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DIREITO, CIÊNCIA E MÉTODO.

Marcos Vinícius Pinheiro Dib Filho1

Ao longo da história da epistemologia, poucos debates foram mais acalorados do que a


questão de o Direito ser, ou não, Ciência. A questão encontra partidários de ambas opiniões,
com fortes argumentos, embasados nas correntes de pensamento mais fortes de suas respectivas
épocas. Verifica-se que, inserido no contexto histórico, o Direito é apresentado como ciência,
ou não, em que se apresentam a opinião de notáveis juristas.

1. Do debate à cerca da natureza científica do direito

Pode-se, assim, iniciar o debate com a visão jusracionalista do Direito. Nesse ponto,
faz-se pertinente que não se trata do jusnaturalismo tradicional, mas de um direito natural
constituído em “uma disciplina submetida a regras de valor necessário e objetivo na qual há,
portanto, verdade e falsidade e não apenas opiniões ou volições”. (HESPANHA, 2012, p. 328).
Do mesmo modo, Hans Kelsen, embora fosse crítico ferrenho do pensamento jusnaturalista,
defendia também a existência de uma Ciência Jurídica, ao postular sua Teoria Pura do Direito.
Kelsen defendia a separação da Ciência do Direito, da Política do Direito, afastado aquela da
subjetividade e da moral. Embora haja dissenso2, Kelsen é tido como o maior expoente do
Positivismo Jurídico, e um dos mais fortes defensores da ideia de existência de uma Ciência
Jurídica (KELSEN, 1991, p. 1, 79). Somente com Dworkin, essa visão científica do Direito se
enfraquece, na medida em que esse autor o coloca como uma “Prática Social Interpretativa”, o
que obviamente afasta o caráter científico da disciplina (DWORKIN, 2007, p. 11-19). Nessa
linha de pensamento, o Theodor Viehweg defendeu que o direito “não se desenvolve a maneira
do modelo moderno de ciência, mas sim à maneira tópica: no âmbito jurídico o estilo de trabalho

1
Marcos Vinícius Pinheiro Dib Filho – 17/0150739 – é aluno da 127ª Turma do Curso de Direito da Universidade
de Brasília - UnB
2
O pensamento de Hans Kelsen se difere em muito do pensamento dos positivistas anteriores, principalmente dos
integrantes da Escola da Exegese, a quem, inclusive, Kelsen criticava. A teoria de Kelsen, construída sobre o
conceito de “Norma”, é confundida por seus principais opositores como uma teoria da “Norma Positivada”. É
patente que, para o austríaco, esses conceitos não se confundem, demonstrado inclusive pelo fato de que a Norma
Fundamental Hipotética careceria de qualquer positivação. Por esse motivo, alguns autores preferem considerar
Kelsen como um “neo-positivista”, ou, ainda, completamente dissociado dessa corrente. A opinião deste autor é
que o próprio conceito de Positivismo Jurídico deve ser revisto ou ampliado, para que pudesse abarcar o
pensamento de Kelsen. Desse modo, não se crê possível entender Kelsen com a limitada visão positivista
estereotipada, entendendo que, se Kelsen é de fato um positivista, é no mínimo de uma espécie distinta desta
corrente.
que predomina orienta-se por problemas e procura resolvê-los buscando apoio em pontos de
partida compartilhados, os topoi”3 (ROESLER, 2009, p.1).

2. Da Imagem de Ciência-como-método

A questão da natureza científica do Direito, em realidade, perpassa não somente a


questão de “O que é o Direito?”, mas ainda a questão de definir “O que é a Ciência?”, outro
debate secular e acalorado, em que se fazem presentes as opiniões de grandes filósofos da
Epistemologia, em que se destacam, Karl Popper, Thomas Kuhn e Imre Lakatos. Para resolver,
portanto, a equação, deve-se, primeiramente, fixar uma das variáveis. Nesse ponto, faz-se
pertinente definirmos a ciência, não em relação ao seu objeto, mas em relação aos métodos que
orientam a investigação. Chama-se essa abordagem de “Imagem de ciência-como-método”
(ABRANTES, 2013, p. 10). Ainda, assim, a definição de Ciência não é clara e merece
aprofundamento, com o fim de responder à pergunta “Qual método define a Ciência?”. Nesse
sentido, novamente se fixa a variável e se adota como modelo o método científico de Lakatos.
Tal escolha se deve em virtude de o autor ter, elegantemente, colocado fim (ao menos suavizar?)
à polêmica Popper-Kuhn, ao propor a sua Metodologia de Programas de Pesquisa Científica,
como “uma forma salvaguardar o caráter normativo da filosofia da ciência e, ao mesmo tempo,
acatar aspectos da crítica kuhniana, reconhecendo a história da ciência como uma instância
legítima de teste das teorias da racionalidade propostas pelos filósofos” (ABRANTES, 2013, p.
150).

