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A LINGUAGEM DA EDUCAÇÃO
Tradução de
Balthazar Barbosa Filho
(da Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo)
fS ÍB L I O T E C A S E T O RI AL D È*
j ED U C A C A O - UFRGS
CAPÍTULO I
AS DEFINIÇÕES EM EDUCAÇAO
predefinicional
que podem ser maisdos termos
ou menosqueúteis
definem.
para a Elas legislam
discussão, queconvenções
podem
ser observadas de maneira consistente ou inconsistente, e qüe
podem, tomadas globalmente, ser ou não coerentes. Mas jamais
poderão ser justificadas, nem rejeitadas, a justo títu lo , con
siderando-se a exatidão com que espelham um uso predefini
cional. Uma vez estabelecido que uma definição estipulativa
ou que um conjunto de tais definições é formalmente coerente,
e foi bem escolhida do ponto de vista pragmático, é irrelevante
seguir argumentando contra ela sobre o fundamento de que
não consegue refletir a significação normal do ou dos termos
definidos. Nesse sentido especial, pode-se dizer que as definições
estipulativas são matéria de escolha arbitrária.
Há, no entanto, um outro tipo de definição geral, a que
chamaremos aqui ‘descritivo’, em contraste com o tipo
estipulativo. Como esse último, as definições descritivas também
podem servir para expressar as convenções que governam as
discussões; além disso, contudo, elas sempre pretendem explicar
os termos definidos por meio de uma explanação do seu uso
prévio. De fa to, as definições descritivas são freq uentemen te
apresentadas em resposta a pedidos de elucidação. A pergunta «O
que significa esse termo? » tenciona, tipicamente, obter como
resposta alguma regra explicativa ou alguma descrição do
funcionamento prévio do termo, isto é, algo que tem a natureza
de uma definição descritiva. Toda definição desse genero pode ser
construída como uma fórmula que torna equi vale nte — de um
modo q ue pretende espelhar o uso pr edefi nici onal - um termo
definido a ou tro s termo s, os definientes. E esse fat o de espel har
que — assim se espera — proporci onará a compr eensão da
significação do termo definido. Uma ilustração nos é dada pela
definição do term o ‘dou trin aç ão ’ como ‘a aprese ntação de
questões como se elas tivessem uma única face’8. Essa e outras
definições análogas de ‘ do utr ina ção ’ são con stantem ente
apresentadas numa tentativa de clarificar o termo tal como ele é
aplicado ordinariamente e da maneira a mais evidente. Tais
definições
prévio objetivam
do term o, um aderivar umapossa,
regra que regra ao
geral a partir
mesmo do resumir
tem po, uso
esse uso e clarificá-lo, relacionando-o com o uso de outros termos
já familiares; trata se de uma regra que pode, portanto , ser
empregada para ensinar a alguém a maneira como o termo é
normalmente utilizado.
As definições descritivas, por conseguinte, ao contrário das
definições estipu lai ivas, não são simples exped ientes abreviatórios
adotados por conveniência e elimináveis teoricamente. Elas não
se propõem adaeconomizar
explicativas a elocução,
significação. mas que
Daí resultar a fornecer
não háelucidações
nada, entre
as definições descritivas, que corresponda à estipulação inventiva,
dado que os termos definidos mediante estipulações inventivas
não possuem signi ficações prévias a serem explicadas . En tre ta nto ,
dado um termo que possui um uso prévio, a estipulação não-in-
ventiva poderá, com o propósito de facilitar a comunicação,
aplicá-lo a utilizações não familiares, ao passo que a definição
descritiva limitar-se-á a oferecer uma explanação geral do seu uso
prévio. Se, à maneira da lógica moderna, encararmos a definição
como uma fórmula, na qual o termo definido ( definiendum ) apa
rece à esquerda e o termo ou conjunto de termos definientes ( de-
finiens ) aparece à direita, ambos separados por algum signo espe
cial (‘ = df ’) colocado entre eles (por exemplo: ‘doutrinação = df
a apresentação de questões como se elas tivessem uma única face’),
nesse caso, poderemos então encarar a diferença entre definições
estipulativas e descritivas como uma diferença na direção do
interesse que se atribui à fórmula como um todo. Enquanto o
interesse, na estipulação, vai da direita para a esquerda, isto é,
volta-se para uma elocução mais condensada que utiliza um
vocabulário aumentado, na definição descritiva, ao contrário, o
interesse se move da esquerda para a direita, isto é, em direção a
uma elocução explanatória dilatada que emprega um vocabulário
mais reduzido.
certamente irrelevante
uma convenção argumentar
abreviatória que utilidade
de muita a definição
ou não
que constitui
ela não
respeita a ortodoxia do uso predefinicional. O que deve ser
investigado, ao contrário, é a questão prática ou moral: «Deve-se
dos termos constituintes e aos princípios de ação associados a eles, e não às
propriedades emotivas dos próprios termos. Assim, essa força prática não é
explicada aqui como uma utilização consciente ou inconsciente da definição
“num esforço para assegurar, mediante essa interação entre significação
emotiva e descritiva, uma reorientação das atitudes das pessoas” (Stevenson,
op. cit., p. 210); ela aparece aqui, ao contrário, como um efeito “cognitivo”,
como uma função das referências e das relações lógicas existentes entre os
termos e as afirmações envolvidas. A ênfase no caráter persuasivo sugere que,
quando uma definição vai além da sua função explicativa, a sua função
excedente não consiste em suscitar novas questões, mas, antes, em causar
novos efeitos no ouvinte. A ênfase no caráter programático, por outro lado,
sugere que as incidências de uma definição sobre a prática social podem,
muitas vezes, ser exprimidas como questões debatíveis, embora elas não
constituam problemas de significação, mas questões práticas ou morais.
Enfatizar as definições programáticas de preferência às persuasivas não é negar
a importância dessas últimas; mas, pelo menos em parte, constitui uma
tentativa de sublinhar a relevância “cognitiva” das definições para a prática
social, a qual tem sido, parece-me, indevidamente negligenciada recentemente,
a despeito do significativo papel que desempenha no discurso comum.
conceder a T o tratamento normalmente dado aos tipos de
trab alh o den om inado s, até o mom ento , ‘profissões’ ? ». As
considerações que são apropriadas para essa questão serão
relevantes para a apreciação da própria definição proposta10.
A pa rti r da discussão pre ced en te fica claro que, emb ora as
definições programâticas se assemelhem às estipulativas por não
estarem limitadas
estipulações pelo uso
por levantarem prévio,
questões diferem,
de ordem contudo,
moral das
ou prática.
Já assinalamos que mesmo as estipulações não são totalmente
arbitrárias. Elas podem ser criticadas segundo considerações
formais, tais como as relativas à consistência, e apreciadas com
respeito à sua utilidade enquanto expedientes de comunicação;
por exemplo, sei auxiliam a memória, se não se prestam a confu-
sões por introduzir associações irrelevantes etc. Mas elas não
suscitam questões morais que vão além da discussão imediata;
não reclamam uma avaliação da prática, uma apreciação dos
engajamentos que poderiam acarretar, ou a feitura de decisões
extralingüísticas. Portanto, constitui um erro, em geral, supor que
toda definição é inteiramente arbitrária, e é um erro ainda rhais
sério supor que todas elas, com exceção das definições descritivas,
são limitadas somente por considerações de consistência ou de
conveniências de comunicação. As definições programâticas, em
especial, podem ser utilizadas para expressar graves decisões
morais.
Podemos então dizer que as definições programâticas são
semelhantes às definições descritivas por provocarem questões
que vão além dos problemas de consistência e de conveniência.
Mas o gênero de questão que é levantada por um desses tipos de
definição difere notavelmente do gênero de pergunta que o outro
suscita. De um lado, a qu estão reside em saber se a definiç ão que
temos diante de nós concorda ou não com o uso lingüístico
prévio; de outro, ela consiste em saber se o programa exprimido
pela definição deve ou não ser adotado.
