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Revista Panorâmica On-Line. Barra do Garças – MT, vol.

23,
p. 296 - 305, jul./dez. 2017. ISSN - 2238-921-0

QUARTO DE DESPEJO: Carolina Maria de Jesus viveu

Marcella Pessôa1
Jussivania Pereira2

O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já


passou fome. A fome também é professora. Quem passa
fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças.
(Jesus, 1963, p. 26)

Resumo:
Este trabalho tem por objetivo analisar a obra Quarto de Despejo da autora Carolina Maria de
Jesus, sob o viés do espaço autobiográfico, levando em consideração a questão da
performatividade, ou seja, as verdades descritas pela autora. Para tal, foi realizada a leitura do
livro, a edição popular do ano de 1963. Para construir a análise dos excertos retirados da obra,
apoiamos nas leituras de Butler (2001), Lejeune (2008), Calligaris (1998) entre outros. A obra
retrata a sociedade dos anos 50, bem como o surgimento das primeiras favelas da cidade de
São Paulo. E nesse cenário todo temos Carolina, uma jovem mãe que cria sozinha seus três
filhos, em meio às mazelas da periferia, onde a fome é a maior aliada. As revelações acerca
desse habitat são tão reais que somos capazes de nos sentirmos no lugar descrito pela autora.

Palavras – chaves:
Autobiografia, Favela, Fome

CHILD OF THE DARK: THE DIARY OF CAROLINA MARIA DE JESUS

Abstract:
this paper aims at analyzing the book of the writer Carolina Maria de Jesus, Quarto de
Despejo published in English as Child of the Dark: the diary of Carolina Maria de Jesus
under the bias of autobiographical space, taking into account the question of performativity,
that is, the truths described by the author. For this purpose, the popular edition of 1993 was
read. In order to analyze the excerpts taken from the book, we based on the readings of Butler
(2001), Lejeune (2008), Calligaris (1998) among others. The book portrays the society of the
fifties, as well as the emergence of the first slums of the city of São Paulo. And in this
scenario, we have Carolina, a young mother who raises her three children alone, amongst the
hardships of the periphery, where hunger is the biggest ally. The revelations about this habitat
are so real that we are able to feel we are in the place described by the author.

1
Professora de Língua Portuguesa – Seduc/MT. E-mail: marcelladuartevp@hotmail.com.
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Mestre em Estudos de Linguagem – Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: jussi-vania@hotmail.com.
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Keywords:
Autobiography, Slum, Hunger

