos após muitos anos tudo em decadência. Se deixarmos plan- do interior, dessa presença de Deus imanente. Esse pensamento
tas, encontraremos um bosque; se animais, um rebanho. De on- diretor está tão bem oculto nas profundezas, que a ciência não
de vem essa capacidade de multiplicação, senão de Deus ima- soube ainda encontrá-lo. Embora tendo sob as vistas sua ex-
nente? De onde promana a vida, a não ser dessa fonte que ali- pressão, só lhe encontra os efeitos. Ele está tão oculto, que se
menta todo o criado? Que imperfeita imitação da obra de Deus lhe ignora a presença, apenas porque se furta à análise sensória,
são as obras do homem! Mas mesmo estas, para conservar-se, dita objetiva, ao passo que nada é tão pouco objetivo quanto
reclamam aquela assistência que se chama de manutenção, que ela. E desta forma se chega até ao ateísmo, enquanto se mergu-
constitui uma espécie de imanência do homem nelas. lha nessa atmosfera divina, na qual se respira e se vive.
Podemos agora melhor compreender tudo isto, confrontan- Esta interioridade do Deus imanente em seu universo, que,
do com o que foi dito no Cap. XIII – ―In principio erat Ver- embora sendo imanente, nós concebemos como material, por-
bum‖. Deus, no Seu aspecto transcendente, é o Espírito, o pri- que a materialidade é uma ilusão, nos leva a considerar as rela-
meiro momento da Trindade do Uno, o puro pensamento, a ções entre a alma e o corpo no homem. Também este é a ex-
ideia ainda não em ação, anterior e acima de qualquer criação e pressão de um espírito animador, que se reveste de forma físi-
suas vicissitudes. Deus, no Seu aspecto imanente, é o segundo ca. Que assim seja, é lógico pelo princípio dos esquemas de ti-
momento da Trindade do Uno, aquele em que a ideia entra em po único. Da mesma forma se poderia conceber Deus, no Seu
ação e o Espírito se fez Verbo gerador, o Pai. Do Pai deriva o aspecto imanente, como a alma do nosso universo. Em ambos
terceiro momento, a criação, quer a que permaneceu perfeita os casos, a forma-matéria está na periferia, no exterior, alimen-
nos espíritos puros, o Sistema, quer a desmoronada na imper- tada do interior, em que se encontra o princípio: a vida. Em
feição da forma material, o Anti-Sistema. A imanência, surgi- ambos os casos, tudo é inteligentemente orientado e guiado do
da no segundo momento com o ato criador, que o conduz ao interior; a forma é gerada pelo espírito, isto é, o corpo humano
terceiro, a obra realizada, revela-se nesta. E nela vemos que o é constituído pela alma, seu princípio vital, como o universo
aspecto de imanência existe e tudo rege. A forma concreta de físico foi formado pelo Verbo, o Pai. A alma humana, como o
tudo o que existe em nosso universo não é mais do que a ex-
22
pressão de tal imanência. Em outras palavras, o Filho é a ex- ―A força curadora da natureza‖. (N. do T.)
66 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Deus imanente, estariam tão entranhadas na forma, que o fato relativo, na matéria, então conceberíamos o viver na matéria
de a primeira não poder viver senão em um corpo não repre- como um não-existir. Nestas condições, a atual criação nos
senta nada mais do que um caso particular da universal ima- pareceria a passagem do ser para o nada, porque não seria a
nência de Deus, que ela representa e constitui no seu caso par- transformação que se opera no sentido de nosso tipo de exis-
ticularizado. E que é essa substância pensante, matéria prima tência, mas algo que caminha para a sua negação. Se superar-
de nosso universo, senão o espírito? mos, porém, a relatividade destes pontos de vista, veremos
Prossigamos na observação do paralelismo. Suprimamos a que o referido término do universo físico e biológico não pas-
alma no homem, e teremos um cadáver. E que poderia restar do sa de uma mudança de forma, para retornar ao originário esta-
universo, se dele desaparecesse a projeção da inteligência dire- do espiritual, ponto de partida do atual universo desmoronado.
tora (o Espírito) e cessasse a presença do princípio vital (o Pai)? Concluímos, então, que só em nosso plano relativo é possível
De modo semelhante, ao fim da existência na forma, a alma ser ou não ser, e isto relativamente a uma dada forma assumi-
humana se retrai para o interior da sua manifestação, como o da naquele momento pelo ser. Mas o Todo – Deus – jamais
Deus imanente, ao término da vida do cosmo, retrair-se-á para pode não-ser na sua substância. Somente no relativo pode
o íntimo dessa Sua manifestação, para coincidir no fim do ci- ocorrer o não-ser, isto é, um não-existir parcial em relação a
clo, como já dissemos, com o ponto de partida: o Deus no as- outras formas de existir. O absoluto, que é tudo, não pode
pecto transcendente. E, assim como todo o universo, evolven- deixar de ser tudo eternamente.
do, exprime o gradual retorno da imanência à transcendência, O paralelismo entre a unidade alma-corpo e a unidade Deus
também a alma, evoluindo, aproxima-se sempre mais, em cada imanente-universo, ajuda-nos a compreender as relações entre
morte, do Deus transcendente, da perfeição de que se avizinha Deus transcendente, origem primeira de tudo, e esta sua inco-
gradativamente a imperfeição, para alcançar, na fonte primeira, mensurável criatura coletiva, que é o universo. Embora, neste
nova energia para uma nova vida. Isto porque, com a queda, os seu último aspecto, Ele seja invulnerável, acima de qualquer
espíritos se precipitaram na periferia, e não lhes é possível se- criação sua e de suas alternativas, é também através desse as-
não uma vida fragmentada, sendo necessário assim, a cada mor- pecto de imanência que Ele pode permanecer presente, agir,
te, que é inevitável nesse plano, voltar ao centro, para conseguir guiar e, assim, tudo reconduzir do imperfeito, em que o Sistema
um novo impulso dinâmico, sem o que não se suporta uma ou- desmoronou, para o perfeito, em que Ele ―é‖. Assim, torna-se
tra vida. Como já vimos, esta é a razão pela qual o desenvolvi- compreensível também a ação à distância, inimaginável de ou-
mento jamais ultrapassa as dimensões estabelecidas no esque- tro modo, que nos poderia mesmo induzir a pensar em um Deus
ma de um dado tipo de ser, portanto podemos também compre- ausente, desinteressado da sorte de uma criação abandonada a
ender agora porque a carga vital recebida – que o espermato- si mesma. Desta maneira explica-se também a imperfeição, o
zoide e o óvulo contêm, mas que não geram, porque a recebem estado de contínua formação e o fenômeno da evolução, que
do espírito para desenvolver-se – é de uma duração limitada, reinam em nosso universo. E compreende-se, então, que esse
exaurindo-se depois, na morte. transformismo é um estado transitório, decaído, impróprio do
Esses paralelismos nos permitem compreender também o ser perfeito, entrevendo-se a meta que nos espera a todos, o
porquê deste cíclico retorno da juventude e velhice, em todas as ponto de chegada de tanto trabalho.
formas da vida, seja no indivíduo, seja na família, nas nações, Pode-se agora alcançar a definição de uma importante ques-
nos impérios, nas civilizações ou na humanidade. Não se trata tão, perguntando se Deus é pessoal ou impessoal. O aspecto
senão de repetições, em dimensões menores, do ciclo máximo do transcendente leva à primeira concepção; o imanente, à segun-
aspecto imanência de Deus, que torna a coincidir com o Seu as- da. No primeiro, Deus é centro, um ponto, um ―Eu sou‖, o To-
pecto transcendência. Quanto menor a unidade da individualiza- do-Uno, possuindo todas as características da personalidade,
ção tomada para exame, tanto menor também o seu ciclo e mais semelhantes às que encontramos no menor ―eu‖ humano. No
rápida a sucessão deles. Mas, em cada caso, do homem às na- segundo, Deus é periferia, imerso na sua manifestação, pulveri-
ções, à civilização, à humanidade, ao universo, o esquema é zada em infinitos ―eu sou‖ menores, resultado do fracionamen-
sempre o mesmo. Temos, assim, dois momentos: no primeiro, é to do Todo-Uno no desmoronamento do Sistema, possuindo,
o espírito que trabalha para fazer uma forma para si, organizando portanto, todas as características do impessoal, como aquelas
uma expressão sua no plano exterior (o homem organiza um cor- que encontramos na massa de células componentes do corpo
po, as nações um governo, as civilizações uma ordem, as huma- humano. Tudo isto corresponde exatamente à universal lei do
nidades uma sede planetária, o universo um organismo cósmico); dualismo, pela qual toda unidade é constituída de duas partes
no segundo momento, inversamente, é a forma física que se con- inversas e complementares. E assim seria por toda parte, desde
some em favor do espírito, enriquecendo-o de todas as experiên- Deus-Universo até à alma-corpo.
cias realizadas na vida. Assim como, na juventude do indivíduo, A esta altura, poder-se-ia, contudo, objetar: existem então
temos um período de construção física, também temos no univer- dois Deuses? Respondemos: existirão, talvez, duas Terras só
so a formação de um substrato feito de matéria; e tal como, no porque a nossa tem dois polos? Existirão, porventura, dois seres
indivíduo, temos depois, com a velhice, o declínio da forma em em um homem, por ser ele feito de alma e corpo? E, se assim é
benefício do desenvolvimento da consciência, igualmente verifi- a constituição do esquema do ser, não nos é dado mudá-lo. De-
camos no universo um período de destruição física e de paralela vemos limitar-nos a comprovar que assim é. Caberia, contudo,
expansão vital, sempre maior, no plano espiritual. ainda objetar se o universo físico então é o corpo de Deus? De
Isto confirma o que já dissemos algures, afirmando que o novo respondemos: o que é o corpo para a alma, senão o seu
universo físico acabará por desintegração atômica () e o veículo e meio de expressão? Impõe-se, ao certo, conferir então
universo biológico (vida) findará com a espiritualização da à palavra corpo um sentido tão mais amplo, que nem ao menos
forma física (). Essa espiritualização pode parecer um poderíamos concebê-lo. E esta foi exatamente uma das conse-
fim para o ser situado na matéria, mas tudo é relativo ao ponto quências erradas do imanentismo: perder de vista o Deus-Uno e
em que se coloca o observador. Nós chamamos de existência vê-lo definitivamente fragmentado no panteísmo, como se do
a vida na matéria, porque a nossa vida se desenvolve na peri- ―Eu sou‖ central não tivesse restado mais do que uma poeira de
feria. Assim, também chamamos de criação, isto é, passagem Divindade, ficando ela dispersa em infinitos ―eu sou‖ menores,
do nada ao ser, à transformação que se opera em nosso tipo de sem possibilidade de reconquista do Uno e de conexão com
existência. Mas se estivéssemos situados no centro, no absolu- Ele. Mas o leitor já viu quão longe estamos de semelhantes
to, no espírito, ao invés de nos encontrarmos na periferia, no concepções (vide o fim do Cap. XV – ―À procura de Deus‖).
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 67
Trata-se, pois, apenas de duas posições diversas da Divin- ―Deus cria a cada instante o mundo apenas com o pensa-
dade. No polo transcendência, temos de Deus o aspecto unitá- mento (...). O pensamento da criação nos é familiar, mas o que
rio e estritamente pessoal. No polo imanência, temos Dele o nos é menos familiar é o pensamento da criação contínua, que é
aspecto multíplice, um pan-psiquismo, uma presença dada por a conservação do mundo. Pensamos demasiado frequentemente
uma pulverização no particular, até ao panteísmo, concepção que Deus criou este magnífico universo no princípio dos tem-
que é o resultado natural da cisão no desmoronamento. Pante- pos, limitando-se em seguida a dirigi-lo e governá-lo, como se
ísmo de fato significa presença de Deus na multiplicidade, ou ele pudesse subsistir por si, de modo mais ou menos indepen-
seja, na imanência. O erro está em se ter querido contrapor, ao dente de Deus. Ao contrário, a conservação do mundo é uma
invés de conjungir, estas duas verdades complementares, fei- criação contínua, que a cada instante pressupõe uma potência
tas para completar-se reciprocamente, único modo de recons- igual à que originariamente criou todas as coisas (...). Medimos
truir completamente o conceito de Deus. Resultou daí uma Deus pelo nosso gabarito...
unilateralidade de visão, fonte de polêmicas destituídas de ou- ―Quer executemos uma obra de arte, quer construamos
tro sentido que não seja alcançar, através da luta entre opos- uma edificação, uma vez completadas, estas coisas subsis-
tos, a compreensão da relatividade das nossas concepções. É tem independentemente de nós. No máximo, velamos pela
certo que Deus transcendente, situado acima de qualquer cria- sua conservação e manutenção. Da mesma forma, para mui-
ção, representa a centralização máxima no ―eu‖ pessoal. Mas tos homens, o mundo, uma vez criado, existe por si, não ca-
é também certo que o desmoronamento do Sistema, arrastan- bendo a Deus senão conservá-lo e defendê-lo. Na realidade
do consigo Deus transcendente na imanência, necessária para Deus faz o mundo a cada instante e cria sem cessar (...). Que
manter e salvar o Anti-Sistema, explica e justifica o panteís- ideia tão mais exata e benéfica teríamos da Potência Infinita,
mo. Este é verdadeiro, mas apenas no polo imanência, ao pas- se considerássemos o mundo sob este aspecto! Como sentirí-
so que é erro quando admitido no polo transcendência, como amos melhor a nossa dependência de Deus e a nossa neces-
também é verdadeiro o oposto princípio da personalidade, se sidade de gratidão, se tivéssemos maior consciência dessa
admitido apenas no polo transcendência, constituindo erro ação continuamente criadora de Deus sobre tudo o que nos
quando concebido no polo imanência. Afinal, o ser humano, rodeia, como sobre nós mesmos...