Estamos agora em condições de resumir a comparação entre
os nossos três tipos de definição geral, o que podemos fazer
afixando uma etiqueta, de maneira aproximada, ao interesse
10. Para um tr atamen to de questõ es co ne xas , ver Cogan, M. L.: “ The problcm o f
defining a profession”, Ann als o f th e Ame rica n A ca d em y o f Po liti ca l and
Social Science, 297:105, (January) 1955;Cogan, M. L.: “Toward a deflnition
ot' profession”, Harvard Ed uc ati on al Re vie w, 23:33, (Winter) 1953; e
Lieberman, M.: Edu cati on as a Profe ssion. Englewood Cliffs, N. J.,
Prentice-Hall, Inc., 1956.
subjacente em cada um deles. O interesse das definições estipula-
tivas é comunicatório, isto é, elas são oferecidas na expectativa
de facilitar o discurso; o interesse das definições descritivas
é explicativo, isto é, elas se propõem a clarificar a aplicação
normal dos termos; e o interesse das definições programáticas é
de ordem moral, isto é, elas tencionam dar expressão a programas
de ação.
Obviamente, não há absolutamente nenhum interesse em
opor uns aos outros esses três tipos de definição geral, ou em
opor qualquer um deles, ou todos ao mesmo tempo, às definições
científicas . Os prop ósitos a que cada um deles serve sãó todo s
perfeitamente legítim os, e nãò há necessidade d% decidir-se a
favor ou con tra algum deles, ou de classificá-los a todo s n um a
escala de valores qualq uer. O que é preciso, ao contr ári o, é que a
apreciação crítica de uma definição pertencente a qualquer um
dos tipos seja orientada para as questões que estão em jogo na
ocasião da sua utilização, e é para esse fim que poderão ser úteis
as distinções anteriores estabelecidas entre os tipos de definição.
Existem, no entanto, certas complicações que deveremos
enfrentar ao considerar as relações entre os vários tipos de defini
ção geral. Foi sublinhado acima que uma mesma equação ou
fórmula definicional pode, em ocasiões diferentes, exprimir uma
definição estipulativa, descritiva ou programática, dependendo do
contexto. Não poderia haver, além disso, uma superposição de
diferentes tipos definicionais numa mesma ocasião e numa mesma
fórmu la defini cional? A mesma def inição não pod eria, num
mesmo contexto, pertencer a mais de um tipo?
Se consideramos essa possibilidade, em primeiro lugar com
relação às definições estipulativas e descritivas, constatamos que
qualquer superposição fica excluída. As definições descritivas,
com efeito, se propõem a descrever o uso predefinicional, ao
passo que as definições estipulativas não o fazem. Assim,
nenhuma equação definicional dada poderá ser estipulativa e
descritiva ao mesmo tempo.
Mas, e com relação a uma superposição de tipos estipulativo
e prog ramá tico? Se considerarm os, prime iram ente, a estipulação
inventiva, parece novamente que a possibilidade fica excluída,
porquanto o term o que é definido num caso desse gênero, não
possuindo absolutamente nenhuma aplicação prévia, não pode, a
fortiori, de staca r certos ob jetos para os quais a prá tica se orien ta
de um modo particular. Assim, uma definição de um termo como
esse é incapaz de exprimir um programa, sugerindo uma alteração
ou uma perpetuação da prática que lhe está associada. E
tampouco poderá o termo definido, se a frase definiente denota
objetos invariavelmente associados a alguma orientação prática,
servir para sugerir uma alteração ou uma perpetuação de tal
orie ntaç ão. Com efe ito, para fazer isso , ele já deveria possuir
alguma aplicação inicial própria que diferisse da aplicação da
frase definiente ou que com ela coincidisse. Ora, é essa aplicação
inicial, justamente, que falta à estipulação inventiva.
Por outro lado, quando examinamos a possibilidade de uma
superposição, numa ocasião determinada, de uma estipulação
não-inventiva e de uma definição programática, fica evidente que
isso efetivamente ocorre com freqüência. Mais ainda: é evidente
por que razão ela ocorre, pelo menos em numerosas ocasiões.
Para dizê-lo sucintamente: a expressão de um programa particular
pode dem andar um novo ap arato linguístico; e um a definição
determ inad a pode. de um só traço, criar esse apa rato bem como,
ao mesmo tempo, dar expressão ao programa. Exemplos disso
encontram-se abundantemente em escritos que tratarii de temas
sociais, mas uma ilustração educacional deverá ser suficiente aqui.
Descobrimos muitas vezes, em trabalhos recentes sobre a
educação, que o termo ‘currículo’ é definido como se referindo à
totalidade das experiências de cada estudante sob a influência da
esc ola11. Ora, essa definiç ão tem sido, a justo tít ulo , criticada
como vaga e difícil sob inúmeros aspectos. Mas o ponto que nos
concerne aqui é bem diferente. Deve-se notar que a definição
estabelece, como uma consequência pretendida, que dois alunos
quaisquer
jamais jamais duas
existirão terãoescolas
o mesmo
com currículo
o mesmo e, além disso,
currículo, cadaque
escola
tendo tantos currículos quantos alunos tiver. Essas consequências
violentam, de maneira patente, o uso predefinicional padrão do
termo ‘currículo’. Esse uso, com efeito, indubitavelmente nos
autoriza a falar com veracidade do currículo (único) de uma
determinada escola, ou de várias escolas com o mesmo currículo,
autorizando-nos igualmente a dizer que o currículo de uma escola
permanece estável por um período maior ou menor, durante o
qual a sua população de alunos se modifica completamente.
11. Compare-se com o artigo “Curriculum develo pme nt’*, contr ibu ição de O. I.
Frederick ao trabalho de Monroe, W. S., editor : Encyclop edia o f Educatio nal
Research . New York, The Macmillan Company, 19 41 , no qual se afirma que,
“na literatura educacional recente e neste informe, considera-se que o
currículo escolar é todas as experiências efetivas dos alunos sob a influência
da escola. Sob esse ponto de vista, o currículo de cada aluno é, em certa
medida, diferente do currículo de todos os demais. Considera-se que o
programa de estudos constitui um sugestivo guia escrito que os professores
utilizarão para planificar e ensinar o currículo” (Passagem citada com
autorização da Macmillan Company).
Essa definição não é uma estipulação inventiva, pois o termo
‘currículo’, como acabamos de ver, tem efetivamente um uso
prévio. Tam pouco se trata simplesmente de um a definição
descritiva que acontece ser mal sucedida, uma tentativa
defeituosa de espelhar o uso predefinicional. Com efeito, se as
transgressões desse uso, que acabamos de assinalar, forem explici
tadas, elas não serão tratadas como se fossem contra-exemplos de
uma hipótese descritiva que foi proposta. Ao contrário, elas serão
tipicamente consideradas como sintomas adicionais do caráter de-
liberadamente distintivo da definição, a qual, então, será de hábi
to sustentada por outr os argumentos. Esses argumentos, em geral,
deixam claro que a definição é programática, que o seu objetivo
consiste, precisamente, em aplicar de um modo estranho o termo
familiar, a fim de canalizar em ou tra d ireção a prá tica qu e está as
sociada a ele. Esse objetivo programático reside, em particular,
em dilatar a responsabilidade da escola —até então limitada ao
seu assim chamado plano formal de estudos —de forma a abran
ger o desenvolvimento individual, social e psicológico dos seus
alunos. A apresentação desse objetivo programático, todavia, im
põe que se faça referência repetida ao domínio de responsabilida
de ampliado que se tem em vista, e, para facilitar tal referência, a
mesma definição estipula qual é a nova utilização do termo ‘cur
rículo’ que será apropriada. Assim, numa mesma ocasião, a defini
ção serve simultaneamente como programática e como estipulati-
va (no sentido não-inventivo dessa última). Em verdade, a neces
sidade da estipulação em questão nasce do programa defendido.
Ao avaliar essa definição de duplo objetivo é manifestamen
te fora de propósito insistir sobre o fato de que ela violenta o uso
predefinicional. A definição, ao contrário, deve ser apreciada si
multaneamente enquanto programática e enquanto estipulativa.