Introdução

As favelas brasileiras não começaram do dia para a noite, não surgiram ontem, nem
muito menos ano passado. As favelas começaram a surgir desde quando as desigualdades
sociais começaram a existir, a má distribuição de renda, a migração da zona rural para zona
urbana, aumentando assim a população. As favelas já foram e continuam sendo temas de
novelas, documentários, séries entre outras.
Mas, em 1955, eis que Carolina Maria de Jesus, começa a colocar no papel, todas as
angústias e vivências que acontecem na favela do Canindé, a beira do rio Tietê, na cidade de
São Paulo. Carolina, uma jovem mãe de três filhos – Vera Eunice, João José e José Carlos -,
negra, com pouco estudo, fazia de tudo para buscar o sustento dos filhos.
Carolina, transcreve o dia-a-dia da favela em mais de 20 cadernos, sujos e encardidos.
Esses escritos foram descobertos pelo repórter Audálio Dantas, que fez uma seleção dos
trechos mais significativos, para não tornar a repetição exaustiva. Alguns trechos desse diário
de Carolina foram publicados em Folha da Noite (1958) e mais tarde na revista O Cruzeiro
(1959). A primeira versão do livro foi publicada em 1960. O livro correu o mundo todo, foi
publicado em mais de treze idiomas, vendido em 40 países e chegou a marca de 100 mil
exemplares em poucos meses depois de sua primeira publicação em agosto de 1960. Vale
ressaltar que o livro teve diversas edições publicadas, para tanto, neste trabalho utilizaremos
“Quarto de Despejo” edição popular de 1963.
É claro que com essa repercussão toda, surgiram dúvidas acerca da autenticidade do
livro, porque muitos duvidavam da capacidade de uma negra chegar ao estrelato e vender
tantos livros. Então, vários escritores brasileiros escreveram em defesa de Carolina. Um deles
foi o poeta Manuel de Barros que explicitou “ninguém poderia inventar aquela linguagem,
aquele dizer as coisas com extraordinária força criativa, mas típico de quem ficou a meio
caminho da instrução primaria”.
Carolina é a única moradora da favela que não se mistura na vivência diária dos
outros, por isso, ela consegue ter uma visão diferente, ou seja, é capaz de vislumbrar tudo o
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que acontece a sua volta: as brigas entre os casais, a falta de comida, as festas, as bebedeiras,
as mortes, as doenças, as crianças que nascem. São raros os momentos em que Carolina se
diverte, prefere estar isolada, lendo ou escrevendo. Carolina não se diverte porque sempre está
cansada de tanto carregar peso, revirar lixo a procura de comida e com muita fome. A fome é
sua parceira inseparável, em seus relatos a fome ganha até uma cor. A fome é amarela!
Porque quando Carolina atingia o limite insuportável da fome, as coisas todas ficavam
amarelas. “Resolvi tomar uma média e comprar um pão. Que efeito surpreendente faz a
comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as árvores, as aves, tudo
amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos” (JESUS, 1963, p. 40).
O cenário da favela, contrasta com as casas “grandes” que ficavam em torno da favela.
Às vezes, Carolina, passava nas casas de conhecidas e era alimentada, ganhava alguns pães e
até brinquedos para as crianças. Os filhos de Carolina, frequentavam a escola, disso ela não
abria mão. A educação era a única esperança para mudança de vida social. Porque, “a favela é
um ambiente propenso, que as pessoas tem mais possibilidades de delinquir do que tornar-se
útil a pátria e ao país” (Jesus, 1963, p. 26), isso nas palavras do tenente da delegacia daquele
momento em uma conversa com Carolina. O que não é diferente nos dias atuais.
Dessa forma, este trabalho tem por objetivo analisar a obra Quarto de Despejo da
autora Carolina Maria de Jesus, sob o viés do espaço autobiográfico, levando em consideração
a questão da performatividade, ou seja, as verdades descritas pela autora. Para tal, foi
realizada a leitura do livro, a edição popular do ano de 1963. Para construir a análise dos
excertos retirados da obra, apoiamos nas leituras de Butler, (2001) Lejeune, (2008), Brito
(2015) entre outros.

1 Autobiografia

Falar ou escrever de si, é um dispositivo crucial da modernidade, uma necessidade


cultural, já que a verdade é sempre e prioritariamente espera do sujeito – subordinada à sua
sinceridade (Foucault, 1976 apud Calligaris, 1998, p.86)).
Conforme Lejeune (2008) o pacto autobiográfico confirma um contrato do autor com
o leitor: o fato narrado está relacionado com uma referencialidade externa e pode ser

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comprovado.
Segundo Lejeune (2008), o espaço autobiográfico seria uma realidade que uma série
de escritores teria experimentado, desde o fim do século XVIII, no ato de projetar-se,
confessar-se, purgar-se, devanear e exprimir-se através das ficções de modo mais ou menos
intencional.
Nesse sentido, Lejeune (2008), define autobiografia como uma narrativa retrospectiva,
em primeira pessoa, feita em prosa, que uma pessoa real faz de sua própria existência quando
enfatiza sobretudo a sua vida individual, particularmente a história da sua personalidade. O
autor divide autobiografia em quatro grupos: a) forma de linguagem: narrativa, prosa; b)
assunto tratado: vida individual, história da personalidade; c) situação do autor: identidade do
narrador e do autor, cujo nome remete a uma pessoa real; d) a posição do narrador: caráter
retrospectivo da narrativa e identidade do narrador com o personagem principal.
O escrito autobiográfico acarreta uma cultura na qual, o indivíduo – seja qual for sua
posição social – ancore sua vida ou seu destino acima da comunidade a qual ele pertence, da
qual ele conceba sua vida como uma confirmação de regras e dos legados da tradição, mas
como uma aventura a ser inventada. Ou ainda uma cultura na qual importe ao indivíduo durar,
sobreviver pessoalmente na memória dos outros (Calligaris 1998, p.46).
Só podemos dizer que a autobiografia se define por algo que é exterior ao texto, não
se trata de buscar, aquém, uma inverificável semelhança com uma pessoa real, mas sim de ir
além, para verificar, no texto crítico, o tipo de leitura que ela engendra, a crença que produz
(LEJEUNE, 2008, p. 47).
Nessa esteira, Lejeune (2008) afirma que autobiografia pode pertencer a dois sistemas
diferentes: um sistema referencial real e um sistema literário. Em relação ao autor do texto,
pode haver defasagem entre sua intenção inicial e a intenção que lhe será atribuída ao leitor
seja porque o autor desconhece os resultados motivados pela maneira de apresentação que ele
escolheu, seja porque entre ele e o leitor existem outras vontades: muitos princípios que
condicionam a leitura, podem ter sido escolhidos pelo editor e já interpretados pelos meios de
comunicação. Enfim, é necessário reconhecer que podem coexistir leituras diferentes do
mesmo texto.
O pensamento de Paul de Man (1984), acerca da autobiografia estabelece outros
olhares sobre a definição de uma obra, ou seja, autoria e limites do (espaço) autobiográfico.