feito à imagem e semelhança de Deus e seu universo, reflete ―Deus fez e faz sem cessar todas essas maravilhas apenas
bem estes conceitos, mostrando-nos o ―eu‖ espiritual, pessoal com o Seu pensamento repleto de amor. Deus pensa e ama to-
e central, e o corpo físico, onde, em cada célula, esse ―eu‖ es- das essas coisas com um amor que cria. Pelo próprio fato Dele
tá imanente, como a origem das sensações e da vida. E tudo, pensá-las e amá-las, elas recebem o ser (...). Deus pensa todas
do caso máximo ao mínimo, corresponde à lei universal das essas coisas; cria, só com o pensamento, este mundo imenso...
unidades coletivas, lei pela qual todos os elementos compo- ―Todo o universo é o Seu pensamento...
nentes do Sistema convergem hierarquicamente para um único ―Vós somente, meu Deus, produzis, criais, fazeis existir
vértice, estritamente individualizado. Trata-se, pois, apenas de com o Vosso pensamento apenas (...). O mundo inteiro é um
dois aspectos, como sempre dissemos: o transcendente ou poema magnífico animado pelo Vosso pensamento...
inexpressado, e o imanente ou expresso na criação, que natu- ―Ele está presente em cada criatura (...), e para conservá-la
ralmente deve conter Deus, pois que é Dele a expressão. Te- no ser(...). Mas há uma coisa mais surpreendente ainda e bem
mos um caso semelhante no homem, que pode ter uma ideia e pouco conhecida. O Espírito Infinito, o ser sem limites, que
não expressá-la ou então projetá-la fora de si, na ação, e de- cria todas as coisas com o pensamento (...), não se separa da
pois na forma, podendo, assim, essa ideia coexistir ao mesmo sua criatura, que, sem o seu auxílio, cessaria de existir. A In-
tempo no aspecto inexpresso e expresso. Podemos muito bem finita Inteligência está e permanece no fundo de toda criatura,
conceber Deus não imerso na concatenação causal, na suces- no fundo de cada pensamento seu. Vem a ela, circula nela,
são dos atos no tempo, como é o homem antes de traduzir em embebe-a e a inunda de Si mesma a cada instante, mas Deus,
ato a sua ação. Os dois aspectos são conexos por toda parte. imanente e transcendente ao mesmo tempo, está na Sua criatu-
Assim é construído o Todo. Eles efetivamente assemelham-se ra (...). Todo ser é como um tabernáculo de Deus (...). Quan-
a dois amantes separados, uma unidade dividida, desespera- tos poucos, ó meu Deus, são aqueles que têm consciência dis-
damente desejosos ambos de um recíproco amplexo, para re- so! (...). A criação inteira é como um templo do Altíssimo,
constituir a unidade. Parece que o imanente persegue o trans- três vezes santa. Tudo está repleto de Deus, tudo está impreg-
cendente, cuja imobilidade atingirá após uma ilimitada corri- nado Dele (...). Deus inunda cada coisa. Como uma esponja
da. Ele parece uma imensa carência, que só findará quando se imersa no oceano, o universo inteiro está envolto na imensi-
completar na transcendência. É o vazio que está faminto do dão do pensamento de Deus.
pleno, é o pleno que tem necessidade de encher o vazio. É a ―Cada coisa é a obra-prima de Deus! (...), nada de imperfei-
universal complementariedade dos dois opostos do dualismo, to (...). O Deus que não posso ver daqui de baixo (...), está, to-
sobre o que se eleva a unidade. Como o macho e a fêmea, o davia, em toda parte. Ele me circunda no mundo (...). Eu estou
imanente corre e o transcendente aguarda. Aí está o princípio imerso Nele, o grande oculto e o grande presente‖.
das trajetórias espiralóides, que continuamente se reduzem, Não se poderia descrever melhor o que é o nosso monismo
até que, como se passa no correspondente esquema do plano e o nosso imanentismo, que foi confundido com panteísmo. O
físico, o imanente se precipitará no transcendente, anulando- nosso conceito, acima exposto, de um universo-manifestação é
se na identificação com ele. Então, o Deus transcendente terá mantido pelo Cardeal Nicola Cusano Venerável nestas suas pa-
reabsorvido em si a sua manifestação, que terá retornado pela lavras: ―Quid est mundus nisi invisible Dei apparitio, quid est
universal reespiritualização ao seio do Uno, do qual nascera, Deos nisi visibilium invisibilitas?‖23. E poderemos repetir vá-
desaparecendo a distinção entre os dois aspectos. rias citações já transcritas no Cap. XV – ―À procura de Deus‖.
Nada mais nos resta, para concluir a argumentação, senão Não faltam, pois, mesmo no campo ortodoxo, confirmações
ouvir a confirmação de tudo isto numa voz inteiramente orto- de nosso ponto de vista. Sem este conceito da imanência de
doxa, que reproduzimos de uma página da obra de Paulo de Ja- Deus, se entendido sem as aberrações do panteísmo, não se
egher S. J. – Confidência (Meditações), tradução do francês, explica o amor de São Francisco de Assis por todas as criatu-
vol. I, Ed. Marietti, tipografia pontifícia, da S. C. dos Ritos,
1934 (o escrito é de 1929, com Imprimatur). 23
―Que é mundo, senão a aparição invisível de Deus; quem é Deus,
O Cap. XIV, pág. 273 e seguintes, diz: senão a invisibilidade visível?‖. (N. do T.)
68 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
ras, nem que Cristo pudesse repetir dos livros sagrados que nós funcionamento do grande organismo do universo, segundo es-
somos Deuses. É toda a lógica do Sistema, portanto, que prova se pensamento; pode, em outras palavras, ―sentir‖ a Lei. Estra-
a imanência. Ela aí está escrita, e não se pode deixar de lê-la. nho modo de explorar o ignoto! Método aqui regularmente
Além do mais, a criação contínua, que significa manutenção da usado, que está nos antípodas do método objetivo e experimen-
própria obra, de modo algum exclui uma criação originária e, tal da ciência, método que até agora nos forneceu, para qual-
no sentido relativo acima exposto, pode-se admiti-la também quer problema, aquela orientação geral que a ciência não pode-
do nada, sem lesar com isso o princípio da indestrutibilidade rá atingir com os seus meios. Mas é dos princípios gerais e da
da Substância. Também dissemos isto porque a alguns espíri- essência de nosso caso e do fenômeno da intuição que aqui
tos repugna admitir a imanência. Mas, assim como se obser- queremos falar, e não do seu aspecto contingente, que já foi
vam os olhos de uma pessoa para perscrutar-lhe a alma, assim contemplado na introdução do volume Problemas do Futuro.
como cada ser possui um semblante que exprime o espírito O fenômeno inspirativo apresenta-se-nos, pois, composto de
animador de sua forma e nos diz da vida que o anima, também tais elementos morais e espirituais, que a ciência moderna é in-
perceberemos, olhando o rosto e os olhos deste nosso universo competente para julgá-lo, já que ela ignora esses elementos nas
ilimitado, o seu princípio animador que tudo move: Deus. suas observações. A ciência da matéria não pode admitir nem
compreender a do espírito. Ela só se ocupa de especiais fins
XVIII. O FENÔMENO INSPIRATIVO imediatos, sem cogitar se a consecução destes é depois um bem
ou um mal para o progresso da humanidade. Não trabalha, as-
Desçamos das alturas do capítulo precedente para um terre- sim, pelo fim supremo para o qual trabalha a vida, que é a evo-
no mais vizinho nosso, do qual poderemos melhor compreen- lução. Em face da convergência de todo o criado com o fim de
der-lhe a estrutura, se a virmos à luz dos fatos mais elevados, ascender a Deus, a ciência permanece agnóstica, o que significa
acima descritos. Queremos agora focalizar a nossa atenção no sem orientação, porque não compreendeu qual é a meta de to-
fenômeno inspirativo, que, visto assim, tornar-se-á mais inteli- das as atividades do ser. No fenômeno inspirativo culmina, ao
gível. Só agora, depois de tais preliminares, estamos em condi- invés, o movimento da vida, na catarse biológica da sublimação
ções de aprofundar e resolver tão árduo problema. Em geral, é mística, a operar uma das suas maiores criações. Para julgar tais
inútil examinar uma questão isoladamente, porque ela perma- fenômenos de alma, não bastam os meios técnicos ou matemá-
nece insolúvel se não for antes orientada no todo e precedida da ticos, mas é indispensável um instrumento de igual natureza do
solução dos problemas fundamentais do ser. fenômeno. O espírito não se pode aquilatar senão pelo espírito.
O fenômeno inspirativo diz respeito às relações entre o ―eu‖ Para controlar um fenômeno de sublimação mística, como é o
individual e o ―eu‖ cósmico, entre a alma e Deus. No Cap. XV – da inspiração, seria necessário um santo, único competente na
―À procura de Deus‖, vimos como a evolução é um processo de matéria, porque só ele conseguiu atingir aquele grau de purifi-
desmaterialização ou espiritualização, que percebemos como um cação e, por conseguinte, de sensibilização imprescindível para
fenômeno de nossa sensibilização, liberação da forma física, poder perceber e medir as qualidades espirituais.
conquista de mobilidade e de consciência, revelação do Divino Dissemos aqui acima que o fenômeno inspirativo diz respei-
que em nós jaz latente. Esta é a via do retorno a Deus, que cha- to às relações entre o ―eu‖ individual e o ―eu‖ cósmico. Esclare-
mamos sublimação. A todos estes conceitos, já desenvolvidos cemos também, no Cap. XV – ―À procura de Deus‖, que o grau
aqui, está conexo o fenômeno inspirativo, que deve ser observa- de proximidade entre a alma e Deus é dado pelo grau de afini-
do em função deles. Assim, ele fica enquadrado e inserido no fe- dade de vibrações conseguido em relação a Ele, isto é, de con-
nômeno da sublimação, da mesma forma que este, no início do sonância ou sintonização. Ora, a inspiração exprime a comuni-
Cap. XI – ―A caminho da sublimação‖, foi enquadrado no es- cação exatamente por consonância, que é uma sintonização pelo
quema do universo. A inspiração nos surge, então, como um caso despertar em nós daquele estado cinético da vida que, embora
de evolução, estreitamente conexo com a catarse biológica da su- originário, congelou-se na inconsciência (não vibração), com a
blimação; aparece-nos como um fenômeno ligado à ascese mo- queda ou desmoronamento do Sistema. Em outros termos, a ins-
ral, ao movimento centrípeto do espírito para o Centro-Deus, ao piração é um despertar consciente na profundeza em que está
misticismo. Assim, podemos dizer que o fenômeno inspirativo Deus. Então se atinge a sintonização, e esta é a base das visões
não passa de um momento ou aspecto de tudo isto e que só pode que nos revelam os grandes esquemas do pensamento divino. A
ser compreensível em função da sublimação mística. Ele faz par- visão é, pois, um problema de aproximação qualitativa. Eis a ex-
te do despertar da consciência e do retorno da alma a Deus. trema importância do aperfeiçoamento moral, da purificação.
Esta nossa colocação do fenômeno destaca-o definitiva- Falamos aqui do fenômeno inspirativo em relação justamente
mente dos símiles com os quais ele foi por outros até agora com o problema central da terceira trilogia: a sublimação.
confundido, pelo menos em nosso caso. Ele nada tem em co- Mas esse fenômeno pode ser observado também sob outros
mum com a mediunidade física, nem tampouco com a comum aspectos. O ―eu‖ individual aproxima-se do conhecimento do
ultrafania, em que o ser é instrumento passivo. Em nosso caso, pensamento do ―eu‖ cósmico pelo fenômeno inspirativo justa-
na sua fase atual, não se é mais inconsciente aparelho registra- mente porque a evolução pode ser concebida também como
dor de algum conceito, ainda que ele provenha dos mais eleva- uma expansão do primeiro no segundo. Esse despertar de zo-
dos planos do pensamento, mas se trata de um processo intei- nas interiores da consciência pode dar um sentido de expansão,
ramente diverso. O sujeito registra por si, com os próprios de dilatação do ―eu‖ individual no ―eu‖ universal. Assim,
meios intelectivos, visões que ele atinge justamente através do quanto mais o espírito do indivíduo se harmoniza com a Lei,
processo de espiritualização ou sublimação mística ou catarse isto é, sintoniza-se e entra em consonância com a vontade de
biológica, a que nos referimos acima. Então o despertar dos Deus, tanto mais, então, ele participa do pensamento da Lei.