Devemos colo car ao m esmo tem po a pergun ta prática: “ A respon
sabilidade da escola deve abranger o desenvolvimento individual,
social e psicológico dos seus alunos? ”, e a pergunta lingüística:
“O uso estipulado do termo ‘currículo’ é consistente e convenien
te para os propósitos que animam a discussão do autor? ”. Nenhu
ma das duas perguntas, por si só, será suficiente para a apreciação
da definição, pois uma resposta positiva poderia s er adeq uad a para
uma delas mas não para a outra. Ou seja, poderiamos concordar
em que o programa é acertado, sem, no entanto, admitir que a
estipulação seja consistente e útil para a discussão em pauta. E —
o que é mais grave —poderiamos concordar em que a estipulação
é formalmente correta e é conveniente para os propósitos da dis- (25
cussão do a uto r, mas achar, ao mesmo temp o, que o program a ex- ^ —
primido é errado. A fim de perm itir a manifestação de divergên-
cias tão importantes como essas, torna-se necessário levantar am
bas as questões com relação a definições do tipo que estivemos
considerando.
Fica então bem claro que, se o autor de uma definição
dessas consegue mostrar que o programa proposto é acertado,
ainda não mostrou, com isso, que as suas estipulações são úteis.
Nem,são
úteis seguramente, estará ele,noseseu
as suas estipulações se concentrar em mostrar quão
discurso, demonstrando, de
modo algum, que o programa expressado vale a pena. A questão
linguística e a questão moral ou prática devem ser, uma e outra,
ponderadas independentemente.
Entretanto, nos casos de uma superposição de definições de
tipos estipulativo e programático, sucede com freqüência que os
argumentos procedem em direções opostas, porque a necessidade
que apontamos acima foi, de fato, esquecida. Desse modo, alguns
críticos da definição
concentraram de ‘currículo’,
muitas vezes em apontar mencionada
o seu caráter há pouco,
vago se
e várias
outras dificuldades, ao passo que os seus defensores retrucaram
amiúde com recomendações morais do programa que ela veicula.
No entanto, no caso de definições em que existe uma superposi
ção estipulativa e programática, há certos traços típicos que nos
ajudam a lembrar da necessidade de uma avaliação dupla. Assim,
o caráter estipulativo dessas definições se faz usualmente evidente
graças a indícios explícitos no contexto; por exemplo, a defini
ção pode
com ser expressamente
o propósito de facilitar aintroduzida comoque
discussão, sem umahajaconvenção
nenhuma
tentativa de justificá-la por referência a um uso predefinicional. E
mais: o próprio fato de que esse uso normalmente é alterado por
essas definições (não-inventivas) sugere que elas possam ter um
outro objetivo, especialmente um objetivo prático. Com efeito, a
estranheza mesma do uso estipulado nos põe em alerta, e isso nos
leva a perg untar se algo mais do que mera estipulação n ão podería
estar envolvido.
Esse tipo de auxílio mnemônico, incorporado à própria defi
nição, geralmente não se encontra no caso restante de superposi
ção (e talvez o mais interessante) que ainda precisamos examinar,
a saber, o caso de definições que são simultaneamente descritivas
e programáticas. É óbvio que não.haverá aqui nenhum dos indí
cios contextuais que são apropriados para as estipulações; além
disso, embora a evidência que for oferecida de uma correspondên
cia com o uso prévio possa ser apenas esboçada, normalmente ha-
. verá aqui um a preten são clara de co rres ponder a esse uso. É evi-
26J dente que pode haver violações reais do uso prévio p or parte de
definições descr itivas — o qu e o corre qu an do elas são inexatas.
Com efeito, devemos recordar que as definições descritivas são
aquelas que pretendem espelhar com exatidão o uso predefini-
cional; ora, algumas delas não conseguem realizar aquilo a que se
propõem. Dessa maneira, as definições descritivas inexatas tam
bém apresentarão, de fato, violações de um uso prévio, e essas
violações poderão (dir-se-á talvez) nos fazer lembrar da possibili
dade de uma interpretação programática. Mas a nossa convicção
de que essa inexatidão é involuntária torna bem menos provável
que ela nos alerte e sugira uma interpretação muito diferente, isto
é, uma in terp reta ção programática. A definição em que stão, af inal,
tem toda a aparência de uma fórmula que se pretendia descritiva
e que malogrou. O fato de que a violação do uso prévio não ofe
rece aqui nenhum indício sólido para sugerir uma interpretação
programática, constitui, talvez, a razão pela qual os casos de
superposição descritiva-programática são, com tanta freqüência,
mal interpretados, sendo, por conseguinte, fontes de confusão em
debates sobre temas sociais. Passemos agora ao exame dessa
forma de superposição.
Já assinalamos que uma definição que consigna um dado ter
mo exclusivamente às coisas, e somente a elas, a que se aplicou até
então, mesmo assim pode estar exprimindo um programa. Supo
nhamos , p or exemplo, que alguém queira s e opo r ao programa e x
presso pela definição de ‘currículo’ que consideramos anterior
mente. Visto que aquela definição desvia do uso prévio do termo,
veiculando, assim, a idéia de que é desejável expandir a responsa
bilidade da escola, seria perfeitam ente natural exprimir oposição
a tal expansão propondo-se uma contradefinição que espelhasse
com exatidão o uso prévio e que pretendesse fazer isso, e que,
além disso, restringisse, de fato, o currículo ao plano formal de
estudos da escola. Ambas as partes, nesse caso, estariam de acordo
sobre o princípio de que a escola é responsável pelo currículo,
mas, interpretando de maneira diversa o alcance do currículo,
indecisos
em pauta em questão
bem poderáenvolverem práticas Essa
ser programático. alternativas , o será
situação ponto
ilust rada nu m instant e.
Nesse p onto, entretanto , é im portan te assinalar com especial
destaque o fato de que definições alternativas podem muito bem
ser ambas exatas, e que não devemos, portanto, supor que a cada
termo corresponde uma, e somente uma definição correta. De
resto, isso não acontece apenas no caso das definições gerais. Mes
mo em ciência, a rivalidade (pelo menos em relação ao uso cientí
reais de ‘o derivar
poderíam estado’, daí
‘sociedade’, ‘homem’ sociais
os imperativos etc., supuseram que
que deveríam
governar aquelas situações recentemente surgidas que estão a
exigir decisão. Se a nossa análise anterior é correta, essa pretensão
é totalmente equivocada. Com efeito, em primeiro lugar, existem
maneiras altern ativas de definir descritiv ame nte ‘o est ado’,
‘sociedade’, ‘homem’ etc., todas elas igualmente exatas com
relação ao uso ou à significação prévios desses termos, mas
diferentes no modo como legislam os novos casos. Em segundo
lugar, além disso, há sempre a possibilidade de alterar, com vistas
a veicular um programa prático, até mesmo o uso padrão prévio.
(Ilustramos essa possibilidade ao discutir a superposição, no caso
do termo ‘currículo’, de uma estipulação não-inventiva e de uma
definição programática.) Em terceiro lugar, finalmente, as
definições dos termos sociais são incapazes, isoladamente, de
produzir quaisquer consequências práticas; precisam ser suple
mentadas contextualmeilte por princípios de ação. (No caso do
‘currículo’, lembremos, por exemplo, o princípio segundo o qual
o currículo é coextensivo à responsabilidade da escola.) Somente
em ligação com tais princípios é que as definições sociais efetiva
mente servem para veicular conseqüências práticas. Sempre have
rá, portanto, a possibilidade de recusar essas conseqüências, acei
tando a definição como exata mas negando os princípios práticos
. que são pressupostos. Em suma; o salto que vai da definição à
ação é largo e arriscado, mesmo nos casos em que a definição, en
qu an to elucidaçã o da significação, for inqu estio nav elm ente ex ata12.
As considerações acima são altamente relevantes no que
concerne à utilização de definições em discussões de educação.
Por exemplo, proporcionar uma definição do termo ‘educação’
em contextos não científicos equivale, com muita frequência, a
veicular um programa, bem como, no melhor dos casos, a afirmar
uma equação que pode ser exata com respeito ao uso prévio.
31) Ainda quando tal definição for exata, essa exatidão não pode ser
utilizada como uma medida do valor do programa educacional
expressado. Programas diferentes são comp atíveis com a exati
dão, e a justificação de qualquer programa constitui, portanto,
um problema independente .
