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As eleições 2018 e o fanatismo religioso

18 de outubro de 2018

Dom Sílvio Guterres Dutra


Bispo Diocesano de Vacaria-RS

“Por causa do Evangelho de Jesus Cristo”

Mensagem dirigida às comunidades, pastorais, movimentos, lideranças e ao povo de Deus


peregrino da Diocese de Vacaria.

Segundo o dicionário, “Fanatismo religioso é uma forma de fanatismo


caracterizada pela devoção incondicional, exaltada e completamente isenta de
espírito crítico, a uma ideia ou concepção religiosa. Em geral o fanatismo religioso
também se caracteriza pela intolerância em relação às demais crenças religiosas. Um
fanático religioso é, muitas vezes, um indivíduo disposto a se utilizar de qualquer
meio para firmar a primazia da sua fé sobre as demais”.

Ciente de que posso estar me colocando diante da crítica impiedosa, mas


impulsionado ainda mais por uma consciência que me diz que aquilo que não se diz na
hora certa se deve calar depois dos fatos ocorridos, e de que em certas circunstâncias a
omissão pode ser o maior dos pecados, decidi emitir minha opinião sobre a mistura da
religião com a política neste momento do nosso amado Brasil. Prefiro correr o risco do
erro de avaliação do que estar para o rebanho como uma “sentinela adormecida”, que
embora veja o lobo se aproximando não cumpre sua missão.

O recende dia de Nossa Senhora Aparecida, foi muito intenso para mim. Enquanto
viajava pelas estradas da nossa diocese de Vacaria, na direção das comunidades, minha
mente, quase que independente de minha vontade, voltava toda hora ao fato de que nossa
querida padroeira já foi vítima, ao menos duas vezes, do fanatismo religioso. Em 1978,
um homem se dizendo enviado por Deus, destroçou a pequena imagem de Nossa Senhora
em mais de duzentos pedaços; há alguns anos atrás um pastor fanático desrespeitou
grosseiramente a representação de Nossa Senhora (sua imagem) com uma sequência de
chutes em um programa de televisão.

Outra experiência recente de fanatismo, dentro da própria Igreja Católica, fez com
que indivíduos instruídos por gurus das redes sociais, tenham agredido a CNBB como se
ela fossa composta por moleques imaturos que não sabem o que fazem. Se tudo isso não
bastasse, o grande Papa Francisco tem sido alvo de ataques ferrenhos contra a sua pessoa.
Em todos estes casos podemos detectar uma doença espiritual/psicológica que revela a
ausência de discernimento e de juízo equilibrado.

De todas as possíveis manifestações fanáticas, das quais a primeira vítima é sempre


o próprio uso da razão (o fanático se nega a raciocinar por que isso seria muito perigoso),
o fanatismo religioso é o pior, pois atinge o cerne da pessoa, atinge a sua dimensão mais
íntima, sagrada e transcendente. Como dialogar com uma pessoa que está certa, sem uma
mínima chance de equívoco, de que é Deus que a manda dizer o que diz e fazer o que faz?
O fanatismo no futebol e o próprio fanatismo ideológico da política, de longe não são tão
prejudiciais quanto o religioso. Famílias e comunidades que convivem com pessoas que
se deixaram fanatizar sabem bem o que isso significa. Imaginemos agora, por exemplo,
o estrago que faz misturar a doença religiosa com a ideológico/política! Que Deus nos
acuda!

O atual fenômeno do fanatismo religioso, misturado com a política, tem se


caracterizado por algumas causas (bandeiras) defendidas a “unhas e dentes” sobre as
quais é praticamente impossível se dizer qualquer coisa sem ser condenado ao “fogo dos
infernos”. Vou me referir a duas delas:

A BANDEIRA DO ANTICOMUNISMO – Aqui não se trata absolutamente de


defender o pensamento comunista, questão já tratada adequadamente pela Igreja, mas é
necessário se dar conta que ao reduzir a responsabilidade de todos os males do mundo
aos comunistas se está fechando os olhos para a realidade que é muito diferente. O
problema do nosso tempo é bem outro que o comunismo, é a ditadura do “deus mercado”,
o verdadeiro “deus” do capitalismo selvagem que vem devastando valores, destruindo
pessoas, famílias, cooptando igrejas e movimentos eclesiais e colocando em xeque a
possibilidade de sobrevivência do planeta. A idolatria em torno do “deus mercado” é
tão absurda que o torna a única divindade inatacável. Pode-se debochar e desprezar
qualquer outra representação religiosa, que isso é tido como liberdade de manifestação,
porém se alguém ousar criticar o “deus mercado” será perseguido de morte como o
profeta Elias depois de acabar com os profetas de Baal. De fato, o capitalismo não nega
a existência de Deus (o que é simpático aos crentes desavisados) mas o que ele faz é
substituir o Deus de Jesus Cristo pelo “deus dinheiro/lucro”.