profundos estados de consciência, antes latentes e adormecidos Quanto mais a alma se abre, tanto mais ela é inundada pela luz
no inconsciente, como se dá para a maioria, leva o eu a pôr-se que o Centro irradia sobre todo o Sistema. Conseguir sintoni-
desperto em dimensões conceptuais superiores, menos perifé- zar cada vez mais, pode significar também ascender em dire-
ricas e mais centrais no Sistema. Desta forma, ele vem a en- ção centrípeta, da periferia para o centro. Eis as múltiplas vias
contrar-se mais iluminado do que normalmente pelo pensa- que levam à inspiração. Em outras palavras, pode-se dizer que
mento de Deus, do qual assim pode perceber e ilustrar aspectos o superconsciente é mobilizado, ou seja, posto no estado ciné-
novos e inéditos, ainda ignorados pelo homem. Deste modo, o tico (consciente) ou vibratório do consciente universal, que é
sujeito pode contemplar, em visões sucessivas, a estrutura e o Deus imanente, adormecido no profundo de nosso espírito, cu-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 69
jo despertar constitui a evolução, que nos reconduz a Ele, nos- A esta altura podemos compreender a diferença entre o in-
sa meta. Então, deste ponto de vista, o fenômeno inspirativo tuitivo e o homem positivo de ciência. Este último, sobretudo
nos aparece como uma expansão ilimitada do pequeno consci- quando é matemático, procede encerrado em uma férrea lógica
ente individual no infinito consciente universal. É uma supera- e não concebe e admite senão o que pode ser aferido pelos mei-
ção de limites, no que consiste todo fenômeno evolutivo; é um os exatos de mensuração e demonstração. Mas nem todo o uni-
desembocar da forma-prisão na infinita liberdade do espírito. verso é suscetível de ser reduzido aos termos dados por esta
O fenômeno inspirativo pode então ser definido como: ―o fe- forma mental. Existem e valem também as ideias vagas, inafer-
nômeno da catarse biológica ou espiritualização ou sublimação ráveis como a névoa em formação, as quais, não podendo ainda
mística, visto no seu aspecto consciência‖. ser reduzidas e fixadas em medidas exatas e fórmulas definiti-
Ora, nem todos os fenômenos inspirativos são iguais, justa- vas, nos escapam para o superconcebível. E é este estado intui-
mente porque eles constituem um índice do grau evolutivo tivo e fluido da concepção a primeira fase da construção con-
atingido individualmente, pois, quando o limite do consciente ceptual, mesmo para o cientista ou matemático. Todavia, pela
individual ou forma-prisão se desfaz, a sua dilatação no consci- sua forma mental, tudo nos pode parecer mais visão de artista
ente universal se dá apenas na proporção da potência que o do que de cientista. Só assim posso explicar-me o juízo emitido
―eu‖ reconquistou por evolução, e esta é dada pelo grau de con- por Einstein em sua última carta, a respeito do meu volume de
sonância conseguido em relação a Deus, centro de vida. Se, na caráter científico, Problemas do Futuro: ―The danger in such
verdade, os vários fenômenos inspirativos são diferentes, o seu philosophical entreprises is that the word becomes dissociated
princípio e técnica, contudo, são idênticos, e todos são um mo- form the world of experience, so that the whole structure im-
mento do universal fenômeno da evolução. Por aqui se vê que presses me more as an independent work of art than as an intel-
profundas raízes na vida, mesmo nos seus planos superiores, lectual interpretation of something else‖ 24.
tem o fenômeno inspirativo. A este propósito poder-se-ia observar que o trabalho inspi-
É natural, então, pela sua estrutura, que a inspiração possa rativo, além de ser o mais livre e independente da vontade, é
representar um precioso método de indagação, ainda que a ci- também o menos exaustivo. Ele fatiga muito menos do que o
ência não o aceite, precioso porque ele pode revelar-nos coisas trabalho consciente, obrigado ou espontâneo. No primeiro ca-
que não estão no consciente individual, algo que nos permite so, somos como que rebocados pelo próprio trabalho, que nos
ultrapassar os limites deste, que é, todavia, axiomaticamente arrasta para onde quer. No segundo, temos de querer, impor-
colocado como medida de todas as coisas. Poder atingir o cons- nos, afadigar-nos. Poder-se-ia concluir daí que, para não nos
ciente cósmico – que, para o homem, está habitualmente sepul- cansarmos, bastaria que trabalhássemos com o subconsciente,
tado no inconsciente e representa, pois, um inatingível mistério isto é, no campo do consciente adquirido (ideias inatas), por
– e, por inspiração, até onde seja possível, apanhar-lhe o conte- automatismos. E é verdade, mas o problema consiste em pos-
údo e traduzi-lo em forma racional, acessível a todos, tudo isto suir um subconsciente que saiba trabalhar em um plano digno.
pode assemelhar-se a explorações efetuadas nas profundezas Todos sabem trabalhar com o subconsciente, mas ele é uma
abissais dos mares ou na estratosfera. E não se pode jamais sa- sobrevivência limitada e atávica de animalidade, e não um am-
ber o que isto poderá revelar-nos. plo despertar interior, pelo qual o ―eu‖ pode atingir o pensa-
Aliás, as intuições do gênio, os produtos da arte ou as des- mento cósmico. Geralmente confunde-se no próprio inconsci-
cobertas do cientista, quando representam uma desenvoltura do ente, fora da consciência normal, o subconsciente revivido do
pensamento no sentido da sua orientação original, constituem passado com o superconsciente, antecipação do futuro. Só este
sempre algo atingido não no consciente individual humano, é um despertar consciente na profundeza em que está Deus.
mas no consciente cósmico, que se encontra latente naquele, em Todos sabem trabalhar sem fadiga com os meios da primeira
estado de inconsciência. Efetivamente, quem alcança tudo isto espécie de inconsciente. Não é a ele que está confiado o nosso
por inspiração tem a sensação de defrontar-se com um pensa- funcionamento orgânico? Quanta gente, ademais, utiliza, sem
mento de estrutura e dimensão diversas do normal, com um esforço algum, tal patrimônio adquirido, nos atos instintivos da
pensamento que não se apresenta por sucessão lógica, mas por vida, que todos sabem fazer sem mestre! Assim, diariamente,
instantaneidade, como se estivesse além da nossa dimensão todos praticam um sem-número de atos que constituem tam-
tempo, limite que aqui é superado. O ―eu‖ então, na inspiração, bém uma forma de atividade, gratuitamente. Mas, para poder
não concebe mais sucessivamente, em encadeamento conclusi- trabalhar sem fadiga, com os recursos do inconsciente, é ne-
vo, como ao longo de uma linha, ainda que livre de mover-se cessário possuí-los, tê-los conseguido antes com o esforço da
na superfície, mas no lampejo de um conjunto, como que se en- aquisição. E ter adquirido tais recursos significa ter construído
contrando no interior de uma massa de conceitos que o envol- qualidades. Ora, esse difícil trabalho só o pode executar, com
vem por todos os lados ao mesmo tempo. E, assim, para tradu- esforço e tenacidade, o consciente, introduzindo, com sua or-
zi-los em termos racionais, ele tem de passar da dimensão vo- dem, hábitos novos no subconsciente e aí fixando-os pela repe-
lumétrica à linha e exprimir-se consecutivamente. Para recons- tição, até que eles sejam assimilados como automatismos.
truir o pensamento deste volume na sua primeira fase inspirati- Educar e transformar um subconsciente que resume impressos
va, o leitor teria que imaginá-lo reduzido a um relâmpago ins- em si impulsos atávicos, consolidados por experiência milená-
tantâneo, que iluminasse um globo dentro do qual, simultanea- ria e oriundos da animalidade, não é fácil. Para alguns seres
mente, está escrito e se lê todo o volume. mais evoluídos, como os santos, isto representou uma luta vio-
Nestas condições, querer indagar, refletir, concatenar ou lenta e terrível. Por certo, no fundo de nós está Deus, mas
controlar é impossível. Devemos limitar-nos a observar e regis- quem sabe despertar nessa profundidade, onde tudo jaz imerso
trar. Levados os produtos do superconsciente para o consciente, em um sono profundo? É inútil, pois, dizer que poderemos
teremos feito o mesmo trabalho que executa o cientista que car- poupar-nos o esforço do trabalho, confiando-nos ao nosso in-
rega os frutos das suas explorações abismais ou estratosféricas consciente. A maioria, pelo contrário, tem de lavrar no consci-
para o seu laboratório. Só aí poderá começar a analisá-los. Por ente, isto é, nas zonas de aquisição de novos instintos – zona
isso não podemos oferecer senão sínteses. Incumbe, depois, ao
pensador racional, controlar com os seus processos lógicos e 24
―O perigo desse tipo de reflexão filosófica é que a palavra se torna
experimentais esses produtos. Então, só então, podem intervir dissociada do campo cientifico, de forma que todo o seu conteúdo me
as faculdades humanas de vontade e atenção, que, na inspira- dá a impressão de um trabalho independente, mais de arte do que uma
ção, inversamente, possuem poderes negativos, inibidores. interpretação intelectual de alguma coisa mais‖. (N. do T.)
70 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
de vontade e de esforço – as qualidades e ideias inatas. Não se meno inspirativo, a consciência humana normal, naturalmente
podem usufruir os frutos do despertar interior, senão fazendo limitada às necessidades da sua vida e incapaz de compressões
preliminarmente o esforço de provocar semelhante despertar. mais amplas do que as adstritas à satisfação das suas necessida-
Agora que compreendemos, com a conclusão ―Tu habitas in des humanas, transpõe esse seu limite natural, para entrar no
me‖, que Deus é interior, e não exterior a nós, poderemos atinar consciente cósmico, de que faz parte, apropriado a um funcio-
o que se deve entender por fonte inspirativa. No volume As namento de muito maior envergadura, e pode assim, de forma
Noúres, a imaginamos como um transmissor, do qual o indiví- mais ou menos completa, tomar conhecimento também dele. Eis
duo era um receptor. Mas, após o caminho percorrido até aqui, o que representa o fenômeno inspirativo nas relações entre o
podemos ser bem mais precisos. ―eu‖ individual e o ―eu‖ cósmico, entre a alma e Deus.
Temos falado, nos capítulos precedentes, da interioridade De tudo isto se depreende a importância que pode assumir,
do Deus imanente, que se encontra também em nós. É, pois, pa- para o progresso da humanidade e para a defesa de sua vida,
ra esta interioridade que a inspiração se dirige; a entidade uma expansão além do limite da compreensão normal e a con-
transmissora é espírito e o espírito se alcança sempre andando tribuição que ela pode dar ao grande problema do conhecimen-
para o interior da forma física, que constitui a periferia, o seu to. Porque pouco conhecido e muito pouco adquirido e utiliza-
revestimento externo. Vimos também que as características da do, a humanidade não se dá conta de que resultados esse fe-
personalidade, do ―Eu-Centro-Uno‖, são encontradas no aspec- nômeno é capaz de oferecer na indagação do inexplorado, so-
to transcendente de Deus, em que Ele é centro de tudo, e que as bretudo no campo mais dificilmente explorável, porque mais
opostas características da impersonalidade são encontradas no distanciado de nosso contingente, como é o campo das grandes
polo oposto do ser, no aspecto imanente de Deus, em que o sínteses e das supremas abstrações, dificilmente acessíveis aos
Uno se pulverizou em infinitos ―eus‖ menores. meios da racionalidade comum. E a ciência é incapaz de, com
Eis o que então sucede ao nosso ―eu‖ humano. Se, na ver- seus métodos, atingir tais sínteses universais, que lhe são tão
dade, ele é pessoal relativamente ao seu pequeno ―eu‖ próprio, necessárias como orientação. Uma hipótese de trabalho possui
no mundo em que está imerso, na periferia do Sistema, ele re- muito mais probabilidades de estar nas pegadas da verdade
presenta, contudo, a pulverização do Uno, uma centelha de quando assim orientada; caso contrário, torna-se mera tentativa
Deus. Quando, pois, o nosso ―eu‖, pelo ato inspirativo, dirige- lançada ao acaso. Tudo isto é verdadeiro, pois não temos ne-
se para o centro, ele se desloca para o aspecto transcendente e nhum direito de acreditar que o método usado pela ciência de-
pessoal de Deus. Ora, esse centro, para ele que é periférico, re- va ser o único e o mais apropriado para alcançar a compreen-
presenta a reunificação, isto é, a reabsorção no Uno da sua per- são da natureza dos fenômenos. O fato de a ciência nos ter for-
sonalidade distinta, de modo que, na inspiração, o ―eu‖ perde as necido grandes resultados utilitários não é suficiente para dis-
suas qualidades, que como tais o distinguem e separam dos ou- sipar a suspeita de que o domínio exclusivo da experimentação
tros ―eus‖, e cada vez mais tende a fundir-se em Deus-Uno. As- pode mais facilmente afastar-nos do que aproximar-nos da vi-
sim se explica a anulação da própria personalidade na inspira- são da essência das coisas.