Sem dúvida, as definições de termos em educação não se
encontram, em geral, encaixadas numa rede de regras práticas tão
precisa como aquela em que estão as definições legais; mas
quando em combinação com princípios de ação amplos e
informais (embora socialmente fundamentais), elas servem muitas
vezes, apesar disso, com o veículos para debate r novos programas
de educação, novos pontos de vista sobre o método, sobre os
objetivos ou sobre o conteúdo da educação. Já vimos um
exemplo no caso do termo ‘currículo’. Pode-se dizer, então, que
as definições em educação assemelham-se às definições em arte,
as quais, conquanto desprovidas de qualquer significância legal,
também servem, freqüentemente, para exprimir concepções
variáveis da t are fa do artista 13. Por exe mplo, as definições
apresentadas pelos inovadores em arte estendem muitas vezes o
uso do termo ‘obra de arte’ a novos tipos de objetos; as
12. Karl Popper, no seu trabalho The Open Society and its Enemies. Terceira
ediç ão, London , R out ledg e & Kegan Paul, Ltd., 195 7 (Primeira ediçã o,
19 45 ), criticou acerbamente o que ele cham a de ‘essenci alismo ’, ou seja, a
busca das significações essenciais dos termos básicos; o presente parágrafo no
texto inspirou-se no seu tratamento. Não obstante, o nosso texto diverge da
defesa que Popper faz da função exclusivamente abreviatória das definições,
nisto que nós admitimos aqui definições descritivas com força explicativa.
Apesar disso, o essencialismo é evitado, pois em todo o texto adota-se uma
interpreta ção . exte nsio nal da definição descritiva, permitindo definições
exatas mas diferentes de cada noção.
13. Os po nto s estabelecidos nesse p arágrafo, eu os devo a Zif f, P.: “The task of
defining a work of art”, The Philosophical Review, 62:58, (January) 1953.
contradefinições dos conservadores recusarão, ao contrário, o
termo a esses mesmos novos objetos. Ambos os conjuntos de
definições, além disso, estão muitas vezes em consonância com a
tradição artística, vale dizer, ambos estão em conformidade com
o uso prévio. A disputa, nesses casos, não pode, então, ser
considerada como uma questão que só concerne à significação de
termos. Trata-se, ao contrário, de um problema de programas
artísticos divergentes, veiculados por definições programáticas
que se encontram em oposição, as quais, ao mesmo tempo, são
exatas do ponto de vista descritivo. Uma tentativa de definir uma
obra de arte não é, nas palavras de Collingwood, «uma tentativa
de investigar e expor verdades eternas acerca da natureza de um
objeto eterno chamado Arte»; constitui, ao contrário, uma
tentativa de oferecer «a solução de certos problemas que nascem
da situação em que os artistas mesmos se encontram, aqui e
agora»14.
A educação, assim como a arte, a literatura e outros
aspectos da vida social, apresenta estilos e problemas cambiantes
em resposta a condições cambiantes. Essas últimas exigem
decisões que determinem a nossa orientação prática face a elas.
Tais decisões podem ser incorporadas na revisão dos nossos
princípios de ação ou nas nossas definições dos term os per
tinentes, ou em ambas ao mesmo tempo. No processo de
construção de novas definições para esses propósitos, não existe
nenhuma visão interna especial de significações que nos diga
como devem ser feitas as revisões e ampliações. O que importa
aqui não é uma inspeção das únicas significações autênticas dos
termos (se isso fosse possível), mas uma investigação, à luz dos
nossos comprometimentos, das alternativas práticas que estão
abertas para nós, bem como das maneiras alternativas de levar a
efeito as decisões desejadas.
O modo como escritos profissionais em educação negli
genciam muitas vezes esse ponto pode ser ilustrado pela seguinte
descrição de um novo programa p ara a educação escolar secundária:
«O currículo estava organizado em torno de quatro tipos de
atividades: projetos de narrações, projetos manuais, projetos
de jogos e projetos de excursões; oferecia-se a oportunidade
para uma avaliação contínua das atividades, sendo tal
avaliação dirigida pelos alunos. A organização desse
program a escolar derivou naturalm ente da crença em que a
14. Col ling woo d, R. G.: The Pr inci pies o f Ar t. Oxford at the Clarendon Press,
1938, p. vi, citado in Ziff, op. cit.
significação fundamental do conceito de educação consiste
em auxiliar jovens de ambos os sexos a participar ativamente
no mundo que os cerca».
A questão é posta aqui em termos de significações fundamentais.
Mas o que está, de fato, em jogo? Os casos evidentes do con ceito
‘educação’, tal como se achavam incorporados ao uso que pre
cedeu
em queo os
advento
jogos edas
as inovações
excursões, modernas,
assim comonão incluíam contínua
a avaliação os casos
dos alunos, caracterizavam o programa educacional. Mas alguns
dos casos claros, como o do presente exemplo, envolviam institui
ções especiais, uma direção global exercida por adultos, a avalia
ção dos rendimentos, e assim por diante. A presente inovação
educacional, na realidade, é, ao mesmo tempo, suficientemente
semelhante às instâncias passadas evidentes e suficientemente
distinta de tais instâncias para constituir um caso limítrofe.
Propor uma reforma educacional nas linhas da passagem
transcrita acima significa dizer que um procedimento desse tipo
deve ser tentado sob a égide das escolas. Pode-se então dizer que
essa proposta assimila o caso limítrofe aos casos passados
evidentes, deixando intactos todos aqueles princípios de ação que
formulam a nossa orientação positiva frente ao empreendimento
33) educacional. Ê o qu e a definição enun ciada te nta jus tam ente
"~iazer, insistindo, realmente, nas semelhanças, isto é , no objetivo
comum de ajudar os jovens de ambos os sexos a participar
ativamente no mundo que os circunda. Seria fácil, no entanto,
confeccionar definições alternativas que se baseassem, ao
contrário, nas diferenças, segregando a nova reforma dos casos
prévios e evidentes de ‘educação’. A questão, em suma, constitui
uma questão de prática e, portanto, exige avaliação em função
das nossas preferências e engajamentos, assim como em função
dos efeitos esperados. O que se deve fazer com relação a essa
reforma educacional proposta é, portanto, da nossa responsabili
dade prática, e algo que não pode ser decidido por uma inspeção
do conceito de ‘educação’.
Consideremos agora um último exemplo, de um tipo um
tanto mais abstrato. Em discussões educacionais, diz-se muitas
vezes que uma definição de ‘homem’ fornece diretivas para a
elaboração do currículo e para a avaliação de métodos de
educação escolarl s . E é realm ente verdade que a maneira 15
15. A esse re speito, ver, por ex em pl o, Ducasse, C. J.: “What can philo soph y
contribute to educational theory? ”, Harvard Ed uc ati on al Re vie w, 28:285,
(Fali) 1958. Ducasse pergunta quais são as várias dimensões da natureza do
segundo a qual organizamos os nossos esforços educacionais e
fazemos funcionar nossas escolas é condicionada pelas definições
predominantes da natureza humana. Não se trata, como já vimos,
de que consequências educacionais práticas possam ser derivadas
de definições exatas tomadas isoladamente, mas, ao contrário, de
que elas podem ser veiculadas por essas definições em contextos
dentro dos quais os princípios de ação relevantes são dados por
admitidos. A conclusão que muitas vezes se tira em teoria
educacional é a de que devemos, primeiramente, decidir qual é a
definição correta de ‘homem’ e que, depois disso, precisaríamos
apenas inferir as consequências educacionais práticas por meio de
uma aplicação da lógica pura.
Essa imagem, contudo, é errônea, não somente por postular
uma simples implicação dedutiva entre definições da natureza
humana e consequências educacionais práticas, mas também
porque concernentes
acima deixa de levar em conta que
às definições os vários
são aopontos
mesmoassinalados
tempo
descritivas e programáticas. Há um número indefinido de
definições alternativas de ‘homem’, um número indefinido de
maneiras de dimensionar a sua estrutura e as suas capacidades,
todas elas podendo ser igualmente exatas. Escolher um desses
dimensionamentos na base da sua exatidão e passar a decifrar daí
aquilo que deve corresponder, do ponto de vista do currículo, a
cada dimensão, como muitas vezes se faz, significa passar à
margem de toda a pergunta. Uma das bases sobre as quais se pode
escolher uma definição para propósitos educacionais deve
consistir numa consideração das conseqüências mesmas para a
prática educacional, que deverão ser esperadas como o resultado
da adoção dessa definição. O caráter programático de tal defini
ção significa que ela exige uma avaliação relativa ao programa que
ela veicula. Na verdade, uma avaliação como essa poderá inclusive
nos levar a adotar uma estipulação não-inventiva que violenta ma
nifestamente o uso prévio; e poderá seguramente nos levar a dife
renciar entre definições descritivas igualmente exatas que veicu
lam programas diferentes. É precisamente porque as definições
desse último tipo são programáticas que a sua adoção deve seguir,
e não preceder, uma avaliação moral e prática dos programas que
elas transmitem. A inspeção das significações não pode substituir-
se a essa avaliação.