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Dessa forma, conforme o autor, autobiografia não é um gênero ou uma modalidade, mas uma
figura de leitura ou de compreensão que ocorre em algum grau, em todos os textos.
Nessa mesma linha de pensamento, Paul de Man, afirma que, a estrutura especular é
interiorizada no texto cujo autor declara a si mesmo como objeto do seu próprio
entendimento, mas isso apenas torna explícita a alegação de autoria que toma lugar sempre
que é afirmado a respeito de um texto ser de alguém e ser, supostamente, compreensível de
acordo com o caso. Assim, podemos dizer que qualquer livro com uma capa de título legível
é, em algum grau, autobiográfico.

2 Performatividade

Já em relação a performatividade, Butler declara que “não como um ato singular e


deliberado, senão antes como a prática reiterativa e referencial mediante a qual o discurso
produz os efeitos que nomeia” (BUTLER, 2001, p.18).
In Brito (2015, p.3), encontramos Derrida (1991) que ao colocar em evidência as
ideias de Austin - de forma desconstrutora- o performativo é uma comunicação que não leva
apenas um conteúdo semântico já constituído e vigiado por uma verdade, mas também:

[...] o performativo não tem seu referente (mas aqui essa palavra sem dúvida
não convém o interesse da descoberta) fora de si ou, em todo caso, antes e
perante si. Não descreve algo que existe fora da linguagem e antes dela.
Produz ou transforma uma situação, opera [...]. (DERRIDA1991 p.26/27
apud BRITO 2015.)

Butler (2001) discorre sobre a performatividade como citacionalidade afirmando que:


“[...] a performatividade deve ser compreendida não como um "ato" singular ou deliberado,
mas, ao invés disso, como a prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os
efeitos que ele nomeia” (p.111). Brito (2015) assevera que:

A noção de performatividade, sinalizada a partir destes conceitos, faz um


reconhecimento da produção dos sujeitos como parte dos efeitos discursivos
em que os mesmos estão submetidos no social, seja pelos processos
regulatórios em que a noção opera, seja nas possibilidades de agência,
esclarecidas através dos quase conceitos derridianos discutidos (BRITO,
2015, p.5)

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Conforme, LEE (2015 p. 189) as sentenças performativas são falas que tem por função
uma ação que são efeito da enunciação mesma. Não descreve algo que existe fora, ou antes,
da linguagem. O performativo é um enunciado que transforma uma situação.

3 Alguns apontamentos

Ao retratar sua vivência em seus cadernos e que mais tarde foi publicado com o nome
de Quarto de despejo: diário de uma favelada, Carolina abriu espaço para inúmeras
discussões. O que se tem inicialmente, são as evidências de que a obra ajudou a denunciar as
precariedades na qual a grande maioria da população vivia, nas favelas, as margens da
sociedade. Os escritos de Carolina retrataram a voz dos marginalizados. Pois de certa forma,
ao falar do que acontecia em Canindé, ela não só discorria sobre sua sofrida vida, mas
também sobre o que acontecia com todos que eram “despejados” na favela.
Lejeune (2008) define autobiografia como uma narrativa retrospectiva, essa definição
não pode ser usada para apoiar a obra Quarto de Despejo, porque Carolina, não narrava fatos
anteriores, mas fatos reais vividos, como apresentado no excerto a seguir: “levantei as 7 horas.
Alegre e contente. Depois que veio os aborrecimentos.” (Jesus, 1963, p.13); “Estou residindo
na favela. Mas se Deus me ajudar hei de mudar daqui. Espero que os políticos extingue (sic)
as favelas” (Jesus, 1963, p.17).
Mas, Lejeune (2008) apresenta o espaço autobiográfico, como um ato de idealizar,
confidenciar, a realidade por meio de ficções de maneira mais ou menos proposital. Carolina
desvela nos seus escritos uma realidade não ficcional e muitos menos de forma proposital.
Em seus escritos, Carolina enquanto narradora de sua própria história constrói verdades de
uma forma intencional, ou seja, ela descreve tudo o que acontece na favela, como uma forma
de protestar as mazelas que aconteciam as margens do rio Tietê, que na visão da autora, o
local se tornou “um quarto de despejo”. “.... Eu classifico São Paulo assim: o Palácio, é a sala
de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde
jogam os lixos”. “Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se
ou joga-se no lixo.” (Jesus, 1963, p. 28;33).
Lejeune (2008) divide o espaço autobiográfico em quatro agrupamentos: forma da