ção, tanto mais acentuada quanto mais poderosa for esta, e Enfim, tudo isto pode também interessar diretamente à vida.
também se compreende que todas as inspirações, embora diver- Possuir uma orientação pode ser a chave para resolver proble-
sas, se ligam a um único transmissor: o Centro-Deus. mas cuja solução, especialmente em dados momentos como o
Como se vê, o problema inspirativo tem as suas raízes na atual, é imposta pela evolução à humanidade como questão de
profundidade do Todo e não é solúvel a não ser em função do vida ou de morte. A vida, no seu desenvolvimento, propõe ao
Todo. Agora podemos compreender por que, nos seres elevados, ser sempre novos quesitos, e do saber respondê-los adequada-
é difícil, e tanto mais quanto mais elevados, encontrar os ele- mente pode depender a continuação ou o fim, bem como a for-
mentos distintivos da personalidade, como os entendemos em ma, da existência. Algumas espécies tiveram de desaparecer
nosso mundo. Quanto mais se ascende para Deus, tanto mais por não terem sabido resolver certos problemas. O conhecimen-
aumentam as Suas características de personalidade (da imanên- to é uma das armas mais poderosas para vencer também no ter-
cia=impessoal, para a transcendência=pessoal), e tanto mais di- reno biológico da luta nela vida.
minui a distinção, ou seja, a personalidade dos ―eus‖ destacados. Antes de encerrar este capítulo, analisemos a significação e
Então, pelo princípio das unidades coletivas, eles se reagrupam, valor do fenômeno inspirativo em face do problema do conhe-
formando esses ―eus‖ cada vez mais vastos e poderosos. A essas cimento. O homem utilizou três métodos para atingir o conhe-
alturas, não encontramos mais ―eus‖ isolados, que pensam sepa- cimento: 1o) a revelação (recepção mais ou menos passiva no
radamente, mas correntes de pensamento, Noúres, próprias de fenômeno inspirativo – método intuitivo); 2o) a lógica (constru-
espíritos sintonizados, consonantes, o que, para um espírito, sig- ção abstrata por esforço mental de pura racionalidade – método
nifica ser de igual natureza, porque o que define o espírito é o analítico); 3o) a experiência (controle pela observação da reali-
seu tipo de vibração. E quem é de igual natureza coincide com dade exterior – método sensorial).
os idênticos e neles se funde no mesmo ―eu‖, como duas notas O primeiro é o método aqui acima descrito. O segundo é o
idênticas formam a mesma nota. Isto corresponde à progressiva método dos processos matemáticos. O terceiro representa o
unificação, pela qual o Uno, que se fracionara no Anti-Sistema, único contato direto de que dispomos para alcançar a realidade.
vem a reconstituir-se integralmente no Sistema. Deixando de lado, porém, o método da intuição, que é inteira-
O fenômeno inspirativo, sendo a expressão da sublimação no mente excepcional, pode-se também enfrentar a realidade com
seu aspecto consciência, segue esse processo de unificação, que o pensamento puro. O conhecimento pode derivar não somente
é inerente à sublimação, culminante na união mística da alma da observação, mas também do esforço de construção lógica do
com Deus. Então aquela expansão do pequeno consciente indi- puro pensamento. Mas é sempre necessário que os seus resulta-
vidual no infinito consciente cósmico – o que constitui o fenô- dos sejam transportados e aprovados no plano da realidade ob-
meno inspirativo – pode ser comparada ao caso em que a cons- jetiva, que, embora ilusão sensória e limitada, exprime no seu
ciência de uma célula isolada, consciência naturalmente limitada plano uma verdade, ainda que relativa a ele. É necessário, em
apenas ao seu funcionamento, pudesse ultrapassar este seu limite suma, controlar tudo, observando o que corresponde aos con-
natural para alcançar a consciência de todo o organismo humano ceitos abstratos no terreno concreto. Depois, no sentido inverso,
do qual ela faz parte, consciência própria de um funcionamento as observações são interpretadas, correlacionadas e destiladas
mais amplo, e pudesse assim tornar-se mais ou menos comple- no essencial pela elaboração lógica da racionalidade, superando
tamente consciente também deste. Semelhantemente, no fenô- às vezes a própria racionalidade. E, para atingir o plano abstrato
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 71
da lei geral, o todo deve ser reconcebido em lampejos pelo mé- normal, tenta avizinhar-se do ―eu‖ cósmico, para coincidir o
todo da intuição. Os três métodos, sendo contíguos, podem mais possível com o pensamento e a vontade de Deus.
fundir-se e auxiliar-se mutuamente. Eis o que deveria ser a voz da consciência, para nos apontar
O certo é que o experimentador jamais poderá elevar-se ao a perfeita adesão à lei de Deus. Esta é a verdade que se encontra
campo das puras abstrações e generalizações, onde labora o teó- em nossa profundidade, porque Deus está em nós. Ora, o pro-
rico, terreno quase filosófico das formulações matemáticas, no blema então é saber quem é capaz de despertar, além da super-
qual somente aparecem as grandes leis unitárias. Assim como fície, em tais profundezas; quem consegue tornar-se consciente
numa casa de dois planos, também a teoria de Einstein da rela- da verdade universal? E, assim sendo, que aproximação essa
tividade generalizada, que abrange a gravitação, ergue-se e de- sincera voz interior – que chamamos voz da consciência e à
senvolve-se sobre a teoria da relatividade restrita. O valor de qual sentimos o dever de obedecer, como a qualquer coisa de
uma hipótese ou teoria está, pois, em poder abranger, com um sagrado que vem de Deus – representa e nos dá da verdade ab-
mínimo de axiomas, um máximo de conteúdo experimental. soluta, que está em Deus? Certamente, deveremos admitir que
Sobe-se, assim, do aspecto analítico e particular para uma con- não se pode tratar senão de aproximações maiores ou menores,
cepção sempre mais sintética e universal, até que, da mesma e estas dependem da evolução conseguida por cada um, isto é,
forma que a experiência deve ceder lugar à racionalidade, esta dependem do grau de sensibilização alcançado, que permite vi-
deve cedê-lo à intuição, se ainda quiser subir mais para o sinté- brar em sintonização com verdades sempre mais profundas,
tico e universal. Quanto mais se sobe, porém, tanto mais se ga- despertando consciente no interior divino.
nha em vastidão e tanto mais se perde em segurança experi- Se observarmos, então, ao redor de nós e atentarmos para o
mental na abstração; quanto mais se desce na realidade concre- nível espiritual da maioria humana, devemos afirmar que, não
ta, tanto mais se restringe o campo das nossas conclusões. podendo esta, dado o seu grau de involução, alcançar senão es-
Os dois caminhos são inversos: o primeiro vai da periferia cassas aproximações da verdade, a voz da consciência não re-
ao centro do sistema universal, para o absoluto; o segundo vai vela desta mais do que aspectos fragmentados, pequenas ver-
do centro à periferia, para o relativo. O primeiro certamente dades particularizadas, relativas a cada um, limitadas no con-
caminha para a verdade; o segundo, para a ilusão. Mas, ao se tingente e transitórias no tempo. Se, teoricamente, a voz da
subir, a verdade vai nos escapando, torna-se vaga, abstrata, in- consciência é sagrada, porque tende a dirigir-se para o Centro-
controlável, perdendo para nós, relativos que somos, a força da Deus, na maior parte dos casos é bem difícil que o atinja. Esta
verdade. Ao se descer, ela se torna mais palpável, mais concre- voz pode, então, ser apenas aquela da vida individual, claman-
ta, digamos mais verdadeira, ao mesmo tempo que nos encer- do somente em sua defesa e de seus interesses. Pode mesmo
ramos mais no limite do contingente e na ilusão do sensório. ser um longínquo eco da voz de Deus, porque todos têm o di-
Somos, desta forma, circundados por barreiras que nos obsta- reito e o dever de viver. Mas quanto estamos distanciados da
culizam o conhecimento por todos os lados. Nada mais nos universalidade do pensamento central, que protege toda a vida,
resta a não ser valer-nos dos três métodos, procurando a con- mesmo com o sacrifício da vida individual, pensamento que
cordância entre eles dos resultados obtidos com cada um e fa- está imensamente afastado do egoísmo exclusivista!
zendo com que cada qual forneça a contribuição de que é ca- É assim que estas ―verdades‖ individualizadas, particulari-
paz, ou seja: 1o) as diretrizes máximas da ordem universal, pe- zadas, embora sendo sinceras vozes de consciência, podem
lo método intuitivo; 2 o) a coordenação das observações e as di- entrar em conflito, provocando, em nome da verdade, o de-
retrizes menores, como uma ponte entre o primeiro e o tercei- sencadeamento de choques fratricidas, cada qual agindo em
ro, pelo método racional analítico; 3 o) o controle do resultado plena consciência. Bem poucos são aqueles que, no exemplo
dos outros dois, pelo método experimental. máximo de Cristo, sabem fazer coincidir a voz interior da
É certo que o governo do universo, a inteligência e o poder própria consciência com a voz do consciente cósmico, Deus,
que assumem a direção do funcionamento deste grande orga- voz que, mesmo procurando se fazer ouvir da profundidade,
nismo ou coletividade, não é exterior como o governo das quando tantos a interrogam, permanece às vezes sepultada e
nossas coletividades estatais, mas está no interior dos seres ou tão longe da normal consciência desperta, que dela não resta
fenômenos, de onde os guia. É indiscutível que o essencial, o senão um débil sussurro. Dela não nos chega, porque somos
que mais vale para o conhecimento, é o abstrato, dado que a surdos e involuídos, senão um balbucio tão incerto e às vezes
assim chamada realidade objetiva é superficial e secundária. contraditório, tão tímido e fragmentário, que mal percebemos
A verdadeira realidade não é exterior, mas sim interior, e tan- a voz de Deus e, mesmo assim, de tal forma humanizada atra-
to mais verdadeira e real se torna quanto mais interior, quanto vés de nossa consciência, que não conseguimos nem ao menos
mais distante da solidez do concreto. A chave dos mistérios reconhecê-la e a confundimos com os nossos desejos, que
está na abstração das grandes sínteses e não pode ser encon- qualificamos, então, como voz da consciência. E justamente
trada senão pela intuição. Assim, pois, os três métodos se es- os que assim a ouvem são os que mais alto gritam para melhor
calonam em três níveis diversos, como três graus do conheci- serem ouvidos! Daí, certa legítima desconfiança das autorida-
mento, com funções e resultados diferentes. Cada um necessi- des religiosas a respeito da voz interior, que, se em princípio é
ta ficar no seu plano, para fornecer, segundo a sua natureza e e deve ser sagrada, pode representar na prática apenas um ge-
potencialidade, o rendimento que pode dar. Eis a significação nuíno produto do ―eu‖ individual.
e o valor do fenômeno inspirativo em face da ciência e do É difícil julgar em tais casos. Mas é certo também que,
problema do conhecimento. existindo almas superiores, capazes de ouvir na própria cons-
Antes de deixar este argumento, observemos, transportando- ciência a voz de Deus, isto é, uma voz que se identifica, acima
nos para o terreno moral, um caso particular do referido fenô- do próprio egoísmo, com a vida universal, essas almas devem
meno, caso que podemos chamar de voz da consciência. Fenô- saber superar todas as resistências e obstáculos – indispensá-
menos de inspiração, pode-se dizer que se verificam todas as ve- vel barreira interposta a essas exceções para prová-las – cria-
zes que alguém consulta o próprio ―eu‖ profundo, para conhecer dos com a norma estabelecida pela maioria humana, que é de
a verdade em torno da própria conduta. Dissemos acima que as involuídos. De outro lado, as autoridades religiosas, que jul-
inspirações se ligam a um centro único – Deus – e que Deus é gam a matéria, defrontam-se com dificuldades nada pequenas.
interior, e não exterior a nós. Trata-se de uma ampliação da pe- É verdade que a voz da consciência é sagrada, mas, se exage-
quena consciência individual no consciente cósmico, na qual o rarmos na liberdade, caímos na anarquia do livre exame. É
―eu‖ superficial, feito de contingente, isto é, a nossa consciência também verdade que, frequentemente, o que denominamos de
72 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
voz de consciência pode ser um puro juízo pessoal. Urge, É este pensamento uno que reconduz as infinitas formas à
pois, uma norma à qual a consciência seja submetida, limitan- unidade do Todo e constitui a universalidade da Lei-Una. En-
do assim a sua liberdade. Mas, igualmente, se exorbitarmos na tão, que diferença existirá, por exemplo, entre a pedra, a árvo-
disciplina, caímos na tirania. É lógica, pois, a atitude inicial re e o gênio? Ela reside no grau em que a individualização do
de suspeita mantida pelas autoridades religiosas em relação a ser, segundo seu plano evolutivo, consegue participar desse
quantos se digam inspirados. A estes incumbe demonstrar, consciente universal, isto é, consegue despertar consciente-
depois, através de toda a sua vida, que a voz interior não os mente, ou seja, em consonância, no seio do pensamento de
enganou. É um controle necessário para eles mesmos. E se a Deus. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que o universo é
voz realmente vem de Deus, ela encontrará tanta força nos fa- inteiramente feito dessa primordial substância conceptual, que
tos e sabedoria nos conceitos, que se imporá a todos, tanto ao é o pensamento de Deus, qual infinito oceano vibrante, em cu-
inspirado quanto aos juízes. E não faltam os exemplos que nos jo seio, porém, cada individualização do ser não vibra da
demonstram quantas vezes estes últimos tiveram, embora tar- mesma forma, sendo mais ou menos desperta e participe como
diamente e contradizendo as suas primeiras condenações, que estado de consciência dessa vibração. Em tudo o que existe,
reconhecer a verdade da inspiração. há a possibilidade de poder atingir toda a vibração do pensa-
mento de Deus, mas tal vibração não existe em atividade, ela
XIX. A ALMA E DEUS está latente, adormecida, à espera de gradual despertar. É a es-
te despertar que se denomina evolução.