CAPÍTULO II
OS SLOGANS EDUCACIONAIS
16. Deveria ser óbv io que não esto u sustentand o que uma tal organização
disciplinada seja desejável, mas apenas sugerindo que a sua ine xist ênc ia torna
mais urgente a crítica dúplice dos slogans.
Dewey criticou as utilizações que foram conferidas a algumas das
suas idéias17, e as suas crític as tiveram o efeito de suscita r a
reconsideração e a reflexão. Dewey, afinal de contas, era o
reconhecido líder intelectual do movimento. E, no entanto, os
slogans progressistas foram, cada vez mais, assumindo uma vida
própria. Foram defendidos como afirmações literais e atacados
como tais. Os crít ico s, em partic ular, com eçara m, muitas vezes,
por atribuir os defeitos literais dos slogans progressistas às
doutrinas srcinárias de Dewey, passando, a seguir, a sugerir que
o movimento progressista tinha se revelado, por isso, desprovido
de valor nos seus objetivos e no seu funcionamento.
O fato de que a pretensão literal e a pretensão prática dos
slogans devem ser criticadas independentemente pode ser
ilustrado pela consideração do slogan «Ensinamos crianças,
não matérias»*. Tendo em vista o fato de que essa e outras
fórmulas estreitamente análogas foram tratadas, por vezes, como
afirmações literais, e não meramente como símbolos unificadores
do movime nto progressista, deter-nos-emos a exam inar a
afirmação sob uma perspectiva literal. Terá, assim, algum
sentido?
Alcançar
prático essa conclusão,
do slogan entretanto,
, os objetivos não ésimbolizava,
que ele avaliar o alcance
ou as
tendências educacionais com as quais estava associado. Qual era,
de fato, o seu pro pó sito prá tico? O seu objetivo , num a palavra,
consistia em dirigir a atenção para a criança, em abrandar a
rigidez e o formalismo educacionais, em libertar os processos de
educação escolar de uma preocupação indevida com padrões e
perspectivas de adulto e das formas mecânicas de ensino, em
encorajar uma imaginação mais ampla e em estimular simpatia e
criança. Conhecer o co nt ex to educacional em que tom ou form a
essa mensagem prática significa compreender a relevância da sua
ênfase. Inversamente, a relevância da mensagem não poderá ser
percebida sem uma referência ao contexto em que surgiu. A
estória é muito longa para que possamos transcrevê-la aqui, mas
uma citação extraída de um estudo recente servirá para indicar os
seus
sobre traços mais salientes.
as escolas Citando o relatório
públicas americanas em 1892,de baseado
Joseph Rice
num
percurso de 36 cidades, nas quais Rice entrevistou 1.20U
professores, L. A. Cremin escreve18:
adarelevância
criança. de
E uma
fácil insistente
perceber,ênfase
além educacional
disso, que sobre
uma oavaliação
mundo
positiva desse tipo de ênfase, que representa o objetivo prático do
nosso slogan 19, é totalmente independente das críticas que
18. Cremin, L. A.: “The Progressive mo vem ent in American educat ion: a
perspective”, H ar va rd E du ca tio na lR ev iew , 27:251, (Fali) 1957.
19. Pela relevância do obje tivo prático de um slogan, entendo aqui a sua
aplicabilidade, dentro do contexto da sua utilização, numa ocasião
particular. Ao falar da avaliação ou da justificativa desse objetivo prático,
endereçamos ao seu sentido literal. Ou seja: não se comete
nenhum erro lógico ao aceitar essas críticas e, ao mesmo tempo,
aplaudir aquilo que o slogan enfatiza. Saber se devemos ou não
aplaudir essa ênfase constitui uma questão à parte, que requer a
consideração de problemas práticos e morais relativos a algum
contexto dado. Por último, fica claro também que a relevância
prática de um slogan, bem como a aprovação que a ele se
concede, podem variar, segundo o c on tex to , de maneira
inteiramente independente do seu objetivo literal. No caso do
slogan que temos diante de nós, muitos, na verdade, acham que a
sua mensagem prática é bem menos urgente hoje em dia do que
poderá ter sido outrora, e que ela é, na situação educacional
atual, ou irrelevante, ou então consideravelmente menos
justificada. Essa variação nos destinos do alcance prático de um
slogan constitui uma função dos tempos que mudam e dos
problemas que mudam; ela não pode resultar do malogro do
slogan enquanto doutrina literal, pois essa é invariável.
Um corolário importante consiste nisto que doutrinas que
são mutuamente contraditórias enquanto afirmações literais
podem, todavia, em seus objetivos práticos, representar ênfases
abstratamente compatíveis, essas podendo, é claro, sofrer, de
contexto a contexto, variações independentes, seja quanto à
relevância, seja quanto à justificativa moral. Isto é: pode não
haver nenhuma causa que nos obrigue a supor que estamos em
presença
uma das de um pelo
quais, conflito irreconciliável
menos, deveremos de propostas
rejeitar práticas,
peremptoria-
mente. Esse ponto pode ser ilustrado considerando-se uma
afirmação que adquiriu o estatuto típico de um slogan em
educação, a saber, a afirmação de que não pode haver ensino sem
aprendizado. Assim como não pode haver venda sem compra, da
mesma maneira não poderia haver ensino sem aprendizado. Um
au to r re cen te 20 argum entou c on tra essa afirmação, pedindo-n os
Os professores,
perigosamente no com
parecido entanto,
isso.muitas vezes muitas
Supuseram supuseram
vezesalgo
que,
além dos efeitos que possa produzir sobre os estudantes, o seu
ensino possui, exatamente da maneira como eles o exercem
habitualmente, um valor intrínseco e, por conseguinte, que ele se
autojustifica. Em lugar de realizar, mediante um esforço
deliber ado os melh oram entos que poderiam ser alcançados,
tendem então a negar que quaisquer melhorias, enquanto eles
continuarem a ensinar como antes, sejam necessárias ou possíveis.
difundida, como parecia estar, segundo muitos observadores, na
época em que o nosso slogan começou a circular, a intenção
prática do slogan pod e parecer urge nte e até revolucionár ia. Por
outro lado, falar do ensino como se fosse vender e do apren
dizado como se fosse comprar, sugerir que o ensino seja
comparado aos métodos de negócios, os quais são suscetíveis de
melhora por referência aos efeitos que produzem sobre o
consumidor, equivalia a assinalar com impacto o intento de
apoiar a reforma do ensino.
Em parte porque essa reforma passou a ser largamente
difundida, a intenção prática do nosso slogan parece, aos olhos de
muitos observadores atuais, ser irrelevante ou pouco justificada.
A tais observadores pareceu, inclusive, que o pêndulo, em muitos
casos, oscilou longe demais no sentido da orientação para o
mundo da criança e de uma preocupação exagerada com os
efeitos do ensino sobre esse mundo. As escolas foram
apresentadas, sob vários aspectos, como excessivamente
preocupadas com os seus consumidores. Os professores, ao sentir
que o peso dos conflitos de adaptação e de personalidade de cada
estudante repousava sobre os seus ombros fatigados, tentaram,
em muitos casos, fazer de mais — torna r-se tamb ém pais,
confidentes e companheiros, além de apenas professores.
Passaram então a sentir-se atormentados e até culpados (o que é
compreensível, dado que essas aspirações encontravam-se unidas
à ênfase sobre as consequências do ensino) por não serem capazes
de cumprir com todas as exigências do seu cargo, aceitando, ao
mesmo tempo, que recaísse sobre eles próprios a responsabilidade
por todos os fracassos no aprendizado22 .