3. Da Metodologia de Programas de Pesquisa Científica

Lakatos toma os pressupostos de Popper como base para sua teoria, no entanto,
reconhece o caráter excessivamente formalista de sua teoria. Nesse ponto, Lakatos defende que
as hipóteses e teorias são radicalmente transformadas ao longo do programa de pesquisa,
mantendo-se apenas o seu referencial4. Nesse mesmo sentido, Lakatos nega a distinção entre a
postulação de uma teoria e o relatório de uma observação, visto que a observação relatada é a
própria sustentação da teoria postulada (HACKING, 2012, p. 113). Dessa forma, as teorias são
testadas por hipóteses auxiliares de modo que um resultado anômalo não refuta,
necessariamente, a teoria como um todo, mas abre margem à revisão das hipóteses auxiliares à
teoria (HACKING, 2012, p. 115). Lakatos, ainda, afirma que uma teoria é melhor que outra, se

3
O autor deste artigo é, particularmente, simpatizante da visão do Direito como tópica, no sentido de aproximar
o Direito à técnica argumentativa, baseada em pontos comuns, permeados pelos valores sociais.
4
Ver HACKING, I. Referência In. Representar e Intervir. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2012
ela consegue se adiantar às evidências e realizar mais previsões que a anterior. Com efeito, para
Lakatos, uma teoria não deve ser abandonada, a não ser que haja outra teoria melhor, i. e., que
consiga realizar mais previsões (HACKING, 2012, p. 115).

Em relação às teorias de Kuhn, às quais se refere como “psicologia das massas”, Lakatos
a considera uma filosofia reducionista, sem espaço para os valores científicos de verdade,
objetividade, racionalidade e razão, de modo que o método científico desaparece como métrica
de progresso do conhecimento, ainda que se possa explicar uma “mudança de paradigma”
(HACKING, 2012, p. 112).

Verifica-se, então, que a metodologia de programas de pesquisa científica de Lakatos se


baseia no conceito de heurística, introduzido pelo filósofo, como um método, ou processo, que
guia a descoberta e a investigação científica. Lakatos o distinguiu em heurística negativa,
como o conjunto de pressupostos básicos (essenciais), irrefutáveis e que não devem ser
questionados, que constituem o “núcleo duro” do programa de pesquisa; e heurística positiva,
como um conjunto previamente ordenados de problemas a serem resolvidos pela teoria, que
constituem o “cinturão protetor” do programa. O programa de pesquisa de Lakatos deve ser
entendido a partir de uma semântica histórica e abstrata, que pode perdurar por séculos,
ininterruptamente ou não. Os programas de pesquisa podem ser classificados como
progressivos, caso nele surjam novas teorias, com capacidades preditivas incrementadas, e
novas tecnologias a ele associadas. Por outro lado, o programa pode ser considerado
degenerativo, caso algum dos requisitos acima se ausente e, nesse caso, pode ser abandonado
(HACKING, 2012, p. 116-117).

Pode-se, finalmente, apresentar o ponto distintivo de Lakatos, em relação à Popper e


Kuhn: Se o a crença de Popper de que o conhecimento é cumulativo é ingênua e irreal, ao passo
que a ideia de paradigma nega completamente a ideia de progresso científico, para Lakatos o
conhecimento progride, em uma teoria que não é refém da “verdade”, nem da “psicologia das
massas” (HACKING, 2012, p. 5). Apesar disso, a metodologia dos programas de pesquisa nos
permite apenas uma análise a posteriori, da racionalidade das teorias científicas. A análise de
Lakatos se baseia em validade e justificativa, em que o programa de pesquisa é totalmente
reconstruído a fim de ser avaliado em progressivo ou degenerativo, não nos fornecendo
qualquer indicativo de qual teoria é mais promissora, dentro de um mesmo programa de
pesquisa (HACKING, 2012, p. 118-119).
Isso posto, verifica-se que o verdadeiro critério para a demarcação do sistema da ciência,
separando o racional do irracional, é o crescimento do conhecimento, medido pela saúde do
programa de pesquisa no sentido de ser progressivo ou degenerativo (HACKING, 2012, p. 120).