O estudo do fenômeno inspirativo nos leva agora a conside- Podemos agora melhor compreender o significado dos con-
rar as relações entre a alma e Deus. Nas páginas precedentes, ceitos de subconsciente, consciente e superconsciente, já expos-
comparamos a expansão do pequeno consciente individual no tos no volume Ascese Mística. O consciente é a zona de traba-
infinito consciente cósmico, que constitui o fenômeno inspira- lho (com a experiência da vida), em que o ser desperta, para en-
tivo, com o caso em que uma célula individualizada pudesse al- trar em vibração no consciente universal. A evolução não é, as-
cançar a consciência de todo o organismo humano. Cabe agora, sim, um avanço cego, mas um despertar vibratório, segundo es-
aqui, indagar se estas relações entre o ―eu‖ individual e o ―eu‖ quemas pré-existentes, por conseguinte pré-estabelecidos, no
cósmico, isto é, entre a alma e Deus, serão as mesmas que ocor- consciente universal. O subconsciente é a consonância, a sinto-
rem entre uma célula e todo o organismo? nização já adquirida com esse consciente e estabilizada nos au-
É certo que, desde o átomo até à molécula, ao cristal, à célu- tomatismos (instintos, ideias inatas etc.). Ele abre o campo já
la e a todas as formas de vida individual e coletiva, se cada indi- explorado pelo ser na experiência realizada na vida, é sua pro-
vidualização do ser revela saber quanto lhe basta para existir, priedade e expressa suas qualidades. Ele coincide com o pen-
não tem, todavia, de modo algum, consciência do todo. O pró- samento de Deus, mas nos mais baixos planos de sua expres-
prio homem, que se situa no ápice da evolução biológica, não são, sendo, pois, guiado pelo consciente, que já começa a vibrar
tem consciência senão de uma parte mínima da sua vida, da qual nos planos mais elevados. O superconsciente é o pensamento
só possui muito limitadamente as diretrizes. Temos, então, que de Deus, ainda latente e adormecido no ser, que ainda não se
atribuir ao consciente universal esse conhecimento que as indi- pôs a vibrar em zonas evolutivas mais elevadas. Ele está, pois,
vidualizações isoladas do ser não possuem propriamente. Assim para o ser, ainda em estado de não-consciência.
se delineiam as relações entre o ―eu‖ individual e o ―eu‖ cósmi- Poderemos dizer com o suave Virgílio: ―Mens agitat mo-
co, isto é, entre a alma (tomada no sentido lato, inclusive como a lem‖25, no sentido de que, dentro de cada forma e atrás de toda
alma das coisas) e Deus. Ora, imaginar que cada uma das várias aparência, há um proporcionado despertar, com relação ao di-
individualizações do ser representa a sede de uma íntima ima- vino, de um estado vibratório que a rege. Veremos, então, atrás
nência neles, no fundo e além do seu relativo consciente, do da hierarquia das formas, uma interior hierarquia de consciên-
consciente do ―eu‖ universal, que sabe e pensa em cada ser, den- cias, constituída pelos graus de consonância atingidos pelo ser
tro dos limites de sua natureza, provendo-lhe a vida – imaginar em relação com o pensamento divino. Desta forma, no consci-
tudo isto é mais plausível e convincente do que conceber um ente do indivíduo vão surgindo problemas cada vez mais vastos
universo regido, não se sabe como e por que meios, por um e complexos, à medida que ele sobe. A uma planta bastará re-
consciente ―eu‖ universal que lhe é exterior e estranho. Vimos solver o problema da assimilação e respiração. O gênio sentirá
que Deus não é exterior, mas íntimo do ser, e concluímos pela necessidade de resolver o problema do universo.
Sua imanência neste. Isto tanto mais se tornará convincente Assim, pois, vemos que as posições de subconsciente, cons-
quanto mais percebermos que ela, se parece conduzir-nos à im- ciente e superconsciente são relativas ao grau de evolução de ca-
pessoalidade de Deus e ao imanentismo panteísta, de fato não da ser. Para o homem racional, o subconsciente representa apenas
exclui nem lesa o conceito do Deus pessoal e transcendente. o pensamento sensitivo do animal e vegetativo da planta. Para o
O consciente universal é, pois, íntimo ao ser, representando o animal, é subconsciente este último, enquanto para a planta é
imenso fundo de sabedoria que guia toda a sua vida, sem que ele subconsciente o pensamento molecular, isto é, aquele que preside
se aperceba de nada. Neste campo se incluem o funcionamento à construção e funcionamento dos elementos químicos compo-
orgânico e tudo o que é guiado pelo instinto, como o desenvol- nentes; para estes, o subconsciente é o pensamento atômico, que
vimento das alternativas coletivas que constituem a história. estabelece os diferentes edifícios eletrônicos componentes.
Também se incluem a Lei, que enquadra os nossos atos livres na E, na direção oposta, podemos dizer que, assim como, para
férrea concatenação causal e depois se desenvolve no destino in- o homem racional, o superconsciente é o pensamento intuitivo
dividual e coletivo, e a oportuna intervenção da Providência, co- sintético do super-homem, o superconsciente, para o animal, é
mo guia e ação situadas além do conhecimento e das forças hu- o pensamento racional humano; para a planta, é o pensamento
manas, e assim por diante. Se o universo foi gerado, como vimos, sensitivo do animal; para a molécula da química inorgânica, é o
por uma substância pensante, o que vale dizer, feito de divina pensamento celular vegetativo da planta e, para o átomo, é o
imanência, então todo ser, justamente por esta razão, é por ela pensamento molecular da química. Assim se pode compreender
constituído, ou seja, é pensante na sua profundidade. Se ele não o sentido que está no fundo das palavras de Sertillanges: ―na
tem disso consciência, não importa. De como ele vive e funciona natureza tudo tende a subir. A apoteose da matéria está no ve-
devemos deduzir que este pensamento está nele, mesmo que ele getar; a do vegetal, no sentir; a do animal, no pensar‖.
não o note, como também está até nas mais involuídas formas da
25
matéria bruta, e não apenas nos seres evoluídos. ―O espírito move a matéria‖. Eneida, VI: 727. (N. do T)
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 73
Como se vê, o ser, da mesma forma que o homem, move-se de todos os esplendores do concebível. Estamos encarcerados
em um ilimitado oceano de pensamento, em que o seu próprio na matéria. Em torno, tudo nos empareda nas barreiras de nos-
avança e se expande mais ou menos, conforme o estado de sa insensibilidade. E o involuído não arde senão na ânsia de re-
consonância que ele, evolvendo, consegue atingir. O pequeno focilar na lama das suas baixezas, porque aí estão os seus atra-
―eu‖ individual tem de se haver sempre com este consciente tivos, porque essa é para ele a vida. Que pobre vida, quando
universal, que é o Deus imanente, onde ele está imerso, como somos feitos de infinito e para o infinito! Pobre involuído, ma-
em uma atmosfera de pensamento, que ele respira com o seu nobrado como um fantoche pela Lei, crendo comandar, quan-
pensamento e com o qual se comunica por um contato que do, no fundo, mais não faz senão obedecer, porque é ela que o
constitui a vida. Para o homem, o Deus imanente é uma zona comanda e deve comandar como a um títere, pois ele nada sa-
ilimitada, situada além da sua consciência, e qualquer processo be e não pode de fato nada dirigir!
evolutivo, até à fulguração do gênio, constitui uma aproxima- Mas observemos ainda as relações entre o ―eu‖ individual e
ção Dele por progressiva consonância. Estamos circundados o ―eu‖ cósmico. Já idealizamos o consciente individual, sedia-
pelo mistério. Mas a evolução consiste justamente na expansão do no consciente universal, como as células no organismo hu-
de nosso consciente individual no infinito consciente cósmico. mano. Já conhecemos a estrutura hierárquica piramidal dos se-
Poderemos imaginar o primeiro como uma pequena circunfe- res, pela qual, consoante o principio das unidades coletivas,
rência que, partindo do mesmo centro, se dilata no seio da in- passa-se a um número crescentemente reduzido de individuali-
finita circunferência do consciente universal. Podemos tam- zações sempre mais sintéticas, partindo de uma incomensurá-
bém representar a substância pensante do Deus imanente, vel quantidade de individualizações, tanto mais particulariza-
constitutiva do Todo, por um inflamar-se de estados vibrató- das e analíticas quanto mais descemos na escala dos seres. As-
rios mais ou menos intensos e complexos em vários pontos, sim, da célula se desce à molécula, depois aos átomos, aos elé-
que formam, deste modo, os centros pensantes que constituem trons etc., ao passo que se sobe para o órgão, para o organismo
o consciente dos vários ―eu‖ individualizados. O fenômeno completo, para o grupo familiar, nacional, para a humanidade
inspirativo não passaria, então, de um índice que nos revela etc. O mesmo se dá no plano da matéria inorgânica e na cons-
haver sido realizado pelo ser, através de um despertar vibrató- trução dos universos estelares. Esta, em cadeia, é a técnica
rio, mais um lanço evolutivo, uma dilatação de consciência, construtiva dos edifícios do ser.
expressão de uma catarse biológica. Ora, dissemos que, por trás dessa estrutura física, existe
O que espera o homem ao despertar no superconsciente é o uma outra mais real que a rege, a espiritual, animadora dessas
Deus imanente, o consciente cósmico. Ali já está escrita a res- unidades, uma estrutura hierárquica piramidal, feita de pen-
posta a todos os porquês, feitas estão todas as descobertas, evi- samento. O universo não será inteligível se, atrás da hierar-
dentes são todos os mistérios. Segue-se daí que o problema do quia exterior das formas, não enxergarmos essa outra hierar-
conhecimento é, sobretudo, uma questão de maturação bioló- quia de motivos conceptuais ou de modelos abstratos, que são
gica. É principalmente esta, e não as elucubrações racionais, aqueles segundo os quais as formas se plasmam. Por trás dos
que inflama o lampejo ao gênio, porque, sendo evolução, leva planos biológicos existem planos conceptuais que se sobre-
o homem a vibrar harmonicamente mais próximo do pensa- põem e se escalonam ascendentemente, numa hierarquia de
mento de Deus. Então, entrando num plano de vida mais alto, princípios espirituais que culminam em Deus, vértice da pi-
nasce uma nova sensibilização espiritual; o que antes era um râmide ou centro da circunferência. Segue-se daí que, com o
superconcebível, torna-se espontaneamente inteligível e se re- progresso da evolução, se a forma muda é porque, sobretudo,
vela. Quando não é o indivíduo isolado que avança (o gênio), muda a natureza do pensamento que ela expressa, assim como
mas um grupo ou mesmo a massa humana, então o fenômeno muda a consciência do ser em consequência da elaboração do
inspirativo se generaliza segundo a potência de cada um, sur- viver. O que existe, portanto, de substancial no substrato da
gindo a era das conquistas do pensamento, os grandes séculos evolução e no que a rege é o progressivo despertar do ―eu‖ em
construtivos, as descobertas em cadeia, como hoje. Tudo ex- um estado vibratório cada vez mais elevado.
plode, assim, em um surto evolutivo, em todas as partes do Estamos, agora, em condições de encarar a evolução de
mundo, quase contemporaneamente, acreditando cada célula um modo mais substancial, isto é, mais correspondente à ver-
da humanidade haver feito uma descoberta com seu engenho. dadeira realidade, que é interior à forma. A evolução não é,
Todavia trata-se apenas de uma maturação biológica geral. Es- pois, um aprimoramento de organismos, a não ser como últi-
ta é a razão pela qual somente hoje se fizeram descobertas an- ma consequência. Ela corresponde, pelo contrário, a um con-
tes julgadas impossíveis e inconcebíveis pelo homem. E logo ceito metafísico: despertar o espírito, mobilizando as qualida-
chegarão novas orientações sobre aquilo que atualmente é to- des adormecidas e latentes no inconsciente, para, com isto, re-
mado por superconcebível. No fundo, trata-se tão somente de construir, através da experiência na matéria, o sistema espiri-
sensibilizações progressivas, de que nascem mais elevadas tual desmoronado, até que o Deus imanente, nele incorporado,
consonâncias ou sintonizações com o pensamento de Deus. retorne ao estado de origem e coincida com o Seu aspecto
Toda a evolução se reduz, assim, a um problema de sensi- transcendente. Assim, a formação das unidades coletivas em
bilização nesse sentido. As janelas de nosso consciente sobre o dimensões cada vez mais vastas, não constitui apenas uma
mundo hoje são limitadas. E é preciso ser bastante involuído, agregação de elementos, mas uma organização dos mesmos,
isto é, adormecido, para sentir-se bem satisfeito em uma casa de modo que cada unidade superior represente uma perfeição
tão pequena e escura. A conquista da verdadeira liberdade não maior, conseguida por efeito de mais profunda manifestação
está na liberdade de mostrar-se animalesco, mas em despertar a do espírito, mais profundamente desperto.
consciência, que nos permite sair da tremenda prisão da igno- Não se trata, pois, de ver no universo somente um infinito
rância e da inconsciência. Quantas mensagens, constantemen- oceano de pensamento, uma infinita atmosfera pensante, de que
te, o consciente universal não enviará ao nosso minúsculo tudo vive. Isto é verdade, mas é insuficiente. Nela se formaram,
consciente individual! Maravilhosos apelos, e nós continuamos como dissemos, núcleos de consciências individuais, assim co-
surdos, sem compreender! Tudo vibra de pensamento e freme mo no espaço cósmico, paralelamente, formaram-se núcleos de
de vida em derredor de nós, e não sabemos pôr-nos em contato matéria. Ora, em nosso universo, o aspecto mais preciso do
com este maravilhoso universo saturado de Deus, porque não Deus imanente, que não pode ser uma uniforme e informe at-
estamos sensibilizados, não sabemos vibrar em uníssono, para mosfera pensante, é estar individualizado em infinitos núcleos
ouvir e responder. E permanecemos mudos e inertes no vórtice de consciência ou ―eus‖ pensantes.