Esta mesma causa anticomunista, que possui seus méritos, serve para que a doença
espiritual (fanatismo) leve seus adeptos a pensar que o “Mal” está sempre fora da sua
igreja, que é sempre um perigo que vem de fora e que deve ser combatido. Tudo o que
aprendi sobre o Demônio até hoje, me faz lembrar que ele é tudo, menos ingênuo e burro.
Com isso quero dizer que a pessoa não fanatizada é capaz de perceber primeiro o pecado
que está dentro de si e da sua própria instituição. Esta tarefa é a mais difícil e mais
dolorosa, mas também é a mais equilibrada e madura, e é a única que pode curar o
problema na sua raiz. Proponho uma questão concreta para reflexão: o que faz mais mal
às famílias, às igrejas e à própria experiência de fé, a proximidade com um ateu ou a
existência de graves escândalos de ministros no interior das próprias igrejas?

O Papa Francisco, modelo de lucidez e equilíbrio para o nosso tempo, tem o foco
de suas principais preocupações noutro alvo. No seu documento do início do ministério
ele afirma: “Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria
situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio
provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a
especulação financeira. Por isso, negam o controle dos Estados, encarregados de velar
pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que
impõe de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras…” (EG 56). Com
estas palavras não me prece que o Papa entenda que o risco do comunismo seja o único,
e muito menos o maior perigo da atualidade.

A BANDEIRA ANTIABORTISTA – Antes que alguém aponte sua arma na


minha direção, dou testemunho da minha firme decisão de ser um missionário da sagrada
e intocável vida que é dom de Deus. Uma recente experiência de milagre que aconteceu
entre meus familiares, em torno do nascimento da Cecília (minha sobrinha-neta)
chancelou para sempre meu amor a vida desde sua origem. Nenhuma ideologia, ciência,
medicina, e nenhum médico está acima da vida ou a pode trata-la como objeto ou coisa.
A questão da doença espiritual (fanatismo) aqui não é a de assumir a indispensável luta
contra o aborto, mas a cegueira que impede o crente de pensar mais além. A vida não vale
somente enquanto está no útero materno, ela vale sempre. Hoje, a fixação exclusiva nesta
causa serve muito mais aos projetos do grande poder econômico que, neste caso,
instrumentaliza uma causa nobilíssima dos cristãos para impor seus mesquinhos
interesses políticos.

Novamente é o Papa Francisco que convoca à lucidez e afirma no seu mais recente
documento sobre o chamado à santidade no mundo atual: “Mas é nocivo e ideológico
também o erro das pessoas que vivem suspeitando do compromisso social dos outros,
considerando algo superficial, mundano, secularizado, imanentista, comunista,
populista; ou então relativizam-no como se houvesse outras coisas mais importantes,
como se interessasse apenas uma determinada ética ou um arrazoado que eles
defendem. A defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser clara, firme e
apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da pessoa humana, sempre
sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente de seu
desenvolvimento. Mas igualmente é sagrada a vida dos pobres que já nasceram e se
debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia
encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura e
em todas as formas de descarte. Não podemos nos propor um ideal de santidade que
ignore a injustiça deste mundo, onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem
sua vida às novidades do consumo, ao mesmo tempo que outros se limitam a olhar de
fora enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente” (GE 101). Entendo que
Francisco está nos pedindo para não permitir que uma questão tão importante como a
sacralidade da vida seja instrumentalizada, a ponto de os mesmos que defendem
ferrenhamente a vida do nascituro sejam os que pregam o ódio, a violência, a tortura, o
racismo, a homofobia etc.
Os pensamentos acima são frutos da inquietação de um pastor que se angustia muito
com os fenômenos do nosso tempo e que entende que não tem o direito de se calar.
Silenciar sobre estes temas que estão pautando o momento político brasileiro seria para
mim muito mais difícil de administrar, do que correr o risco do equívoco tanto no mérito
da minha manifestação quanto na interpretação dos que a lerem. Fico à disposição para
todo tipo de crítica e de discordância, contanto que não seja mera agressão. Vale lembrar
o que dizia Dom Helder Câmara: “se discordas de mim, tu me enriqueces”.

O que eu quero crer de verdade é que não cheguemos ao ponto de ter que pedir
socorro aos ateus, para que nos livrem do fanatismo de cristãos adoecidos que estão
prestes assumir o governo do nosso país.

O que exponho aqui não pretende ser toda a verdade, muito menos a única verdade.
É apenas minha palavra.

Fonte:

https://www.diocesevacaria.com.br/as-eleicoes-2018-e-o-fanatismo-religioso/

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