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linguagem, o assunto tratado, situação do autor e a posição do narrador. Colocando esses


grupos na obra em que estamos analisando temos a seguinte situação: a linguagem de O
Quarto de Despejo, é uma linguagem informal, porque Carolina cursou apenas o segundo ano
de escola primária. O assunto tratado é uma história de personalidade, sobrevivência, chega a
ser individual porque Carolina retrata sua vivencia diária na favela, mas ao mesmo tempo é
uma história coletiva, porque todos os moradores da favela, de alguma maneira ou de outra
acabam se tornando assunto nos escritos de Carolina; “Era a Odete brigando com o seu
companheiro” (JESUS, 1963, p. 69); “Ouço a Meiry convidando a Nair para ir no baile da
Rua A” (JESUS, 1963, p. 82); “Um dia o esposo da Dona Silvia, estava na torneira e
discutiram, ele e um nortista, o senhor Manoel pai do Zé Maria. Enquanto eles trocavam
insultos eu presenciava” (JESUS, 1963, p.83).
Já a situação ocupada pelo autor na obra, é de uma identidade de narrador/autor, cujo
nome remete a uma pessoa real e que viveu a narrativa apresentada; “Amanheci contente.
Estou cantando. As únicas horas que tenho socego (sic) aqui na favela é de manhã.” (Jesus,
1963, p. 24); “Eu hoje estou triste. Estou nervosa. Não sei se choro ou saio correndo sem para
(sic) até cair inconciente (sic). É que hoje amanheceu chovendo. E eu não sai para arranjar
dinheiro” (JESUS, 1963, p. 37).
E finalmente, o último grupo definido por Lejeune (2008) dentro da escrita
autobiográfica está a posição do narrador, funcionando como um caráter retrospectivo da
narrativa e também com a identidade do narrador com o personagem principal. Como já foi
citado no parágrafo acima, o autor da obra Quarto de Despejo, também é o personagem
principal: “Estava na favela. Na lama, as margens do Tietê” (JESUS, 1963, p. 35); “A hora
que estou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginários (sic)” (JESUS, 1963, p. 52).
A sentença performativa “a) que nada “descrevam” nem “relatem” nem constatem, e
nem sejam “verdadeiros ou falsos”; b) cujo proferimento da sentença é, no todo ou em parte, a
realização de uma ação, que não seria normalmente descrita em dizer algo “(AUSTIN,1990,
p.24).
A definição de performatividade, sinalizada a partir destes conceitos, possibilita um
reconhecimento na produção dos sujeitos como parte dos efeitos discursivos em que os
mesmos estão submetidos no social. Na obra analisada, como é um diário na qual, Carolina
narra sua vivência desde a hora em que acorda até a hora que vai dormir, então, a