74 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
Eis no que consiste a imanência de Deus em nosso universo: aspecto negativo de sacrifício. Este, de fato, representa para a
ter querido, por amor, seguir o Sistema no seu desmoronamen- criatura decaída a única forma de verdadeiro amor construtivo.
to! Eis no que consiste a maior paixão de Deus por todo o seu O amor-gozo é apenas uma recordação da sua origem; gozo li-
universo: a sua encarnação e crucificação além do Gólgota! Eis mitado, fugaz, ilusório, quase que somente tolerado como mera
como se explica o ―Tu habitas in me‖, como a presença de introdução ao amor-sacrifício, que não é efêmero nem ilusório,
Deus é íntima a nós e às coisas! Eis porque Cristo pôde dizer: mas o único verdadeiro e construtivo. Fragmentação, reunifica-
―Vós sois Deuses‖. Poderá parecer audaciosa esta concepção, ção. Deus está sempre presente, é sempre o Todo. Reunificar-se
mas é a única que tudo aclara em profundidade. é o grande propósito de todo o universo, porque no fundo de
Vemos, efetivamente, que cada unidade coletiva superior todas as formas há um pequeno fragmento de Deus, que tem
não representa somente a soma das suas unidades componen- fome de voltar a ser Uno. Se o universo é todo um desencade-
tes, mas alguma coisa a mais. Nela há coordenação e organiza- amento de antagonismos, desde o plano físico ao espiritual (re-
ção da atividade dos elementos constitutivos, criação, por con- pulsão-ódio), ele é também um anseio de amplexo em todos os
seguinte, de qualidades que eles não possuem isoladamente, planos (atração-amor). Fragmentação significa a revolta e o
execução de encargos que eles, sozinhos, não poderiam reali- desmoronamento, terminando no caos. Reunificação significa a
zar. Com a fusão das unidades menores em unidades coletivas, obediência e a reconstrução, terminando na ordem do Uno.
nasce algo de novo, que antes não existia em nenhuma delas e Este é também o caminho de nosso mundo. Se descermos
que elas somente conseguem com essa união. Isto tem um pro- aos graus e tempos mais involuídos da humanidade, encontra-
fundo significado. Antes de tudo, o nascimento dessa qualquer remos aí o politeísmo. Deus estava fragmentado também como
coisa de novo não pode deixar de ser um desenvolvimento do concepção e vinha sendo, desde os tempos da Grécia e de Roma,
latente, como vimos, porque, de outra maneira, ele seria inex- adorado por fragmentos. Mas deu-se a superação na unificação,
plicável. E desenvolvimento do latente não pode significar se- passando-se ao monoteísmo. Então a humanidade volveu o olhar
não maturação evolutiva no espírito, isto é, o despertar do ser mais para o alto, deixando a dispersão divina pelo Centro-Uno,
no seio do Deus imanente, como vimos. Mas há mais. É que e, mais amadurecida, pôde compreender melhor a unificação.
tudo isto só se verifica com a técnica das unidades coletivas. Mas não basta. O politeísmo está para o monoteísmo, como este
Logo, esse desenvolvimento do latente e o despertar do Deus para o monismo. Atentemos para este fundamental conceito do
imanente no espírito de cada ser não ocorre senão por reunifi- Uno, e não apenas para o significado que se pode dar a esta pa-
cação dos fragmentos de um sistema desmoronado, senão por lavra, por ter sido usada por esta ou aquela escola filosófica.
irmanação e fusão, em organismos superiores mais vastos e Monismo aqui significa ter compreendido não somente a unida-
orgânicos, dos diversos ―eus‖, em que o Ser-Uno se fragmen- de de Deus, mas também a unidade do Todo, pela qual tudo o
tou originariamente. Podemos então dizer que a lei das unida- que existe forma um sistema único, do qual Deus é o centro.
des coletivas, por nós algures mencionada e demonstrada, nos A vida do indivíduo se torna grande quando ele compreende
prova que a reunificação é o sistema de reconstrução, assim que é, no sentido exposto, o filho de Deus. Grande coisa se torna
quem se reunifica se reconstrói. Eis, portanto, a técnica do re- a organização da sociedade humana, quando é concebida como
torno do Anti-Sistema ao Sistema. um momento do processo de reorganização do universo, que se
Concluímos, agora, com uma grave afirmação, levando até está reconstituindo para retornar a Deus. Eis o grande sentido
às últimas consequências os motivos acima assinalados. As di- teológico que se pode conferir à política e ao Estado moderno. O
ferentes almas individualizadas são fragmentos do Espírito e indivíduo é uma célula sua, e esse Estado é uma célula da hu-
constituem cada individualização decaída em toda forma exis- manidade, que é célula da vida. E ai de quem falsear os valores
tente. O que anima o ser e sem o que não pode haver existência substanciais e usurpar, perante a hierarquia que se inicia em
é a doação por amor do Deus-Criador, que não abandonou a Deus, uma posição que não corresponde aos valores intrínsecos.
criação, mas nela permaneceu em seu aspecto de Deus imanen- Permanece para todos, crentes ou ateus, a imanência de Deus, e
te. Foi dessa doação por amor que nasceram os diferentes espí- quem forja mistificações ou falseamentos experimenta na pró-
ritos, não apenas os incorruptos do Sistema, mas também os pria carne o punhal da dor. Mas nem por isso a reconstrução es-
corruptos do Anti-Sistema. E estes, no plano humano, somos taca. Perde-se o indivíduo, mas o Sistema se reconstrói da mes-
nós, homens, como almas. Quando, pois, chamamos estas de ma forma, porque esta é a Lei. O ser tem de se reconstruir plano
centelhas divinas, devemos subentender fragmentos de Deus. E, por plano. E quando dizemos ser, dizemos a nossa alma, ou seja,
enquanto os espíritos incorruptos permaneceram unidos em centelha de Deus em nós imanente. E sofremos juntamente com
Deus, nós, espíritos rebeldes, ficamos isolados. Cada espírito Deus, porque, em sua profundeza, o nosso espírito é Deus. A
entre nós é um fragmento do Espírito-Deus, que, pulverizado alma sofre em Deus, e Deus sofre na alma.
em nós, no Anti-Sistema, precipitou-se conosco na forma. Eis Mas, cada vez que uma alma se irmana a uma outra, é um
em que sentido nós somos Deuses. E o somos! fragmento de Deus que se uniu a outro fragmento, e um passo
Explica-se, desta forma, por que essas centelhas têm tanta foi dado para a reunificação. O incêndio originário começa as-
fome de unidade, atraindo-se e rejubilando-se quando, superadas sim a reacender-se aqui e acolá pelas fagulhas semiextintas. Ca-
as resistências do Anti-Sistema, conseguem irmanar-se, como da duas chamas que se unem não ardem por duas, mas por qua-
recomenda o Evangelho. E a razão é justamente que, por mais tro. Satanás, força do Anti-Sistema, desesperadamente lança
que a rebelião do Anti-Sistema queira o contrário, elas se sentem água no fogo com a cisão, procurando frear a reconstrução, por-
dispersas, insuladas, e procuram na união recuperar a potência, a que esta significa o fim do seu reino, que é o caos. Mas, ascen-
inteligência, a vida. Por isso a unificação é criadora, pois ela é, e dendo assim, com a elaboração de cada célula e a fusão com ou-
só agora podemos entender, a reconstrução do universo desmo- tras células, as consciências individuais se reorganizam para re-
ronado, ou seja, do Deus-Uno, que se fragmentou em infinitos construir o ―eu‖ cósmico, a consciência do universo. Como dis-
―eu‖ menores e, do Seu aspecto imanente, reunifica-se para semos, cada consciência inferior, em face da superior, é sempre
atingir novamente o Uno, representado por Deus no Seu aspecto de caráter analítico, enquanto a superior, diante da inferior, é de
transcendente. Todo o grande drama do ser decaído pode, assim, caráter sintético. A superior adquire funções de coordenação pa-
resumir-se em duas palavras: fragmentação e reunificação. ra fins mais elevados, antes ignorados. Uma célula se torna dife-
Fragmentação, reunificação! A potência reconstrutora do rente quando faz parte de um organismo, assim como um ho-
Todo é dada pelo mesmo amor que caracterizou a primeira gê- mem, quando integra um exército ou qualquer organização soci-
nese, mesmo quando, na reconstrução, ele devesse assumir o al. Ele então age e produz de outro modo. Há uma sublimação e
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 75
valorização do seu ―eu‖, assim enquadrado em funções mais al- lutivas, já que menos ferozes ele não sabe praticar, e as atuais
tas, flanqueado por outras funções que o completam na colabo- são as de que ele necessita, sendo elas proporcionadas ao seu
ração. Colaborar é muito mais do que trabalhar, quer pelos fins, grau de inconsciência. Porém, quem tem ouvidos para ouvir
quer pelos meios, seja pela unidade coletiva, seja pelo indivíduo. que ouça e quem tem intelecto para compreender que compre-
Quanto mais orgânica se torna a vida, tanto mais altos, vastos e enda, pois que o quadro da visão do ser está completo e é che-
poderosos são os fins que se podem atingir. gada a hora em que a verdade será dita abertamente sem véus,
Com esta orientação cósmica, podemos apreciar o valor de pelo menos aos mais evoluídos, que podem compreendê-la.
cada ato nosso, quer como indivíduos, quer como sociedade. Quem chegar a compreender tudo isto, sabe que é uma eter-
Tudo evolve, e nós evolvemos como indivíduos e como socie- na, indestrutível, centelha de Deus. Sabe também que, no seu
dade, em demanda de sínteses mais vastas, profundas e com- aspecto imanente, Deus está presente em nosso universo, até
preensíveis. Nós, centelhas de Deus, somos os operários de em nossas menores coisas, e que nós não só podemos senti-Lo
Deus para a reintegração do Deus imanente. A nossa vida não espiritualmente, mas igualmente vê-Lo. Se não nos é dado con-
pode ter significação a não ser quando nos colocamos em fun- ceber o Deus transcendente, podemos, no entanto, ver o sem-
ção desta reconstrução. O Deus imanente dorme em nossas pro- blante do Deus imanente, pois que toda forma de existência é
fundezas. Despertando-nos ou ressurgindo Ele – o que é a uma expressão do pensamento e da vontade Dele, é uma mani-
mesma coisa – na profundidade do nosso espírito, reconstruir- festação do seu ser. Certamente, sendo Ele um infinito, nós não
se-á o estado de consciência daquele universo (o Espírito) que podemos limitá-lo no relativo de uma forma particular. Ele
agora jaz no estado de inconsciência em que o homem se en- permanece um infinito e tem, pois, infinitos rostos, que vere-
contra hoje. Isto não significa que o ser, o nosso minúsculo mos expressos em tudo o que é beleza, bondade, floração de vi-
―eu‖, se torne Deus, mas sim que Deus volta a ser qual era an- da e de alegria. Esta é, efetivamente, a manifestação do Sistema
tes do desmoronamento do Sistema. Não somos nós, insignifi- no lado positivo do ser. Esse sistema, tão logo floresce, já é mi-
cantes homens, que de novo nos devemos encher de orgulho, nado pelo Anti-Sistema, negador e destruidor de beleza, de
mas é Deus que em nós deve despertar cada vez mais, a fim de bondade, de vida, de alegria. É assim que tudo se estiola, cor-
que o nosso ―eu‖ desapareça reabsorvido Nele. Por isso, nos rompe-se e morre. Mas o Deus imanente, sendo a alma das coi-
capítulos precedentes, insistimos na atitude a assumir, e que o sas, continua do íntimo delas a manifestar-se numa incessante
místico assume, pela qual o desenvolvimento do ―eu‖ humano floração, e, assim, embora tudo feneça, corrompa-se e morra,
consiste na sua anulação em Deus. Isto porque, compreendamo- tudo de novo refloresce e revive. Desta forma, o Sistema, não
lo bem, não é o nosso ―eu‖ egoísta e separatista, filho do Anti- obstante os contínuos assaltos do Anti-Sistema, venceu, vence e
Sistema, cindido e rebelde a Deus, que devemos desenvolver; vencerá sempre, sendo o mais forte.
devemos, isto sim, despertar justamente o nosso outro ―eu‖, di- Esta é a significação de tudo o que existe em derredor de
vino, que dorme nas profundezas de nosso espírito. Se agirmos nós, de tudo o que nós mesmos vivemos. E, quando o homem
noutra direção, caminharemos, ao invés, para a destruição, e peca, ele se coloca no campo do Anti-Sistema, ao sabor das su-
não para a reconstrução; em lugar de seguir a via: ―fragmenta- as forças, das quais nada mais pode esperar, senão dor. Toda
ção, reunificação‖, seguiremos a oposta: ―fragmentação, frag- vez que praticamos o mal, renovamos a primeira revolta com as
mentando-nos mais ainda‖. suas consequências. E temos de subir até nos havermos reequi-
Concluindo, procuremos penetrar esta estupenda realidade librado na Lei, reingressando na sua ordem, por ter seguido as
em profundidade. Todos os seres são uno, isto é, na íntima es- suas normas de harmonia e de amor.
sência espiritual de todas as individualizações existe uma Somente o homem que sabe tudo isto, compreendendo a vi-
substância que as funde em unidade, pela qual todas elas re- da, orienta-se no Todo, deixando de ser um cego entregue a
tornam ao centro comum, que tudo irradia e tudo atrai, o Cen- forças ignotas, para se tornar senhor de si e do seu destino.
tro-Uno, Deus. No fundo de todos os seres está este centro, no
qual cessa qualquer distinção e a infinita pulverização dos XX. VISÃO SÍNTESE
―eus‖, separados na periferia do Sistema, reencontra a sua
unidade em um só ―Eu‖. Por isto, amando o seu próximo, o Antes de terminar definitivamente esta argumentação, fa-
indivíduo caminha para Deus; por isto a via que o conduz a çamos um seu resumo completo, a fim de que fique inteiramen-
Deus é a unificação. O ser avizinha-se tanto mais do Centro- te claro o nosso pensamento em uma visão de conjunto, em um
Deus quanto mais sente que a sua alma e a dos outros seres panorama sintético, partindo do começo.
são uma só coisa. Assim, pois, evolução, espiritualização e Já vimos que três são os aspectos da Substância, ou três são
unificação caminham paralelamente. Hoje, quem ama a Deus os momentos da Trindade de Deus: 1o) o Espírito: a concepção;
O ama em todas as criaturas, e quem vive em todas as criatu- 2o) o Pai: o Verbo, a ação; 3o) o Filho: a criatura. Todos são o
ras vive em Deus, ao passo que, quanto mais egoisticamente mesmo Deus em Seus três momentos. No primeiro momento, a
se vive, tanto mais se vive distanciado de Deus. criação é concebida; no segundo, executada; no terceiro, acaba-
Não se deveriam dizer estas coisas abertamente ao mundo da. Neste terceiro momento, o incêndio de todo o ser como que
involuído de hoje, porque ele está sempre pronto a dar a elas se dividiu em infinitas centelhas: as criaturas. Temos de recor-
uma interpretação às avessas, satânica. Não se deveria dar ao rer a essas representações antropomórficas, para tornar inteligí-
público a solução dos mistérios obtida aqui por intuição, ina- vel o processo. O que nós, filhos do relativo no espaço-tempo,
cessível pela via racional, solução que deveria ser, pois, natu- apresentamos como uma divisão, deu-se por amor, que é o di-
ralmente proibida. Poder-se-ia repetir: ―não atireis pérolas aos vino princípio da criação. Já vimos (Cap. IV) que foi só e ex-
porcos, a fim de que não as pisem com os pés e se voltem con- clusivamente neste único princípio de amor que se baseou a
tra vós, para dilacerar-vos‖26. Por isto tais coisas são ditas em criação, a ele podendo-se reduzir todos os outros, que nada
livros de complexa concepção, que os cérebros preguiçosos e mais são do que derivação dele. Por criação entendemos aqui a
ignorantes repelem e que a maioria dificilmente penetra, justa- originária dos espíritos perfeitos, e não a nossa atual, que é uma
mente para que poucos as conheçam, mas as possam encontrar deformação daquela. Nessa primeira criação ―perfeita‖, as cria-
prontas quando hajam amadurecido. Ademais, é necessário dei- turas, centelhas em que o incêndio divino se dividiu por amor
xar o mundo de hoje entregue às suas ferozes exercitações evo- (criação), continuam ―Uno‖, porque estão fundidas em um só
organismo unitário – Deus – que se cindiu para dar por amor o
26
Mateus, 7:6. (N. do T.) ser às criaturas espirituais, mas cindiu-se apenas no Seu interi-
76 DEUS E UNIVERSO Pietro Ubaldi
or, permanecendo como um todo orgânico, uno e indivisível, do espírito, energia, matéria, para depois se recompor no trans-
qual as criaturas, espíritos perfeitos, fazem parte. formismo evolutivo: matéria, energia, espírito. (Para nós, seres
Até aqui, a unidade do Deus trino, nos seus três aspectos, decaídos, o espírito é também o ponto de chegada, por isso o
está intacta. A criação puramente espiritual ocorreu no seio do concebemos por último na Trindade).