Se alguém se dispusesse a levantar o ânimo de tais
professores, dificilmente continuaria repetindo, para esse fim , a
velha mensagem sob as condições que mudaram. Ao contrário,
desejaria, antes, dizer-lhes: «Parem de se sentir culpados, desistam
das suas tentativas de onipotência, parem de prestar tanta
atenção
Façam oaosmáximo
problemas
quee puderem
motivações
aointernos
ensinar dos seusmatéria
a sua estudantes.
e ao
examinar os seus alunos. E, quando tiverem feito isso, descansem
em paz com a consciência tranqüila». E é isso que constitui,
precisamente, a intenção prática da afirmação: «Pode haver
ensino sem aprendizado». E a acentuação disso que, a juízo de
22. Ver Freud, A.: “ The role o f the teacher” , Harvard Ed uc at io na l Re vie w,
22 :22 9, (Fali) 19 52, e Riesman, D. : “ Teachers amid changing exp ecta tion s”,
muitos autores contemporâneos, parece ser o mais pertinente e o
mais justificado na situação presente.
Ambas as ênfases, entretanto —a dessa última afirmação e a
daqu ela que se lhe opõ e —, são ab str ata men te com pat íveis, a
despeito do fato de que poderão ser, em contextos educacionais
específicos, desigualmente relevantes ou justificadas. E possível,
por conseguinte, sustentar (e até exigir) que o ensino deve ser
apreciado e mesmo
alunos e, ao modificado à luz
tempo, dos efeitos
acreditar que produz
(e sublinhar) que hásobre os
limites
àquilo que um professor pode fazer, mesmo quando animado
pela maior boa vontade do mundo: por mais que fizer, e faça ele
o que fizer, será sempre possí vel que não cons iga realizar ju nto
aos seus alunos o ensino desejado.
Em certas situações, todavia, pode-se considerar que é mais
importante manter o moral do professor, acentuando os limites
da sua responsabilidade, do que tentar melhorar o ensino,
acentuando a necessidade de se examinar as suas repercussões.
Assim, será realmente em função do contexto que deveremos
dizer: «Tente melhorar!», ou então: «Não se preocupe, você fez o
melhor que pode!». Mas essas ênfases não são, em geral,
irreconciliáveis, e tampouco exigem uma rejeição peremptória de
uma ou de outra. Na realidade, ambas podem se dar
simultaneamente e podem alternar em urgência. Para resumir:
quando os slogans são tomados de maneira literal, merecem
crítica igualmente literal. E necessário, contudo, que avaliemos
independentemente a intenção prática de cada um, e que o
façamos por referência aos seus contextos mutáveis, bem como
em relação às doutrinas srcinárias das quais eles surgiram. Além
disso, devemos evitar supor que, quando dois slogans estão em
contradição literal mútua, eles representam propostas práticas
que se encontram em conflito irreconciliável.
CAPÍTULO III
AS METÁFORAS EDUCACIONAIS
A linha
ciência, é badivisória entree a—
stan te tênu teoria
se é séria
que epod
a metáfora,
e sequer mesmo em
ser traçada.
Dizer: «Esta mesa é composta de elétrons» equivale claramente a
provocar (pelo menos) uma comparação entre a mesa e agregados
de minúsculas partículas cujo comportamento será elaborado
em detalhe em outras afirmações. Sem dúvida, a metáfora inicial
deverá conduzir a refinamentos na comparação, tal como essa
foi exprimida literalmente, e à confirmação experimental das
predições ou de outras inferências que foram derivadas desses
refinamentos. Mas isso vale também para as teorias em geral, e
não existe nenhum ponto evidente no qual sejamos obrigados a
dizer: «Aqui terminam as metáforas e começam as teorias».
Em educação, do mesmo modo, encontram-se freqüentemente
afirmações metafóricas em contextos teóricos chaves, tanto
quanto em contextos de política educacional. O que transmitem
elas, e como o fazem? Passarem os, no que se segue, de algumas
organismo em independentes
relativamente desenvolvimento
dos passa por do
esforços certas fases que
jardineiro são
ou do
professor. Nos dois casos, todavia, o desenvolvimento pode ser
auxiliado ou prejudicado por esses esforços. Para um e outro, o
trabalho de cuidar desse desenvolvimento parecería depender do
conhecimento das leis que regulam a sucessão das fases do
desenvolvimento. Em nenhum dos dois casos o jardineiro ou o
professor é indispensável para o desenvolvimento do organismo e,
depois de terminada a sua tarefa, o organismo continuará a
amadurecer..
florescer e emOs dois do
cuidar estão
seuinteressados em ajudar o organismo
bem-estar proporcionando condições a
ótimas para que operem as leis da natureza. Assim, a metáfora do
crescimento incorpora em si mesma uma concepção modesta do
papel do professor, o qual consistiría em estudar e, em con-
seqüência, em auxiliar indiretamente o desenvolvimento da
criança, e não em moldá-la em alguma forma preconcebida —o
23. Black, M.: “ Educa tion as art and discipl ine” , Ethi cs, 54:290, 1944, reimpres-
so em Schefflei, I.: Ph ilo so ph y an d E du cati on , op. cit.
que configura uma outra metáfora, contrária à do crescimento,
que consideraremos daqui a pouco.
Onde sucumbe a metá fora do crescimento? Ela parece
bastante plausível com relação a certos aspectos do desen
volvimento das crianças, a saber, os aspectos biológicos ou
constitucionais. Com respeito a esses, podemos, com bastante
segurança, dizer, de maneira aproximada, quais são as seqüências
de estágios que poderão normalmente ser esperadas, e de
q u e . modo poderá ser auxili ada ou prejudi cada, mediante
esforço deliberado da parte de outras pessoas, a passagem de
um estágio a outro. Nos casos em que não existe esse conheci
mento relativo a certos detalhes, pode-se presumir que a
investigação ulterior será capaz de fornecê-lo. A natureza e a
ordem desses estágios do desenvolvimento físico e tempera
mental, bem como das aptidões de comportamento que eles
tornam possíveis, são, na verdade, relativamente independentes
da ação de outros indivíduos, embora fatores culturais, mesmo
aqui, tenham o seu impacto.
No en tanto , se alguma vez perguntarmos de que maneira
essas aptidões deverão ser exercidas, para o que deverá ser
dirigida a energia temperamental da criança, que tipos de
conduta e que tipos de sensibilidade deverão ser encorajados,
começaremos, então, a perceber os limites da metáfora do
crescimento. A seqüência de etapas físicas e temperamentais
é, de fato, perfeitamente compatível com um número indeter
minado de respostas irreconciliáveis a essas perguntas. Para
esses aspectos do desenvolvimento, não existem seqüências
independentes de estágios que apontem para um único estado
de maturidade. Por essa razão, não há nenhum sentido literal
em dizer, em relação a esses aspectos: “Desenvolvamos todas
as p otencialidades de cada criança ” . Essas potencialidad es e ntram
em conflito e, portanto, não podem ser todas desenvolvidas.
Desenvolver algumas significa impedir outras. Inibir essa ou
aquela significa não admitir o pleno alcance da sabedoria da
natureza, mas, ao contrário, decidir numa direção em lugar
de outra, quando ambas são compatíveis com a natureza; a
responsabilidade por tais decisões não pode ser esquivada.
Observou-se muitas vezes que considerar a história como se
fosse uma planta, cujo desenvolvimento através de certos
estágios naturais pode ser apenas facilitado ou retardado pelos
indivíduos, constitui um meio de evitar a responsabilidade de
influir sobre os acontecimentos sociais através da escolha e da
ação24 . Deveria ser mais evidente ainda que o curso do desen
volvimento social, cultural e moral das crianças não está
dividido em estágios naturais que não podem ser alterados
fundamentalmente por outras pessoas. É visível que os adultos
— pais e professores — fazem muito mais do que simplesmente
facilitar o desenvolvimento da criança em direção a um estágio
único de maturidade cultural.
Ê a percepção
subjacente a uma intuitiva desse último
outra metáfora aspecto que
educacional se encontra
familiar: a de
con form ar, form ar ou moldar. Nu ma das variantes' dessa
metáfora, a criança é como argila, sobre a qual o professor impõe
um molde fixo, conformando-a às especificações do molde. A
iniciativa, o poder e a responsabilidade do professor tornam-se
aqui nitidamente destacados. Com efeito, a forma final da argila
constitui integralmente um produto da sua escolha de um molde
determinado. Não há aqui progressão autônoma em direção a
uma forma
relaçao dada qualquer,
ao crescimento ao contrário
das glandes, do que sucede
por exemplo. com
E tampouco
existem moldes aos quais a argila não poderá se conformar. A
argila não seleciona nem rejeita, por si própria, nenhuma
sequência determinada de estágios nem, tampouco, nenhuma
forma final. A pessoa que escolhe o molde é inteiramente
responsável pelo resultado.