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autora/narradora está o tempo todo envolvida com os discursos produzidos por ela, bem como
no local em que esses discursos são efetivados. “[...] Quando cheguei na favela estava
indisposta e com dor nas pernas. A minha enfermidade é física e moral” (JESUS, 1963, p.
81).
Um dos poucos momentos que Carolina fala sobre si (em relação aos fatos narrados
sobre os moradores da favela) é quando ela registra sobre seus sentimentos. “Quando fui
almoçar fiquei nervosa porque não tinha mistura” (JESUS, 1963, p. 100) Carolina ficava com
raiva dos acontecimentos que a rodeia diariamente, por perseguirem seus filhos “O que
aborrece-me é elas vir na minha porta para perturbar a minha escassa tranquilidade interior...
(JESUS, 1963 p. 13), com a vizinhança que acontecia de tudo um pouco, com o trabalho que
era exaustivo, [...]” eu enfrento qualquer tipo de trabalho para mantê-los” (JESUS, 1963, p.
15), e principalmente com a fome, como dito anteriormente neste artigo na qual ela a
considerava como “uma parceira inseparável!”
De todos os momentos e acontecimentos registrados por Carolina, percebemos que um
dos mais importantes e que trazia paz para a mesma era quando escrevia em seu diário. Nos
raros momentos vagos que ela tinha durante o dia ou a noite antes de dormir, ou, ao ser
acordada pelo barulho da vizinhança, ela se acalmava quando escrevia, “[...] gosto de ficar
sozinha e lendo. Ou escrevendo” (JESUS, 1963, p. 23). Fato este que vai de encontro com a
famosa frase que Calligaris (1998) cita em seu texto, Verdades de Autobiografias e Diários
Íntimos, “Começando um diário, já concordava com a ideia de que a vida seria mais
suportável se eu a olhasse como uma aventura e um conto.
Carolina parecia conhecer estes estudos, pois era claramente assim que ela agia.
Através deste comportamento em muitos momentos de desilusão da vida, quando pensava em
se suicidar, pois a vida parecia não ter mais sentido. Ela refletia e percebia que já havia
passado por momentos piores então reascendia a chama da esperança de um dia seus textos
seriam publicados e ela iria poder usufruir de uma vida mais digna para ela e os filhos.

Considerações finais

Este artigo teve por objetivo demonstrar o espaço autobiográfico na obra Quarto de

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Despejo – Carolina Maria de Jesus, bem como a performatividade constituída entre sujeito e
local social.
Carolina utilizou-se das palavras como uma ferramenta que possibilitasse lutar contra as
diversidades que a vida na favela apresentava. Em contrapartida, diferente às personagens dos
contos comuns, Carolina não é uma protagonista ficcional, mas sim uma mulher à beira do rio
Tietê, ou seja, à margem da sociedade paulista dos anos 50. Carolina queria mostrar ao mundo
a realidade dos pobres que residiam nas favelas brasileira que só eram lembrados pelo poder
público em épocas de eleições, depois eram esquecidos e abandonados à própria sorte.
Vivendo na mais profunda miséria.
Assim, a autobiografia pode estabelecer a interpretação do narrador na busca da vivência
de outras pessoas, uma maneira de ingressar intimamente na vida do outro, localizando-se no
tempo e no espaço, concedendo-lhe seu lugar na história, conhecimento que decorre de
variadas origens, por meio ainda de entidades de sistemas ou jogos de verdade.
Conclui-se que o ápice autobiográfico ocorre como um alinhamento entre os dois
sujeitos envolvidos no processo de leitura, nos quais eles determinam um ao outro, por
substituições reflexivas mútuas. Na obra Quarto de Despejo, esse momento acontece quando
o leitor consegue compreender de forma imprescindível a vivência de Carolina com muita
clareza que somos capazes de nos sentirmos no lugar descrito pela autora, em certos
momentos é possível sentir a fraqueza e até mesmo a fome que assola os favelados do
Canindé.
Assim, não se escreve para deixar guardado, ou para uma memória futura; mas se escreve
para uma releitura ou para um aconselhamento, ou no máximo para uma memória presente.

Duro é o pão que comemos. Dura é a cama que


dormimos. Dura é a vida do favelado (JESUS, 1963, p.
37).

Referências

AUSTIN, John L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Trad. Prof. Danilo Marcondes de
Souza Filho / Porto Alegre: Artes Médicas. 1990.136p.

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. In: LOURO,
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Autêntica, 2001. p. 110-125.

BRITO. L. T. A noção da performatividade para pensar os sentidos atribuídos ao


masculino no espaço da educação física escolar. Disponível em
http://www.uneb.br/enlacandosexualidades/files/2015/07/Trabalho-Enla%C3%A7ando-
Sexualidades-1-2015.pdf. Acesso em: 03/05/2017.

CALLIGARIS, C. Verdades de autobiografias e diários íntimos: estudos históricos. 1998 -


21.

DE MAN, Paul. Autobiography as self-defacement. In: DE MAN, Paul. Rhetorics of


Romanticism. New York: Columbia University Press. 1984.

JESUS, C. M. Quarto de despejo: diário de uma favelada. Edição Popular, 1963. 160p.

LEE. H. O. Uma minúscula imitação da morte: espaço autobiográfico em Yuko Mishima e


efeitos performativos. Itinerários, Araraquara, n. 40, p.185-199, jan./jun. 2015.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Trad. De Jovita Maria


Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte. Ed. UFMG,2008. (Coleção
Humanitas).

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