“Lakatos mantem-se um intransigente defensor da tese de que a ciência deve


ser uma atividade racional claramente demarcável das chamadas pseudo-
ciências. Ele reconhece, contudo, que não há racionalidade instantânea: a
atividade científica possui um dinamismo que só pode ser avaliado em longo
prazo e retrospectivamente. ” (ABRANTES, 2013, p. 150-151)
Daí se pode depreender que o Sistema da ciência não é determinado por uma história
externa, geral, mas por uma história interna (HACKING, 2012, p. 122), de modo que o processo
de produção do conhecimento se desprende e assume vida própria, o que não significa que a
ciência não se comunica com outros sistemas, apenas que ela representa um sistema
funcionalmente diferenciado e que não é determinado pela história.

4. Da (não) adequação do Direito, nos pressupostos do método de Lakatos

Definido o molde ao qual o Direito deve encaixar-se para o considerarmos Ciência,


procede-se a um exercício de subsunção e silogismo. Verifica-se assim, se o Programa de
Pesquisa Jurídica progride teoricamente, ou seja, se novas teorias com maior capacidade
preditiva se inserem nesse programa, ao longo do tempo; e se progride empiricamente, no
sentido de gerar novas tecnologias. Atendidos os pressupostos, verifica-se que o Programa de
Pesquisa Jurídica é progressivo e, nesse caso, pertence ao sistema científico. Caso algum dos
dois requisitos se ausente, renegamos o Direito à irracionalidade...

Pode-se descartar, de pronto, a visão dworkiana do Direito como uma Prática Social
Interpretativa, bem como a Visão de Viehweg, do Direito como Tópica, pois essas visões sequer
possuem pretensão de serem científicas. Não obstante, a discussão acerca da progressão
empírica do Direito, conforme Dworking e a progressão teórica do Direito de Viehweg
poderiam suscitar discussões interessantes e surpreendentes, as quais, infelizmente, não são
cabem no escopo deste ensaio. Descarta-se essas visões, assim, alegando-se que o Direito
dworkiano não progride teoricamente, pois não oferece qualquer previsibilidade, tampouco tem
a pretensão de oferecer. Da mesma forma, o Direito de Viehweg não produz tecnologia,
independente da semântica empregada nesse termo.

Foquemos, então, nas correntes de pensamento jurídicos que tem a pretensão de serem
científicas. Pensemos, primeiramente, nas ideias jusracionalistas. Para elas, o Direito é único,
proveniente da Natureza, ou da Razão. O direito positivo é válido ou inválido, a medida em que
reflete esse direito natural. Desse modo, aceita-se que o direito pode ser positivado
invalidamente, e não se garante que esse direito se conformará aos moldes do Direito Natural.
Não há, assim, qualquer grau de previsibilidade, no pensamento jusracionalista. Por outro lado,
se o Direito Natural é único e imutável, como se pode falar em produção de “novas
tecnologias”? O Direito jusracionalista constitui-se, assim, de uma atividade de organização de
conceitos, finita, que perde seu propósito quando o Direito é positivado num código único e
consistente que reflete completamente esse Direito Natural. O Direito jusraconalista tem,
assim, a pretensão de resolver todos os seus problemas internos, momento em que ela não
ultrapassa mais suas próprias evidências e se fecha para outras teorias, ainda não descobertas,
momento em que, necessariamente, se torna um Programa de Pesquisa Degenerativo, de modo
que não pertença ao Sistema d Ciência e seja, para Lakatos, “ironicamente” relegada à
irracionalidade. (Podemos falar em jusirracioalismo?)