Todo-Uno, e nele permanece. Deus quis multiplicar-se em in- Somente agora poderíamos chegar a compreender a origem
finitos seres, permanecendo ―uno‖. Com tudo isto, as concep- e a significação das três formas: , , , expostas em A Grande
ções antropomórficas, relativas à nossa posição humana, que é Síntese. Elas, realmente, nada mais são que uma posição inver-
completamente diversa, nada tem a ver e obstaculizam mais do tida e decaída da primeira e originária Trindade perfeita. Fala-
que facilitam a compreensão. Em outras palavras, poderemos mos aqui da primeira criação e também da segunda, sua contra-
imaginar esse processo criador como uma elaboração íntima fação, advinda com o desmoronamento do Sistema após a que-
pela qual um Deus uniforme, indistinto, se transformou em um da, quando vimos (final do Cap. XIII – ―In principio erat Ver-
organismo que, permanecendo ―uno‖, diferenciou-se no seu ín- bum‖), na distinção de Deus-Uno em três momentos sucessi-
timo em elementos diversos, mas tão exatamente coordenados vos, o Seu sacrifício cósmico por amor à criatura, precipitando-
em hierarquias e funções, que mais contribui para reforçar do se com ela e nela, no Seu novo aspecto de imanência, nos antí-
que para demolir a originária unidade de Deus. Poderemos podas da Sua originária transcendência.
conceber esse processo criador como uma passagem, no seio É assim que até ao nosso universo se projeta o originário
de Deus, de um estado homogêneo e simples do Todo para ou- sistema uno da Trindade, conservando o seu esquema originá-
tro, diferenciado e orgânico, fato do qual deriva a estrutura or- rio, em forma de contrafação e inversão, como que contraído no
gânica do Sistema, que vemos conservar esse tipo de esquema sistema cindido, que foi expresso em A Grande Síntese, segun-
em todas as individualizações menores. Essa primeira criação, do a grande equação da Substância, pela fórmula:
puramente espiritual, consistiu, pois, justamente numa trans- =, que exprime a imensa respiração do trans-
formação do Todo em sistema orgânico e hierárquico, princí- formismo do universo. Só aqui poderíamos expor tudo isso, ha-
pio estrutural esse que depois todo ser repete, princípio do qual vendo amadurecido estes conceitos. E somente agora se pode
ele nos põe a prova sob os olhos, demonstrando-nos também compreender o verdadeiro valor dado à palavra Trindade (isto
que todo ser é feito à imagem e semelhança de Deus. Mas a es- é, ), em A Grande Síntese, em que , ,  representam
trutura orgânica e hierárquica da criação originária não é pro- a projeção invertida – portanto cindida em três momentos di-
vada apenas pela estrutura semelhante que cada individualiza- versos – no Anti-Sistema, da Trindade una do sistema íntegro.
ção do ser repete depois, em ponto menor, mas também pelo Assim desmoronaram também as centelhas de Deus, da cri-
fato de que, nos antípodas, o Anti-Sistema, em que tudo se in- ação de origem, que continuam ainda a animar a criação cor-
verteu, oferece, justamente na maior profundidade de seu des- rupta. Desmoronou, também em parte, o terceiro aspecto, o Fi-
moronamento, as evidentes características do caos. Só assim lho, agora não mais incorrupto, uno com o Pai, mas junto às
este se explica como polo exatamente oposto ao estado orgâni- criaturas decaídas; um momento cindido, que se esforça e sofre,
co-hierárquico do originário sistema íntegro. com a ajuda de Cristo na Terra, Ele próprio Filho de Deus, para
Esta trindade compreende, pois, a primeira criação perfeita reascender à antiga perfeição, como nos aponta a cruz do Gól-
de puros espíritos existentes no seio de Deus. Dela faz parte gota. Compreende-se, deste modo, como Cristo, um dos espíri-
Cristo, Neste sentido é compreensível como Ele seja o Filho e a tos perfeitos – todos são o Filho – conservando-se unido com
terceira Pessoa ou momento da Trindade. Somente assim é Deus, tenha querido fundir-se na dor humana, encarnando na
compreensível que Ele seja Deus e uno com o Pai, que é o Ver- criatura terrestre imperfeita, ou seja, no Filho, aqui não mais in-
bo criador, a ação a que o Filho deve a sua gênese. corrupto e uno com o Pai, mas separado Dele, na humanidade
Até aqui temos, pois, três momentos. No primeiro, o Espí- de seres decaídos, exilados na matéria. Cabia não ao Espírito
rito pensou e concebeu; no segundo, o Pai, ou Verbo, agiu, cri- Santo ou ao Pai, mas ao Filho perfeito, socorrer o Filho imper-
ando; no terceiro, o Filho, íntima multiplicação, por amor do feito, criatura decaída, mas sempre criatura irmã.
Deus indistinto, teve existência. Mas tudo se deu sempre no Por essa razão Cristo nos ensinou a orar: ―Pai Nosso‖, en-
seio de Deus, que assim se conservou ―Uno‖, o Todo, intacto. quanto ele chamava: ―Pai Meu‖, com a mesma palavra que ex-
A referência contínua de Cristo ao Pai, com sentido de unida- prime a mesma relação de filiação perante o Pai comum, pelo
de, o retorno ao seio Dele, após a descida à Terra, nos dizem qual todos foram gerados. Assim, o Filho perfeito, sem culpa,
que os espíritos perfeitos estão sempre em Deus, no Seu tercei- quis permanecer irmão do filho decaído, para redimi-lo e fazê-
ro aspecto de Filho. Até aqui, tudo é Deus e perfeito. Logo lo retornar à antiga perfeição.
Cristo é espírito perfeito, é Deus, mesmo sendo Filho, o tercei- Isto implica a imanência de Deus também em todo o uni-
ro aspecto ou momento. verso, que deve ser dirigido e redimido por uma encarnação
◘◘◘ mais vasta do que a de um só espírito perfeito em favor de
A esta altura intervém um fato novo, acima descrito. Em uma só humanidade, ou seja, encarnação de todo o Filho (ter-
virtude do mau uso que a criatura fez da sua liberdade, ocorreu ceira pessoa da Trindade-Una, constituída pelos espíritos per-
a queda dos anjos. Parte dos espíritos se rebelou contra o Sis- feitos do sistema íntegro), para a salvação de todo o Filho
tema. O nosso universo não é a criação, mas o desmoronamen- (terceira pessoa da Trindade fragmentada, constituída pelos
to da criação, que foi espiritual e se tornou material; que foi de espíritos imperfeitos, pelas criaturas do sistema desmorona-
caráter infinito, mas decaiu na involução de dimensões cada do), de modo que o universo possa assim reerguer-se como
vez mais limitadas. Entendamos bem este conceito, pois que Filho, terceiro aspecto, do estado de Filho decaído e imperfei-
ele pode aparentemente parecer contradição com o que disse- to ao originário estado de perfeição, ou seja, do estado de Fi-
mos no final do Cap. XIII – ―In principio erat Verbum‖. A lho separado ao de Filho-Uno em Deus.
primeira criação, a verdadeira e perfeita obra de Deus, foi a ◘◘◘
espiritual. A nossa, material, é uma segunda criação, posterior Desçamos agora ao nosso universo. Ele, em sentido absolu-
e imperfeita contrafação da primeira. Na material, a originária to, não é o Todo, porque além dele há Deus, nos seus três as-
Trindade, em que Deus permanece Uno nos três momentos, pectos. Trata-se aqui de um organismo imperfeito no seio do
como já dissemos, se subverte em unidade fragmentada, cujos maior e perfeito organismo do Todo-Uno-Deus; trata-se de uma
três momentos: 1) a concepção, 2) a ação e 3) a obra, separam- unidade cindida, enferma, de uma criação destorcida, corrupta,
se em um transformismo sucessivo; primeiramente involutivo: desmoronada na forma-matéria; trata-se de uma criação contra-
Pietro Ubaldi DEUS E UNIVERSO 77
ída por involução e que, por evolução, deve novamente expan- Sem este mínimo de prazer (gula na alimentação e sexo para a
dir-se até Deus, de quem tentou destacar-se. Aqui, a originária reprodução), a carne recusar-se-ia a viver, não podendo, conse-
centelha espiritual está envolta nas trevas da forma-matéria, da quentemente, preencher a necessidade de sofrer. Deixemos,
qual deve, evoluindo, ressurgir, libertando-se dela. pois, os ingênuos crerem que viver seja alegria e que dar a vida
Somente assim é possível compreender o nosso universo seja dar alegria. Não! A vida é dor. O seu primeiro objetivo é
como uma contração de , em que o estado cinético evoluir, que é sofrer, ainda que para conquistar a felicidade. É
ondulatório da energia se enclausurou, fechando-se em si necessário viver, mas somente porque é necessário sofrer. Entre
mesmo, no estado cinético vorticoso, gerando a matéria, con- pais e filhos só há um traço de união: a comum dor humana. Ao
centração do espaço-fluido-dinâmico. Houve, assim, o desmo- corpo são concedidos alguns prazeres para estimulá-lo a viver e
ronamento das dimensões, de que nasceu primeiro o tempo e a sofrer. E os ingênuos, que não entenderam a estrutura do Sis-
depois o espaço, que se pôde contrair até ao ponto. Os fenô- tema, acreditam poder basear neles a sua felicidade. Ilusão! Os
menos de nosso mundo, os que a ciência objetiva toma pôr ba- prazeres, tão cobiçados na Terra e pelos quais tanto se luta, são
se e que reputa verdade, são posições contraídas, involuídas, por sua natureza limitados ao bastante para fazer viver e sofrer,
contorcidas e falseadas da verdade, que só se encontra no espí- o que parece uma traição. Mas como o escopo é evoluir, com a
rito em estado de perfeição em Deus. O que a ciência estuda é reconquista da felicidade perdida, deixa de haver traição. Por
o universo desmoronado em dimensões involuídas, é um esta- aqui se vê quanto otimismo há no fundo de nosso pessimismo.
do particular contraído do ser decaído. Somando os totais do cálculo utilitário das consequências de
Fundamentar-se no concreto como em uma base segura e tudo isso em relação ao homem, podemos dizer que, se a posi-
objetiva, denuncia uma fase espiritual involuída, que não sabe ção da criatura em um universo desmoronado é bem dura, por-
conceber senão em função da ilusão dos sentidos, aprofundan- que o seu destino é a dor na obrigatória fadiga de evoluir para
do-se assim nos mais baixos planos de vida, nos planos satâni- redimir-se, todavia, por mais decaída que ela esteja, resta-lhe
cos. E esta é uma razão pela qual a ciência permanece encerra- sempre o dom supremo da existência, que lhe ficou intacto,
da na análise e no relativo, sendo incapaz, pela própria nature- apesar de tudo, além da liberdade de aceitá-lo ou não. Na sua
za, de atingir as grandes sínteses universais com o seu método dor, ela é assistida sempre por aquele amor, permanente e divi-
de orientação. A ciência, fechada com o seu positivismo neste no princípio do ser. Ela pode recusar, se quiser, a existência,
universo, jamais poderá, sem o lampejo intuitivo que lhe revele mas certamente essa recusa lhe custaria o que chamamos de in-
conceitos para ela inacessíveis, compreender e admitir que o ferno, isto é, muita dor, com afastamento de Deus e imersão
mundo que ela aceita por verdadeiro não é senão um mundo às cada vez mais no mal, de modo que ela veria a conveniência de
avessas e negativo. Sem as grandes orientações, acessíveis só mudar de rota, recomeçando o esforço da ascensão. Todavia lhe
por intuição, ela tateia sempre no escuro. resta também a evasão da existência, ainda que não convenha,
Só assim tudo é logicamente inteligível. O egoísmo repre- com a precipitação no vazio. Mas à criatura, mais que essa li-
senta a contração do Sistema, que do infinito se fragmenta no berdade de escolha, reserva-se-lhe o dom da existência, tão
finito, em partes cada vez mais isoladas, isto é, egoístas, quanto grande que, se ele hoje, por causa da revolta e do desmorona-
mais ele se afunda no desmoronamento, na direção de Satanás. mento, significa dor, implica de outro lado a possibilidade de
Os espíritos não rebeldes, que se mantiveram perfeitos, ficaram recuperação, representando um absoluto direito à alegria. Ale-
fundidos em união com Deus. Os espíritos rebeldes fragmenta- gria remota, mas direito inalienável.