À luz das nossas observações precedentes sobre a metáfora
do crescimento, fica patente que essa metáfora da moldagem
não se ajusta ao desenvolvimento biológico-temperamental da
criança, o qual não pode ser alterado totalmente pela ação
dos adultos. A metáfora da moldagem, entretanto, parece real
mente mais adequada do que a metáfora do crescimento no que
toca ao desenvolvimento cultural, pessoal e moral, o qual
depende, em medida mais larga, do caráter do ambiente social
adulto que circunda a criança.
Mesmo nesse domínio, porém, a metáfora da moldagem tem
as suas limitações. No caso da argila, a sua forma final constitui
integralmente uma função do molde escolhido. A argila não
seleciona nem rejeita nenhum molde dado. Além disso, a argila é
inteiramente homogênea e inteiramente plástica em todas as suas
partes. A forma do molde é fixada antes do processo de
moldagem e permanece constante durante todo o processo. Cada
24 . Ver, a esse respeito, Popper, K., op. cít „ e Popper, K.: The Poverty of
Historicism. London, Routledge & Kegan Paul, 1957.
um desses pontos representa uma diferença importante com
relação ao ensino. Com efeito, mesmo se não há leis de
desenvolvimento cultural, moral e pessoal, existem limites,
entretanto, impostos pela natureza dos alunos à gama de
desenvolvimentos possíveis. Esses limites anunciam aquilo que
não pode sér feito com o material, mas não o que será
desenvolvido a partir dele. A natureza humana não seleciona
exigindo apenas
exerce uma nutrição
autêntica e cuidados
escolha na suapor parte do ainda
produção, artista;que
o artista
o seu
bloco inicial de mármore não seja totalm ente receptivo a
qualquer idéia que ele possa desejar lhe impor. O bloco rejeitará
algumas dessas idéias em virtude da sua estrutura interna. E nem
todo bloco de mármore é equivalente a um outro qualquer. Cada
um requer um estudo individual das suas possibilidades e
limitações individuais. Finalmente, a idéia inicial do artista não é
uma idéia que já está completamente formada de antemão,
Por outro
continuidade daslado,
vidas comparar
individuaisa écontinuidade
simplificar aodas culturas
extremo. Comà
relação à continuidade individual, existem critérios biológicos
bem distintamente definidos, e a margem de variação que
permanece em consonância com a continuidade está determ inada
bastante nitidam ente, como, por exem plo, nas descrições do ciclo
vital. Km troca, no que concerne às culturas, não existem
critérios similarmente definidos, nem leis conhecidas de
crescimento ou esquemas normais de ciclo vital. Não somos
capazes de prontamente dizer, de antemão, até que ponto uma
cultura pode modificar o seu caráter passado sem perder a sua
própria identidade. Sem a especificação de algum padrão de
continuidade cultural, não fica claro, então, de que maneira a
educação é concebida quando ela é explicada em termos de sua
contribuição para essa continuidade. A continuidade de qualquer
cultura pode ser favorecida sob formas diferentes e conflitantes,
de acordo
rão com os diferentes
ser escolhidos. padrões
São essas de continuidade
diferenças que pode-
entre padrões que
revestem signifícância moral e, por conseguinte, prática, embora
todos esses padrões sejam compatíveis com falar, em abstrato,
de continuidade cultural.
De outra parte, quando se transfere a noção de ‘função’ de
contextos biológicos para contextos sociais, o resultado é uma
ind eter minaç ão aná log a26 , de tal ma neira q ue, m esmo com
algumas especificaçóes do aspecto sob o qual se deverá entender a
continuidade cultural, ainda
função da educação assimemserápreservar
consiste inadequado dizer que a
a continuidade
cultural. Quando falamos da função desse ou daquele mecanismo
biológico, estamos falando, grosso modo, da sua contribuição
para o funcionam ento normal ou satisfatório do organismo.
Dizer, por exemplo, que a função das batidas do coração consiste
em fazer circular o sangue pelo corpo equivale a dizer que essa
circulação do sangue, realizada, nas circunstâncias usuais, pelas
batidas do coração, é indispensável para o funcionamento normal
do. organismo
processos em questão.como
regenerativos, Assim também, falardas
a substituição da células
função velhas
dos
por células novas, equivale a dizer que a substituição resultante
da operação habitual desses processos é indispensável para o
trabalho normal do organismo biológico. Nesses casos, o conceito
de ‘funcionamento normal’ é bastante claro.
No entanto , se quisermos supor que a continuidade cultural,
alegadamente realizada pela educação, é, analogamente,
indispensável para o funcionamento normal ou satisfatório da
cultura, necessitaremos, analogamente, de uma noção clara desse
funcionamento. Infelizmente, essa noção clara está faltando.
Desse modo, mesmo deixando de lado, pelo mo mento , todas as
questões relativas à interpretação de ‘continuidade’, ainda assim
26. Para uma análise detalhada dessa questão, análi se essa que influ enci ou o meu
tratamento, ver Hempel, C. G.: “The logic of functional analysis”, in Gross,
L.: Sym posium on Soci otogi cal Theory. Evanston, Illinois, Row Peterson and
Compan y, 19 59. O exem plo da batida do cora ção que figura no nosso tex to
deve-se a Hempel.
não podemos pretender que as asserções sobre a função da
educação sejam claras no sentido em que são claras as afirmações
de ‘função’ em biologia. Precisamos, no mínimo, de fornecer
alguma especificação autônoma do padrão de funcionamento
normal que está sendo suposto.
Suponhamos, todavia, que seja fornecida essa especificação
num discurso determinado, o qual especifica, ao mesmo tempo,
uma utilização especial do termo ‘continuidade’. Num caso como
esse, a asserção segundo a qual a função da educação consiste em
preservar a continuidad e cultural torna-se análoga, do ponto de
vista da clareza, às afirmações de ‘função’ em biologia. Não
obstante, as distinções morais que são de importância primordial
nas questões que surgem nos contextos de política educacional e
social, estarão ausentes desse quadro. E o que é pior: a conotação
moral positiva do termo ‘função’ (que deriva, talvez, da sua
vinculação com o funcionamento biologicamente satisfatório
que, em geral, é favorecido) sugere que a noção de função social
implica também um valor moral.
Se refletirmos, entretanto, fica óbvio que não se pode
derivar conclusões morais a partir das atribuições de função social
feitas à maneira descrita e, a fortio ri, também é óbvio que, nesses
casos, não está implicada uma avaliação positiva. Suponhamos,
por exemplo, que especifiquemos, em primeiro lugar, que por
‘continuidade’ nos referiremos à manutenção de atitudes
constantes de docilidade política e intelectual por parte da
população e, em segundo lugar, que, por ‘funcionamento
normal’, iremos nos referir ao mando sem oposição dos senhores
do momento de uma ditadura determinada. Estaremos agora em
condições de agrupar juntos, sob a etiqueta de ‘educação’, todos
aqueles processos de opressão, fraude, distorção, doutrinação e
ameaça, mediante os quais se obtém a submissão política e
intelectual, e poderemos concluir declarando que a função da
educação, na sociedade em questão, consiste em preservar a sua
con tinuida de. Dadas as duas es pecificações me ncion adas, a
asserção não somente é clara; ela é também verdadeira. Com
efeito, a docilidade que resulta dos processos referidos é
realmente indispensável para a tranqüilidade de uma ditadura.
Mas não se segue daí que tais processos devem ser empregados ou
aprova dos. Não se segue tam po uco que as ditadur as devem
funcionar normal ou satisfatoriamente no sentido especificado,
isto é, que elas devem permanecer sem oposição. As afirmações
de ‘função’ social não somente deixam de sublinhar as questões
morais; essas últimas também se tornam muitas vezes confusas
pela conotação de valor, socialmente irrelevante, que circunda o
termo ‘função’.