A Ciência Jurídica de Kelsen e amolda ainda menos à Metodologia dos Programas de


Pesquisa. Em primeiro lugar, ela nos oferece certo grau de previsibilidade, ao identificar no
ordenamento jurídico a moldura, nas quais devem encaixar-se as decisões. Entretanto,
reconhece Kelsen que, entre diferentes decisões abarcadas pela moldura, a escolha da melhor
cabe à autoridade (“Empoderada”, em última instância, pela Norma Fundamental Hipotética) e
foge do escopo da Ciência Jurídica, e fica delegada à Política do Direito ou à Sociologia do
Direito. A Ciência Jurídica de Kelsen, portanto, não progride teoricamente e, já aí, pode ser
afastada do sistema científico. Pode-se chegar ao mesmo resultado, por um caminho mais curto,
quando se pensa no progresso empírico dessa teoria. Ora, Kelsen afirma reiteradamente que a
Ciência Jurídica se limita a descrever o Direito. Nesse caso, não há de se falar em produção de
novas tecnologias, apena descrição do que é produzido por outras disciplinas. Não há, portanto,
progresso empírico e, desse modo, o Direito se mostra um Programa de Pesquisa Degenerativo.

Pode-se, ainda, avaliar outras correntes de pensamento jurídico, como o realismo que
alega necessário buscar a previsibilidade das decisões judiciais. Ainda que essas teorias possam
ser facilmente afastadas do Sistema da Ciência, por não apresentar progresso empírico, é da
opinião deste autor que a tal previsibilidade que essa corrente busca é inalcançável, e que,
acreditar que uma decisão judicial pode ser determinada a partir de fatores exógenos se insere
na “Natureza Mágica”, conforme nos explica Lenoble5.

5
Ver LENOBLE, Robert. A natureza mágica. In: _____. História da ideia de natureza. Lisboa: Edições 70,
1990.
5. Da opinião pessoal do autor

Atendidos os pressupostos técnicos para uma demonstração do caráter não científico do


Direito, o autor do artigo se sente na liberdade de expressar sua opinião pessoal quanto ao tema.
De fato, acredito que Direito não é ciência e sequer deveria ter a pretensão de ser. Apaixonado
pelo tema, acredito que o status de ciência não agrega mais ou menos mérito à disciplina e faz
parte da cultura do cientificismo6, que permeia a sociedade moderna e pós-moderna. Acredito
ainda, que não é preciso se remeter a sofisticados modelos de métodos científicos para mostrar
que Direito não é Ciência.

Uma breve análise histórico-silogística pode nos revelar muito. Pensemos na ciência
como aquela baseada em Descartes, ou Bacon. Faz sentido imaginar que antes destes filósofos,
não havia direito? Ou quem sabe imaginar que o Direito era irracional, antes do surgimento de
suas ideias? Ainda que fôssemos mais além, definindo ciência de modo amplo, pressupondo
que ela já se fazia com Sócrates, Platão, ou Aristóteles, ou quem sabe com Thales ou Pitágoras.
Pode-se falar que antes do “Milagre Grego”7 não havia direito? Ou faria sentido falar de ciência
em um mundo de natureza mítica, ou mágica? Acredito que as respostas a essas perguntas sejam
pertinentes a reflexão de cada autor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRANTES, P., Método e ciência: uma abordagem filosófica. Belo Horizonte: Fino Traço,
2013.

DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 2 ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2007. Título original: Law´s empire.

HACKING, I. Um substituto para a verdade In. Representar e Intervir. Rio de Janeiro: Ed.
UERJ, 2012

HESPANHA, A. M. Cultura Jurídica Europeia: Síntese de um Milénio. Coimbra:


Almedina, 2012.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 3. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1991.

ROESLER, C. R. O papel de Theodor Viehweg na fundamentação das teorias da


argumentação jurídica. Revista Eletrônica Direito e Política, Programa de Pós-Graduação
Strictu Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v. 4, n. 3, 3º quadrimestre de 2009.
Disponível em www.univali.br/direitoepolitica

6
Ver CHRÉTIEN, Claude. Contra a idolatria cientificista. In: _____. A ciência em ação: Mitos e limites.
Campinas: Papirus, 1994
7
Ver MIROSLAV, M. Política e Metafísica. São Paulo: Editora Max Limonad, 2017

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