ram essa unidade em múltiplos ―eus‖ separados, até Satanás, Eis a posição do homem diante de Deus. Ela é o que é, e
que, no polo oposto de Deus (dualismo), representa a máxima ninguém pode mudá-la. O ser é livre e pode escolher. Há muita
contração do ser no egoísmo separatista. E o retorno a Deus é dor, mas existe a escada para subir, muito auxílio de amor, mui-
um afastamento de Satanás, expandindo-se no altruísmo. ta felicidade no alto. Há igualmente a escada para descer, que
A prisão em que desmoronou o espírito do homem é o seu nos dá uma ilusão de evasão, mas que, ao contrário, agrava a
corpo. Para reascender a Deus, o espírito do homem deve con- dor, até à infinita dor da anulação.
sumir na dor este seu invólucro, feito de carne-matéria, que é a (Só nesse sentido se pode falar de inferno eterno).
sua animalidade, a sua parte inferior, que pertence aos planos ◘◘◘
mais involuídos da existência. Temos vergonha de nossa nudez Quisemos, deste modo, esclarecer melhor e resumir o nosso
porque ela descobre a nossa animalidade, que nos torna seme- pensamento sobre o tema deste nosso livro, Deus e Universo,
lhantes aos animais, e a velamos para esconder e idealizar a em um quadro sintético, que vai de Deus ao homem, numa úl-
nossa miséria. No caminho evolutivo, há luta entre essa anima- tima síntese, que abrange e enquadra no infinito A Grande Sín-
lidade, que se encontra na cauda, e o espírito, que está na cabe- tese, nosso primeiro volume.
ça. A dor é o sacrifício da ascensão, que finda na libertação do
espírito. À animalidade é concedido, contudo, um pouco de
prazer, necessário para induzir a carne a viver. E a sua vida é FIM
necessária, a fim de que possamos suportar essa dor criadora.
O MISSIONÁRIO
Vida e Obra de Na primeira semana de setembro de 1931, depois da grande decisão fran-
ciscana, Cristo novamente lhe apareceu e, desta vez, acompanhado de São

Pietro Ubaldi Francisco de Assis. Um à direita e outro à esquerda, fizeram companhia a Pie-
tro Ubaldi durante vinte minutos, em sua caminhada matinal, na estrada de
Colle Umberto. Estava, portanto, confirmada sua posição.
Em 25 de dezembro de 1931, chegou-lhe de improviso a primeira mensa-
(Sinopse) gem, a Mensagem de Natal. Por intuição ele sentiu: estava aí o início de sua
missão. Outras Mensagens surgiram em novas oportunidades. Todas com a
mesma linguagem e conteúdo divino.
O HOMEM No verão de 1932, começou a escrever A Grande Síntese, a qual só termi-
nou em 23 de agosto de 1935, às 23h00min horas (local). Esse livro, com cem
Pietro Ubaldi, filho de Sante Ubaldi e Lavínia Alleori Ubaldi, nasceu em capítulos, escrito em quatro verões sucessivos, foi traduzido para vários idio-
18 de agosto de 1886, às 20:30 horas (local). Ele escolheu os pais e a cidade mas. Somente no Brasil, já alcançou quinze edições. Grandes escritores do
onde iria nascer, Foligno, Província de Perúgia (capital da Úmbria). Foligno fi- mundo inteiro opinaram favoravelmente sobre A Grande Síntese. Ainda outros
ca situada a 18 km de Assis, cidade natal de São Francisco de Assis. Até hoje, compêndios, verdadeiros mananciais de sabedoria cristã, surgiram nos anos se-
as cidades franciscanas guardam o mesmo misticismo legado à Terra pelo guintes, completando os dez volumes escritos na Itália:
grande poverelo de Assis, que viveu para Cristo, renunciando os bens materiais 01) Grandes Mensagens
e os prazeres deste mundo. 02) A Grande Síntese - Síntese e Solução dos Problemas da Ciência e do Espírito
Pietro Ubaldi sentiu desde a sua infância uma poderosa inclinação pelo
03) As Noúres - Técnica e Recepção das Correntes de Pensamento
franciscanismo e pela Boa Nova de Cristo. Não foi compreendido, nem poderia
sê-lo, porque seus pais viviam felizes com a riqueza e com o conforto proporci- 04) Ascese Mística
onado por ela. A Sra. Lavínia era descendente da nobreza italiana, única herdei- 05) História de Um Homem
ra do título e de uma enorme fortuna, inclusive do Palácio Alleori Ubaldi. As- 06) Fragmentos de Pensamento e de Paixão
sim, Pietro Alleori Ubaldi foi educado com os rigores de uma vida palaciana. 07) A Nova Civilização do Terceiro Milênio
Não pode ser fácil a um legítimo franciscano viver num palácio. Naturalmen- 08) Problemas do Futuro
te, ele sentiu-se deslocado naquele ambiente, expatriado de seu mundo espiritual. 09) Ascensões Humanas
A disciplina no palácio, ele aceitou-a facilmente. Todos deveriam seguir a orien- 10) Deus e Universo
tação dos pais e obedecer-lhes em tudo, até na religião. Tinham de ser católicos
Com este último livro, Pietro Ubaldi completou sua visão teológica, além
praticantes dos atos religiosos, realizados na capela da Imaculada Conceição, no
de profundos ensinamentos no campo da ciência e da filosofia. A Grande Sínte-
interior do palácio. Pietro Ubaldi foi sempre obediente aos pais, aos professores, à
se e Deus e Universo formam um tratado teológico completo, que se encontra
família e, em sua vida missionária, a Cristo. Nem todas as obrigações palacianas
ampliado, esclarecido mais pormenorizadamente, em outros volumes escritos
lhe agradavam, mas ele as cumpriu até à sua total libertação. A primeira liberdade
na Itália e no Brasil, a segunda pátria de Ubaldi.
se deu aos cinco anos, quando solicitou de sua mãe que o mandasse à escola, e
O Brasil é a terra escolhida para ser o berço espiritual da nova civiliza-
aquela bondosa senhora atendeu o pedido do filho. A segunda liberdade, verdadei-
ção do Terceiro Milênio. Aqui vivem diferentes povos, irmanados, indepen-
ro desabrochamento espiritual, aconteceu no ginásio, ao ouvir do professor de ci-
dentes de raças ou religiões que professem. Ora, Pietro Ubaldi exerceu um
ência a palavra ―evolução‖. Outra grande liberdade para o seu espírito foi com a
ministério imparcial e universal, e nenhum país seria tão adaptado à sua mis-
leitura de livros sobre a imortalidade da alma e reencarnação, tornando-se reen-
são quanto a nossa pátria. Por isso o destino quis trazê-lo para cá e aqui com-
carnacionista aos vinte e seis anos. Daí por diante, os dois mundos, material e es-
pletar sua tarefa missionária.
piritual, começaram a fundir-se num só. A vida na Terra não poderia ter outra fi-
Nesta terra do Cruzeiro do Sul, ele esteve em 1951 e realizou dezenas de
nalidade, além daquelas de servir a Cristo e ser útil aos homens.
conferências de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Em oito de dezembro do ano se-
Pietro Ubaldi formou-se em Direito (profissão escolhida pelos pais, mas ja-
guinte, desembarcaram, no porto de Santos, Pietro Ubaldi acompanhado da es-
mais exercida por ele) e Música (oferecimento, também, de seus genitores), fez-se
posa, filha e duas netas (Maria Antonieta e Maria Adelaide), atendendo a um
poliglota, autodidata, falando fluentemente inglês, francês, alemão, espanhol, por-
convite de amigos de São Paulo para vir morar neste imenso país. É oportuno
tuguês e conhecendo bem o latim; mergulhou nas diferentes correntes filosóficas e
lembrar que Ubaldi renunciou aos bens materiais, mas não aos deveres para
religiosas, destacando-se como um grande pensador cristão em pleno Século XX.
com a família, que se tornou pobre porque o administrador, primo de sua espo-
Ele era um homem de uma cultura invejável, o que muito lhe facilitou o cumpri-
sa, dilapidou toda a riqueza entregue a ele para gerencia-la.
mento da missão. A sua tese de formatura na Universidade de Roma foi sobre A
Em 1953, Pietro Ubaldi retornou à sua missão apostolar, continuou a re-
Emigração Transatlântica, Especialmente para o Brasil, muito elogiada pela ban-
cepção dos livros e recebeu a última Mensagem, Mensagem da Nova Era, em
ca examinadora e publicada num volume de 266 páginas pela Editora Ermano
São Vicente, no edifício ―Iguaçu‖, na Av. Manoel de Nóbrega, 686 – apto. 92.
Loescher Cia. Logo após a defesa dessa tese, o Sr. Sante Ubaldi lhe deu como
Dois anos depois, transferiu-se com a família para o Edifício ―Nova Era‖ (coin-
prêmio uma viagem aos Estados Unidos, durante seis meses.
cidência, nada tem haver com a Mensagem escrita no edifício anterior), Praça
Pietro Ubaldi casou-se com vinte e cinco anos, a conselho dos pais, que es-
22 de janeiro, 531 – apto. 90. Em seu quarto, naquele apartamento, ele comple-
colheram para ele uma jovem rica e bonita, possuidora de muitas virtudes e fina
tou a sua missão. Escreveu em São Vicente a segunda parte da Obra, chamada
educação. Como recompensa pela aceitação da escolha, seu pai transferiu para
brasileira, porque escrita no Brasil, composta por:
o casal um patrimônio igual àquele trazido pela Senhora Maria Antonieta Sol-
11) Profecias
fanelli Ubaldi. Este era, agora, o nome da jovem esposa. O casamento não esta-
va nos planos de Ubaldi, somente justificável porque fazia parte de seu destino. 12) Comentários
Ele girava em torno de outros objetivos: o Evangelho e os ideais franciscanos. 13) Problemas Atuais
Mesmo assim, do casal Maria Antonieta e Pietro Ubaldi nasceram três filhos: 14) O Sistema - Gênese e Estrutura do Universo
Vicenzina (desencarnada aos dois anos de idade, em 1919), Franco (morto em 15) A Grande Batalha
1942, na Segunda Guerra Mundial) e Agnese (falecida em S. Paulo - 1975). 16) Evolução e Evangelho
Aos poucos, Pietro Ubaldi foi abandonando a riqueza, deixando-a por con- 17) A Lei de Deus
ta do administrador de confiança da família. Após dezesseis anos de enlace ma- 18) A Técnica Funcional da Lei de Deus
trimonial, em 1927, por ocasião da desencarnação de seu pai, ele fez o voto de
19) Queda e Salvação
pobreza, transferindo à família a parte dos bens que lhe pertencia. Aprovando
aquele gesto de amor ao Evangelho, Cristo lhe apareceu. Isso para ele foi a 20) Princípios de Uma Nova Ética
maior confirmação à atitude tão acertada. Em 1931, com 45 anos, Pietro Ubaldi 21) A Descida dos Ideais
assumiu uma nova postura, estarrecedora para seus familiares: a renúncia fran- 22) Um Destino Seguindo Cristo
ciscana. Daquele ano em diante, iria viver com o suor do seu rosto e renunciava 23) Pensamentos
todo o conforto proporcionado pela família e pela riqueza material existente. 24) Cristo
Fez concurso para professor de inglês, foi aprovado e nomeado para o Liceu São Vicente (SP), célula mater. do Brasil, foi a terceira cidade natal de Pie-
Tomaso Campailla, em Módica, Sicilia – região situada no extremo sul da Itália tro Ubaldi. Aquela cidade praiana tem um longo passado na história de nossa
– onde trabalhou somente um ano letivo. Em 1932 fez outro concurso e foi pátria, desde José de Anchieta e Manoel da Nóbrega até o autor de A Grande
transferido para a Escola Média Estadual Otaviano Nelli, em Gúbio, ao norte da Síntese, que viveu ali o seu último período de vinte anos. Pietro Ubaldi, o Men-
Itália, mais próximo da família. Nessa urbe, também franciscana, ele trabalhou sageiro de Cristo, previu o dia e o ano do término de sua Obra, Natal de 1971,
durante vinte anos e fez dela a sua segunda cidade natal, vivendo num quarto com dezesseis anos de antecedência. Ainda profetizou que sua morte acontece-
humilde de uma casa pequena e pobre (pensão do casal Norina-Alfredo Pagani ria logo depois dessa data. Tudo confirmado. Ele desencarnou no hospital São
– Rua del Flurne, 4), situada na encosta da montanha. José, quarto No 5, às 00h30min horas, em 29 de fevereiro de 1972. Saber quan-
A vida de Pietro teve quatro períodos distintos (v. livro Profecias – ―Gêne- do vai morrer e esperar com alegria a chegada da irmã morte, é privilégio de
se da II Obra‖): dos 5 aos 25 anos  formação; 25 aos 45 anos  maturação in- poucos... O arauto da nova civilização do espírito foi um homem privilegiado.
terior, espiritual, na dor; dos 45 aos 65 anos  Obra Italiana (produção concep- A leitura das obras de Pietro Ubaldi descortina outros horizontes para uma
tual); dos 65 aos 85 anos  Obra Brasileira (realização concreta da missão). nova concepção de vida.

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