No exemplo que acabamos de examinar, é evidente que um
moralista poderia discutir a especificação que foi dada de
‘funcionamento normal’; poderia também propor uma utilização
diferente para ‘continuidade’. Desse modo, poderia estar em
condições de reter a asserção de que a função da educação
consiste em preservar a continuidade, mas conferindo-lhe uma
interpretação totalmente diferente. Ou, então, poderia deixar
para outros a asserção de ‘função’ e, em troca, exprimir os seus
pontos de vista morais dizendo que o professor possui obrigações
que independem da continuidade social nos seus vários sentidos
predom inantes, a saber, as obrigações de dizer a verdade, de
respeitar a inteligência do estudante, de merecer-lhe a confiança
sendo sincero e aberto nos seus tratos com ele.
Podemos
aqui por meio abordar
de uma oconsideração
ponto geral que estivemos
da noção enfatizando
de ensino, que é
consideravelmente mais estreita do que a de aculturação.
Podemos dizer que toda cultura normalmente leva os seus
membros recém-nascidos a se comportarem em conformidade
com as suas normas, pouco importando a maneira como elas são
especificadas; e muitas culturas possuem organismos especiais
consagrados a essa tarefa. Mas nem todos os modos de levar
alguém a se comportar de acordo com uma norma qualquer
constitui ensino.
indiretos, Alguns
operando, desses por
sobretudo, modos são puramente
associação informais
e por contato, da e
forma como as línguas são normalmente aprendidas. Mas
tampouco constituem ensino todas as maneiras formais e
deliberadas. O co mpo rtam en to po de ser efetivam ente levado a
acomodar-se às normas através de ameaças, hipnose, suborno,
drogas, mentiras, insinuações e violência aberta. O ensino poderá,
certamente, proceder mediante vários métodos, mas algumas
maneiras de levar as pessoas a fazerem determinadas coisas estão
exclu ídas do âm bito pad rão do term o ‘ ensin o’. Ensinar, no se u
sentido padrão, significa submeter-se, pelo menos em alguns
pontos, à compreensão e ao juíz o independente do aluno,
à sua exigência de razões e ao seu senso a respeito daquilo
que constitui uma explicação adequada. Ensinar a alguém
que as coisas são deste ou daquele modo não significa meramente
tentar fazer com que ele o creia; o engano, por exemplo, não
constitui um método ou um modo de ensino. Ensinar envolve,
além disso, que, se tenta rm os fazer com que o estu da nte acredite
que as coisas são deste ou daquele modo, tentemos, ao mesmo
tempo, fazer com que ele o creia, por razões que, dentro dos
limites da sua capacidade de apreensão, são nossas razões.
Ensinar, assim, exige de nós que revelemos as nossas razões ao
estudante e, ao fazê-lo, que as submetamos à sua avaliação e â sua
crítica.
De outra parte, ensinar a alguém, não que as coisas são deste
ou àaquele modo, mas', ao contrário, como fazer alguma coisa
implica, normalmente, mostrar-lhe (através da descrição ou do
exemplo) como fazê-lo, e não simplesmente estabelecer as
condições sob as quais, de fato, ele aprenderá provavelmente
com o fazê-lo. Ati rar uma criança no rio não é, por si só,
ensinar-lhe como nadar; enviar a filha a uma escola de danças não
58) significa, por si só, ensinar-lhe como dançar. Mesmo quando se
trata de ensinar a alguém a fazer alguma coisa (e não de ensinar
como fazê-lo), ensinar, aqui, não significa simplesmente tentar
fazer com que ele o faça; significa também tornar acessíveis a ele,
em algum momento do processo, as razões e os propósitos que
nos levam a fazer com que ele o faç a Ensinar, po rta nt o, no uso
padrão do term o, é reconhecer a «razão» do aluno, isto é, a sua
exigência de razões e o seu juízo a respeito das razões, mesmo se
tais exigências não são igualmente apropriadas em cada uma das
fases do período de ensino.
As distinções aqui debatidas entre ensinar e promover a
aquisição de modos de comportamento ou de crença são,
podemos dizer, distinções de maneira. Elas dependem da maneira
como tal aquisição é promovida. A metáfora orgânica, como
vimos, concentra-se na co ntin uid ade da vida da cultu ra — na
realidade, ela se concentra nas normas de comportamento e nas
crenças que formam o conteúdo da cultura. Essa metáfora não
estabelece distinções a respeito da maneira de aquisição desse
conteúdo (distinções do tipo que ilustramos por referência ao
conceito d e ‘ensino ’). Mas são essas distinções, en tre tan to , que
são centrais nas questões morais relativas à política social e
educacional. Não se pode pensar que a utilidade da metáfora
orgânica em certos contextos mostra que as distinções de maneira
a que fizemos referência sejam desprovidas de qualquer
importância prática ou moral; que os professores, por exemplo,
devem, por quaisquer meios e acima de tudo, adaptar os
estudantes à cultura dominante (especificada do modo como se
quiser) e assegurar a sua continuidade (pouco importando como a
especifiquem os). Se os professor es devem ou nã o fazer
justam ente isso ou adotar alguma alternativa é algo que constitui
uma questão moral independente e grave, que requer atenção
explícita. Que essa questão não receba nenhuma ênfase na
metáfora orgânica é um fato que indica —não que a questão seja
sem im portância — mas que essa metáfora é inapropriada e m
contextos práticos.
Terminaremos esse exame tentando mostrar em que medida
é fundamental a questão de maneira, e, para tanto, faremos
novamente referência aqui ao conceito de ‘ensinar’. Já nos
esforçamos por indicar que a noção de ensino é
consideravelmente mais estreita do que a de aculturação. O fato
de se poder dizer que toda cultura se renova a si mesma fazendo
com que os seus membros recém-nascidos se comportem de
acordo com as suas normas, decididamente não significa que tal
renovação constitua, em todos os casos, um produto do ensino,
no sentido padrão dessa expressão que discutimos. Favorecer a
mais ampla difusão do ensino como um modo e como um
modelo de renovação cultural constitui, de fato, uma significativa
opção social de um caráter fundamental, envolvendo a mais
ampla extensão possível da crítica, fundada em razões,
endereçada à própria cultura.
E bem possível, e até altamente provável, que essa opção,
em sociedades determinadas, possa conduzir a grandes
modificações, em relação à cultura dominante, nas normas, nas
crenças e nas instituições sociais fundamentais. Mas essa
consequência não deverá se produzir necessariamente em todos
os casos.a É própria
quando pouco provável, em particular, procedimentos
cultura institucionaliza que ela ocorra
racionalizados nas suas esferas básicas, quando acolhe o exercício
da crítica e do juízo, vale dizer, quando se trata de uma cultura
democrática no sentido mais forte. Apoiar a mais larga difusão
possível do ensino como um modelo de renovação cultural
significa, efetivamente, apoiar algo que se encontra em peculiar
harmonia com a democratização da cultura, algo que impõe, ao
mesmo tempo, uma ameaça para as culturas cujas normas sociais
básicas se encontram
crítica. Tal institucionalmente
apoio, portanto, subtraídas
é coerente com a visão adequalquer
uma
cultura em que a compreensão não se encontra limitada, e onde o
julgamento crítico das decisões políticas não constitui privilégio
institucionalizado de uma classe, onde a mudança de política não
é forçosamente arbitrária e violenta, encontrando-se, ao
contrário, canalizada através de instituições que operam pela
persuasão baseada em razões e pelo consentimento livremente
dado. Muitos pensadores sociais, talvez mesmo a maioria,
sobreviver por muito tempo sob uma democracia nesse sentido.
Outros, no entanto, sustentaram com urgência a mais plena
institucionalização da crítica baseada em razões, inteiramente
conscientes de que tal rumo ameaça realmente as sociedades com
divisões rígidas de poder, mas negando, ao mesmo tempo, que
todas as sociedades estariam ameaçadas em conseqüência disso, e
negando que nenhuma cultura que repousa sobre uma crítica
livre, intercambiada livremente, podería sobreviver. A questão,
em suma, não é de se a cultura há de se renovar, mas de que
maneira tal renovação deve ser institucionalizada. É essa questão
prática fundamental que não deve ser obnubilada nos contextos
práticos por metáforas que são apropriadas em outros.